SEMI PES ENS-Comunic Vol1
SEMI PES ENS-Comunic Vol1
SEMI PES ENS-Comunic Vol1
ANDRÉ CONFORTE
CLÁUDIO CORREIA
SEMIÓTICA, PESQUISA
E ENSINO
(Comunicações)
VOLUME 1
2019
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Reitor
Ruy Garcia Marques
Vice-Reitora
Maria Georgina Muniz Washington
Dialogarts
Coordenadores
Darcilia Simões
Flavio García
Conselho Editorial
Conselho Consultivo
Dialogarts
Rua São Francisco Xavier, 524, sala 11007 - Bloco D
Maracanã - Rio de Janeiro - CEP 20550-900
http://www.dialogarts.uerj.br/
Copyright© 2019 Claudio Correia e André Conforte (Orgs.)
Edição
Darcilia Simões
Diagramação
Darcilia Simões
Capa
Raphael Ribeiro Fernandes
Produção
UDT LABSEM – Unidade de Desenvolvimento Tecnológico Laboratório
Multidisciplinar de Semiótica
FICHA CATALOGRÁFICA
C748 CONFORTE, André; CORREIA, Claudio (Orgs.). Semiótica, pesquisa e ensino.
C824 Comunicações. Volume 1.
Rio de Janeiro: Dialogarts, 2019.
Bibliografia.
ISBN 978-85-8199-117-7
1. Semiótica 2. Pesquisa. 3. Ensino.
I. Comunicações; II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
III. Departamento de Extensão. IV. Título.
3
ESTUDOS SOBRE OS PROCESSOS DE
INTERPRETAÇÃO E DE SEMIOSE NO
DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM E DA
COMPETÊNCIA SEMIÓTICA DA CRIANÇA SURDA
NA FAIXA ETÁRIA DOS 10 E 11 ANOS DE IDADE146
César Vinícius Santos Melo ...................... 146
Claudio Manoel de Carvalho Correia ........ 146
“ISSO VEM ABALANDO-A
EMOCIONALMENTE” – O PROCESSO DE
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO ENUNCIADOR
NA PRÁTICA DISCURSIVA DO GÊNERO JURÍDICO
PETIÇÕES INICIAIS ........................................... 172
Douglas do Carmo Araujo ........................ 172
Ilana da Silva Rebello .............................. 172
A PERCEPÇÃO EM FRONTEIRAS
INTERDISCIPLINARES: CONVERGÊNCIAS E
ASPECTOS CONFLITANTES ............................... 203
Alfred Sholl-Franco.................................. 203
LINGUAGEM EMOCIONAL COMO SISTEMA
MODELIZANTE SECUNDÁRIO NO CONTEXTO
EDUCACIONAL ................................................ 218
Anna Carolina Miguel .............................. 218
Alfred Sholl-Franco.................................. 218
4
DO SENTIDO AO SENTIR: UMA PERSPECTIVA
DA SEMIÓTICA COGNITIVA PARA A PRÁTICA DE
MINDFULNESS ................................................ 248
Mônica Maria Souza de Oliveira .............. 248
Carla Mariliados Santos ........................... 248
Alfred Sholl-Franco.................................. 248
PERCEPÇÃO, SENSAÇÃO E METACOGNIÇÃO:
REFLEXÃO SOBRE AS ABORDAGENS DAS
TECNOLOGIAS DIGITAIS DE INFORMAÇÃO E
COMUNICAÇÃO COMO SIGNO ........................ 264
Claudia Diniz da Silva............................... 264
Glaucio Aranha ....................................... 264
Alfred Sholl-Franco.................................. 264
ESTRATÉGIAS SEMIÓTICAS NO PROCESSO DE
AQUISIÇÃO DA LEITURA E DA ESCRITA NA
PRIMEIRA INFÂNCIA ....................................... 288
Giselle Mendes dos Santos ...................... 288
Gláucio Aranha ....................................... 288
Alfred Sholl-Franco.................................. 288
A ANÁLISE SEMIÓTICA DA ESTIMULAÇÃO
ATRAVÉS DA MÚSICA E MOVIMENTO EM
CRIANÇAS COM MÚLTIPLAS DEFICIÊNCIAS ...... 317
Aline Fernandes Bernal ........................... 317
Alfred Scholl-Franco ................................ 317
5
AMBIÊNCIAS MULTILÍNGUES DE ENSINO:
RECORTES SEMIÓTICOS E SEMIOSES NAS
RELAÇÕES DE SURDOS E OUVINTES ................. 334
Nayla Schenka Ribeiro ............................. 334
Alfred Sholl-Franco.................................. 334
ASPECTOS MOTIVACIONAIS DA
MATEMÁTICA COMO SIGNO E SISTEMA .......... 356
Kátia Machinez da Cunha ........................ 356
Alfred Sholl-Franco.................................. 356
REDAÇÃO DISSERTATIVO-ARGUMENTATIVA
NO ENSINO MÉDIO: ESTRUTURA TEMÁTICA EM
FOCO .............................................................. 379
Carla MacPherson Garcia de Paiva ........... 379
INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS E
MULTIMODALIDADE EM AULAS DE LÍNGUA
ESTRANGEIRA PARA CRIANÇAS ....................... 408
Livia Cristina Eccard Pinto ........................ 408
OS TEXTOS MULTIMODAIS NO ENSINO DE
FATOS GRAMATICAIS DA LÍNGUA PORTUGUESA
...................................................................... 431
Márcia da Gama Silva Felipe .................... 431
A INICIAÇÃO CIENTÍFICA NA EDUCAÇÃO
BÁSICA: UMA REFLEXÃO À LUZ DA SEMIÓTICA E
DA FILOSOFIA ................................................. 453
6
Fani Conceição Adorne ............................ 453
Evandro Carlos Godoy ............................. 453
A MULHER NA LITERATURA DE CORDEL.. 479
Morgana Ribeiro dos Santos .................... 479
A INFORMALIDADE DO CARIOCA EM
ESPAÇO AMBÍGUO ......................................... 512
Fátima Marinho Fabrício Monteiro .......... 512
TRADUÇÃO DE POEMA E DE LETRA DE
CANÇÃO: UM ESTUDO DE CASOS .................... 543
André Conforte ....................................... 543
7
APRESENTAÇÃO
8
A satisfação se deve ao fato de que é
realmente gratificante chegar ao cabo de um
processo que se inicia com pelo menos um ano
de antecedência à abertura do evento e que
culmina com a publicação – para o
conhecimento geral do universo acadêmico –
dos artigos a nós encaminhados, após um
cuidadoso e carinhoso processo de revisão e
formatação.
A gratidão deriva do reconhecimento de
que só se chega ao fim deste processo com a
colaboração de muitos; em primeiro lugar, da
líder do grupo de pesquisa SELEPROT, Darcilia
Simões, idealizadora e realizadora-mor de tudo
que diz respeito aos estudos semióticos em
nossa Alma Mater fluminense: além do já citado
grupo, também a Editora Dialogarts e o Colsemi,
que chega vitoriosamente à sua 6ª edição, e já
prepara a sua 7ª para este ano que se inicia (em
tempos de macérrimos incentivos
governamentais à pesquisa científica); em
segundo lugar, à qualificada e coesa equipe do
SELEPROT, cujos membros, instados a cada
instante pela líder do grupo, não se furtam a co-
laborar em todas as etapas da realização do
evento e de seus rebentos acadêmicos, como é o
caso desta coletânea, que vem a lume após
contar com a co-operação de muitos dos
participantes do grupo no processo de revisão e
formatação dos artigos; por fim, nossa gratidão
9
se estende a todos os professores, pesquisadores
e alunos que participaram do 6º Colsemi.
Quanto aos artigos aqui publicados, que
esperamos sejam muito úteis ao nosso leitor,
saltam aos olhos, de imediato, duas
características em comum: a diversidade de
assuntos abordados e o positivo e fecundo
diálogo com outras áreas do conhecimento.
A primeira característica se deve ao fato de
que poucos arriscariam determinar os reais
limites da semiótica de extração norte-
americana (ou peirciana), já que, nas palavras do
próprio Peirce, “em seu sentido geral, a lógica é
[…] apenas outro nome para semiótica” (PEIRCE,
2005, p. 45)1. Consistindo a Lógica, grosso modo,
numa teoria geral do pensamento (em que,
numa perspectiva fenomenológica e cognitiva, a
nosso ver, Peirce situa a existência dos signos),
compreendemos que tudo quanto concerne à
linguagem concerne também aos estudos
semióticos (inclusive as especulações
linguísticas per se, presentes em muitos escritos
do filósofo norte-americano, e nas quais ele
emite juízos formidáveis, apesar de não se
10
considerar um linguista). Cremos não ser nem
mesmo necessário recorrer à artificial e falsa
sinonímia entre a semiótica de Peirce e a
semiologia de Saussure, e alegar que, nas
palavras do linguista genebrino, a linguística não
seria senão uma parte daquela ciência que, já de
si, “constituiria uma parte da Psicologia social e,
por conseguinte, da Psicologia geral”
(SAUSSURE, 2006, p. 23). Enfim, entendemos
não haver muita controvérsia: a Semiótica é de
fato mais abrangente que a própria Linguística,
e, em consequência, nada que tenha cariz
linguístico lhe é estranho; distinguem-se, talvez,
as formas de abordagem, e mesmo estas, entre
si, se mostram bastante heteróclitas.
A segunda característica, a
interdisciplinaridade, se justifica nas palavras de
Lúcia Santaella (2004, p. 06):
11
necessário haver um conhecimento de
teorias e história da arte. Para fazer
semiótica da música, é preciso conhecer
música, e assim por diante.
12
REFERÊNCIAS
PEIRCE, Charles Sanders. (1980) Escritos
Coligidos. Seleção de Armando Mora D’Oliveira.
Coleção Os Pensadores. 2. ed. São Paulo: Editora
Abril.
_____. (2005) Semiótica. São Paulo: Perspectiva.
SANTAELLA, Lucia. (2004) Semiótica Aplicada.
São Paulo: Pioneira Thompson Learning.
SAUSSURE, Ferdinand de. (2006) Curso de
Linguística Geral. 27 ed. São Paulo: Cultrix.
13
LEITURA E PRODUÇÃO DE SENTIDOS:
O PAPEL DA SEMIÓTICA, DA
SEMÂNTICA E DA PRAGMÁTICA
Claudia Moura da Rocha
TRÊS CIÊNCIAS EM PROL DA LEITURA E DA
PRODUÇÃO DE SENTIDOS
O presente texto é resultado do minicurso
ministrado durante o VI COLSEMI, realizado em
2017; com ele, pretende-se apresentar de
maneira resumida aspectos teóricos e práticos
abordados, o que decorre das limitações
inerentes a um artigo acadêmico. A razão para
tratar de três ciências tão abrangentes e ao
mesmo tempo muito próximas é o potencial que
oferecem ao ensino de Língua Portuguesa, em
especial à leitura e à interpretação de textos. É
forçoso salientar que não é necessário o
emprego da nomenclatura específica de cada
uma delas durante as aulas, mas que o professor
pode se valer de seus conceitos para que seus
alunos realizem uma leitura mais crítica e
reflexiva, estimulando a produção de sentidos.
Recentemente, muitos avanços
tecnológicos repercutiram na maneira como se
escreve, ocorrendo desde o surgimento e a
evolução dos suportes até a criação de novos
gêneros textuais (como os e-mails, as mensagens
instantâneas, os posts e os memes).
14
Consequentemente, não é um exagero afirmar
que o ser humano vive rodeado, e por que não
dizer, imerso em signos. Muitos textos do
cotidiano caracterizam-se por essa
multiplicidade de signos (além do linguístico,
uma variada gama de outros signos não verbais
e de novas linguagens se entrecruzam na
tessitura textual).O professor, perante essa nova
realidade, se depara com a necessidade de levar
seu aluno a desenvolver um letramento
multissemiótico (ROJO, 2009), que ultrapassa a
mera decodificação do signo verbal, permitindo
também que seja capaz de ler não somente o que
está explícito na superfície textual como
também o que se encontra implícito.
Para tanto, a Semiótica, como a ciência
geral dos signos, considerando-se a vertente
proposta por Peirce (2005), a Semântica e a
Pragmática têm muito a oferecer no que
concerne à leitura e à produção dos sentidos do
texto. Partindo dessa premissa, nosso objetivo é
propor uma análise textual baseada nas
contribuições dessas três ciências. A primeira,
por possibilitar a abordagem dos signos em
geral; a segunda, por se concentrar no signo
verbal, mais especificamente no que está
inscrito na superfície textual; e a terceira, por
explicar o que não está inscrito na superfície do
texto, ao contrário, levando em consideração as
informações implícitas, dependentes do
15
contexto ou da situação, mas que são
fundamentais para a atribuição de sentido ao
texto. A conclusão a que se pode chegar é a de
que a interseção entre as três ciências é a busca
do significado.
Por questões didáticas, abordar-se-ão as
contribuições de cada uma dessas ciências
separadamente, mas é preciso salientar que os
fenômenos da linguagem se entrecruzam e suas
contribuições tendem a se inter-relacionar.
O PAPEL DA SEMIÓTICA NA LEITURA E NA
PRODUÇÃO DE SENTIDOS
O termo semiótica é oriundo do grego
semeion, que significa signo. Deduz-se, portanto,
que a Semiótica é a ciência que estuda os signos
e as linguagens em geral (SANTAELLA, 2004, p.
7). Entretanto, defini-la não é uma tarefa
pacífica, como esclarece Nöth:
16
ao contrário, defini-la apenas como uma
teoria da significação (2005, p. 17).
17
significado), ignorando a existência do referente
ou objeto (ao contrário de Peirce). Saussure
também prenunciou a existência de uma ciência
que estudaria os signos, a qual chamou de
Semiologia, indicando que a Linguística seria um
dos seus ramos (SAUSSURE, 2006, p. 24, 80-84).
Outra diferença a ser apontada entre os dois
estudiosos é que Saussure considerava apenas
os signos empregados intencionalmente,
enquanto Peirce não fazia distinção entre signos
naturais e artificiais (NÖTH, 2009, p. 21).
O signo é um conceito fundamental para
Peirce, pois considerava que o mundo seria
composto por signos (NÖTH, 2005, p. 62), sendo
o próprio homem um deles: “... o fato de que
toda ideia é um signo junto ao fato de que a vida
é uma série de ideias prova que o homem é um
signo” (PEIRCE, apud NÖTH, 2005, p. 61).
Peirce também propôs o termo semiose
para o processo de interpretação sígnica,
processo dinâmico em que o signo atua sobre a
mente do intérprete (NÖTH, 2005, p. 66), e a
distinção entre ícone, índice e símbolo. Ele
distingue os signos em ícones (se estabelecem
com o objeto uma relação de semelhança, como
fotografias, pinturas, diagramas, fórmulas
algébricas, metáforas etc.), índices (se
estabelecem uma relação de contiguidade,
proximidade, como uma pegada, indicando a
presença de alguém; uma nuvem escura no céu,
18
prenunciando chuva, por exemplo) e símbolos
(se estabelecem uma relação arbitrária, por
convenção social, como o signo linguístico):
19
sendo um dos símbolos nacionais; e as cores da
bandeira fazem referência: o verde,à vegetação;
o amarelo, às riquezas; o azul, ao céu).
20
iconicidade) e que podem ser captados por
nossos sentidos (visão, tato, audição).
Segundo a autora, podemos identificar
quatro tipos de iconicidade em um texto:
a) a diagramática (relacionada à forma e à
diagramação dos textos — se um texto é escrito
em versos ou parágrafos; se nele há espaços em
branco; se o tamanho e o tipo de fonte utilizados
foram empregados expressivamente; se foram
usados recursos como negrito, itálico ou
sublinhado);
b) a lexical (relacionada à seleção lexical
ou escolha vocabular, ao recorte do léxico que é
realizado); mais adiante trataremos de campo
lexical, um conceito da Semântica que pode ser
associado a esse tipo de iconicidade;
c) a linguístico-gramatical (relacionada ao
emprego intencional ou estratégico dos recursos
linguístico-gramaticais; nesse caso, os
conhecimentos linguísticos do falante são
acionados para a interpretação textual);
d) a isotópica (relacionada à isotopia, à
manutenção do tema desenvolvido no texto,
garantindo-lhe a coerência textual).
A implosão da mentira
Fragmento 1
21
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.
22
rimas ao final da maioria dos versos. Tanto seu
projeto visual como sonoro revelam a
iconicidade diagramática nele presente. No
campo do léxico, nota-se a escolha intencional
do substantivo mentira, do verbo mentir
(conjugado no Presente do Indicativo) e do
sufixo formador de advérbios -mente para
construir jogos de palavras, o que se relaciona
aos tipos de iconicidade lexical e linguístico-
gramatical. Também essa escolha lexical
contribui para a manutenção temática do texto
(iconicidade isotópica), que trata da mentira e
suas consequências, garantindo-lhe a coesão e a
coerência textuais.
23
Considerar ou não o contexto é justamente o que
serve para distinguir essa ciência da Pragmática,
como veremos a seguir. Segundo Cançado
(2012, p. 19), a ciência em questão se dedicaria a
explicar “aspectos da interpretação que
dependem exclusivamente do sistema
linguístico, e não de como as pessoas a colocam
em uso”, o que pertenceria ao campo da
Pragmática.
A princípio, a Semântica (termo proposto
por Michel Bréal) era uma ciência de caráter
histórico em razão de estudar a evolução
semântica das palavras, ou seja, ocupava-se com
as transformações de sentido ocorridas com as
palavras ao longo do tempo. Também é
relevante destacar que, apesar de o
Estruturalismo, movimento capitaneado por
Saussure, reconhecer a existência do significado
(tanto que ele é uma das “faces” do signo ao lado
do significante), este foi durante muito tempo
deixado de lado devido à busca pela exatidão
científica, condição difícil de ser alcançada no
tocante aos estudos semânticos.
Dentre os conceitos da Semântica
explorados nas atividades de leitura e
interpretação, o professor costuma abordar os
aspectos semânticos, “as relações existentes
entre o significante e o significado da palavra
(signo verbal)” (VALENTE, 1994, p. 188), como a
polissemia, a homonímia, a sinonímia, a
24
antonímia e a paronímia. Portanto, segundo
Valente (1994, p. 188-189), poderíamos afirmar
que os aspectos semânticos citados
anteriormente correspondem, respectivamente,
a:
(1) um significante com vários
significados;
(2) significantes iguais com
significados diferentes;
(3) significantes diferentes com
significados iguais;
(4) significantes diferentes com
significados opostos;
(5) significantes parecidos com
significados diferentes.
25
dentro do texto considerado (VANOYE,
2007, p. 28).
A donzela e o sapo
Era uma vez uma donzela que caminhava
pela beira de um rio quando ouviu um
“psiu”. Parou e olhou em volta e não viu
ninguém. Viu uma floresta de conto de
fadas e um límpido rio de antigamente, e
um céu de puro azul e nuvens brancas e
muitos pássaros, mas não viu ninguém.
Recomeçou a caminhar, e de novo ouviu
um “psiu”. E então descobriu que quem
fazia “psiu” era um sapo. Levou um susto,
mas o olhar do sapo era tão triste e a
donzela tão boa que ela se curvou para
ouvi-lo. E o sapo contou que era, na
verdade, um príncipe amaldiçoado. Fora
transformado em sapo por uma bruxa
vingativa com poderes mágicos, que fazia
qualquer coisa virar qualquer coisa, e só
26
se transformaria de novo em príncipe se
uma donzela boa o beijasse. A donzela
acreditou e beijou o sapo, que se
transformou num príncipe lindo que a
levou para seu castelo feudal. E os dois
viveram felizes para sempre, explorando
os camponeses.
(VERÍSSIMO, Luís Fernando. Jornal do
Brasil, 04/05/1997)
27
também oferece recursos ao professor de língua
materna. Observemos como alguns dos
estudiosos a definem:
Do ponto de vista puramente formal, a
metáfora é, em essência, uma
comparação implícita, isto é, destituída
de partículas conectivas comparativas
(como, tal qual, tal como) ou não
estruturada numa frase cujo verbo seja
parecer, semelhar, assemelhar-se,
sugerir, dar a impressão de ou um
equivalente desses. Assim, “seus olhos
são como (parecem, assemelham-se a,
dão a impressão de) duas esmeraldas” é
uma comparação ou símile.” (GARCIA,
1988, p. 86)
28
parcialmente estruturada, compreendida,
realizada e tratada em termos de
GUERRA. O conceito é metaforicamente
estruturado, a atividade é
metaforicamente estruturada e, em
consequência, a linguagem é
metaforicamente estruturada. (LAKOFF;
JOHNSON, 2002, p. 48)
29
(GIL, Gilberto. Metáfora. Disponível em:
http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco
_info.php?id=585&letra. Acesso em
20/01/2018)
30
O PAPEL DA PRAGMÁTICA NA LEITURA E NA
PRODUÇÃO DE SENTIDOS
31
(isto é, de acordo com o tipo de
proximidade física, social ou conceitual
em relação aos ouvintes, os falantes
determinam como e quanto precisam
dizer).
Com base nessas definições, é possível
afirmar que a pragmática pode ser
entendida como a teoria do uso
linguístico (...). (2012, p. 89).
32
Se o posto é o que afirmo, enquanto
locutor, se o subentendido é o que deixo
meu ouvinte concluir, o pressuposto é o
que apresento como pertencendo ao
domínio comum das duas personagens
do diálogo, como o objeto de uma
cumplicidade fundamental que liga entre
si os participantes do ato de
comunicação. Em relação ao sistema dos
pronomes poder-se-ia dizer que o
pressuposto é apresentado como
pertencendo ao ‘nós’, enquanto o posto é
reivindicado pelo ‘eu’, e o subentendido é
repassado ao ‘tu’ (DUCROT, 1987, p. 20).
33
pertencem ao domínio do subentendido,
cabendo ao interlocutor responsabilizar-se por
elas.
A implicatura, por sua vez, é um tipo de
inferência calcada não no que foi dito, mas no
que se pretendeu dizer (MOURA, 2006, p. 13).
Normalmente, as implicaturas explicam
respostas que aparentam não se relacionar com
o que foi perguntado. Por exemplo: se alguém
perguntar à Maria se ela irá à festa e ela
responder “Não, José está doente”, é preciso
realizar um cálculo mental para relacionar a
pergunta à resposta. Provavelmente, José é
marido, namorado ou filho de Maria e sua
doença a impede de sair de casa para ir à festa.
Portanto, o sentido não está no posto, mas no
que se pretendeu dizer com ele, e é preciso
realizar um cálculo mental (justificado pela
intenção de cooperar com o interlocutor — o
Princípio da Cooperação proposto por Grice)
para se depreender isso (GRICE, 1975, p. 45).
Para compreender a tirinha da Turma da
Mônica apresentada a seguir, o leitor necessita
acionar seu conhecimento de mundo sobre o
deserto e as dificuldades de sobrevivência
encontradas por quem ali se encontra (no caso,
a dificuldade de encontrar água); precisa
também de seu conhecimento de mundo para
saber que o outro personagem que aparece na
tirinha, um menino chamado Cascão, não gosta
34
de água nem de tomar banho. Ao relacionar a
fisionomia de alívio e satisfação do homem
perdido no deserto ao fato de que o personagem
infantil estaria fugindo de um lugar onde
haveria água, o leitor realiza uma inferência que
lhe permite atribuir sentido ao texto,
considerando-o coerente.
35
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esperamos ter contribuído, mesmo que
sucintamente, para demonstrar um pouco do
potencial oferecido por três ciências
extremamente abrangentes e complexas. Sem o
emprego da nomenclatura específica, é possível
ao professor ensinar seus alunos a utilizarem
estratégias de leitura a fim de lerem os mais
variados signos (linguísticos ou não), partindo
do que está explícito na superfície do texto até
os conteúdos implícitos veiculados por ele.
REFERÊNCIAS
CANÇADO, Márcia (2012). Manual de semântica:
noções básicas e exercícios. São Paulo: Contexto.
DUCROT, Oswald (1987). O dizer e o dito.
Campinas, SP: Pontes.
FIORIN, José Luiz (2011). “A linguagem em uso.
In: ______ (org.). Introdução à linguística. São
Paulo: Contexto.
GARCIA, Othon Moacyr (1988). Comunicação em
prosa moderna: aprendendo a escrever,
aprendendo a pensar. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas.
GRICE, Herbert Paul (1975). “Logic and
conversation”. In COLE, P.; MORGAN, J.L. (orgs.).
Syntax and Semantics, v. 8, Nova Iorque,
Academic Press. p. 41-58.
36
KOCH, Ingedore Villaça (2002). Desvendando os
segredos do texto. São Paulo: Cortez.
LAKOFF, George; JOHNSON, Mark (2002).
Metáforas da vida cotidiana. São Paulo: Mercado
de Letras.
LOPES, Ana Cristina Macário; RIO-TORTO, Graça
(2007). Semântica. Lisboa: Editorial Caminho.
MOURA, Heronides Maurílio de Melo (2006).
Significação e contexto: uma introdução a
questões de semântica e pragmática.
Florianópolis, Insular.
NÖTH, Winfried (2009). A semiótica no século
XX. São Paulo: Annablume.
______. (2005). Panorama da semiótica: de Platão
a Peirce. São Paulo: Annablume.
PEIRCE, Charles Sanders (2005). Semiótica. São
Paulo: Perspectiva.
ROJO, Roxane (2009). Letramentos múltiplos,
escola e inclusão social. São Paulo: Parábola
Editorial.
SANTAELLA, Lúcia (2004). O que é semiótica.
São Paulo: Brasiliense.
SARDINHA, Tony Berber (2007). Metáfora. São
Paulo: Parábola Editorial.
37
SAUSSURE, Ferdinand de (2006). Curso de
linguística geral. São Paulo: Cultrix.
SIMÕES, Darcilia (2009). Iconicidade verbal.
Teoria e prática. Rio de Janeiro: Dialogarts.
VALENTE, André (1994). A linguagem nossa de
cada dia. Rio de Janeiro: Leviatã.
VANOYE, Francis (2007). Usos da linguagem:
problemas e técnicas na produção oral e escrita.
São Paulo: Martins Fontes.
WILSON, Victoria (2012). “Motivações
pragmáticas”. In MARTELOTTA, Mário Eduardo.
Manual de linguística. São Paulo: Contexto.
BIODATA
Claudia Moura da Rocha é Doutora em Língua
Portuguesa pela UERJ (Universidade do Estado do
Rio de Janeiro), onde atua como Professora Adjunta
do Instituto de Letras. Além de lecionar na Graduação,
possui experiência em outros níveis de ensino:
Fundamental (1º e 2º segmento), Médio e Pós-
Graduação lato sensu. É membro do grupo
SELEPROT. Dentre as áreas de interesse de pesquisa,
figuram tanto o humor e o seu aproveitamento
didático como as contribuições da Semântica e da
Pragmática para a leitura e a interpretação textual.
Acesso ao currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/5891003802019200.
E-mail: claudiamoura@infolink.com.br.
38
TRADIÇÃO GRAMATICAL: UMA
PERSPECTIVA HISTÓRICA
Thiago Soares de Oliveira
A GRAMÁTICA COMO ÁREA DO SABER
Dissertar sobre a gramática em sentido
amplo é trazer à baila uma discussão que se
inicia com o entendimento de como a gramática
tradicional (GT), ou a tradição – como se prefere
neste trabalho – está incrustada nos compêndios
normativos de tal forma que, com as devidas
ressalvas, não se pode falar de gramática
normativa (GN) sem se referir aos ditames da
tradição. Para fins de esclarecimento,
interessam a esta empreitada científica os
conceitos, as características e a funcionalidade
da gramática normativa, uma vez que é o padrão
linguístico em questão.
A princípio, a respeito da tradição
gramatical, é preciso notar que sua origem
filosófica, a qual remonta à Grécia do século V a.
C., conforme aponta Lyons (1979, p. 4), fazia
parte da "indagação geral sobre a natureza do
mundo que os [indivíduos] cercava e das suas
instituições sociais". De fato, é na Grécia antiga
que desponta o confronto entre duas visões
opostas da linguagem: a linguagem entendida
como fonte de conhecimento e aquela vista
como simples meio de comunicação. As
39
implicações da aceitação de uma dessas visões,
em detrimento da outra, seriam consideráveis;
porquanto, vista como espelho da realidade, a
língua seria o caminho para o conhecimento
desta; por outro lado, se arbitrária, nada de
relevante seria obtido com a língua e seu estudo
(WEEDWOOD, 2002).
Segundo apregoa Neves (2005), examinar
a gramática tradicional ocidental significa
necessariamente remontar à gramática grega,
cujo contexto histórico e cultural proporcionou
o surgimento, entre os gregos, da atividade
gramatical. Foram "séculos de desenvolvimento
de um pensamento teórico [os quais] criaram
condições para o exercício de uma atividade
prática teoricamente fundamentada" (NEVES,
2005, p. 13). Com efeito, na discussão da língua,
a dúvida sobre se havia conexão necessária
entre o que a palavra significava e sua forma
fazia girar a distinção entre "natureza" e
"convenção". Em consonância com as
explicações de Lyons (1979), de Weedwood
(2002) e de Neves (2005), o diálogo de Platão
intitulado Crátilo bem representa as formas
como poderiam ser entendidas as visões de
língua na época.
O propósito aqui delimitado não tenciona o
retorno nem a revisão de séculos de história
sobre a tradição gramatical, até porque, como
fato da cultura helenística e mecanismo de sua
40
preservação, seria necessária a abordagem de
aspectos que fogem ao escopo desta proposta. O
fato é que, quando se fala em tradição
gramatical, tem-se na gramática "uma disciplina
que, pelas próprias condições em que surgiu,
aparece com finalidades práticas, mas
representa um edifício somente possível sobre a
base de uma disciplinação teórica do
pensamento sobre a linguagem" (NEVES, 2005,
p. 14). Não interessa o retorno à gênese do
termo gramática porque, como bem afirma
Franchi (2006, p. 17), a "concepção de gramática
tem raízes muito antigas".
Contudo, é preciso pontuar que "o que
melhor caracteriza [...] essa tradição é a visão
inaugurada por Aristóteles, de que existe uma
forte relação entre linguagem e lógica"
(MARTELOTTA, 2013, p. 45). A partir desse
entendimento, desenvolveu-se uma tendência
de consideração da gramática como um estudo
relacionado à lógica, departamento da filosofia.
Assim,
a linguagem é um reflexo da organização
interna do pensamento humano. Essa
organização interna é universal, já que,
por ser inerente aos seres humanos, se
manifesta em todas as línguas do mundo.
Para Aristóteles, a lógica seria o
instrumento que precede o exercício do
pensamento e da linguagem, oferecendo-
lhes meios para realizar o conhecimento
41
e o discurso. Assim, a lógica aristotélica
buscava descrever a forma pura e geral
do pensamento, não se preocupando com
os conteúdos por ela veiculados
(MARTELOTTA, 2013, p. 45-46).
42
Lyons (1979): gramática nocional e gramática
formal; Mattoso Câmara Júnior (1974):
gramática descritiva, gramática tradicional
normativa, gramática histórica e gramática
comparativa; além de diversos outros autores da
seara da linguística. Aqui, aborda-se a gramática
normativa como materialização da tradição
gramatical. Assim,
43
De forma simplificada, antes de adentrar
na discussão quanto ao fato de ser disciplina ou
ciência, define-se aqui a gramática normativa
como um compêndio de normas que refletem a
tradição gramatical de mais de vinte séculos. A
despeito das devidas alterações sofridas pelo
tempo, continua não só ditando
primordialmente um padrão de escrita e,
secundariamente, um padrão de fala, uma vez
que considera a inferioridade desta em relação
àquela; mas também representando a variedade
padrão, considerada modelar para os indivíduos
que manejam determinada língua. De forma
geral, concorda-se com Leite a respeito da noção
geral de gramática, segundo o qual as
gramáticas são como instrumentos linguísticos
44
modalidade falada ou escrita. Esse
instrumento empírico, 'gramática', tal
como o conhecemos desde a tradição
greco-latina, é um objeto técnico, cultural,
que se vai modificando ao longo da
história, embora tenha mantido uma
estrutura que permite seu
reconhecimento como tal. Essa estrutura
que torna a gramática reconhecível,
desde seu surgimento no mundo grego,
no século II a. C., engloba,
necessariamente, a descrição das
categorias e subcategorias linguísticas (as
partes do discurso, ou classes de
palavras), as regras e os exemplos que as
caracterizam (LEITE, 2014, p. 116).
Tradição
45
enorme território que ia desde a pequenina
Grécia, na Europa, até o Egito, na África,
passando pelo Oriente Médio, pela
Mesopotâmia, e chegando até o rio Indo, no
limite entre o grande Império Persa [...] e a
Índia" (BAGNO, 2007, p. 62). Nesse tempo,
surgiu a necessidade de normatizar a língua
grega, que havia se tornado um idioma
internacional, criando um padrão uniforme,
homogêneo, imposto como forma de unificação
política e cultural dos territórios conquistados
por Alexandre, O Grande (BAGNO, 2007).
Eis então que "a disciplina gramatical é
uma criação da época helenística, a qual
representa [...] não apenas uma diferença de
organização política e social [...], mas também o
estabelecimento de um novo estilo de vida, um
novo ideal de cultura" (NEVES, 2005, p. 111). O
reconhecimento dessas premissas contribui
para a compreensão de que a época histórica, o
ambiente político e as condições sociais foram
unidades formadoras do que se denomina aqui
como imposição. Dessa forma, entendendo que,
desde a sua gênese, a gramática, no seio da
tradição, é impositiva, pode-se adentrar com
maior propriedade no segundo elemento
componente do tripé da tradição: a prescrição.
A prescrição, segundo Lyons (1979),
também surgiu no período alexandrino em
razão da preocupação dos filólogos antigos de
46
recuperar o texto dos poemas homéricos, os
quais se encontravam bastante corrompidos.
Pode-se resumir a preocupação prescritiva
entendendo que,
47
com que exigências concernentes à necessidade
de inserção nesse compêndio – do estudo da
variação linguística ou de considerações acerca
de fatos, como mobilidade e estigma sociais –
serem assaz incoerentes. Não se abre um
compêndio normativo à espera de um manual
de linguística, mas de uma compilação de
normas. Logo, se uma obra se propõe normativa,
é isso que se deve esperar dela. Verificar o
contrário é que seria um disparate. Aliás,
consoante Bortoni-Ricardo (2005), entre as
sociedades ditas tradicionais, o Brasil conserva a
característica de ter o acesso limitado à norma-
padrão.
A respeito do legado histórico, terceiro
elemento do tripé da tradição, Mattos e Silva
explica que,
48
A despeito de sua origem, a tradição de
pensamento que toma forma na gramática
normativa "também possui um componente
descritivo" (FRANCHI, 2006, p. 20). Os
estudiosos da língua, de certa forma, procedem
de maneira científica quando tecem análises
estruturais de termos e expressões de uma
língua, reduzindo-os a unidades mais simples;
quando organizam classes em subclasses;
quando verificam as relações que se
estabelecem entre as classes e as unidades
reduzidas; entre outros procedimentos
(FRANCHI, 2006). Esse pensamento vai de
encontro à acepção de Martelotta (2013, p. 45),
que não considera que a gramática tradicional
"fornece ao estudioso da linguagem uma teoria
adequada para descrever o funcionamento
gramatical das línguas". Faz-se, ainda, uma
ressalva ao pensamento de Franchi (2006), que
deixa claro que a atuação da gramática
descritiva parece ser mais neutra e mais
científica em relação à impendida pela
normativa, o que parece bastante coerente.
Nesse contexto, percebe-se que "o discurso
não é simplesmente aquilo que traduz as lutas
ou os sistemas de dominação, mas aquilo
porque, pelo que se luta, o poder do qual nos
queremos apoderar" (sic) (FOUCAULT, 2013, p.
10). Percebe-se também que a gramática, como
campo do saber, tem na tradição um sistema
49
moldado no tempo capaz de respaldá-la no seu
fazer disciplinar. Obviamente, esse suporte não
dirime os efeitos da norma sobre o indivíduo,
mas assegura à gramática uma justificativa de
boa plausibilidade na medida em que traz em
seu bojo um discurso constituinte, pondo "em
evidência propriedades comuns que são
invisíveis ao primeiro olhar" (MAINGUENEAU,
2008, p. 37).
Quando se fala em discurso constituinte e
o relaciona à tradição, fala-se de um discurso,
cuja problemática da delimitação é bastante
perceptível, porque existe, a todo tempo, uma
interação entre discursos constituintes e não
constituintes. De qualquer forma, a tradição
parece dar validade aos ditames da gramática
normativa na medida em que não reconhece,
segundo Maingueneau (2008), outra autoridade
senão a própria, a que emana de si mesma. É
nesse sentido a percepção de que a norma busca
na tradição uma fonte inesgotável de
fundamentos e pretextos, especialmente porque
esta última funciona como uma "fonte
legitimadora" daquela.
Conquanto trate mais precisamente sobre
os discursos religioso, científico e filosófico,
Maingueneau (2008) defende, por analogia, que
a literatura consiste em um discurso
constituinte. Da mesma forma, isto é, de modo
análogo, parte-se do pressuposto de que a
50
tradição reúne elementos para ser considerada
um discurso constituinte. Isso se pretende
evidenciar quando o autor assevera que tais
discursos
operam a mesma função na produção
simbólica de uma sociedade, uma função
que poderíamos chamar de archeion. Esse
termo grego, étimo do latino archivum,
apresenta uma polissemia interessante
para nossa perspectiva: ligado a
arché,'fonte', 'princípio', e a partir daí
'comando', 'poder', o archeion é a sede da
autoridade [...]. O archeion assim
intimamente o trabalho de fundação no e
pelo discurso, a determinação de um
lugar associado a um corpo de
enunciadores consagrados e uma gestão
da memória (MAINGUENEAU, 2008, p.
37-38).
51
possuírem a capacidade de "ensimesmar", ou
seja, basta que a autoridade afirme para ser
considerada válida a assertiva.
Na mesma linha de raciocínio de
Maingueneau (2008), consta na obra de
Foucault (2013), anterior à do professor da
Universidade Paris XII-Val-de-Marne, a
explicação, sem utilizar a nomenclatura de
"discurso constituinte", de que existem
discursos que "estão na origem de certo número
de atos novos de fala, que os retomam, os
transformam ou falam deles, ou seja, os
discursos que, indefinidamente, para além de
sua formulação, são ditos, permanecem ditos e
estão ainda por dizer" (FOUCAULT, 2013, p. 21).
Ao que parece, a definição do filósofo francês
harmoniza-se perfeitamente com a tradição da
qual se vem tratando durante todo o trabalho:
uma tradição que diz e desdiz e permanece, mas
suporta frágeis incursões com o passar do
tempo. A questão é: trata-se de uma disciplina
ou de uma ciência?
52
Inicialmente, é preciso entender a que tipo de
gramática o questionamento se refere. Em
seguida, verificar se, de fato, existem bases
teóricas e argumentos satisfatórios e
consideráveis para "engavetar" a gramática,
classificando-a em um tipo específico de
conhecimento. Antes, porém, de adentrar nessa
discussão, vale situar o lugar da tradição na
construção do saber.
A princípio, como salientam Laville e
Dionne (1999), antes do modo científico de
aquisição do saber, havia outras formas de
conhecer o mundo, as quais, na verdade,
coexistem no contexto da ciência moderna.
Dissertando sobre o nascimento do saber
científico, os autores assinalam duas
configurações possíveis para os saberes: a dos
saberes espontâneos, que merecem atenção em
razão de estar a tradição neles incluída, e a do
saber racional, com inúmeras subdivisões que
não convém mencionar em razão da questão a
ser explorada.
Quando o saber nasce espontaneamente,
significa que se deriva da experiência e de
observações pessoais, tal como ocorreu com o
homem pré-histórico quando descobriu como
acender o fogo e reutilizou tal conhecimento
para facilitar sua vida. De fato, segundo explicam
Laville e Dionne (1999, p. 17), "aqui está o
objetivo principal da pesquisa do saber:
53
conhecer o funcionamento das coisas, para
melhor controlá-las, e fazer previsões melhores
a partir daí". Não à toa, os mitos e as religiões (o
sobrenatural) foram um dos primeiros modos
de responder às inquietudes humanas acerca do
mundo e de seu funcionamento.
Ainda sobre os saberes espontâneos, estes
comportam a intuição, a autoridade e a tradição.
Um saber construído pela intuição "é aceito
assim que uma primeira compreensão vem à
mente" (LAVILLE e DIONNE, 1999, p. 19) e faz
com que a compreensão de fenômenos pareça
"satisfatória durante séculos, sem mais provas
do que a simples observação". É o que hoje se
chama de "senso comum". Em relação a esse tipo
de saber, os autores acrescentam que
54
Ao que parece, o saber adquirido por meio
do senso comum é lacunoso, justamente pela
possibilidade reducionista das explicações que,
aparentemente, são evidentes. Por esse motivo,
a aquisição de saberes desse modo é limitada,
pois não há um aparato teórico de embasamento
nem uma profundidade de percepção possível
de ser obtida pela execução de um método.
Obviamente, devido à espontaneidade, o saber
oriundo da intuição não passa de mero reflexo
do pensamento do indivíduo com base em sua
visão de mundo. Isso não significa, no entanto,
que toda essa experiência pessoal e a percepção
individual devem ser desconsideradas no campo
da aquisição dos saberes, especialmente porque
constituem um conjunto de noções e juízos que,
no passado, eram extremamente férteis. De
qualquer forma, sabe-se que o senso comum não
se coaduna com os princípios do saber científico.
A autoridade, segundo tipo componente
dos saberes espontâneos, parte do princípio que,
sem evidências claras acerca de sentidos e de
origem, uma tradição é transmitida com base na
palavra de uma autoridade, ou seja, um
indivíduo que reproduz um repertório pronto
por força da credibilidade do homem e daquilo
que ele representa. Graças a isso, muitas vezes,
determinados preceitos são preservados e
praticados sem que se saiba exatamente qual é a
sua origem. Laville e Dionne (1999, p. 20)
55
reconhecem que a força desse tipo de saber
"deve-se ao fato de que nem todos podem
construir um saber espontâneo sobretudo o que
seria útil conhecer", já que não receberam de
"algo maior" autoridade para tanto.
Relativamente à tradição, também
integrante da ordem dos saberes espontâneos,
ela está ligada ao passado, é presumivelmente
verdadeira e "dita o que se deve conhecer,
compreender, e indica, por consequência como
se comportar" (LAVILLE e DIONNE, 1999, p. 20).
Nesse ponto, percebe-se o caráter histórico que
reveste a tradição, transformando-a em um
elemento contínuo, que não se pode
interromper, porque as forças do encadeamento
e da sequência temporais se entrecruzam de tal
forma que não é possível romper com a linha
que ata os enunciados e propaga o hábito, a
prática, o uso, o costume. Por isso e pela crença
na descontinuidade, Foucault (2014) diversas
vezes refuta a tradição e aponta que o problema
não é a tradição em si, mas o seu recorte, o seu
limite. A dúvida persiste, contudo: a gramática é
uma disciplina ou uma ciência?
Entendida a tradição como um dos
elementos componentes da ordem dos saberes
espontâneos, seria óbvia a asserção de que,
sendo a gramática normativa, a efetivação da
tradição, por óbvio, não poderia integrar a seara
dos saberes científicos. E de fato o é. Parte-se do
56
pressuposto de que a gramática normativa, e
não a descritiva, é uma disciplina; não pode,
portanto, dela ser exigido o comportamento
esperado de uma ciência, de um saber científico.
A tradição que comanda a vontade de verdade,
exteriorizada na gramática normativa, como
qualquer sistema de exclusão, tende a "exercer
sobre os outros discursos [...] uma espécie de
pressão e como que um poder de coerção"
(FOUCAULT, 2013, p. 17).
Buscando em Mattoso Câmara Júnior
(2011) alguns critérios que separam o estudo
científico do não científico, percebe-se que,
enquanto aquele baseia-se na observação e na
comprovação objetivas; este, por sua vez, além
de não apresentar os significados dos contrastes
que descobre, também não desenvolve um
método científico para focalizar a sua matéria.
Dessa forma, "cabe à gramática normativa, que
não é uma disciplina com finalidade científica e
sim pedagógica, elencar os fatos modelares da
exemplaridade idiomática para serem utilizados
em circunstâncias especiais de convívio social"
(BECHARA, 2009, p. 52).
Nessa linha de raciocínio, entendem-se
como descomedidos alguns ataques dirigidos à
gramática normativa, especialmente porque,
diferentemente da gramática descritiva que,
"por ser de natureza científica, não está
preocupada em estabelecer o que é certo ou
57
errado" (BECHARA, 2009, p. 52), a normativa de
fato "recomenda como se deve falar e escrever
segundo a autoridade dos escritores corretos e
dos gramáticos e dicionaristas esclarecidos
(BECHARA, 2009, p. 52). Essas transcrições são
palavras de um notável gramático da língua
portuguesa em obra recente, sinalizando, de
certa forma, que já se sabe que a gramática
normativa mais se aproxima da ordem dos
saberes espontâneos, devido ao inegável vínculo
com a tradição, do que da dos saberes
científicos.
Deve-se, entretanto, relativizar
determinadas assertivas como as reproduzidas
acima, não tomando questões de norma como se
fossem sempre de caráter absoluto. Nesse
sentido, o próprio Bechara (2006) explica que a
gramática normativa acaba por almejar a
cientificidade na medida em que tende a
oferecer explicações quando reconhece certos
usos e quando repudia outros. Fala-se aqui da
gramática normativa, e não da descritiva. A esta,
de fato, cabe "registrar como se diz numa língua
funcional", revestindo-se de várias formas a
depender da metodologia que emprega, por
exemplo: estrutural, funcional, estrutural e
funcional, contrastiva, distribucional, gerativa,
transformacional, estratificacional, de
dependências, de valências, de usos etc.
(BECHARA, 2006, p. 14).
58
Eis que, para ser científica, a gramática
normativa deveria respeitar determinada
concepção de ciência, o que na verdade não
ocorre em virtude de sua própria origem e
emergência. A gramática é prescritiva desde sua
gênese, como já foi visto anteriormente.
59
outras regras ou normas de correção exógenas"
(LYONS, 2011, p. 34). Esse entendimento se
coaduna com o de JoaquimMattoso Câmara
Júnior (2011, p. 20), quando este afirma que "O
Estudo do Certo e Errado não é uma ciência.
Nada mais é que uma prática do comportamento
linguístico", apesar de conter algo de descritivo.
60
tradicional (sinônima de normativa neste caso),
quais sejam: a limitada, apresentando uma
norma de comportamento linguístico, e uma
mais arrojada, preocupada com a explicação e o
funcionamento das formas linguísticas. Para a
finalidade de que trata este trabalho, considera-
se a primeira face como a gramática normativa e
a segunda como a descritiva. São, por isso, duas
facetas distintas com finalidades também
distintas e bem definidas, o que não permite pôr
os dois conceitos sob a mesma pretensão
científica. Na verdade, não se considera que a
disciplina gramatical, ensimesmada na norma,
seja de fato científica, diferentemente da
descrição gramatical.
De qualquer forma, "a gramática
normativa tem o seu lugar e não se anula diante
da gramática descritiva. Mas é um lugar à parte,
imposto por injunções de ordem prática dentro
da sociedade. É um erro perturbador misturar
as duas disciplinas" (CÂMARA JÚNIOR, 2015, p.
15). Essa preocupação de Joaquim Mattoso
Câmara Júnior diz respeito à não confusão entre
o que supostamente é uma disciplina e o que é
uma ciência.
É preciso atentar que, na ordem do
discurso científico em meados do milênio
passado, como bem aponta Foucault (2013), a
atribuição de um discurso a um autor era um
indicador de verdade. Do século XVII em diante,
61
essa necessidade de autoridade foi perdendo
força. De modo semelhante, percebe-se que,
diante da tradição gramatical, a figura do autor
da gramática normativa, embora reforce o
discurso nela apregoado, não é produto em si
mesmo naturalmente, já que isso cabe à
tradição. O processo de "ensimesmar", da forma
como se vislumbra nesta seção, é típico da
tradição. A ela cabe irradiá-lo à norma, bastando
retomar o que se considera como o tripé que
sustenta a tradição, ou seja, a imposição, a
prescrição e o legado histórico, elementos
interligados e de funcionamento sinérgico.
No que concerne mais especificamente à
concepção de disciplina, entende-se como
Foucault (2013, p. 28) que ela "se define por um
domínio de objetos, um conjunto de métodos,
um corpus de proposições consideradas
verdadeiras, um jogo de regras e de definições,
de técnicas e de instrumentos". Nesse quesito,
não há como negar que a gramática normativa
se encaixa perfeitamente na definição
foucaultiana, uma vez que tem por objeto
específico a norma-padrão, firmada sobre o
método tradicional baseado em pressupostos de
ordem histórica. Além disso, seu corpus
propositivo é, em si mesmo, considerado
verdadeiro por causa de um jogo de regras que
constitui justamente o foco de investigação aqui
proposto.
62
De mais a mais, a disciplina, segundo o
pensamento de Foucault (2013, p. 29), "constitui
uma espécie de sistema anônimo à disposição de
quem quer ou pode servir-se dele, sem que seu
sentido ou sua validade estejam ligados a quem
sucedeu a ser seu inventor". Isso, a rigor, aplica-
se de modo quase inconteste à gramática
normativa na medida em que esta, sendo uma
compilação de normas, deixa à disposição um
arcabouço de dispositivos normativos que pode
ser acionado a qualquer tempo pelo indivíduo.
Neste caso particular, argumenta-se que "à
disposição" tem um caráter muito mais
impositivo do que de possibilidade, já que a
norma dirige e padroniza a forma de
manifestação escrita e, muitas vezes, oral do
indivíduo.
Essa linha de raciocínio parece ser seguida
por autores como Neves (2005), Martelotta
(2013), Bagno (2010) e Câmara Júnior (1974),
os quais se posicionam no sentido de que a
gramática, da forma como exposta aqui, é uma
disciplina. Nesse mesmo pensamento, Bechara
(2009) também compreende que se trata de
uma disciplina sem caráter científico, afinal não
basta "descrever determinados fenômenos para
se constituir um estudo científico, é preciso,
além disso, explicar o funcionamento ou a
natureza desses fenômenos" (MUSSALIM, 2008,
63
p. 28). Isso não cabe à gramática normativa,
como já visto, mas à descritiva.
Consoante Foucault,
64
No mais, tanto a disciplina quanto a ciência
se inscrevem em um certo horizonte teórico
bem definido, mas acabam se estabelecendo por
seus limites, pois, enquanto uma disciplina
“repele, para fora de suas margens, toda uma
teratologia do saber", o exterior da ciência "é
mais e menos povoado do que se crê [...], mas,
talvez, não haja erros em sentido estrito, porque
o erro só pode surgir e ser decidido no interior
de uma prática definida" (FOUCAULT, 2013, p.
31-32), o que é o caso da disciplina. Em suma, a
disciplina, diferentemente da ciência, "é um
princípio de controle da produção do discurso"
(FOUCAULT, 2013, p. 34), já que lhe fixa os
limites por meio de um cinturão de regras e
normas.
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______ (2012). A gramática passada a limpo:
conceitos, análises e parâmetros. São Paulo:
Parábola Editorial.
WEEDWOOD, Barbara (2002). História concisa
da linguística. 1. ed. São Paulo: Parábola
Editorial.
BIODATA
Thiago Soares de Oliveira é Doutor em
Cognição e Linguagem pela Universidade
Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
(UENF) e professor do Instituto Federal
Fluminense (IFF) campus Campos Centro,
atuando na Licenciatura em Letras (Português e
Literaturas de Língua Portuguesa) e na
Especialização em Literatura, Memória Cultural
e Sociedade. Publicou inúmeros trabalhos em
periódicos científicos e anais de congressos,
destacando-se alguns mais recentes como A
68
presença de latinismos na redação acadêmica:
análise de elementos de citação a partir da norma
10520 (CALIGRAMA: Revista de Estudos
Românicos), Currículo disponível em:
<http://lattes.cnpq.br/9517999630235808>.
E-mail: so.thiago@hotmail.com.
69
OS SENTIDOS DO REAL E DO IRREAL
EM MURILO RUBIÃO E O PERCURSO
FIGURATIVO DE SENTIDO
Caroline Feitosa de Sousa
INTRODUÇÃO
71
consiste em imprimir ao discurso um
fazer parecer verdadeiro. Porém, decorre
da tradição do pensamento saussuriano,
antes de mais nada, a descrição da
estrutura elementar da significação, que
constitui uma primeira configuração do
sentido, elemento do nível mais abstrato
do percurso gerativo de sentido.
(veremos a seguir). (CORTINA;
MARCHEZAN, 2004, p.397).
72
Primeiramente, como notamos, Saussure
tinha a ideia de que a Semiologia seria uma
ciência mais psicológica do que linguística,
talvez por acreditar na ideia de que o signo é
social por natureza.
Arnaldo Cortina e Renata Marchezan
(2004) afirmam que os procedimentos
metodológicos semióticos não são exatamente
uma transposição do modelo do signo
linguístico que Saussure propôs, pois a
semiótica volta a atenção para os processos de
significação e não para os sistemas de signos.
A semiótica herda o ponto de vista
saussuriano, sobre os elementos linguísticos
compreenderem um sistema de diferenças,
redes de relações binárias entre os signos, um
valor relacional do significado. Num primeiro
olhar para a teoria, vemos as redes de relações
dicotômicas aparecerem, por exemplo, na
descrição do nível fundamental.
No projeto hjelmsleviano, em seu
Prolegômenos, há um projeto de linguagem
científico que tenta prever normas e princípios
para a mesma. Os conhecimentos linguísticos,
pela história da gramática e da linguística, eram
veículos de entendimento para as coisas
externas à linguagem. Como o próprio Saussure
chegou a afirmar: a língua é um fato social.
Contudo, Hjelmslev trará um olhar imanentista à
73
linguagem; isto é, a linguagem deveria ser
estudada para ela e por ela mesma, “um todo
que se basta em si mesmo, uma estrutura sui
generis”. Para ele, seria possível “uma linguística
genética racional”. (FIORIN, 2003: 21). Da
mesma maneira que a semiótica herda essa
mesma visão imanentista: tem como objetivo
inicial perceber os mecanismos de estruturação
textual e as “normas” que guiam a construção
dos discursos manifestados, simultaneamente,
nos textos.
Dessa maneira, haveria uma linguística
capaz de desnudar um sistema que está sob um
processo, revelando como é a organização deste.
Esse projeto de teoria da linguagem opera-se
com essas duas hierarquias (o sistema e o
processo). Para Hjelmslev, “a todo processo
corresponde um sistema e é este que permite
analisar e descrever aquele com um número
restrito de premissas” (FIORIN, 2003, p. 22).
Isso quer dizer que o processo é investido em
número limitado de elementos que ressurgem
em novas combinações. Ao processo cabem as
relações sintagmáticas e ao sistema, as relações
paradigmáticas.
Devemos observar que Greimas tenta
executar a herança teórica hjelmsleviana, mas
sua semiótica se difere do projeto hjelmsleviano,
pois não se pretende partir do texto (a unidade
do processo) para se deduzir as unidades do
74
processo linguístico como as categorias do
sistema linguístico (no plano do conteúdo e no
da expressão).Como também, não se pretende
descrever exaustivamente as unidades lexicais
particulares. Ela pretende, na verdade, analisar
(e não de modo exaustivo), em uma perspectiva
sintagmática, a produção de sentidos e a
interpretação dos textos (GREIMAS; COURTÈS
1979, p. 327).
Assim, a semiótica greimasiana deriva
desses eixos teóricos e, por isso, concebe e
reconhece o valor duplo relacional do
significado. Dedica-se a desenvolver a explicação
do sentido em busca do quê e do como pelo
modo por meio do qual o sentido se constitui.
Dessa forma, procura descrever e explicitar o
que diz o texto e como diz o seu conteúdo.
Dizemos, então, que a primeira preocupação do
exame de um texto pela semiótica inicia-se pelo
plano de conteúdo, como também, estende-se ao
plano da expressão.
O sentido do texto é construído na
semiótica por um percurso gerativo, que elege o
plano do conteúdo como o item mais importante
a ser analisado. Barros propõe quatro pontos
fundamentais que resumem o percurso gerativo
de sentido:
a) O percurso gerativo de sentido vai do
mais simples e abstrato ao mais
complexo e concreto; b) são estabelecidas
75
três etapas no percurso, podendo cada
uma delas ser descrita e explicada por
uma gramática autônoma, muito embora
o sentido do texto dependa da relação
entre os níveis; c) a primeira etapa do
percurso, a mais simples e abstrata,
recebe o nome de nível fundamental ou
das estruturas fundamentais e nele surge
a significação como uma oposição
semântica mínima; d) no segundo
patamar, denominado nível narrativo ou
das estruturas narrativas, organiza-se a
narrativa, do ponto de vista de um
sujeito; e) o terceiro nível é o do discurso
ou das estruturas discursivas em que a
narrativa é assumida pelo sujeito da
enunciação (BARROS, 1990, p.9).
76
As categorias fundamentais são
demarcadas como positivas ou eufóricas e
negativas ou disfóricas: a negação e a asserção.
Num plano menos abstrato, lidamos com outras
oposições: assimilação versus exclusão ou
admissão versus segregação. Nesse primeiro
trecho da narrativa, a assimilação é eufórica e a
exclusão é disfórica. A valoração do que é
positivo ou negativo (eufórico ou disfórico) está
marcada no texto. O texto, nesse caso, através do
seu narrador — veja-se as passagens: “Os
primeiros dragões que apareceram na cidade
muito sofreram com o atraso dos nossos
costumes” e “Apenas as crianças, que brincavam
furtivamente com os nossos hóspedes, sabiam
que os novos companheiros eram simples
dragões” — atribuiu ao outro a presença
positiva e bem-vinda, enquanto a maioria dos
moradores rechaçou a presença dos dragões. Ao
fim deste conto, vemos inscritas as várias
demonstrações de atitudes preconceituosas e
violentas em relação ao outro, aos dragões.
