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Beta - Rachel Cohn

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DADOS

DE ODINRIGHT
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É A MIM QUE ELA QUER COMPRAR.
A senhora elegante afirma que entrou na butique do resort à procura de uma
malha, mas não consegue tirar os olhos de mim. Ela veste um conjunto de seda
marfim cravejado de diamantes perfeitamente ajustado ao corpo violão, seu rosto
luminoso é impecável, apesar de ser de meia-idade, e seu cabelo castanho cai
abaixo dos ombros formando ondas brilhantes. As mãos suaves exibem unhas
pintadas e dedos repletos de pedras preciosas. Parece que uma esteticista paira
constantemente à sua volta para manter sua estética sempre agradável. Está
ladeada por dois guarda-costas, altos, bronzeados e loiros, com corpos sarados.
Cada um tem os olhos de cor fúcsia vidrados e uma tatuagem de flor-de-lis
violeta na têmpora direita, como eu.
Os dedos rosa pálido da senhora elegante acariciam uma malha de cashmere
azul-bebê, apreciando a qualidade do material, mas seus olhos permanecem fixos
em mim. Ela está me avaliando.
— Ela está disponível? — pergunta finalmente à Marisa, a gerente da
butique. Sua voz é sussurrada, infantil, e ela pergunta casualmente, mas com um
tom discreto, como se estivesse interessada em uma enorme fatia de bolo com
creme, com muitas calorias. Marisa, que também é corretora de elite em
Demesne, acena discretamente. Esta loja vende roupas — e pessoas.
Se pudermos ser considerados pessoas. Aqui em Demesne, os humanos nos
chamam de “clones”. Meu nome é Elysia, pois é como a Dra. Lusardi disse para
eu me chamar quando emergi.
Emergi há apenas algumas semanas. Mas sou uma garota de dezesseis anos
de idade. Nada sei sobre a minha Matriz, a menina da qual fui clonada.
Tampouco é provável que saiba algo a respeito dela. Para que eu fosse criada, ela
teve que morrer.

Estamos em uma sala privada, somente eu, a senhora elegante e Marisa. Sem
guarda-costas nem clientes ou outros espécimes de clones. As paredes são
completamente brancas. Cortinas pesadas ondulam com o ar superoxigenado de
Demesne, vindo das enormes janelas da sacada. A sala deve transmitir a paz e a
tranquilidade que dão fama a esta ilha alojada nos mares equatoriais. As janelas
oferecem uma visão ampla de Io, o mar azul-violeta borbulhante que circunda
Demesne. Eu me pergunto como é que as águas de Io podem parecer tão
especiais. Não é algo que eu esteja destinada a entender, o motivo está
relacionado a sentimentos humanos e não com a lógica. Pessoas gastam as
economias de uma vida para experimentar um momento de prazer em Io. Você
poderia me atirar em Io para absorver todas as suas supostas propriedades
místicas; isso não provocaria efeito algum em mim.
Eu não tenho alma.
A senhora elegante me apalpa como se aperta uma fruta no mercado.
Pressiona gentilmente minha carne, primeiro os braços, então as coxas. Toca
com força as minhas costas para testar a firmeza, depois passa a mão pelo
cabelo.
— Ela é delicada — comenta enfim.
Marisa a alerta:
— Sra. Bratton, isso é nossa responsabilidade, preciso ter certeza de que
entende. Ela é uma Beta. A Dra. Lusardi ainda não aperfeiçoou a linha
adolescente. — A mão de Marisa alcança meus ombros para puxar o meu cabelo
de lado para a cliente ver claramente a marca tatuada a laser em minha nuca:
beta em letras cor de violeta.
— Acredito então que isso se reflita no preço — avalia a dama vistosa
chamada Sra. Bratton em sua voz suave.
Meu chip avisa que isso se chama barganhar.
— É claro — responde Marisa. — A Dra. Lusardi ficará encantada em saber
que alguém de sua posição se dispõe a arriscar com uma Beta adolescente.
A Sra. Bratton dirige seu olhar para mim.
— Qual é o seu nome, querida?
— Elysia — respondo.
E-ly-si-a. E-ly-si-a. Ainda posso ouvir a Dra. Lusardi enquanto me fazia
praticar o meu nome e o da ilha, De-MES-ne, assim que surgi. Clones não
acordam sabendo falar automaticamente. Isso pode levar um dia ou dois após a
imobilização.
— Acho que você seria uma ótima aquisição para nossa casa, Elysia.
Sentimos tanta falta de uma adolescente desde que Astrid, a mais velha, foi para
a faculdade no Continente. — Ela fez uma pausa. — A Universidade Bioma.
— Parabéns — eu disse, pois sei que é a coisa apropriada a se dizer a alguém
cujo filho entrou em uma instituição de ensino ultracompetitiva. — Você deve
estar muito orgulhosa.
O rosto da Sra. Bratton se ilumina.
— E estou! Mas Astrid é devotada demais aos estudos. Ela insiste em não
viajar para casa, em Demesne, durante o ano letivo para nos visitar. Sentimos
tanta falta dela. Seu irmão e irmã mais novos andam choramingando tanto desde
que ela se foi. — Ela faz uma pausa para me examinar de cima a baixo
novamente. — Isso, uma nova garota é exatamente o que a família precisa. Você
gostaria de ser essa garota?
— Sim, senhora — respondo. A mim não faz diferença se eu existir nesta loja
ou em sua casa. Mas minha programação interna me diz como demonstrar o
entusiasmo que leva os humanos a se sentirem bem sobre a decisão de me
adquirir.
— Seus modos são impecáveis — vangloria-se Marisa.
— É verdade — concorda a Sra. Bratton. — Uma melhoria excelente para a
insolência dos adolescentes reais. — Ela sorri. — Eu eduquei alguns.
Marisa me manda de volta à loja enquanto conclui as negociações com a Sra.
Bratton. Devo apanhar algumas roupas boas, mas discretas, para levar ao meu
novo lar, onde servirei ao meu novo proprietário. Escolho a malha azul-bebê que
a Sra. Bratton tanto gostou, além de uma blusa branca e uma saia lisa azul,
combinando com a malha. Um uniforme inicial. Uma mudança no traje. Não há
nada mais que eu precise.
A não ser me despedir de Becky.
Becky é a outra Beta adolescente disponível nesta butique. Logo que
cheguei, Becky me informou que os Betas eram mais difíceis de vender, pois o
comprador não tem cem por cento de garantia que um Beta irá operar como
programado. Becky e eu somos Betas adolescentes, as primeiras do nosso
gênero. Becky disse que, assim que emergiu, a Dra. Lusardi lhe informou que,
embora alguns compradores gostassem da ideia de serem os primeiros a ter um
modelo novo, não era esperado que os Betas adolescentes tivessem uma boa
saída, pois não havia tantos adultos humanos que realmente gostassem de
adolescentes; muitos, na realidade, faziam força para esquecer que eles mesmos
já foram jovens. Segundo Becky, Betas adolescentes serviriam de teste até que a
Dra. Lusardi conseguisse produzir bebês e crianças reais, que tinham o potencial
de “ser um estouro de mercado”.
Tecnicamente Becky está disponível para compra, mas não se espera que isso
ocorra, por essa razão ela está consignada a trabalhar na butique, mantendo-a em
ordem, buscando bebidas e arrumando tudo após os fregueses saírem. Com sua
estética infeliz, Becky jamais ascenderá à casta superior dos clones e trabalhará
como companheira, chef, governanta, controladora de oxigênio, instrutora de
esportes ou — o cargo mais valioso de todos — assistente de luxo, que organiza
as necessidades sofisticadas dos residentes. Becky emergiu há alguns meses com
cabelo castanho crespo que parece um ninho de ratos, olhos de um matiz rosáceo
de fúcsia e uma pele amarelada. Ela também é gorda: pelo menos dois tamanhos
acima do padrão ideal sem celulite, conhecido como “corpo de biquíni”, a
estética preferida da ilha.
De acordo com a Dra. Lusardi, sou sua melhor Beta, seja adolescente ou não.
Minha estética acentua o estilo de vida de Demesne, como os clones devem
fazer. A brochura holográfica diz que minhas medidas são um “modelo perfeito”.
Meu tônus muscular sugere que minha Matriz foi atleta ou dançarina. A Dra.
Lusardi disse que sou verdadeiramente “especial”. Tenho lindos cabelos cor de
mel, pele bronzeada de sol e a pele do rosto aveludada e macia. Até meus olhos
— a parte mais difícil, segundo ela — saíram perfeitos, como balas brilhantes
fúcsia, com pálpebras amendoadas e espessos cílios castanhos, para passar a
ideia de docilidade e não assustar os proprietários. De longe, os olhos luminosos
dos clones devem atrair os humanos e fazê-los sentir segurança. De perto,
parecem ocos. Por isso, os humanos não tendem a fixar nossos olhos de perto,
algo que me disseram ser socialmente preferível, já que olhos destituídos de
alma podem ser assustadores aos que a têm.
— Então você será uma companheira — diz Becky. — Que bom para você.
De repente sinto um aperto no coração, como se fosse ter saudades dessa
outra Beta adolescente, mas sei que isso ocorre porque meu chip pode imitar
reações humanas e não porque eu seja capaz de sofrer de verdade a falta de
Becky. Não sentimos nada uma pela outra, não precisamos. Não entendo por que
sinto ainda um vazio no estômago ao pensar em deixar a outra adolescente Beta.
Há tanto para eu aprender sobre esta ilha, a química de meu próprio corpo. Sou
tão nova.
Becky acrescenta:
— Você acabou de entrar no mercado, foi uma venda rápida. Parabéns!
— Assim que me estabelecer no novo lar, talvez eu possa perguntar se há
alguma posição adequada para você.
— Obrigada — responde Becky, demonstrando gratidão para uma promessa
que ambas sabemos ser improvável de cumprir. — É totalmente satisfatório
servir aqui também.

A Sra. Bratton e eu saímos em um Aviate, um Veículo Utilitário de Luxo de


baixa altitude, com motorista. O VUL tem janelas que ficam escuras do lado de
fora, por dentro cheira a jasmim e possui assentos que parecem acariciar os
passageiros. Sentei na parte de trás com a Sra. Bratton, enquanto seus dois
guarda-costas ocuparam a frente, olhando intensamente pelas janelas, como se
ameaças pudessem surgir no paraíso fora deste veículo. Talvez eles olhem com
tanta seriedade por não saberem o que mais fazer. O Aviate se conduz sozinho.