As categorias semânticas precisam ter um
traço semântico comum — nesse caso, seria a
presença do outro, a alteridade, a partir dela é
que se estabelecem as oposições. Além dessas
relações contrárias, o nível das estruturas
fundamentais obedece a um percurso entre os
termos próprios da sintaxe do nível
fundamental: exclusão (disforia) — não-
77
exclusão (não disforia) — assimilação (euforia)
ou assimilação — não assimilação — exclusão.
Em segunda instância, está o nível
narrativo. A teoria do percurso gerativo de
sentido considera que o nível narrativo opera
entre a narratividade e a narração. A primeira
seria competente a todos os textos, há neles uma
narrativa mínima, isto é, quando se vê um
estado inicial, uma transformação e um estado
final. A segunda “constitui a classe de discurso
em que estados e transformações estão ligados a
personagens individualizadas” (FIORIN, 2011, p.
28). Em nosso exemplo, o conto Os Dragões,
lidamos com as duas condições. Primeiramente,
há uma narratividade mínima (podemos
constatar a transformação dos dragões): os
dragões chegam à cidade e modificam a rotina
local, ao mesmo tempo, são transformados pelos
costumes humanos dos habitantes dali que, para
eles, eram degradantes.
Compreendidas essas noções, elas agora
servem à sintaxe narrativa, pois essa parte da
teoria preocupa-se em desvelar a mimesis das
ações do homem que transformam o mundo.
Descrever o fazer do homem, assim como
precisar os partícipes dessas transformações
são propósitos da organização narrativa ou
gramática narrativa.
Dessa forma, deparamo-nos, na sua
estrutura, com os enunciados elementares de
78
estado e de fazer. A sintaxe dos enunciados é
constituída de dois actantes, no mínimo. É uma
relação determinada por uma relação-função. A
relação seria a transitividade, aquela que
contém um investimento semântico mínimo. Os
actantes são resultados dessa relação-função,
são eles: o actante sujeito e o actante objeto. As
funções, grosso modo, seriam a junção
(conjunção ou disjunção) e a transformação.
Estaríamos diante de formas canônicas que
constituem a sintaxe narrativa.
Nos enunciados de estado, há uma relação
de junção (conjunção ou disjunção) entre um
sujeito e um objeto. Há o reconhecimento de um
estado e o querer estar em conjunção ou
disjunção em relação a um valor. Os enunciados
de fazer administram a passagem de um estado
ao outro.
No nível narrativo, as adversidades
semânticas construídas no nível fundamental
são assumidas como valores por um sujeito, ao
mesmo tempo em que outros sujeitos da
narrativa partilham desses valores, graças à
ação dos mesmos sujeitos ou de outros. É
justamente a ação dos sujeitos que transforma
estados.
O nível discursivo apropria-se de formas
ainda abstratas para lhes dar concretude. O nível
discursivo amplia as variações dos conteúdos
narrativos mais fixos, invariantes. Observamos,
79
nesse nível, os recursos discursivos utilizados
para se criarem efeitos de sentido. Em Os
dragões, projeta-se um eu narrador e cria-se um
efeito de subjetividade. Percebemos, no seu
discurso, a empatia com o drama dos dragões“os
primeiros dragões que apareceram na cidade
muito sofreram com o atraso dos nossos
costumes”.
Barros (1990) afirma que as oposições
fundamentais constituídas como valores
narrativos reverberam-se em temas e
concretizam-se por meio de figuras (veremos
mais adiante na análise propriamente dita do
percurso figurativo de sentido).
O último nível do percurso gerativo de
sentido chama-se nível da manifestação. Barros
afirma que o percurso figurativo de sentido, a
priori, fundamenta o plano de conteúdo, porém
não existe conteúdo linguístico sem expressão
linguística ou outro meio de expressão de outras
naturezas: pictórico, verbal, gestual etc.
A linguagem é estruturada em dois planos:
o de conteúdo, que revela os sentidos que se
quer veicular, e o da expressão “que é
constituído pelo veículo dos sentidos” (SAVIOLI;
FIORIN, 2006, p. 338). Os sons são os elementos
que transmitem significados, na linguagem
verbal, para os ouvintes. Fazem parte do plano
da expressão. Na literatura, principalmente, na
poesia, é comum os planos de expressão sonoros
80
ou a marcação de acento ou a escolha repetitiva
de uma consoante empregarem um sentido
extra ao conteúdo mais explícito.
No nível da manifestação, o exercício dos
autores é recriar tais conteúdos organizados na
expressão dos textos. Os recursos formais de
sonoridades, ritmos, repetição de palavras,
figuras de linguagem, sequências simétricas ou
não, rimas, etc. são meios que o texto literário
encontra para organizar a sua expressão.
O percurso gerativo de sentido preocupa-
se em simular um modelo de produção e de
interpretação do significado ou do conteúdo de
um texto. O nível da manifestação vai auxiliar o
percurso gerativo de sentido a unir o plano de
conteúdo a um plano de expressão e, assim,
revelar um discurso manifestado pelos sentidos
recobertos no texto.
81
categoria a todas as palavras lexicais e não
apenas a substantivos” (FIORIN, 2011, p. 91).
A figura é representativa de uma realidade,
“remete a algo existente no mundo natural:
árvore, vaga-lume, sol, correr, brincar, vermelho,
quente” (FIORIN, 2011, p. 91), ou seja, tem um
correspondente acessível no mundo natural
existente ou até mesmo construído. O tema é
mais conceitual, sua natureza é teórica, não
remete ao mundo natural. “Temas são categorias
que organizam, categorizam, ordenam os
elementos do mundo natural: elegância,
vergonha, raciocinar, calculista, orgulhoso, etc.”
(FIORIN, 2011, p. 91).
Um texto temático opera
predominantemente explicando a realidade,
fixando conceitos, classifica e ordena assuntos.
Isso não significa que inexistem figuras, mas sua
prioridade é demonstrar função predicativa ou
interpretativa. O texto temático tenta explicar o
mundo e os temas sobressaem na superfície
textual mais facilmente. Nesse sentido, é a
semântica discursiva que ajuda a transmutar os
esquemas abstratos das narrativas em
esquemas concretos e, assim, “concretiza as
mudanças de estado do nível narrativo”
(FIORIN, 2011, p. 89).
Os textos figurativos, por sua vez,
exemplificam ou simulam a realidade, lidam com
ela de maneira representativa, criam um efeito
82
de realidade. Com elementos que remetem à
concretude do mundo natural, eles têm função
descritiva e representativa. Os textos narrativos
costumam cumprir bem esse papel.
Isso significa que a nossa análise se baseia
nas estruturas superficiais dos textos para se
chegar a estruturas profundas do texto: os
temas e os discursos. Nesse sentido, ao
analisarmos textos figurativos, extraímos os
temas subjacentes, pois estes são
concretizadores do sentido anterior.
Analisemos, nesta seção, a narrativa Os
Dragões com o olhar do percurso figurativo de
sentido. De acordo com o que vimos até agora,
essa narrativa se apresenta predominantemente
como um texto figurativo, pois estamos diante
de um mundo representado por termos como
dragões, uma cidade, vigário, casa velha,
educador, moradores locais etc. Ou seja,
exemplificam ou simulam a realidade de
maneira representativa, criam um efeito de
realidade.
Recordemos que, em um nível mais
abstrato, encontramos o par: alteridade versus
identidade. Consequentemente, desdobram-se
em outros pares, à medida que os como:
xenofobia versus xenofilia, assimilação versus
exclusão, admissão versus segregação, e, quando
os sujeitos assumem ou não, em processo de
junção, essas condições, esses pontos começam
83
a dar-nos pistas temáticas, que, por sua vez,
estão subjacentes aos percursos figurativos.
Vejamos o trecho inicial da narrativa Os
Dragões:
84
A última figura em destaque, contraditórias
suposições sobre o país e raça, pode encaminhar
os temas: xenofobia e racismo. Os dragões foram
condenados pelos moradores a condições
precárias de sobrevivência em função de sua
origem, comportamento social que vemos se
repetir em diversas culturas. Os moradores
locais permanecem em disjunção com a
assimilação ou com a admissão dos seres à vida
na cidade. Enquanto o enunciador e as crianças
– Apenas as crianças (...) sabiam que os novos
companheiros eram simples dragões – estão em
conjunção com esses valores e, acrescentamos, o
da xenofilia.
Eric Landowski (2002), no seu trabalho
Presenças do Outro, ao tratar no primeiro (e em
outros) capítulo sobre a presença estrangeira na
França e “os tipos de configurações intelectuais
e afetivas que submetem a diversidade dos
modos de tratamento do dessemelhante” (p.5), a
partir das relações lógicas de pares semânticos
da semiótica greimasiana, aponta-nos sobre a
noção de admissão (em contraponto à
segregação).Grosso modo, deriva de uma ideia
de integração ao grupo local. As próximas
figuras confirmam os percursos figurativo e
temático a respeito desses apontamentos:
85
apesar da aparência dócil e meiga, não
passavam de enviados do demônio, não
me permitiu educá-los. Ordenou que
fossem encerrados numa casa velha,
previamente exorcismada, onde ninguém
poderia penetrar. Ao se arrepender de seu
erro, a polêmica já se alastrara e o velho
gramático negava-lhes a qualidade de
dragões, “coisa asiática, de importação
europeia”. Um leitor de jornais, com vagas
ideias científicas e um curso ginasial feito
pelo meio, falava em monstros
antediluvianos. O povo benzia-se,
mencionando mulas sem cabeça,
lobisomens.
Apenas as crianças, que brincavam
furtivamente com os nossos hóspedes,
sabiam que os novos companheiros eram
simples dragões. Entretanto, elas não
foram ouvidas. (RUBIÃO, 2010, p. 47)
86
impunha-nos. Essa assimilação caracteriza-se
como uma determinação da população
receptora do estrangeiro, que se vê “obrigada” a
não ser excludente, mas depara-se com a paixão
da exclusão. Para E. Landowski (2002), a ideia
de assimilação deriva de políticas públicas
“impostas” a cidadãos locais como símbolo
amistoso de recepção, como uma aparente e
“perfeita conjunção de identidades” (2002), mas
há outras complicações ou complexizações.
Note-se que o narrador enumera os
moradores (sublinhados) responsáveis pelas
ideias da xenofobia, racismo e segregação,
figurativizando os habitantes no geral (uma
espécie de Nós de Landowski), como se
houvesse um pensamento “único” dos
moradores (em disjunção à admissão). E, ainda,
a tematização dos trabalhos menos prestigiosos
dados aos estrangeiros (em disjunção à
admissão) na tentativa de integração.
87
representado na figura dos dragões: a presença
do outro. Em seguida, outro tema – o
comportamento preconceituoso dos habitantes
– representado pelas discussões e pela
“controvérsia iniciada de um vigário”. Este tema
foi figurativizado por julgamentos direcionados
aos dragões como: enviados do demônio, coisa
asiática, de importação europeia, monstros
antediluvianos, mulas sem cabeça, lobisomens,
trancafiá-los em uma casa velha, o povo se benzia
e rezava. Logo depois, o tema da aceitação2 das
diferenças ou reconhecimento da identidade é
figurativizado nas crianças, que brincavam com
os dragões e viam as criaturas como elas são de
fato ou sem quaisquer preconceitos.
Os dragões, então, são as criaturas de fora
da cidade, O Outro, e que deflagram preconceito
e pensamentos atrasados dos seus habitantes. A
crítica se confirma também em outras figuras:
“sua formação moral ficou irremediavelmente
comprometida pelas absurdas discussões
surgidas”, “a ignorância geral fez com que, antes
de iniciada a sua educação, nos perdêssemos em
contraditórias suposições sobre o país e a raça a
que poderiam pertencer” (RUBIÃO, 2010).
88
No nível da manifestação, como alguns
investigadores da obra muriliana afirmam, o
absurdo versus lógico atua na sua forma de
escrever. Não nos é obrigatório observar pares
em contraposição no nível da manifestação, mas
nossa hipótese é que a antítese apresentada seja
uma das formas de expressão adotadas por
Rubião.
Sabemos que, nesse caso, o analista do
discurso deve voltar o seu olhar para essas
novas relações constituídas a partir do diálogo
entre os planos de expressão e de conteúdo. A
escrita antitética quase paradoxal de Rubião,
nos seus enunciados, acrescenta importante
sentido à obra. Explicar o absurdo como lógico e
se utilizar de uma linguagem que se aproxima de
um “objetivismo” próprio dos textos não
literários cria um efeito de sentido (acreditamos,
no sentido global) de um questionamento do
status quo das relações sociais. Reparemos na
lucidez lógica do enunciador no seguinte trecho:
89
Na sua expressão de linguagem, Rubião
deixa transparecer um estilo eloquente, agudo,
de frases curtas, adjetivação justa, contrário a
superlativos e a exageros grandiloquentes, de
ordem lógica, de relação de explicação ou de
causa e de efeito, de coerência e clareza, de
abundante presença de conectivos
(característica própria de textos dissertativo-
argumentativos).
Uma forma de escrita, por vezes, quase não
preenchida de formas literárias específicas
(como os recursos da linguagem poética) e que
se apoia no conteúdo fantástico e no alegórico
para dizer o que precisa ao interlocutor. Por
exemplo, os atores nos textos de Rubião, em
alguns contos, lançam afirmações como
estruturas linguísticas de uma tese, ou seja, uma
afirmação a qual se quer provar ao longo do
texto: “Os primeiros dragões que apareceram na
cidade muito sofreram com o atraso dos nossos
costumes” (p. 47).
Observemos as exemplificações em outras
narrativas de Rubião (2010) de dois pontos
marcantes em seus textos: a) Afirmações: “O
culpado foi o homem do boné cinzento”
(RUBIÃO, 2010, p.151); “Desde o primeiro
contato Jadon admitiu a precariedade das suas
relações com os companheiros de refeitório”
(RUBIÃO, 2010, p.216); “Raras são as vezes que,
nas conversas de amigos meus, ou de pessoas
90
das minhas relações, não surja esta pergunta.
Teria morrido o pirotécnico Zacarias?” (RUBIÃO,
2010, p.14). b) Ordem lógica, relação de
explicação ou de causa e efeito: “Não fosse o
ceticismo dos homens, recusando-se aceitar-me
vivo ou morto, eu poderia abrigar a ambição de
construir uma nova existência” (RUBIÃO, 2010,
p.19); “Sempre tive confiança na minha
faculdade de convencer os adversários, em meio
às discussões. Não sei se pela força da lógica ou
se por um dom natural, a verdade é que, em
vida, eu vencia qualquer disputa dependente de
argumentação segura e retorquível” (RUBIÃO,
2010, p. 18).
Após um espaçamento gráfico, o narrador
mostra a tematização da tentativa de
sobrevivência dos novos habitantes na cidade
por novas figuras. O tema da segregação, já que
eles vão sendo gradualmente ou abruptamente
segregados, ganha novas roupagens figurativas.
Para a teoria greimasiana, o mesmo esquema
narrativo ou o mesmo tema pode apresentar
diversos percursos figurativos, ou seja, serem
figurativizados de muitas formas.
91
diversos vieram a falecer. Dois
sobreviveram, infelizmente os mais
corrompidos (RUBIÃO, 2010, p. 48).
92
As figuras destacadas acima mostram-nos
um percurso de ações e de estados de ser dos
dragões sobreviventes como forma de
assimilação. Essas ações são as que permitem os
dragões de se inserirem naquela sociedade,
cometendo pequenos delitos. E, portanto, são
elas que os deixam “sobreviver” e dão-lhes uma
espécie de assimilação distorcida. Novamente,
Landowski (2002, p. 19) traduz essa situação
análoga a “ajudar o estrangeiro a livrar-se
daquilo que faz com que ele seja outro (um
dragão) — em suma, de reduzir o Outro ao
mesmo”. Prestígio na localidade, pretensão a
prefeito municipal são figuras que nos auxiliam a
ver uma contraposição à sua natureza de
dragão:
Já no dia seguinte, recebia várias
propostas para trabalhar no circo.
Recusou-as, pois dificilmente algo
substituiria o prestígio que desfrutava na
localidade. Alimentava ainda a pretensão
de se eleger prefeito municipal (Rubião,
2010, p.50).
93
assimilaram (nem nos sentidos mais complexos
aos quais Landowski remete).
Esse movimento entre integração/assimilação
e exclusão/segregação ou a integração apenas por
meio da exclusão, como se fossem uma coisa só e
não opostos, continua a revestir diversas figuras
e a constituir percursos figurativos que
confirmam esses eixos semânticos. A seguir, nas
figuras em destaque, (e fechando as nossas
observações sobre os percursos encontrados) a
dedicação do narrador para integrá-lo, em
conjunção à assimilação, (“uma determinação
social”) e educá-lo:
CONCLUSÃO
A despeito da tematicidade e
figuratividade, os dois primeiros parágrafos, por
exemplo, começam introduzindo a narrativa
quase de forma opinativa: o narrador desvela
sua visão crítica a respeito da chegada dos
dragões e alerta o interlocutor sobre o
94
comportamento dos cidadãos. Isto é, Rubião
alarga os limites entre o temático e o figurativo,
pois o nível temático não aparenta estar
proeminentemente submerso, em estruturas
mais profundas. É claro que devemos considerar
todos os temas subjacentes expostos aqui.
Todavia, tudo isso demonstra a maneira
particular com que Rubião conduz seu discurso
literário.
Há uma maneira particular de tratar o
abstrato e o concreto, o real e o irreal. Os
sentidos do que pareceria absurdo, nesse caso, o
aparecimento de dragões, não espantam os
moradores e, por consequência, os
interlocutores, muito menos o narrador. É ele
quem avalia as atitudes exageradas ou
extremadas dos cidadãos diante das situações.
As velhas atitudes humanas corriqueiras de
preconceito, julgamento do diferente e exclusão,
na obra de Rubião, são consideradas a
“irrealidade”, o absurdo, muitas vezes
severamente criticadas pelo seu discurso
literário, como podemos constatar a partir das
figuras e temas descobertos. Sendo assim, o
absurdo na narrativa, aparentemente, não se
configura pela chegada dos dragões, mas pela
inabilidade dos humanos em lidar com o
diferente.
Também acreditamos que, no sentido
global, o narrador traz ao texto uma inversão de
95
valores e expectativas semânticas. O dragão,
tematizando o imigrante e figurativizado pela
mitologia, irrealidade e estranheza é, na
realidade, o que trará o senso, a crítica, a
reflexão; e os habitantes humanos,
figurativizados em instituições, em conjunção à
organização social e com o pensamento racional
trarão, na realidade, a hostilidade, a
animalidade, a animosidade com o diferente.
Nesse sentido, podemos afirmar que é
válida a suspeita referente à troca dos lugares
semânticos entre real e irreal. Sendo assim, o
binômio real/irreal permite-nos um sentido
crítico neste conto. Os caminhos da linguagem,
do estilo e do discurso do narrador são
estratégias de Rubião para convencer seus
interlocutores de que aquele universo irreal é o
real e vice-versa.
REFERÊNCIAS
BARROS, Diana Luz Pessoa de (1990). Teoria
semiótica do texto. Série Fundamentos 72. São
Paulo: Ed. Ática.
CORTINA, Arnaldo; MARCHEZAN, Renata Coelho
(2004). “Teoria semiótica: a questão do sentido”.
In: Introdução à linguística: fundamentos
epistemológicos 3. São Paulo: Cortez editora.
p.393-438.
96
FIORIN, José Luiz (2003). “O projeto
hjelmsleviano e a semiótica francesa”. In:
Galáxia. Revista do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação e Semiótica, 5, 19-52. In:
http://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/arti
cle/view/1314/Acesso em 22.dez.2017.
_________. (2011) Elementos de análise do
discurso. 15ed. – São Paulo: Contexto.
GREIMAS, Algirdas Julien e COURTES, Joseph
(1979). Dicionário de semiótica. São Paulo:
Cultrix.
LANDOWSKI, Eric (2002). Presenças do outro.
São Paulo: Editora Perspectiva.
RUBIÃO, Murilo (2010). Obra completa. São
Paulo: Companhia das Letras.
SAUSSURE, Ferdinand de (2012). Curso de
linguística geral. 28ed.– São Paulo: Cultrix.
SAVIOLI, Francisco Platão; FIORIN, José Luiz
(2006). Lições de texto: leitura e redação. 5ed.–
São Paulo: Ática.
SCHWARTZ, Jorge (org.) (1982). Murilo Rubião:
seleção de textos, notas, estudos biográfico,
histórico e crítico e exercícios por Jorge
Schwartz. São Paulo: Abril Educação.
97
BIODATA
98
ESTUDOS SOBRE OS MODOS DE
REFERENCIALIDADE DAS CAPAS DOS
LIVRETOS DE LITERATURA DE
CORDEL1
Débora Simões Araújo
Claudio Manoel de Carvalho Correia
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo
desenvolver uma análise semiótica do design de
capas na literatura nordestina de cordel, a partir
da materialidade física que as diferencia dos
livros comuns – por seu tamanho, papel e
técnicas de xilogravura, possibilitando análises
por meio das teorias da semiótica peirceana.
O processo de análise das obras ocorreu a
partir da coleta do corpus. Este, por sua vez,
estará dividido em quatro categorias:
Biográficas, Peleja/Desafio, Histórias Comuns ou
Fantásticas e Cangaço. Como substrato teórico-
metodológico, estão sendo usadas as teorias de
99
significação, representação e interpretação
desenvolvidas por Santaella (1983, 2002), as
concepções da Semiótica Aplicada ao Design
apresentadas por Niemeyer (2010) e as teorias e
conceitos sobre os folhetos de cordel de Roiphe
(2012).
As capas são signos de profunda
importância visual e, como tais, representam as
histórias narradas nos folhetos. Roiphe (2012, p.
24) afirma que
100
INTRODUÇÃO À SEMIÓTICA – A CIÊNCIA
GERAL DOS SIGNOS
O nome Semiótica vem da raiz grega
semeion, que significa ‘signo’. Signos nada mais
são que representações e são o objeto de estudo
da semiótica como ciência. A semiótica é a
ciência de toda e qualquer linguagem, definição
estabelecida por Santaella (1983, p.10) em seu
livro ‘O que é Semiótica?’. Vale ressaltar que
todas as linguagens, por sua vez, são
constituídas por e em signos, motivo pelo qual
são objetos de estudo desta ciência.
A Semiótica não é uma ciência com
limitações. Isto quer dizer que ela está em
constante crescimento, uma vez que as
linguagens não param de surgir e de se
transformar. O campo de atuação dessa ciência é
muito amplo, já que estamos circundados por
linguagens. Em qualquer área do conhecimento
há signos, e é a Semiótica, como ciência, que tem
como objetivo estudá-los.
Segundo Niemeyer (2010, p. 35), ‘o signo é
uma ocorrência fenomênica de qualquer
natureza, que de algum modo se conecta com
uma experiência anterior’. Essa afirmação nos
traz um novo conceito: a ocorrência do
fenômeno, do Phaneron. Santaella (1983, p. 32)
nos explica que
101
entendendo-se por fenômeno qualquer
coisa que esteja de algum modo e em
qualquer sentido presente à mente, isto é,
a qualquer coisa que apareça seja ela
externa (uma batida na porta, um raio de
luz, um cheiro de jasmim), seja ela
interna ou visceral (uma dor no
estômago, uma lembrança ou
reminiscência, uma expectativa ou
desejo), que pertença a um sonho, ou
uma ideia geral ou abstrata da ciência.
102
A partir do entendimento de que as capas
dos folhetos na literatura de cordel são signos
passíveis de serem analisados semioticamente,
por serem representações, recortes sígnicos das
narrativas impressas, passemos agora a estudar
o que é a literatura de folheto de cordel.
103
compõem uma linguagem, elas podem ser
analisadas pela perspectiva das Teorias da
Significação, da Representação e da
Interpretação desenvolvidas por Santaella
(2002).
A IMPORTÂNCIA DO PROCESSO DE
XILOGRAVURA NAS CAPAS DOS FOLHETOS
DE CORDEL
A xilogravura é uma técnica usada na
confecção das capas dos folhetos de cordel. Essa
técnica chegou ao Brasil com a vinda da corte
portuguesa, como nos mostra Borges (2008,
p.14)
No Brasil, com a chegada da corte ao Rio
de Janeiro em 1808, foram criadas
algumas instituições que, direta ou
indiretamente, contribuíram para a
consolidação do lugar da xilogravura em
nosso meio. Entre estas destacam-se a
Impressão Régia, o Arquivo Militar, a
Fábrica de Cartas de Jogar e Estamparia
de Chitas.
104
sempre colocado na base da composição em
uma área denominada ‘barra’ que, além de
conter o nome do autor, é utilizada como base
da cena representada’. Por isso, entendemos que
o título representa a história e,
consequentemente, os desenhos e imagens
presentes na capa também, já que a gravura na
xilogravura é feita através do título.
Acredita-se que a xilogravura acompanha
os folhetos de cordel desde sua origem; porém,
com a globalização e com as novas tecnologias
digitais, mais especificamente com a
popularização das fotografias, a xilogravura vem
sofrendo uma redução de espaço nas capas dos
folhetos de cordel.
Com base no conhecimento sobre a
confecção das capas dos cordéis, partimos para
a metodologia usada na produção deste
trabalho. A metodologia que usamos aqui se
baseou na coleta de capas2 de folhetos de cordel,
105
pertencentes às categorias Biográficas,
Peleja/Desafio, Histórias Comuns ou Fantásticas e
Cangaço. A partir da coleta do corpus, iniciou-se todo
o processo de análise à luz das teorias da
significação, representação e interpretação de
Santaella (2002).
ANÁLISES SEMIÓTICAS DAS CAPAS DOS
FOLHETOS DE CORDEL
Quando se analisa um signo
semioticamente, devemos primeiramente
observar o seu fundamento, caracterizado como
as propriedades físicas do signo. Estas se
subdividem semioticamente em qualidade,
existência e lei. O fundamento é o primeiro nível
dos signos e pode ter três tipos de relação com o
objeto. De acordo com essas propriedades, essas
relações são icônicas, indiciais e simbólicas. É a
partir desse nível de relação, entre o
fundamento que habilita o signo a funcionar
semioticamente e o objeto representado, que
106
emergem as classificações em índices, ícones e
símbolos, dependendo, sempre, da relação do
fundamento com o objeto. É através da teoria da
classificação do signo (ícone, índice e símbolo),
que podemos dizer se um objeto é
predominantemente icônico e/ou indicial e/ou
simbólico.
A partir disso, iremos apresentar as
análises sobre as quatro categorias de folhetos
de cordel, objeto de estudo deste trabalho. A
primeira capa a ser analisada, no gênero
biográfico, é a capa do folheto intitulado João
Firmino Cabral Um Poeta de Valor, de autoria da
cordelista sergipana Salete Nascimento.
107
Figura 1 – Folheto de Cordel Biográfico
Na análise das formas de significação,
especificamente na análise das qualidades
observadas na capa do folheto de cordel,
podemos encontrar as cores amarelo, azul,
branco, laranja, preto, vermelho e verde. Na
análise da existência, esta capa, como
fundamento, apresenta as dimensões de 13,9 cm
de comprimento e 10,2 cm de largura. Porém, na
análise da lei, vale ressaltar que esta capa, como
fundamento do signo, está habilitada a funcionar
semioticamente segundo as leis das capas
específicas para os folhetos de cordel.
108
O objeto dinâmico que está sendo
representando na capa, entendida como signo, é
a biografia do poeta João Firmino Cabral. Ao
analisarmos os modos de representação desse
signo, no modo icônico encontramos uma
exposição de folhetos de cordel localizada ao
fundo, atrás da fotografia do poeta, sugerindo
que se trata de um escritor cordelista. Os
folhetos de cordel presentes nas mãos do
escritor sugerem que foram escritos por ele.
Sua expressão facial sugere seriedade,
indicando, dessa forma, a ideia de um poeta
sério e comprometido com as suas produções
artísticas. Ao analisar o modo indicial,
encontramos a fotografia do cordelista João
Firmino Cabral na capa do folheto, indicando o
personagem central da biografia. Já na análise
do modo simbólico, a cor branca na capa do
folheto reafirma que se trata de obra
pertencente à categoria da literatura de cordel,
uma vez que era e ainda é muito comum a esse
tipo de literatura imprimir suas capas nas cores
amarelo, azul, branco, rosa e verde.
O título demonstra que a obra é de cunho
biográfico, uma vez que nesses folhetos de
cordel é comum colocar o nome do personagem
e algumas palavras específicas como vida, morte
ou mesmo frases que façam referência ao
personagem. No caso da capa sob análise,
podemos encontrar a frase ‘um poeta de valor’.
109
As informações sobre a autoria do folheto,
contidas na parte inferior da capa, reafirmam
que se trata de uma capa de folheto de cordel,
pois neste tipo de literatura é usada a técnica da
xilogravura, na qual, desde muito tempo, se
convencionou colocar as informações de autoria
na parte inferior. Essas informações na parte
inferior são leis de convenção que fazem parte
da literatura de cordel.
Na análise do potencial de geração de
interpretações, podemos concluir que a capa do
folheto de cordel “João Firmino Cabral Um Poeta
de Valor” apresenta o potencial singular-
indicativo e representativo-simbólico de geração
de interpretações.
A segunda capa que foi analisada pertence
ao gênero “Peleja ou Desafio” e é intitulada O
Duelo de Zé Patacão e Nicolau da Corriola.
110
Figura 2 – Folheto de Cordel de Peleja ou Desafio
111
as leis das capas específicas para os folhetos de
cordel.
O objeto dinâmico que está sendo
representado na capa, entendida como signo, é a
história de O Duelo de Zé Patacão e Nicolau da
Corriola, que pertence ao gênero Peleja ou
Desafio, conforme apresentado anteriormente.
Ao analisarmos os modos de
representação deste signo, no modo icônico
percebemos que o desenho ao lado esquerdo da
capa do cordel sugere que o homem é Zé
Patacão, pois a forma como ele está vestido
sugere que possui melhores condições do que o
outro homem ao seu lado direito, como nos
narra a história. Já o desenho do lado direito da
capa do cordel sugere que o homem é Nicolau da
Corriola, pois está vestido de outra maneira, sem
sapatos e com calças remendadas. O fato de
ambos os personagens segurarem violas nos
sugere que o confronto, a peleja, irá acontecer
através do canto. A ordem de organização das
figuras na capa sugere que o primeiro homem
no desafio será Zé Patacão e que o segundo será
Nicolau da Corriola. Ao analisarmos o modo
indicial, encontramos o desenho presente na
capa, indicando os personagens Zé Patacão e
Nicolau da Corriola.
Já na análise do modo simbólico, o termo
Corriola representa, na língua portuguesa, um
grupo de pessoas desonestas. Neste caso,
112
Nicolau da Corriola teria esse nome por
pertencer a esse grupo. A cor branca na capa do
folheto de cordel reafirma se tratar de uma obra
do gênero literatura de cordel, já que ainda é
muito comum nesse tipo de literatura imprimir
suas capas nas cores amarela, azul, branca, rosa
e verde, sendo a branca a mais utilizada. O título
descreve que o folheto de cordel é de
Peleja/Desafio, uma vez que nesses folhetos é
comum colocar no título palavras como peleja,
duelo, briga, conflito etc. O título fala de dois
personagens que se enfrentam em um duelo,
sendo assim pertencentes ao gênero Peleja,
gênero no qual ocorre a história do embate
entre os dois personagens.
As informações sobre a autoria do folheto,
contidas na parte inferior da capa, são apenas
uma convenção estabelecida nas capas do
cordel, pois neste tipo de literatura é usada a
técnica da xilogravura, na qual se convencionou
colocar as informações de autoria na parte
inferior da capa, como foi observado na primeira
capa analisada, do gênero biográfico.
Na análise do potencial de geração de
interpretações, podemos concluir que a capa do
folheto de cordel ‘O Duelo de Zé Patacão e
Nicolau da Corriola’ apresenta potencial
sugestivo e singular-indicativo de geração de
interpretações.
113
A terceira capa usada como exemplo para a
análise será “Severiano o Jovem que Fez Sexo
com uma Cobra”. Esta capa de folheto de cordel
pertence ao gênero histórias comuns ou
fantásticas.
114
Na análise das formas de significação,
especificamente na análise das qualidades que
podem ser observadas na capa do folheto de
cordel, podemos encontrar as cores preto e rosa.
Na análise da existência, esta capa, como
fundamento, apresenta as dimensões de 14,7 cm
de comprimento e 10,6 cm de largura.
Entretanto, na análise da lei, vale ressaltar que
esta capa, como fundamento do signo, está
habilitada a funcionar semioticamente segundo
as leis das capas dos folhetos de cordel, pois
segue padrões específicos que, claramente, nos
permite classificá-la como um folheto de cordel
e observar suas diferenças quando comparada
com outras capas de livros. O objeto dinâmico
que está sendo representado pela capa é a
história do jovem Severiano, ou seja, o que fez
sexo com uma cobra.
Ao analisarmos os modos de representação
deste signo, no modo icônico encontramos a
expressão facial de Severiano sugerindo felicidade. O
olho da cobra com um delineador, um tipo específico
de maquiagem, sugere feminilidade e
sensualidade. Ao analisar o modo indicial,
encontramos o desenho de um homem e uma
cobra, indicando os personagens Severiano e a
cobra. Já na análise do modo simbólico, a cor
rosa na capa do folheto de cordel reafirma que o
livreto se trata de uma obra pertencente à
literatura de cordel, já que era e ainda é muito
115
comum nesse tipo de literatura imprimir suas
capas nas cores amarelo, azul, branco, rosa e
verde, como já foi observado nas análises
anteriores. O título nos mostra que o folheto de
cordel pertence ao gênero História Fantástica, já
que esses folhetos trazem histórias que não são
comuns e com personagens nada comuns
também, como animais que falam etc. Neste
caso, o título nos descreve uma relação bastante
estranha entre um ser humano e um animal que
normalmente nos causa medo, pois a cobra é
popularmente considerada como um animal
perigoso e, em algumas mitologias, é
considerada um símbolo do “mal”. Portanto,
trata-se de um folheto que pertence ao gênero
Histórias Fantásticas.
As informações sobre a autoria do folheto,
contidas na parte inferior da capa, são
convenções das capas de folhetos de cordel. Esse
tipo de literatura, como já foi explicado, usa a
técnica da xilogravura, técnica na qual se
convencionou colocar as informações de autoria
na parte inferior da capa. Na análise do potencial
de geração de interpretações, podemos concluir
que a capa do folheto de cordel “Severiano o
jovem que fez sexo com uma cobra” apresenta o
potencial sugestivo e singular-indicativo de
geração de interpretações.
A quarta capa a ser analisada pertence ao
gênero Cangaço, outro gênero bastante
116
tradicional entre as histórias narradas na
literatura de cordel, principalmente devido a sua
origem nordestina. O último folheto analisado é
intitulado “A Chegada de Lampião no Céu”.
117
azul e preto. Em nível da existência, esta capa,
como fundamento, apresenta as dimensões de
16,8 cm de comprimento e 10,5 cm de largura.
Porém, na análise da Lei, vale ressaltar que esta
capa, como fundamento do signo, está habilitada
a funcionar semioticamente segundo as leis
específicas para os folhetos de cordel, pois segue
os mesmos padrões das capas analisadas
anteriormente. O objeto do signo, ou seja, aquilo
que está sendo representado pela capa, é a
história da chegada de Lampião ao céu.
Ao analisarmos os modos de representação
deste signo, no modo icônico observamos o homem
desenhado do lado esquerdo da capa do folheto de
cordel sugerindo ser São Pedro, pela forma como
está vestido, principalmente pelo uso da chave
na cintura. Já o homem desenhado do lado
direito da capa sugere ser Lampião. A arma
desenhada nas mãos de Lampião sugere sua
autoridade e a vontade, por sua parte, de entrar
no céu. O arco com uns traços sugere nuvens e
uma entrada para o céu, local onde São Pedro
está posicionado. Os anjos desenhados na parte
superior ajudam a sugerir que o local desenhado
seja o céu. Ao analisarmos o modo indicial,
encontramos o desenho de dois homens em um
local, indicando que Lampião chega ao Céu e é
“recebido” por São Pedro.
Já na análise do modo simbólico, a cor azul
na capa reafirma que o livreto se trata de uma
118
obra da literatura de cordel, como já observado
em outras análises de capas presentes neste
texto. O próprio título descreve que o folheto de
cordel pertence ao gênero Cangaço, tendo em
vista que Lampião é considerado o rei do
cangaço e, também, personagem principal na
história do cangaço na região nordeste do Brasil.
As informações sobre a autoria do folheto
contidas na parte inferior da capa são
convenções das capas de folhetos de cordel. Esse
tipo de literatura, como já foi explicado
anteriormente na análise de outras capas, usa a
técnica da xilogravura e as informações de
autoria na parte inferior da capa.
Na análise do potencial de geração de
interpretações, podemos concluir que a capa do
folheto de cordel “A Chegada de Lampião no
Céu” apresenta o potencial sugestivo e singular e
singular-indicativo de representação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estudos de Semiótica, além de fornecerem
conhecimentos teórico-metodológicos sobre a ciência
geral dos signos e sobre as formas como ela pode ser
aplicada na análise das linguagens, possibilitou,
também, um olhar diferenciado para os signos em
uso na vida real. O aprendizado da Semiótica
proporciona uma nova sensibilidade ao olhar,
uma nova forma de enxergar os objetos da
cultura, desenvolvendo um potencial crítico de
119
interpretação no estudo dos signos e das
linguagens que corporificam esses signos em
diversos e diferentes meios que carregam as
marcas da cultura e da sociedade.
Nesta pesquisa, o processo de análise dos
folhetos de cordel foi da máxima importância,
pois a aplicação das teorias da significação,
representação (objetivação) e interpretação de
Santaella (2002) permitiram a observação das
singularidades e especificidades do Cordel pelo
ponto de vista de suas características visuais,
dos signos não-verbais produzidos por técnicas
específicas que determinam as singularidades
deste gênero de literatura tradicional do
Nordeste do Brasil.
Além dos conhecimentos obtidos através
das análises, a pesquisa possibilitou o contato
direto e íntimo com a literatura de cordel,
gênero tão comum na cidade nordestina de
Aracaju, capital de Sergipe, local onde foi
realizada a coleta dos dados e a pesquisa. A
aplicação dos princípios da semiótica peirceana
possibilitou uma análise dos signos para além
dos signos linguísticos, ponto de partida e
escolha principal das análises literárias,
permitindo uma verdadeira imersão na riqueza
de seu universo visual, carregando as marcas da
cultura nordestina, principalmente pelo uso da
xilogravura como técnica principal de
desenvolvimento das capas e contribuiu, dessa
120
forma, para o estudo do Cordel como signo e
representação da cultura nordestina, através da
riqueza simbólica de suas capas.
REFERÊNCIAS3
BORGES, José Francisco (2008). A arte de J.
Borges do cordel à xilogravura. São Paulo:
Editora SESC.
CATAFAL, Jord; OLIVA, Clara (2007). A gravura.
Lisboa: Editora Estampa.
CAVALCANTE, Rodolfo Coelho. A chegada de
Lampeão no Céu.
FARJADO, Elias; SUSSEKIND, Felipe; VALE,
Marcio do (1999). Oficinas: Gravura. Rio de
Janeiro: Editora: SENAC Nacional.
______. João Firmino Cabral: Um poeta de valor.
NASCIMENTO, Salete. A peleja de Zeca Aleijado e
Duca do Urubu.
121
______. Severiano O jovem que fez sexo com uma
cobra. Aracaju: Turbocaju.
NIEMEYER, Lucy (2010). Elementos de
semiótica aplicados ao design. Rio de Janeiro:
2ab.
ROIPHE, Alberto (2012). Forrobodó na
linguagem do sertão: leitura verbo visual do
folheto de cordel. Rio de Janeiro: Editora
Lamparina.
SANTAELLA, Lucia (1983). O que é Semiótica.
São Paulo: Editora Brasiliense.
______. (2002). Semiótica aplicada. São Paulo:
Pioneira Thomson Learning.
BIODATA
122
Semiótica, Leitura e Produção de Texto da UERJ.
http://lattes.cnpq.br/9579578356112282
123
SEMIÓTICA E LITERATURA:
APLICAÇÃO DA TEORIA DA ABDUÇÃO
NA LITERATURA DE CORDEL1
Denisson Silva Aragão
Claudio Manoel de Carvalho Correia
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa teve como objetivo, a partir
da teoria da abdução desenvolvida pelo filósofo-
lógico-matemático norte-americano Charles
Sanders Peirce, entender as singularidades e as
especificidades das estratégias semióticas dos
personagens que compõem as narrativas da
literatura de cordel, visandocompreender como
os personagens se desenvolvem ao longo das
histórias, interpretando signos que os fazem
gerar diferentes inferências e formas de
abdução ao longo das narrativas. Procuramos
compreender as diferentes formas de geração
das abduções nos personagens dos diferentes
gêneros escolhidos para análise e observar
124
como eles desenvolvem inferências que
permitem a interpretação de fatos,
acontecimentos e experiências nas diferentes
narrativas da literatura de cordel.
O corpus2 escolhido para análise foram 10
cordéis da região nordeste, divididos em dois
gêneros: cinco do gênero biográfico e cinco do
gênero cangaço. E as leituras que serviram de
substrato teórico metodológico para a pesquisa
foram as teorias de Gênova (1997), Pignatari
(1987), Roiphe (2013), Santaella (1983, 1992,
125
2004) e, principalmente, de Sebeok e Eco
(2004), que apresentam a teoria peirceana da
abdução e suas diferentes classificações.
INTRODUÇÃO À TEORIA DA ABDUÇÃO
A teoria da abdução foi criada pelo norte-
americano Charles Sanders Peirce a partir da
reflexão de como as pessoas fazem suposições
corretas de modo tão frequente. Peirce observou
que o ser humano tinha uma predisposição para
fazer suposições, realizar inferências sobre as
coisas. Ele denominou essa predisposição de
abdução e a definiu como um meio de
comunicação entre o homem e seu Criador, um
‘privilégio divino’ que deve ser cultivado (ECO;
SEBEOK, 2004, p. 21).
No entanto, Peirce acreditava que era
impossível que o ser humano supusesse
qualquer coisa sobre o fenômeno do nada, pois
“de acordo coma doutrina das possibilidades,
seria praticamente impossível para qualquer um
supor a causa de qualquer fenômeno por puro
acaso” (Peirce, apud ECO e SEBEOK, 2004, p.
21). Desta forma, promulgou que a abdução
seria algo inato à natureza humana, que, diante
de tantas características pertencentes aos seres
humanos, uma delas seria a capacidade de
abduzir.
Comparando nossa capacidade de
abdução com ‘os poderes musicais e
126
aeronáuticos de um pássaro, isto é,
aquela está para nós como aqueles estão
para este: o mais elevado de nossos
poderes meramente instintivos (Peirce,
apud ECO e SEBEOK, 2004, p.20).
127
OS DIFERENTES TIPOS DE ABDUÇÃO
Existem três tipos de abdução: hipótese ou
abdução hipercodificada, abdução
hipocodificada e abdução criativa,
Na abdução hipercodificada, a lei é dada
quase ou automaticamente. Essa lei é chamada
de lei codificada. Neste tipo de abdução, a
relação feita é causal, ou seja, o fenômeno se
apresenta e a inferência sobre esse fenômeno é
geral, por exemplo, andando pela areia vejo o
rastro de um animal (fenômeno), faço a
inferência: é um rastro de cão, mas não
especifico qual cão seria.
Na abdução hipocodificada, a regra é dada
a partir do nosso conhecimento do mundo atual.
A inferência é realizada especificando não
somente quem seria o causador do fenômeno,
mas quem é esse causador, independente se a
inferência está certa ou errada. Assim, depois da
decodificação do código (abdução
hipercodificada), nós afirmamos, de forma mais
pontual, alguma coisa sobre o fenômeno
observado sem se preocupar se a afirmação
estará correta ou errada.
Já na abdução criativa, a lei é inventada, é a
suposição de como ocorreu o fenômeno a partir
do próprio fenômeno. A criatividade ganha asas
e o observador infere como ocorreu o fenômeno,
independentemente de ser verdadeiro ou não.
128
E, por fim, existe outro tipo de abdução
que é a meta-abdução, nela consiste a decisão se
o universo possível inferido pelas primeiras
abduções (hipercodificada, hipocodificada e
criativa) é o mesmo que o universo de nossa
experiência. É como se nessa abdução a
comprovação racional, que se alicerça em
alguma lei natural, fosse fornecida pelos fatos
observados, embora aqui não se exclua o
falibilismo, uma vez que essas leis possam
mudar. A verificação da hipótese criada deve ser
feita na análise dos fatos de forma lógica e
verificando todas as possibilidades possíveis.
A ABDUÇÃO NO GÊNERO DOS CORDÉIS
BIOGRÁFICOS
Cordéis biográficos são os que relatam a
vida das personagens consideradas ilustres por
suas vidas ou pelo seu legado cultural deixado à
história, sociedade ou cultura.
Os cordéis dessa categoria eleitos para
aplicação da teoria da abdução foram “João
Firmino Cabral: Um Poeta De Valor”,“Cem Anos
De Mazzaropi”, “Antônio Conselheiro: O
Revolucionário De Canudos”, “Jorge Amado –
Homenagem Pelo Seu Centenário” e “Vida E
Morte Do Cantor Michael Jackson”.
“João Firmino Cabral: Um Poeta De Valor”
e “Cem Anos De Mazzaropi” são da autoria da
cordelista sergipana Salete Nascimento. O
129
primeiro é um cordel composto por dezenove
estrofes que narram a vida de João Firmino
Cabral, cordelista afamado dentro e fora do
estado de Sergipe, desde seu nascimento em
1940 até a sua morte:
130
Nasceu o primeiro Estúdio
Aumentou muito a renda
Oficina de gravação
Mazzaropi na direção
Acabou toda contenda.
(NASCIMENTO, s/n, p.4)
131
O terceiro cordel foi dos cordelistas João
Firmino Cabral e Ronaldo Dória Dantas,
intitulado “Antônio Conselheiro: O
Revolucionário De Canudos”. A narrativa relata a
vida e os acontecimentos ocorridos na vida de
Antônio Conselheiro, desde a sua vida no Ceará
até a formação e destruição do Arraiá em
Canudos/Bahia.
Vou ver mais um folheto
Com base e inspiração
Sobre Antônio Conselheiro
Um beato do sertão
Que tinha um sonho na mente
Brotando no coração (CABRAL;
DANTAS, s/n, p.1)
132
desse acontecimento que os moradores de
Canudos tomam consciência da sua derrota:
133
Pois o canhão “matadeira”
Como era conhecido
Na hora que disparava
Só ouvia o alarido
Conselheiro conheceu
Que seria destruído. (CABRAL;
DANTAS, s/n, p.15)
134
Já o segundo relata os acontecimentos
mais importantes da vida do “Rei do Pop”,
Michael Jackson, sua infância dolorosa sobre a
égide de seu pai, o grande sucesso e a triste
morte:
Aqui vai ficar provado
De um modo bem verdadeiro
Que nesta nem tudo
Segue um bonito roteiro
E a nossa felicidade
Não se compra com dinheiro.
135
A ABDUÇÃO NO GÊNERO DOS CORDÉIS DE
CANGAÇO
Os cordéis da categoria cangaço são os que
possuem histórias ou personagens ligados a esse
movimento nordestino. Dentre os vários,
selecionamos cinco para análise: “A Chegada De
Lampião No Inferno”, “A Chegada De Lampião
No Céu”, “O Curioso Caso Do Cangaceiro Mais
Fedorento Do Sertão”, “Se Lampião Fosse Viúvo”
e “O Encontro De Bin Laden Com Lampião No
Portão Do Inferno”.
“A Chegada De Lampião No Inferno”, do
pernambucano José Pacheco, é composto por
trinta e uma estrofes:
136
Lampeão foi ao inferno
Ao depois no céu chegou
São Pedro estava na porta
Lampeão então falou:
Meu velho não diga medo
Me diga que é São Pedro
E logo o rifle puxou.
(CAVALCANTE, s/n, p.1)
137
Quando o barulho cessou
Disse ele: - Posso sair.
Os macacos foram embora,
Agora posso partir.
Este é o momento certo
Para que eu possa fugir.
(NEVES, 2009, p.2)
Severino, já deitado
Ouviu no quarto vizinho
Alguém que estava chorando
138
E soluçando baixinho.
Foi lá para ver quem era
Descobriu que era um velhinho.
(NEVES, 2009, p. 9)
A terceira abdução é realizada por Izabel,
noiva de Severino. A abdução é a hipocodificada,
pois Izabel infere a partir do olhar de Severino
que ele é uma pessoa bondosa e amorosa, assim
não só decodificando o fenômeno, olhar, como
especificando o tipo de pessoa que ele é:
139
No bolso do paletó
E saiu de mundo afora
De novo ficando só
Trilhando por um caminho
No rumo de Mossoró. (NEVES,
2009, p.11)
140
seis estrofes e relata a história de uma donzela
suja, fedida, banguela que é insultada por um
rapaz e como forma de protesto deseja que
Lampião esteja vivo para punir o rapaz por estar
zombando dela:
No dia de não sei quando
Avistei uma donzela
Suja, fedida, banguela
Um rapaz de longe olhando
Depois se aproximando
Ele gritou com bravura:
“Mais louca que a loucura!
Espanto de assombração
Chispa, daqui, pés do Cão!
Tu és pior que a feiura!”
141
Quando o século mudou
Lampião ficou sabendo
Aumentou sua esperança
Sair do castigo horrendo
Satanás foi avisando
Seu rival está chegando
Seu cansaço eu entendo.
(NASCIMENTO, s/n, p.3)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após realizar toda pesquisa teórica, coletar
os dados necessários e analisá-los, com o
objetivo de entender as singularidades e as
especificidades das abduções realizadas pelos
personagens que compõem a natureza da
literatura de cordel no processo de
interpretação e de inferência sobre fatos,
acontecimentos e experiências, chegamos aos
seguintes resultados que podem ser observados
na tabela a seguir.
142
Resultados Alcançados
Classificação dos Número de Tipos de
Cordéis Abduções Abduções
(2) Duas (1) Uma abdução
Biográfico abduções criativa e (1) uma
meta-abdução.
(2) Duas
abduções
Cangaço (4) Quatro hipocodificada,
abduções (1) uma
hipercodificada e
(1) outra que não
é possível
classificar devido
à ausência de
informações.
Total geral de (6) Seis abduções
abduções.
Tabela 1 – Tabela geral das classificações dos
diferentes tipos de abduções.
143
REFERÊNCIAS
CABRAL, João Firmino; DANTAS, Ronaldo Dória
(2010). Antônio Conselheiro: O revolucionário
de Canudos. Fortaleza: Tupynanquim.
CAVALCANTE, Rodolfo Coelho. A chegada de
Lampião no Céu.
DANTAS, Ronaldo Dória. Vida e Morte do Cantor
Michael Jackson.
DÓRIA, Ronaldo (2012). Jorge Amado.
Homenagem pelo seu centenário. Aracaju.
ECO, Umberto; SEBEOK, Thomas A (2004). O
signo de três. São Paulo: Perspectiva.
NASCIMENTO, Izabel (2007). Se Lampião Fosse
Vivo. Aracaju: Turbocaju.
NASCIMENTO, Salete. O Encontro de Bin Laden
Com Lampião no Portão do Inferno.
______. João Firmino Cabral Um Poeta de Valor.
______. Cem Anos de Mazzaropi.
NEVES, Paiva. (2009). O curioso caso do
cangaceiro mais fedorento do sertão. Fortaleza:
Tupynanquim.
PACHECO, José. A Chegada de Lampião No
Inferno.
144
BIODATA
145
ESTUDOS SOBRE OS PROCESSOS DE
INTERPRETAÇÃO E DE SEMIOSE NO
DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM E
DA COMPETÊNCIA SEMIÓTICA DA
CRIANÇA SURDA NA FAIXA ETÁRIA
DOS 10 E 11 ANOS DE IDADE1
César Vinícius Santos Melo
Claudio Manoel de Carvalho Correia
INTRODUÇÃO
Este trabalho teve como objetivo a
observação do desenvolvimento simbólico e a
classificação dos tipos de processos semióticos e
de linguagem utilizados por crianças surdas na
faixa etária dos 10 e 11 anos de idade na
construção das suas interpretações. Buscamos
um parâmetro de como as crianças surdas
nessas idades geram significados e se
146
comunicam na etapa cognitiva na qual se
encontram.
Serviram como substrato teórico-
metodológico algumas teorias da significação e
da cognição apresentadas por Peirce, Vygotsky,
a teoria da percepção de Jorge (2011), além da
teoria das semioses criativas e orientadas de
Nöth (1995) e a teoria do desenvolvimento da
competência semiótica de Correia (2012). O
resultado desta pesquisa se deu por meio da
observação das semioses, ou seja, das
interpretações das sequências de quadros da
bateria de testes que foi apresentada às crianças
surdas.
SEMIOSE E COMPETÊNCIA SEMIÓTICA
A semiose enquanto processo e a
competência semiótica da criança surda são os
objetos de investigação desta pesquisa, na
medida em que é o termo que define a “ação”, a
atividade dos signos. Na geração dos
significados na mente do intérprete, a semiose é
o processo transformador dos fenômenos
existentes no universo real da experiência que
através da relação dialética entre mente
interpretadora e signo, transforma a experiência
em signos, em representações.
O avanço analítico do uso do conceito
peirceano de signo e de semiose, neste trabalho,
está na ênfase dada ao sujeito cognitivo no
147
processo de geração das semioses, que
passaram a ser analisadas e observadas a partir
das situações reais de significação em diversas
faixas etárias. O desenvolvimento cognitivo,
espelhado na língua de sinais, e o fenômeno da
interpretação, foram estudados através da
inclusão do sujeito no processo de análise. A
interação entre os níveis cognitivo e linguístico e
o seu desenvolvimento foi observado no estudo
das semioses, sobretudo, através da observação
das semioses geradas em duas faixas etárias
específicas.
Segundo Correia (2012, p. 92),
148
LIBRAS e as que ainda estão em estado de
aprendizagem desse sistema espaço-visual de
linguagem.
Segundo Santaella (1983, p. 52),
149
2012, p. 110-111). Correia (2013, p. 65) aponta
para a possibilidade de um diálogo entre os
pensamentos de Peirce e do psicólogo russo Lev
S. Vygotsky, pois acredita que há vários pontos
convergentes entre seus estudos,
principalmente no que concerne a sua teoria da
mediação, da internalização e sua visão
dinâmica e evolutiva da geração dos conceitos.
A phaneroscopia e a teoria do
interpretante são consideradas em destaque
daquilo que, para Correia (2012), permite o
diálogo da Semiótica com as Ciências Cognitivas.
Vygotsky possui teorias que podem ser
estudadas em diálogo com o pensamento de
Peirce, quando se trata de estudos sobre a
cognição, em especial sobre a relação mediada
por sistemas sígnicos. Vygotsky afirma que toda
relação do homem com o mundo é mediada por
signos.
Correia (2013, p. 69) acredita no
desenvolvimento através de etapas que refletem
o desenvolvimento da mente, da língua e da
inteligência. Sugere, ainda, que essas etapas
sejam entendidas como categorizações da
experiência, desde um nível primordial, até um
nível mais elevado de categorização.
Segundo Pinker (2002, p. 289), “a
percepção e a categorização nos fornecem
conceitos que nos mantêm em contato com o
mundo. A língua estende essa linha de
150
comunicação conectando os conceitos a
palavras”. Esta conexão reflete as relações entre
linguagem e cognição e pode ser observada no
desenvolvimento da competência semiótica do
indivíduo.
A percepção foi muito utilizada nesta
pesquisa. Tanto a percepção dos pesquisadores,
atentos às formas como os informantes
interpretavam as sequências de quadros através
de um sistema de linguagem espaço-visual,
como a própria percepção das crianças surdas,
que, através da percepção visual, interpretavam
em LIBRAS as imagens da bateria de testes de
acordo com suas capacidades linguísticas,
cognitivas e de comunicação.
Segundo Jorge (2011, p. 90),
os sentidos são a porta de entrada da
percepção”, sendo, as percepções, “os resultados
dos processos psicológicos da significação e a
memória das experiências vividas, que
organizam e integram as sensações.
Todo conhecimento que irá gerar algum
tipo de raciocínio e pensamento entra através
das portas da percepção e está diretamente
ligado à comunicação. Quando percebemos,
raciocinamos, pensamos e, a assim, geramos a
linguagem, estabelecemos comunicação. Todos
esses aspectos ressaltam a importância da
percepção para estudos de semiótica e,
sobretudo, para o estudo da competência
151
semiótica em uma perspectiva orientada no
campo da semiótica cognitiva.
Ainda de acordo com Jorge (2011, p. 98), a
percepção é base para a origem do
conhecimento. Pela resposta da Semiótica[...],
não há separação daqueles processos mentais, e
sensórios, de suas linguagens. A teoria dos
signos explora a ligação entre linguagem e
realidade junto à base perceptiva de todo
conhecimento. Se todo conhecimento entra pela
porta da percepção, querendo ou não, os
fenômenos são constantemente apreendidos.
ANÁLISE DA COMPETÊNCIA SEMIÓTICA EM
CRIANÇAS SURDAS: SEMIÓTICA COGNITIVA
APLICADA AO ESTUDO DAS LÍNGUAS DE
SINAIS E INTERPRETAÇÃO
Seguimos a perspectiva de algumas teorias
da significação e da cognição apresentadas por
Peirce e Vygotsky, a teoria da percepção de
Jorge (2011), e a teoria das semioses criativas e
orientadas criadas por Nöth (1995) e aplicadas
por Correia (2012). Obtivemos resultados a
partir da observação da interpretação das duas
sequências de quadros das baterias de testes2
152
que foram apresentadas às crianças surdas,
pertencentes às classes sociais média e baixa,
com 10 e 11 anos de idade, do sexo masculino e
feminino.
153
Figura 2 – Sequência de Quadros 2
154
eles apresentados. Este procedimento
possibilitou a realização do estudo das
estratégias de construção das semioses, de
acordo com as análises sobre a lógica utilizada
pelo informante na descrição em língua de sinais
dessas sequências.