Conforme planamos sobre o terreno, a Sra. Bratton desliza sua mão direita
sobre a parte interna do seu braço esquerdo, do cotovelo para o pulso. Sua tela
Transmissora surge por baixo da pele e ela começa a retransmitir mensagens.
Seu interesse por sua nova compra — eu — aparentemente evaporou. É meu
dever agradar e não a aborrecer, mas meu chip me permite saber que, às vezes,
humanos precisam de calma para Transmitir, então não tento abordá-la neste
momento. Em vez disso, observo a paisagem passar: palmeiras altas, luxuosas
vilas isoladas, lagoas turquesa e jardins cheios de jacarandás, lírios, maracujá,
dálias, orquídeas e hibiscos em flor. A distância, vejo o tranquilizante mar Io e,
acima de tudo, mais adiante, as montanhas com mata verde esmeralda que
recobrem a ilha. Embora eu não consiga vê-las das janelas do Aviate, lembro que
aquelas montanhas se transformam, do outro lado, em uma floresta tropical
selvagem, onde as instalações da Dra. Lusardi, o lugar de onde venho, se
escondem.
Jamais vivi em qualquer lugar que não fosse Demesne, então não posso
compará-la a outros locais, mas mesmo sem um chip para me contar isso, acho
que poderia entender que esta ilha é um ideal, a incorporação da perfeição.
Inspirar o ar sedoso é como ter mel morno a escorrer garganta abaixo. O
contraste de cores — o azul violáceo de Io, as plantas e as árvores altas de um
verde viçoso, a plumagem exuberante das flores de tons brilhantes: róseos,
amarelos, laranjas, vermelhos, roxos e dourados —, em todos os locais,
intoxicava os olhos.
A animação fervilha em mim, um antídoto direto para a ansiedade anterior
sentida ao ser separada de Becky. Agora tenho um proprietário e estamos a
caminho do meu novo lar, no lugar mais desejável da Terra. Como será a vida
em Demesne, na qual recentemente emergi?
Uma resposta surge na Transmissão da Sra. Bratton, e ela suspira.
— Que coisa. O Governador não está muito satisfeito com tudo isso.
Minha interface lampeja uma imagem de um imponente homem calvo com
uniforme militar adornado com muitas medalhas. Ela me informa que o
Governador é um general aposentado e atual presidente da ilha, contratado pela
diretoria de Demesne.
— De onde conhece o Governador? — pergunto à Sra. Bratton.
— Ele é meu marido, bobinha.
Suponho que essa afiliação explica os detalhes de sua segurança, embora a
própria ideia de precisar de segurança em um local tão perfeito e tranquilo me
confunda, mas essas coisas eu não questiono. Sou apenas um clone, e um Beta
entre eles.
— Por que o chamam “Governador”? — pergunto à Sra. Bratton.
— É um apelido, querida. Como na época colonial. Presidente parece tão…
sem graça.
— Entendo, Sra. Bratton — respondo, embora não compreenda de fato. De
meu programa de orientação, assim que emergi, aprendi a usar isso como frase
útil para preencher o silêncio com humanos. É irrelevante se eu realmente
entendo ou não.
— Não me chame de Sra. Bratton, é tão formal.
— E como devo chamá-la? — questiono.
— Você pode me chamar de Mãe.
QUANDO ACORDEI PELA PRIMEIRA VEZ, NÃO SABIA o
conceito de mãe. Tinha a lacuna de conhecimento típica de uma nova
Emergente, com um alcance básico de idioma e símbolos de minha Matriz, mas
nenhum contexto.
Ao abrir meus olhos lentamente pela primeira vez, vi única e exclusivamente
o rosto de quem, mais tarde, saberia ser a Dra. Lusardi. Ela observava meu
despertar. Minha vista estava borrada, mas sua coloração era tão distinta que ela
entrou em foco nebuloso. Tinha uma massa de cabelos ruivos encaracolados
emoldurando um rosto pálido com sardas alaranjadas e olhos vermelhos cor de
sangue; vestia um avental branco de laboratório. Consegui ouvir o rosnar de
máquinas atrás dela, silvos e guinchos criando uma sinfonia suave de barulho
eletrônico que não fazia sentido para mim.
Se pudesse, teria saltado da mesa e corrido — muito e rápido. Mas não era
possível. Só mais tarde entenderia o que ocorreu no momento do despertar,
quando as coisas afixadas em meus braços — as mãos — pareciam apertadas e a
coisa na parte superior esquerda de meu tórax — o coração — parecia disparar
furiosamente contra aquilo em minha cabeça — o cérebro — para ver qual
anexo do corpo experimentaria primeiro a dissolução completa. Assim que meu
chip foi implantado, entendi que aquele sentimento era chamado pânico. Após
receber o chip, não precisaria vivenciar aquela sensação nunca mais. Foi só na
primeira vez.
O que realmente senti no despertar inicial foi um frio terrível, que se
destacou pelos arrepios que percorriam meu corpo, deitado nu sobre a gelada
mesa metálica ao lado da invenção máxima da Dra. Lusardi — a máquina de
duplicação humana. A máquina da qual emergi parecia um caixão aberto, com
tubos presos às extremidades, levando matéria para dentro por meio de conexões
que a ligavam a outra mesa metálica elevada, paralela ao equipamento. Nessa
mesa ao lado deitou-se a minha Matriz no momento de ser duplicada. Mas seu
corpo morto não estava mais lá quando acordei.
Uma voz perto da Dra. Lusardi — acredito que de um assistente — disse:
— Parece bem para uma Beta. Esta é uma Especial, com certeza.
Senti carne úmida em minha testa, a mão da Dra. Lusardi, verificando se eu
tinha febre.
— A Emersão parece bem-sucedida — disse ela. — Vamos dar algumas
horas para ter certeza de que não será um fracasso, mas não estou preocupada
com essa. Dê um tranquilizante leve, para acalmá-la. Assim que a temperatura
corporal e a pressão arterial estabilizarem, coloque-a sob anestesia geral,
imprima seu rosto e implante os chips.

A segunda vez que acordei, com meus chips implantados, a Dra. Lusardi se
debruçava sobre mim de novo.
— Mamãe? — perguntei. O local, que pareceu vago em meu primeiro
despertar em pânico, agora se registrou mais claramente. Entendi que a Dra.
Lusardi foi responsável por minha criação.
— Criadora! — ela corrigiu, séria. — Não mamãe. Agora sente-se.
Obedeci, sentindo a cabeça leve assim que experimentei o efeito da
gravidade em minha anatomia. Minha visão ainda estava borrada, mas
compreendia o suficiente para perceber que me encontrava em algum tipo de
laboratório médico. Vi painéis de informação do tamanho de paredes mostrando
imagens anatômicas do corpo humano com fórmulas científicas, unidades de
armazenamento com amostras de DNA e esqueletos em tamanho real. Conforme
eu contemplava o laboratório médico de paredes brancas sem janelas, vi
interfaces, do piso ao teto, com números e símbolos iluminados rolando por eles.
Atrás da interface havia uma mesa com instrumentos cirúrgicos — bisturis,
espéculos, aparelhos de fibra ótica, guias de corte a laser, seringas, agulhas e
aparelhos de medição —, uma régua a laser e compassos de calibre. Além disso,
a parede estava repleta de prateleiras cheias de textos médicos e vidros — vários
deles, cheios de sangue ou com moldes gelatinosos contendo partes avulsas do
corpo, como dedos das mãos e pés, mamilos, orelhas e globos oculares.
A Dra. Lusardi me apalpou com os dedos. Examinou meus atributos físicos,
então anunciou:
— O tônus muscular está um pouco flácido, mas isso é comum após a
interrupção da circulação do sangue e vai passar. Você é realmente linda.
Precisará de um nome inicial, vou te chamar… Elysia. Repita comigo: Ee-Ly-
siaa.
— Sia — foi tudo que consegui balbuciar.
A Dra. Lusardi assentiu.
— Vejo que precisará de mais um dia antes da orientação. — Ela falou a um
homem de olhos encovados devidamente parado no canto. Talvez ele também
tenha acordado na mesma mesa na qual estou agora. — Leve-a para a sala de
espera até que esteja pronta para a orientação. E dê-lhe algumas roupas.
A Dra. Lusardi começou a se afastar, então se voltou para me inspecionar
mais uma vez. Ela disse:
— Você deve alcançar um ótimo preço, Elysia. Mesmo para uma Beta.

A sala de espera era um cômodo sem janelas com uma fileira de camas de
solteiro alinhadas à parede, sem outra mobília. Havia quatro outros Emergentes
como eu, também à espera de orientação, usando uniformes hospitalares verdes
como os que me foram dados. Os outros clones novos, duas mulheres e dois
homens, pareciam mais velhos do que eu — deviam ter entre vinte e trinta anos
humanos — e destacavam-se por suas estéticas excepcionais, com atributos
físicos humanos considerados superiores, como corpos esbeltos e rostos com
maxilares altos, lábios carnudos e cabeças cheias de cabelo. Seus semblantes
refletiam variação zero. Enquanto meu banco de dados me piscava exemplos de
expressões faciais humanas, com etiquetas como FELIZ, TRISTE, BRAVA e
CARINHOSA, os outros emergentes não exibiam gesto algum além de
INEXPRESSIVO.
Não nos falamos. O que haveria a dizer? O que…?
E o tempo inteiro havia um clone de olhos fúcsia em pé no canto da sala, de
compleição de lutador de boxe de peso pesado. Sua aparência e constante
observação silenciosa deixavam claro que devíamos aguardar, descansar e não
conversar.
Então, na sala de espera, fiquei deitada no catre como um bom clone, dormi
quando pude, e esperei por uma vida fora daquela sala.

No dia seguinte, os outros novos Emergentes e eu fomos levados para a sala de


orientação, outro ambiente escuro sem janelas, onde nos mandaram sentar sobre
almofadas distribuídas no chão em padrão circular. No meio do círculo foi
projetada uma apresentação holográfica para os clones recém-despertos para
instruí-los sobre a nova vida.
Uma jovem elegante de pele de alabastro, olhos negros oblíquos e cabelo
preto com reflexos violáceos narrou a orientação. Seu vestido chinês vermelho
com dragões dourados bordados acentuava sua figura esbelta. Conforme ela
falava, uma montagem de imagens girava ao seu redor, mostrando fotografias da
água azul-violeta do mar de Io batendo nas praias de areia branca, quedas-d’água
enfileiradas cascateando suavemente sobre rochas cristalinas, pináculos de
formações rochosas se elevando do oceano, montanhas do interior e
emaranhados de densas florestas. Sua entonação ronronava em acolhedor prazer.