Para melhor organização dos dados a
serem analisados, o código de identificação dos
informantes foi assim determinado: S
(maiúsculo) – Surdo; o (minúsculo) – Oralizado;
5 (número) – Idade do informante; M
(maiúsculo) – MASCULINO – sexo do
informante; F (maiúsculo) – FEMININO – sexo
do informante; 1, 2, 3 etc. (numeração da ordem
de apresentação do informante) e 10 → a idade
dos informantes (10,0; 11,0). Assim, temos como
exemplo: Informante S10M1 – Informante Surdo
com 10 anos de idade, do sexo masculino e
primeiro (com 10 anos de idade) a fazer a
entrevista.
Os alunos participantes encontram-se
identificados também no formulário de
percepção, no qual estão registrados diversos
dados observados no momento da entrevista
com os informantes, tais como: a) nível de
escolaridade; b) nível de competência
linguística; c) nível de competência semiótica e
d) tipo de semiose desenvolvida.
155
Figura 3 – Formulário de Observação
156
O ESTUDO DAS SEMIOSES EM INFORMANTES
SURDOS DE 10,0 ANOS DE IDADE
Aos 10.0 anos de idade, primeira faixa
etária de observação desta pesquisa, foram
selecionados os seguintes informantes para
estudo: S10F1; S10M2; S10M3. Os informantes
S10F1 e S10M2 apresentam interpretações das
sequências de quadros das baterias de testes na
sequência padrão. Já o informante S10M3
demonstra saber a sequência, inclusive
sinalizando-a, mas não descreve a história do
começo ao fim. Começa contando-a a partir do
último quadro.
No informante de código S10F1,
interpretando as sequências das baterias de
testes, foi encontrado o seguinte:
Sequência de quadros 1:
1 – E. Eu quero que você olhe, depois
queria que você explicasse que história você
entende aqui (aponta para a bateria)
2 – I. Alguém andando de bicicleta
[pequena pausa sinalizando negativamente com
a cabeça], depois ele passou pela rampa e na
terceira ele caiu.
Sequência de quadros 2:
3 – E. O que você entende dessa história?
157
4 – I. Então, é um barquinho, aí o
barquinho se dispersou e o menino foi em busca
do barquinho.
No informante de código S10M2,
encontramos as seguintes interpretações:
Sequência de quadros 1:
5 – E. Você percebe na figura uma história
simples?
6 – I. Um menino de bicicleta correu e caiu.
Não podia correr e caiu. Não conseguiu pular.
Sequência de quadros 2:
7 – E. Explique para a gente essa segunda
imagem.
8 – I. O menino com o barquinho, ele caiu
na água e a mãe tirou ele do lago.
No informante de código S10M3,
encontramos os seguintes dados:
Sequência de quadros 1:
9 – E. O que você entende da figura
mostrada?
10 – I. Um menino de bicicleta e aí ele
caiu. (entrevistador sinaliza se já acabou,
obtendo a confirmação do aluno)
Sequência de quadros 2:
11 – E. Olhe e explique essa figura.
12 – I. Tem um barco e aí o menino caiu no
lago. Na terceira o menino mergulhou e na
quarta o menino foi pego.
158
3.2 – ESTUDO DAS SEMIOSES EM
INFORMANTES SURDOS DE 11,0 ANOS DE
IDADE
Sequência de quadros 1:
13 – E. Primeiro quadro, o que você
entende da história?
14 – I. Um menino de bicicleta e ele caiu.
Foi correndo a caiu da bicicleta.
Sequência de quadros 2:
14 – E. Agora o segundo quadro, olhar e
explicar.
159
15 – I. Tem um barco, um barquinho. O
menino caiu, começou a chorar e aí a mãe veio e
tirou ele do lago.
O Informante de código S11F2 interpretou
as sequências da seguinte forma:
Sequência de quadros1:
16 – E. O que você entende dessa figura?
Explique a história.
17 – I. (informante ri) O menino caiu da
bicicleta...
18 – E. Como ele caiu?
19 – I. Caiu e deve ter doído muito.
(entrevistador pergunta se acabou e o
informante diz que sim)
Sequência de quadros2:
20 – E. O que você entende dessa segunda
história?
21 – I. (informante ri de novo) O menino
também caiu. Foi brincar com o barco e caiu na
água.
O Informante de código S11F3 nos
forneceu os seguintes dados a partir de sua
interpretação:
Sequência de quadros1:
22 – E. O que você entende dessa história?
23 – I. O menino caiu. Foi brincar de
bicicleta muito rápido e caiu.
Sequência de quadros 2:
24 – E. E desse, o que você entende?
160
25 – I. Tinha um barquinho, o barquinho
foi se distanciando do menino e então o menino
foi tentar pegar e caiu na água. Então, a mãe foi
lá e tirou ele do lago.
O Informante de código S11M4 interpretou
as sequências da seguinte maneira:
Sequência de quadros 1:
26 – E. O que você percebe dessa história?
27 – I. O menino caiu (informante
demonstra impaciência e inquietação)
Sequência de quadros 2:
28 – E. Vamos lá, o que você entende?
29 – I. Um barco... (pausa). Indo para o
meio do rio... (pausa).
161
estratégias de produção de semioses, nas
diferentes faixas etárias, desenvolvemos as
seguintes tabelas de análise dos processos de
semiose nas sequências de número um e dois da
bateria de testes. As tabelas estão organizadas
com a ordem de apresentação do informante, o
sexo e, também, com o tipo de semiose
desenvolvida.
162
interpretações feitas a partir conhecimento do
código para a decodificação plena das imagens
da sequência de quadros apresentadas na
bateria de testes. Já os informantes S11F2 e
S11M4, começaram a narrar as histórias a partir
do último quadro de ambas as baterias, sem
apresentar detalhes e com longas pausas entre
as falas. Porém, enquanto a informante S11F2
mostrou interesse em participar, o informante
S11M4 reagiu com impaciência e demonstrou
desconforto durante a aplicação da bateria de
testes.
Estes últimos desenvolveram semiose
criativa, que, segundo Correia (2012, p. 113-
114), são:
(…) processos de produção de
interpretações que, devido ao
desconhecimento do código para a
decodificação plena da linguagem verbal
nas histórias infantis, direcionam as
crianças para a geração dos significados
que em meio à desorientação simbólica,
buscam os ícones, signos que
analogicamente possuem relações com os
objetos que representam. [...] As semioses
criativas são, portanto, estratégias de
construção de interpretações baseadas
nas potencialidades cognitivas do
intérprete, dentro de sua maturidade
cognitiva (...).
163
Como podemos observar, aos 11 anos de
idade:
INFORM SEXO SEMIOSE
ANTE
S11F1 F Orientada
S11F2 F Criativa
S11F3 F Orientada
S11M4 M Criativa
Tabela 3 – Análise dos processos de
semiose na sequência de quadros 01 aos 11 anos
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observamos, a partir das análises
desenvolvidas, que os informantes surdos nas
idades de 10 e 11 anos de idade, pertencentes ao
4º ano do ensino fundamental, apresentam
formas de semioses orientadas e criativas na
164
interpretação das duas sequências de quadros
apresentadas.
Tomando como exemplo a informante
S11F2, percebemos que alguns desenvolveram
semioses criativas, o que segundo Correia
(2012, p.113-114) são
165
para o desenvolvimento de materiais didáticos
para o ensino e aprendizagem da criança surda.
Segundo Charles Sanders Peirce, o pensamento
é uma corrente de signos. Se o pensamento é
uma corrente de signos, somente poderemos
entender os complexos mecanismos de geração
do pensamento através da atenta análise dos
signos.
Como pode ser observado, todo o processo
de interpretação das sequências de quadros é,
na verdade, um processo de geração de signos
que nascem da experiência observada e
percebida. Não temos dúvidas de que as teorias
da semiótica aplicada à cognição servirão como
fundamentos essenciais para o auxílio de
profissionais de diversas áreas de conhecimento
que trabalham com educação especial.
A teoria da Percepção de Jorge (2011)
também é de extrema importância para os
estudos da cognição, tendo em vista que os
sentidos são a porta de entrada para a
percepção. Sem os sentidos, não conseguiríamos
perceber o mundo ao nosso redor e, dessa
forma, fica evidente que as crianças surdas,
através da percepção visual apreendem o
mundo exterior e o transforma em signos,
dependendo da competência semiótica e do
estágio de desenvolvimento linguístico e
cognitivo no qual se encontram.
166
Concluímos que, aos 10 e 11 anos de idade,
os informantes selecionados desenvolveram as
seguintes categorias de semioses em suas faixas
etárias específicas, como pode ser observado na
seguinte tabela:
167
O grande avanço analítico no uso da teoria
das semioses orientadas e criativas para as
ciências da cognição está no fato de que reúne,
em um único princípio, no conceito de
“semiose”, questões complexas que, até então,
sempre foram tratadas por outras disciplinas de
forma separada: estamos nos referindo aos
conceitos de “percepção” e de “interpretação”. A
teoria da semiose desenvolvida por Peirce
engloba estes dois polos intrínsecos à cognição
humana, demonstrando que a percepção se
constitui como uma atividade subjacente à
própria atividade de interpretação (CORREIA,
2001, p.7-24). Assim, as interpretações são
dependentes das percepções, ou seja, as
interpretações nascem das percepções, os signos
nascem das percepções em um processo
evolutivo e, dessa forma, esta teoria resolve os
problemas analíticos que a separação
“percepção x conceituação” causa nas outras
ciências humanas e sociais.
REFERÊNCIAS
CASSIRER, Ernst (1977). Antropologia filosófica.
2 ed. São Paulo: Mestre Jou.
CORREIA, Claudio Manoel de Carvalho (2001).
Semiose e desenvolvimento cognitivo: estudo
sobre as estratégias de construção dos
168
processos sígnicos em sequências lógicas.
Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
______. (2012). Competência Semiótica,
percepção e desenvolvimento das
interpretações. In: SIMÕES, Darcilia (Org.).
Língua Portuguesa e Ensino: reflexões e
propostas sobre a prática pedagógica. São Paulo:
Factach.
______. (2013). Semiótica cognitiva: fundamentos
das ciências dos signos para o estudo da
linguagem e cognição. In: SIMÕES, Darcilia
(Org.). Semiótica, Linguística e tecnologias de
linguagem. Rio de Janeiro: Dialogarts.
FERNANDES, Eulalia (1985). Estudo de
estruturas sintáticas na linguagem do deficiente
auditivo. Relatório (Relatório de Pesquisa).
CNPq.
JORGE, Ana Maria Guimarães (2011). Introdução
à percepção. São Paulo: Ed. Paulus.
MELO, César Vinícius Santos (2016). Estudos
sobre os processos de interpretação e de
semiose no desenvolvimento da linguagem e da
competência semiótica da criança surda de 10 e
11 anos de idade. Relatório (Relatório de
Iniciação Científica). Universidade Federal de
Sergipe, São Cristóvão.
169
NÖTH, Winfried (1995). Panorama da Semiótica:
de Platão a Peirce. São Paulo: Annablume.
PINKER, Steven (2002). Tábula rasa: a negação
contemporânea da natureza humana. São Paulo:
Companhia das Letras.
SANTAELLA, Lucia (1983). O que é Semiótica.
São Paulo: Brasiliense.
BIODATA
170
criança surda. Líder do Grupo de Pesquisa
GEMADELE- Elaboração e análise de material
didático para ensino de línguas
estrangeiras/adicionais da UFS e Membro do
Grupo de Pesquisa SELEPROT – Semiótica,
Leitura e Produção de Texto da UERJ.
http://lattes.cnpq.br/9935874859230938.
171
“ISSO VEM ABALANDO-A
EMOCIONALMENTE” – O PROCESSO DE
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO
ENUNCIADOR NA PRÁTICA
DISCURSIVA DO GÊNERO JURÍDICO
PETIÇÕES INICIAIS
AS CONTRIBUIÇÕES SEMIOLINGUÍSTICAS
PARA A ANÁLISE DA PI
Segundo Oliveira (2003), a teoria
semiolinguística de análise do discurso (AD),
proposta por Patrick Charaudeau, surgiu em
172
meio à trama de teorias ao longo do século XX,
sendo em Langage et Discours (1983) a sua
explicitação sistemática, que, desde então, vem
sendo aplicada e aprimorada em livros e artigos
do autor e de seus adeptos (OLIVEIRA, 2003, p.
13-14), em diversos campos das relações
linguageiras.
O nome Semiolinguística nasce da junção
de sémio-, que vem de sémiosis, construindo
relação forma-sentido, que pode ocorrer em
diferentes sistemas semiológicos, com “-
linguística”, termo dado por Charaudeau para
reforçar que a forma de ação é dada pelos
sujeitos-comunicantes e constituída por um
material linguageiro (apud MACHADO, 2001, p.
47). Assim, nas palavras de Machado (2001), a
construção de sentido dentro da teoria
semiolinguística está sob a responsabilidade de
um sujeito, movido por uma determinada
intenção que consiste no desejo de influenciar
alguém pelo uso da linguagem (p. 47). O projeto
traçado, nesse caso, faz parte do mundo social
em que vivem os sujeitos-comunicantes e é
composto por um conjunto de condições em que
se realiza qualquer ato de linguagem.
Na perspectiva semiolinguística, são
quatro os sujeitos da linguagem, sendo
representados por dois “Eus”, a saber, o sujeito
enunciador (EUe) e o sujeito comunicante (EUc),
173
e dois “TUs”, que são o sujeito destinatário
(TUd) e o sujeito interpretante (TUi).
Segundo Charaudeau (2001, p. 31), o
sujeito comunicante (EUc) é o parceiro que
detém a iniciativa no processo de interpretação
dentro da instância da produção do ato de
linguagem, enquanto o sujeito interpretante
(TUi) é o parceiro que tem a iniciativa do
processo de interpretação (CHARAUDEAU,
2001, p. 32), que ocorre, por sua vez, na
instância da recepção do ato de linguagem.
Por conseguinte, o sujeito enunciador
(EUe) e o sujeito destinatário (TUd) são seres de
fala que assumem diferentes faces na encenação
discursiva (CHARAUDEAU, 2001, p. 32). O TUd
“é o interlocutor fabricado pelo EU como
destinatário ideal, adequado ao seu ato de
enunciação” (CHARAUDEAU, 2014, p. 45). Já o
EUe, segundo Charaudeau (2001, p. 51), “é
responsável por um certo efeito de discurso
produzido sobre o interpretante”, é a imagem de
fala que oculta o EUc, ou seja, o EUe é uma
criação necessária do EUc para atuar na
encenação discursiva. No entanto, o EUe varia
conforme cada contrato discursivo e estratégia
discursiva adotada pelos sujeitos.
Para melhor entender as posições dos
sujeitos de comunicação, vejamos, a seguir, o
esquema ilustrativo proposto por Charaudeau,
adaptado ao contrato comunicativo da PI:
174
Gráfico 11– Representação dos dispositivos da
encenação da linguagem na PI.
175
indivíduos que estão diretamente ligados a esse
contrato discursivo, como a do advogado, a do
autor (ser representado pelo advogado) e a do
juiz, já que, assim como em outras práticas
linguageiras, é a partir de uma identidade
cristalizada socialmente que outras podem ser
mobilizadas para atender ao contrato discursivo
e conquistar o que se deseja no ato de
linguagem.
A imagem do sujeito da linguagem é
construída a partir da somatória de elementos
linguísticos e extralinguísticos. A exemplo disso,
destacamos a ideologia que contextualiza a
produção discursiva, ajudando-nos a entender
os papéis exercidos pelos sujeitos numa
encenação discursiva.
Segundo Chauí (2012, p. 131), o termo
ideologia, muitas vezes confundido com ideário,
é um conjunto lógico, sistemático e coerente de
representações (ideias e valores) e de normas
ou regras (de conduta) que indicam e
prescrevem aos membros da sociedade o que e
como devem pensar, sentir e fazer. Ou seja, a
ideologia sistematiza a vida em sociedade, ao
ponto de que não é possível conceber um ato de
linguagem sem que haja a influência da
ideologia sobre os sujeitos.
Neste trabalho, a ideologia funciona como
o “pano de fundo” da produção discursiva, que
corrobora para melhor entendermos a imagem
176
do sujeito em suas práticas de linguagem, visto
que os protagonistas da encenação discursiva
são os sujeitos da linguagem.
Assim, no que se refere ao conceito de
ideologia, estamos de acordo com Machado
(2006, p. 16) quando diz que os discursos
viajam e podem ser encenados por uns e outros,
independentemente da ideologia primeira,
orientando, dessa forma, o nosso olhar para
entendermos as relações de força entre os
sujeitos dentro de um dado contexto situacional
concreto de encenação discursiva. O que
significa dizer que a ideologia prescreve as
práticas sociais, ou melhor, como diz Chauí
(2012, p. 138), a ideologia fabrica uma história
imaginária, que reduz o passado e o futuro às
coordenadas do presente: a partir do aqui e do
agora.
No discurso jurídico, podemos afirmar que,
ideologicamente, a figura do juiz, ainda hoje,
retrata alguém que tem o saber jurídico e o
poder outorgado pelo Estado para julgar uma
lide2. No contrato da PI, ele é reverenciado e
considerado, por vezes, como uma “divindade”
177
no âmbito jurídico, o que fica evidente nas
escolhas lexicais do locutor ao dirigir-se a ele.
Diferentemente disso, o autor da ação é
ideologicamente percebido como alguém que,
pela falta de saber especializado, necessita do
advogado como mediador para que seu pedido
seja, ao menos, apreciado pelo juiz.
Assim, na cena discursiva da PI, o
advogado possui o que Chauí (2012, p. 128)
chama de discurso de competência, que “é
aquele proferido pelo especialista, que ocupa
uma posição ou um lugar determinado na
hierarquia organizacional”, que preencheu
requisitos estabelecidos socialmente para
legitimar sua posição em seu discurso: concluiu
o curso de Direito e possuiu aprovação junto ao
exame da OAB, no caso do enunciador da PI
analisada.
Dessa forma, a ideologia, sobretudo a da
competência, permite-nos perceber as relações
de poder existentes entre os sujeitos da
linguagem, uma vez que essas relações tendem a
se estruturar em um sistema de hierarquização,
pautadas na ideologia da meritocracia,
privilegiando, ideologicamente, os sujeitos
considerados mais bem-dotados
intelectualmente pelo sistema.
A partir desse pensamento, é possível
acrescentar que, na construção da imagem dos
sujeitos da PI, por exemplo, o juiz ocupa lugar de
178
privilégio, estando no topo da relação
hierárquica dessa encenação discursiva, tendo
em vista que ele possui o saber, que já foi
testado socialmente, por meio de um exame e,
por isso, foi-lhe conferido poder para julgar. O
advogado, por sua vez, ocupa posição mediana e,
por isso, tem apenas o saber, faltando-lhe o
poder, o que o coloca em uma situação inferior à
do juiz, de quem não pode exigir nada, mas a
quem pode apenas pedir. Enquanto isso, o autor
ocupa a base dessa relação, não possui saberes
que lhe confiram poderes, o que o torna,
juridicamente, uma pessoa leiga, indefesa, que
precisa da identidade do advogado para
representá-lo, como no exemplo a seguir.
179
presente ato de linguagem se dá por meio de
representação. Assim, fica subentendidoque o
autor não tem voz, ao menos diretamente, na PI.
Ora, a encenação discursiva da PI, por
direcionar-se aos Juizados Especiais Cíveis,
como na PI analisada, permite que os autores
atuem diretamente nelas. No entanto, para o
sujeito comunicante autor, melhor seria se ele
continuasse sendo visto como uma pessoa
incapaz de atuar nessa encenação. Assim, ele
não apenas dá voz ao advogado, mas une sua voz
à do advogado, deixando essa última
transparecer nesse ato linguageiro. Trata-se, na
verdade, de uma estratégia discursiva em que o
sujeito da linguagem elabora a ideologia
existente da forma que melhor lhe garantirá
obter sucesso no seu projeto de fala.
Quanto às representações sociais na PI,
verificamos que é latente a representação do
autor como alguém injustiçado, do advogado,
como o mediador da justiça e do juiz, como
alguém que pode fazer justiça. Vejamos:
180
procedimento administrativo do Tribunal para
efetuar o pagamento e conseguir o dinheiro do
estágio ainda este mês. O autor acredita que o
Poder Judiciário, com sua agilidade e destreza,
concederá a antecipação de tutela para retirar o
nome do cadastro desabonador pela inexistência
da relação jurídica e também pelo autor não ter
recebido em seu domicílio qualquer aviso de
que tal fato aconteceria. [SIC]
Tabela 2 – A representação social do sujeito na PI
181
Partindo da ideia de que não existe vazio
social, as representações sociais, de acordo com
Jodelet (2002, p. 17), possuem grande
importância para a vida em sociedade, pois elas
guiam o modo de nomear e definir
conjuntamente os diferentes aspectos da
realidade diária. Assim, podemos entender que
as representações sociais estão presentes no
cotidiano e são reafirmadas constantemente a
partir das práticas linguageiras.
Dessa forma, as representações sociais
materializam-se por meio da linguagem,
refletindo o pensamento social a respeito de
determinados objetos, já que, segundo Jodelet
(2002, p. 22):
182
que recaem sobre o advogado, um dos
comunicantes e o enunciador, nesse contrato
discursivo. Coerentemente, a origem do
vocábulo em latim aduocatus, que compreende a
junção do prefixo ad (para junto) e uocatus
(chamado), significando “o que assiste, patrono,
ajudante, defensor” (REZENDE, 2005, p. 28),
revela que o advogado é o profissional chamado
para defender o autor ou auxiliá-lo na sua
demanda, tal como constitui uma das suas
representações sociais, ainda, hoje.
Ademais, nas esferas extrajudiciais, é
comum ouvir as pessoas dizerem que têm um
advogado ou que irão conversar com seu
advogado, em muitos casos, principalmente,
para mostrar que não estão sós, mas que contam
com uma pessoa que entende das leis, que é
próxima e que está a sua disposição para lutar
em uma lide judicial. Esse tipo de postura surge
a partir das representações sociais dadas à
figura do advogado; ela funda-se tanto na
história, quanto na mídia, por meio dos casos de
grande repercussão em que a figura do
advogado se torna quase indispensável para a
obtenção de justiça.
Por outro lado, é importante destacar que
nem sempre o advogado goza de boa reputação,
tendo em vista que a parcialidade adotada ao
defender seu cliente, o faz, por vezes, olhar
apenas a parcela da verdade que favorece o seu
183
cliente em um dado processo. Dessa forma,
existem representações sociais em que o
advogado é tido como insensível, calculista e
astuto. Na PI, essas últimas representações não
estão presentes, visto que não favoreceriam o
locutor dessa encenação discursiva.
A partir do que foi exposto, percebemos
que as representações sociais vinculadas às
imagens dos sujeitos da linguagem, na PI, em
especial, fornecem-nos subsídios para entender
o que marca cada sujeito e sua atividade nesse
ato interativo, ou seja, possibilitam-nos, na
qualidade de analistas do discurso,
compreender quais elementos linguísticos, no
nosso caso, recuperam, simbolicamente, um
pensamento socialmente construído, a partir
das vivências e experiências humanas.
No que diz respeito aos imaginários
sociodiscursivos, é bem verdade que eles advêm
das representações sociais, ao materializarem-
se discursivamente a partir da sua
racionalização, como é possível perceber no
exemplo a seguir:
184
aplicáveis os dispositivos da lei consumerista,
mormente os inerentes à proteção contratual e
às cláusulas abusivas, haja vista tratar-se de
norma de ordem pública de aplicação imediata.
[SIC]
Tabela 3 – Imaginário sociodiscursivo
185
em vista que são recorrentes, ou seja,
relativamente estáveis. A título de exemplo,
dificilmente verifica-se o uso do verbo em
primeira pessoa na PI, uma vez que o
afastamento do sujeito da linguagem,
pressuposto por essa marca linguística, é o
desejável para transmitir a ideia de verdade. É
importante frisar que a justiça caminha junto à
verdade, ao ponto de uma não existir se houver
a ausência da outra. Por isso, um dos
imaginários sociodiscursivos contidos na PI
imprime a essa encenação o tom de verdade
inquestionável.
Sob a proposta de discutir como o sujeito
constrói sua identidade a partir do seu discurso,
Charaudeau (2009), em seu texto “Identidade
social e identidade discursiva, o fundamento da
competência comunicacional”, postula que, para
o sujeito existir, é necessário que haja diferença
desse em relação ao outro, visto que é crucial
para o sujeito reconhecer-se como sendo o que
não é o outro. Dessa forma, o autor chama
atenção para o fato de que não existe o eu sem o
tu, assim como, também, não existe o tu sem o
eu, uma vez que um constitui o outro, pois, como
versa Charaudeau (2009),
186
diferença do outro constitui de início a
prova de sua própria identidade, que
passa então a “ser o que não é o outro”. A
partir daí, a consciência de si mesmo
existe na proporção da consciência que se
tem da existência do outro. Quanto mais
forte é a consciência do outro, mais
fortemente se constrói a sua própria
consciência identitária. É o que se chama
de princípio de alteridade.
187
identidade social, contamos, também, com a
identificação que é construída a partir daquilo
que projetamos em nossas práticas discursivas,
que, somada à identidade social, permite que
uma mãe possa ter outros atributos, como ser
uma mãe rígida, excelente, eficiente, dentre
outras, a depender da intenção e das estratégias
que emprega na sua prática linguageira. A esse
tipo de construção identitária, Charaudeau
(2009) chama de identidade discursiva que “tem
a particularidade de ser construída pelo sujeito
falante para responder à questão: ‘Estou aqui
para falar como?’ Assim sendo, depende de um
duplo espaço de estratégias: de ‘credibilidade’ e
de ‘captação’”.
Desse modo, podemos aferir que, em todas
as práticas linguageiras, o locutor constrói para
si uma identidade, ou seja, uma imagem de si
elaborada pelo seu discurso. No entanto, essa
identidade discursiva precisa da identidade
social como base para existir, já que a primeira
não existe isoladamente, precisa estar ancorada
em um sujeito do discurso que possui uma
identidade social.
Na PI, por exemplo, o enunciador possui
uma identidade social de advogado, pois, em seu
contrato discursivo, é assim que ele é
reconhecido socialmente. Além disso, no ato de
linguagem desse gênero, o advogado pode
construir, também, uma identidade discursiva
188
de advogado competente e honesto. No entanto,
se não houvesse a base da identidade social de
“advogado”, não haveria a identidade discursiva
“advogado competente e honesto”.
Dentro da cena discursiva da PI, o sujeito
comunicante autor camufla-se na figura do
advogado, que é enunciador e, também,
comunicante nessa encenação.
Na PI analisada, a identidade social do
comunicante advogado é a de profissional
jurídico e é, a todo tempo, reforçada, recriada e,
por vezes, ocultada, dentro da sua prática
linguageira.
189
sustenta a identidade do profissional jurídico,
transmitindo a imagem que se espera desse
profissional: seriedade, imparcialidade e
credibilidade, por exemplo.
Em “Este fato deixou o autor chocado e
humilhado” (PI), o comunicante advogado, embora
não abra mão de seu distanciamento, mostra que é
capaz de pensar na dor do outro, deixando evidente
sua humanização. Ou seja, além de possuir a
identidade social de profissional jurídico,
o comunicante acumula atribuições de sério,
responsável, imparcial e, ainda, humano, sensível aos
sofrimentos do outro.
Ao construir a identidade do comunicante
autor, o comunicante advogado constrói-se
discursivamente. Por mais que as estratégias
discursivas utilizadas busquem fazer com que
haja seu total apagamento, o comunicante
constrói a identidade do autor da ação a partir
das suas próprias. Seguimos novamente para a
PI:
190
Em “demonstrando claramente a falta de
respeito”, o advérbio de modo utilizado revela
uma postura assertiva do locutor, seu
posicionamento dentro daquilo que é dito e,
mais uma vez, seu ato de humanização, ao se
compadecer com o sofrimento alheio.
Próximo à noção de identidade discursiva, o
sujeito comunicante da PI analisada busca, na cena
discursiva, elaborar sua imagem, construindo um
ethos discursivo de credibilidade.
Segundo Charaudeau e Maingueneau
(2014, p. 220), ethos é um termo emprestado da
retórica antiga e designa a imagem de si que o
locutor constrói em seu discurso para exercer
influência sobre seu interlocutor. Atualmente,
essa noção vem sendo retomada nas ciências da
linguagem, sobretudo, na seara da análise do
discurso.
Na perspectiva aristotélica, o ethos
encontra-se no discurso e não na pessoa real do
locutor; trata-se, na verdade, de uma máscara
que reveste o locutor por meio da sua encenação
discursiva, atribuindo a esse as qualidades
necessárias para alcançar o que se pretende.
No entanto, é sob a perspectiva de
Charaudeau que conduzimos a presente análise,
pois entendemos que é na convergência das
identidades do sujeito - social e a discursiva -
que se concebe o ethos, como esclarece o autor:
191
de fato, o ethos, enquanto imagem que se
liga àquele que fala, não é uma
propriedade exclusiva dele; ele é antes de
tudo a imagem de que se transveste o
interlocutor a partir daquilo que diz. O
ethos relaciona-se ao cruzamento de
olhares: olhar do outro sobre aquele que
fala, olhar daquele que fala sobre a
maneira como ele pensa que o outro vê.
Ora, para construir a imagem do sujeito
que fala, esse outro se apoia ao mesmo
tempo nos dados pré-existentes ao
discurso – o que ele sabe a priori do
locutor – e nos dados trazidos pelo
próprio ato de linguagem.
(CHARAUDEAU, 2015, p. 115).
192
Em “Sabemos que para que um negócio
jurídico exista, é necessário preencher a tríade
de elementos apresentada no Brasil por Pontes
de Miranda (...)” (PI), o enunciador reclama para
si o ethé de credibilidade, já que, estão presentes
nesse discurso a condição de sinceridade, uma
vez que a primeira pessoa do plural em
“sabemos” pressupõe que o que é dito é de
conhecimento de todos, não cabendo espaço
para mentira. Além disso, a condição
performance é preenchida, tendo em vista que
na PI há promessa de comprovação dos fatos no
item “Das provas”.
A condição de eficácia ocorre quando o
locutor projeta para o seu interlocutor uma
imagem de seriedade, demonstrando-se contido
e, por meio do uso da 1ª pessoa, como em
“sabemos”, acrescentando um traço à sua
personalidade, transmitindo a ideia de sério. A
respeito do ethos de sério, Charaudeau (2015, p.
121) postula que “esse ethos se constrói
igualmente com a ajuda de declaração a respeito
de si mesmo”.
Já o ethos de identificação é o “carro-chefe”
da encenação discursiva da PI, uma vez que seu
enunciador é construído, pelo comunicante, de
forma que transmita, ao seu interlocutor, a
imagem de um sujeito que possui potência,
caráter, inteligência e humanidade, como vemos
a seguir:
193
Ao fazer o requerimento, a gerente de nome
Olívia o informou que a resposta viria no dia 27
do mesmo mês. Nesta data o autor retornou ao
Banco Verdadeiro e recebeu a notícia de que
meu nome estava com restrição no SERASA a
pedido do Banco do Povo S/A. Este fato deixou o
Petição
autor chocado e humilhado, pois jamais havia
Inicial
feito compras e deixado de pagá-las. É
IMPERIOSO RESSALTAR QUE O AUTOR JAMAIS
RECEBEU EM SEU DOMICÍLIO QUALQUER
INFORMAÇÃO DE QUE O SEU NOME IRIA PARA
O SERASA EM RAZÃO DE ALGUM NEGÓCIO
JURÍDICO RELIZADO E NÃO PAGO!!!!! [SIC]
Tabela 7 – O ethos de identificação
194
A escolha vocabular da PI, além de
demonstrar um ethé de humanidade, em “Este
fato deixou o autor chocado e humilhado”, em
que a imagem do sujeito enunciador passa a ser
entendida como a imagem de alguém sensível às
dores do autor, revela-se, em “ÉIMPERIOSO
RESSALTAR” e “E NÃO PAGO!!!!!”,como um
discurso carregado de energia, como se o
enunciador estivesse preparado para lutar pela
justiça do autor da ação. A exclamação junto à
caixa alta transmite, também, a representação
do “grito”, que, diante do que é exposto,
expressa indignação, que é uma característica
passível de admiração, já que a indignação seria
com a injustiça, no caso dessa encenação.
Isto posto, o conceito de ethos funciona,
dentro das práticas linguageiras, como
ferramenta para persuadir o interlocutor. No
entanto, dentro da psicologia social, existe um
outro conceito similar ao de ethos, que é
chamado de processo de elaboração da face, que
tem como objetivo manter a harmonia entre os
sujeitos, nas práticas interativas.
Considerando que todas as pessoas vivem
no mundo de encontros sociais, seja face a face,
seja mediado, como no caso da PI, Erving
Goffman (1980, p. 76) postula que, em cada
contato, os sujeitos tendem a seguir um padrão
de atos verbais e não verbais que expressa sua
visão da situação e, consequentemente, sua
195
avaliação dos interlocutores participantes e de si
mesmo: é o que o autor denomina de seguir uma
linha. Assim, ao seguir uma linha, o sujeito da
linguagem consegue avaliar a impressão que,
possivelmente, pôde ser formada sobre si para
os demais sujeitos presentes em uma dada
prática interativa.
Para Goffman (1980, p. 76-77), o termo
face pode ser definido como o valor social
positivo que uma pessoa efetivamente reclama
para si mesma, por meio daquilo que os outros
presumem ser a linha por ela tomada em um
encontro específico, o que significa dizer que
196
que é aceito nessa interação. Além disso, ele
recorre, principalmente, ao processo de
evitação, para manter a harmonia em seu ato
interativo. Vejamos:
197
discursiva, evitando, dessa forma, que exista a
possibilidade de ameaça à sua face.
Ademais, a interferência de terceiros, no
evento interativo, pode consistir no fato de o
sujeito valer-se da palavra de outrem para
argumentar, dentro dessa interação, já que, por
tratar-se da palavra de alguém diferente do
lugar do discurso, reduz-se a possibilidade de
haver uma ameaça à face.
A partir do que foi exposto, percebemos
que, nas interações da PI, talvez por tratar-se de
um gênero escrito, o sujeito da linguagem tem
uma possibilidade maior de seguir a linha
desejada para esse evento discursivo e, por
poder monitorar melhor sua prática discursiva,
fazer com que a harmonia dessa interação
mantenha-se, a partir do uso constante das
estratégias de elaboração de face, sobretudo, as
de evitação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo da análise aqui exposta, verificamos
que o sujeito da linguagem na PI, apoiado na ideologia
que hierarquiza seu discurso e por meio das
representações sociais materializadas pelos
imaginários sociodiscursivos, constrói seu discurso a
partir daquilo que é aceito nesse contrato
discursivo, elaborando nesse, no que lhe é
198
permitido, um projeto de fala capaz de persuadir
o juiz.
Assim, percebemos que a arquitetura
desse gênero não perde de vista a
intencionalidade do comunicante em atuar
sobre seu interlocutor, já que, na análise,
evidenciamos que o sujeito comunicante autor
concede ao seu enunciador a máscara ideal para
atuar nessa cena discursiva e alcançar aquilo
que pretende junto ao juiz.
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BIODATA
Douglas do Carmo Araujo é mestre pelo
Programa de Pós-graduação em Estudos de
Linguagem (Linguística) da Universidade
Federal Fluminense (UFF, 2017), especialista em
Língua Portuguesa pela Universidade Federal
Fluminense (UFF, 2015), licenciado em Letras:
Português/Literaturas pela Faculdade de
Formação de Professores da UERJ (2012) e
graduando em Direito pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ, 2018). É integrante dos
grupos de Pesquisa “Formação de professores,
processos e práticas educativas”, lideradas pelas
professoras Helena Amaral da Fontoura e Maria
Cristina Cardoso Ribas e “Leitura, fruição e
ensino”, liderado pelas professoras Beatriz dos
Santos Feres e Patrícia Ferreira Neves Ribeiro.
Tem experiência na interseção entre linguística
teórica e linguística aplicada, nos temas: ensino-
aprendizagem de Língua Portuguesa, Teoria
Semiolinguística de Análise do Discurso de
Patrick Charaudeau, gêneros textuais do
domínio jurídico, Análise do Discurso,
elaboração discursiva de identidade
profissional, leitura, interpretação de texto e
201
escrita.
http://lattes.cnpq.br/5219428669242431.
douglasaraujo_20@hotmail.com
202
A PERCEPÇÃO EM FRONTEIRAS
INTERDISCIPLINARES:
CONVERGÊNCIAS E ASPECTOS
CONFLITANTES
Alfred Sholl-Franco
203
sendo muitas vezes tomado equivocadamente
por outros conceitos, tais como a Sensação e a
(Meta)cognição, em detrimento da natureza
complexa e multissensorial imanente ao tema.
O sistema nervoso é responsável por
trabalhar as informações e gerar os mais
variados comportamentos através de uma
extensa rede de comunicação com a maior parte
dos tecidos corporais, sendo o encarregados da
detecção de estímulos (sensação), da codificação
e condução dessas informações pelo corpo, da
percepção (seleção, organização e interpretação
das sensações) e produção de conhecimento
(cognição), assim como pela ativação dos
efetores por meio da malha de comunicação
estabelecida pelo sistema nervoso, chamada de
rede neural (MYERS, 2006a, 2006b; SHOLL-
FRANCO, 2015), responsável pela constituição
de um esquema cognitivo e pelo pleno
funcionamento do organismo a partir de uma
organização sensório-cognitiva-motora
elementar:
204
das glândulas” (SHOLL-FRANCO, 2015, p.
27-28).
205
A exposição aos estímulos e produção
inicial dos códigos neurais pela nossa sensação
são os processos iniciadores da aquisição de
informações sobre o mundo e de como
interagimos e fazemos parte deste mesmo
mundo, sendo caracterizada pela experiência
sensorial e dependente dos mecanismos
celulares/moleculares relacionados aos
diferentes tipos e modalidades de
processamento dos estímulos externos pelos
receptores, tecidos e órgãos sensoriais
(SHIFFMAN, 2005; MYERS, 2006a, 2006b;
SHOLL-FRANCO, 2015), sendo que “As vias
aferentes, provenientes dos pares de nervos
cranianos, podem ser compostas por vias peri-
féricas (gustativa, trigeminal, vestibular e vagal)
ou centrais (olfatória e óptica)” (SHOLL-
FRANCO, 2015, p. 28; Figura 1). É a partir desta
parcela de realidade (estímulos-sensação) que
construímos algo simbólico e sujeito a
interpretação e manipulação mental
(percepção), como descrito por Piaget como
teoria da abstração (PIAGET e INHELDER,
1969), mas que depende da influencia social e
cultural na produção individual de sentido e
significado (VYGOTSKY, 1987; SHIFFMAN, 2005;
CUNHA e GIORDAN, 2012), a partir do trabalho
do córtex cerebral, o qual:
206
apresenta uma organização funcional em
áreas, as quais são divididas em pri-
márias e associativas unimodais
(secundárias) e multimodais, dedicadas à
integração. de informações sensoriais,
motoras e da linguagem, assim como a
outras funções executivas (atenção,
motivação, percepção, memória,
raciocínio, cognição, planejamento, lógica,
consciência, pensamento)” (SHOLL-
FRANCO, 2015, p. 42-43).
207
abordadas foram a visão (em lilás),
audição (em verde claro), somestesia (em
vermelho), olfato (em azul), gustação (em
verde escuro) e equilíbrio (em laranja).
Em amarelo está representado o tálamo
como núcleo organizador e passagem de
informações para o córtex).
208
informações (LÓTMAN, 1979, 1996; LÓTMAN et
al., 1981; MACHADO, 2013; MADRUGA et al.,
2016).
A cognição e a metacognição, como
produtos do biológico (genético) e sócio-cultural
(aprendido e, portanto, epigenético), se
originam do trabalho cortical integrativo,
orquestrados em padrões filogeneticamente
determinados e ontogeneticamente
reproduzidos (JOU e SPERB, 2006; BLAKEMORE
e FRITH, 2007; SHOLL-FRANCO, 2015), o que
vem sendo corroborado pela teoria sócio
cognitiva de Tomasello (2003a, 2003b). Nesta
teoria, mostra-se a importância de certas
habilidades desenvolvidas no primeiro ano de
vida, quando o indivíduo se apresenta como
adquirente das habilidades sensório-motoras,
essenciais para o favorecimento de sua
interação com indivíduos simbolicamente
competentes (PIAGET, 1971b, 2009); VIGOTSKY,
1987). Assim, como resultado da aquisição de
um repertório simbólico teremos a influência
social e cultural na gênese de habilidades
cognitivas complexas e sofisticadas ao longo do
desenvolvimento (TOMASELLO e CALL, 1997).
A aquisição de um repertório sensório-
motor é importante para construir um
arcabouço preparatório para a construção de
percepções sobre si mesmo e o mundo ao seu
redor. Ainda mais relevante é a construção de
209
uma representação mental sobre si mesmo em
relação ao mundo, no que chamamos de
própriocepção, derivada de três fontes
sensoriais principais: visão, somestesia e o
aparelho vestibular (equilíbrio). A construção de
representações corticais para o corpo como
agente gestor das sensações/percepções e das
habilidades motoras (incluindo a cinestesia)
envolve a gênese, o reforço e a ampliação das
redes neurais uni- e multimodais, assim como
das redes intra- e inter-hemisféricas,
relacionadas aos fenômenos de aprendizagem,
memória (explícitas, implícitas e de trabalho) e
produção de comportamentos (PIAGET, 2009;
SHOLL-FRANCO, 2015), dentre os quais
encontramos desde reflexos até a expressão da
capacidade representacional e/ou uso pela
primeira vez de símbolos (PIAGET, 2009).
Ao longo dos anos primeiros anos de
vida, o indivíduo irá incorporando e trabalhando
as informações que chegam (através dos
sistemas sensoriais) e que são produzidas
(através dos sistemas motores), utilizando o
corpo como ferramenta comunicacional (não
verbal) para se relacionar com o outro e com o
mundo ao seu redor, conforme o contexto
cultural ao qual está inserido (VELHO, 2009;
KOLYNIAC FILHO, 2010), para que
posteriormente sejam desenvolvidos, sócio-
culturalmente, mecanismos mais complexos
210
comunicacionais (e.g. linguagens verbal e visuo-
espacial/verbo-manual), os quais serão
dependentes das fontes sensoriais (e.g. olhar,
ouvir, tocar) através do desenvolvimento e
melhoria da expressão e compreensão da
linguagem (SKLIAR, 1998; ZOZI e HAGE, 2004).
Consequentemente, a estimulação sensório-
motora, respeitando-se as faixas etárias
adequadas e suas necessidades, fornece os
meios pelos quais pode-se facilitar ou mesmo
potencializar a aquisição de habilidades
(GARDNER, 2005), de forma a inserir o
individuo na sociedade e no meio cultural
(PERIN, 2010).
A prevalência, nas abordagens
semióticas, dos aspectos visuais para a
construção de representações e significados,
assim como nas discussões sobre percepção
(MYERS, 2006b; SANTAELLA, 2012), deixa de
explorar a natureza complexa e multiperceptual
relacionada à construção de conhecimento e
linguagem. Principalmente quando analisamos
casos oriundos de deficiências sensoriais (e.g.
deficiência auditiva e deficiência visual), nos
quais a detecção e compreensão de elementos
auditivos e visuais interferem na qualidade do
processamento linguístico e emocional
(BARRAGA, 1985; SANTIN e SIMMONS, 1996;
EKMAN, 1997; MASINI, 1997; MYERS, 2006c),
gerando a necessidade de inclusão cultural e
211
social, através da exploração e construção de
conhecimento baseados na exploração
multisensorial.
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BIODATA
217
LINGUAGEM EMOCIONAL COMO
SISTEMA MODELIZANTE SECUNDÁRIO
NO CONTEXTO EDUCACIONAL
Anna Carolina Miguel
Alfred Sholl-Franco
INTRODUÇÃO
Um sistema modelizante (SM) é uma
estrutura de elementos e regras combinados de
modo a estabelecer analogias com toda a esfera
do objeto de conhecimento, previsão ou
regulação. A linguagem é um SM num dado
contexto de evolução. Ao deixar de ter base
natural, quando adquire superestruturas
suplementares, cria-se uma linguagem de
segundo nível, um sistema modelizante
secundário (SMS) (LÓTMAN, 1979).
A Linguagem Emocional (LE) atua como
um SMS no processo de produção de sentidos e
comportamento dos indivíduos. Seu conjunto de
competências cognitivo-linguísticas viabiliza a
compreensão e produção de significados
afetivos e semânticos; bem como a interpretação
e produção de estados emocionais. Assim, o
desenvolvimento da LE parte do uso da
linguagem natural como material para sua
construção, acrescentando outras estruturas de
grande complexidade, encaradas como códigos
218
culturais. Esses são reconhecidos, armazenados
e processados com o objetivo de regular e
controlar manifestações da vida social, do
comportamento individual ou coletivo. Nesse
sentido, elementos, regras de seleção e
combinações de signos configuram a
comunicação em que há o funcionamento de
uma metalinguagem universal para sua
interpretação (MACHADO, 2012).
As formas de expressão emocional são
passíveis de interpretação e, pela semiótica
sistêmica, são encaradas como textos –
conjuntos de sinais que adquirem sentido ou
significação ao serem associados a outros
objetos conceituais (ideias). Nas relações
comunicativas interpessoais, o texto (expressões
emocionais) se mostra bidimensional por sua
característica sincrônica (em que a significação
das expressões é percebida pelos interlocutores
no momento da interação) e diacrônica (na qual
a significação das expressões é formada no
decorrer do tempo pelo processo de formação
dos sentidos).
A LE é essencial para a interação dialógica
à medida que apoia a manutenção das relações
interpessoais (FONSECA et al., 2008). O conjunto
de competências cognitivas e linguísticas que a
compõem, na perspectiva da semiótica de
IuriLotman (LÓTMAN et al,1981; LOTMAN,
1996), assume tanto o caráter de modelização
219
(quando capaz de construir-se como sistemas de
signos com base na linguagem natural), quanto
cultural (como sistema semiótico perceptivo, de
armazenagem e divulgação de informações).
Um SM de linguagem é, portanto, aquele
por meio do qual uma comunidade ou indivíduo
percebe o mundo e atua sobre ele. Essa noção
compartilha da ideia de dupla função da
linguagem: comunicativa e cognitiva, em que,
respectivamente, estão presentes as atividades
interpsíquicas e intrapsíquicas (KENEDY, 2013).
Com o objetivo de apresentar a linguagem
emocional como SMS no contexto educacional, o
presente estudo traz a semiótica como ciência
geral de toda e qualquer linguagem, dos modos
de produção, de funcionamento e de recepção
dos diferentes sistemas de sinais e de
comunicação entre as pessoas (SANTAELLA,
2003). Propõem-se, baseando-se nisso, uma
investigação teórica de base humanística e uma
análise científica aplicada de base
neurobiológica sobre a linguagem emocional em
situações atípicas de aprendizagem. Para isso,
valendo-se da conservação do caráter geral dos
estudos russos, serão apresentados conceitos
centrais como instrumentos críticos para a
compreensão do sistema de cultura
(ensino),com base na convergência com
questões neurobiológicas.
220
A SEMIÓTICA CULTURAL DA LINGUAGEM
EMOCIONAL
A comunicação é entendida como sistema
semiótico e a cultura como um conjunto
unificado de sistemas, ou melhor, como um
grande texto. O comportamento comunicativo é
parte de uma diversidade de sistemas da
linguagem. As manifestações da LE variam
desde respostas fisiológicas inatas às mais
complexas reações. Essas, por sua vez, revelam a
heterogeneidade das emoções dada pela
conjugação de aspectos individuais e
socioculturais, cujas respostas envolvem a
atividade de vários sistemas corporais e
cognitivos (GRIFFITHIS,1997).
Michael Tomasello (2003a, 2003b), em sua
teoria sociocognitiva, critica a prática tradicional
dentro das ciências humanas e sociais de
estabelecer uma cisão entre os aspectos
biologicamente herdados e os culturalmente
aprendidos, quando se fala de cognição. Para ele,
há uma interdependência entre processos
filogenéticos, ontogenéticos e históricos para a
formação da cognição humana. Assim, certas
habilidades sociocognitivas humanas se
desenvolvem durante o primeiro ano de vida da
criança e favorecem a sua interação com
indivíduos simbolicamente. Como consequência
dessa interação e da aquisição de um repertório
221
simbólico, os processos sociais e culturais
transformam habilidades cognitivas básicas em
habilidades cognitivas extremamente complexas
e sofisticadas (TOMASELLO e CALL, 1997).
O desenvolvimento da LE se dá por um
processo cujo resultado conta com a integração
de fatores biológicos, ambientais
(socioculturais) e afetivos. Durante a interação
entre adulto/bebê - que envolve olhar, ouvir,
tocar - e a significação dos comportamentos do
bebê em um contexto situacional, criança e
adulto aprimoram as competências expressivas
e compreensivas da linguagem socioemocional
pertinentes a essa relação (díade
adulto/criança). Assim, aos poucos, a criança
torna-se capaz de demonstrar diferentes
funções comunicativas (ZOZI e HAGE, 2OO4).
Aspectos acústicos do choro, a capacidade
de reconhecer precocemente a voz materna
diferentemente do que acontece quando a voz
ouvida não lhe é familiar e a capacidade de
realizar mímicas faciais para expressar as
emoções mais básicas são exemplos de
habilidades inatas ou de aprendizagem muito
precoce que foram previamente verificadas em
estudos com bebês (HERBA et al., 2006). Esses
recursos apresentados pelos bebês são, de certa
forma, aproveitados pelos adultos de acordo
com as habilidades comunicativas que eles
apresentam para interpretar os estados
222
emocionais e as intencionalidades das crianças
(CRESTANIet al., 2012). Nesse sentido, há valor
implicado não somente nas habilidades do
emissor expressar formas emocionais quanto do
receptor de interpretá-las. É, portanto, na dinâmica
da comunicação interpessoal que o uso da LE se dá, se
desenvolve e se aprimora.
A LE se estabelece por meio de codificações,
que são as associações consolidadas em uma relação.
O uso da prosódia e das mímicas faciais são exemplos
de códigos para representar um estado emocional,
cuja funcionalidade das associações numa relação
dialógica contribui tanto para conferir qualidade à
mensagem transmitida quanto para atribuir valores
ao próprio comportamento comunicativo do
interlocutor. Dessa forma, sistemas e códigos são
observados como correlacionais, nos quais a
modelização é o processo semiótico por excelência no
qual a cultura é entendida como texto e a
comunicação entendida como processo
semiótico.
223
verbal é processada em seus aspectos: (1)
segmentais/estruturais e (2)
suprassegmentais/funcionais, representados,
respectivamente, por mecanismos neurofisiológicos
de maior ativação no sistema nervoso central (SNC)
em regiões cerebrais do hemisfério esquerdo (HE) e
do hemisfério direito (HD), caracterizando alguns
dos aspectos relacionados à lateralização e
dominância hemisférica cortical (SHOLL-FRANCO,
2015). A prosódia relaciona-se com o HD(DEHANE-
LAMBERTZ et al., 2006), representandoum recurso
que permite compreender e produzir significados
afetivos e semânticos baseados na entonação, ênfase
e padrões rítmicos das emissões vocais. Do mesmo
modo, o reconhecimento de expressões faciais
garante função semelhante, mas, neste caso, não
pela percepção de elementos auditivos e sim
pela compreensão de elementos visuais, tais
como gestos corporais e mímicas faciais
(LEITMAN et al., 2005). Assim, a boa
funcionalidade cognitiva está relacionada a uma
adequada atividade cerebral, e investigações
neurofuncionais em indivíduos com atividade
típica do SNC e, portanto, sem alterações
cognitivas, indicam que existe uma via fronto-
parietotemporal lateralizada no HD para
prosódia e uma via semelhante no HE para o
processamento sintático e semântico, estando
ambos conectados por meio do corpo caloso.
Portanto, essa integração intra e inter-
224
hemisférica é fundamental para
compreendermos o caráter linguístico e
emocionalem cada sentença.
Para a gênese, manutenção e modificação
dos estados emocionais, tem-se o recrutamento
de informações que o corpo veicula ao cérebro, a
fim de ser processado em um conjunto de
estruturas corticais e subcorticais conhecidas
como sistema límbico. No lobo temporal, uma
região chamada amígdala desempenha o papel
de disparo das emoções. Tal estrutura tem a
função de receber as informações sensoriais (do
ambiente) e interiores (do próprio corpo)
provenientes do córtex e do tálamo, filtrá-las
para avaliar a natureza emocional, e comandar
as regiões responsáveis pelos comportamentos
e ajustes fisiológicos adequados em regiões de
hipotálamo e de tronco encefálico (SHOLL-
FRANCO, 2015).
A expressão facial, dentre as manifestações
comportamentais, é a mais nítida e importante
sinalizadora das emoções numa interação
comunicativa, mesmo na ausência de palavras
(MYERS, 2006). Assim, a íntima relação entre
corpo e emoção pode ser observada na
contração muscular das estruturas da face para
formar as expressões de emoções básicas,
reproduzindo assim o sentimento emocional em
nível neural e subjetivo (EKMAN, 1997). Com a
empatia, a relação é parecida, isto é, existe uma
225
rede de conexões que faz áreas cerebrais e
regiões periféricas (rosto e corpo) interagirem
(RAMACHANDRAN e OBERMAN, 2006).
DIVERSIDADE FUNCIONAL QUANTO ÀS
QUALIDADES COMUNICATIVA E SOCIAL DA
LE
Existe uma diversidade de comportamentos
sociocomunicativos relacionados às condições
sensoriais e cognitivas com variável interferência na
qualidadedo processamento da LE.Estudos apontam
falhas ou particularidades na comunicação de
indivíduos com Transtornos do Espectro Autístico
(TEA), Deficiência Auditiva (DA) e Deficiência Visual
(DV) impactando na interação comunicativa
(CÁRNIO et al., 2000; GIARELLI et al., 2010; OKA
e NASSIF, 2010).
O TEA é um distúrbio do desenvolvimento
que interfere no comportamento do indivíduo
por provocar comprometimentos significativos
em três esferas: comunicativa, social e
comportamental (APA, 2014). É parte de sua
manifestação fenotípica a dificuldade de
interação social e a inabilidade no
reconhecimento de estados mentais de outras
pessoas, atrapalhando a qualidade da
comunicação interpessoal (GIARELLI et al.,
2010). Quando se fala de TEA, os estudos de
neuroimagem em indivíduos com o transtorno
revelamque as redes de neurônios que
226
estabelecem o processamento da linguagem
para a comunicação e habilidades sociais estão
organizadas de forma atípica(WILLIAMS et al.,
2006). Isso resulta na inadequação da
interpretação dos signos sociais e,
consequentemente, em respostas de maneira
inapropriada (HUBBARD et al., 2012). Em geral,
há maior direcionamento atencional da visão
para a movimentação da boca do interlocutor e
menos contato ocular numa situação
comunicativa face a face.
Déficits cognitivos edeficiências sensoriais
comprometem a detecção e compreensão de
elementos auditivos e visuais, interferindo na
qualidade do processamento da LE. Ekman
(1997) afirma que a capacidade de reconhecer
emoções diminui quando há limitação em um
dos canais de comunicação ou quando oestímulo
provém das fontes visual e auditiva, que
apresentem conteúdos contraditórios.
No caso de alunos com DA, inseridos em
uma comunidade escolar ouvinte, a diferença
entre língua oral e língua visuo-espacial é, por si
só, uma barreira comunicativa a ser encarada
(MIGUEL e SHOLL-FRANCO, 2017). A efetiva
inclusão do escolar com DA na escola regular
exige a possibilidade de vivenciar em seu
cotidiano experiências sociocomunicativas mais
amplas e respeitosas. Isso vai além de
comunicar-se por uma língua em comum.
227
Mesmo contando por direito legal com o auxílio
de intérpretes que facilitem a tradução entre a
língua brasileira de sinais (LIBRAS) e o
português brasileiro falado, há necessidade de
mediação das relações interpessoais e da
socialização como um todo, pois a realidade
brasileira das escolas regulares não contempla o
uso da LIBRAS pela comunidade escolar ouvinte
(RUELA, 2001).Ao mesmo tempo, os aspectos
acústicos prosódicos não funcionam como
elementos constituintes da LE de indivíduos
com DA. Para eles, a visão tem maior
importância por ser a via de entrada de
informação sensorial preservada que apoia a
modalidade visuo-espacial (ou verbo-manual)
de compreender e expressar a linguagem
(CÁRNIO et al., 2000).Os componentes não
manuais afetivos, por exemplo, que envolvem
movimentos de rosto, boca ou corpo indicando a
postura do sinalizador frente à situação que está
sendo comunicada (surpresa, excitamento,
angústia, raivaetc) são importantíssimos, porém
negligenciados pelo interlocutor ouvinte.
Quanto aos alunos com DV, sabe-se que a
visão não será usada no processo de
aprendizagem e que é urgente a construção de
conhecimento baseada no sentido do tato, da
exploração tátil e da audição (BARRAGA, 1985).