— Olá, clones recém-emergidos! Sou Mei-Xing e estou aqui para lhes contar
sobre Demesne, sua nova casa!
— Demesne é um arquipélago formado após uma gigantesca erupção
submarina ocorrida a milhares de quilômetros do continente, o novo continente
realinhado de países unidos após uma época infeliz na história humana chamada
de Guerras da Água. Esse paraíso viçoso precisava de humanos para desfrutá-lo.
É claro! O mundo passou por tanto desespero, mas agora, com a esperança e a
prosperidade novamente reivindicando a Terra, esse novo paraíso foi aquinhoado
com prazer. Assim, a melhor ilha no novo arquipélago foi comprada e
desenvolvida por alguns dos mais ricos e importantes humanos do continente!
Esses sujeitos poderosos fizeram com que a ilha se transformasse no maior
parque de diversões para pessoas de elite como eles, que precisavam de um
refúgio particular. É claro! Eles o mereceram!
— O oceano ao redor da ilha foi reformulado por cientistas e gurus
espirituais para criar a marinha mais luxuosa do mundo. Eles refizeram o canal
aquático e o chamaram de mar Io, que ondula em cristas padrão violeta e
promove uma experiência transformadora. Para os humanos, nadar em Io
ilumina, relaxa e encanta. Que lindo!
— Adivinhem o que mais? Depois de recriar um oceano inteiro, pensaram:
por que não melhorar também o ar? Então projetaram um sistema que bombeia
oxigênio especial na atmosfera de Demesne. Esse suculento ar doce, disponível
em outros lugares apenas em contêineres especialmente produzidos, é bombeado
por toda nossa ilha. Incrível, não é? Certo!
— Então, é provável que estejam pensando, se há um paraíso completo em
Demesne, o que mais este local perfeito precisa? A resposta seria: trabalhadores
para servir os convidados da ilha! É claro! Empregados, mordomos, cozinheiros,
auxiliares de construção, entendem? Há um probleminha — as mesmas
condições atmosféricas que fazem Demesne ser tão especial também dificultam
as viagens para cá. Aqui é relaxante e animado demais para os humanos
trabalharem! Difícil!
— Para remediar isso, os fundadores da ilha construíram um complexo
científico para a brilhante Dra. Larissa Lusardi, a maior especialista mundial em
clonagem. Eles a trouxeram para Demesne para criar trabalhadores que
poderiam prestar os importantes serviços que a ilha precisaria para ser um resort
funcional. E você, meu amigo, é um desses clones afortunados, escolhido pela
estética superior de sua Matriz — o humano recentemente falecido do qual foi
clonado. Pela tecnologia patenteada da Dra. Lusardi, os corpos das Matrizes são
clonados em até 48 horas após o falecimento, permitindo a extração de suas
almas. Então, bônus para vocês. Não carregam a carga de uma alma pesada.
Disso eu sei, vocês são felizardos!
— Vocês são a elite da clonagem humana. Parabéns! Representam a força e a
beleza pelas quais a ilha tem fama. E agora, viverão e servirão no lugar mais
luxuoso e belo da Terra. Fantástico, não é! Certo!
— Bem-vindos!
Assim que Mei-Xing pronunciou bem-vindos, uma procissão diversa de
clones cujas etnias pareciam representar cada canto do planeta veio à frente para
cumprimentar e repetir sua última frase:
— Bem-vindos!
Estavam vestidos com os respectivos uniformes de empregados, governantas,
massagistas, instrutores de golfe e tênis, assistentes de luxo, etc. e, como Mei-
Xing, eram espécimes adultos que pareciam ter entre vinte e trinta anos e que se
enquadravam na estética da ilha, de bela aparência associada a belos corpos.
Acordei como um deles, mas na forma adolescente.
Detinha a promessa de um novo futuro em clonagem.
Após a apresentação, a própria Dra. Lusardi entrou na sala para nos falar.
Disse:
— Imaginem-se como telas de pintura em branco.
Um clone surgiu e entregou a cada um de nós um espelho. A Dra. Lusardi
prosseguiu:
— Olhem nos espelhos. Vejam suas telas.
Encarei o espelho e vi meu rosto pela primeira vez. Tinha olhos, orelhas,
nariz, bochechas, lábios — os complementos humanos usuais de feições, todos
perfeitamente formados e esteticamente desejáveis. Do lado direito de minha
face, vi a tatuagem que ia das minhas têmporas ao maxilar: era um símbolo de
flor-de-lis cor de violeta. Eu a toquei e vi os outros fazerem o mesmo com a
deles, tentando sentir o bonito desenho em seus rostos, saber se a tatuagem tinha
textura. Não tinha.