Apesar de essa informação parecer óbvia, não é
o suficiente para que educadores desempenhem
228
práticas pedagógicas diferenciadas. No campo
educacional há uma dificuldade significativa
para o indivíduo vidente compreender a fundo
as necessidades do indivíduo com DV. A deficiência
visual não é apenas não ver os objetos, lugares,
pessoas, entre outros. Ela interfere na forma como se
percebe um objeto e se constroem as “imagens”
mentais(representações) dos mesmos. Quando um
vidente olha para um rosto, por exemplo, ele parte da
face como um todo para analisar seus detalhes (olhos,
nariz, boca, entre outros). Porém, o cego, ao tocar um
rosto, vai construindo o todo pelo tato das
partes (SODRÉ e SHOLL-FRANCO, 2015). Nas
comunicações interpessoais há também a
predominância dos aspectos verbais e visuais,
mas o educador também precisa estar atento a
outros canais perceptivos desta população para
que o aluno com DV organize seu mundo de
forma que ele possa expressar sua experiência
perceptiva, pois isto faz parte do ambiente
favorável ao aprendizado (MASINI, 1997). Uma
das dificuldades do escolar com DV durante a
interação dialógica é que ele não vê a expressão
facial e gestual do colega ou do professor com
quem fala. Assim, saber se o interlocutor está
distraído, interessado no assunto, com vontade
de ir embora ou receptivo ao que ouve é
bastante difícil. Pistas como “o desvio do olhar”,
“verificar as horas no relógio”, “o cruzar os
braços” e outros sinais da linguagem corporal
229
que ajudariam o indivíduo com DV a
compreender a intencionalidade do interlocutor
de forma sutil, sem correr o risco de assumir
uma postura inconveniente ao parecer
insistente em manter uma conversa ou tópico
não lhe serve. O aluno com DV precisa contar
quase que exclusivamente com pistas auditivas
do interlocutor (prosódia, pausas, hesitações,
mudanças de tópico etc.) e que nem sempre são
suficientes, principalmente em ambiente
coletivo onde os ruídos podem atrapalhar (OKA
e NASSIF, 2010).
De uma forma geral, a inclusão dos
escolares com TEA, DA e DV necessita de um
ambiente estimulador, de mediadores
competentes e de condições favoráveis à
exploração de seu referencial perceptivo
particular. Isso, quando dividido com a turma,
promove a inclusão e o respeito às diferenças.
Afinal, um aluno alvo da inclusão não é diferente
de seu colega no que diz respeito ao desejo de
aprender, aos interesses, à curiosidade, às
motivações, às necessidades gerais de cuidados,
proteção, afeto, brincadeiras, limites, convívio e
recreação dentre outros aspectos relacionados à
formação (SANTIN e SIMMONS, 1996).Em um
estudo anterior (MIGUEL e SHOLL-FRANCO,
2017) verificou-se carência, na literatura, de
convergências dos achados ou discussão sobre a
questão das diversidades e da relevância da LE
230
para a inclusão escolar. As principais
características e particularidades revisadas no
referido estudoforam resumidas no Quadro 1.
231
O SISTEMA EDUCACIONAL DIANTE DA
DIVERSIDADE E A REPRESENTAÇÃO DO
ESTEREÓTIPO
A escola é o cenário favorável para o
desenvolvimento das habilidades
sociocomunicativas, sendo o professor a figura
essencial na mediação destas vivências nas
relações entre professor/aluno e do aluno com
seus pares (GOMES e NUNES, 2014). Conhecer as
demandas inclusivas desse público-alvo da educação
especial contribui para a compreensão da
importância de inserir a promoção da LE nas práticas
pedagógicas, visto que esta apoia o aprendizado
(MIGUEL e SHOLL-FRANCO, 2017).
De um ponto de vista neurobiológico,
aprendizagem é a aquisição de novos
comportamentos, dependentes da experiência de
interação vivenciada em todos os ambientes de
implicações na dimensão social da cultura e da
comunidade em que se insere o indivíduo. A
interferência de um déficit cognitivo ou sensorial na
formação dos esquemas mentais de processamento
da LE quando combinada a prejuízos vivenciais de
relacionamento sociocomunicativo corrobora ainda
mais para as dificuldades que esses indivíduos
podem apresentar (MIGUEL e SHOLL-FRANCO,
2017).
Para Blakemore e Frith (2007), cognição é
tudo aquilo que tenha referência com aesfera
232
mental, a qual engloba pensamento, memória,
atenção, aprendizagem, ações mentais e
emoções. Nesse sentido, diversos processos
cognitivos sãorequeridos para a elaboração do
conhecimento que poderá conformar
comportamentos. A complexidade desses
processosimplica um conjunto de estruturasas
quais sentem, filtram, organizam, modelam,
compreendem, significam eexpressam
informações e dados provenientes do meio.
Baseiam-se aí asimpressões, ideias e
pensamentos. É com base no meio em que se
está inserido que o indivíduo capta as
informações por intermédio dos órgãos dos
sentidos, seleciona aquelas significativas e
forma suas percepções, gerandoseus modelos.
Quando as percepções são compreendidas e
entendidas transformam-seem significado, em
modelos elaborados, isto é, em conhecimento.
Entretanto, nem tudo que se percebe é
compreendido. A maioria das percepções não
chega a este segundo estágio, sendoexcluído
pela mente por ser irrelevante ou não merecer
atenção prolongada. A compreensão é a etapa
que une a percepção ao conhecimento. Com base
nacompreensão, algo percebido adquire
significado e, por consequência, pode vir a se
tornar conhecimento (MADRUGA et al., 2016).
Nesse sentido, mesmo o educador que atua no
processo de inclusão de um escolar pode, pela
233
prática, perceber as demandas apresentadas,
mas não necessariamente tem conhecimento
sobre elas.
A desinformação da comunidade escolar
acerca das competências individuais acaba
culturalizando pelo SM os alunos alvo da
inclusão. Surge daí os textos (signos) planos e
padronizados, que sustentam o
compartilhamento de ideias estereotipadas do
escolar percebido como: aluno com TEA, aluno
DA, aluno DV, em que a condição clínica muitas
vezes é posta à frente do indivíduo-aluno,
reforçando a dicotomia entre modelos de
funcionamento normais e anormais. Apesar
desses termos terem sido substituídos por
“típicos” e “atípicos”, ainda são interpretados
culturalmente com base em comparação de
funcionalidade, evidenciando a ideia de
existência desuperioridadede um sobre o outro,
em que o modelo do “típico” é encarado como o
padrão do que se possui de habilidade versus o
modelo “atípico”, encarado como o padrão do
que falta de habilidade.
Para Granger (1969), um modelo é uma
imagem formada na mente quando uma pessoa
busca compreender e expressar determinada
percepção de fenômeno, seja este externo ou
interno, e procura relacionar com algo
conhecido. Durante a vida o cérebro cria
modelos que são significativos para cadapessoa.
234
Um modelo mental pode ser elaborado
baseando-se em percepções advindas de
experiências eimplica um modo de ver e
compreender o mundo; um ponto de vista que
nasce do lugar que o homem ocupa neste mundo
(MADRUGA, 2016). Quando, por exemplo, a
comunidade surda recusa o termo “deficiente
auditivo” ou quando o indivíduo com TEA
apresenta seu comportamento como uma
“forma de ser e existir” e não como
características clínicas, faz-se presente a
possibilidade da discussão crítica de modelos.
Valendo-se do modelo baseado na
cognição, propõem-se o método semiótico que
busca valorizar não apenas a dimensão
perceptiva, mas, sobretudo, a orientação para
um outro e para as relações dialógicas da
semiose (MADRUGA et al., 2016). Semiose é o
processo que transforma os fenômenos
existentes no universo real da experiência em
significados na mente do intérprete, por meio da
relação dialética entre mente interpretadora e
signo. Com isso, essa transformação é intrínseca
ao próprio processo gradativo do
desenvolvimento cognitivo humano, na medida
em que articula as experiências e as
significações.
As relações semióticas são triádicas, isto é,
envolvem o signo (um elemento que representa
algo para alguém), o objeto que o signo
235
representa (algo que transmitirá uma
mensagem a alguém) e o interpretante (receptor
do signo). Tratando-se da capacidade de
interpretar a intencionalidade do interlocutor
com base na compreensão de suas expressões
emocionais, tem-se signos e interpretações de
diferentes categorias. As formas de expressão da
LE dos alunos remetem ao signo de primeira
categoria quando o educador as compreende de
forma superficial e imediata.
Para Peirce (1975), signos convencionais
(modelos) são símbolos e provêm de um acordo
e combinação social. A LE como símbolo é signo
cujo caráter representativo consiste em ser uma
regra que determinará seu interpretante. Por
meio do uso e da experiência, seu significado
seamplia. Em suma, um símbolo é aplicável a
tudo aquilo que possa concretizar a ideia
relacionada e perderia o caráter que o torna
símbolo se não houvesse interpretante.
Para atender a essa demanda é que são
desenvolvidas as linguagens de descrição
baseando-se em modelos e pontos de vista de
observação, ou melhor, de percepção. Nessa
operação, a inclusão do observador/percebedor
introduz a dialogia no modelo. O modelo
semiótico dialogicamente concebido torna-se se
um modelo privilegiado de estudo da
complexidade dos sistemas semióticos
(MADRUGA et al.,2016). O ato de se fazer um
236
modelo denomina-se “modelagem”. Modelagem
significa a ação de modelar, conjunto de
processos e meio usados na confecção de
modelos.
Biembengut (2014) sintetiza o processo de
modelagem em três fases: (1) Percepção e
Apreensão – na qual as informações
provenientes do meio ou do próprio corpo são
recebidas, identificadas e classificadas para
decodificação e representação; (2) compreensão
e explicitação – consiste na ligação entre
percepção e o conhecimento; e (3) Significação e
Expressão - as percepções e/ou informações são
compreendidas e explicadas emuma busca por
traduzir ou representar estas percepções. Isso
acontece com autilização de símbolos e/ou
modelos pelos quais se dão os processos
mentais.
De acordo com Biembengut (2003),
símbolos e/ou modelos são representações
mentais que podem ser internas (construídas no
sistema cognitivo para compreensão do meio,
sendo uma forma de sobrevivência) ouexternas
(aquilo que se expressa). As pessoas fazem uso
de representações e se utilizam de modelos para
adquirir conhecimento (JOHNSON-LAIRD,
1990).
237
A PERCEPÇÃO DOS PROFISSIONAIS DE
EDUCAÇÃO SOBRE O PAPEL DA LE COMO
MODELIZADORA DE COMPORTAMENTOS
O estudo de Miguel e Sholl-Franco (2017)
avaliou a percepção de 123 professores e outros
profissionais de educação sobre LE em contexto
escolar inclusivo. Os participantes trabalham em
escolas da rede pública e/ou privada do Estado
do Rio de Janeiro.Desses, 78% discordam que
sua formação tenha contribuído para lidar com o
escolar que apresenta TEA, DA e DV; 50% não
conhecem a natureza dos quadros e
manifestações das características em ambiente
escolar. Ao mesmo tempo, 70% indicaram grau
máximo de relevância para as competências do
professor identificar estados emocionais dos
alunos, e 55% indicaram a mesma relevância
para as habilidades do aluno expressar e
compreender estados emocionais. Há ainda um
desconhecimento do educador acerca das
características e particularidades da LE
apresentadas pelo escolar com TEA, DA e DV.
Para uma outra compreensão da relatividade de
tais signos-alunos, faz-se necessário
instrumentalizar os profissionais no âmbito
educacional.
Práticas escolares devem ser
desenvolvidas no sentido de promover o
respeito à diversidade no âmbito educacional.
238
Recomenda-se fundamentá-las nas informações
científicas e relatos dos próprios indivíduos com
deficiências, a fim de conhecer melhor sobre as
dificuldades e potencialidades apresentadas
(SANCHES-FERREIRA, 2007).
Lótman e Uspênski (1973) entendem que o
conhecimento perpassa pela metalinguagem, e
que esta funciona como ferramenta de tradução,
isto é, serve a um método ou caminho de
descrição. Quando, porém, seu escopo amplia
como possibilidade cognitiva, teórico-crítica e
analítica, temos então a emergência de um
modelo. Cumpre-se a máxima de que a
linguagem da descrição não está separada da
linguagem da cultura e da sociedade a que o
pesquisador pertence.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme Johnson-Laird (1990), as
principais tarefas realizadas pela mentesão:
perceber o mundo; aprender, recordar e
controlar ações; pensar e criarnovas ideias;
controlar a comunicação com os outros; e criar a
experiência dossentimentos, das intenções e da
autoconsciência. Quando uma compreensão
passa a ser significativa para a mente, pode-
sedizer que se transformou em conhecimento,
ou seja, ocorreu a aprendizagem. Compreender
esse processo e as relatividades pertinentes a
ele requer a superação dos limites das áreas de
239
conhecimento. A participação de outras áreas de
pesquisa, a transposição dos saberes e a
possibilidade de associá-los são possíveis
desdobramentos do tema na busca por
respostas acerca das possíveis relações
sociocomunicativas estabelecidas em ambiente
escolar. Os apontamentos ao longo deste artigo
não esgotam o objetivo central do trabalho, mas
sinalizam algumas das passíveis modelizações,
sendo esta uma de suas contribuições.
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246
BIODATA
Anna Carolina Miguel, Mestre em Diversidade e
Inclusão (UFF); Especialista em Saúde Mental e
Desenvolvimento Infanto Juvenil (Santa Casa de
Misericórdia RJ), Especialista em Neurociências
Aplicadas a Aprendizagem (IPUB/UFRJ), atua na
área da Linguagem (clínica) e da Fonoaudiologia
Educacional (consultoria). Participa do grupo de
pesquisa Neuroeduc. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/4991792779164274 E-mail:
annacarolinamiguel@gmail.com
247
DO SENTIDO AO SENTIR: UMA
PERSPECTIVA DA SEMIÓTICA
COGNITIVA PARA A PRÁTICA DE
MINDFULNESS
Mônica Maria Souza de Oliveira
Carla Mariliados Santos
Alfred Sholl-Franco
INTRODUÇÃO
Na virada do Século XX, um filósofo e um
sociólogo norte-americano se destacaram nos
estudos relacionados à semiótica, Charles Peirce
e Norbert Wiley (SILVEIRA, 2011, p. 38). Peirce
se destacou ao propor a teoria triádica (signo,
interpretante e objeto) e Wiley, com o modelo
Self Semiótico (sujeito pensante e objeto
pensado). Por intermédio dos trabalhos desses
dois semioticistas e pragmatistas, realiza-se aqui
um breve diálogo com o constructo
multifacetado de mindfulness (meditação de
atenção plena) - “prestar atenção de maneira
particular, intencionalmente, no momento
presente e sem julgamentos” (ZINN, 1994, p. 4),
uma prática meditativa que instrui o indivíduo a
prestar atenção aos padrões de pesamentos,
estando mais consciente das emoções e
248
vivenciando o momento presente com abertura,
intenção e sem reatividade, utilizando o corpo e
exercícios de respiração como âncoras. Recentes
pesquisas sugerem que as atividades regulares
desse tipo de treinamento mental são capazes
de ativar e desenvolver um conjunto de
habilidades cognitivas e promover a regulação
emocional, além de provocar alterações físicas
no cérebro em áreas relacionadas ao foco, à
memória e empatia (DEMARZO, 2016).
Segundo Amanda da Costa Silveira (2011,
p. 45),
uma das principais e inovadoras ideias de
Peirce, segundo Wiley, é conceber a
natureza do self humano enquanto um
diálogo interno […] self como um
processo de interação comunicativa entre
consciência e corpo, o chamado fluxo de
consciência ou fluxo de pensamento
(SILVEIRA, 2011, p. 45).
249
ação racionalizante por meio da qual acontece
todo processo semiótico; ressaltando que a
existência da mente é que possibilita o
pensamento, contexto ao qual se concebe a ação
do signo – “relação triádica de representâmen –
objeto – interpretante. O signo é, portanto, o
mediador entre um fenômeno e uma mente, que
produz interpretantes. Assim, percebemos a
impossibilidade da existência da semiose pela
perspectiva peirciana sem a existência da mente,
e mais, é ela mesma o suporte para a ocorrência
da semiose” (RODRIGUES, 2013, p.80).Nessa
perspectiva peirciana, a mente seria um conceito
amplo e abrangente, cujo termo contemplaria
tudo o que é capaz de lidar com os processos da
ordem do pensamento e da razão (RODRIGUES,
2013, p.42). Para Peirce, os fenômenos que estão
presentes na mente formariam categorias
fenomenológicas com três diferentes características,
cuja tricotomia compreende: a primeiridade, que é
uma consciência qualitativa; a secundidade, uma
consciência de dualidade; e a terceiridade, uma
consciência da mediação (RODRIGUES, 2013).
Todos os conceitos relacionados às
práticas de mindfulness mencionam a tomada de
consciência de cada momento, adotando-se uma
mente de principiante – capacidade de ver
situações complexas com base em duas
perspectivas simultaneamente e enxergar aquilo
que é familiar de uma forma nova.
250
Segundo Elisa Kozasa,
Mindfulness, que tem sua origem no
termo páli sati – que significa recordar-se
(no caso, do objeto de sua atenção) –,
juntamente com a consciência
introspectiva que monitora este lembrar-
se e nos traz de volta para ele, toda vez
que nos percebemos distraídos, é a
essência das práticas de mindfulness
(KOZASA apud DEMARZO, 2016, p. 14).
251
processos relacionados aos pensamentos e
sentimentos. Esses fenômenos cognitivos estão
correlacionados à semiose, que é “possibilitada
por nossas bases fisiológicas, pois são essas
estruturas, com uma existência material, as
responsáveis por nossas capacidades cognitivas”
(RODRIGUES, 2013, p. 14). Destaca-se que as
evidências científicas apontam efeitos
fisiológicos e neurobiológicos das práticas
meditativas, nas quais se observam alterações
de algumas estruturas do cérebro – córtex pré-
frontal, cíngulo anterior, amígdala, ínsula,
glândulas adrenais, hipocampo (COSENZA,
2011). Em pesquisa realizada por Tiago Arruda
Sanchez (2009) sobre regulação emocional pela
atenção, córtex ortofrontal, córtex pré-frontal
ventro-medial, córtex pré-frontal dorsolateral,
amígdala e córtex cingulado anterior são
apontados como possíveis estruturas que
compreendem a regulação emocional.
As práticas de mindfulness fazem parte de
um processo psicológico de monitoramento
contínuo da experiência individual, no qual
existem mecanismos que são capazes de treinar
a autorregulação da atenção – concentração na
experiência fenomenológica imediata que leva a
reconhecer melhor os acontecimentos corporais,
sensoriais e mentais no momento presente; e a
experienciar este momento com curiosidade,
abertura e aceitação. Esse último aspecto
252
implicaria a tentativa de “reconhecer a realidade
crua das coisas e fenômenos, livre de nossos
filtros cognitivos, afetivos e culturais, que
costumam gerar respostas baseadas em um
padrão pré-estabelecido por nossas
experiências anteriores” (DEMARZO et al., 2016,
p.21). Para Silveira (2011), existe um conjunto
de habilidades em mindfulness que estão inter-
relacionadas, nas quais pode-se mensurar as
facetas de observação, descrição, ação com
consciência e aceitação sem julgamento, não
julgamento da experiência interna. As pesquisas
científicas apontam benefícios e efeitos
neurobiológicos da prática de mindfulness,
dentre os quais o de modificar de forma positiva
a atividade mental e causar alterações
morfológicas no cérebro. Esses estudos sugerem
que a prática de estar atento ao momento
presente, com abertura, intenção e sem
julgamentos favorece uma melhor concentração,
atenção, memória, o aprendizado e a
autorregulação emocional dos praticantes,
estimulando a criatividade.
Wiley (2006) considera o fluxo de
pesamento (conversa interna) – sentimentos,
emoções e ideias – uma das maiores
contribuições para a psicologia do self, no qual
estudos apontam que “os processos
relacionados ao self provavelmente envolvem
uma rede distribuída de regiões encefálicas
253
situadas em ambos os hemisférios” (SILVEIRA,
2011, p.56), onde há a ocorrência da semiose
(processos significativos): o cérebro “ uma vez
que é o grande gestor das atividades de
comunicação e cognição, caracterizando-se
como um lugar físico” (RODRIGUES, 2013, p.
41). Vale mencionar que Silveira (2011) acrescenta
que com base na teoria semiótica de Peirce, essa
conversa interna ocupa lugar de relevância na cadeia
sígnica, e que Demarzo (2016) destaca que há cinco
mecanismos-chave no processo psicológico de
mindfulness: regulação da atenção; consciência
corporal; regulação emocional – revalorização;
regulação emocional – exposição, extinção e
reconsolidação; e mudanças na perspectiva do self
(cuja instrução de prática é o desapego de uma
imagem fixa de si mesmo, áreas cerebrais
associadas: córtex cingulado posterior, ínsula).É
importante salientar que as pesquisas na área
das neurociências (SANCHEZ, 2009; TANAKA,
2016; DEMARZO, 2016), utilizando técnicas
funcionais de neuroimagem, sugerem que as
estruturas envolvidas na meditação durante
exercícios que buscam desenvolver o foco
atencional é o córtex cingulado; relacionado à
consciência corporal – capacidade de perceber
sensações ou de prestar atenção no próprio
corpo é a ínsula – e a ativação do córtex pré-
frontal acentua-se com o processo de regulação
emocional. Embora esses estudos tenham
254
avançado, os pesquisadores frisam que existe
muito a ser esclarecido sobre “os níveis afetados
pelo treinamento no cérebro” (DEMARZO, 2016,
p. 21).
As principais técnicas formais utilizadas
nas sessões de treinamento em mindfulness (ver
Tabela 1) usam âncoras que auxiliam a manter a
atenção em algum objeto ou evento que esteja
acontecendo no momento presente, com atitude
de abertura e curiosidade.
255
Os resultados dos estudos relacionados
aos efeitos neurobiológicos das práticas de
mindfulness, utilizando técnicas de
neuroimagem, apontam alterações significativas
nos níveis funcional e estrutural, destacando-se
três estruturas: o córtex cingulado anterior
(relacionado à regulação da atenção), a ínsula
(consciência do próprio corpo, capacidade de
perceber sensações corporais) e o córtex pré-
frontal (regulação das emoções), nas quais
foram evidenciadas mudanças cerebrais
associadas à eficácia destas práticas, e pesquisas
que sugerem que a prática induz a um fenômeno
de neuroplasticidade.
Vale mencionar que ao abordar os
fundamentos biológicos de uma das práticas,
como a de compaixão, DEMARZO et al. (2009,
p.138) destacam que para Paul Gilbert existem
três sistemas neurobiológicos considerados
chave no desenvolvimento do ser humano,
denominados de Sistema de satisfação, calma e
segurança; Sistema de ameaça e proteção e o
Sistema de conquista, que estão relacionados
aos mecanismos de neurotransmissão cerebral
no nível neurofisiológico: sistema das
endorfinas e da oxitocina, secreções que fazem
sentir calma, tranquilidade e segurança.
Mindfulness tem despertado cada vez mais
o interesse de indivíduos e em diversos
segmentos como educacional, na área de saúde e
256
empresas, nos quais protocolos e intervenções,
baseadas nas práticas de mindfulness, têm sido
utilizados de acordo com a demanda do público
e a necessidade que se apresente. As pesquisas
também ganham destaque na academia e em
diversos centros de estudo.
Para os que desejam iniciar a prática, as
evidências científicas mostram que os benefícios
só são alcançados com a atividade regular,
realizada em estado de vigília (plenamente
acordado e atento). E recomenda-se local
silencioso e confortável, em geral buscar uma
postura sentada em uma cadeira, pés no chão,
coluna erguida sem encostar na cadeira, mãos
descansadas nas pernas, fechar os olhos sem
apertar as pálpebras ou deixá-los semiabertos
em caso de sonolência, mas sem foco específico.
Manter a boca fechada, relaxando a mandíbula.
Seguem algumas orientações gerais para
as práticas de Mindfulness:
PRÁTICA: ATENÇÃO PLENA NA RESPIRAÇÃO
Técnica que utiliza como âncora a
respiração com o objetivo de treinar a
capacidade de manter a atenção no presente,
baseada nas experiências e sensações, atenta ao
respirar momento a momento, com consciência
plena. É considerada uma das técnicas mais
conhecidas e praticadas.
257
Estar atento à sensação simples da
respiração (ar entrando e saindo);
Estar atento à respiração com contagem
(1, 2, 3 até 10…se perder a contagem,
retomar do início);
Respiração com foco no corpo;
Respiração com foco nos padrões
mentais.
258
- Estar atento como as sensações são
geradas no corpo, sejam estas agradáveis ou
não;
- Dar-se conta da aversão gerada por
algumas sensações.
PRÁTICA: MOVIMENTOS CORPORAIS COM
ATENÇÃO PLENA
Movimentos corporais realizados
lentamente para manter a atenção e a
observação consciente, harmonizando cada
movimento com o ritmo normal da respiração,
explorando cada nova sensação que se
apresente.
- Movimentos da mão;
- Movimentos em deslocamento.
PRÁTICA: RESPIRAÇÃO, SENSAÇÕES, SONS E
PENSAMENTOS
Usar a respiração, as sensações, sons e
pensamentos como âncoras para manter a
atenção no momento presente.
- Perceber as sensações e movimento;
- Perceber a vibração;
- Perceber palavras e sensações;
- Visualizar pensamentos e emoções;
COMPAIXÃO/CONSCIÊNCIA AMOROSA
Esta prática é um treino da consciência
para que tenhamos uma atitude empática, um
259
exercício da compaixão (aceitação não crítica e
não julgadora de nós e do outro
independentemente das relações emocionais
construídas).
Durante as práticas você irá imaginar
frases amáveis para você e para o outro, como:
“que seja feliz”, “que tenha paz”, “que tudo saia
bem”.
- Oferecer um toque de acolhimento;
- Oferecer abraço fraterno;
- Olhar amoroso (pessoa neutra);
- Praticar a bondade amorosa (pessoa de
conflito).
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BIODATA
Mônica Maria Souza de Oliveira, Mestranda
em Educação, Gestão e Difusão em Biociências
(IBqM/UFRJ), integrante do grupo de pesquisa
*Neuroeduc – Centro de Estudos em
Neurociências e Educação*. Especialista em
Neurociências Aplicada à Aprendizagem
(IPUB/UFRJ), Meio Ambiente (COPPE/UFRJ),
261
Gestão para a Sustentabilidade pela Fundação
Dom Cabral, Promoção da Saúde (American
University), MBA em Gestão de Negócios
(IBMEC). Lattes:
http://lattes.cnpq.br/9295219462830967 E-
mail: monicaol@yahoo.com.br
262
e MP-EGeD (conceito Capes 4) e da Pós-
graduação da UFF em Diversidade e Inclusão
(CMPDI – Conceito Capes 4), orientando
mestrado e doutorado. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/0916043592067664 E-
mail: alfredsholl@gmail.com.
263
PERCEPÇÃO, SENSAÇÃO E
METACOGNIÇÃO: REFLEXÃO SOBRE AS
ABORDAGENS DAS TECNOLOGIAS
DIGITAIS DE INFORMAÇÃO E
COMUNICAÇÃO COMO SIGNO
264
tratam da relação emocional e afetiva sobre as
possibilidades de uso das TDIC; outras vezes,
buscando a identificação ou a autocompreensão
com base em questionários objetivos que não
vislumbram os aspectos sensíveis e
metacognitivos que tal signo evoca no contexto
do ensino/aprendizagem. O presente estudo
busca estabelecer uma análise teórica das
diferenças entre os conceitos de Percepção,
Sensação, Metacognição e sua aplicabilidade às
possibilidades de abordagens do signo TDIC.
O USO DAS TDIC NO PROCESSO
ENSINO/APRENDIZAGEM
O termo Tecnologias da Informação e
Comunicação (TIC) é o mais encontrado para se
referir aos dispositivos eletrônicos e
tecnológicos, incluindo-se computador, internet,
tablet e smartphone. Como o termo TIC abrange
tecnologias mais antigas como a televisão, o
jornal e o mimeógrafo, pesquisadores têm
utilizado a expressão Novas Tecnologias para se
referir às tecnologias digitais (KENSKI, 1998) ou
Tecnologias Digitais da Informação e
Comunicação (TDIC) (BARANAUSKAS &
VALENTE, 2013). As Tecnologias Digitais de
Informação e Comunicação são um conjunto de
recursos tecnológicos que, se estiverem
integrados entre si, podem possibilitar a
automatização e/ou a comunicação de vários
265
tipos de procedimentos existentes nas
atividades profissionais, no ensino e na pesquisa
científica.
O conceito do processo de
ensino/aprendizagem vem passando por várias
modificações no decorrer da história quando se trata
de produção de conhecimento. Assim, durante o
tempo esse processo tem sido apresentado de
diversas maneiras. Em alguns momentos a figura do
professor é detentora do pleno saber, já em outro
enaltece o aluno como sujeito construtor de seu
conhecimento. Algumas pesquisas sobre como
ensinar e aprender demonstram que não há apenas
uma forma de entendimento desse processo. A
contribuição em investigações realizadas na
área da psicologia vem sugerindo uma boa
reestruturação nas práticas pedagógicas. Elas
têm provocado a reflexão sobre o olhar de
modificação de valores quanto ao valor de como
e quem ensina, para a inquietação de quem
aprende e de como se aprende. No processo de
ensino/aprendizagem é importante destacar
que não é algo de responsabilidade apenas do
professor e suas estratégias didático-
pedagógicas. Esse processo envolve uma
conquista que supõe o diálogo, a participação
efetiva do aluno e, sobretudo, a construção de
relações de proximidade e empatia com eles.
As novas tecnologias vêm colaborando
com as grandes mudanças em todos os aspectos
266
de nossas vidas. Elas têm a profunda essência de
modificar o mundo. Hoje se pensa que a
tecnologia é apenas voltada ao uso dos
computadores e celulares de última geração,
mas não se resume somente a isto. O telefone, o
carro, o avião, a televisão, o computador, as
redes eletrônicas, entre outros, contribuíram
para a magnífica expansão docapitalismo,
colaborando para o fortalecimento do modelo
urbano e para a diminuição das distâncias. No
mundo capitalista em que vivemos, o lucro com
o uso das tecnologias é o foco principal, ou seja,
quanto maior a sua expansão e mais baratas
forem no mercado mundial mais se tornarão
acessíveis. A rede Internet foi concebida para
uso militar. Com medo do perigo nuclear, os
cientistas criaram uma estruturação de acesso
não hierarquizada, para poder sobreviver no
caso de uma grande mortandade ou carnificina.
Ela continua sendo uma rede para uso militar,
mas também é utilizada para pesquisas no
mundo inteiro. Com a Internet podemos nos
comunicar enviando e recebendo mensagens,
buscar informações, fazer propaganda, trabalhar
e ganhar dinheiro, nos divertir. Há, na verdade,
um novo reencantamento pelas tecnologias
porque há a nossa participação com uma
interação muito mais intensa entre o real e o
virtual. Esse reencantamento acontece porque
estamos numa fase de reorganização em todas
267
as dimensões da sociedade, desde o poder
econômico ao político, do educacional ao
familiar.
As tecnologias de comunicação estão a
cada dia mais portáteis, e com isto, permitem
uma grande maleabilidade, mobilidade,
personalização. Dessa forma, facilitam a
individualização dos processos de comunicação
por estarem sempre alcançáveis, em qualquer
lugar e horário. O notebook pode estar na praia,
em uma cafeteria, em um momento de descanso,
mas fornecendo a comunicação, a pesquisa e até
mesmo o trabalho com outras pessoas à
distância. São possibilidades reais inimagináveis
há pouquíssimos anos e que estabelecem novos
elos, situações, serviços, que, dependerão da
aceitação de cada um, para efetivamente
funcionar. Há o estudo a distância (EAD) via
computador, celular, notebooks, que vem
crescendo em bastante, o que possibilita a
atualização profissional ao indivíduo que não
possui tempo para frequentar aulas presenciais.
A cada inovação tecnológica bem-sucedida há a
capacidade de modificar os padrões para lidar
com a realidade anterior, mudando o patamar
de exigências do uso; contudo, não podemos
esquecer que a nossa mente é infinitamente
superior em complexidade ao melhor
computador ou qualquer tecnologia.
268
Nós pensamos, nos relacionamos,
sentimos, somos fartos de emoções que geram
conexões cerebrais puramente nobres. Por isso,
no grande reencantamento temos que fazê-lo
com a nossa mente e corpo, integrando nossos
sentidos, emoções e razão. Essa atitude
reencantada de viver irá potencializar mais
nossas vidas pessoal e laboral, fazendo um uso
libertador dessas tecnologias admiráveis e não
como um uso consumista, e até mesmo de fuga.
É preciso considerar que as tecnologias, sejam
elas novas ou velhas, condicionam os princípios,
a organização e as práticas educativas, e
impõem profundas mudanças na maneira de
organizar os conteúdos pedagógicos a serem
ensinados. O professor tem o papel de tornar-se
um facilitador do processo de
ensino/aprendizagem do aluno. O termo
facilitador foi empregado para indicar que o
professor colabora com o desenvolvimento
cognitivo do aluno por meio de indagações que
desequilibram as certezas inadequadas,
propiciando a busca de alternativas para
encontrar a solução mais apropriada ao
problema e ao estilo de pensamento individual
(MUNOZ, 2010).No processo de ensino, as TDIC,
associadas ao projeto pedagógico, podem
intensificar as oportunidades de mediação, na
medida em que se tornam ferramentas que
ampliam as manipulações com os objetos do
269
conhecimento, como por exemplo: softwares
educacionais com jogos, exercícios e
laboratórios virtuais; as interações entre
professores/alunos, alunos/alunos e
alunos/professores (PONTE, 2000).
O USO DAS TDIC COMO SIGNOPARA A
APRENDIZAGEM
Baseada nas ideias de Peirce (1995), a
semiótica e seus fundamentos teóricos
proporcionam um melhor esclarecimento em
que fenômenos variados quanto aos processos
de significação, representação e interpretação
geram a observação de todo o arcabouço da
linguagem. Peirce define semiose como a
atividade do signo, uma vez que as relações
lógicas existentes podem se relacionar com este
signo. Ele denomina como elementos sígnicos,
apontados como o representamen, que é algo
que representa alguma coisa para alguém e da
mente do indivíduo cria um signo, passando a
ser o objeto. Sendo criado esse signo, ele passa a
ser denominado interpretante do primeiro
signo. Dessa forma, quanto mais o indivíduo se
envolve com determinado assunto, novos signos
vão sendo gerados, dando origem a um novo
aprendizado. Do ponto de vista neurobiológico,
aprendizagem é a aquisição denovos
comportamentos que dependem da atividade do
sistema nervoso. O indivíduo adquire novos
270
comportamentos, em todos os ambientesem que
atua e interage, transformando toda a vida
humana. A capacidade de abstrair, formando o
universo simbólico, é exclusivamente humana,
ou seja, percebe-se que a semiose inicia pela
mudança do mundo físico em um mundo mental,
psicológico, um mundo real. Por meio do olhar
de Peirce, a semiótica é a ciência que investiga
todo fenômeno de produção das linguagens
possíveis por intermédio de elementos que
produzem significado e sentido, ou seja, como os
indivíduos reconhecem e interpretam o mundo
à sua volta, sob a participação ativa da
interpretação mental de cada um baseando-se
nos signos, dando origem à nova organização da
linguagem.
Após a revolução industrial, invenções
humanas começaram a ser criadas com o intuito
de fornecer um maquinário capaz de produzir
outras formas de linguagem, além da linguagem
oral em nosso cotidiano. A cultura também é um
elemento fundamental para a comunicação, pois
por intermédio dela são realizadas práticas de
produção de linguagem ede sentido, formando
uma estrutura de linguagem. Ainda sobre
aconcepção peirciana, pode-se perceber que os
discursos sobre o uso de Tecnologias Digitais de
Informação e Comunicação (TDIC) no processo
de ensino/aprendizagem parecem lidar cada vez
mais com o signo de um objeto de desejo (TDIC
271
como um constructo mental) do que com uma
relação de efetividade (TDIC aplicadas). Em
torno dessa polarização surgem discursos,
muitas vezes replicados, sobre a percepção e
sensação do aluno e/ou professores em relação
ao uso de TDIC, sem, contudo, haver uma
coerência conceitual entre os termos e sua
aplicação. Atualmente, as tecnologias digitais
vêm demonstrando que é possível o
desenvolvimento de um novo paradigma
educacional. Cada vez mais cedo as crianças
estão em contato com as novas tecnologias. Esse
fator pode trazer consigo mudanças nas formas
de comunicação e de interação. Essas mudanças
serão positivas, desde que aconteçam dentro de
um contexto das habilidades comunicativas.
Essas tecnologias estão inseridas no processo
educativo, podendo ser desde simples atividades
que se repetem com o objetivo de treinar as
habilidades ou repassar os conteúdos já
trabalhados. Para que seja possível,
efetivamente, compreender as relações que
envolvem esse signo, impõe-se antes de tudo a
clareza na compreensão do que os autores
assumem por percepção dos professores e/ou
alunos.
Para Vigotsky (1930, 1934/2001), o
instrumento criado pelo homem tem a
responsabilidade da regulamentação das ações
sobre ele e o signo, das ações sobre o psiquismo
272
das pessoas. Partindo do princípio marxista de
que as relações dos seres humanos entre si e
com a natureza são mediadas pelo trabalho,
Vigotsky então buscou analisar a função
mediadora destes instrumentos como
provocadores de mudanças externas. Além
disso, os seres humanos são capazes de pensar,
construir e produzir seus instrumentos para o
cumprimento de determinadas tarefas, como
também de mantê-los para que possam ser
utilizados posteriormente, transmitindo a sua
função a outras pessoas, permitindo assim que
possam ser cada vez mais aprimorados. Na
contemporaneidade, as TDIC têm sua criação
baseada na história e na cultura da sociedade.
Para Freitas (2008, 2010), o computador
e a internet são objetos culturais da época
contemporânea, sendo simultaneamente
instrumentos materiais como objeto em si e
simbólicos por serem construídos com base em
símbolos próprios como a linguagem binária do
computador para poderem funcionar. Além
disso, a comunicação proporcionada por essas
tecnologias digitais é realizada baseada na
leitura e na escrita. A autora os denomina
instrumentos culturais de aprendizagem, por
não os considerar apenas máquinas, mas sim
instrumentos mediadores do conhecimento.
Como instrumentos dessa época e mediadores
da interação humana, as tecnologias digitais,
273
possivelmente, têm contribuído para mudanças
em algumas práticas sociais como a
comunicação, a socialização, a organização, a
mobilização e a aprendizagem. A tecnologia
contribui para orientar o desenvolvimento
humano porque opera na zona de
desenvolvimento proximal de cada indivíduo,
por meio da internalização das habilidades
cognitivas solicitadas pelos sistemas de
ferramentas correspondentes, os quais
promovem práticas que supõem formas bem
particulares de pensar e de organizar a mente
(LALUEZA, CRESPO E CAMPOS, 2010, p. 51).
A realização de tarefas por intermédio
das TDIC apresenta importantes características
para o processo de construção de conhecimento.
Em primeiro lugar, a descrição de ideias pode
ser entendida como a representação dos
conhecimentos que o indivíduo já possui. Essa
representação possibilita a identificação, do
ponto de vista cognitivo, dos conceitos e das
estratégias que o indivíduo emprega para
resolver um problema. Em um segundo
momento, as TDIC executam as instruções
fornecidas, o que não acontece com os objetos
tradicionais da nossa cultura. Tal execução
permite verificar se os conceitos e estratégias
utilizados são adequados ou merecem ser
descartados. Em terceiro, pelo fato de estar
trabalhando com o digital, as alterações a serem
274
realizadas nas atividades são facilmente
implementadas, o que facilita a realização do
ciclo de ações
descrição/execução/reflexão/descarte/nova
descrição (VALENTE, 2014).
O conhecimento que cada ser humano
constrói é o resultado da interação entre o
interpretar e compreender a informação
recebida. O conhecimento é a consequência do
significado que é aplicado e concebido na mente
de cada indivíduo, baseado nas informações
ocorridas do meio em que ele vive. Dessa forma,
a maneira como acontece o processo de
significação, de compreensão e de apropriação
da informação não é objeto da comunicação. A
ação educacional, nesse contexto, consiste em
auxiliar o indivíduo que aprende na construção
do conhecimento para que ele possa acontecer.
Isso implica criar ambientes de aprendizagem
nos quais haja tanto aspectos da transmissão de
informação quanto de construção, no sentido da
significação ou da apropriação de informação.
Portanto, a questão fundamental no processo
educacional é saber como criar situações de
aprendizagem que estimulem a compreensão e a
construção do conhecimento, e uma das
estratégias tem sido o uso das TDIC. Mas, se o
uso dessas tecnologias não for compreendido
com um foco na educação, não será, meramente,
o seu uso que irá auxiliar o aprendiz na
275
construção do conhecimento. Elas podem ser
extremamente úteis como ferramentas
cognitivas, realizando diferentes papéis.
PERCEPÇÃO, SENSAÇÃO E METACOGNIÇÃO
Em uma análise teórica das diferenças
entre os conceitos de Percepção, Sensação,
Metacognição e sua aplicabilidade às
possibilidades de abordagens do signo TDIC,
poderemos destacar a abordagem de alguns
autores. Piaget definiu pela Epistemologia
Genética as alterações de ordem física que
modificam o indivíduo quando ele interage com
o objeto. Defendeu que as estruturas cognitivas
para o desenvolvimento do conhecimento são as
mesmas para qualquer indivíduo. Mais adiante,
Vigotsky contrapôs Piaget assegurando que a
cultura seria ponto determinante na aquisição
do conhecimento e, portanto, nem todos os
indivíduos teriam as mesmas condições de
aprendizado. Outra diferença na visão entre
Piaget e Vigotski, volta-se à sequência dos
processos de aprendizagem e de
desenvolvimento mental. Vigotsky afirma que a
aprendizagem é que gera o desenvolvimento. Já
Piaget afirma que é o desenvolvimento das
estruturas mentais o que levam à aprendizagem.
Nos estudos de Piaget voltados à aprendizagem,
ele faz a relação entre a sensação e a percepção,
perpassando pela concepção de como o
276
indivíduo se relaciona com o real e tira dele
mecanismos para construir um aparato
simbólico, o que ele denomina de teoria da
abstração. De acordo com essa visão do autor,
essas construções só podem acontecer graças à
abstração. A sensação é uma experiência
exclusivamente sensorial, que inicia com um
estímulo externo originado pelos mecanismos
biológicos dos sentidos. Referente à percepção,
entende-se como o sistema de cognição
interpreta a sensação recebida ou que ele
mesmo é capaz de produzir. A aprendizagem
pode ser vista como uma construção individual,
porém, permeada pela interação com o meio
social do indivíduo, a sua cultura e suas
vivências anteriores. Para aprender é necessário
a união da sensação e da percepção, sendo
possível somente por meio de um processo de
interação entre o indivíduo e objeto do
conhecimento.
Para Vigotsky, quando percebemos
elementos do mundo real, relacionamos estas
percepções às nossas informações que estão
presentes no arcabouço psicológico de cada
indivíduo. O objeto que é percebido relaciona-se
de maneira completa e não como um amontoado
de informações captadas pelos sentidos. Esse
fato indica que a trajetória do desenvolvimento
do indivíduo está intimamente ligada ao seu
conhecimento do mundo e às suas experiências
277
vividas. O autor ainda destaca que a percepção é
parte de um sistema dinâmico de
comportamento e, por isto, a relação entre as
transformações dos processos perceptivos e as
transformações em outras atividades
intelectuais é de fundamental importância. As
funções psicológicas superiores como: sensação,
percepção, atenção, memória, pensamento e
linguagem, e a imaginação não formam um
sistema hierárquico no qual a função primordial
é o desenvolvimento do pensamento e a
formação dos conceitos.
São encontradas abordagens que tratam
da relação emocional e afetiva sobre as
possibilidades de uso das TDIC, outras vezes,
buscando a identificação ou autocompreensão
com base em questionários objetivos que não
vislumbram os aspectos sensíveis e
metacognitivos que tal signo evoca no contexto
do ensino/aprendizagem.
Inicialmente, os autores usaram o termo
meta para se referirem apenas à consciência
reflexiva dos processos cognitivos. No entanto,
outros autores foram mais além, como Brown,
Flavell, que também incluíram o controle da
cognição na definição de metacognição. Há
dezenas de estudos sobre metacognição com sua
especificidade, porém, nos últimos anos
surgiram novas propostas metodológicas parao
estudo da metacognição. Vigotsky foi um dos
278
primeiros investigadores a postular a relação
direta entre a consciência dos próprios
processos cognitivos e a capacidade de controlá-
los. Outros autores como Nelson, Narens e
Dunlosky (2004) e Kimball e Metcalfe (2003)
investigaram omonitoramento metacognitivo,
utilizando a técnica de julgamentoda
aprendizagem. Nesse estudo, os autores
analisaram o efeito do julgamento dos alunos na
recuperação do material que foi aprendido. Após
a análise, puderam concluir que a recuperação
dos conhecimentos aprendidos está
intimamente relacionada ao juízo que o
indivíduo faz de sua aprendizagem. Nesse
contexto, a metacognição torna-se de
fundamental importância para qualquer tipo de
aprendizagem. Alguns autores definem a
metacognição como o pensamento sobre o
pensamento. Nesse sentido, poderíamos dizer
que no julgamento do seguimento da
metacognição para o aprendizado escolar, os
alunos aprendem como se aprende. Assim,
compreende-se que a eficácia da aprendizagem
não é dependente apenas da idade e da
experiência, mas também da aquisição de
estratégias cognitivas e metacognitivas que
deem possibilidade ao aluno para planejar seu
desempenho escolar, permitindo conscientizar-
se dos recursos que utiliza para aprender e a
tomar decisões adequadas sobre quais
279
estratégias deverá utilizar em cada tarefa.
Permite também avaliar a sua eficácia,
modificando as estratégias utilizadas quando
não produzem os resultados desejados. Nos
estudos de Flavell, o conhecimento e as
experiências metacognitivas estão interligados
na medida em que o conhecimento permite
interpretar as experiências e agir sobre elas, que
por sua vez contribuem para o desenvolvimento
e a modificação deste conhecimento. Desde a
década de 70, o termo metacognição começou a
ser utilizado no campo da psicologia cognitiva,
da inteligência artificial, das habilidades
humanas, da teoria da aprendizagem social, da
modificação cognitiva do comportamento, do
desenvolvimento da personalidade, da
gerontologia e da educação, ou seja, o termo
metacognição é a cognição sobre a cognição
(FLAVELL, 1999, p. 126). É o processo de
tomada de consciência pelo sujeito de seu
próprio processo de aprender (GRÉGOIRE,
2000, p.161).
Cabe ressaltar que a metodologia, as
experiências antigas e as novas no âmbito da
educação sempre dependerão em maior escala
daqueles que as conduzem. Assim, o professor
deverá estar atento ao seu próprio estado
mental para verificar de onde provêm as
dificuldades que possa encontrar com seus
alunos. Uma maior investigação acerca da
280
temática poderia significar, por exemplo, o início
do desenvolvimento de intervenções voltadas
para o treinamento metacognitivo, visando ao
nível de consciência adquirido. Esse assunto
abrange um campo extremamente vasto. Devido
a isso, ainda são necessárias mais pesquisas que
demonstrem as diferenças entre os conceitos de
Percepção, Sensação, Metacognição e sua
aplicabilidade às possibilidades de abordagens
do signo TDIC.
A sensação e a percepção compreendem
processos biológicos e psicológicos distintos que
nos permitem conhecer a realidade. Todo
conhecimento é construído pelo sujeito e
pressupõe elementos de criatividade pessoal. A
diferença entre a sensação e a percepção é que a
primeira é o processo que acontece durante a
recepção do estímulo. Sua origem pode ser
interna ou externa, transformando-se em
estímulo elétrico, sendo transmitida ao córtex
sensorial correspondente. Compreende
basicamente a atividade dos sentidos e pode ser
frequentemente associada ao processo de
percepção. Já a percepção em si, geralmente,
compreende a interpretação pessoal dada aos
estímulos que nos chegam através dos sentidos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após esta análise sobre os recursos
oferecidos pelas TDIC, eles são capazes de
281
colaborar com o indivíduo que recebe a
informação na construção de conhecimento. A
comunicação e a educação baseadas no uso das
TDIC na concepção da palavra. A interferência
do professor é imprescindível nos momentos em
que o indivíduo não consegue procurar novas
estratégias diante de situações quando é
desafiado. A implantação das TDIC na educação
vai muito além do promover acesso à
informação. Elas devem sempre estar inseridas
e integradas aos processos educacionais,
adicionando as tarefas que o aluno ou o
professor realizam, da mesma forma que ocorre
com a integração das TDIC em outras áreas. No
entanto, para que essas soluções possam ser
implantadas, uma das coisas necessárias é a
reestruturação do tempo do professor para que
ele possa se organizar para estudar, planejar e
dialogar com os alunos, além do tempo e espaço
na sala de aula. Tal mudança estrutural implica
também transformações conceituais, como
repensar o currículo, entender o que significa
aprender e como a escola pode ser geradora, e
não só consumidora, de conhecimento, espaço
de diálogo, solidariedade e convivência com as
diferenças.
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Bezerra, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.
(Trabalho original publicado em 1934).
BIODATA
285
líder do grupo de pesquisa * Neuroeduc - Centro
de Estudos em Neurociências e Educação *
(OCC/UFRJ), no qual coordena a linha de
pesquisa * Novas Mídias, Narratividade e
Ensino. É pesquisador associado do * Núcleo de
Novas Tecnologias e Mídias – NNOTEM *, do
IBCCF/UFRJ e do * Ciências e Cognição - Núcleo
de Divulgação Científica e Ensino de
Neurociências * (CeC-NuDCEN/IBCCF/UFRJ).
Atua, ainda, como analista na Divisão de Ensino
e Pesquisa, da Escola de Administração
Judiciária (DIEPE/ESAJ). Lattes:
http://lattes.cnpq.br/1047823602449101 E-
mail: glaucioaranha@gmail.com
286
e Educação (NEUROEDUC); é membro
permanente das Pós-graduações da UFRJ em
Ciências Biológicas (Biofísica – conceito Capes 7)
e MP-EGeD (conceito Capes 4) e da Pós-
graduação da UFF em Diversidade e Inclusão
(CMPDI - Conceito Capes 4), orientando
mestrado e doutorado. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/0916043592067664 E-
mail: alfredsholl@gmail.com.
287
ESTRATÉGIAS SEMIÓTICAS NO
PROCESSO DE AQUISIÇÃO DA LEITURA
E DA ESCRITA NA PRIMEIRA INFÂNCIA
Giselle Mendes dos Santos
Gláucio Aranha
Alfred Sholl-Franco
INTRODUÇÃO
Recentemente, estamos vivenciando, junto
aos avanços nas áreas científica e tecnológica,
um momento de transição paradigmática com a
reconfiguração das concepções sobre a
alfabetização, considerando não apenas o
processo de ensino da leitura e da escrita, mas
preocupando-se também em investigar o
processo de aprendizagem e os sujeitos
cognoscentes, sobre “quem aprende?” e “como
aprende?”Neste contexto, para buscar garantir a
qualidade do processo educacional da
alfabetização, é fundamental que os professores
adquiram conhecimentos sobre o
desenvolvimento infantil e sobre o processo de
aprendizagem da leitura e da escrita a partir de
uma abordagem interdisciplinar e
transdisciplinar em sua formação. Nesta
perspectiva, este trabalho propõe analisar a
criação e o uso de estratégias semióticas no
processo de alfabetização na primeira infância a
288
partir das contribuições da Psicologia,
Neurociências, Sociolinguística e Semiótica, além
das Ciências da Educação.
CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM E DE
ALFABETIZAÇÃO
Tradicionalmente, a alfabetização vem
sendo compreendida como o processo de
codificação e de decodificação de fonemas e
grafemas do sistema alfabético de escrita. Nesta
perspectiva, é muito comum queo processo de
aprendizagem da leitura e da escrita na primeira
infância se inicie com ênfase na linguagem
oralizada(primeira experiência com a língua) e
nos textos visuais (alfabeto escrito e
ilustrações)com atividades realizadas de forma
fragmentada, descontextualizada, baseada na
repetição e na memorização dos “sons” da fala e
dos sinais gráficos, além do trabalho com
palavras isoladas e frases sem sentido (SMOLKA,
1998). Nesta concepção, a língua é
compreendida como um sistema fechado e
estruturado, regido por regras normativas que
se constituem pelo significado (sentido,
conceito) junto ao significante (imagem
acústica) (SAUSSURE, 1973), no qual os sujeitos
devem se apropriar para usá-lo. A linguagem é
entendida como um código a ser codificado e
decodificado mecanicamente (GERALDI, 1997).
289
Em contraposição a esta visão, o processo
de aprendizagem da leitura e da escrita também
vem sendo concebida em um sentido mais
amplo (ZACCUR, 2011; SAMPAIO e MORAIS,
2011; VYGOTSKY, 1989, 2007, 2009; FREIRE,
1989, 2007, 2011; FERREIRO e TEBEROSKY,
1999), como uma prática sócio-histórico-
cultural e como um campo de conhecimento que
compreende diferentes concepções de
linguagem e de discursos, fundamentadas em
pesquisas científicas e na diversidade de
abordagens teórico-metodológicas (SCHWARTZ
e GONTIJO, 2011, p. 34).A língua, então, é
concebida como um sistema simbólico aberto
que se constitui em fenômeno social, histórico e
cultural nos processos interlocutivos. As
atividades linguísticas devem ser estudadas a
partir da interação verbal e compreendidas
como práticas de expressão do pensamento,
instrumento de comunicação e forma de
interação com o outro e com o mundo
(GERALDI, 1997).
Deste modo, a alfabetização é
compreendida como locus de “comunicação e
expressão de significados mediados pela
linguagem que emerge e se desenvolve nas e
pelas interações sociais” (MARTINS, 1996, p.
159), ou seja, se constitui enquanto processo de
alfabetização semiótica, de introdução da
criança em um universo simbólico que o habilita
290
para a compreensão e produção de textos
culturais que constituem os signos. As práticas
pedagógicas de leitura e de escrita devem, então,
ser concebidas a partir da constituição de
sentidos e na produção/interpretação de
discursos orais e escritos: “a criança aprende a
ouvir, a entender o outro pela leitura; aprende a
falar, a dizer o que quer pela escrita. (Mas esse
aprender significa fazer, usar, praticar,
conhecer).” (SMOLKA, 1998, pp. 62-63).
Ao priorizar somente os aspectos
fonológicos, como na perspectiva tradicional da
alfabetização, se desconsidera a complexidade e
a riqueza da língua e da linguagem: uma palavra
sem significado é apenas um som vazio
(VYGOTSKY, 1989). Os estudos dos sons da fala
(considerado como elementos independentes da
linguagem) descontextualizados de sua conexão
com o pensamento “pouco terá a ver com a sua
função como linguagem humana, na medida em
que não elucida as propriedades físicas e
psicológicas específicas da linguagem falada,
mas apenas as propriedades comuns a todos os
sons existentes na natureza”. Por outro lado, o
estudo apenas dos significados dissociados dos
discursos “resultarão forçosamente num puro
ato de pensamento que se desenvolve e
transforma independentemente do seu veículo
material” (VYGOTSKY, 1989). Como afirma
Geraldi (1997, pp. 16-17),
291
com a linguagem não só representamos o
real e produzimos sentidos, mas
representamos a própria linguagem, o
que permite compreender que não se
domina uma língua pela incorporação de
um conjunto de itens lexicais (o
vocabulário); pela aprendizagem de um
conjunto de regras de estruturação de
enunciados (gramática); pela apreensão
de um conjunto de máximas ou princípios
de como participar de uma conversação
ou de como construir um texto bem
montado sobre determinado tema,
identificados seus interlocutores
possíveis e estabelecidos os objetivos
visados, como partes pertinentes para se
obter a compreensão.
292
fonológica de análise, armazenamento e
produção dos signos sonoros das palavras; os
processadores ortográficos (ou sintáticos) se
referem ao conjunto de habilidades de análise
dos signos gráficos, a manipulação da estrutura
interna das frases e a capacidade de reconhecer
a mudança de significados de sentenças com a
alteração das palavras; os processadores
semânticos se relacionam a consciência dos
significados e dos significantes; e os
processadores contextuais (ou pragmáticos) se
referem a consciência da relação entre os signos
e seus interlocutores no uso comunicativo da
língua, dentro de um contexto social
(GRABOWSKI e DAMASIO, 2000; PURVES, 2004;
MENEGOTTO e KONKIEWITZ, 2010; PICOLLI e
CAMINI, 2012; SILBERT et al., 2014; SHOLL-
FRANCO, 2015; SANTOS, 2017).Neste sentido, a
alfabetização deve desenvolver e estimular a
realização de atividades de consciência
semântica, de consciência ortográfica, de
consciência pragmática, além de atividades de
consciência fonológica.
Ao criticar as atividades tradicionais e
mecânicas de alfabetização, Vygotsky (2007)
considera que a leitura e a escrita não são meros
hábitos de mãos e olhos, desconsiderando a
escrita enquanto linguagem. Ferreiro (2001)
corrobora esta ideia e afirma que a criança não
pode ser concebida apenas como um par de
293
olhos, ouvidos e de mãos que pegam o lápis e o
papel, mas como um sujeito cognoscente e ativo
na construção de seus conhecimentos, que
reflete e cria hipóteses sobre a linguagem
escrita. Para tanto, a criança utiliza diferentes
estratégias para o processo de aprendizagem,
usando os recursos e conhecimentos que dispõe,
indagando, procurando, imitando, inventando,
combinando, narrando, brincando… (SMOLKA,
1998; FERREIRO, 2001; GOULART e
GONÇALVES, s/d). Atividades que Halliday
(1975) denomina de estratégias semióticas,
através das quais as crianças podem imergir no
processo de alfabetização, individualizando a
experiência de produção de sentido e
estabelecendo seus próprios percursos de
interpretação e engajamento como processo.
Tais estratégias podem abrir possibilidades
múltiplas para que a criança ingresse no plano
da expressão e no plano do conteúdo dos signos
alfabéticos que lhe são apresentados.
Vygotsky (1989, 2007, 2009) propõe a
análise do desenvolvimento dos signos na
criança em uma perspectiva sócio-histórico-
cultural. Ao analisarmos este percurso por este
ângulo é possível encontrar pistas que nos
ajudam a compreender a relação entre o
desenvolvimento infantil (evolução
ontogenética) e a trajetória da evolução
histórica e biológica humana (evolução
294
filogenética), traçando entrelaçamentos entre
diferentes áreas do conhecimento.