— Embora possam parecer humanos — continuou a Dra. Lusardi —, vocês
não são. As tatuagens violetas em seus rostos estão aí para exprimir essa
distinção. Vocês pertencem a Demesne. — Fez uma pausa enquanto os clones
auxiliares retiraram os espelhos de nossas mãos. Então, prosseguiu: — Mas,
como os humanos, vocês podem considerar que possuem duas partes — uma que
está dentro de vocês e outra que está fora. A primeira, a interna, é composta
pelos seus órgãos, que foram replicados das Matrizes. Nos humanos, o que está
dentro é algo que não pode ser visto — a alma. Aqui essa é a diferença
fundamental entre vocês e suas Matrizes. Vocês não têm almas. O que as
substituem são implantes de chips individualizados, que foram customizados
para vocês. O primeiro chip está em seu cérebro e contém todas as informações
que precisarão para desempenhar os papéis a que se destinam em Demesne. Seu
chip os instruirá a imitar sentimentos humanos, usando o rosto e a linguagem
corporal, e exprimir fisicamente o que seus corpos sem alma não podem sentir
de verdade. Ele se automodificará para se aproximar das expressões humanas
adequadas para qualquer situação em que se encontrarem.
— Desempenharão diferentes papéis em Demesne. Vocês dois — a Dra.
Lusardi apontou os dois musculosos clones machos em nosso círculo — têm
constituição perfeita para a construção civil. Daqui, irão direto para o setor de
construção, sem nenhum agente intermediário para leiloá-los. O conjunto de
habilidades que precisam para operar o maquinário e similares foi implantado
em seus chips. Vocês duas — então ela apontou para as fêmeas loiras com
cinturas minúsculas e seios grandes — irão para um agente que tentará vendê-las
para posições mais importantes, talvez de massagistas ou até assistentes de luxo.
Receberão treinamento nos serviços designados, e seus chips lhes mostrarão
como projetar as qualidades que os humanos apreciam em seus servidores, como
carinho, devoção, eficiência e disposição. — Por fim, a Dra. Lusardi me
apontou. — E você, nossa Beta adolescente, não sei o que acontecerá a você.
Minha outra adolescente Beta foi um fracasso, então normalmente não a
colocaria à venda ainda. Mas você é especial demais para não tentarmos. Você
tem a estética exata que esta ilha procura, mesmo sendo uma Beta.
— O que Beta significa? — indaguei.
— Um modelo de teste — respondeu. — Ainda em desenvolvimento. — Ela
deu uma risadinha e acrescentou: — Exatamente igual a uma adolescente real.
Então, outra projeção holográfica caiu no centro de nosso círculo, mostrando
a procissão diferente de clones de boas-vindas que vimos na apresentação
anterior que agora exibiam seus braços. A Dra. Lusardi explicou:
— O segundo chip foi inserido abaixo da pele em seus pulsos direitos. É o
seu localizador, para assegurar que nunca se percam e que seus proprietários
sempre saibam onde os encontrar.
Os novos Emergentes e eu pusemos os dedos da mão esquerda sobre o pulso
direito para tocar o chip. Conseguimos sentir a textura, uma pequena saliência
abaixo da pele. Que sorte. Nesta nova e estranha terra, nunca nos perderíamos.
A figura holográfica dos clones demonstrando seus chips nos braços
desapareceu, substituída por imagens individuais em close dos rostos dos clones,
mostradas em rápida sucessão. Cada um tinha uma tatuagem idêntica de flor-de-
lis violeta do lado direito do rosto, enquanto a face esquerda ostentava uma
tatuagem exclusiva, com um tipo diferente de flor.
Dra. Lusardi completou:
— E depois há o que é visível, no exterior. Suas tatuagens faciais os marcam
como clones nativos de Demesne. Vocês já viram suas flores-de-lis violeta. Após
serem comprados e designados para serviços, o lado esquerdo de seus rostos será
marcado com uma tatuagem botânica específica simbolizando sua função. É
então que a tela vazia de sua existência começará a tomar forma. Daí por diante,
esse símbolo botânico rapidamente identificará qual função desempenham na
ilha.
As imagens holográficas desapareceram, dando lugar a um contagiante
acompanhamento musical que reforçava o final da palestra de orientação da Dra.
Lusardi.
— Mas como a evolução de sua estética se baseia em suas tarefas aqui —
completou ela —, o que permanecerá constante será sua missão. Lembrem
sempre: foram criados para servir. A ciência permitiu a extração das almas de
suas Matrizes para que os clones possam trabalhar aqui sem restrição. Vocês
nada sentem, assim os humanos a quem servem conseguem encontrar o que
buscam aqui em Demesne — felicidade.
Imagens holográficas foram projetadas diante de cada um de nós, rostos
humanos intitulados: FELIZ, CONTENTE, EXULTANTE e SATISFEITO.
— Estas são as feições que vocês se esforçarão em expressar em seu serviço
para os humanos — explicou a médica. — Estes rostos são o maior objetivo
artístico. Vocês são, meramente, as ferramentas que permitem aos seus
proprietários experimentar a arte de viver bem em Demesne, que eles se
dedicaram tanto para criar.

Retornamos à sala de espera após nossa orientação, onde nos disseram que
passaríamos uma última noite antes de sermos enviados para nossas novas
tarefas: no caso dos dois homens, para os agentes apropriados, no caso das duas
mulheres adultas e eu mesma, para sermos colocadas à venda. Fomos para cama.
Em algum momento durante a noite, acordei repentinamente, a boca
ressecada.
— Eu poderia, por favor, tomar um pouco de água? — indaguei
respeitosamente ao corpulento clone que se impunha no canto de nosso quarto,
nos observando.