Vygotsky (1989, 2007, 2009) traça
comparações entre a pré-história da
humanidade com a pré-história da linguagem
escrita, considerando a invenção/aprendizagem
da escrita como o marco fundamental na divisão
entre a Pré-história e a História e no processo de
desenvolvimento na infância. Segundo este
autor, as relações das crianças e dos homens
com o mundo e com o outro são mediadas por
sistemas simbólicos que são estruturados
através das diferentes linguagens. Ao partilhar
estas linguagens, as crianças e os homens se
expressam, se comunicam e interagem entre si,
produzindo cultura.
Neste sentido, para este autor (1989, 2007,
2009), tanto na primeira infância quanto na pré-
história da humanidade emergem os signos
gestuais (a escrita e a narrativa no ar), os signos
verbais (a escrita e a narrativa orais), os objetos
enquanto signos (a escrita e a narrativa com
objetos) e os signos pictóricos (a escrita e a
narrativa com imagens e desenhos). Ao
considerarmos as narrativas como atividades
que envolvem as funções da fala, escuta, leitura
e escrita, bem como as atividades não-verbais,
destacamos que a pré-história e a história se
construiu ao longo dos anos através da
produção e da reprodução de narrativas
295
gestuais, orais, simbólicas, pictóricas e escritas,
individuais ou coletivas, de experiências
vivenciadas ou imaginadas, produzindo e
reproduzindo culturas. Para Vygotsky (1989,
2007, 2009), as atividades que ligam o uso
destes signos à linguagem escrita são os jogos e
as brincadeiras.
Huizinga (2000) analisa as principais
atividades arquetípicas e culturais humanas
relacionando-as com as diferentes linguagens
criadas pelo homem desde o início da História
da humanidade – como a filosofia, a música, a
dança, o esporte e a política –, à criação e
desenvolvimento dos jogos. Na perspectiva de
Huizinga (2000), os textos culturais surgiram do
jogo, a cultura é o jogo. A cultura, portanto, é
narrativa e é brincadeira (enquanto jogo).
Assim, a partir das contribuições de Vygotsky
(1989, 2007, 2009), Huizinga (2000), Wallon
(1968, 1975) e de Piaget (1978, 1986, 2002), é
possível relacionar o desenvolvimento semiótico
na infância e a importância das narrativas, dos
jogos e das brincadeiras para o desenvolvimento
humano e para a aprendizagem do signo escrito.
A LINGUAGEM GESTUAL (A ESCRITA E A
NARRATIVA NO AR COM SIGNOS VISUAIS):
A primeira forma de interação, expressão e
comunicação humana ocorre através dos
sistemas motores e com a percepção de si e do
296
mundo pelo homem/criança. Antes da criação e
do desenvolvimento da fala e da linguagem, os
humanos se comunicam através de gestos e
movimentos. Através da vinculação entre as
atividades corporais e as atividades mentais, o
homem/criança realiza a descoberta de que os
gestos se constituem em signos e que podem
representar ideias, ações, emoções, etc.
Na perspectiva piagetiana (PIAGET, 1978,
1986), a linguagem gestual é uma das principais
características da transição entre o estágio
sensório-motor – caracterizado pela interação e
comunicação com o mundo através dos
movimentos e dos jogos de exercício – e o estágio
pré-operatório, que se inicia por volta dos 2
anos de idade com a aprendizagem da
linguagem oral. Piaget (1978, 1986) define esses
exercícios de repetir os gestos pelo prazer
(como dar tchau e apontar) como jogos de
exercícios que vão se integrando a oralidade e às
primeiras palavras e orações. Já Wallon (1968,
pp. 75-76) denomina de jogos funcionais essas
atividades motoras à procura de efeitos, como o
balançar objetos ou o estender e dobrar os
braços ou as pernas.
A LINGUAGEM ORAL (A ESCRITA E A
NARRATIVA COM A FALA):
Com o aparecimento da linguagem oral, o
homem/criança é capaz de expressar não
297
apenas ideias e desejos do momento presente,
mas também de reconstituir ações passadas em
narrativas e antecipar ações através de
representações mentais (PIAGET, 2003). Nesta
etapa, o indivíduo observa, escuta e procura
perceber e compreender os objetos, seres, cenas,
imagens, contos, canções, etc. – ações que
compõem os jogos de aquisição, segundo Wallon
(1968, p. 75-76).
Do ponto de vista neurobiológico, a
linguagem verbal é antecedida pela linguagem
não-verbal e não-simbólica dos gestos,
brincadeiras, imitações e posturas, das
narrativas no ar, com predominância das
atividades cerebrais no hemisfério direito;
enquanto o hemisfério esquerdo é responsável
pelas atividades linguísticas e simbólicas, das
narrativas com a fala (FREITAS, 2006, p. 95).
A LINGUAGEM SIMBÓLICA (A ESCRITA E A
NARRATIVA COM OBJETOS):
Nessa fase, o homem/criança utiliza
objetos com função de signo e a possibilidade de
executar um gesto representativo com eles. Para
Piaget (1978, 1986) essa linguagem simbólica
desenvolvida no estágio pré-operatório é
constituída pelos jogos simbólicos com a
utilização da função semiótica, na qual a criança
é capaz de substituir um objeto ou
acontecimento por uma representação ou
298
simulação. Wallon (1968, p. 75-76) define como
jogos de ficção essas atividades com
interpretações mais complexas, como brincar
com uma boneca ou montar um pau como se
fosse um cavalo. Para Vygotsky (2007, p. 130)“o
brinquedo simbólico das crianças pode ser
entendido como um sistema muito complexo de
‘fala’ através de gestos que comunicam e
indicam os significados dos objetos usados para
brincar.”, pois “É somente na base desses gestos
indicativos que esses objetos adquirem,
gradualmente, seu significado – assim como o
desenho que, de início apoiado por gestos,
transforma-se num signo independente”
(VYGOTSKY, 2007, p. 130).
Durante a transição dos estágios pré-
operatório e operatório concreto, por volta dos
6 e 7 anos de idade, Piaget (1978, 1986)
descreve também os jogos de construção e os
jogos de regra. Os jogos de construção (ou jogos
de fabricação, segundo Wallon [1968]) são
definidos como uma categoria transitória entre
o jogo simbólico e as atividades lúdicas ou
adaptações ‘sérias’, no princípio, permeados de
simbolismo lúdico e que começam a se
constituir como adaptações (construções
mecânicas, etc.) ou soluções de problemas e
criações inteligentes com o passar do tempo. Já
os jogos de regras são transmitidos socialmente
e caracterizam o declínio do egocentrismo
299
infantil começando a surgir os jogos em grupos e
com regras como forma de organização coletiva
(WALLON, 1968).
A LINGUAGEM PICTÓRICA (A ESCRITA E A
NARRATIVA COM IMAGENS E DESENHOS):
Desenhar é uma atividade criadora típica
da primeira infância que possibilita a expressão
e a comunicação de ideias, sentimentos, desejos,
medos, etc. Para Vygotsky (2009, p. 93), o
desenho se relaciona com as atividades motoras
e a linguagem gestual nos rabiscos e garatujas
das crianças quando elas experimentam os
materiais artísticos e as sensações que
proporcionam; é associado também à linguagem
verbal e à linguagem simbólica, pois a criança
“desenha e ao mesmo tempo narra a respeito do
que desenha (...), dramatiza e compõe um texto
verbal no seu papel.”. Assim, a brincadeira é o
estágio preparatório para a criação artística da
criança: brincando de desenhar o
homem/criança descobre que pode representar
objetos e pessoas e também a fala – “Foi essa
descoberta, e somente ela, que levou a
humanidade ao brilhante método da escrita por
letras e frases; a mesma descoberta conduz as
crianças à escrita literal” (VYGOTSKY, 2007, p.
140-141).
300
A LINGUAGEM ESCRITA (A ESCRITA E A
NARRATIVA COM SIGNOS ESCRITOS):
Para Vygotsky (1989, 2007, 2009), Wallon
(1968, 1975) e Piaget (1978, 1986, 2002) os
jogos e as brincadeiras são considerados como
os meios pelos quais as crianças adquirem a
capacidade de representação e simbolização
junto com o desenvolvimento das linguagens
gestuais, orais e pictóricas. Estes são processos
essenciais para a criação e aprendizagem dos
signos escritos:
301
etimológicas em diversos idiomas, o autor
conclui que o termo de maior abrangência é a
latina: ludus. Na língua portuguesa originou o
termo “lúdico” ou “ludicidade” e remete tanto
aos jogos infantis e recreações quanto às
competições, representações litúrgicas e
teatrais, além dos jogos de azar.
A partir da produção e da reprodução das
histórias destas atividades arquetípicas dos
homens no cotidiano foi possível preservar as
experiências vividas e imaginadas, individuais e
coletivas da humanidade, criando e recriando
tradições e culturas ao longo da História: “a arte
de narrar sempre esteve mergulhada nas artes
da memória e da repetição. É esta a repetição
que, desde tempos bem remotos, tem garantido
a preservação do vivido e do contado, das
experiências coletivas e individuais, da cultura
dos povos” (MORAIS, 2002, p. 82) seja por
signos orais, gestuais, simbólicos, pictóricos ou
escritos. Assim também as crianças procuram a
repetição de brincadeiras e narrativas,
preservando as experiências individuais e
coletivas que vivenciaram, aprendendo e
produzindo cultura.
Ao atribuir significados, ideias, conceitos,
emoções ou informações às experiências que
vivem com o meio interno e externo, as crianças
constroem pontos de ancoragem entre o que já
sabem e a aquisição de novas aprendizagens
302
significativas (AUSUBEL, 2000, p. 03). A base
orgânica desse processo é a plasticidade
cerebral que permite a modificação das
estruturas cerebrais a partir de diferentes
influências: quando os estímulos são
suficientemente fortes ou frequentemente
repetidos, nosso cérebro conserva as marcas
dessas modificações, conserva nossas
experiências anteriores, facilitando, assim, a
aprendizagem e a reprodução (SHOLL-FRANCO
et al., 2012).
Assim, a repetição de narrativas e
brincadeiras realizadas pelas crianças é uma
atividade reconstituidora de suas experiências e
relaciona-se intimamente às suas memórias: a
conservação das experiências anteriores tem um
enorme significado para a vida do homem, pois
possibilita criar e elaborar hábitos permanentes
que se repetem em condições semelhantes,
facilitando a adaptação ao mundo (VYGOTSKY,
2009). Nossas atividades criadoras se apoiam
em experiências que vivenciamos, mas também
podem ser baseadas em experiências de outrem.
Alicerçados na narração de outra pessoa,
podemos imaginar o que nunca vimos, o que
nunca vivenciamos diretamente:
303
humano. Ela transforma-se em meio de
ampliação da experiência de um
indivíduo (...). A pessoa não se restringe
ao círculo e a limites estreitos de sua
própria experiência, mas pode aventurar-
se para além deles, assimilando, com a
ajuda da imaginação, a experiência
histórica ou social alheia. Assim
configurada, a imaginação é uma
condição totalmente necessária para
quase toda atividade mental humana
(VYGOTSKY, 2009, p. 25).
304
experiências que viveram, viram, ouviram ou
imaginaram...Por isso, um ambiente rico em
estímulos é imprescindível para o
desenvolvimento e aprendizado das crianças,
pois:
(...) a atividade criadora da imaginação
depende diretamente da riqueza e da
diversidade da experiência anterior da
pessoa, porque essa experiência constitui
o material com que se criam as
construções da fantasia. Quanto mais rica
a experiência da pessoa, mais material
está disponível para a imaginação dela
(VYGOTSKY, 2009, p. 22).
305
crianças. Infelizmente, nossas escolas ainda
ensinam sílabas e palavras isoladas, frases e
textos sem sentido, não trabalhando o “fluir do
significado”, a estruturação do discurso interior
pela escritura (SMOLKA, 1998, p. 60):
o processo de elaboração mental da
criança na construção do conhecimento
sobre a escrita, que inicialmente passa
pela linguagem falada, fica terrivelmente
dificultado porque a escrita apresentada
na escola é completamente distanciada
da fala das crianças, e, na maioria das
vezes, é o que não se pensa, o que não se
fala.
306
PURVES et al., 2004; FRIEDERICI e ALTER, 2004;
DEHAENE-LAMBERTZ et al., 2006; FREITAS,
2006; MENEGOTTO e KONKIEWITZ, 2010; EDIR
et al., 2013; SILBERT et al., 2014).
Neste sentido, é possível compreender a
alfabetização para além da codificação e
decodificação da escrita. As crianças não apenas
memorizam os fonemas e grafemas e realizam
atividades de cópia e repetição, as crianças
processam e elaboram o conhecimento da
leitura e da escrita dinamicamente, em um
processo discursivo de interação e interlocução
(para quem eu escrevo?). A escrita aqui não é
compreendida apenas como um sistema, mas
como linguagem – enquanto atividade
significativa criadora, constituidora e
transformadora de diferentes conhecimentos.
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BIODATA
Giselle Mendes dos Santos é Mestre em
Diversidade e Inclusão (UFF). É
Professora I e Pedagoga da Fundação Pública
Municipal de Educação de Niterói. Membro do
Centro de Estudos em Neurociências e Educação
(NEUROEDUC/UFRJ. Coordenadora do Módulo
de Linguagem e Narrativas, da Organização
Ciências e Cognição - Núcleo de Divulgação
Científica e Ensino de Neurociências (CeC-
NuDCEN) e do Museu Itinerante de
Neurociências (MIN/Cec-NuDCEN).Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8516658253505289 E-
mail: Giselle.m.santos@hotmail.com
314
Glaucio Aranha é doutor em Letras (área:
Literatura Comparada) (UFF). É pesquisador-
líder do grupo de pesquisa *Neuroeduc - Centro
de Estudos em Neurociências e Educação*
(OCC/UFRJ), no qual coordena da linha de
pesquisa *Novas Mídias, Narratividade e Ensino.
É pesquisador associado do *Núcleo de Novas
Tecnologias e Mídias – NNOTEM*, do
IBCCF/UFRJ, e do *Ciências e Cognição - Núcleo
de Divulgação Científica e Ensino de
Neurociências* (CeC-NuDCEN/IBCCF/UFRJ).
Atua, ainda, como analista na Divisão de Ensino
e Pesquisa, da Escola de Administração
Judiciária (DIEPE/ESAJ). Lattes:
http://lattes.cnpq.br/1047823602449101 E-
mail: glaucioaranha@gmail.com
315
aprendizado, narrativa, artes e inclusão.
Coordena o Centro de Estudos em Neurociências
e Educação (NEUROEDUC). É membro
permanente das Pós-Graduações da UFRJ em
Ciências Biológicas (Biofísica – conceito Capes 7)
e MP-EGeD (conceito Capes 4) e da Pós-
Graduação da UFF em Diversidade e Inclusão
(CMPDI – Conceito Capes 4), orientando
mestrado e doutorado. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/0916043592067664 E-
mail: alfredsholl@gmail.com.
316
A ANÁLISE SEMIÓTICA DA
ESTIMULAÇÃO ATRAVÉS DA MÚSICA E
MOVIMENTO EM CRIANÇAS COM
MÚLTIPLAS DEFICIÊNCIAS
317
particularidades em sua fisiopatologia (SÁ;
CARDOSO; JUCÁ, 2016).
A Síndrome de Down é uma condição
genética, por uma alteração cromossômica,
denominada também como trissomia 21.
Determina características físicas específicas,
atraso no desenvolvimento psicomotor,
alteração no ganho pondero-estatural e
deficiência intelectual (BRASIL, 2013a). A
Paralisia Cerebral se caracteriza por
anormalidades no desenvolvimento cerebral
fetal ou infantil de caráter não progressivo, que
se apresentam através de desordens motoras e
posturais, limitando suas funcionalidades. Pode
ocorrer por diversas condições que podem
ocorrer nos períodos pré-natal, perinatal e pós-
natal. Crianças com paralisia cerebral
apresentam alterações no tônus muscular e,
consequentemente, movimentos atípicos.
Podem apresentar ainda distúrbios sensoriais,
perceptivos e cognitivos associados (BRASIL,
2013b). A Síndrome Congênita do Vírus Zica é
uma condição que vem acometendo bebês cujas
mães foram infectadas pelo vírus Zica, que
possui um grande fator teratogênico, pois
interfere no desenvolvimento cerebral do feto.
Possui gravidade variável com sintomatologia
diversa, apresentando como característica
predominante a microcefalia. Em seu curso
sindrômico, pode apresentar artrogripose,
318
malformação da coluna vertebral,
ventriculomegalia, microcalcificações no tecido
neurológico cerebral, hipotrofia cortical e
malformações oculares (BRASIL,2017; SÁ;
CARDOSO; JUCÁ, 2016).
Todas estas condições que acometem essas
crianças podem ser minimizadas através de um
trabalho de estimulação sensorial e motora, pois
através dele ocorre a estimulação das
capacidades sensoriais e motoras. Desta forma, é
responsável por diminuir ou prevenir instalação
de padrões posturais anormais e proporcionar
um desenvolvimento sensório-motor mais
próximo do esperado, mantendo sua
funcionalidade, integração com o meio social e
qualidade de vida (BRACCIALLI et al, 2015;
NORBERT et al, 2016). As crianças com
múltiplas deficiências possuem atraso nos
principais marcos do desenvolvimento motor, e
estes problemas podem ser minimizados
através da intervenção com a estimulação
(MATTOS; BELLANI, 2010). A estimulação
realizada nos primeiros anos de vida possui
efeitos de maior intensidade pelos efeitos da
neuroplasticidade devido ao intenso
desenvolvimento e maturação cerebral. Para
adquirir funcionalidade, são recrutadas
diferentes áreas do sistema nervoso, que são
responsáveis pela aquisição de competências
físicas, cognitivas e psicológicas. Neste sentido, é
319
necessário priorizar o desenvolvimento de áreas
primárias sensório-motoras. A
neuroplasticidade é ação dependente, que
ocorre através de um processo dinâmico, que
proporciona ao cérebro uma constante
reorganização estrutural e funcional do sistema
nervoso, ocorrendo através de estímulos
sensoriais, motores e perceptuais. Através
destes estímulos, há a contextualização da ação,
que permite posteriormente a sua execução,
promovendo suas práxis (DE PINHO BORELLA;
SACCHELLI, 2009; SÁ; CARDOSO; JUCÁ, 2016;
FLORINDO; PEDRO, 2014). Segundo De Pinho
Borella e Sacchelli (2009, p.162), a
neuroplasticidade é a “capacidade de adaptação
do sistema nervoso, especialmente a dos
neurônios, às mudanças nas condições do
ambiente que ocorrem no dia a dia da vida dos
indivíduos”. Assim, uma intervenção precoce
pode levar a harmonia do desenvolvimento de
forma global, em suas valências motoras,
sensoriais, perceptivas, proprioceptivas,
linguísticas, cognitiva, emocional e social,
ocorrendo devido aos estímulos provocados que
ocorrem (SÁ; CARDOSO; JUCÁ, 2016).
A música se institui como excelente
ferramenta neste tipo de estimulação. De acordo
com Storolli (2014), a música se organiza
através do sistema sensório-motor, gerando um
processo criativo e semiótico através de atos
320
motores a partir do movimento e do
desenvolvimento da consciência corporal.
Utiliza o corpo como ferramenta para
comunicar-se formando uma interação mente-
corpo, indissociável. Esta motricidade que se
desenvolve nos processos de estimulação,
partindo desde os movimentos reflexos,
passando pelos involuntários até o movimento
voluntário e suas práxis, é uma forma de
linguagem não verbal que a criança utiliza em
sua relação com o outro e com o mundo que a
cerca, na cultura em que está inserido. Desta
forma, surge a função semiótica onde a
linguagem se dá pela motricidade, em primeira
instância (KOLYNIAC FILHO, 2010). De acordo
com os estudos semióticos de Yuri Lotman, a
semiótica cognitiva leva em consideração a
capacidade perceptiva, construindo um sistema
de signos através da modelização. Nesta
perspectiva, o processamento das informações
através da percepção dos signos se dá pelo
sistema modelizante secundário que interpreta
e cria suas próprias significações para os signos
percebidos por aquela linguagem (VELHO,
2009).
A experiência musical gera uma
percepção não palpável, levando a abstração.
Neste sentido, a linguagem musical se
materializa através do corpo pelo movimento,
alcançando uma motricidade codificada em
321
comunicação não verbal. Os estímulos sensoriais
e motores que são proporcionados se
confundem ao interno e externo, incorporando
forma e sentido, com experiências que se
projetam em diversas formas de interação com
os signos representados e interpretados. Esta
relação semiótica ocorre através da semiose na
semiosfera, que é o local onde ocorre a tradução
de experiências em signos (NOGUEIRA, 2016;
VELHO, 2009).
Figura 1: A Semiose
322
linguagens motoras onde a música se
materializa através das estimulações sensoriais
e motoras proporcionadas pelas atividades
musicais e os efeitos no desenvolvimento
neuropsicomotor das crianças com Múltiplas
Deficiências, o qual é utilizado quando há a
ocorrência de duas ou mais deficiências
associadas na criança. Porém,
independentemente de suas condições físicas,
estas são pessoas únicas, que apresentam
dificuldades que podem ser superadas ou então
minimizadas. São capazes de interagir e se
desenvolver naturalmente, percorrendo
caminhos diferentes (BRASIL, 2006). Assim, a
estimulação sensório-motora tem como base o
desenvolvimento motor adequado para a idade
da criança, fornecendo meios de potencializar,
normalizar e facilitar o desenvolvimento
sensório-motor, auxiliando-a a alcançar as
habilidades específicas conforme sua idade
cronológica, tornando-as mais independentes e
inseridas socialmente. Desta forma ocorrerá
uma melhor adaptação ao seu meio cultural
(MATTOS; BELLANI, 2010; PERIN, 2010).A
semiótica da cultura de Yuri Lotman levou ao
entendimento da semiótica em sua
complexidade, desconstruindo a visão limitada
do signo como uma unidade isolada. Vem para
compreender os textos da cultura de forma
dinâmica através dos sistemas modelizantes,
323
fomentando o método semiótico-estrutural, que
deixa de se restringir ao organismo para
direcionar o foco para a semiose modelizante
dos sistemas em ambientes de cultura. A partir
deste movimento de semiose, surge o estudo da
semiosfera (Figura1). Neste sentido, a
linguagem confere uma característica de
organização de outros sistemas culturais,
conferindo estruturalidade, em uma abordagem
dialético-funcional (MACHADO, 2013a). A
linguagem da música e do movimento é
composta por um sistema de signos, inseridos
na cultura que pode ser interpretado de
diferentes formas pelo indivíduo. A partir da
análise semiótica destes signos, tendo como
referência o sistema modelizante secundário
leva ao entendimento das interpretações e
significações que a linguagem musical
proporciona, aliada ao movimento em sua
construção. Esta construção é dada na
semiosfera, onde ocorre a semiose, local onde as
linguagens interagem e se influenciam
mutuamente, levando em conta as experiências
anteriores que fazem parte da cultura no meio
social onde está inserido, como um processo
dinâmico (MACHADO, 2013b).
Desde muito cedo, a criança tem contato
com a música, a qual está inserida em diversas
situações da vida diária. As atividades com
música despertam, estimulam, e desenvolvem a
324
criança, integrando experiências com sua
vivência, percepção e reflexão. A música, neste
contexto, é uma forma de linguagem e forma de
conhecimento. Possui estreita relação com as
demais linguagens expressivas como
movimento, expressão, artes visuais, etc). Desta
forma, a linguagem musical é capaz de
desenvolver a expressão, equilíbrio, autoestima
e autoconhecimento, além de ser um excelente
integrador social (BRASIL, 1998).
A música exerce papel fundamental nos
estímulos sensoriais, levando as respostas
motoras, produzindo uma linguagem de
movimento, a qual se comunica com o meio
externo, interagindo socialmente. Os estímulos,
por sua vez, proporcionam aos indivíduos
experiências sensoriais e corporais, levando a
uma práxis e novos padrões de pensamentos e
movimentos, através de um sistema dinâmico. A
Teoria dos Sistemas Dinâmicos explica que, para
que surjam novos comportamentos, é necessária
uma auto-organização que se origina de
perturbações do sistema, destituindo-se de
formas antigas de funcionamento para
surgimento de novas formas. A performance
musical gera estados que sempre dependem dos
eventos passados e futuros para adquirir
significados. A partir deste princípio, a música é
capaz de promover a auto-organização, visto
que é composta de elementos condicionantes,
325
em uma interação causal. As múltiplas
deficiências ocasionam, devido suas
particularidades patológicas, um déficit no
processamento sensorial e no desenvolvimento
de habilidades motoras, cognitivas e sociais,
levando a uma alteração no processamento da
linguagem nos vários níveis de percepções
(GONÇALVES; GONÇALVEZ; JUNIOR, 1995;
OLIVEIRA, 2012).
Estudos neurocientíficos dos efeitos da
música no desenvolvimento cerebral
evidenciam que a música é processada no
cérebro e é capaz de aumentar sua rede neural,
com a utilização dos dois hemisférios cerebrais,
o que pode afetar seu funcionamento. Isto
ocorre devido o desenvolvimento de habilidades
multimodais, como funções cognitivas,
habilidades expressivas e emocionais,
linguagem corporal e simbólica (ILLARI, 2014;
MUSKAT, 2012). Nesse sentido, a estimulação
pela música atua juntamente com a
neuroplasticidade, mais acentuada na primeira
infância, onde há adaptação do sistema nervoso
aos eventos que ocorrem no ambiente. A
plasticidade cerebral ocorrerá reorganizando a
atividade neural e sua estrutura, facilitando a
recuperação da função ou readaptação para
função. A prática de atividades motoras e de
aprendizagem pode alterar comunicações
sinápticas ou reduzir eventos moleculares, o que
326
faz da neuroplasticidade atividade-dependente
(DE PINHO BORELLA; SACCHELLI, 2009). A
estimulação com a música é capaz de atuar em
um conjunto de estímulos intrínsecos e
extrínsecos sensório-motores do qual a
neuroplasticidade depende para ocorrer, devido
à sua característica de variabilidade de
experiências. Através dos mecanismos plásticos,
ocorre uma evolução da parte motora, cognitiva,
percepção, interpretação, interação e
organização mental, ocorrendo antes mesmo do
ato motor propriamente dito, ocasionando uma
aquisição mais efetiva de suas potencialidades
(MATTOS; BELLANI, 2010).
Segundo Ilari (2014), as atividades
musicais com instrumentos e canto são capazes
de ativar sistemas de linguagem, memória,
ordenação sequencial, orientação espacial e
desempenho motor além de desenvolver o
sistema de pensamento social. Ao se estimular
os aspectos sensoriais e motores, dentro da
perspectiva semiótica, a criança gera uma
expressão corporal própria, através da produção
de signos e relações interpretantes. Esta
expressão corporal se traduz como mensagem
gestual, ocorrendo a sua comunicação com a
produção de significados/sentidos através de
gestos (GOMES-DA-SILVA; SANT’AGOSTINO;
BETTI, 2005). A partir deste princípio, a
movimentação desenvolvida pelo estímulo
327
musical, se torna sua forma de comunicação,
através de linguagem específica, inserida na
cultura em sua forma simbólica fornecendo à
criança a construção da sua corporeidade.
Ocorre então a construção da relação da criança
com o mundo, pois a ação de movimento traz
para si a percepção e a compreensão do mundo
pela ação (BETTI, 2008).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise semiótica de cunho cognitivista
vem contribuir para elucidar a estrutura de
signos e significados, de processamento mental
e do processo de desenvolvimento motor,
cognitivo e afetivo a partir da modelização
secundária, através de uma intervenção pautada
na estimulação motora e sensorial, utilizando os
elementos musicais como fonte de linguagem
acessível e integradora para as crianças com
múltiplas deficiências. Desta forma, a
estimulação através da música auxiliaria, pela
geração de novos signos, na construção de novos
conceitos pela criança, em termos de repertório
e interpretação, agindo de forma integral, em
seus contextos físico-motor, cognitivo e sócio-
emocional. A proposta de unir a música como
ferramenta de estimulação consiste em utilizar
os princípios que norteiam o processo musical
(do ponto de vista neurocientífico) e seus efeitos
328
na motricidade, cognição, linguagem, aspectos
sociais e afetivos.
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AMBIÊNCIAS MULTILÍNGUES DE
ENSINO: RECORTES SEMIÓTICOS E
SEMIOSES NAS RELAÇÕES DE SURDOS
E OUVINTES
Nayla Schenka Ribeiro
Alfred Sholl-Franco
INTRODUÇÃO
Sob uma perspectiva interdisciplinar,
transversal, multifocal, a inclusão de alunos
surdos na mesma sala de aula com alunos
ouvintes, no ensino regular de inglês,
desencadeia reflexões críticas e
questionamentos importantes relacionados a
fenômenos linguísticos, socioculturais,
cognitivos, dentre outros não menos
importantes, que se ampliam e se modificam
durante o processo ensino-aprendizagem.
Nessa ambiência, os sujeitos
participantes – alunos, professores, intérpretes,
suas escolhas individuais e coletivas, suas
relações de colaboração, cooperação e gestão de
conhecimento de si mesmos, do mundo, dos
outros – criam prismas de interpretação
peculiares, indefiníveis, atemporais, mas muito
significativos, na medida em que suas
experiências são observadas nas distintas
334
formas de comunicação das quais se utilizam, no
resultado de suas aprendizagens e nas
mudanças ocorridas no circuito global de ações
e interações, potencializando talentos e
inovações, ou não. Em todo processo há
consequências, portanto, é preciso avaliá-las
para trazer novos sentidos às ações
educacionais.
À luz de estudos semióticos e
neurocientíficos, a participação simultânea de
alunos surdos e ouvintes no ensino de inglês
dimensiona, cada vez mais, os desafios e as
formalidades de um percurso dinâmico de
ensino-aprendizagem no entendimento de
signos e significados, na interpretação e
produção de sentidos, no entrelaçamento de
culturas e identidades diferenciadas na sala de
aula. Nessa ambiência, delineada pela linguagem
multifacetada de comunicação, há tensões
criadas por mitos e crenças que devem ser
abolidos, despertando a consciência e a
percepção dos indivíduos em torno de si
mesmos e de sua coletividade, eliminando o
senso comum predominante na rotina das
escolas tradicionais que continuam criando
resistências, frustrações, fracassos.
A apreensão e construção de
conhecimento, permeando aprendizados
graduais e permanentes ao longo da vida, diante
da fluidez silenciada das relações sociais e
335
trocas de experiências entre pessoas de
universos simbólicos e representações
diferentes (surdos e ouvintes) e de posições e
atuações distintas (gestores, professores,
intérpretes) precisam ser analisadas,
proporcionando mudanças eficazes no ensino e
na educação. Nesse sentido, estudos
fundamentados pelas ciências cognitivas
contribuem no entendimento de fenômenos
linguísticos, prosódicos, imagéticos, de tradução
de signos verbais e não-verbais, dentre outros
fatores que constituem os sujeitos, suas
diferenças, formas de aprendizagem e de
comunicação.
Nessa direção, evidencia-se o papel das
funções executivas atuantes na resolução de
problemas; no desenvolvimento de autonomia,
de pensamento crítico; no exercício de
criatividade; no gerenciamento e autorregulação
de pensamento, emoção, ação no contexto
circunstancial das interações humanas, das
abordagens pedagógicas, das escolhas e utilização de
recursos e materiais, entre outros aspectos. Este
capítulo, portanto, busca refletir sobre o ensino
tradicional de inglês focado no desenvolvimento das
quatro habilidades (ouvir, falar, ler, escrever)
utilizando, predominantemente, a comunicação
verbal na aplicação de conteúdos programáticos
presos à rigidez de currículos escolares, sem
explorar a rica complexidade de semioses
336
manifestadas na dicotomia das línguas que
circundam o processo com a inclusão de alunos
surdos: português-inglês; português-língua
brasileira de sinais (Libras); inglês-língua
americana de sinais (ASL).
337
“a semiótica examina o potencial comunicativo
dos signos, por meio do que o homem interage
com o mundo, com seus iguais e consigo
mesmo”. Por sua vez, Correia (2013),
reconhecendo a importância da Semiótica
integrada às Ciências Cognitivas, reforça que “a
compreensão do que é o pensamento, de quais
são as formas de relacionamento com a
experiência dependem, principalmente, do
entendimento do que é o signo e de sua função
semiótica” (CORREIA, 2013, p. 55-56).
Reitera-se que nas interações entre os
participantes em sala de aula se encontra o ser
social, histórico, cultural em seu arcabouço
biológico, intelectual, que verbaliza seu
pensamento de acordo com as possibilidades
proporcionadas em sua existência ou com o
resultado de escolhas pessoais. Afirma Vygotsky
(1989, p.44) que o “pensamento verbal não é
uma forma de comportamento natural e inata,
mas é determinado por um processo histórico-
cultural e tem propriedades e leis específicas”.
Nesse circuito, a forma simbólica do
pensamento reflete a compreensão de um signo,
impregnado de sentido, que se torna palavra,
criando-se conceitos. Por outro lado, Bizzocchi
(2001, p.34) salienta que ao usarmos “uma
infinidade de outros signos, esses elementos
constitutivos da significação seriam os
responsáveis por encontrarmos sentido em
338
imagens, sons, cheiros, gestos, símbolos
matemáticos, sinais de trânsito etc”.
De acordo com Saussure (2001), a
relação entre significante e significado nos
signos remete a conteúdos ou a representações.
Logo, é importante destacar as relações entre
emissor e receptor que processam uma
mensagem por um canal de comunicação,
captando signos para a compreensão de códigos
estabelecidos. Nesse contexto, as subjetividades
e identidades culturais influenciam na
interpretação de textos.
Para ilustrar o sentido de textos, a Base
Comum Curricular Nacional (2016) os descreve
como
Unidades complexas, plurissemióticas,
não se restringindo, portanto,
exclusivamente à modalidade escrita ou
oral. Ao interagirem por meio de textos,
em linguagens variadas, os sujeitos, ao
mesmo tempo em que constroem
sentidos, significam a si próprios e ao
mundo que os rodeia, construindo
subjetividades e relações com o outro
(MEC, 2016, p.120)
339
para a origem do homem (ontogênese) e, a
partir daí, evolui para a microgênese (origem do
indivíduo único). Sob o foco da ciência do
desenvolvimento humano, Magnusson e Cairns
(1996) também destacam o processo contínuo
de interação do indivíduo com o ambiente,
pessoas, cultura e sociedade, não só recebendo
influências, mas também influenciando, ao longo
do tempo, o circuito pessoal “cognitivo,
emocional, fisiológico, morfológico, conceitual e
neurobiológico” (MAGNUSSON e CAIRNS, 1996
apud DESSEN e GUEDEA, 2005). Nesse sentido,
dentro de um processo ensino-aprendizagem, é
necessário desenvolver metodologias
apropriadas, recursos e instrumentos que
facilitem o aprendizado e o desenvolvimento da
inteligência – um organismo dinâmico em
permanente evolução.
No campo da Semiótica encontra-se apoio
teórico para entender o universo de significação,
o processamento de informações percebidas e
sua transformação em signos pelos sujeitos da
aprendizagem, carregados de símbolos,
semioses, fenômenos culturais. Santaella (1999,
p.2) descreve Semiótica como uma ciência que
investiga “todas as linguagens possíveis” e
examina os “modos de constituição de todo e
qualquer fenômeno como fenômeno de
produção de significação e de sentido”. Por
outro lado, o termo semiose, introduzido pelo
340
filósofo e matemático norte-americano Charles
Sanders Peirce (1839-1914), engloba o circuito
de como utilizamos um signo, seu objeto eo
interpretamos. Para Peirce (1995),
341
realidade que percebemos, são mentalmente
analisados e decompostos naquilo que pode ser
chamado de ‘partículas elementares da
significação” (BIZZOCCHI, 2001, p.36).
Nesse cenário, é preciso reconhecer
déficits totais ou parciais de percepção sensorial
dos indivíduos, como a surdez, por exemplo,
pois se tornam elementos essenciais, carregados
de significados reais, propulsores de
desenvolvimento psíquico e da personalidade
desses sujeitos. Dessa forma, tornam-se pontos
de partida para resultados positivos, tendo em
vista que também as deficiências desencadeiam
superação e compensação com outras funções
do organismo. Sob essa perspectiva, ressalta-se
que “as mais sérias deficiências podem ser
compensadas com o ensino apropriado, pois o
aprendizado adequadamente organizado resulta
em desenvolvimento mental” (VYGOTSKY, 1989
apud COSTA, 2006).
Concorrendo para o entendimento dessas
questões, torna-se essencial o conhecimento das
neurociências e seu caráter multidisciplinar, o
estudo do sistema nervoso, das funções
executivas e o efeito que causam durante o
processo ensino-aprendizagem, considerando:
manifestações linguísticas distintas; resolução
de problemas na interpretação de semioses;
desenvolvimento de autonomia e pensamento
crítico; exercício de criatividade; o
342
gerenciamento e autorregulação do
pensamento, da emoção, da ação no contexto
circunstancial das interações humanas, das
abordagens pedagógicas, das escolhas e
utilização de recursos e materiais.
Sobre função executiva, Carvalho (2012, p.
95) registra que o termo FE
343
diversos campos e áreas, nota-se que o ensino
de inglês parece cristalizado, preso a conceitos e
metodologias tradicionais. Em se tratando da
inclusão de alunos surdos e ouvintes no mesmo
ambiente de ensino, ainda se propõe o
desenvolvimento das quatro habilidades (ouvir,
falar, ler, escrever) utilizando-se: oralidade
como meio de comunicação; aulas expositivas;
livros e materiais didáticos preparados
por/para uma cultura oral-auditiva; programas
curriculares rígidos, entre outras práticas
pedagógicas, desconsiderando especificidades e
diferenças. A partir daí, observa-se uma
concepção fragmentada de ensino e de
educação, que exclui possibilidades de se
conceber um aprendiz participante ativo,
produtor de conhecimento, capaz de
ressignificar o ambiente escolar com sua visão
particular de ver e sentir, interagindo com os
colegas, contribuindo para novas aprendizagens.
É preciso esclarecer que, para a
comunicação oral, a primeira língua do surdo é a
língua brasileira de sinais (Libras), pois se trata
de sua língua natural, sendo a língua portuguesa
sua segunda língua na modalidade escrita. Nesse
sentido, ele inicia, no ensino regular, o
aprendizado de uma terceira língua. Entretanto,
para o aluno ouvinte, a língua inglesa é
introduzida como uma segunda língua. Nesse
processo, problematiza-se a exigência e a
344
participação de um intérprete de Libras sem
conhecimentos específicos da língua inglesa e de
um professor de inglês que não sabe se
comunicar em Libras.
A partir daí, indaga-se: de que forma o
professor ministraria sua aula para todos os
alunos – ouvintes e surdos – ao mesmo tempo?
Que língua escolheria para validar a sua
interação e a do intérprete com o aluno surdo? A
que tipo (s) de exposição linguística estaria
sujeito esse aluno? A quais tipos de avaliação
estaria exposto?
Questionam-se, ainda, práticas como
traduzir mensagens, composições musicais,
provérbios, ditados populares, carregados de
elementos culturais e metafóricos, tanto em
português quanto em inglês, bem como a não
utilização de uma língua de sinais equivalente ao
inglês, como a língua americana de sinais (ASL).
Nesse cenário, ainda indaga-se como são
analisadas e avaliadas estruturas linguísticas,
conteúdos gramaticais, a exposição dos alunos
surdos a diferentes textos em inglês – verbais,
não- verbais, icônicos, prosódicos,
onomatopeicos – levando-se em consideração
sua leitura de mundo e suas habilidades
visuoespaciais; o desenvolvimento do
pensamento crítico, das interpretações dos
signos permeadas por elementos culturais e
identitários, convergentes e/ou divergentes em
345
relação a outras culturas como a nacional e a
estrangeira (da língua-alvo), sem a mediação
direta do professor-regente da turma.
De acordo com o compêndio Ethnologue:
Languages of the world1, a língua americana de
sinais é falada em 21 lugares, dentre eles:
Canadá, Filipinas, Ilhas Virgens, Haiti, República
Central Africana, Bahamas etc. Diante de tal fato,
a inserção gradual e planejada de ASL para
todos os alunos contribuiria não apenas para
favorecer o ensino instrumental de inglês para o
surdo, mas também para valorizar as línguas de
sinais no contexto global, potencializando a
comunicação com pessoas surdas em outras
partes do mundo. Tal iniciativa, também,
projetaria o ensino de libras dentro e fora da
escola, tendo em vista de que se trata da
segunda língua nacional brasileira, oficializada
pelo Decreto 5.626/2005 que regulamenta a Lei
nº 10.436/2002. Por outro lado, reforçaria a
ideia de uma educação plurilíngue. Segundo o
Conselho Europeu (2007, p.28),
1 Disponível em http://www.ethnologue.com/
346
which lead to equal dignity being
accorded to all the linguistic varieties in
individual and group repertoires,
whatever their statute in the community.
347
semioses a serem investigadas,
resultantes:
Do uso de modalidades de línguas
distintas, articuladas em um
mesmo ambiente de ensino, tanto
orais como as de sinais;
Da utilização de diferentes
linguagens (expressões faciais,
corporais, imagens, prosódia,
iconicidade, entre outras);
Da diversidade de leituras de
mundo proporcionadas por
culturas e modos de aprender
diferentes;
Das diferentes formas de
apreender ideias e criar signos,
identificar códigos, ícones,
interpretando o mundo por várias
vias e perspectivas;
Dos resultados de crenças e mitos,
interpretações e subjetividades;
Das relações interativas e trocas
entre os alunos na percepção de
singularidades;
Das experiências sociais dos
sujeitos, desenvolvendo cognição,
atividades cerebrais de empatia e
motivação;
348
Dos discursos que surgem das
relações e tomadas de decisões em
conjunto com toda a comunidade
escolar;
Das representações e símbolos
identitários.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentro de um contexto educacional
geográfico, histórico, global que vem revelando a
importância de diferenças e singularidades, a
concepção de ensino se transforma em desafio
enriquecedor, na medida em que as exigências
da sociedade para uma vida melhor, menos
excludente e mais feliz retratem, cada vez mais,
conhecimentos científicos sobre
desenvolvimento humano e a capacidade do ser
humano em transpor limitações, crenças e
preconceitos. Portanto, é preciso avançar,
alcançando mais conhecimento, autonomia,
independência, plenitude.
Nesse cenário, o conhecimento de si
mesmo, dos outros e do mundo se tornam
fundamentais para a constituição do indivíduo,
considerando-se, naturalmente, aspectos
biológicos e genéticos, além do meio e
circunstâncias que envolvem o ambiente no qual
o sujeito está inserido. Ademais, é necessário
considerar tomadas de consciência, questões de
349
afetividade, processos de comunicação, usos de
línguas e linguagem para crescimento e
aprimoramento ao longo do tempo.
Refletindo sobre conteúdos e a maneira
como são aplicados nas escolas de ensino
regular, evidencia-se a necessidade de boas
escolhas e criação de materiais didáticos
autênticos, abrangentes e variados, abordagens
temáticas dinâmicas e criativas, contemplando
diferentes estilos de aprendizagem,
proporcionando a diminuição das barreiras de
convivências e exclusão com a construção
coletiva de conhecimento, a participação ativa e
solidária, desenvolvendo-se autonomia.
Desconsiderar individualidades, diferenças e
diversidades, mudanças urgentes, nesse
contexto, demonstra falta de conhecimento;
estagnação por resistências; desarticulação de
equipes e parcerias, significando adaptar-se à
morosidade e fragilidade de leis e das garantias
de sua efetiva realização nas práticas sociais e
institucionais, entre outros aspectos.
Portanto, urge romper com a tradicional
cultura de pensar a escola, criando-se novos
paradigmas, favoráveis ao desenvolvimento
pleno do ser humano. Para tanto, é preciso o
desejo de transformação, compreendendo o
universo semiótico e as semioses presentes em
cada ambiência de ensino como propulsores de
mudanças significativas. Cabe a todos na
350
educação reconhecer e respeitar as experiências
forjadas pelos sentidos, a apropriação de línguas
e linguagem delineadas por signos distintos,
refletindo diferentes culturas e identidades em
constante formação e aprimoramento.
Dimensiona-se, nesse sentido, a sala de
aula dentro e fora do contexto escolar como um
laboratório rico para novas pesquisas,
garantindo respeito às diversas formas de
aprender, estimulando o potencial de
aprendizagem de cada um. É preciso fortalecer a
educação como via de transformação para uma
sociedade melhor, de maneira realmente
inclusiva e democrática, alicerçando, cada vez
mais, “saberes e saber-fazer evolutivos,
adaptados à civilização cognitiva, pois são as
bases das competências do futuro”
(DELORS,1996, p.89).
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BIODATA
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Linguística Aplicada ao ensino de inglês, UFF.
Especialista em Gestão e Supervisão Escolar
(UniLaSalle) e em Mídias na Educação (UFRJ).
Mestranda em Diversidade e Inclusão, UFF.
Lattes:
354
http://lattes.cnpq.br/2710457157055942. E-
mail: nschenka@gmail.com
355
ASPECTOS MOTIVACIONAIS DA
MATEMÁTICA COMO SIGNO E SISTEMA
356
da linguagem e o Quadrivium da matemática. As
disciplinas básicas da linguagem eram a Lógica
(exercício da capacidade de argumentação, no
discernimento entre os bons e maus
argumentos), a Gramática (domínio da língua na
forma escrita e falada) e a Retórica (capacidade
de convencimento e persuasão) (MACHADO &
CUNHA, 2005). Já as disciplinas da matemática,
que foram formuladas e ensinadas por Pitágoras
(cerca de 500 a. C), eram a Aritmética (número),
Geometria (número no espaço), Harmonia
(número no tempo) e Astronomia (número no
espaço tempo) e teriam surgido do “mais
reverenciado de todos os assuntos disponíveis à
mente humana: o número” (MARTINEU, 2014,
p,7).
Essas origens históricas nos remetem a
questões ainda desconhecida por muitos, do
quanto a matemática está presente na mente
humana. A crença na “inteligência superior” de
pessoas privilegiadas foi reforçada após a
criação de testes associados à capacidade da
linguagem e do raciocínio lógico-matemático.
Tais testes visam medir a “inteligência pura”, ou
seja, a capacidade pura de padronizar ou
resolver problemas que encurtam
significativamente o caminho entre os domínios
(GARDNER, 2007). Após a criação da escala
psicométrica pelo psicólogo francês Alfred Binet,
publicada em 1904, ouve um crescente interesse
357
pelo tema com intuito de adotar essa
metodologia para selecionar elites (GARDNER,
2007). Tal avaliação culminou em considerar
“muito inteligentes” pessoas com elevada
inteligência lógico-matemática e “pouco
inteligentes” as pessoas não tão bem-dotadas
dessa inteligência, rotulando e estigmatizando
pessoas e gerando julgamento sobre suas
limitações intelectuais (GARDNER, 2007).
Podemos supor que tais testes tornaram a
matemática um instrumento de medida de
capacidade e de poder que foram passados por
gerações gerando sentimentos diversos em
relação a matemática, em especial sentimentos
negativos, pois quando o estudante se sente
confuso e impotente diante dessa disciplina a
sensação claramente não é de prazer. Na teoria
peirciana as cognições, as ideias, e até o homem,
são essencialmente entidades semióticas, e
assim como um signo, uma ideia também se
refere a outras ideias e objetos do mundo. Desta
forma, “tudo o que refletimos tem um passado”
(NÖTH, 2003, p.61).
358
Acreditamos que a crença na “inteligência
superior” possa gerar nos estudantes
pensamentos negativos sobre a própria
capacidade. Para Pierce a crença é um juízo
acompanhado por um sentimento peculiar de
convicção a partir do qual a pessoa agirá,
afirmando que o conhecimento da crença é
essencial para sua existência. Ele diferencia a
crença sensorialista da crença ativa, onde na
primeira o poder intuitivo, que irá reorganizá-la,
será equivalente à capacidade para a sensação
(objeto da consciência) que acompanha o juízo e
na segunda o sentido é ativo, percebido através
da observação de fatos externos e pela
inferência a partir da sensação de convicção que
normalmente a acompanha (242, p.251). Em
nossa prática docente, percebemos que os
estudantes ao crerem que não são capazes de
aprender matemática ficam, por vezes, passivos
ou fogem de atividades ligadas a ela,
prejudicando seu desempenho acadêmico e mais
ainda seu desenvolvimento cognitivo e
emocional. Esses sentimentos de incapacidade
que geram ansiedade foram tratados pela
semiótica peirciana de forma que “toda emoção
tem um sujeito” e que “sempre que um homem
sente está pensando em algo”, desta forma, “as
emoções surgem quando nossa atenção é
fortemente atraída para circunstâncias
complexas e inconcebíveis” (Pierce, 292, p.274).
359
Pierce afirma que o medo surge quando surge a
insegurança no futuro.
360
problemas que o aluno precisa enfrentar. Essas
experiências, sejam elas reais ou percebidas
como tal, levam o estudante a pensar que suas
ações não podem ter influência no curso dos
acontecimentos, com sentimento de impotência
diante da situação (2007). Ao tornar-se passivo
em relação à aprendizagem o estudante não
consegue mais sentir o prazer em aprender e
não tem perspectiva de melhora, desmotivando-
se e reforçando o sentimento de autoderrota
sugerindo um ciclo vicioso de atitude de
evitação e sentimento de autoderrota
(ZENORINI et al., 2011).
A palavra motivação por vezes é
confundida com incentivo, o que dificulta o real
entendimento do seu significado e da sua
importância para os processos cognitivos e
emocionais dos estudantes, sendo necessária,
através da semiótica cognitiva, a busca de uma
ressignificação do signo motivação. Do ponto de
vista da psicologia, a Teoria da
Autodeterminação (Self-Determination Theory)
fundamenta a motivação em três necessidades
psicológicas inatas: competência, autonomia e
pertencimento. Com base nas diferentes razões
ou objetivos que levam as ações para a
satisfação dessas necessidades, as motivações
são divididas em duas classes: motivação
intrínseca e extrínseca, que variam em níveis de
motivação (o quanto está motivado) e em
361
orientação (atitudes e objetivos essenciais da
ação). A motivação intrínseca é considerada
inata, derivada da disposição a explorar e
dominar seu mundo interno e externo,
manifestada através da curiosidade e interesse
como a força para manter o engajamento em
uma tarefa, mesmo na ausência de reforço ou
apoio externo. A motivação extrínseca é
heterogênea, promovida por uma variedade de
recompensas externas, pertencendo a atividades
que são mais instrumentais e adaptativas e, por
ser variável em relação à autonomia, ela pode se
refletir tanto por controle externo (external
control) quanto por controle interno,
autorregulação (self-regulation) (RYAN e DECI,
2000). Ao estudar a motivação matemática
Valås e Søvik avaliaram as variáveis que afetam
a motivação intrínseca dos estudantes para
matemática escolar com base na Teoria de
autodeterminação, considerando três variáveis
inatas:
a) a necessidade de busca e conquista
(ótimos desafios).
De acordo com esta teoria, os alunos
estarão intrinsecamente motivados para uma
atividade dependendo do quanto essa atividade
e o contexto relacionado a ela for em encontro a
essas necessidades inatas. As principais
constatações foram:
362
a) a “inteligência” afeta a “motivação
intrínseca” de forma significativa, mas somente
indiretamente através da “conquista
matemática” e do “autoconceito”;
b) o autoconceito acadêmico/matemático
dos estudantes é uma importantemente variável
relacionada com a motivação intrínseca deles
para matemática, desta forma o “autoconceito” é
uma variável de intervenção crucial e;
c) estudantes com alto grau de
“autoconceito” eram significantemente mais
motivados intrinsecamente para a matemática.
O papel formativo das emoções na
aprendizagem ganhou relevância nos estudos
neurocientífico, reforçados pela importante
premissa dos Marcadores Somáticos de que as
experiências humanas deixam consequências ou
marcas emocionais que ficam registradas no
cérebro e podem ser usadas a qualquer
momento demonstrando a influência de fatores
emocionais sobre os processos cognitivos
(DAMÁSIO, 2012). Antônio Damásio, através da
hipótese do marcador somático, demonstra a
simbiose entre os chamados processos
cognitivos e os processos designados por
“emocionais”. Para ele existem fatores
neurofisiológicos e educacionais que
influenciam o comportamento, pois a crença, os
sentimentos e as intenções, são resultados de
uma série de fatores radicados nos organismos e
363
na cultura em que nos encontramos imersos,
mesmo que esses fatores sejam remotos e
inconscientes (2012). Para tomar uma boa
decisão precisamos ter sentimentos sobre
nossos pensamentos. Esses sentimentos vêm
dos centros emocionais no mesencéfalo com
interação em áreas específicas no córtex pré-
frontal (GOLEMAN, 2012).
364
associada às funções cognitivas superiores, tais
como planejamento, retenção de metas,
monitoramento de desempenho e regulação da
ação. Ele buscou convergência em três níveis de
explicação que coexistem desde a perspectiva
molecular microscópica até a perspectiva
sociocultural macroscópica, onde a unidade de
análise aponta a distinção entre três níveis de
explicação: nível neuronal, psicológico e
comportamental. Assim, a motivação é
considerada como um processo dinâmico,
possuindo uma série de sub processos
detalhados de geração (abordagem direcionada
à recompensa), manutenção (decisão baseada
em valor e aprendizagem associativa) e
regulação (controle cognitivo direcionado por
metas e objetivos) (KIM, 2013). Desta forma,
sem que o estudante sinta que terá uma
recompensa (mesmo que não tangível) ao
aprender matemática, se ele não der valor a esse
conhecimento e se não tiver metas e objetivos
definidos, ele não terá motivação para estudar.
A matemática é um sistema semiótico,
sendo classificada por Peirce entre as ciências
das descobertas, fornecendo subsídios e
encontrando aplicação em todas as outras
ciências (SANTAELLA, 1995). Pierce
considerava a matemática como observativa,
tendo em vista que monta construções na
imaginação de acordo com preceito abstratos e
365
observa esses objetos imaginários para
encontrar neles relações entre partes que não
estavam especificadas no preceito da
construção. “A matemática estuda o que é
logicamente possível sem se fazer responsável
pela existência desse possível” (SANTAELLA,
1992, p.121). Einsten relata a descoberta desses
preceitos abstratos ao encantar-se com as
certezas da geometria no livro de Euclides, seu
texto demostra que essa descoberta despertou
sua motivação para estudar matemática aos 12
anos.
Essa certeza lúcida impressionou-me
profundamente... Assim, se
aparentemente é possível chegar-se a um
conhecimento dos objetos da experiência
por meio do pensamento puro, essa
“estranheza” tinha como base o erro.
Contudo, para quem a experimenta pela
primeira vez, parece maravilhoso o
homem ser capaz de alcançar tal grau de
certeza e de pureza de pensamento.
(1982, p.20).
366
da linguagem, uma vez que as influências da
sistematização de regras ou leis do pensamento
lógico matemático vieram posteriormente
(2005). Um grande exemplo da relação da lógica
com a matemática nos é dada pelo filósofo Rene
Descartes, que escolheu estudar a matemática
pela condução lógica em busca da verdade
científica, conforme cita em seu livro Discurso do
Método publicado em 1637 na França:
367
lógica está envolvida com afirmativas e a
matemática com entidades abstratas e, em
níveis elevados, o raciocínio lógico conduz às
conclusões matemáticas. Assim, as capacidades
lógicas não dispensam as abstrações
matemáticas. Esse fato esclarece o uso por
Gardner do termo inteligência lógico-
matemática e não simplesmente inteligência
matemática (2012).
As dificuldades dos estudantes na
compreensão da matemática surgem não só do
raciocínio lógico, mas, segundo Durval, elas
surgem da diversidade e da complexidade das
transformações de representações em outras
transformações semióticas, que estão no centro
das atividades matemáticas (2012). Além disso,
a codificação e interpretação dos símbolos e
signos matemáticos representam entraves aos
estudantes na compreensão da matemática.
Como exemplo podemos citar a interpretação
incompleta do sinal de igualdade (=), que por
vezes é interpretado pelos estudantes como
sinal usado para dar resultado e não como
interpretante de comparação entre dois termos.
Se o símbolo de igualdade não servisse para
comparar, como poderíamos provar que as
operações abaixo são verdadeiras ou falsas?
368
2+3=5 2+3=7
5=5 5=7
Verdadeiro Falso
Ao analisarmos a expressão 2 + 3 = 5
podemos afirmar que ela é verdadeira uma vez
que o valor do primeiro termo (antes do sinal)
tem o mesmo valor do segundo (depois do
sinal), ou seja, 5 = 5. Usando o mesmo raciocínio
é possível concluir que a expressão 2 + 3 = 7 é
falsa pelo fato do primeiro termo não possuir o
mesmo valor do segundo, ou seja, 5 ≠ 7.
Além dos entreves em relação aos signos
(representâmen) matemáticos, existe uma
grande dificuldade dos estudantes no
entendimento de problemas matemáticos
causados pela má interpretação do texto na
linguagem natural. Uma vez que a matemática se
utiliza da linguagem formal, torna-se necessário
entender bem o que está sendo lido e, por vezes,
filtrar termos da linguagem natural que possam
perturbar certos elementos conceituais da
matemática. Neste exemplo de problema: “Kátia
tem 48 anos e sua filha Carla tem 21 anos.
Quantos anos Kátia tem a mais do que sua filha?
“, vemos que a língua natural é usada para fins
de comunicação, mas é a linguagem formal que
permite que as funções discursivas sejam
consideradas no processo de solução. A
expressão “tem a mais” sugere a operação de
369
adição para muitos estudantes, especialmente
nos anos iniciais, entretanto, ela remete a
diferença entre as idades de Kátia e Carla, ou
seja, a operação de subtração. Toda essa
problemática semiótica faz com que os
estudantes não compreendam a matemática
básica, e assim, acabam pondo em dúvida a
própria capacidade cognitiva, afetando o
autoconceito.
O autoconceito matemático, segundo Valås
e Søvik afeta mais a motivação intrínseca dos
estudantes do que a inteligência e, por isso, é
uma variável de intervenção crucial para
melhoria da motivação matemática (1993).
Nossa experiência mostra que quando os
estudantes compreendem algum conceito
matemático, aprendem algum cálculo,
conseguem acertar algum exercício ou
simplesmente acertam uma tabuada, eles
imediatamente demostram felicidade e
satisfação com a sua capacidade.