Ele apontou a porta, dizendo baixo:
— Há um bebedouro no final deste saguão. Não demore.
Disparei pelo saguão mal iluminado. A caminho do bebedouro, no final do
pátio, passei por uma porta que, diferente das outras que existiam nas
instalações, tinha um visor de vidro para olhar dentro da sala. O aviso dizia
ENFERMARIA. Chequei a palavra em meus dados e descobri ser um local onde
criaturas com problemas ou doença são mandadas para ficarem melhor.
Espiei pelo visor. A sala parecia um laboratório científico similar ao que
emergi, com mesas longas de metal e equipamento médico. Sobre essas mesas
havia clones com olhos fúcsia precisando de reparos.
Um clone macho estava em uma delas, com mãos e pés presos em travas,
enquanto a pele de seu tórax era cauterizada por um assistente de laboratório
segurando uma tocha de aço. Sangue e secreção pingavam da órbita do olho
vazia de uma fêmea sentada na mesa ao lado, também presa, enquanto outro
trabalhador de laboratório extraía o olho de outra órbita. No canto da sala, tinha
um clone macho pregado na parede, braços acima da cabeça, pulsos e tornozelos
presos, sendo estocado com uma longa lança metálica nas axilas, boca, narinas e
ouvidos.
Os corpos dos sujeitos estavam todos batidos, com equimoses e
ensanguentados; as bocas abertas pareciam dizer algo. Ou gritar algo.
Meu coração palpitou, minhas mãos ficaram úmidas e senti gotas de suor se
formando na testa. Meu corpo voltou ao pânico, como durante os primeiros
momentos após o despertar inicial.
Virando, me apressei a retornar à sala de espera, de volta para minha cama.
A sede podia ser um sinal de mau funcionamento. Eu não precisava mais de
um gole de água.
É VERDADE O QUE DIZEM SOBRE O AR DAQUI.
Embora eu não tenha base para comparação, posso perceber como o ar
enriquecido com oxigênio pode proporcionar a um corpo e mente humanos um
sentimento constante de contentamento. O ar aqui é tão suave que começo a
entender como os humanos com alma consideram impossível realizar qualquer
serviço. Não é de surpreender que eles precisem de clones que não se importam
em desfrutar a serenidade da ilha. A doçura pode ser tão intoxicante quanto a
anestesia colocada em meu rosto, da qual estou despertando.
Meus olhos se abrem da breve letargia. Estamos novamente planando no
Aviate. Agora me recordo. A anestesia se dissipa mais rapidamente nos clones.
Após a minha compra, paramos na clínica dentro das instalações do clube de
campo, chamada Refúgio, onde os clones são “gravados” — o termo humano
usado para clones que receberam a tatuagem botânica específica que é
implantada no lado esquerdo dos rostos após nossa função ser designada. Os
guarda-costas da Mãe, nos assentos dianteiros do Aviate, foram embelezados
com capuchinhas — folhas em formato de armadura com flores de um amarelo e
laranja vivos —, simbolizando conquista, um troféu.
Toco o meu lado esquerdo, traçando uma linha com o dedo de minha têmpora
até a maçã do rosto. No reflexo da janela do VUL, posso ver enevoadas as
pontas das pétalas de flores de um azul profundo, com esporões. Minha gravação
anuncia a todos o quanto sou afortunada em ser uma Beta adolescente que
servirá na função de acompanhante de uma casta superior. A Dra. Lusardi
predisse que eu seria uma venda excelente, e ela tinha razão. Sinto uma
contração no estômago, uma deliciosa antecipação. Mal posso esperar a nova
aventura ter início. Mal posso esperar me instalar nesse novo lar.
— Sua gravação está divina — avalia a Mãe com voz infantil. — Ficará
ainda melhor assim que as marcas da queimadura esmaecerem. Estou tão feliz
que ficamos com o delfínio em vez do crisântemo com que a maioria dos
acompanhantes é gravada. Uma escolha tão bonita. O azul complementa tão bem
o violeta do outro lado do rosto.
O delfínio simboliza uma conexão ardente. A Mãe parece ardentemente
ligada à minha estética.
— Elysia, acho que nunca vi um clone tão bonito quanto você. E isso é algo
inédito nesta ilha. Estou tão satisfeita que teremos uma garota querida em nosso
lar. Que ideia brilhante da Dra. Lusardi de fazer uma Beta adolescente. Tão
jovem e pura! Mas puxa…. sua pobre Matriz. Tanta beleza jovem desperdiçada.
Sua pobre mãe, ter perdido uma filha tão jovem — suspira ela. — Mal posso
esperar para te exibir por aí.
Ela me puxa para perto dela. Eu avalio a reação apropriada — colocar minha
cabeça em seu ombro, o que eu faço, levando a Mãe a depositar um beijo
maternal em minha cabeça.
— Que garota boazinha — ela arrulha.
O calor do abraço da Mãe flui para meu corpo. Não sou só uma companheira,
mas uma filha, exatamente como a garota humana dos Bratton. Serei cuidada e
amada como Astrid. Sou uma Beta afortunada.