Para Brian Butterworth, autor do livro The
Mathematical Brain, existem poucas áreas de
conhecimento em que um estudante tem um
progresso tão rápido durante a aprendizagem. O
que parecia inconcebível ontem, e um sufoco
hoje, pode se tornar uma conquista sem esforço
amanhã. Ele afirma que não há necessidade do
estudante se atormentar por dúvidas sobre sua
capacidade de lidar com a matemática, mas
370
precisa entender que ela é progressiva e
cumulativa (1999), ou seja, um sistema
semiótico. Butterworth apresenta um poderoso
incentivo para melhorar a autoconfiança dos
estudantes, a plasticidade neural, que garante
que com a prática repetida em uma habilidade o
cérebro irá recrutar um número maior de
neurônios, que estarão disponíveis (se
especializando) para essa atividade. Desta
forma, mudanças estruturais duradouras no
cérebro são dependentes de prática, ou seja, as
adaptações de longo prazo dependem de efeitos
de prática a curto prazo (1999). Alguns circuitos
do sistema funcional, para se estabelecerem ou
alcançarem o seu potencial, necessitam de
estímulos externos específicos nos chamados
“períodos críticos”, que são os períodos de
intensa plasticidade. Assim, a falta ou carência
de estimulação ‘podem levar a perdas
significativas, ou até totais, de características
funcionais ou habilidades específicas’ (SHOLL-
FRANCO, et al, 2014, p. 141)
No período escolar essa falta de estímulo
ao raciocínio lógico-matemático pode ter
consequências graves para o desenvolvimento
cognitivo. Para Butterworth, quando o estudante
comete erros a situação fica ruim, pois ele irá
sofrer com reações indesejadas de colegas,
professores e pais, como decepção, raiva ou
ironias. Isso reduzirá sua autoconfiança e seu
371
prazer nas tarefas de matemática. Uma
consequência provável é evitar, na medida do
possível, a ansiedade induzida e a redução da
autoestima na realização de tarefas
matemáticas. Isso significa que o estudante não
irá praticar e, desta forma, a lacuna entre
compreender as ideias necessárias para
acompanhar as aulas e as ideias com as quais ele
terá uma compreensão confiante se ampliará
continuamente. À medida que o "abismo da
incompreensão" se amplia, o desempenho nas
aulas irá piorar, a ansiedade aumentará e a
prática será evitada ainda mais num círculo
viciosos. Mas a boa notícia é que as habilidades
matemáticas podem ser melhoradas com a
prática deliberada (1999). Deste modo, quando
os conceitos atuais são compreendidos e o
estudante tem um bom desempenho na tarefa, o
prazer com a matemática aumenta, os
professores e colegas são encorajadores, a
autoconfiança melhora e, consequentemente, a
prática aumenta, assim, novos conceitos são
adquiridos, e o estudante poderá acompanhar e
até superar as exigências conceituais atuais
gerando um círculo virtuoso (BUTTERWORTH,
1999, p.315,316).
Em pesquisa anterior buscamos investigar
a motivação intrínseca dos estudantes para
matemática. Nossos resultados demonstraram
que a maioria dos participantes (estudantes com
372
e sem deficiência visual do ensino básico)
tinham baixa motivação tanto para a
aprendizagem geral como para a matemática,
especialmente os estudantes com deficiência
visual. Ao investigarmos a autopercepção dos
participantes quanto à motivação matemática e
à inteligência, demonstramos que os
participantes possuem baixa motivação para a
matemática, mas se percebem inteligentes. Tal
fato é confirmado pela avaliação da percepção
dos educadores quanto a esses mesmos critérios
dos estudantes, pois a grande maioria dos
participantes acredita na inteligência dos
estudantes, mas somente a metade acredita que
eles estejam motivados para matemática. Em
contrapartida, a maioria desses educadores
concordaram que a falta de motivação dos
estudantes seja um dos maiores problemas
enfrentados na sala de aula, apesar de alegarem
ter motivação para ensinar matemática (CUNHA
& SHOLL-FRANCO, 2017).
A matemática como signo e sistema
modelizante evidencia a relação da
compreensão no processo de produção de
sentidos, comportamentos e estados emocionais
dos estudantes. Para Winfried Nöth, tanto a
semiótica como as ciências cognitivas se
desenvolvem como ciências transdisciplinares e
a semiótica peirciana não somente seria
compatível com a hipótese de uma linguagem
373
ser cognitivamente motivada, mas também seria
capaz de fornecer base teórica apropriada para
esse princípio através da categoria de signos
icônicos (2003). Assim, acreditamos que a
semiótica cognitiva poderá lançar luz sobre a
ressignificação dos signos Motivação e
Matemática e suas semioses.
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Divulgação Científica e Ensino de Neurociências
(CeC-NuDCEN) e do Núcleo de Novas
Tecnologias e Mídias (NNOTEM), Editor-Chefe
da revista eletrônica “Ciências e
Cognição”.Endereço para acessar este CV:
http://lattes.cnpq.br/0916043592067664
378
REDAÇÃO DISSERTATIVO-
ARGUMENTATIVA NO ENSINO MÉDIO:
ESTRUTURA TEMÁTICA EM FOCO
379
prática social. Assim, sedimenta-se a ideia de
que a função sociointerativa da língua deve
pautar seu ensino, desenvolvendo competências
e habilidades no aluno, de forma a dotá-lo de
domínio da língua materna, para que possa agir
linguisticamente com autonomia e senso crítico,
constituindo-se como protagonista em sua
atuação como cidadão produtor e receptor de
textos.
Nessa perspectiva interacionista, o ensino
da língua exige uma reflexão constante sobre
sua prática em variadas situações de uso,
requerendo a presença de diversos gêneros
compostos por diferentes tipologias textuais na
sala de aula. O objetivo maior é desenvolver a
competência textual do aluno em variadas
situações sociais. Entretanto, os gêneros textuais
parecem ter sido apropriados de forma
equivocada na educação brasileira, já que
figuram como mais um conteúdo nos livros
didáticos e nas salas de aula da Educação Básica.
Estuda-se o gênero como se estuda, também e
ainda equivocadamente, a língua, de forma
compartimentada e isolada da prática social. Por
isso, no decorrer da escolaridade, há aberrações
como provas de “bilhete”, de “carta do leitor” e
de “editorial”, a serem escritos para um
interlocutor abstrato e desconhecido, sobre um
tema nada significativo para o aluno, geralmente
escolhido pelos autores de livros didáticos ou
380
pelo professor. Como consequência dessa
abordagem, pode faltar ao aluno a clareza e a
importância da língua como instrumento de
interação.
Ao final do Ensino Médio, apresenta-se ao
aluno a redação dissertativo-argumentativa,
requerida no Enem e na maioria dos
vestibulares do Brasil.Ainda que alguns
alcancem êxito na tarefa, é expressivo e
alarmante o número de alunos que fracassam na
obtenção de um bom resultado no Enem. Entre
as dificuldades ou impropriedades de seus
textos, está a coesão.
No que concerne a esse fator de
textualidade, a escola deve instrumentalizar o
aluno para a produção de um texto coeso e
coerente, desenvolvendo sua compreensão
acerca do poder da língua para “avaliar, julgar,
tomar uma posição consciente e responsável
pelo que se fala ou escreve” (BRASIL, 2000, p.
22).Entretanto, de modo geral, percebe-se que
os alunos têm a noção da necessidade de
interligar as partes de um texto, mas
apresentam repertório reduzido de recursos
coesivos, inadequações semânticas e
dificuldades para a construção das cadeias
referenciais do texto, prejudicando a progressão
temática.
A fim de investigar as dificuldades de
coesão apresentadas pelos alunos, elege-se
381
como principal suporte teórico a Linguística
Sistêmico-Funcional (HALLIDAY e
MATTHIESSEN, 2004), com recorte especial da
metafunção textual. A somar, estarão as lições
de outros linguistas que iluminam o ensino da
língua e a prática na sala de aula.
O corpus de análise é constituído de uma
redação produzida por aluno de curso
preparatório para o Enem, a partir de uma
proposta do próprio exame nacional, aplicada à
população carcerária em 2015. Nosso interesse
é investigar a estrutura e a progressão temáticas
estabelecidas pelo produtor do texto. Para a
tarefa, estarão sob o foco da análise tão somente
as orações que estabelecem a ligação
interparagrafal, desconsiderando-se as coesões
internas do período. Cumpre ressaltar que, para
este estudo, não se buscou definir as diferenças
entre produção textual e redação, usando-as,
eventualmente, como sinônimas.
São dois os objetivos a guiar este estudo. O
objetivo específico consiste em verificar a
estrutura temática dos parágrafos,
especialmente a relação tema-rema estabelecida
pelo participante, e analisar sua eficiência
coesiva, bem como os sentidos advindos de tal
escolha. De modo geral, esperamos que este
estudo possa contribuir para o ensino de
redação, em especial para a elaboração de
382
parágrafos dissertativo-argumentativos, a partir
da análise e das reflexões aqui desenvolvidas.
A seção 1 faz um breve esclarecimento
sobre a coesão textual, fator de textualidade que
estará sob o foco deste estudo, ao se analisar a
estrutura temática dos parágrafos selecionados
para o corpus. Para tal, recorre-se à visão de
Halliday e Hasan (1976) sobre o tema. A seção 2
discorre sobre a fundamentação teórica adotada
neste estudo, com o intuito de externara relação
entre coesão e a metafunção textual. A seção
3traz a análise do corpus, com o estudo dos
parágrafos da redação produzida em sala de
aula por aluno de curso preparatório para o
Enem.
Nas Considerações Finais, sem a pretensão
de sermos conclusivos sobre o tema tratado,
refletiremos sobre os resultados apontados pela
análise, considerando a estrutura temática
encontrada.
A COESÃO TEXTUAL
Para angústia de muitos alunos em
preparação para o Enem, não há receitas ou
fórmula mágica para escrever um bom texto
dissertativo-argumentativo. Para atingir esse
objetivo, é preciso articular o conhecimento
prévio sobre o tema abordado ao conhecimento
linguístico, ambos postos a serviço da
elaboração de um texto no qual se destaquem os
383
elementos necessários à textualidade, entre eles,
a coesão e a coerência, fundamentais para que o
produto final seja bem compreendido pelo
leitor.
Vale lembrar que a coesão é relevante
fator de construção de coerência no texto. As
escolhas para encadear e sequenciar as ideias,
na superfície textual, podem consagrar os
sentidos pretendidos pelo autor ou anular sua
eficácia comunicativa, uma vez que a coesão
funciona como a manifestação linguística da
coerência.
Ainda no âmbito da coesão textual, um
ponto dos textos da tipologia dissertativo-
argumentativa merece atenção especial: o
encadeamento por meio de conectores e outros
operadores argumentativos, elementos
responsáveis pelo estabelecimento das relações
lógico-semânticas ou discursivo-argumentativas
na superfície textual, conforme estudos de
Ducrot (1987) e Koch (2014). Por meio das
relações lógico-semânticas, encadeiam-se ideias
e conteúdos a enunciados anteriormente
apresentados, com indicação de causa, tempo,
modo, entre outras relações de sentido. As
relações discursivo-argumentativas têm como
característica o fato de promover o
encadeamento de atos linguageiros, em que se
enunciam argumentos a favor de determinadas
conclusões, como explicação, justificativa,
384
conjunção ou disjunção argumentativa,
generalização, entre outros.
Para Halliday e Hasan (1976, p. 4), a
coesão ocorre sempre que, para se interpretar
um elemento no discurso, recorre-se à
interpretação de um outro. Dessa forma, para os
autores, a coesão textual é um conceito
semântico-discursivo que se refere às relações
de sentido existentes no interior do texto, as
quais o definem como tal. Por essa razão,
consideram-na uma condição necessária para a
textualidade.
Aprofundando tal reflexão, os autores
afirmam que “a coesão não nos revela a
significação do texto, revela-nos a construção do
texto enquanto edifício semântico” (HALLIDAY e
HASAN, 1976, p. 26). Consideram, pois, o texto
como uma unidade semântica erigida
essencialmente pela coesão textual. Percebe-se,
assim, a estreita ligação entre a coesão e a
coerência na visão dos autores.
Para o estabelecimento dessas relações de
sentido, explicitamente presentes na superfície
textual e organizadas de forma linear,
concorrem diversos recursos linguísticos que
contribuem para a progressão das ideias entre
as unidades do texto. Para as ocorrências de
recursos coesivos no texto, os autores
elaboraram a metáfora do “laço” (HALLIDAY e
HASAN, 1976, p. 3), indicando que cada
385
segmento, cada frase do texto, precisa estar
presa à outra, sem pontas soltas, formando,
assim, um texto coeso. Essas ligações envolvem,
obviamente, um certo grau de coerência, uma
vez que inclui os vários componentes
interpessoais (social, cognitivo, expressivo)
presentes na interação entre os falantes.
Para os autores, os “laços” que
estabelecem a coesão textual se realizam por
meio de cinco categorias: referência (relação
semântica adstrita a determinado referente);
substituição (relação léxico-gramatical,
realizando-se em base nominal, verbal e
oracional); elipse; conjunção (relação semântico-
textuais entre os segmentos oracionais); léxico
(seleção vocabular).
Essa concepção do casal de linguistas foi
aprofundada no desenvolvimento da teoria
sistêmico-funcional de Halliday e Matthiessen
(2004), mais especificamente na metafunção
textual, responsável pela organização da
mensagem, tarefa em que a coesão eficiente é
fundamental. Assim, na próxima seção, será
abordada a Linguística Sistêmico-Funcional.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A abordagem funcionalista defende que a
língua não pode ser considerada como um
objeto autônomo, mas como produto do
contexto sociocultural onde é posta em prática.
386
Assim, a língua, como código produtor de
linguagem, é compreendida como sendo um
fenômeno submetido às pressões da situação
comunicativa, levando-se em conta os
interlocutores e a intenção dos falantes, os
contextos social e cultural, fatores que exercem
grande influência sobre a estrutura linguística.
No universo de teorias funcionalistas,
Michael Halliday desenvolveu a Linguística
Sistêmico-Funcional (LSF), que se assenta sobre
pressupostos teóricos, cujos eixos centrais são a
noção de língua como escolha e a relação entre
linguagem e contexto social. Dessa forma, o
contexto é que vai influenciar, e até mesmo
definir, as escolhas do falante no sistema
linguístico.
No sistema paradigmático de escolhas, o
falante usa a língua como um recurso para
construir significados codificados pelas
estruturas linguísticas e suas funções em um
dado contexto de uso. Trata-se da noção da
gramática da língua como uma articulação que
ultrapassa a mera estrutura, pois essa “é
essencial para a descrição da língua, mas não
são as suas características que definem a
linguagem. Esta é fonte de produção de sentido,
e o sentido surge dos padrões sistêmicos de
escolhas”.(HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004, p.
23).
387
Assim, fundada no discurso, a LSF estuda o
modo como os significados são construídos pela
linguagem a partir das funções, ou metafunções,
empregadas conjunta e concomitantemente na
construção de sentido do texto, considerando-se
sua realização léxico-gramatical (os fraseados) e
as variáveis do contexto de situação. Segundo
Halliday, sistema s próprios de realização léxico-
gramatical, constituído por orações e períodos,
fraseados que se articulam sintaticamente em
favor da construção do sentido do texto,
concretizam, cada uma, três metafunções:
ideacional, interpessoal e textual.
A metafunção ideacional é responsável
pela representação das ideias, das experiências
e do conteúdo do mundo real no discurso, sendo
operacionalizada pelo sistema de transitividade.
A metafunção interpessoal marca a interação
entre os usuários da língua e os interlocutores
do discurso, sendo operacionalizada pelo
sistema de modo. A metafunção textual cria
relevância para o contexto, devido à forma de
distribuição da informação na estrutura
oracional, sendo operacionalizada pelo sistema
temático. É sobre esta última que se deterá
nosso olhar no estudo do corpus.
388
A METAFUNÇÃO TEXTUAL E O SISTEMA
TEMÁTICO
A metafunção textual organiza o fluxo de
informações de um texto por meio de dois
sistemas associados: o sistema de informação e o
sistema temático. No primeiro, o falante organiza
as informações a partir da perspectiva de
compartilhamento, ou não, das mesmas com seu
interlocutor. Tem-se, então, o dado e o novo
constituindo a mensagem na oração. No
segundo, a oração é constituída de duas partes:
um tema seguido de um rema. Neste artigo, o
sistema temático será o objeto analisado.
A análise do sistema temático, permite
observar, em cada oração, o destaque conferido
a determinada informação do texto e
acompanhar o desenvolvimento da mesma.
(FUZER e CABRAL, 2014, p.130). A hierarquia
das informações veiculadas na mensagem é
dada pelas escolhas dos elementos linguísticos
que ocuparão as posições do tema e do rema. O
primeiro introduz a informação que será
trabalhada na oração e a escolha de um
elemento linguístico para ocupar tal posição,
indica o relevo que lhe é dado pelo produtor do
texto. O segundo insere o desenvolvimento do
tema, com informações novas e observações.
No encadeamento das orações
subsequentes, a organização temática confere às
389
estruturas tema e rema um importante papel
para a construção da coesão e da coerência do
texto. Por meio da estrutura temática, pode-se
observar a consciência do autor sobre a
importância da organização da mensagem, a fim
de deixar claro para o leitor o seu ponto de vista
e a relevância das informações. Nesse sentido, o
tema tem importância fundamental para o bom
fluxo de informações e a progressão do texto
(KOCH, 2011, p.121).
Dessa forma, o sistema temático organiza a
mensagem de modo a promover a coesão e a
coerência necessárias, de forma a gerar
significados e revelar intenções discursivas ao
longo do desenvolvimento da tessitura textual.
Neste estudo, serão examinadas as escolhas
léxico-gramaticais que constituem os temas da
redação selecionada e sua relação com o
estabelecimento da progressão temática.
OS TIPOS DE TEMA
Na oração, o elemento funcional tema pode
ser identificado conforme orientam Halliday e
Matthiessen (2004, p. 66): é o primeiro grupo
introduzido em posição inicial na oração, até o
final do primeiro elemento ideacional. Assim,
encontrado um participante, um processo ou
uma circunstância, o restante é rema.
Quanto à sua realização, o tema pode ser
simples ou múltiplo. Se constituído apenas de
390
um elemento com significado ideacional,
denomina-se tema tópico ou tema ideacional,
elemento obrigatório em qualquer oração.
Seguindo a linha classificatória dada ao tema
tópico ou ideacional, quando há presença de
elementos interpessoais, classifica-se como tema
interpessoal e, quando se tem elementos
coesivos, temos o tema textual (HALLIDAY e
MATTHIESSEN, 2004, p. 79). Se constituído por
tema tópico antecedido de tema interpessoal
e/ou tema textual, relacionados às outras duas
metafunções, denomina-se tema múltiplo.
Cabe observar que, na oração em ordem
direta, se constituído por grupo nominal
(participante) e figurando na função de sujeito
da oração declarativa, o tema tópico será não
marcado, situação que não lhe confere nenhum
realce especial. Na ordem indireta, constituído
por processo ou circunstância, o tema tópico
será marcado, “ganhando maior proeminência
textual” (FUZER e CABRAL, 2014, p.134).
Resta ainda abordar as lições de Halliday e
Matthiessen (2004, p.393), em associação com
Thompson (2014, p.159), quanto aos complexos
oracionais, tradicionalmente denominados
períodos compostos. No caso da hipotaxe
(subordinação), se a ordem for indireta, com a
oração dependente anteposta à principal, toda a
oração dependente será o tema da sentença; se a
ordem for direta, com a oração principal
391
ocorrendo primeiro, o tema da sentença inteira
é seu primeiro elemento ideacional. No caso de
parataxe (coordenação), com orações
independentes entre si, cada uma tem seu
próprio tema, observando-se sempre a
obrigatoriedade da presença de um elemento
ideacional.
A PROGRESSÃO TEMÁTICA
No texto, a organização temática das
orações eleita pelo produtor indica a relevância
dada à determinada informação. Dessa forma, a
disposição dos temas e sua relação com os remas
orientam a leitura conforme o propósito inicial
do produtor do texto. Obviamente, há outros
aspectos envolvidos no que tange à clareza, mas
um texto com progressão temática clara e bem
delineada é um facilitador da depreensão dos
sentidos emanados da leitura. Recorrendo à
valiosa contribuição das figuras desenvolvidas
por Fuzer e Cabral (2014, p.143-145), temos as
seguintes formas de progressão temática mais
frequentes:
a) padrão com tema constante ou contínuo:
o tema tópico é sempre o mesmo ao longo de
uma sequência de orações.
392
administrativas que surgem em sua rotina.
Apesar disso, [os professores] são
frequentemente desvalorizados pela sociedade.
A→B
A→C
A→D
A→B
B→C
C→D
393
Exemplo: Na sua profissão, o professor
enfrenta alguns problemas sérios. Um deles é a
violência e o deboche de alguns dos alunos. O
outro é o salário injusto que recebe pelas aulas.
A→B
B1→ C B2 → D
394
a proposta de redação da segunda aplicação do
Enem 2015, cujo tema foi “O histórico desafio de
se valorizar o professor”.
O parágrafo introdutório apresenta o
assunto de forma contextualizada, ainda que
ingênua e calcada no senso comum. Nele, temos
uma ligação entre os dois períodos de modo a
estabelecer relação de causa e consequência
entre a desvalorização do professor e os reflexos
dessa visão na sociedade.
TEMA REMA
(1) Na sociedade tem ocorrido uma grande
atual, desvalorização do professor, pelas
péssimas condições de trabalho e
baixos salários.
(2) Com isso, o querendo seguir essa carreira
número de pessoas diminuiu muito.
395
do Ensino Médio, provavelmente por ser uma
coesão bastante comum também na
coloquialidade oral. Tal procedimento permite o
estabelecimento do padrão temático linear,
conforme segue:
A→B
B→C
396
iniciado por coordenação entre duas orações;
nele temos o tema tópico “O número de
habitantes”.
Quanto à progressão temática do
parágrafo, nota-se a dificuldade em estabelecer
uma organização, em que a relação de causa-
consequência pretendida fique claramente
indicada pela coesão. Pela escolha léxico-
gramatical para o tema em (4), infere-se que
houve a intenção de apontar a população menor
como causa de um professor ganhar bem no
passado, mas não houve sucesso na tarefa, em
virtude da falta de relação lógico-semântica
clara entre os elementos. Dessa forma, não se
visualiza um padrão temático eficiente, pois se
apresenta a seguinte conformação:
A→B
C→D
397
TEMA REMA
(5) Por conta desses greves tem ocorrido
baixos salários, frequentemente.
(6) Professores correndo atrás de seus
direitos, de receber um salário
melhor, exigindo também do
governo infra-estrutura
melhores, principalmente nas
redes públicas.
398
TEMA REMA
(7) Outro aspecto é a diminuição dos alunos
relevante querendo seguir essa profissão.
(8) Por motivos de casos de alunos desrespeitando o
perceberem que não professor dentro de sala de aula
recebem o salário são frequentes.
adequado,
399
A→B
C→D
TEMA REMA
(9) A família deve ter o bom senso que é
essencial a educação dentro
de casa, pois o principal
papel de professor é
ensinar e não educar.
(10) Os próprios devem continuar fazendo
professores greve, até ocorrer uma
mudança.
(11) O governo deve melhorar a infra-
estrutura das escolas
públicas e perceberem a
importância do professor,
aumentando seu salário.
(12) Sem eles, os médicos,
advogados e outras
carreiras não teriam
todo esse
conhecimento.
400
Em (9) e (10), há presença de tema tópico
em orações dominantes ou principais. Já em
(11), há o tema tópico: O governo, iniciando um
período composto por coordenação e
subordinação. Em (12), novamente um tema
tópico, dessa vez a introduzir o período simples.
Ciente da obrigatoriedade de propor
intervenções para problemas apresentados no
texto e ligados à proposta da redação, o
participante lança as ideias sem demonstrar
nenhuma preocupação em ligar os períodos por
operadores argumentativos que estabeleçam
alguma relação lógica, como a adição, por
exemplo. Apesar disso, pode-se perceber um
fluxo de informações centrado na figura do
professor na progressão temática, ainda que de
forma precária: Com essa atitude, constitui a
seguinte progressão temática em seu parágrafo:
A→B
C→D
E→F
G→H
401
do professor e eles. Entretanto, tratam-se de
vieses diferentes de abordagem da proposta e,
por isso, não estabelecem progressão temática
adequada.
Empreendida a análise, passa-se às últimas
considerações sobre o estudo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A produção e a recepção de textos devem
ser o objetivo principal no ensino de Língua
Portuguesa, pois são práticas que
acompanharão os alunos nas diferentes
situações comunicativas, em variados usos
sociais da escrita, para além dos muros da
escola. Nesse sentido, é preciso dotá-los de
competência para escrever gêneros textuais com
funções sociais específicas e que sejam de uso
recorrente no trato social.
No processo de ensino-aprendizagem da
produção de textos escritos, é preciso levar o
aluno a reconhecer a dimensão dialógica do
discurso, de modo a perceber o outro no espaço
de interação pela linguagem. O aluno será mais
competente e hábil na produção de seus textos à
medida que reconhecer as condições de
produção: o gênero a escrever; o que dizer, para
quem dizer. Dessa forma, será mais fácil
constituir-se como “locutor/sujeito do dizer e
dispor dos mecanismos e estratégias do dizer”
(GERALDI, 2013, p.137).
402
Essa postura ativa do sujeito produtor de
texto é essencial, pois, como fenômeno social, a
escrita engloba sua consciência acerca do
processo, além dos diversos aspectos da
situação interativa. Segundo os PCN (2000,
p.21),
a opção do aluno por um ponto de vista
coerente, em uma situação determinada,
faz parte de uma reflexão consciente e
assumida, mesmo que provisória. A
importância de liberar a expressão da
opinião do aluno, mesmo que não seja a
nossa, permite que ele crie um sentido
para a comunidade de seu pensamento.
Deixar falar, escrever de todas as formas,
tendo como meta a organização dos
textos.
A redação dissertativo-argumentativa
examinada indica falta da consciência necessária
às escolhas léxico-gramaticais que constituem o
bom fluxo da argumentação. A falta de padrões
temáticos que garantam a eficiente progressão
do tema prejudica a depreensão exata dos
sentidos pretendidos pelo autor. Somado a isso,
a ausência de coesão sequencial que auxilie a
constituição de relações discursivo-
argumentativas na ligação interparagrafal
reforça o problema. Parece que a preocupação
maior é preencher os parágrafos com
informações variadas sobre o professor,
elemento central da proposição, ainda que de
403
modo desordenado. Assim, o participante
procura demonstrar seu conhecimento sobre o
tema, sem se preocupar muito com a
inteligibilidade do texto para a parte que figura
na outra ponta do processo – o leitor.
Essas dificuldades mostram a falta de
consciência ou conhecimento acerca da função
textual dos componentes da microestrutura do
texto. Isso pode ser consequência do ensino
fragmentado de Língua Portuguesa e Redação,
prática que não contribui para o
desenvolvimento da competência para a
produção textual escrita. O reflexo, de modo
geral, é um aluno com algum conhecimento
sobre nomenclaturas gramaticais e sintáticas,
mas nem sempre hábil em mobilizá-las a
contento no momento de escrever.
Para melhor sedimentar a competência do
aluno no desenvolvimento da escrita
significativa, não se deve separar as práticas de
leitura, produção textual e análise linguística,
privilegiando-se os aspectos que contribuem
para a construção de sentido do texto.
Por fim, não se deve esquecer que conduzir
o aluno a dominar a linguagem escrita a serviço
da interação comunicativa é oportunizar o
exercício pleno da cidadania, com possibilidade
de maior inserção social, tanto na esfera pessoal
quanto na profissional. Como salienta Antunes
(2003, p. 60),
404
a maturidade na atividade de escrever
textos adequados e relevantes se faz
assim, e é uma conquista inteiramente
possível a todos – mas é “uma conquista”,
“uma aquisição”, isto é, não acontece
gratuitamente, por acaso, sem ensino,
sem reforço, sem persistência. Supõe
orientação, vontade, determinação,
exercícios, prática, tentativas (com
rasuras, inclusive!), aprendizagem.
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406
BIODATA
407
INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS E
MULTIMODALIDADE EM AULAS DE
LÍNGUA ESTRANGEIRA PARA
CRIANÇAS
INTRODUÇÃO
Com base em teorias sobre o
desenvolvimento infantil e o que
compreendemos tradicionalmente por
aprendizagem de línguas estrangeiras, este
artigo propõe uma reflexão acerca dos
procedimentos subjacentes à concepção de
aulas de língua estrangeira para crianças,
baseadas por um lado na multiplicidade de
linguagens e, por outro, na teoria das
inteligências múltiplase suas contribuições, para
melhor compreensão de que cada criança tem
maneiras específicas de aprender e adentrar no
universo da língua estrangeira.
O DESENVOLVIMENTO INFANTIL
Considerada essencial para o
desenvolvimento integral da criança, sua
interação com o mundo que a cerca se dá por
408
meio de ações motoras, visuais e auditivas.
Piaget (1967) postula que há quatro períodos de
desenvolvimento infantil: o período sensório-
motor (de 0 a 2 anos), o pré-operatório (dos 2
aos 7 anos), o período das operações concretas
(de 7 a 11/12 anos) e o período das operações
formais (dos 11/12 anos em diante). Cada um
desses períodos se caracteriza por diferentes
formas de organização mental que, por sua vez,
permite diferentes maneiras de interação do
indivíduo com o meio.
No período sensório-motor ocorre o
desenvolvimento inicial das coordenações e o
início da diferenciação entre os objetos e entre o
próprio corpo e os objetos. Nesse momento, a
inteligência se encontra nos sentidos
(simbólico) e nas ações (motor) e se expande
por meio dos deslocamentos do próprio corpo.
No período pré-operatório, a criança inicia a
capacidade de representar uma coisa por outra,
ou seja, formar esquemas simbólicos com base
na linguagem. Com o início da linguagem, a
criança se vê no meio de dois mundos novos: o
mundo social e o das representações interiores.
No que diz respeito especificamente à
linguagem, é preciso ressaltar, por outro lado, a
concepção de Vigotski (1997). Para esse autor, a
linguagem não se reduz a um sistema linguístico
de estrutura abstrata, mas é constituinte do
sujeito, considerando tanto seu aspecto
409
funcional quanto psicológico. Para ele, a
linguagem ocupa um lugar primordial no
desenvolvimento das funções psicológicas
superiores do ser humano (memória,
pensamento e percepção), além de ser
organizadora e planejadora do pensamento. A
linguagem desempenha também um papel de
mediadora dos seres humanos entre si e deles
com o mundo e, com isto, ela se torna um dos
instrumentos básicos desenvolvidos pela
humanidade para compreender e dominar seu
ambiente e seu próprio comportamento; por
conseguinte, para aprender continuamente.
Retomando Piaget, é preciso acrescentar
ainda que, no período pré-operatório, a criança
já pode criar imagens mentais na ausência do
objeto ou da ação e fazer uso do pensamento
intuitivo; o período da fantasia, do faz de conta,
do jogo simbólico começa a aparecer, portanto.
Já o período operatório concreto marca
uma modificação decisiva no desenvolvimento
mental, pois está sendo desenvolvida a
capacidade de raciocinar sobre o mundo de uma
maneira mais lógica. Nesse período, a realidade
passa a ser estruturada pela razão. A criança
passa a ter um conhecimento real e apropriado
de objetos e situações da realidade e pensa antes
de agir, ou seja, ela consegue solucionar
mentalmente um problema.
410
Por fim, no período das operações formais,
ocorre a transição para o modo adulto de
pensar, ou seja, a capacidade de pensar sobre
hipóteses e ideias abstratas e de compreender a
lógica. Porém, esse período ainda é marcado
pelo pensamento abstrato e pelo egocentrismo
adolescente como descreve Piaget (1967, p.65):
“é a idade metafísica por excelência: o eu é forte
bastante para reconstruir o Universo e
suficientemente grande para incorporá-lo”.
Posicionando-se em alguns aspectos
contrariamente a Piaget, Vigotski (1997)
defende a ideia de que não há estágios de
desenvolvimento previstos e prontos dentro de
cada um de nós, mas que o desenvolvimento
acontece com o passar do tempo, sendo um
processo que inter-relaciona a maturação do
organismo, o contato com a cultura e as
interações sociais. Para o autor,
desenvolvimento e aprendizagem são
interdependentes e pondera que, se por um
lado, o desenvolvimento pontual da criança em
um determinado estágio é reconhecível, por
outro, é fundamental que se leve em
consideração na aprendizagem que existe um
desenvolvimento potencial, que pode ser
calculado a partir do que a criança é capaz de
fazer, primeiramente com a ajuda de um adulto,
e o que conseguirá fazer sozinha mais tarde.
411
Vale ressaltar que segundo a teoria
vigotskiana o desenvolvimento cognitivo só é
efetivado no meio social e é nele que a criança
realiza a apropriação dos comportamentos
humanos. Logo, a interação entre os indivíduos
possibilita a geração de novas experiências e
aquisição de conhecimento. Essa grande
experiência social que é a aprendizagem deve,
então, acontecer dentro da zona de
desenvolvimento proximal, que seria a distância
existente entre aquilo que o sujeito já sabe, seu
conhecimento real, e aquilo que o sujeito possui
potencialidade para aprender, seu
conhecimento potencial.
Dedicando-se a estudar esses filtros entre
o organismo e o meio, o autor acredita que
explorar o ambiente no início da infância é uma
das maneiras mais poderosas que a criança tem
à sua disposição para aprender. As
possibilidades que o ambiente oferece ao
indivíduo são essenciais para que este se
constitua como sujeito lúcido e consciente,
capaz, por sua vez, de alterar o meio em que
vive.
A infância é o período marcado por
grandes descobertas, construções de sentidos,
interação com o mundo e a aprendizagem. O
brincar é um grande motivador da
aprendizagem por fazer parte do cotidiano
infantil e porque a criança brinca para descobrir
412
o mundo. Porém, a aprendizagem não se dá
apenas por intermédio de um ambiente
específico, é preciso considerar a criança como
um aprendiz com características particulares
para compreender que a aprendizagem acontece
de maneira diferente para cada uma delas.
Outra teoria que merece destaque para a
reflexão levantada neste trabalho é a das
Inteligências Múltiplas. Propondo uma visão da
mente humana estruturada pela interação psico-
cognitiva entre competências intelectuais, que o
autor também nomeia como inteligências, visto
que, para ele “uma inteligência implica na
capacidade de resolver problemas ou elaborar
produtos que são importantes num determinado
ambiente ou comunidade cultural” (GARDNER,
1995, p.21), não podendo, portanto, ser
quantificada.
Gardner defende que embora se
relacionem entre si, essas competências
intelectuais são relativamente independentes;
todos os indivíduos seriam, assim, capazes de
desenvolver, em graus e em combinações
variadas, pelo menos oito delas, as quais o autor
nomeia como inteligências: linguística, musical,
lógico-matemática, espacial, interpessoal,
intrapessoal, naturalista e corporal-cinestésica,
que ocupa posição de destaque neste trabalho.
A noção de cultura é básica para a teoria
das Inteligências Múltiplas. Como sua definição
413
sugere a capacidade em resolver problemas que
são significativos em um ou mais ambientes
culturais, Gardner sugere que algumas destas
aptidões só se desenvolvem porque são
valorizadas pelo ambiente em que a criança está
inserida, assim como Vigotski que sustenta a
ideia de que o meio no qual a criança interage
exerce influência direta sobre seu
desenvolvimento cognitivo, físico-motor e
afetivo.
Considerando-se as crianças agentes ativos
na formação de seu conhecimento, a teoria
construtivista contemporânea nos leva a
compreender que as competências cognitivas
são bem mais distintas e peculiares do que se
acreditava e, portanto, a aprendizagem deve ser
promovida por meio de atividades mais
promissoras de construção de conhecimento.
Quando falamos de uma educação global e
integral, temos de pensar na pessoa que se
constrói com base em todas as possibilidades
que ela tem. No âmbito educacional, a
consideração das inteligências múltiplas
contribui para um melhor entendimento de que
cada criança tem sua maneira ímpar de
aprender e possui formas cognitivas
diferenciadas.
Condizendo com essa afirmação, o ensino
de línguas estrangeiras atual visa a um processo
educativo no qual o aprendiz seja agente de sua
414
própria aprendizagem, desenvolvendo
habilidades e competências necessárias ao
exercício de seu papel de verdadeiro ator social.
E o ensino de francês às crianças é um ato
educativo, que deve, acima de tudo, ter a
finalidade de transformá-las, humanizá-las,
criando possibilidades de socialização por meio
de elementos culturais, contribuindo assim para
o desenvolvimento do ser em formação.
Nesse cenário já favorável, um programa
que vise ao ensino de LE para crianças deve
levar em conta as necessidades específicas da
idade, sejam elas motoras ou afetivas, assim
como os pontos de interesse, as capacidades e as
diversas inteligências e modos distintos de
aprender desse jovem público.
Rocha afirma que ensinar línguas
estrangeiras na infância é
procurar auxiliar a criança a construir
caminhos que a ajudem a ampliar o caminho de
si própria e da sociedade em que vive, a
compreender melhor os contextos que a cercam,
fortalecendo-as com uma visão positiva e crítica
de si mesma e das diferenças, a integrá-la num
mundo plurilíngue, pluricultural [...]
capacitando-a a agir e comunicar-se em LE nas
diversas esferas cotidianas (ROCHA, 2008, p.
20).
415
E como melhor auxiliá-las a conhecer a si e
ao mundo do que ajudando-as a desenvolver as
inteligências múltiplas, promovendo, assim, seu
desenvolvimento integral?
MULTIMODALIDADE E LUDICIDADE
Diversos teóricos da educação e da
psicologia observaram o jogo infantil e
refletiram sobre o desenvolvimento da criança
por meio dele, provando que a aprendizagem
está diretamente ligada ao corpo, pois é agindo
sobre o mundo que ela aprende sobre ele.
Do ponto de vista vigotskiano, ao brincar a
criança desenvolve a capacidade de usar os
elementos conforme o universo simbólico da
brincadeira e assim modificar a função de um
elemento para criar o efeito que deseja. Para
Vigotski (1998), o brincar é a etapa mais
importante da vida infantil e permite a criação
da situação imaginária, o desenvolvimento da
representação e do símbolo.
Já segundo Piaget (1990), o brincar seria
um fator de desenvolvimento cognitivo e
também uma forma de adequação ao mundo
externo, sendo, então, um aspecto ativo e
importante do desenvolvimento intelectual
infantil. Para o autor, a representação de
fenômenos externos não influencia na aquisição
de conhecimento, mas sim a interação da criança
com o meio em que vive. E são os processos de
416
acomodação e assimilação que permitem que a
realidade presenciada se transforme em
conhecimento. No jogo, há uma predominância
da assimilação e, assim, a criança compreende o
mundo à sua maneira.
As palavras lúdico e jogo são amplamente
discutidas em diversas áreas das ciências
humanas (pedagogia, antropologia, sociologia,
psicologia, didática, dentre outras), o que nos
mostra incessantes tentativas de classificar e
diferenciá-las. Neste trabalho, as tratamos como
sinônimas, assim como Brougère (1998, p. 14-
15) que afirma que em uma rápida análise
lexical a palavra jogo tem três significações: ela é
sinônima de atividade lúdica, visto que se trata
de uma situação em que há pessoas jogando; é
também uma estrutura, um sistema de regras
que existe independentemente de haver pessoas
jogando – como o futebol, o xadrez etc.; e é
também material de jogo que pode, em alguns
casos, ser associado à palavra brinquedo.
Huizinga (1971), assumindo que a tarefa
de definir “jogo” é árdua e complexa devido a
seus múltiplos entendimentos e significações
nas diferentes culturas, ressalta que a função do
jogo é o que importa, visto que ela prevalece a
mesma em qualquer sociedade e cultura.
O jogo faz parte da cultura e é algo livre e
incerto. “As crianças e os animais brincam
porque gostam de brincar, e é precisamente em
417
tal fato que reside sua liberdade” (HUIZINGA,
1971, p. 10). Se o jogo não pode se constituir
como uma tarefa para manter sua natureza livre,
como pensá-lo como constituinte do processo de
ensino/aprendizagem de uma língua
estrangeira?
Kishimoto (2012, p.48) afirma que no
contexto educacional “o ponto de partida é o
lúdico porque o interesse da criança mobiliza a
mente infantil”, e Huizinga (1971, p. 10) explica
que em relação à criança o caráter de liberdade
do jogo poderia ser questionado, já que elas são
levadas “ao jogo pela força do seu instinto e pela
necessidade de desenvolverem suas faculdades
físicas e seletivas”. Portanto, se no processo de
ensino/aprendizagem as atividades forem vistas
como fonte de prazer, almejadas e apreciadas,
mantém-se, assim, o caráter de jogo.
Piaget (1990) explica ainda que no jogo e
na arte há uma ilusão voluntária consciente, ou
seja, a imaginação representa o objetivo lúdico
como verdadeiro e o prazer de ser nos lembra
que somos nós mesmos quem criamos esta
ilusão. Esse simbolismo “oferece à criança a
linguagem pessoal viva e dinâmica,
indispensável para exprimir sua subjetividade
intraduzível somente na linguagem coletiva”
(PIAGET, 1990, p. 214).
Considerar, então, o jogo como uma forma
de diversão não é excluir o seu papel educativo,
418
é separar algumas formas de pensar esta
questão em relação à criança, a suas
características psicológicas e ao seu
desenvolvimento.
Porcher e Groux (1998, p. 90) afirmam que
“brincando de aprender uma língua estrangeira,
eles realmente a aprendem.”, logo, as atividades
lúdicas podem ser de grande valia e o professor
de língua estrangeira deve criar
intencionalmente estas situações lúdicas em sala
de aula.
Dessa forma, um programa que vise ao
ensino de Francês Língua Estrangeira (FLE)
para as crianças deve levar em conta as
necessidades específicas da idade, sejam elas
motoras ou afetivas, assim como os pontos de
interesse, as capacidades e os processos de
aprendizagem desse jovem público no momento
de pensar e selecionar atividades e jogos que
integrarão o programa, pois, como corrobora
Garcia (2000, p.96): “os fluxos lúdicos são fontes
primárias de aprendizagem. [...] Devemos lutar
com todas as forças pelos direitos da criança à
livre expressão dos seus próprios modos
brincantes”.
Desde o nascimento, as crianças já estão
inseridas em contextos sociais diversos que lhes
apresentam sons, formas, aromas, cores,
texturas, gestos e diversas manifestações
culturais e expressivas que integram o mundo
419
ao seu redor. O contexto escolar deve, portanto,
incorporar e incrementar essa riqueza de
possibilidades, não excluí-las como vemos em
alguns estabelecimentos.
As crianças, altamente desejosas de se
manifestar expressivamente (por meio de
desenhos, pinturas, esculturas, dança), são
capazes de utilizar diferentes linguagens, porém,
não raramente, são reprimidas nos contextos
escolares ou pelos pais que estão condicionados
a pensar nas linguagens sempre relacionadas à
fala ou à escrita e deixam de pensá-las adjuntas
ao movimento, ao desenho, à dramatização, à
brincadeira, à fotografia, à música, à dança, ao
gesto etc.
Para Garcia (2000, p. 55) é, infelizmente,
na escola primária que
a criança aprende a não ser ela mesma,
quando vê que não pode competir com os
esforços da escola que com seus
programas funciona com o objetivo de
fabricar toda a tristeza e estrangular o
artista que habita cada criança (GARCIA,
2000, p.55).
420
Sendo assim, falar das múltiplas
linguagens no contexto infantil significa falar de
elementos que revelam as características da
linguagem própria da criança, como por
exemplo: ludicidade, simbolismo, imaginação,
representação. Recorrer às linguagens artística,
corporal, musical, oral, escrita, pictórica,
dramática, como formas de estabelecer
comunicação com o mundo é um direito que a
criança tem e que o processo de
ensino/aprendizagem deve assegurar.
A EXPERIÊNCIA
Para o desenvolvimento da pesquisa da
qual se origina este artigo realizamos um estudo
de caso, caracterizado pela elaboração e
condução de uma oficina experimental de língua
francesa com crianças de 6 a 8 anos inscritas em
duas instituições (uma paraescolar e outra
escolar), ambas situadas no Município de Nova
Friburgo, cidade do Estado do Rio de Janeiro,
colonizada por imigrantes suíços no Século XIX.
Registrada fase por fase em nosso diário
de itinerância, a coleta de dados perdurou de
março a dezembro de 2013 e é composta pelo
contato com as instituições, concepção e
realização de duas oficinas experimentais de
língua francesa, filmagens das oficinas,
entrevistas com os pais ou responsáveis dos
421
participantes, pré-análise da primeira oficina
para sua reformulação em segundo
oferecimento.
Procurando contribuir para o
desenvolvimento infantil por meio de um
processo de ensino/aprendizagem da língua
francesa e da cultura francófona em sua variante
suíça, as sessões contemplaram atividades
lúdicas caracterizadas por múltiplas linguagens
com objetivos específicos e modos de
encadeamento variados.
Indagamo-nos, então: o que são essas
múltiplas linguagens e como incluir essa
multimodalidade no currículo infantil? Na
incapacidade de enumerar todas elas,
destacamos as que foram abordadas neste
estudo.
A linguagem plástica explorada por
atividades como desenho e/ou pintura (traços,
riscos, paisagens, pessoas, animais) pode ser
realizada sobre diferentes suportes e com
diversos materiais. Os desenhos são como um
jogo em que há narrativas, imaginações,
inventividades típicas de cada criança.
Os desenhos das crianças podem ser
considerados como metáforas visuais, formas de
explicar abstrações tais como o amor, a alegria,
o futuro, ou ainda uma possibilidade de atribuir
a uma coisa o nome de outra, com traços e
formas, às vezes, inusitados.
422
As crianças interpretam sua realidade em
seus traços e cores. Sendo assim, podemos
considerar seus desenhos como a sua maneira
própria extraverbal de expressar sentimentos,
tais como alegria, amor, desejo. Estar com as
crianças, observar, preparar junto com elas
espaços privilegiados para se expressarem é,
então, algo essencial e deve ser garantido tanto
na escola quanto nos cursos de língua
estrangeira e no ambiente familiar.
Diversos suportes para o desenho devem
ser oferecidos à criança, com variedade de cores,
texturas, formas e tamanhos. Como
instrumentos, além dos lápis de cor, canetas
hidrocor, giz de cera, tintas variadas e porque
não carvão e cacos de tijolos?
O papel não deve ser o único material a ser
oferecido; a pintura corporal é também um
modo de exploração e interação, bem como o
chão ou então os tablets e computadores já
inseridos na realidade dessa geração, que desde
muito novos já sabem manusear tais
equipamentos, mesmo sem conhecimento da
escrita.
O desenvolvimento da linguagem escrita,
segundo Vigotski (1998), acontece pela
mudança do desenho de coisas para o desenho
de palavras. De fato, o segredo do ensino da
linguagem escrita está atrelado à organização
adequada dessa transição. Uma vez dominado o
423
princípio da linguagem escrita, a criança passa à
etapa de aperfeiçoamento.
Considerando-se o domínio de um
complexo sistema de símbolos que é a
linguagem escrita, Vigotski ressalta que sua
aprendizagem não pode ser alcançada de forma
externa e mecânica. Para ele, a escrita é o
resultado das diversas experiências que a
criança realiza durante sua infância, por meio
dos gestos, brincadeiras, manipulações e pelo
movimento do seu corpo, proporcionado pelas
atividades envolvendo a dança e a música. Dessa
forma, compreendemos que a escrita se compõe
nas mais diversas relações estabelecidas pela
criança no decorrer das atividades que realiza.
Uma outra linguagem é a corporal. Essa é
frequentemente expressada por meio de
atividades lúdicas como os jogos e brincadeiras,
mímicas, atividades de conscientização corporal
etc.
Todas as crianças podem se expressar com
repertório que é próprio de seu corpo, criando
coreografias, passos e movimentos próprios.
Segundo Gardner (1994), o desenvolvimento e o
contato com a linguagem corporal estimulam no
indivíduo áreas do cérebro que acentuam a
percepção, aumentando a sensibilidade, o
raciocínio, a concentração, a memória e a
coordenação motora. O uso da linguagem
corporal, logo, da inteligência corporal
424
cinestésica, é um elo integrador entre os
aspectos motor, cognitivo, afetivo e social, pois a
criança consegue compreender o mundo à sua
volta quando vive experiências sensórias
motoras, ou seja, interage com seu corpo e com
o mundo que a cerca e é, então, que ela assimila
conhecimento.
Destacamos, por fim, a linguagem teatral,
que para Garcia (2000, p. 101) é “um pot-pourri
de linguagens [...]. Trabalhamos música, artes
plásticas, voz, corpo e teatro propriamente dito”.
O contato com essa linguagem permite e
estimula o desenvolvimento, a socialização, a
coordenação e a criatividade, assim como ajuda
crianças e adolescentes a perderem a timidez, a
desenvolver a noção do trabalho em grupo e a se
interessarem mais por textos e autores variados.
Essa articulação de signos, cujo trabalho
pedagógico costuma ser compartimentado pela
escola, é pertinente ao universo infantil. Assim,
práticas adjetivamente teatrais, nos termos de
Massaro (2008), ou seja, atividades oriundas do
domínio teatral, ainda que não sejam Teatro
como Arte, podem ser consideradas como
formas lúdicas e não só atrair a atenção das
crianças, mas, sobretudo, envolvê-las num jogo
ficcional.
A oficina desenvolvida ofereceu às crianças
a experiência de apropriação de uma língua e
cultura estrangeira, ou seja, um processo que,
425
sendo fundado na interação lúdica e na inserção
dos aprendizes em situações acionais (sejam
elas reais ou ficcionais), permitiu a integração
inconsciente de elementos linguístico-
discursivos e culturais distintos dos que
constituem identitariamente a criança em sua
língua/cultura materna.
O sentir o corpo livre e ter a liberdade de
movimentá-lo a qualquer hora, sem o
aprisionamento das carteiras escolares e/ou em
atividades específicas, pensadas por nós para
este fim, criou a ilusão de que em certos
momentos das sessões tudo era apenas uma
brincadeira. E foi brincando com algo, com o
outro e consigo mesmo que as crianças se
apropriaram da LE e produziram os seus
primeiros discursos em francês, e perceberam
que a língua estrangeira pode ser usada em
inúmeras situações (lúdicas ou não, fictícias ou
não) e que elas podem brincar em LE, mas
também brincar com a LE.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso objetivo com este trabalho foi,
basicamente, discutir a inclusão de atividades
em múltiplas linguagens em um ambiente
escolar que considere a pluralidade da cognição
infantil, além de uma possível contribuição de
um ambiente lúdico para o processo de
ensino/aprendizagem de língua estrangeira.
426
Para isso, inicialmente, procuramos
entender como acontece o processo de
aprendizagem infantil, destacando a teoria das
inteligências múltiplas. E, em seguida, buscamos
refletir sobre o lugar que a brincadeira, o lúdico
deve ocupar na aula de língua estrangeira para
crianças. O ensino de línguas estrangeiras atual
visa a um processo educativo no qual o aprendiz
seja agente de sua própria aprendizagem,
desenvolvendo habilidades e competências
necessárias ao exercício de seu papel de
verdadeiro ator social. Mas, apesar desse
cenário favorável, a inclusão de práticas lúdicas
que colocam o aprendiz como agente do
processo comunicativo e dinâmico é ainda muito
restrita.
A análise da experiência realizada junto
aos dois grupos distintos de crianças revelou a
importância da prática de atividades variadas e
diferenciadas, sobretudo no que se refere às
atividades corporais, no processo de
ensino/aprendizagem infantil de línguas
estrangeiras, e também a necessidade de uma
mudança nos estabelecimentos escolares e na
prática pedagógica de professores para que haja
uma urgente ressignificação do que se entende
por ensinar e aprender.
A ludicidade, a utilização de jogos,
brincadeiras e atividades multimodais devem
ser aliadas no ensino para o jovem público, pois
427
mantêm as crianças ativas e interessadas nas
novidades e criam um ambiente variado no qual
todas as crianças têm a possibilidade de
aprender e se desenvolver da melhor maneira.
Por fim, sabemos que para as crianças
participantes dessa oficina a aprendizagem
maior não foi a da língua francesa em si, mas sim
a conscientização do uso de uma língua
estrangeira. As crianças perceberam que a LE,
muito mais do que ser uma maneira diferente de
dizer o que elas já sabem na língua materna,
pode se tornar um jogo e que com ela é possível
brincar e se divertir.
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José Cipolla Neto, Luis S. M. Barreto e Solange C.
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429
BIODATA
430
OS TEXTOS MULTIMODAIS NO ENSINO
DE FATOS GRAMATICAIS DA LÍNGUA
PORTUGUESA
Márcia da Gama Silva Felipe
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Centrada preferencialmente em textos
verbais escritos, a educação escolar enfrenta
dificuldade em permanecer no foco de interesse
do alunado que, por sua vez, está exposto a uma
realidade multimodal. Contudo, para circular
com autonomia nesse ambiente, é necessário
mais que mera exposição; demanda verdadeira
imersão. Na primeira, não há parceria, tão
somente uma atitude passiva frente à realidade;
na segunda, para que ocorra, demanda fôlego no
mergulho e no retorno à superfície, interação
com o ambiente, conhecimento de técnicas e
desenvolvimento de habilidades. Nessa
perspectiva, falta aos alunos/leitores autonomia
na interação com o texto. Falta-lhes o domínio
necessário do código linguístico e dos fatos
gramaticais a fim de que possam circular com
autonomia, livremente, sem serem seduzidos
por uma avalanche de informações e
pensamentos diversos.
Nesse ambiente plural, acredita-se que os
textos multimodais exercem grande poder de
431
sedução, uma vez que lançam mão de estratégias
diversas, cujo objetivo final é a conquista do
leitor/consumidor. Dentro desse processo de
convencimento, identificam-se diversos textos
publicitários, tipicamente multimodais. Em
função disso, propõe-se a inclusão sistemática
desse tipo de texto no ensino de fatos
gramaticais, especialmente no Ensino
Fundamental. Justifica-se essa abordagem em
razão da contribuição significativa para o
multiletramento dos alunos. As características
dessa formatação exigem a articulação de
diversas habilidades, conduzindo o leitor à
apreensão do sentido global do texto.
Nesse sentido, o presente estudo busca
respaldar suas análises nas pesquisas
desenvolvidas por três estudiosos, cujas teorias
tratam de importantes temas no âmbito do
ensino e da cultura. Primeiramente, a Teoria das
inteligências múltiplas (GARDNER, 1995) sugere
a existência de múltiplas inteligências, com base
em potencialidades que diferem de pessoa para
pessoa. Tal proposta considera que a mente
humana apreende informações e desenvolve o
conhecimento de formas diversas. Na mesma
linha da diversidade nas formas do texto, Rojo
(2012) apresenta estratégias de ensino com
base no multiletramento, configurando caminho
necessário ao ensino escolar uma vez que o
alunado encontra-se imerso num ambiente
432
eminentemente multimodal. Finalmente, a
Teoria da Iconicidade Verbal, doravante TIV
(SIMÕES, 2009), mostra-se pertinente ao
tratamento dessa modalidade, uma vez que,
calcada na semiótica peirceana, oferece suporte
à análise dos signos presentes nos textos-
córpus, fundamentais para a construção da
semiose textual.
Em função do exposto, a presente
investigação encontra-se organizada em duas
partes: a primeira apresenta uma proposta de
análise de textos publicitários, cujo objetivo é
demonstrar as possibilidades de estudo dos
fatos gramaticais em textos multimodais. A
segunda constitui a apresentação de trabalho
desenvolvido por alunos do 3º ano do Ensino
Médio, cuja proposta consistiu na representação
imagética de texto poético, com o objetivo de
desenvolver habilidades de expressão com
textos não verbais. Portanto, apresentam-se a
seguir as teorias a partir das quais foram
desenvolvidas as análises propostas.
EMBASAMENTO TEÓRICO
A ideia de multiletramento, assim como o
ensino a partir de uma realidade multimodal,
encontra respaldo na Teoria das inteligências
múltiplas (GARDNER, 1995). Essa teoria surge
calcada, basicamente, em dois fatores: a
organização do funcionamento cerebral e sua
433
capacidade de permanecer com determinadas
funções, apesar de lesões sofridas. Segundo o
pesquisador, “Quando alguém sofre um derrame
ou outro tipo de dano cerebral, várias
capacidades podem ser destruídas, ou poupadas,
isoladamente, em relação a outras capacidades”
(GARDNER, 1995, p.14). A partir dos resultados
de suas pesquisas, Gardner identifica sete tipos
de inteligência: linguística, lógico-matemática,
espacial, musical, corporal-cinestésica,
interpessoal e intrapessoal.
Com a certeza de que, em muitas pessoas,
as inteligências funcionam juntas, o estudioso
afirma estar “convencido de que todas as sete
inteligências têm igual direito à prioridade”
(1995, p.15). Em função disso, defende a
existência de uma escola centrada no indivíduo
e suas possibilidades. Ou seja, as múltiplas
inteligências precisam ser estimuladas no
espaço escolar.
A despeito do fato de o ensino de línguas
figurar preferencialmente no âmbito da
inteligência linguística, ela oferece suporte para
os outros tipos de inteligência, em função dos
diversos gêneros textuais existentes. Gardner
afirma que a inteligência linguística “corporifica
a interação das inteligências” (GARDNER, 1995,
p.28). Desse modo, trabalhar os diversos
gêneros textuais com base nos princípios
semióticos, os quais permitem uma abordagem
434
ampla a todo tipo de texto, configura um
caminho importante para o letramento em
Língua Portuguesa.
Para tanto, traz-se a contribuição de
Simões (2009), uma vez que os textos
multimodais são caracterizados pelo uso de
poucas palavras, com elevada carga semântica,
associadas a texto não verbal. Nesse contexto, os
vocábulos funcionam como ícone, índice ou
símbolo, ressaltando o potencial sígnico inerente
às palavras. Desse modo, a TIV (SIMÕES, 2009)
apresenta aporte teórico necessário à análise do
léxico em ambiente multimodal. Segundo a
autora de Iconicidade verbal. Teoria e prática, o
potencial icônico da palavra decorre de sua
capacidade de representação de uma ideia ou
ideologia com base na similaridade. O índice, por
sua vez, apresenta-se como fio condutor da
interpretação, visto que aponta a direção ao
leitor. O caráter simbólico da palavra, decorre de
“uma manifestação sígnica que generaliza uma
apreensão-interpretação” (SIMÕES, 2009, p. 77–
78).
Para completar o aporte teórico, traz-se ao
texto a contribuição de Rojo no campo de
estudos do multiletramento. Segundo a
pesquisadora, qualquer que seja o sentido
tomado para o termo, seja no “da diversidade
cultural de produção e circulação dos textos ou
no sentido da diversidade de linguagens que os
435
constituem”, existem algumas características
importantes dessa proposta. Daquelas
apresentadas pela autora, destacam-se duas que
são pertinentes ao enfoque deste trabalho: a
interatividade e a composição híbrida (ROJO,
2012, p. 22-23). A interatividade diz respeito à
participação do leitor junto ao texto, algumas
vezes de forma colaborativa. A composição
híbrida ressalta as múltiplas linguagens usadas
na composição. Dessa forma, a análise proposta
neste estudo privilegia a multiplicidade de
linguagens, característica intrínseca à
multimodalidade.
Considerando a sala de aula como
ambiente formal propício ao ensino de línguas e
que a língua consiste em uma das formas de
expressão cultural, chama-se ao texto as
contribuições de Eco (2008), cujas pesquisas
oferecem suporte não apenas à leitura e à
interpretação de textos, mas também à sua
compreensão como expressão cultural. Segundo
o autor de As formas do conteúdo, o significado
de um termo “sob o ângulo semiótico só pode
ser uma unidade cultural” (2008, p. 16). Desse
modo, compreender o processo de identificação
dessas unidades culturais “significa
compreender a linguagem como fenômeno
social” (ECO, 2008, p. 16). A abordagem dos
textos com o viés cultural se faz necessária, uma
vez que o processo de significação de muitos
436
textos só é possível num ambiente que
compartilhe das mesmas unidades culturais.
Em função do exposto, a reconfiguração no
ensino de Língua Portuguesa e de línguas, de
modo geral, não pode se abster da necessária
abordagem de aspectos culturais. Logo, propõe-
se aqui uma abordagem a partir da interseção
língua X cultura a fim de que seja possível
proporcionar a identificação do alunado com o
ambiente escolar.
ANÁLISE DO CÓRPUS
O córpus proposto para a presente análise
consiste em texto publicitário de uma rede de
vendas de produtos na linha hortifrúti. Percebe-
se, pela alusão a uma diversidade considerável
de filmes, que o enunciador pretende alcançar o
maior número possível de clientes, com base na
idade ou em seus gostos pessoais. Para tanto, a
intertextualidade domina as produções. Os
textos remetem a filmes clássicos consagrados
pela tradição cinematográfica, a filmes infantis
ou ainda àqueles recentemente premiados.
Para este trabalho, foi selecionado um
texto, dos diversos disponíveis no site do
enunciador. Acompanha o texto original com o
qual mantém diálogo, a fim de que se possa
estabelecer a ligação entre ambos.
Concomitantemente à análise do córpus, serão
desenvolvidas algumas reflexões quanto ao
437
tratamento do texto e dos fatos gramaticais
junto a alunos do ensino básico.
Segundo Santaella, o texto publicitário faz
uso de três estratégias com o objetivo de
conquistar seu público-alvo. São elas: a sugestão,
a sedução e a persuasão (SANTAELLA, 2012, p.
140-142). A primeira atua na incerteza do
possível cliente, oferecendo-lhe “um campo
aberto de possibilidades”. A segunda atua sobre
o desejo, “o grande operador da sedução”. A
persuasão, por sua vez, faz uso do argumento a
fim de convencer seu destinatário.
438
campo X cidade perpassa todo o texto. Esse fio
condutor é possível com base na
intertextualidade, que se estabelece nas
modalidades verbal e não verbal (imagem, cor,
forma), com o texto-fonte.
No âmbito do texto não verbal, a gradação
de cores faz referência não só às cores do cartaz
original (imagem 2), mas também ao solo
característico do meio rural, região de origem do
produto e da dupla sertaneja. Segundo a
semioticista, as qualidades visíveis do texto
“também sugerem qualidades abstratas, tais
como leveza, sofisticação, fragilidade, pureza...”
(SANTAELLA, 2012, p. 143). No texto em
questão, as qualidades visíveis sugerem
valorização da terra, da natureza, das origens.
Além disso, a iconicidade da imagem em
primeiro plano – dois milhos, em tamanhos
diferentes, cada um “segurando” um
instrumento musical – faz referência aos dois
irmãos com idades e tamanhos diferentes, cada
um com um instrumento. A formatação do título
também contribui para o processo de
intertextualidade a partir da fonte bastante
aproximada à do modelo. Acrescente-se ainda a
figura acima do substantivo milhos. O destaque
apresenta uma enxada ladeada por dois milhos
de tamanho menor e um milho “adulto”. Esse
signo, que remete à imagem 2, representauma
pessoa adulta e duas menores, certamente o pai
439
e os filhos cantores; entre eles observa-se a
enxada, antigo instrumento de trabalho,
substituído pelos instrumentos musicais.
Segundo Eco, “numa relação de semiose, o
estímulo é um signo que para poder produzir a
resposta, deve ser mediado por um terceiro
elemento que permite ao signo representar seu
objeto para o destinatário” (ECO, 2008, p. 3)
Ou seja, caso o destinatário da publicidade
do Hortifrúti (Imagem1) não conheça o cartaz
original (Imagem 2), a intertextualidade pode
não se concretizar e não haverá possibilidade de
compreensão, visto que o conhecimento do texto
representado na segunda imagem possibilitará
que o processo de semiose seja completo. Essa
evidência deixa clara a necessidade do
multiletramento como temática necessária ao
ensino.
Quanto ao conteúdo verbal do texto, várias
abordagens são necessárias. Nesse sentido,
percebe-se a intenção do anunciante desde o
slogan “Aqui a natureza é a estrela”. Vale
lembrar que um dos papéis do slogan é fazer
com que o leitor identifique o enunciador em
qualquer lugar. Nesse contexto, percebe-se a
influência dos aspectos culturais na
interpretação do texto. A publicidade eleva seu
produto ao status de estrela. O vocábulo estrela
conduz à ideia de que a natureza é “o centro das
atenções”. Dessa forma, é possível remeter a
440
frase do slogan a uma dupla interpretação: a
primeira quanto à valorização da alimentação
saudável, natural; a segunda remete ao campo
semântico produção cinematográfica, compara
os produtos às estrelas do cinema.
Além da intertextualidade, já mencionada,
a análise desse trecho nas aulas de língua pode
ser feita: a) em relação à estrutura do texto
publicitário, ressaltando a importância do slogan
na disseminação do perfil do anunciante; b) no
tratamento da metáfora, enquanto síntese de
ideias e c) na polissemia do vocábulo estrela.A
metáfora construída na frase citada só é possível
em função do caráter simbólico de estrela,
representando sucesso, fama.
Do mesmo modo, a análise do título do
anúncio “2 milhos de Francisco”, sugere o
desenvolvimento de aspectos culturais, sem os
quais não será possível compreender quem vem
a ser Francisco, no texto. Segundo a autora de
Leitura de imagens, “Sob o ponto de vista
indicial, a mensagem é vista como algo que
existe em um espaço e tempo determinado”
(SANTAELLA, 2012, p.144). Logo, o texto em
análise é dirigido a um público específico, com
tempo e espaço definidos. Devido a essa
especificidade, há necessidade de constante
renovação nas propostas publicitárias do
anunciante, conforme se percebe nas inúmeras
441
propostas na página a que pertence o texto
selecionado.
Ainda no tratamento da parte verbal,
sugere-se ainda o estudo da camada fônica da
língua, a partir da qual pode-se trabalhar a
importância do fonema na constituição do
vocábulo. Calcado no princípio de que uma
simples alteração no ponto de articulação pode
provocar equívoco na comunicação dos falantes,
acredita-se que a identificação dos traços
distintivos entre os fonemas /m/e /f/, em outros
vocábulos da língua, tende a enriquecer o
conhecimento dos alunos nesse tópico.
A análise do subtítulo, “eles saíram do
campo para estourar na hortifrúti”, polissêmico
em toda a sua composição, também pode
provocar o aprendizado com base na referência
a ambos os protagonistas das propagandas:
cantores e produto agrícola, conforme se pode
observar no quadro a seguir. Pode-se analisar a
coesão textual com o pronome pessoal, a
polissemia dos verbos sair e estourar e o uso do
substantivo hortifrúti, em referência ao campo
semântico cidade. Nesse caso, é interessante
observar que, com exceção do adjunto adverbial
de lugar, “na hortifrúti”, todo o restante do
subtítulo pode ser usado nos dois textos
apresentados. Essas considerações trazem
contribuição significativa ao multiletramento
442
dos discentes e ao desenvolvimento da leitura e
interpretação textual.
443
A proposta de análise do córpus destaca a
importância da abordagem cultural no ensino de
línguas, uma vez que a circulação dos textos tem
seu alcance limitado a certo público. Saindo
desse contexto, a publicidade pode não alcançar
seu objetivo. Essa articulação deve ser possível
não apenas nos textos selecionados para o
ensino, mas também nas atividades a serem
executadas pelos alunos. Essa proposta parte da
necessidade de sensibilização do aluno e
também contempla as múltiplas inteligências.
Em função disso, apresenta-se a seguir o
resultado de trabalho desenvolvido com alunos
do Ensino Médio.
EXERCÍCIO DE REPRESENTAÇÃO IMAGÉTICA
Com o objetivo de perceber o potencial de
subjetivação dos alunos do terceiro ano do
Ensino Médio, foi proposto que eles
representassem, por meio de imagens, um texto
verbal. Santaella afirma que
444
Na obra citada, a autora faz sugestões de
atividades de leitura de textos publicitários, a
fim de possibilitar um treinamento do olhar. A
despeito da importância desse tipo de atividade,
considera-se que outras propostas também
poderão contribuir para esse exercício do olhar,
da leitura do texto imagético. Apresenta-se a
seguir o resultado da atividade proposta a uma
turma do primeiro ano do Ensino Médio, em
escola pública. A proposta consistiu na seleção
de um texto poético, a partir do qual seria
produzido um texto imagético que
representasse, o mais fielmente possível, a
mensagem do texto verbal. Um dos grupos
escolheu o poema “Não há vagas” de Ferreira
Gullar, transcrito a seguir.
445
não cabe no poema não fede
com seu salário de nem cheira
fome
sua vida fechada
em arquivos.
446
Imagem 7 – 12º ao 16º verso - Imagem 8 – 17º ao 21º
verso
447
O poema critica a ausência da tematização
de fatos reais nos textos poéticos. O título, em
forma de denúncia, remonta aos cartazes nas
portas de grandes empresas, informando a não
existência de vagas, denunciando o desemprego
recorrente às classes menos favorecidas. A
oposição realidade X subjetividade foi
apreendida pelos alunos, que representaram
grupos de versos a partir de imagens recortadas
e coladas em cartolina.
Percebe-se que, na maioria dos cartazes,
algumas palavras funcionaram como ícones na
escolha das imagens (imagens 4, 5, 7, 8e 9);
configurando uma representação menos
subjetiva, mais real, da mensagem. Para a
composição do primeiro cartaz, referente ao
título do poema, foram escolhidas imagens de
contas rasgadas, provavelmente não pagas; essa
escolha denota a percepção das consequências
do desemprego na vida do cidadão, que fica sem
condições de arcar com as dívidas inerentes à
sobrevivência no cotidiano.
Na imagem nº 6, com os versos “a
sonegação do leite, da carne, do açúcar, do pão”,
percebe-se que a palavra de maior impacto para
os alunos, influenciando na escolha das imagens,
foi, provavelmente, sonegação. As imagens
selecionadas representam o reflexo dessa
sonegação na sociedade. Dessa forma, o
vocábulo funcionou como índice na apreensão
448
da mensagem e na escolha das imagens,
alcançando, por isso, uma representação mais
subjetiva dos versos. A10ª imagem buscou
representar o lado não real privilegiado pelos
poemas, alvo da crítica de Gullar: “Só cabem no
poema / o homem sem estômago / a mulher de
nuvens / a fruta sem preço”. Nesse cartaz, com
imagens associadas aos pensamentos/sonhos de
uma mulher, observam-se índices que deflagram
uma ideia de sucesso, bem-estar, prazer e
liberdade.
Finalmente, no último cartaz, “O poema,
senhores, não fede nem cheira”, destaca-se a
ausência de imagem. Essa configuração é
bastante simbólica. Primeiramente, a não
presença de imagem representa a ausência de
valor, deflagrado pelo advérbio de negação “não
fede nem cheira”. Corrobora essa leitura o fundo
preto, sinal de luto, vazado pelo protesto
presente nas letras brancas. Sem cheiro, o
poema não evoca lembranças, não produz
verossimilhança, não cria identidade nem
promove a fruição no ato de leitura.
O trabalho desenvolvido pelos alunos
demonstrou a habilidade inata, configurada
pelas múltiplas inteligências, que devem ser
melhor exploradas nas salas de aula. O exercício
das diversas formas de expressão contribui
significativamente para o processo de
449
desenvolvimento da leitura e da escrita,
principalmente no âmbito da multimodalidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A popularização da tecnologia e a
proliferação de mídias diversas configuraram
terreno fértil à multimodalização nos textos.
Característica intrínseca a diversos gêneros
textuais, sua abordagem nas salas de aula é
tanto necessária quanto enriquecedora. Além do
fácil acesso a esse tipo de texto, deve-se essa
constatação às múltiplas possibilidades dos
textos multimodais, do seu poder de
convencimento e das habilidades despertadas
não apenas na sua produção, mas também na
sua apreensão.
Conforme demonstrado nos textos-córpus
aqui propostos, vários são os recursos utilizados
pelo anunciante na divulgação de seu produto. O
uso da intertextualidade, como ferramenta para
deflagrar a memória afetiva do possível leitor e
provocar sua identificação com o produto
anunciado; os signos representando ideal de
luta, de determinação e de valorização da terra
(como provedora e lugar de origem) provocam
empatia no leitor e aumenta, consequentemente,
a possibilidade do consumo.
Nessa perspectiva, entende-se que as
estratégias usadas pelos textos multimodais
podem e devem ser usadas como ferramenta no
450
desenvolvimento da habilidade de leitura e
interpretação de texto. A estrutura característica
a esse tipo de texto proporciona o ensino de
fatos gramaticais, aspectos discursivos e traços
culturais inerentes à construção dos
significados. Entende-se necessária essa
contribuição, com o intercâmbio dos aspectos
culturais, tanto para falantes nativos quanto no
âmbito do português como língua estrangeira.
REFERÊNCIAS
ECO, Umberto (2008). As formas do conteúdo.
Trad. Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva.
GARDNER, Howard (1995). Inteligências
múltiplas: a teoria na prática. Trad. Maria
Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artes
Médicas.
GULLAR, Ferreira (2004). “Não há vagas” In:
Melhores poemas de Ferreira Gullar.
GULLAR, Ferreira. Seleção e apresentação
Alfredo Bosi. 7.ed. São Paulo: Global.
ROJO, Roxane Helena Rodrigues (2012).
Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola
Editorial.
SANTAELLA, Lucia (2012). Leitura de imagens.
São Paulo: Editora Melhoramentos.
451
SIMÕES, Darcilia (2009). Iconicidade verbal.
Teoria e prática. Rio de Janeiro: Dialogarts. In
http://www.dialogarts.uerj.br/arquivos/iconici
dadeverbal.pdf
http://hortiflix.com.br – acesso em 19 agosto
2017.
BIODATA
Márcia da Gama Silva Felipe é Doutoranda em
Língua Portuguesa (UERJ), Mestre em Língua
Portuguesa (UERJ/2017). Professora
concursada SEEDUC - RJ e SME - RJ. Atua nas
disciplinas de Língua Portuguesa, Literatura e
Redação. Membro do grupo de pesquisa
Semiótica, Leitura e Produção de textos
(SELEPROT) e da Asociación de Linguística y
Filología de América Latina (ALFAL). Realiza
pesquisas no âmbito da leitura e interpretação
de texto, calcadas em teoria de base Semiótica,
voltadas para o léxico na literatura. Atualmente,
investiga a obra de Graciliano Ramos com foco
na construção da identidade das personagens,
das obras publicadas na década de 1930,
durante a vigência do Estado Novo. Link
currículo:
http://lattes.cnpq.br/0368935869283244. E-
mail: prof.marciadagama@gmail.com.
452
A INICIAÇÃO CIENTÍFICA NA
EDUCAÇÃO BÁSICA: UMA REFLEXÃO À
LUZ DA SEMIÓTICA E DA FILOSOFIA
INTRODUÇÃO
453
segundo a qual as ciências estão primariamente
voltadas para resolver problemas práticos.
A palavra desenvolvimento é empregada de
forma recorrente no texto, associada aos
adjetivos “científico e tecnológico”, à expressão
“soluções técnicas e tecnológicas”. Fala-se em
“desenvolvimento socioeconômico local e
regional”, “desenvolvimento socioeconômico
local, regional e nacional” e “desenvolvimento
socioeconômico e cultural”. Uma análise
preliminar do texto legal nos permite chamar
atenção sobre a posição reservada à pesquisa:
vista como instrumento de política pública, a ela
caberia um papel auxiliar (não menos
importante), contribuindo para o alcance de
uma nova ordem de bem-estar econômico e
social. A ênfase dada ao desenvolvimento seria
reveladora de distorções e desequilíbrios
subjacentes, fatores que nos afastariam de um
estado de bem-estar; distorções e
desequilíbrios, vale lembrar, que estão longe de
serem superados quando se leva em conta o
atual cenário brasileiro.
À primeira vista parece quase impossível
levantar restrições a uma visão da atividade
científica como agenciadora de “soluções” em
resposta às demandas da sociedade. No entanto,
uma primeira questão se impõe: a despeito da
nobreza das intenções, não estaríamos diante de
uma visão excessivamente restritiva do fazer
454
científico?, o que nos levaria a propor uma
segunda questão: a atividade de pesquisa na
educação básica, reduzida a esta visão sobre a
ciência, não estaria em contradição com um
processo formativo mais amplo, que
consideraria o papel da ciência como
provocação, como força desestabilizadora e
criadora de novos conhecimentos sobre o
mundo e sobre nós mesmos? Abre-se, assim, a
discussão sobre uma prática científica que, sem
negar a busca por soluções tecnológicas, deveria
ser orientada para a compreensão do sujeito e
para a discussão do processo histórico de
acumulação de conhecimento.
Neste trabalho, nos propomos realizar a
discussão a partir de duas perspectivas
diferentes, filosófica e semiótica. A convergência
das perspectivas está na constatação de que a
compreensão do que é a ciência precisa ser
reelaborada nas instituições de ensino. Uma
visão mais aprofundada e mais ampla das
práticas científicas e de suas possibilidades pode
conduzir ao aprimoramento da iniciação
científica na educação básica.
Da perspectiva da história da filosofia da
ciência contemporânea é evidente que a visão da
neutralidade e do lugar de destaque do
conhecimento científico frente às outras práticas
humanas está superada. Como será visto, ela
mostra que as ciências não têm nenhum status
455
especial em relação às outras práticas culturais
humanas.
De outra perspectiva, a semiótica faz ver
para além das aparências. Neste trabalho, a
Sociossemiótica, enquanto uma das formas
atuais da semiótica geral, em sua vertente
europeia (LANDOWSKI, 2014), coloca-se diante
do desafio de refletir sobre os objetos e os
discursos da iniciação científica na educação
básica. Um pressuposto é que a escolha dos
meios produz efeitos de sentido que não podem
ser deduzidos do propósito expresso de
promover pesquisa para produzir “soluções”.
Por trás de finalidades e objetivos manifestados,
entre outros instrumentos, nos textos legais, é
possível fazer emergir intenções e
representações, mesmo que não assumidas por
seus enunciadores.
456
processo de produção científica, a fim de tornar-
se sujeito autônomo, capaz de pensar os meios e
os fins de sua ação, tal desconhecimento não
inviabiliza a produção de pesquisa e
conhecimento em si mesmo, nos moldes em que
se espera que isso seja feito. Não são raros os
casos de profissionais extremamente
qualificados que conhecem profundamente um
método e sua aplicação numa área de pesquisa e
ignoram tanto outros métodos quanto outras
áreas — quando não as desprezam. Mas antes
do que a militância pelo caráter científico das
“humanidades”, vale ressaltar a questão
pedagógica: a atuação na iniciação científica no
Ensino Médio, sem a reflexão crítica prévia
sobre as concepções de métodos e de fazeres
científicos. Aquela conhecida preleção acerca da
neutralidade científica (em qualquer sentido
que possa ser entendida) aparece como um
mito, há muito contado e há muito fiado.
Nossa experiência na iniciação científica
nas escolas técnicas constatou a proeminência
de uma visão limitada de ciência e de fazer
científico. A formação para a pesquisa orientada
única e exclusivamente para a resolução de
problemas práticos origina-se numa visão da
ciência e de mundo calcada na utilidade, via de
regra, econômica e/ou militar. Não restam
dúvidas de que uma visão unidimensional
empobrece sobremaneira o fazer científico, seu
457
aprendizado e a própria ciência. Mais do que
isso, nos impede de ver que as práticas são elas
mesmas construtoras de sentidos e não meras
representações de uma ordem primeira. Como a
adoção de uma perspectiva semiótica poderá
demonstrar na sequência dessa exposição.
A ideia de que a ciência pode ser neutra se
encontra ajustada com a de que sua principal
função é resolver problemas práticos. Constrói-
se assim uma visão de ciência que pode ter tanto
a função de oráculo quanto de salvadora; não é
raro que se pense e afirme publicamente que
dela virá a solução para todas as perguntas e
todos os problemas. A história desse equívoco
tem muitos séculos, mas vamos tentar resumi-la
em poucas páginas.
Ao que tudo indica, a ideia de que a ciência
é neutra repousa fundamentalmente em dois
autores: Euclides (~300 a.C.) e Newton (1687).
Euclides brindou a humanidade com o primeiro
sistema axiomático conhecido: elaborou uma
exposição da Geometria, demonstrada partindo
de algumas definições, cinco postulados e cinco
axiomas. Newton realizou séculos depois a
mesma proeza na Física.
De início pode-se afirmar que Euclides se
conjuga à tradição bastante antiga, que remonta
aos filósofos pré-socráticos (séc. VI – V a.C.) e
Platão, dada continuidade por Descartes, Leibniz
e Spinoza (dentre outros), que constitui uma
458
linhagem filosófica cujo parâmetro de referência
para o conhecimento (episteme) é a matemática.
Para o racionalismo, a geometria demarcou para
sempre a linha divisória entre o mundo sensível
e o mundo inteligível.
Foi só na época das luzes que Isaac Newton
e seus Princípios Matemáticos de Filosofia
Natural (1687) apresentam a Física,
enriquecendo as referências com “mais uma
ciência bem-sucedida”. O “sucesso” de Newton
estava em apresentar, a partir de definições e
três leis básicas, toda a teoria do movimento.
Não tenho dúvida de que a axiomatização
deu um amparo seguro à ideia de que as ciências
(aquelas que mereceriam ter esse rótulo) eram
neutras. Uma vez assumida a verdade dos
axiomas, aceitas as definições, toda a teoria se
apresentava demonstradamente. Toda a teoria
estava erigida nos axiomas, cuja justificação em
geral podia ser assumida como evidente. Dados
os axiomas e procedimento ou mecanismo de
inferência, estava dada toda a teoria, o que mais
poderia interferir?3 Gottlob Frege trouxe a
459
distinção, resgatada do neokantismo alemão,
entre “contexto de descoberta” e “contexto de
justificação” para a cena contemporânea da
filosofia analítica, juntamente com sua
Begriffsschrift, uma escrita conceitual. Além
disso, Frege revolucionou a lógica e essa
revolução foi o motor da virada linguística que a
Filosofia empreendeu nas primeiras décadas do
século XX. É essa tradição que Hacking (1983)
acusa de transformar a ciência numa múmia.
“Quando eles finalmente desembrulharam o
cadáver e viram os restos de um processo
histórico de tornar-se e descobrir, criaram para
si mesmos uma crise da racionalidade.”4
(HACKING, 1983, p. 1)
A ideia de crise surge do confronto dessa
descoberta com uma tradição de pensamento
que acredita que o conhecimento científico é a
conquista mais relevante da razão humana. É
460
essa visão que deu suporte à discussão, acredito
que clássica, entre Rudolf Carnap e Karl Popper.
Ambos acreditavam que as teorias científicas
eram sistemas axiomáticos, o que pressupõe
uma distinção estrita entre observação e teoria.
Ambos consideravam que o conhecimento é
majoritariamente acumulativo e, junto com a
diferença fundamental entre contexto de
descoberta e contexto de justificação, herdaram
também da tradição analítica a consideração
pela precisão terminológica e interesse pela
lógica.
Tanto Carnap quanto Popper foram
grandes admiradores das ciências naturais e
tomaram a Física como o melhor exemplo da
racionalidade humana. Um ponto importante
sobre o qual sua controvérsia se estabelece é
sobre um critério ou modo de distinguir a boa
ciência da especulação sem sentido e mal
formulada. Carnap supõe a importância de fazer
a distinção em termos linguísticos, mais
especificamente, proclamou que o discurso
científico tem significado e que, por exemplo, o
discurso metafísico não. As proposições com
significado podem ser verificáveis e a verificação
ou a confirmação ocorre a partir da soma das
observações, nos moldes das ciências indutivas.
Há uma tradição mais antiga (séc. XVII)
que compreende que o método científico parte
de observações precisas, conduz experimentos
461
com cuidados e registra os resultados fielmente,
para então fazer generalizações e analogias para
construir hipóteses e teorias. Durante todo o
processo, o cientista organiza os fatos e
desenvolve novos conceitos, procurando chegar
às leis que subjazem à natureza. Hacking (1983,
p. 3) afirma que Carnap pensa sua filosofia como
uma versão do século XX desta atitude.
Evidência disto seria o fato de que seu interesse
esteve sempre voltado à confirmação,
procurando analisar o modo como as evidências
tornam a hipótese mais provável.
Para Popper, a distinção entre o que é boa
ciência e o que não é não pode ser feita a partir
dos estudos sobre o significado. Ele admite
inclusive que as teorias científicas poderosas
não podem ser verificadas, porque seu escopo é
muito amplo. Mas elas podem ser testadas e
podem nesse processo se mostrar falsas. Assim
entende que o critério para saber se uma
proposição é científica é a possibilidade de ser
falseável (falsifiable). Na sua visão, a ciência
começa com conjecturas teóricas e então deduz
as consequências; essas consequências devem
ter sua verdade testada, em busca, não de
confirmação, mas de refutação.
Assim como os racionalistas, Popper ainda
acredita que o “verdadeiro conhecimento” é
uma questão de derivar consequências a partir
dos primeiros princípios (axiomas) por meio de
462
demonstrações. Mas Popper concorda com
Hume que temos, no máximo, uma propensão
psicológica a fazer generalizações da
experiência, e que assim não há garantia
racional para as generalizações indutivas. A
racionalidade da ciência não tem a ver com o
quão bem nossas evidências suportam nossas
hipóteses. Racionalidade para Popper é uma
questão de método, o método da conjectura e
refutação: de adivinhações (farreachingguesses)
sobre o mundo, deduzir consequências
observáveis, testá-las, e seguir testando. Os
casos em que elas são falsas demandam revisão
ou mesmo reinvenção das conjecturas iniciais.
Uma hipótese que passou por muitos testes
pode ser dita corroborada, mas não pode ser
considerada absolutamente verdadeira, apenas
sobreviveu à bateria de testes. Entretanto,
mesmo que para Popper a ciência procure por
refutações, ela é evolutiva e tende para a direção
da elaboração de uma única teoria verdadeira
do universo.
Mas até aqui tudo certo com a visão
tradicional da ciência neutra e heroica. A crise
mesma foi provocada por Thomas Kuhn e seu
memorável A estrutura das revoluções científicas.
Ao desdobrar para o leitor o modo como as
ciências se comportam ao longo do tempo, a
obra propõe a seguinte estruturação em
463
períodos: ciência normal, crise, revolução e nova
ciência normal.
A ciência normal caracteriza-se por
resolver enigmas (puzzle-solving), mas, como
“toda teoria nasce refutada” (Hacking, 1983,
p.7), teorias científicas atrativas e úteis sempre
acabam lidando com anomalias ou falhas, que se
pretendem resolver. Uma parte da ciência
normal ocupa-se com a articulação matemática
da teoria, para que se torne mais inteligível e
suas consequências mais explícitas. Muito da
ciência normal está vinculada à aplicação
tecnológica. Uma parte trata da elaboração e
clarificação dos fatos implicados pela teoria.
Uma parte dedica-se a medições refinadas de
quantidades que a teoria diz que são
importantes. Mas não se faz isso para confirmar
ou testar a teoria, e sim para acumular
construtivamente um corpo de conhecimento e
conceitos em algum domínio de investigação.
O acúmulo de anomalias pode desencadear
uma crise. Quando a comunidade científica gasta
sua energia com as anomalias, mas as coisas
ficam piores, tornando uma perspectiva teórica
inteira cada vez mais nebulosa, ocorre uma
revolução. Uma outra aproximação a partir de
novos conceitos pode ser considerada. Se os
fenômenos problemáticos se tornam inteligíveis
à luz dessas novas ideias, muitos trabalhadores
— principalmente os mais jovens — convertem-
464
se às novas hipóteses. Isso pode acontecer
mesmo que tenham à disposição poucos pontos
seguros e não tenham entendido ainda as
mudanças radicais em progresso.
A ideia de revolução científica não põe,
por si mesma, a racionalidade científica
em questão. Temos adotado a ideia de
revolução por longo tempo, mas ainda
continuamos sendo bons racionalistas.
Mas Kuhn apresenta a ideia que toda a
ciência normal traz em si as sementes de
sua própria destruição. Há aqui uma ideia
de revolução perpétua. Mesmo esta não
precisa ser irracional. Poderia a ideia de
Kuhn de revolução como uma troca de
‘paradigmas’ ser um desafio para a
racionalidade?5 (HACKING, 1983, p. 9)
465
parte do sucesso da geração anterior em
resolver os velhos problemas e aplica suas
estratégias, conceitos e conhecimentos aos
novos enigmas. O sucesso das realizações da
geração anterior serve de modelo para a
próxima geração.
De outro lado, tem-se o paradigma como
um conjunto de valores comuns (paradigm-as-
set-of-shared-values), que são compartilhados
dentro de pequenos grupos de pesquisa (não
necessariamente por toda a vasta “máquina” da
ciência). Cada grupo partilha um conjunto de
métodos, padrões e assunções básicas, que são
passados aos estudantes e inculcados nos livros,
usado para decidir qual pesquisa terá verba,
qual o problema que importa, quais soluções são
admissíveis, quem vai ser promovido, quem
publica etc.
As revoluções científicas são comparadas
por Kuhn à conversão religiosa e aos fenômenos
da mudança da Gestalt, apontando para uma
mudança radical no modo como alguém sente a
vida. “Mais importante é que ele sugere um novo
cenário: depois de uma troca de paradigma, os
membros da nova matriz disciplinar ‘vivem em
um mundo diferente’ do dos seus
predecessores”6(Hacking, 1983, p. 12). Assim, a
466
revolução não é racional só porque a nova teoria
se ajusta melhor aos fatos do que a antiga.
Kuhn sugere que pode não ser possível
expressar as ideias da antiga teoria na nova,
assim as revoluções ocorrem com a troca entre
teorias incomensuráveis. Uma nova teoria é uma
nova linguagem, não há como achar uma
linguagem neutra quanto a teorias para então
expressar as duas. Os proponentes de teorias
diferentes são falantes nativos de linguagens
diferentes e há limites nas comunicações entre
as diferentes teorias. A ciência normal pode ser
cumulativa, mas a ciência em geral não é.
Tipicamente, depois de uma revolução, uma boa
porção da química ou da biologia serão
esquecidas, acessíveis apenas aos historiadores
que buscam visões de mundo descartadas.
Esse cenário geral e, principalmente, a
incomensurabilidade advogada por Kuhn
mostram que as práticas científicas, bem como
as teorias científicas, mesmo quando
completamente axiomatizadas, não são
indiferentes às questões pragmáticas. Não há,
entretanto, na nova abordagem da filosofia da
ciência, questionamento direto da objetividade
científica. As teorias sofrem a exigência de
serem acuradas, de serem corroboradas por um
467
conjunto grande de dados experimentais. A
consistência interna e com outras teorias
aceitas, bem como a amplitude do escopo e da
riqueza de consequências são critérios
perfeitamente aceitáveis e recomendáveis. No
âmbito da ciência normal, experimentos cruciais
podem decidir entre hipóteses rivais. Mas esses
valores são suficientes para decidir entre teorias
que competem entre si; outras qualidades
entram em jogo, e são qualidades para as quais
não pode haver algoritmos formais.
O resultado parece ser, então, a
objetividade, é a ilusão sobre “eternidade” do
conhecimento científico que vem à tona. A ideia
predominante de uma justificação “eternizada”
na verdade das leis do mundo, reforçada pelas
progressivas “descobertas” (principalmente na
física, na química e na astrofísica) e pelo inédito
desenvolvimento tecnológico, conduziu a esta
visão da ciência como “salvadora de todos
males” ou “solucionadora de todos os
problemas”. Não se trata aqui de negar os
estarrecedores avanços tecnológicos que a
humanidade vivencia desde os últimos cento e
cinquenta anos, acentuados nas últimas décadas.
Antes tomá-los em consideração de uma
perspectiva menos dogmática e preconcebida,
em busca de um esclarecimento do que é o fazer
científico e, talvez, de quais expectativas
468
podemos ter de seus resultados, haja vista que
estamos tratando de processos sócio-históricos.
469
de um TCC como requisito para a obtenção do
diploma de técnico de nível médio) e receptores
dos produtos da atividade científica. O presente
trabalho é uma tentativa de colaborar na
compreensão do fazer ciência e da construção
da imagem do sujeito pesquisador, no contexto
da educação técnica de nível médio, consoante
com a concepção de uma teoria semiótica que se
volta para os processos de produção e de
recepção dos objetos de discursos.
A reflexão semiótica que se desenvolveu
em torno do que Landowski chama de “projeto
semiótico” (2014) se articula sob um
pressuposto fundamental: estamos em um
mundo de sentidos construídos que solicitam
decifração. As interações com o outro e com o
ambiente que nos circunda, enquanto espaço
sociocultural mais amplo, produzem sentidos
não só da ordem da racionalidade, mas também
da sensibilidade.
A iniciação científica, aqui compreendida
como um conjunto de práticas, atividades (aulas,
apresentações de trabalhos, roteiros de
investigação empírica etc.) e produtos na forma
de textos variados (projetos de pesquisa,
formulários, planilhas, TCC etc.) não se encerra
em uma dimensão puramente do inteligível e do
funcional, há também uma dimensão do
sensível, que tende a ser apagada como não
pertinente ao campo da ciência. A iniciação
470
científica vista como uma prática discursiva
multiforme se converte em um objeto de análise
semiótica, que comportaria duas dimensões: a
do inteligível, da ordem do fazer saber, e a do
sensível, da ordem dos afetos, daquilo que se
passa com os alunos dos cursos técnicos no
papel de sujeitos pesquisadores, às voltas com
as exigências institucionais de desenvolver
trabalhos de conclusão de curso. Nosso foco é
descrever os elementos que compõem esse
objeto de análise para compreender suas inter-
relações, partindo da proposição de Landowski,
segundo a qual o modo das relações dá o sentido
às ações e às interações que ocorrem.
Os sentidos desse tipo de prática, a da
iniciação científica na educação básica, não
podem ser vistos como algo predeterminado,
uma espécie de percurso já previsto porque
derivaria de uma ordem anterior à pesquisa
empreendida pelos alunos. Mas algo construído,
conforme a perspectiva defendida pela
sociossemiótica, por meio do discurso que os
próprios estudantes fazem considerando sua
subjetividade e o seu mundo de referências
culturais, sociais, históricas e familiares: um
mundo cotidiano de experiências,
conhecimentos e afetos. Se nos situamos nesse
campo de reflexão, como pensar a construção da
verdade na pesquisa desenvolvida na educação
básica? Fazer ciência é aplicar teorias para
471
compreender aspectos do mundo e de nós
mesmos, para explicar aspectos dos fenômenos
que elegemos como tema de nossas
investigações? É encontrar “soluções”, como
propõe o texto legal, mencionado anteriormente,
ou é apontar problemas? A semiótica é uma
ferramenta para ver melhor e mais longe
imagens, espaços, textos e interações que fazem
parte da prática científica na escola, às voltas
com uma visão sobre a ciência e seu fazer, que
precisa ser problematizada.
472
afirmação de Landowski: uma das razões de ser
da (sócio)semiótica, talvez a principal, é
justamente, como no romance de Proust, nos
ajudar a ultrapassar o programado. Por que
praticar semiótica a não ser para se liberar?
Por que fazer iniciação científica a não ser
para se emancipar de ideias redutoras sobre a
realidade e sobre o que é fazer ciência?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho é antes de tudo uma
provocação. Como pensar uma prática científica
que, sem abrir mão do rigor necessário à
investigação, se abre para a vida e suas
circunstâncias, capaz de compreender de forma
profunda e consequente que os objetos de
estudo são construídos por sujeitos
pesquisadores que precisamos estar cientes dos
riscos dessa empreitada, mas também
encantados por suas possibilidades.
A história da filosofia nos fornece um
itinerário de ideias, balizas para compreender
de que ciência estamos falando, uma espécie de
bússola, enquanto a semiótica se coloca como
um instrumento de trabalho que toca a
superfície às vezes áspera e difusa da realidade,
considerando sua face real e não seu modelo
idealizado. Em termos semióticos, ao analisar os
produtos resultantes das atividades de pesquisa
e as próprias atividades dos alunos
473
pesquisadores, nos deparamos com atribuição
de sentidos nas relações que estabelecemos com
a prática de investigação.
Imaginar que os efeitos de sentido da
prática da iniciação científica emergem
exclusivamente da organização interna dos
objetos empíricos produzidos (relatórios,
resumos, cadernos de campo, trabalhos de
conclusão) é uma ilusão. Esses diferentes
objetos que comunicam a experiência científica
empreendida pelos jovens constroem sentidos
em função de quem fala/escreve, do lugar de
onde se fala, das formas de interação
possibilitadas e daquelas que são interditadas. A
situação de comunicação em que pensamos a
iniciação científica constrói sentidos, o que
inclui o modo como os diferentes atores
interagem. Diferente de pensar um dentro e um
fora da pesquisa, articulam-se complexas
relações em uma situação de pesquisa científica
na qual os textos produzidos não podem ser
pensados sem que consideremos as condições
de sua produção.
Devemos deixar de lado, não interrogar e
muito menos investigar, o que não pode ser
enquadrado por uma visão tradicional de ciência
neutra e heroica? Se a realidade nos coloca
diante de aparências “indizíveis” por essa língua
científica, o que devemos fazer? Devemos tratar
da vida cotidiana? De problemas sem soluções
474
práticas? A resposta não é mais importante do
que a pergunta. Afinal, a prática científica não
pode ser uma indagação sobre os sentidos... da
vida?
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http://seer.fclar.unesp.br/casa/article/view/71
29. Acesso em 11/11/2017.
476
BIODATA
477
http://lattes.cnpq.br/3524354477870823. E-
mail: faniadorne@gmail.com.
478
A MULHER NA LITERATURA DE
CORDEL
Morgana Ribeiro dos Santos
INTRODUÇÃO
Este artigo discute a figura da mulher na
literatura de cordel, a partir da leitura de um
fragmento do poema A mulher que vendeu o
marido por R$ 1,99, de Janduhi Dantas (2011).
Nessa análise, sob a orientação da Estilística
influenciada pela Semiótica e pela Semântica,
investiga-se como se constroem, no texto em
foco, duas linhas isotópicas opostas, em que os
substantivos e adjetivos/locuções adjetivas
contribuem para dois recortes de sentido, um
que exalta o protagonismo feminino, e outro que
ridiculariza a figura masculina.
Em cotejo com o texto de Dantas (2011),
apresentam-se fragmentos dos cordéis O
Romance do pavão misterioso, de José Camelo de
Melo Rezende (2000), publicado pela primeira
vez em 1923, e As herdeiras de Maria, de Dalinha
Catunda (2017). Essas leituras enriquecem o
debate sobre o feminino no cordel e esclarecem,
com o aparato da perspectiva dialógica, como
tem se desenvolvido a discussão sobre essa
temática na literatura de folhetos, do início do
Século XX ao início do Século XXI.
479
Considerando-se a importância e a
atualidade dos estudos sobre o feminino e o
valor da literatura de cordel como expressão da
voz popular, este artigo pretende contribuir
para a observação de como os recursos
linguísticos, nesse caso, os substantivos e
adjetivos/locuções adjetivas, são selecionados e
aplicados a fim de significar a condição da
mulher na literatura de cordel e na sociedade.
Além disso, este trabalho defende a presença do
cordel na escola, nas aulas de língua materna,
como objeto de estudo dos fatos linguísticos e
culturais.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A literatura de cordel é uma manifestação
da poesia popular brasileira que floresceu no
Nordeste, a partir do diálogo com a cultura
europeia, enraizada nas tradições orais e
configurada como gênero da literatura popular
escrita no final do Século XIX. Haurélio ressalta
que a literatura de cordel “reaproveita temas da
tradição oral, com raízes no trovadorismo
medieval lusitano, continuadora das canções de
gesta” ao mesmo tempo em que serve como
“espelho social de seu tempo” (2010, p. 16).
Haurélio (2010) esclarece que a literatura
de cordel é uma ramificação da poesia popular
nordestina assim como o repente, a poesia
matuta e a embolada.
480
O Cordel é um dos galhos da árvore da
poesia popular, como o repente também
o é. Entretanto, Cordel e repente não são
a mesma coisa, pois, à medida que a
árvore cresce, os galhos se distanciam,
conquanto estejam unidos pela origem
comum. O tronco desta árvore é a poesia
popular. A embolada e a poesia matuta,
dentre outras manifestações, são também
galhos ou ramos importantes
(HAURÉLIO, 2010, p. 18).
481
Entende-se que o nome cordel foi aplicado
aos folhetos populares característicos da cultura
nordestina pelo fato de terem sido
tradicionalmente dispostos para o público
consumidor pendurados em cordões ou
barbantes, nas feiras e demais pontos de venda e
divulgação.
Considerando-se o cordel de Janduhi
Dantas como foco desta proposta de leitura,
investiga-se como a seleção e o emprego de
substantivos e adjetivos/locuções adjetivas
contribuem para a significação do texto,
estabelecendo recortes de sentido que
possibilitam a construção do protagonismo
feminino ea ridicularização da personagem
masculina na narrativa em versos.
Estudiosa da iconicidade verbal, Simões
(2009) observa que a seleção, organização e
emprego dos recursos linguísticos são
representativos da realidade sob determinada
perspectiva. Segundo a autora:
482
arquitetura visual ou sonora, é material
icônico a ser observado. (SIMÕES, 2009,
p. 78)
483
(palavras ou expressões) que constituam
campos lexicais ou campos semânticos”
(SIMÕES, 2009, p. 89). Como exemplo, a autora
cita as isotopias da traição e do ciúme que
conduzem o romance Dom Casmurro, de
Machado de Assis. A professora denomina
âncoras textuais as “palavras-chave que
norteiam a identificação de uma isotopia”
(SIMÕES, 2009, p. 91).
A Estilística é ciência que se ocupa do
estilo ou “a expressão dos fatos da sensibilidade
pela linguagem e a ação dos fatos de linguagem
sobre a sensibilidade”, segundo Charles Bally
(apud MONTEIRO, 2009, p. 39). Os estudos
estilísticos contribuem para a compreensão de
como os recursos linguísticos, nesse caso, os
substantivos e adjetivos/locuções adjetivas, são
escolhidos e aplicados de modo a operar os
efeitos de humor e a identificação do leitor com
o heroísmo da personagem Côca.
Para entender o que é a Estilística, Martins
(2000) propõe que se procure verificar o que é o
estilo. A autora afirma que a palavra estilo tem
sido aplicada a “tudo que possa apresentar
características particulares, das coisas mais
banais e concretas às mais altas criações
artísticas” (MARTINS, 2000, p. 1). A origem do
termo, segundo a pesquisadora, é latina — stilus
— designação de “um instrumento pontiagudo
usado pelos antigos para escrever sobre
484
tabuinhas enceradas e daí passou a designar a
própria escrita e o modo de escrever”
(MARTINS, 2000, p. 1).
De acordo com Simões e Rei, o estilo se
constitui de “traços que definiriam modelos
particulares de realizar algo” (2014, p. 458).
Segundo os autores, nos estudos linguísticos, o
estilo “é a maneira de expressar verbalmente as
ideias” (SIMÕES; REI, 2014, p. 458). Os
estilisticistas esclarecem ainda que participam
do estilo as marcas que identificam socialmente
o sujeito falante. Segundo eles, “fazem parte do
estilo, além das marcas pessoais
indiscutivelmente inscritas em cada dizer,
elementos que identificam o lugar social do
sujeito falante, situando-o regionalmente, no
grupo social de origem, na profissão ou ofício
que exerce etc.” (SIMÕES; REI, 2014, p. 458).
A literatura de cordel é uma manifestação
da cultura popular nitidamente marcada por um
estilo, ou pelo modo de dizer caracterizado pelo
colorido regional e pela expressão da voz de um
povo não obstante sofrido, criativo, resistente e
alegre. Além dessas marcas, o poema de Janduhi
Dantas (2011) apresenta os traços da categoria
de cordéis cômicos, que investem na linguagem
com o objetivo de provocar no ouvinte/leitor o
afeto por meio do riso.
Galvão (2010), discutindo os cordéis que
se ocupam de narrar notícias ou acontecimentos
485
já sabidos pelo público por outros meios,
destaca a leitura desses folhetos como uma
busca pelo prazer da leitura, o que comprova a
afetividade como característica da literatura de
cordel. Segundo a pesquisadora:
486
Quem escreve ou quem fala tem à sua
disposição, para traduzir exatamente o
pensamento, séries de palavras, ligadas
por um sentido comum, que acodem ao
espírito, para as necessidades de
expressão.
(. . . )
Com efeito, a arte de escrever repousa
essencialmente na escolha do termo justo
para a expressão de nossas ideias e dos
nossos sentimentos. Por outras palavras:
só escrevemos bem, quando, na série
sinonímica, escolhermos a palavra ou o
grupo de palavras que melhor se ajustam
àquilo que queremos exprimir. É nessa
escolha que reside, em grande parte, o
segredo do estilo (LAPA, 1982, p. 21).
487
A respeito da classe dos adjetivos, o ilustre
gramático a define como “a classe de lexema que
se caracteriza por constituir a delimitação, isto é,
por caracterizar as possibilidades designativas
do substantivo, orientando delimitativamente a
referência a uma parte ou a um aspecto do
denotado” (grifos do autor) (BECHARA, 2004, p.
142).
O estudioso esclarece ainda que a locução
adjetiva “é a expressão formada de preposição +
substantivo ou equivalente com função de
adjetivo” (BECHARA, 2004, p. 144).
Em um estudo sobre a estilística da
palavra, Martins afirma que os substantivos e
adjetivos se incluem na categoria das palavras
lexicais, “também chamadas lexicográficas,
nocionais, reais, plenas” (2000, p. 77). A
pesquisadora explica que essas palavras,
“mesmo isoladas, fora da frase, despertam em
nossa mente uma representação, seja de seres,
seja de ações, seja de qualidades de seres ou
modos de ações” (MARTINS, 2000, p. 77).
Segundo Martins, as palavras lexicais “têm
significação extralinguística ou externa, visto
que remetem a algo que está fora da língua e que
faz parte do mundo físico, psíquico ou social”
(2000, p. 77).
Lapa, a respeito do valor estilístico do
substantivo, observa que “pouco difere do
adjetivo, são dois aspectos duma mesma
488
realidade linguística” (1982, p. 92). Segundo o
autor, “a própria origem do nome tem mais de
adjetivo do que de substantivo” (LAPA, 1982, p.
92), já que “ao princípio (sic), todos os seres
foram designados por uma qualidade
fundamental que os caracterizava” (LAPA, 1982,
p. 92). O estudioso ressalta a importância do
adjetivo na arte de escrever, pois a aplicação
precisa dessa categoria de palavras contribui
para “dar cor a tudo, às coisas e aos
pensamentos” (LAPA, 1982, p. 99).
Ao lado da Estilística influenciada pelos
estudos semióticos, a Semântica, o “estudo do
significado das palavras” (ULLMANN, 1964, p.
7), também subsidiará a análise do cordel A
mulher que vendeu o marido por R$ 1,99, de
Janduhi Dantas (2011). Segundo Ullmann, há
uma relação estreita entre a Semântica e a
Estilística, ciência que se ocupa dos valores
expressivos e evocativos da linguagem. Nas
palavras do autor: “demonstrou-se que todos os
grandes problemas da semântica têm
implicações estilísticas, e em alguns casos, como
por exemplo no estudo das tonalidades
emotivas, as duas orientações estão
inextricavelmente entrelaçadas”
(ULLMANN,1964, p. 22).
A fim de enriquecer a fundamentação da
leitura apresentada na próxima seção, vale
ressaltar os estudos de Bakhtin (2000) sobre as
489
relações dialógicas entre os enunciados. O autor
considera o enunciado como uma unidade de
sentido na cadeia da comunicação e explica que
o discurso sempre recebe uma atitude do
ouvinte como resposta. Nas palavras do
estudioso:
De fato, o ouvinte que recebe e
compreende a significação (linguística) de um
discurso adota simultaneamente, para com este
discurso, uma atitude responsiva ativa: ele
concorda ou discorda (total ou parcialmente),
completa, adapta, apronta-se para executar, etc.
e esta atitude do ouvinte está em colaboração
constante durante todo o processo de audição e
de compreensão desde o início do discurso, às
vezes já nas primeiras palavras emitidas pelo
locutor (BAKHTIN, 2000, p. 290).
Nessa perspectiva, a “atitude responsiva
ativa” transforma o ouvinte em produtor de
discurso. Nas palavras do estudioso: “toda
compreensão é prenhe de resposta e, de uma
forma ou de outra, forçosamente a produz: o
ouvinte torna-se o locutor” (BAKHTIN, 2000, p.
290).
Segundo a orientação bakhtiniana, a
interação humana ocorre em uma cadeia
complexa de enunciados que são produzidos a
partir de outros, em um processo contínuo. O
autor afirma:
490
O próprio locutor como tal é, em certo
grau, um respondente, pois não é o primeiro
locutor, que rompe pela primeira vez o eterno
silêncio de um mundo mudo, e pressupõe não só
a existência do sistema da língua que utiliza, mas
também a existência dos enunciados anteriores
– emanantes dele mesmo ou do outro – aos
quais seu próprio enunciado está vinculado por
algum tipo de relação (fundamenta-se neles,
polemiza com eles), pura e simplesmente ele já
os supõe conhecidos do ouvinte. Cada enunciado
é um elo da cadeia muito complexa de outros
enunciados (BAKHTIN, 2000, p. 291).
Bakhtin esclarece que os enunciados
carregam reminiscências de outros com os quais
dialogam. Nas palavras do autor, “o enunciado
está repleto dos ecos e lembranças de outros
enunciados, aos quais está vinculado no interior
de uma esfera comum da comunicação verbal”
(BAKHTIN, 2000, p. 316). O estudioso afirma
ainda que o enunciado é uma “resposta a
enunciados anteriores”, pois “refuta-os,
confirma-os, completa-os, baseia-se neles,
supõe-nos conhecidos e, de um modo ou de
outro, conta com eles” (BAKHTIN, 2000, p. 316).
Em estudo sobre o pensamento de
Bakhtin, Fiorin distingue enunciado e texto. O
enunciado, segundo o pesquisador, é “um todo
de sentido, marcado pelo acabamento, dado pela
possibilidade de admitir uma réplica” (FIORIN,
491
2008, p. 52), corresponde a “uma posição
assumida por um enunciador” (FIORIN, 2008, p.
52). Fiorin afirma que “o texto é a manifestação
do enunciado, é uma realidade imediata, dotada
da materialidade, que advém do fato de ser um
conjunto de signos” (2008, p. 52). Nessa
perspectiva, “há relações dialógicas entre
enunciados e entre textos” (FIORIN, 2008, p. 52).
As relações dialógicas materializadas em textos
são chamadas, segundo o estudioso,
intertextualidade.
Nessa perspectiva, além de discutir a
arquitetura sígnica e o estilo do texto em análise,
consideram-se relações de sentido com outros
textos, como os cordéis O Romance do Pavão
Misterioso, de José Camelo de Melo Rezende
(2000, publicado pela primeira vez em 1923),
eAs Herdeiras de Maria, de Dalinha Catunda
(2017), além de diálogos com conhecimentos
prévios do ouvinte/leitor e outros possíveis
desdobramentos.
ANÁLISE DO CORPUS
O cordel A mulher que vendeu o marido por
R$ 1,99, de Janduhi Dantas (2011), apresenta
trinta e uma sextilhas em redondilha maior,
rimando o segundo, o quarto e o sexto versos.
Para esta análise, selecionaram-se sete estrofes
do poema.
492
Mas diz o velho qualquer mal que
ditado me fizer
que todo mal tem tomarei como
seu fim estopim
e o fim do mal de e a triste casamento
Côca eu vou decidir dar
um dia chegou enfim fim.”
foi quando Côca de
estalo Estava Côca
pegou a pensar pensando
assim: na vida quando
chegou
“Nessa vida que eu Damião morto de
levo bêbado
eu não tô vendo (nem boa-noite
futuro falou
eu me sinto passava da meia-
navegando noite)
em mar revolto e e na cama se atirou!
escuro
vou remar no meu Dona Côca foi
barquinho dormir
atrás de porto muito triste e
seguro.” revoltada
contudo tinha na
“Na próxima raiva mente
que eu tenha a sua ação planejada
desse marido ruim pra dar novo rumo à
vida
493
já estava preparada. que ela havia
escondido
De manhã Côca escreveu
acordou nervosamente
com a braguilha com a raiva do
para trás bandido:
deu cinco murros na “Por um e noventa e
mesa nove
e gritou: “Ô Satanás estou vendendo o
eu vou te vender na marido”.
feira (DANTAS, 2011, p.
vou já fazer um 3-5)
cartaz!
494
amoroso; de bravura ou heroicos;
vaquejadas; de presepadas ou dos anti-
heróis; de pelejas ou de desafios; de
discussão ou de encontros; de lendas ou
mitos; pasquim ou de intriga; etc
(MAXADO, 1980, p. 53).
495
A respeito da função social do riso, o
estudioso afirma que “o riso ‘castiga os
costumes’”, obrigando-nos a “cuidar
imediatamente de parecer o que deveríamos ser,
o que um dia acabaremos por ser
verdadeiramente” (BERGSON, 1980, p. 18). Ou
seja, “pelo temor que o riso inspira, reprime as
excentricidades” (BERGSON, 1980, p. 19). O
autor esclarece que o riso corrige os desvios de
comportamento pela perspectiva da humilhação,
que intimida os indivíduos.
Em estudo sobre piadas e textos
humorísticos em geral, Possenti observa que os
temas são sempre caracterizados pela
controvérsia. Segundo o autor, “a humanidade
só faz piadas (chistes, anedotas, caricaturas,
humor em geral) sobre temas controversos, ou
seja, temas sobre os quais há uma razoável
pletora de discursos, cada um deles enfocando o
tema de um ângulo ou posição diferente”
(POSSENTI, 2010, p. 12).
Possenti (2010) entende que, para que o
humor seja produzido e o riso ocorra, além do
rebaixamento de uma personagem
estereotipada, é necessário apresentar o
conteúdo cômico por uma via indireta, em
situações particulares ou espaços específicos.
496
rebaixamento) seja apresentado por meio
de uma forma engenhosa, que, em geral
de modo indireto, permite a apreensão de
um sentido que a sociedade controla,
relegando-o a situações privadas de
interlocução ou, se públicas, circunscritas
a espaços destinados a isso, como teatros
e casas de show, horários específicos de
rádio e de TV etc. (POSSENTI, 2010, p.
51).
Nessa perspectiva, a literatura de cordel,
caracterizada como manifestação da cultura
popular, em contraste com a cultura erudita e o
discurso oficial, associada ao folclórico, é
terreno fértil para a produção de textos
humorísticos.
O título do poema em análise, A mulher que
vendeu o marido por R$ 1,99, já provoca o riso,
haja vista a inversão de posição que coloca o
homem em uma situação passiva e a mulher em
uma situação ativa, contrariando a tradição
machista e patriarcal. Ou seja, a mulher é sujeito
e o homem, objeto. Além disso, o preço de R$
1,99 iguala o marido às bugigangas do comércio
popular.
A capa do folheto de Dantas (2011)
apresenta uma xilogravura de Marcelo Soares. A
xilogravura ou “gravura artesanal talhada em
madeira” (VIANA, 2010, p. 28), segundo o
Dicionário do Folclore Brasileiro, de Câmara
Cascudo, é uma “técnica que da China passou
497
para a Inglaterra e Holanda, espalhando-se por
toda a Europa” (2002, p. 752). A xilogravura
estampada na capa do folheto em foco ilustra a
figura de uma mulher que caminha em direção
ao mercado, segurando o marido pelo braço, e
ergue com a outra mão a placa com o valor que
será cobrado pelo cônjuge: R$ 1,99. A imagem
reforça a passividade da figura masculina e o
domínio da mulher sobre a situação.
498
perspectiva de liberdade. Na tabela a seguir, os
substantivos e adjetivos/locuções adjetivas
estão organizados de acordo com o recorte de
sentido para o qual contribuem.
499
Tabela 1 – Recortes isotópicos do cordel A mulher
que vendeu o marido por R$ 1,99
500
Pavão Misterioso, cordel de indiscutível
importância e beleza, de José Camelo de Melo
Rezende (2000, publicado pela primeira vez em
1923).
501
— Se o senhor é Tropa e navios pelos
homem rico mares
e comigo quer casar minha viagem é
pois tome conta de aérea
mim meu cavalo anda nos
aqui não quero ficar ares
se eu falar em nós vamos sair
casamento daqui
meu pai manda me casar em outros
matar. lugares.
(REZENDE, 2000, p.
— Que importa que 26-27)
ele mande
502
luta pela liberdade e decide seu destino. No
cordel de Dantas (2011), em resposta à tradição
machista e patriarcal evidenciada sobretudo nos
cordéis mais antigos, o casamento não é a
solução para as questões existenciais de Côca,
mas a causa de seu sofrimento. Damião, seu
marido, não é o príncipe valente que irá
defendê-la, mas uma figura ridícula e inerte.
A fim de enriquecer a discussão sobre a
mulher na literatura de cordel, é de extrema
relevância apreciar um cordel de autoria
feminina. O poema As Herdeiras de Maria, de
Dalinha Catunda (2017), conta, com orgulho, a
história de Maria das Neves Batista Pimentel,
considerada a primeira cordelista, que usava o
pseudônimo Altino Alagoano, a fim de esconder
seu gênero e disfarçar sua ousadia.
Reproduzem-se, a seguir, oito estrofes do
referido cordel.
503
Que a mulher se A primeira
atrevia cordelista.
A escrever sem Ele foi um pioneiro,
assinar Do folheto
Para o marido brasileiro,
alcunhar Na arte especialista.
Com nome de
Fantasia. “O Violino do Diabo.
Ou o Preço da
E foi Maria das Honestidade”,
Neves, Foi o primeiro
A Batista Pimentel! folheto,
Que teve o Tornou-se até
afoitamento, raridade,
De publicar um Pela mulher
cordel, concebido,
E mesmo não Como troféu exibido,
assumindo Prova viva da
O que estava verdade.
produzindo
Na lavra do seu Os folhetos de Das
vergel. Neves,
O seu pai sempre
Era Francisco das editava.
Chagas, “Corcunda de
De sobrenome NotreDame”
Batista, Na sua lista
Pai de Maria das constava,
Neves, E outros títulos
mais,
504
Em obras universais, E com
Ela se personalidade.
fundamentava. Letrada, bem
preparada,
“O Amor Nunca Replena de
Morre” é, habilidade.
Também sua Disfarçada ocupa
criação, espaço,
Mais um cordel que Dando seu primeiro
Maria, passo,
Acresceu a coleção. Rumo à nova
Sua rica trajetória atividade.
É um marco na (http://cantinhodad
história alinha.blogspot.com.
Nobre contribuição. br/search?q=herdei
ras. Acesso em 06
Maria chega ao ago. 2017)
cordel,
505
contemporâneo é o uso da internet para
fomentar a produção e a divulgação dessa
literatura. Dalinha Catunda, por exemplo,
divulga seu trabalho em redes sociais e mantém
dois blogs: Cantinho da Dalinha
(http://cantinhodadalinha.blogspot.com.br/) e
Cordel de Saia
(http://cordeldesaia.blogspot.com.br/), este em
parceria com a cordelista Rosário Pinto.
O texto de Catunda (2017) exalta o
atrevimento da cordelista Maria das Neves
Batista Pimentel, que, na década de 30,
inaugurou o cordel feminino, subvertendo a
ordem estabelecida e prestando “nobre
contribuição” a suas herdeiras. A talentosa e
letrada Maria das Neves criava seus versos a
partir de seu conhecimento sobre o cordel e os
clássicos da literatura universal, exercendo um
papel pioneiro, abrindo os caminhos para
cordelistas como Dalinha Catunda, que defende
em seus textos o protagonismo da mulher no
cordel e na sociedade.
Assim como o cordel de Dantas (2011), o
poema de Catunda (2017) apresenta uma
perspectiva divergente do texto de Rezende
(2000, publicado pela primeira vez em 1923),
que representa a mulher como submissa e
condicionada a viver para o casamento e sob a
proteção de um homem. Os textos de Dantas
(2011) e Catunda (2017) provam a atualidade
506
da literatura de cordel, sua natureza dinâmica e
sua constante renovação. Por meio dos arranjos
linguísticos elaborados, a literatura de cordel
discute e significa o povo brasileiro, sua cultura,
suas raízes, suas transformações, constituindo
rico material para debates sobre a diversidade
linguística e humana, na escola e além.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A literatura de cordel brasileira,
inaugurada no final do Século XIX, no Nordeste,
contrariando expectativas pessimistas que a
relegaram à condição de manifestação
decadente e arcaica, incapaz de competir com as
modernidades tecnológicas, mostra-se nova e
fecunda, discutindo temas atuais e aproveitando
as mídias para sua produção e divulgação.
A partir da leitura de A mulher que vendeu
o marido por R$ 1,99 (DANTAS, 2011), observa-
se como os recursos linguísticos — no caso
deste estudo, os substantivos e
adjetivos/locuções adjetivas — são selecionados
e aplicados, a fim de compor um construto
sígnico que opõe em duas linhas de sentido
distintas o masculino e o feminino. Em uma
linha isotópica, o casamento da personagem
Côca é referido como a causa de sua infelicidade,
e seu marido, Damião, é caracterizado como
uma figura ridícula e inerte. No outro recorte
isotópico, Côca é descrita como uma mulher
507
determinada e corajosa, que reage à vida ingrata
e luta por liberdade, decidindo vender o marido
por R$ 1,99 no mercado popular.
Estabelecendo-se um diálogo do texto de
Dantas (2011) com O Romance do pavão
misterioso (REZENDE, 2000) e As herdeiras de
Maria (CATUNDA, 2017), percebe-se que o
cordel do Século XXI discute a temática do
feminino sob uma nova ótica, valorizando a
participação da mulher na literatura de cordel e
reconhecendo seu protagonismo na sociedade.
Os poemas de Dantas (2011) e Catunda (2017)
refutam a tradição machista e patriarcal na qual
a ventura da figura feminina estaria
condicionada a uma relação de dependência a
um homem que a protegeria e salvaria das
mazelas existenciais, além de exaltar o
pioneirismo da mulher, mesmo em condições
adversas.
Ressalte-se a importância dos três cordéis
analisados para debates sobre a literatura de
cordel e a questão do feminino na sociedade,
assim como a relevância dessa manifestação da
literatura popular em sua totalidade como
expressão da língua portuguesa e do imaginário
brasileiro. Defende-se que a literatura de cordel
seja objeto de estudo e pesquisa nos bancos
escolares e universitários, a fim de que a língua e
a cultura do Brasil sejam discutidas e
valorizadas.
508
REFERÊNCIAS
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Verbal. São Paulo: Martins Fontes.
BECHARA, Evanildo (2004). Moderna Gramática
Portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna.
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significação do cômico. Trad. Nathanael C.
Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
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folclore brasileiro. 11. ed. Ilustrado. São Paulo:
Global.
CATUNDA, Dalinha (2017). As Herdeiras de
Maria. Disponível em:
http://cantinhodadalinha.blogspot.com.br/sear
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DANTAS, Janduhi (2011). A mulher que vendeu
o marido por R$ 1,99. Juazeirinho: Carrapicho.
Folheto.
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pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática.
GALVÃO, Ana Maria de Oliveira (2010).
“Folhetos e jornais: uma análise comparativa do
ponto de vista do leitor”. In: MENDES, Simone
(Org.). Cordel nas Gerais: oralidade, mídia e
produção de sentido. Fortaleza: Expressão
Gráfica Editora. p. 107-129.
509
HAURÉLIO, Marco (2010). Breve história da
Literatura de Cordel. São Paulo: Claridade.
LAPA, Manuel Rodrigues (1982). Estilística da
língua portuguesa. 11. ed. São Paulo: Martins
Fontes.
MARTINS, Nilce Sant'Anna (2000). Introdução à
Estilística. 3. ed. São Paulo: T. A. Queiroz.
MAXADO, Franklin (1980). O que é literatura de
cordel? Rio de Janeiro: CODECRI.
MONTEIRO, José Lemos (2009). A Estilística:
Manual de análise e criação do estilo literário. 2.
ed. Petrópolis: Vozes.
POSSENTI, Sírio (2010). Humor, língua e
discurso. São Paulo: Contexto.
REZENDE, José Camilo de Melo (2000). O
Romance do Pavão Misterioso. ABLC. Folheto.
SIMÕES, Darcilia (2009). Iconicidade verbal:
Teoria e prática. Edição online. Rio de Janeiro:
Dialogarts. Disponível em: http://www.
dialogarts. uerj. br/arquivos/iconicidadeverbal.
pdf. Acesso em: 12 ago. 2017.
SIMÕES, Darcilia; REI, Claudio Artur Oliveira
(2014). “Língua e estilo: uma tessitura especial”.
In: OLIVEIRA, Esther Gomes de; SILVA, Suzete
(Org.). Semântica e Estilística: Dimensões Atuais
do Significado e do Estilo. Homenagem a Nilce
510
Sant’Anna Martins. Campinas: Pontes Editores.
p. 445-461.
ULLMANN, Stephen (1964). Semântica: uma
introdução à ciência do significado. Trad. J. A.
Osório Mateus. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian.
VIANA, Arievaldo Lima (Org.) (2010).Acorda
Cordel na sala de aula: A Literatura Popular
como ferramenta auxiliar na Educação. 2 ed.
Fortaleza: Gráfica Encaixe.
BIODATA
511
A INFORMALIDADE DO CARIOCA EM
ESPAÇO AMBÍGUO
INTRODUÇÃO
Por meio de uma abordagem linguístico-
cultural, analisamos a dinâmica de relações
interpessoais, em espaço ambíguo (MONTEIRO,
2015), a partir dos conceitos de casa e rua
propostos pelo antropólogo social Roberto
DaMatta (2004). Para verificarmos a
sobreposição desses dois espaços em inter-
relações, na cultura brasileira, mais
especificamente, na carioca, usamos como
corpus dois comerciais da Cerveja Itaipava
colhidos da Internet. Nosso objetivo foi
apresentar uma contribuição didática, usando
material autêntico, na língua portuguesa do
Brasil (PB), para aprendizes de português como
segunda língua, tendo a linguagem humana,
verbal e não verbal, como veículo de expressão
de valores culturais e hábitos comportamentais.
Para isso, apontamos, em ambientes da rua
presentes no corpus, a existência de relações de
intimidade.
A relevância deste artigo está no fato de
aprendizes de Português como Segunda Língua
512
para Estrangeiros (PL2E), em geral, por não
terem consciência de nossa cultura, passarem
por dificuldades em situações interacionais. Este
estudo poderá ser útil para que eles não sintam
um determinado desconforto, devido a possíveis
problemas interculturais, diante de padrões
comportamentais do carioca em espaços
ambíguos. Para isso, é de suma importância que
eles tenham consciência da dinâmica das
relações sociais da língua alvo, além do
conhecimento dos aspectos linguísticos. Como
bem coloca Meyer, no ensino de PL2E,
além das questões estritamente
linguísticas, verbais e gramaticais, são
hoje as questões culturais – e, mais do
que isso, os aspectos interculturais – que
necessitam de identificação, observação,
pesquisa e análise. Só a partir de uma
abordagem interculturalista – sem
abandonar o foco na forma, claro – se
poderá contribuir de forma efetiva para
um ensino eficaz de PL2E (...) (2013, p.
13).
513
com detalhamento do corpus e a organização
dos dados. Nela, aparece o método empregado
para o levantamento das informações, o da
Pesquisa Qualitativa. A quarta analisa aspectos
culturais e linguísticos dos dados. A quinta é
composta por sugestões de atividades didáticas.
A última apresenta as considerações finais.
APORTES TEÓRICOS
Neste trabalho, norteiam nossas
colocações Roberto DaMatta (2004; 1997;1984)
com o conceito dos espaços sociais casa e rua
(Cf. 1.1); Monteiro (2015) com o conceito de
espaço ambíguo (Cf. 1.2 ); e Azeredo (2008) com
variações linguísticas (Cf. 2.1).
A CASA E A RUA
Referindo-se à casa e à rua, DaMatta
(2004) argumenta que as sociedades dos
centros urbanos oscilam entre esses dois
espaços básicos que operam de modo
complementar e excludente. O autor esclarece
que esses conceitos não se referem,
simplesmente, a espaços físicos, mas a
instituições sociais por meio das quais o sujeito
fala e pode explicar o mundo.
Conforme DaMatta (2004, p. 13), a casa é o
ambiente da intimidade, da menor distância
social, do aconchego, das relações de amizade e
parentesco. Tudo o que está nesse espaço é bom,
514
belo e decente. Contribuindo decisivamente
para estabelecer as bases de uma profunda
identidade social, ajuda a conciliar nossa
existência como indivíduos.
Na sequência, o autor defende que a rua,
onde somos marcados pela impessoalidade, é o
mundo da frieza, do distanciamento, do
trabalho, das leis, da surpresa, da tentação e do
lazer. Legitimando os dois conceitos, o
antropólogo argumenta que a casa recorta um
espaço amoroso em que a harmonia deve reinar
sobre a confusão, a competição e a desordem
que caracterizam a rua.
ESPAÇO AMBÍGUO
De acordo com Monteiro (2015), ocorre
espaço ambíguo quando os espaços sociais,
morais e éticos casa e rua se sobrepõem, ou
melhor, “quando as relações de familiaridade e
afetividade são transferidas para espaços
caracterizados por relações de impessoalidade e
de distanciamento” (2015, p. 37).
Em nosso corpus, surge o espaço social
ambíguo, numa interação face a face, quando
pessoas conhecidas ou não se relacionam com
intimidade por meio de palavras afetivas e
toques como beijos na bochecha e tapinhas nas
costas, no ombro ou na palma da mão, uma vez
que o movimento da rua não contrasta com o
ambiente da casa.
515
ASPECTOS LINGUÍSTICOS
Uma interface entre a Antropologia Social
e a Linguística, por meio das linguagens verbal e
não verbal, possibilita a observação de costumes
e comportamentos sociais de determinado
grupo a partir de dados provenientes da
interação face a face e do estudo do material
cultural produzido por uma dada sociedade. A
seguir, de certa forma, Azeredo (2008)
corrobora essas palavras.
VARIAÇÕES LINGUÍSTICAS
Como argumenta Azeredo, as variações
linguísticas são causadas por diversos fatores,
mas, “para que atuem e produzam seus efeitos, é
indispensável uma condição: que a língua esteja
em uso e integrada no cotidiano dos que a
falam”(2008, p. 61).
Referindo-se a uma concepção usada numa
dimensão social (pertencente a todos) e
histórica (transmitida de geração a geração), o
pesquisador sustenta que a “língua é um sistema
abstrato reconhecível nos muitos usos, orais ou
escritos, que seus falantes fazem dela” (2008, p.
63).Em princípio, seu uso é um ato individual,
mas, na interação verbal, os atos individuais são
ações intersubjetivas realizadas por seus
interlocutores, visto que, como defende Azeredo,
“os atos se realizam na e para a comunicação
516
entre indivíduos ou sujeitos, que precisam, para
compreender-se, estar ‘de acordo’ sobre o que
significam os sinais que estão usando” (2008, p.
63). Assim, a partir de uma pressão
padronizadora da dimensão social sobre o uso,
chega-se até a identidade linguística de uma
comunidade. Na sequência da página, o
pesquisador conclui que a norma se constitui
pela “soma dos usos histórica e socialmente
consagrados numa comunidade e adotados
como um padrão que se repete”.
Azeredo propõe duas formas da língua, a
padrão e a não padrão, e dois registros, o formal
e o informal. Quanto à modalidade padrão
escrita contemporânea do Português do Brasil e
suas variantes, a forma corrente na fala
espontânea (registro informal) e a forma
pertencente a um discurso mais tenso e
elaborado (registro formal), Azeredo pondera
que todas elas “se legitimam no simples fato de
existirem e de tornarem possíveis a expressão
individual e a comunicação no seio de um grupo
social. (...) a variedade padrão é elástica e
comporta usos alternativos” (2008, p. 65).
Os usos da variedade padrão e das
normas linguísticas (social, familiar, etária,
regional, profissional) dependem do contexto de
situação e da finalidade do ato comunicativo.
Para este estudo, levaremos em conta a forma
padrão e as normas regionais e etárias,
517
apresentando uma das variações linguísticas do
carioca.
DA FORMALIDADE PARA A INFORMALIDADE
DA LÍNGUA FALADA
Os traços de informalidade, nas relações
face a face, podem ser observados na utilização
de um registro linguístico mais ou menos
informal nas interações do dia a dia. A princípio,
podemos relacionar o registro menos informal a
relações do mundo da rua, do trabalho, do
distanciamento e o mais informal a relações do
mundo da casa, da familiaridade, da intimidade.
Num contexto em que o falante está rodeado
pela família ou por amigos, normalmente,
emprega-se uma linguagem informal, por
exemplo, expressões coloquiais, ambíguas ou
gírias. Em nosso corpus, caracterizando espaços
ambíguos, encontramos expressões coloquiais,
gírias e, como linguagem não verbal, contato
físico, gestos, expressões faciais e baixo controle
da emoção.
METODOLOGIA
Neste trabalho, realizamos uma análise
qualitativa dos dados coletados, visto que o
interesse é analisar a natureza dos
comportamentos nas interações sociais.
Como já mencionado, o corpus utilizado
foram dois comerciais da Cerveja Itaipava
518
colhidos da Internet e exibidos por canais de TV.
O primeiro passa-se na calçada de um bar na
Lapa, bairro boêmio da Zona Central do
Município do Rio de Janeiro, e o segundo, no
Calçadão da Praia de Copacabana. Em ambos,
relações caracterizadas por maior intimidade e
proximidade caracterizam o espaço social que
buscamos definir nesta pesquisa.
Sendo o filme publicitário material
autêntico, os dados transcritos podem
reproduzir, de maneira adequada, espaços
ambíguos presentes na sociedade carioca.
A identificação dos espaços em análise
que se depreendem das situações de contexto
social foi realizada, como já mencionado, a partir
de uma abordagem que conjuga os campos
antropológico, social e linguístico, levando em
conta as linguagens verbal e a não verbal, as
quais apontam para a delimitação dos seguintes
espaços ambíguos: espaços físicos, relações
interpessoais e expressões verbais. Embora
tenhamos encontrado expressões verbais com
diversos sentidos, na análise serão apresentados
apenas os depreendidos do texto em estudo. As
expressões coloquiais e gírias comuns aos dois
comerciais serão referidas apenas no primeiro.
Cabe esclarecer que, para nosso objetivo,
não houve a necessidade de usarmos a
transcrição fonética, por isso, realizamos um
tipo simplificado e, respeitando a coloquialidade
519
do gênero textual, reproduzimos a oralidade do
falante em todos os aspectos linguísticos. Os
turnos das falas foram enumerados. Para
facilitar a compreensão dos textos, antes e
depois de cada transcrição, fizemos uma curta
descrição das cenas.
ANÁLISE
Para esta análise, selecionamos diálogos
em situações que simulam interações reais entre
pessoas. No primeiro comercial, os dois
interactantes principais não se conhecem; no
segundo, as cinco pessoas que interagem podem
até se conhecer, mas não parecem íntimas
apesar da linguagem verbal e da não verbal
empregadas. Isso se observa nas transcrições
dos filmes publicitários a seguir.
[Cena: Dois amigos estão na porta de um
bar na Lapa. O Amigo 1, vestindo calça comprida
e camisa de meia manga, segura 1 copo de
cerveja, e o Amigo 2, de bermuda e camisa de
meia manga, segura uma garrafa de Itaipava em
uma mão e um copo da cerveja na outra. O
Desconhecido chega de mochila nas costas,
vestindo uma bermuda e uma camisa de meia
manga, sorrindo para o Amigo 1 como se o
conhecesse. Inicialmente, focaliza-se a situação
como um todo: a entrada do bar, mesas e
cadeiras na calçada, pessoas sorridentes
bebendo. Após os cumprimentos, a câmera dá
520
um close nos três personagens principais, e, no
plano de fundo, pessoas circulam no bar. O
Amigo 2 alterna o olhar entre o Amigo 1 e o
Desconhecido durante a breve conversa.]
521
20 Amigo 2 Vem cá, quem é esse daí, hein?!
21 Amigo 1 Não faço a menor ideia, cara.
22 Amigo 2 Ué!
23 Narrador Lapa e desconhecidos íntimos, isso é
24 cem por cento carioca. Itaipava, a
25 cerveja cem por cento. Beba com
moderação!
Comercial da Cerveja Itaipava 1 – Desconhecidos
522
01 Adnet Aaaah amigão! E aí? ((cumprimentando
02 o Amigo 1 com um toque de mãos
suspensas e dando dois beijinhos na
moça))
03 Amigo 1 Tu tá sumidão, hein?
04 Adnet Pode crer. Aí, a gente tá precisando
marcar um negócio, hein?
05 Amigo 1 Vamos marcar, pô!
06 Adnet Passa lá em casa amanhã!
07 Amigo 1 Amanhã? Vamos, amor?
08 Namorada Vamos fazer uma coisinha lá amanhã!
1
09 Adnet Marcado!
10 Amigo 1 Fechou, né?
11 Adnet Valeu!
12 Amigo 1 Até amanhã!
13 Adnet Valeu!
14 Namorada Beijo!
1
15 Adnet Tchau tchau! Beijão!
16 Adnet Aaaah não! ((rindo e cumprimentando
17 outro amigo com um toque de mãos)).
18 Amigo 2 E aí, fera?
19 Adnet Beleza? Tudo bem? Estamos precisando
20 marcar um negócio, hein? ((dando dois
beijinhos na namorada do amigo))
21 Amigo 2 Vai fazer o que amanhã?
22 Adnet Amanhã? Amanhã eu tô de bobeira.
23 Amigo 2 Passa lá em casa então!
24 Adnet Marcado!
25 Amigo 2 Demorou!
26 Adnet Show de bola!
27 Amigo 2 Valeu, meu querido!
28 Adnet Valeu!
29 Amigo 2 Tchau tchau!
523
30 Narrador Calçadão e passa lá em casa amanhã.
31 Adnet Aaaah não!
32 Narrador Isso é cem por cento carioca. Itaipava, a
33 cerveja cem por cento. Beba com
moderação.
Comercial da Cerveja Itaipava 2 – Lá em casa
524
Diferentemente dos norte-americanos, de
determinados europeus e de asiáticos, por
exemplo, o brasileiro, em geral, demonstra uma
preferência pelas relações da casa em oposição
às relações distantes da rua. Esse fato pode
causar estranhamento em pessoas que sejam de
cultura diferente da nossa.
Na sequência, passamos à análise dos
seguintes espaços ambíguos: espaços físicos,
relações interpessoais e expressões verbais.
4.1 – Espaços Físicos
Nos comerciais, os interactantes, apesar
de se encontrarem em espaços públicos, não
seguem um comportamento padrão de maior
distanciamento e menos informalidade, mas
interagem com um comportamento próprio da
casa, totalmente descontraído, sem nenhuma
rigidez nem controle da emoção. Isso pode ser
verificado nos seguintes exemplos.
A - Comercial 1: A calçada de um bar na
Lapa
01 – Amigo 1 – E aí, mermão!
((personagens se apertam as mãos com os
braços flexionados em 45º e se tocam nos
ombros))
02 – Desconhecido – Ah, moleque! E aí,
beleza?
07 – Amigo 1 – Como é que tão as paradas
lá?
525
11/12 – Desconhecido – Tá sumido hein,
cara. / Tem que aparecer, pô!
13 – Amigo 1 – Pô, vamos marcar uma
parada, mané.
14 – Desconhecido – Vamos sim. Manda
um beijo lá.
O Amigo 1 e o Desconhecido, com o tom
de voz elevado, agem como se fossem velhos
amigos, embora não se conheçam. Eles se
cumprimentam amistosamente, mas o discurso
é vazio, não conseguem desenvolvê-lo por não
saberem um da vida do outro. Isso fica claro no
uso das expressões vagas nos seguintes turnos
de fala:
07 – “as paradas lá” – Lá,onde?
12 – “Tem que aparecer, pô!” – Aparecer
onde?
13 – “marcar uma parada” – Que parada?
Cinema, teatro, futebol, vôlei, praia, piscina?
14 – “Manda um beijo lá.” – Onde e para
quem?
A interação foi tão espontânea e calorosa
que o Amigo 2 se surpreendeu com a resposta
do Amigo 1:
20 – Amigo 2- Vem cá, quem é esse daí,
hein?
21 – Amigo 1 – Não faço a menor ideia,
cara.
Os turnos 20 e 21 ilustram bem a
tendência à polidez, cordialidade e atenção ao
526
próximo dos cariocas. Em geral, calorosos e
conciliadores, defendemos a face do outro. Por
isso, o sorriso do Desconhecido gerou um
diálogo afetuoso entre dois estranhos. O mesmo
não aconteceria se um dos interactantes fosse de
cultura holandesa, inglesa, alemã, por exemplo, e
não conhecesse a nossa. Poderia haver um
choque intercultural e um mal-entendido entre
os interlocutores.
B – Comercial 2: O Calçadão de
Copacabana
01/02 – Adnet –Aaah amigão! / E aí?
((cumprimentando o outro com um toque de
mãos e dando dois beijinhos na moça))
03 – Amigo 1 – Tu tá sumidão, hein?
04 – Adnet – Pode crer. Aí, a gente tá
precisando marcar um negócio, hein?
05 – Amigo 1 – Vamos marcar, pô!
06 – Adnet – Passa lá em casa amanhã!
Adnet e o primeiro casal cumprimentam-
se efusivamente, mas a conversa não se
sustenta, e o turno 6 que, para aprendizes não
nativos, poderia parecer um convite, na verdade,
é usado como despedida no português do Brasil.
A falta de assunto revela-nos que não há
intimidade entre os interlocutores. Ainda no
quarto turno, Adnet inicia a finalização do
diálogo que mal havia começado. Os enunciados
seguintes ilustram o dito.
527
04 – Adnet – “Aí, a gente tá precisando
marcar um negócio, hein?” – Início da finalização
do diálogo.
06 – Adnet – “Passa lá em casa amanhã!” –
Tentativa de despedida, embora pareça que o
Adnet, no turno 9, tenha confirmado que fariam
uma “coisinha”.
Na sequência do vídeo, no encontro com o
outro casal, houve o mesmo comportamento
entre os interlocutores.
16/17 –Adnet – Aaah não! ((rindo e
cumprimentando o outro interlocutor com um
toque de mãos))
18 – Amigo 2 – E aí, fera?
19/20 – Adnet–Beleza? Tudo bem?
Estamos precisando marcar um negócio, hein?
((dando dois beijinhos na namorada do Amigo
2))
21 – Amigo 2 – Vai fazer o que amanhã?
22 – Adnet – Amanhã? Amanhã tô de
bobeira.
23 – Amigo 2 – Passa lá em casa então!
24 – Adnet – Marcado!
528
Nos dados, o uso de palavras vagas como
“negócio”, nos turnos 04 e 19/20, pode revelar
certa falta de conhecimento de hábitos entre os
interlocutores, e as demonstrações de
intimidade, associadas a emoções superficiais,
em espaços públicos, caracterizam a
sobreposição das relações da casa às da rua.
Como diz o narrador dos comerciais, “Isso é cem
por cento carioca!”. Para um aprendiz de PL2E
de cultura de pessoas frias, é estranho ver
manifestações de afeto e de intimidade fora de
casa.
Em ambos os corpora, podemos citar, por
analogia, a mureta da Urca como um segundo
espaço físico ambíguo. Lá, há sempre pessoas
que vão comer um tira-gosto e beber uma
cerveja bem gelada. Como o Bar Urca não tem
espaço para os fregueses, todos se divertem na
mureta, onde apoiam garrafas, pratos e copos,
apreciam uma belíssima vista do Rio, ouvem
uma música e interagem como velhos amigos.
RELAÇÕES INTERPESSOAIS
Quanto às relações interpessoais, as
interações, vividas nos ambientes da rua, são
próprias do mundo da casa. Os interactantes
relacionam-se com bastante intimidade, pois
valorizam as relações amistosas em detrimento
da lógica rígida, própria do mundo da rua,
caracterizada pela individualização e pelo
529
anonimato. Nos comerciais, encontramos as
relações interpessoais: o contato físico e a
intimidade entre (des)conhecidos.
A – Comercial 1
●Contato físico:aperto de mãos com os
braços flexionados em 45º, toques recíprocos
nos ombros. Exemplos:
01 – Amigo 1 – E aí, mermão!
((personagens se apertam as mãos e se tocam
nos ombros))
09/10 – Amigo 1 – Tudo ótimo, brother.
Pô, muito bom te ver, cara. ((com dois tapinhas
no ombro do Desconhecido))
530
13 – Amigo 1 – Pô, vamos marcar uma
parada, mané.
14 – Desconhecido – Vamos sim. Manda
um beijo lá
15 – Amigo 1 – Valeu, parceiro! Abração!
17 – Amigo 1 – Valeu! ((fazendo sinal de
positivo com a mão))
B – Comercial 2
●Contato físico:aperto de mãos, toques de
mãos suspensas, beijos na face. Exemplos:
01/02 – Adnet – Aaaah amigão! E aí?
((cumprimentando o Amigo 1 com um toque de
mãos suspensas e dando dois beijinhos na
moça))
16 – Adnet – Aaaah não! ((rindo e
cumprimentando o Amigo 2 com um toque de
mãos suspensas))
19/20 – Adnet – Beleza? Tudo bem?
Estamos precisando marcar um negócio, hein?
((dando dois beijinhos na namorada do Amigo
2))
● Intimidade entre os interactantes:
demonstração de desejo em saber sobre a vida
do outro e de interesse para fazerem algum
programa juntos, entusiasmo pelo encontro, o
fato de mandar beijo para alguém da família do
interlocutor. Exemplos:
04 – Adnet – Pode crer. Aí, a gente tá
precisando marcar um negócio, hein?
531
06 – Adnet – Passa lá em casa amanhã!
08 – Namorada – Vamos fazer uma
coisinha lá amanhã!
18 – Amigo 2 – E aí, fera?
19/20 – Adnet – Beleza? Tudo bem?
Estamos precisando marcar um negócio, hein?
((dando dois beijinhos na namorada do Amigo
2))
As relações interpessoais ambíguas
assemelham-se muito às interações entre
familiares e amigos num ambiente de casa.
Mesmo parentes e amigos, em público, mantêm
um certo distanciamento, controlando um pouco
as emoções.
A linguagem não verbal nos diz muito a
respeito de costumes e comportamentos sociais
de uma cultura. Nos dois filmes publicitários,
além do contato físico, acenos positivos de
cabeça, sinal de positivo com a mão, expressões
faciais, sorriso e o tom alto da voz expressam o
entusiasmo dos interactantes, que se
cumprimentam expansivamente. Assim, a
análise dos dados transcritos, a partir de
comportamentos de cariocas nas interações
sociais, mais uma vez, revela-nos a presença de
espaço ambíguo.
4.3 – Expressões Verbais
As expressões verbais caracterizam as
relações sociais nos espaços analisados a partir
das normas regionais e etárias de uma
532
variedade padrão informal. A variação
linguística em uso, nos dois comerciais, está
integrada no dia a dia de cariocas de uma faixa
etária jovem. Em nosso corpus, confirmando que
“a variedade padrão é elástica e comporta usos
alternativos” (Cf. Azeredo, 2.1), encontramos
expressões coloquiais e gírias, que funcionam
como marcadoras de espaços ambíguos. Cabe
lembrar que a gíria é uma expressão coloquial,
mas nem toda expressão coloquial é gíria.
Devido a isso, elas serão analisadas
separadamente.
A – Comercial 1
● Expressões coloquiais:
→E aí? – Expressão usada como saudação
com o sentido de “Oi” ou “Tudo bem?”.
Ex.:01 – Amigo 1 – E aí, mermão!
533
→ Muleque – Típica gíria carioca. Usada
como vocativo para se referir a qualquer pessoa,
seja um amigo ou não.
Ex.: 02 – Desconhecido – Ah, muleque! E aí,
beleza?
→ Beleza – Nos dois comerciais, a gíria
“beleza?” é empregada como cumprimento, no
sentido de “Como vai (você)?”, “Tudo bem?”.
Ex.: 19/20 – Adnet – Beleza? Tudo bem?
Estamos precisando marcar um negócio, hein?
→ Cara – Gíria usada para se referir a uma
pessoa de maneira informal, seja amiga, colega
ou desconhecida. Uso típico para homens, mas
pode ser empregada para mulheres. As gírias
moleque, maluco e mané, nas transcrições, têm o
mesmo significado.
Ex.: 11/12 – Desconhecido – Tá sumido
hein, cara.
→ Parada – Foi usada em sentido vago,
substituindo a palavra “coisa”.
Ex.: 13 – Amigo 1 – Pô, vamos marcar uma
parada, mané.
→Brother – Foi usada para se referir a
qualquer pessoa, seja um amigo ou não. Nas
transcrições, equivale ao sentido de amigo, cara,
parceiro.
Ex.: 09 – Amigo 1 – Tudo ótimo, brother!
→ Valeu – É uma gíria muito usada no dia a
dia no português do Brasil. No comercial 1, no
turno 15, foi empregada pelo Amigo 1 como um
534
agradecimento pelo beijo que seu interlocutor
mandou; nos turnos 17, 18 e 19, foi empregada,
respectivamente, pelos Amigo 1, Amigo 2 e
Desconhecido, como despedida, no sentido de
tchau. No comercial 2, também foi usada no
sentido de despedida nos turnos 13, 27 e 28.
B – Comercial 2
● Expressões coloquiais:
→ a gente –Expressão muito usada em
situações informais. No registro formal, deve ser
substituída por “nós”.
Ex.: 04 – Adnet – Pode crer! Aí, a gente tá
precisando marcar um negócio, hein?
● Gírias:
→ Passa lá em casa! – Expressão educada
de despedida utilizada, em geral, em encontros
casuais.
Ex.: 06 – Adnet – Passa lá em casa amanhã!
→ Fechou – A gíria tem o sentido de que foi
acordado, de que está certo, de que não haverá
mais mudanças.
Ex.: 10 – Amigo 1 – Fechou, né?
→ Estar de bobeira – Não ter o que fazer,
estar ocioso.
Ex.: 22 – Adnet – Amanhã? Amanhã, eu tô
de bobeira!
→ Demorou. Gíria usada como confirmação
de algo que está para acontecer, para finalizar
uma conversa em que algo foi combinado ou
decidido.
535
Ex.: 25 – Amigo 2 – Demorou!
→ show de bola – Expressão que significa
aprovação.
Ex.: 26 – Adnet – Show de bola!
536
Comercial da Cerveja Itaipava –
Desconhecidos (00:30)
Na sequência, apresentamos alguns
exemplos de questionamentos que podem ser
feitos aos alunos.
1 – As cenas se passam em um espaço,
mas, no final, a voz do narrador nos remete a
outro ponto turístico carioca. Você já foi a esses
lugares? Como os caracterizaria?
2 – Fale sobre a situação apresentada,
dizendo se é possível acontecer algo semelhante
em seu país. Comente sua resposta.
3 – Por que essa situação acontece no
Brasil?
4 – Aponte as estruturas de abertura,
manutenção e fechamento da conversação.
5 – Que expressão, no final do vídeo,
exemplifica que o brasileiro leva as relações de
afeto da casa para as relações da rua?
6 – Que associação podemos fazer entre as
interações dialogadas efusivas, os personagens,
os locais escolhidos e a marca da cerveja?
[6 min para elaboração das respostas; 14
min para apresentação das respostas e
discussão sobre estas]
Comercial da Cerveja Itaipava – Lá em casa
(00:30)
Sugerimos os questionamentos a seguir.
1 – Este vídeo tem uma sequência de três
encontros. O comediante Marcelo Adnet
537
participa de todos. Observando o
comportamento dele, podemos relacioná-lo à
figura do carioca, do paulista ou do mineiro?
Justifique sua resposta, caracterizando os três
tipos.
2 – Qual o sentido de “Passa lá em casa
amanhã!”?
3 – Quando é esse amanhã?
4 – Quais as expressões de cumprimento e
de despedida?
5 – Nos dois comerciais, o que significa ser
“cem por cento carioca”?
6 – Explique o enunciado: “Itaipava a
cerveja cem por cento carioca”.
7 – Você, numa interação face a face, já se
encontrou em uma situação difícil devido a um
choque intercultural? Comente.
8 – De que forma você interagiria com o
Desconhecido (comercial 1) e com o Adnet
(comercial 2)?
[10min para elaboração das respostas;
17min para apresentação das respostas e
discussão sobre as mesmas]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta análise revelou que, em busca de
espaços em que seja possível estabelecer
relações de familiaridade e de intimidade, fora
do mundo da casa, o carioca institui espaços
538
ambíguos onde ele tem voz nas relações
interpessoais.
Assim, comprovamos, em consonância
com DaMatta (1984), que o padrão interacional
brasileiro, mais especificamente o carioca,
admite a existência de espaços ambíguos, nos
quais as relações de maior formalidade e
distanciamento são ‘temperadas’ com
comportamentos e expressões linguísticas, que
têm como objetivo tornar tais relações, que, por
natureza, são impessoais e frias, em relações
mais amistosas e íntimas.
Ressaltamos a importância da aplicação
dos conceitos de casa, rua e espaços ambíguos
no ensino de PL2E, pois esses fatores de ordem
sociocultural podem ajudar os aprendizes na
compreensão de aspectos interculturais.
A contribuição didática apresentada tem,
na Análise, informações úteis para o
desenvolvimento da dinâmica em sala de aula. O
corpus ainda tem dados a serem explorados, mas
acreditamos que este estudo poderá ajudar
aprendizes de PL2E na busca da consciência da
dinâmica das relações sociais do português do
Brasil, além do conhecimento da norma-padrão
e do registro informal em uso por jovens
cariocas.
539
REFERÊNCIAS
AZEREDO, José Carlos de (2008). Gramática
Houaiss da Língua Portuguesa. 2.ed. São Paulo:
Publifolha.
Comercial da Cerveja Itaipava – Desconhecidos.
Disponível em:
<http://www.youtube.com/results?search_quer
y=propagandas+da+itaipava+desconhecidos&s
m=3>Acesso em: 07 out.2017.
Comercial da Cerveja Itaipava – Lá em casa.
Disponível em:
<http://www.youtube.com/results?search_quer
y=la+em+casa+itaipava&sm=3>
Acesso em: 07 out.2017.
DAMATTA, Roberto (2004). O que é o Brasil? Rio
de Janeiro: Rocco.
______ (1997). A Casa & A Rua: espaço, cidadania,
mulher e morte no Brasil. 5.ed. Rio de Janeiro:
Rocco.
______ (1984). O que fez o brasil Brasil? Rio de
Janeiro: Rocco.
MEYER, Rosa Marina (2013). “Para o bem ou
para o mal: a construção de identidade pelo
falante de PL2E a partir de estereótipos de
brasilidade – uma questão intercultural”. In:
540
MEYER, Rosa Marina; ALBUQUERQUE, Adriana.
(Orgs). Português para Estrangeiros: Questões
Interculturais. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio. p. 13-
34.
MONTEIRO, Fátima Marinho Fabrício; MEYER,
Rosa Marina de Brito; ALENCAR, Ricardo Borges
(2015). Rituais após a morte: aspectos
interculturais envolvendo Brasil, Canadá e
Noruega. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro,
Departamento de Letras, 2016. Disponível em:
<http://www.dbd.puc-
rio.br/pergamum/biblioteca/mostrateses.php?o
pen=1&arqtese=1313479_2015_Indice.html>
Acesso em: 07 nov.2017.
BIODATA
541
do Rio de Janeiro (UERJ). Tem experiência na
área de Letras, em especial, em Linguística
Aplicada, Língua Portuguesa e Produção Textual.
Atuou como professora de Português como
Segunda Língua para Estrangeiros na UFRJ e em
cursos de atualização em empresas no Rio e em
São Paulo. Leciona Língua Portuguesa e atua em
bancas de correção de
concursos.http://lattes.cnpq.br/222582422154
3075.
542
TRADUÇÃO DE POEMA E DE LETRA DE
CANÇÃO: UM ESTUDO DE CASOS
André Conforte
INTRODUÇÃO
A controversa premiação do cantor e
compositor norte-americano Bob Dylan com o
Nobel de Literatura, em 2017, deflagrou, uma
543
vez mais, a discussão, no meio acadêmico e fora
dele, sobre considerar-se ou não letra de música
como literatura. Vimos defendendo, há algum
tempo, o ponto de vista de que a tal juízo de
valor subjaz um sutil e recorrente preconceito: o
de que a produção literária seria,
necessariamente, superior, em qualidade, à
produção lírica da música popular.
Desnecessário dizer que não há nenhuma razão
para que se hierarquizem as artes; como
sistemas semióticos distintos, ainda que
partilhando de uma origem comum e em
permanente diálogo, a canção popular e a
literatura têm, cada uma, existência autônoma e
autossuficiente (ainda que essa autossuficiência
constitua uma abstração absoluta, na medida em
que o diálogo entre as artes é, praticamente,
digamos, uma espécie de “oitava arte”, sem o
qual magníficas realizações artísticas, em toda a
história cultural da humanidade, não teriam
vindo a lume.
Antes de tudo, gostaríamos de esclarecer
que o presente artigo não constitui, de modo
algum, um estudo sobre a arte da tradução. Esse
métier tão difícil e pouco valorizado não é nem
de longe nossa especialidade, e se tivemos,
esporadicamente, de traduzir textos técnicos
(jamais literários), tratou-se de breves
traduções de ordem acadêmica ou profissional,
544
razão pela qual não nos sentimos autorizado a
discorrer sobre o assunto em si mesmo.
Este artigo, portanto, abordará o assunto
tradução com o mero intuito de arregimentar
um argumento a mais em nossa empreitada
teórica cujo objetivo é tão somente demonstrar
que, em que pesem todos os muitos pontos em
comum, a letra de canção e o poema, enquanto
gêneros textuais, frise-se, devem ser entendidos
como distintos um do outro. É o que tentaremos
demonstrar sem nenhuma teoria e com
exemplos práticos.
Tais considerações implicam, pois, que o
leitor deste artigo não deve ter como
pressuposto de sua leitura conhecimentos
avançados sobre tradução, nem que já tenha
enveredado por estudos teóricos profundos
sobre o assunto. Antes pelo contrário; digamos
que um conhecimento mediano da língua inglesa
será satisfatório para a plena compreensão de
algumas ideias aqui discutidas, mas receamos
que nem mesmo isso seja uma condição
necessária para que se apreenda a linha mestra
das ideias que discutiremos em nosso breve
artigo.
RESUMINDO ALGUMAS DIFERENÇAS
FORMAIS
Não obstante já haver uma consistente
literatura teórica a discutir as diferenças entre
545
os gêneros letra de canção e
poema1,retomaremos brevemente, aqui, alguns
argumentos que arrolamos em dois artigos
anteriores (CONFORTE, 2010; CONFORTE,
2016): em linhas gerais, procuramos
demonstrar que:
a) uma das características preponderantes para
a definição de um gênero é sua finalidade
sociocomunicativa, e a finalidade específica
do poema é distinta da finalidade específica
da canção, não obstante a finalidade geral
(deleite, fruição) de ambos os gêneros ser a
mesma;
b) seus suportes são distintos, e “o fato de que a
letra de canção irá, no mais das vezes, não
somente se sobrepor, mas também se
submeter à melodia, é um fator de
diferenciação fundamental” (CONFORTE,
2010), a nosso ver.
c) A relação letra/música cria uma necessária
interdependência entre os dois planos
semióticos. Não é preciso chegar a casos
extremos de diálogo inter-semiótico como o
Samba de uma nota só, de Tom Jobim e
Newton Mendonça; o fato mesmo de a letra
546
da canção se sobrepor ao fio melódico
interfere na própria composição lírica. Um
exemplo assaz citado pelos próprios
compositores é o fato de que, em passagens
musicais com notas muito agudas, evitar-se-
ão, por exemplo, vogais altas como o /i/, de
difícil articulação e execução, mesmo por
cantores experimentados.
d) Muitos autores de canções compõem letra e
música simultaneamente, e a construção
simultânea da melodia (sobreposta a uma
harmonia e a um ritmo) com a letra é
determinante para estabelecer escolhas
fônicas, lexicais e mesmo sintáticas desta;
e) Em muitas composições, o arranjo reforça
aspectos líricos das canções, reforçando
sentidos e até mesmo criando outros.
547
pedimos vênia para citar a nós mesmos, apenas
por fazer questão de repisar o argumento de que
a diferença entre um gênero e outro não pode,
jamais, se estear no critério qualitativo, sob pena
de o argumento se autodesqualificar: “(…) não
pode ser a qualidade intrínseca de uma letra – e
aqui ainda incide o problema do juízo de valor –,
de modo algum, critério de definição do gênero,
ainda que essa letra seja analisada fora de seu
contexto musical” (CONFORTE, 2016).
O PROCESSO DE TRADUÇÃO: UM FATOR
DIFERENCIADOR A MAIS
Tradução de poesia
Como já adiantamos na introdução deste
artigo, não há aqui o que discutir acerca dos
processos de tradução de poemas, haja vista que
tudo, ou quase tudo que se podia dizer sobre
essa ciência tão difícil quanto louvável, assim
nos parece, já foi feito. Sabemos, no entanto, que,
grosso modo, um poema pode ser traduzido
privilegiando-se a) a forma, b) o conteúdo, ou c)
a conjugação de ambos os planos, embora, é
claro, esta última forma, conquanto desejável,
seja a mais difícil (a dificuldade, é claro, será
seguintes links:
http://www.dialogarts.uerj.br/admin/arquivos_tfc_lingua/livro
_coloquio_online.pdf (CONFORTE, 2010) e
http://www.dialogarts.uerj.br/admin/arquivos_tfc_lingua/[1]c
oletanea_de_comunicacoes_VOL_1.pdf (CONFORTE, 2016).
548
tanto maior quanto maior for o
“distanciamento” entre as línguas envolvidas no
processo). Tal diversidade e tal dificuldade se
apoiam em frases de todos conhecidas como
“traduttore, traditore” (o tradutor é um traidor)
e “as mulheres são como as traduções: as belas
não são fiéis, e as fiéis não são belas” (atribuída
a George Bernard Shaw – e em relação a esta
frase, descontada a comparação
escancaradamente machista, concordamos com
o que tange à tradução).
549
muitas de caráter inter-semiótico, mas aí já se
entra em outra seara. Para fins de
exemplificação, confrontemos, apenas, as
primeiras estrofes de duas das traduções mais
célebres, a de Machado de Assis e a de Fernando
Pessoa:
The Raven (Edgar Allan Poe) – primeira
estrofe:
Once upon a midnight dreary, while I
pondered, weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of
forgotten lore—
While I nodded, nearly napping, suddenly
there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at
my chamber door.
“Tis some visitor,” I muttered, “tapping at
my chamber door—
Only this and nothing more.”
550
"É alguém que me bate à porta de
mansinho;
Há de ser isso e nada mais."
551
manutenção de um conteúdo, de uma narrativa
que tenta não ofender a semântica do relato
original. As consideráveis diferenças formais
entre o inglês e o português, se não
impossibilitam, dificultam em muito as
aproximações formais, como as muitas
sugestões fonéticas de que Poe era grande
conhecedor5. Para dar um exemplo de sua
própria lavra, a tradução de um poema como
The Bells, por magistral que possa ser, não
conseguirá dar conta, de início, das sugestões
sonoras, altamente icônicas, proporcionadas
pelo significante em inglês face ao significante
do mesmo referente em português, visto que os
efeitos da sibilante /s/ terão necessariamente
que evocar sensações distintas da oclusiva /b/.
Um exemplo singelo como este é quanto basta
para se constatar como deve ser ingrato o ofício
do tradutor.
Mas esses problemas e desafios são por
demais conhecidos e enfrentados, com maior ou
menor ousadia, pelos bons tradutores que
temos. Em nossa modesta opinião, um dos casos
mais bem-sucedidos de tradução poética no
Brasil, em que forma e conteúdo muito bem se
conjugaram, se deu com Jaguadarte, tradução de
Augusto de Campos para o insólito Jabberwocky,
552
de Lewis Carrol6. Vejamos o original e sua
versão em português:
6 No endereço eletrônico
https://www.ufrgs.br/psicoeduc/variados/traduzir-lewis-
carroll, encontram-se outras seis propostas de tradução
deste poema, cada qual com um título diferente e com
soluções diversas. Vale a pena ao leitor interessado por
tradução propriamente dita dedicar-se a confrontá-las.
553
One, two! One, two! And through and
through
The vorpal blade went snicker-snack!
He left it dead, and with its head
He went galumphing back.
554
Do frumioso Babassura!"
Era briluz.
As lesmolisas touvas roldavam e relviam
nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
E os momirratos davam grilvos.
555
que não existiam, mas que, para além das
sugestões sonoras que evocavam, consistiam no
que o próprio Lewis Carrol denominou palavras-
valise (portmanteau words), verdadeiros
amálgamas lexicais em que duas palavras se
fundem numa só para expressar uma espécie de
sentido híbrido (em português, há neologismos
bem conhecidos que se utilizam de tal processo,
como aborrescente, brasiguaio etc.). Por
exemplo, a palavra slithy, que aparece no
primeiro verso, seria, segundo o próprio
personagem Humpty-Dumpty, um blend de lithe
com slimy, que Campos traduziu como
“lesmolisa”. Traduções dessa natureza consistem
num verdadeiro desafio para qualquer tradutor,
mas acreditamos constituírem exceção, e não
regra, no ofício. Felizmente.
A SEMÂNTICA DO POEMA X A SEMÂNTICA DA
CANÇÃO
Parece-nos claro que, se na tradução de um
poema o conteúdo jamais deve ser adulterado
na sua essência, a forma, se não puder ser
“respeitada” no mesmo nível, é buscada no
máximo das possibilidades técnicas do tradutor,
este sendo considerado um artesão da palavra
tanto quanto o autor do texto original (tentemos
imaginar, por exemplo, um tradutor de poesia
que também não seja poeta…). Selecionamos,
portanto, a título de exemplificação, a primeira
556
estrofe do poema If, de Rudyard Kipling, e o
confrontamos com a tradução portuguesa de
Guilherme de Almeida:
If (Rudyard Kipling)
557
desfecho, a ideia final (Yours is the Earth and
everything that’s in it, And – which is more –
you’ll be a Man, my son! / Tua é a terra com tudo
o que existe no mundo E – o que mais – tu serás
um homem, ó meu filho!) aparece somente nos
dois últimos versos de um poema composto por
quatro estrofes de oito versos cada. O poeta e
tradutor Guilherme de Almeida executou um
trabalho que, para além de respeitar em grande
medida aspectos formais muito importantes do
poema, como a métrica e o ritmo (adaptados, é
claro, à prosódia portuguesa), não descuidou
nem um pouco em manter a semântica de
condicionalidade do texto original – afinal de
contas, negligenciar essa circunstância seria
negligenciar o todo do poema.
Vejamos, agora, outro clássico, agora no
domínio da música: a versão em português de
Smile, clássico de Charles Chaplin. A tradução
para o português ficou a cargo de Carlos Alberto
Ferreira Braga, mais conhecido como João de
Barro ou Braguinha, responsável por algumas
das melhores letras de nosso cancioneiro
popular (como a de Carinhoso). Vejamos
também a primeira estrofe de cada versão:
Smile (Charles Spencer Chaplin)
558
You'll get by...
Sorri
Quando a dor te torturar
E a saudade atormentar
Os teus dias tristonhos, vazios
559
Ramalho – Em 2008, por exemplo, gravou Zé
Ramalho canta Bob Dylan: tá tudo mudando,
álbum totalmente voltado à obra de Dylan, em
que 10 das doze canções consistem em versões
de seu repertório para o português. No entanto,
ao longo de sua profícua carreira, Zé Ramalho
verteu ainda outros clássicos de seu homólogo
norte-americano.
Examinando-se algumas das versões,
percebemos processos distintos que, por isso,
originarão efeitos distintos na poética da versão
de chegada. Vejamos um primeiro caso, a versão
para o português de Hurricane, que recebeu em
nossa língua o insólito título de Frevoador (mais
uma “palavra-valise” …):
560
Frevoador (versão de Zé Ramalho)
561
de “antropofagização”. Hurricane é uma canção
de estrutura inteiramente narrativa, composta à
moda de um relato jornalístico, em que se relata
a vida do lutador de boxe americano Rubin
Carter, preso injustamente em 1961, acusado de
homicídio. Como podemos ver, na canção de Zé
Ramalho, o processo de tradução propriamente
dita simplesmente não existiu.
Em sentido contrário, na versão da
clássica Knockin’ on heaven’s door, o compositor
brasileiro, desta vez preocupado em manter
praticamente na íntegra o sentido da versão
original, recorreu a um processo de decalque,
com efeitos estéticos bastante discutíveis, uma
vez que traduzir ao pé da letra uma canção
estrangeira (é verdade que o estilo “semifalado”
de Zé Ramalho ajuda) não costuma produzir
bons resultados8. Confrontem-se novamente os
trechos iniciais de cada versão:
562
Knockin’ on heaven’s door (Bob Dylan)
563
Com eles nunca mais vou atirar
A grande nuvem escura já me envolveu
Me sinto até batendo na porta do céu
564
How does it feel (2x)
To be on your own
With no direction home
A complete unknown
Just like a rolling stone?
565
At Napoleon in rags with the language that
he used
Go to him now, he calls you, you can't
refuse
When you got nothing, you got nothing to
lose
You're invisible now, you got no secrets to
conceal
566
Nem a sociedade
Nem a escola lhe ensinavam nada
Pois apenas... te mimavam
Ninguém falou como é viver na rua
e é ali onde você vai se virar
567
E penhorar
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nos casos estudados, podemos
afirmar, apoiados num conceito caro à Análise
Semiolinguística do Discurso (CHARAUDEAU,
2005), que os contratos de comunicação da
tradução do poema e da tradução de letra de
canção divergem sensivelmente, visto que o
compromisso com a semântica do texto original
é muito alto no primeiro caso e muito baixo no
segundo, sem que essa baixa exigência, no caso
da tradução de canção, signifique menor
qualidade estética. Trata-se, tão somente, das
regras de cada gênero. Uma vez mais, o critério
de uma suposta qualidade deve ser repelido, até
mesmo porque se pode discutir a existência de
traduções de canções em que a qualidade da
versão na língua de chegada é maior do que na
568
língua de origem9. Entendemos que o trabalho
do estudioso da(s) linguagem(ns) é, antes de
tudo, o da análise, daquilo que é discreto e
decomponível, e não o da síntese simplificadora
e apressada, como se tem visto por aí. Daí nossa
recusa, exposta neste e em outros artigos, à
visão simplista de que a música e a literatura são
uma coisa só. Tal busca convergência, apesar de
tentadora, peca por simplismo e camufla
discursivamente complexos de inferioridade e
de superioridade desnecessários, se
entendermos que cada gênero textual cumpre, a
seu modo e com plena satisfação, seus papéis
sociocomunicativos.
Vale lembrar, ainda, que não se deve
menosprezar o fato de que já se consagrou há
muito empregar-se os termos “tradução” para
textos literários e “versão” para a tradução de
569
letras de canção, o que, por si só, já denota uma
consciência de que os processos são distintos.
Por fim (não seria necessário dizê-lo, mas
o faremos por precaução), nosso ponto de vista
não significa, de modo algum, uma contestação
ao agraciamento de Bob Dylan com o Nobel; em
primeiro lugar porque, assim como no caso do
Oscar, sabemos que há muitas questões extra-
artísticas que levam alguém a ser laureado. A
visibilidade seria uma delas, a língua do escritor
outra, o contexto político e as vicissitudes do
mercado também não podem ser descartados.
Em segundo porque não há problema em se
entender o cancioneiro popular como uma
forma mais do que legítima de literatura.
Absurdo seria negar isso. A questão aqui se situa
no plano dos gêneros textuais, e a discussão
entre literatura e música se coloca num plano
acima. De qualquer forma, vale relembrarmos o
comunicado emitido pelo Comitê do Nobel
justificando a concessão do prêmio ao pop star
norte-americano, e fazer um breve comentário
final: Em seu comunicado oficial, disponível no
site do Prêmio Nobel em várias línguas, justifica-
se que Dylan foi merecedor do prêmio “por ter
criado novas expressões poéticas na grande
tradição da canção americana”. O lacônico
arrazoado do Comitê, até por sua economia
expressiva, não nos permite entrever em suas
palavras o preconceito a que tanto nos
570
referimos? Finalizamos este artigo deixando a
pergunta em aberto para o leitor.
REFERÊNCIAS
CHARAUDEAU, Patrick. (2008) Linguagem e
discurso: modos de organização. Rio de Janeiro:
Contexto.
CONFORTE, André. (2010) A relação inter-
semiótica letra/música em recentes canções de
Chico Buarque. In POLTRONIERI, Ana Lúcia;
SIMÕES, Darcilia; FREITAS, Maria Noemi. A
contribuição da Semiótica no ensino e na
pesquisa. Rio de Janeiro: Dialogarts, p. 67-83.
______. (2016) A relação intersemiótica letra x
música: algumas aplicações. In POLTRONIERI,
Ana Lúcia; CORREIA, Claudio Manoel de C.
Coletânea de comunicações sobre o verbal e o
não verbal. Vol. 1. Rio de Janeiro: Dialogarts, p.
37-50.
ECO, Umberto. (2007) Quase a mesma coisa:
experiências de tradução. São Paulo: Record.
HENRIQUES, Claudio Cezar. (2011) Estilística e
Discurso: estudos produtivos sobre texto e
expressividade. Rio de Janeiro:
Campus/Elsevier.
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BIODATA
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