Como todas as outras vilas em Demesne, a Casa do Governador, o lar onde a
Mãe me trouxe, foi projetada para ser artística e arquitetônica. Uma centena, ou
mais, de mansões luxuosas se espalham por toda a ilha, sempre criadas pelo
mesmo arquiteto e usando os mesmos materiais no exterior: estuque, madeira,
vidro, titânio e cobre. As casas têm formas geométricas esculpidas, como se
antigas civilizações tivessem mesclado os templos construídos para seus deuses
com uma moderna aeronave intergaláctica e espalhado esses lares híbridos, sem
emendas, pela paisagem de Demesne.
O Aviate chega à pista de desembarque circundada por fileiras de flores
típicas de Demesne, chamadas cuvées. Essas plantas parecem tochas, com flores
espigadas de cor coral brilhante em longas hastes eretas. Elas fazem a pista de
desembarque do Aviate borbulhar como garrafas de champanhe esperando para
serem estouradas.
Mãe aperta minha mão assim que o Aviate para.
— Bem-vinda ao lar, querida — ronrona ela.
Eu não preciso de guia para meu novo lar; minha interface do chip revela
tudo que preciso saber a respeito dele. A Casa do Governador está empoleirada
no topo de uma rocha que toca o oceano, com paredes inteiras de vidro e vistas
privilegiadas da água. A entrada é um saguão de mármore, com luminárias de
cristal pendendo acima da cabeça, que leva à casa com cômodos enormes:
quartos luxuosos, áreas serenas de descanso, cozinha ultramoderna, sala de
massagem. E é claro que a casa tem área especial de entretenimento, comum aos
lares em Demesne: a sala FantaEsfera, uma arena de jogos de fantasia para
esportes como caçada virtual de veados e tubarões e pilhagem de floresta
tropical e especialmente para jogar ZGrav, o jogo de gravidade zero pelo qual, a
Mãe me contou, os adolescentes de Demesne enlouquecem.
A Casa do Governador conta com energia solar e opera com a energia dos
clones. O governador e sua esposa têm um mordomo próprio que prevê e fornece
tudo para cada necessidade deles, junto com replicantes que facilitam a operação
da casa: empregados, chef, jardineiros, assistentes de luxo, guarda-costas. O
maior grupo de clones da ilha, os instrutores de esportes, massagistas e
trabalhadores de construção são compartilhados pelos residentes de Demesne e
residem na área do Refúgio.
Conforme entramos, a Mãe mantém minha mão na sua e comenta:
— Você é o primeiro clone da Casa do Governador a servir de companheira e
seu primeiro modelo Beta. Vamos nos divertir tanto te testando!

Durante os últimos dois anos, meu novo irmão, Ivan, foi o campeão regional de
luta romana de sua categoria. Ou é o que a Mãe me informa após ele me atirar no
chão ao sermos apresentados. Ele tem dezoito anos e cabelo castanho-claro
cortado à maneira militar, com olhos azuis-claros e bochechas rosadas cheias
como as da Mãe, dando uma suavidade ao rosto que não combina com sua
compleição.
— Brincadeirinha — diz Ivan¸ retornando à posição ereta. Ele estende sua
mão para me ajudar a ficar em pé. — Nem sabia que agora produzem Betas
adolescentes.
— Bom menino! — diz a Mãe. — Agora você tem uma companheira quando
quiser lutar com alguém. Alguém de sua própria idade, então não machucará
acidentalmente nossa pequena e delicada Liesel.
A pequena e delicada Liesel berra de prazer.
— Temos uma Beta! Temos uma Beta! — Ela é uma garota magrela de dez
anos com apenas um prenúncio de adolescência no peito e quadris, e as mesmas
cores de Ivan e da Mãe. — Posso mostrar o quarto dela, Mãe? Posso, por favor?
— Não — responde a Mãe. — É para isso que temos clones, querida, para
fazer o trabalho. — A Mãe se volta ao clone que está por perto. — Xanthe, por
favor, leve a Beta ao antigo quarto da babá ao lado do quarto de Astrid. Vou logo
lá para ajudá-la a se instalar.
A governanta, Xanthe, aparenta uns vinte e poucos anos na idade humana.
Tem pele branca pálida, cabelos negros curtos encaracolados e olhos fúcsia
amendoados. Sua gravação é de azevinho, simbolizando felicidade doméstica.
Eu a sigo pelo longo saguão com paredes de vidro e vista para o oceano de um
lado e jardins vicejantes do outro.
— Esta residência é excelente — comento com ela, para puxar conversa e
para que Xanthe saiba que desempenha bem sua função mantendo-a tão
arrumada.
— Por que não seria? — responde ela.
— Não sei. Esta é a primeira casa em que estive.
— São todas iguais, qualquer casa nesta ilha — avalia Xanthe. —
Harmoniosas e bonitas.

Vou ficar no alojamento da antiga babá, ligado ao quarto de minha nova irmã
distante, a Astrid. É pequeno, mas funcional. Tenho uma cama, uma cômoda
para roupas, uma escrivaninha e uma janela com vista para o oceano. Astrid e eu
até temos o mesmo manequim. Mãe me dá uma caixa do guarda-roupa de Astrid
para encher o meu próprio armário.
— Astrid nunca usou a maioria dessas roupas — avisa a Mãe. — Ela tem um
corpo tão lindo para usar esses jeans apertados e tops minúsculos, mas ela
preferia aquele horrível estilo grunge. Que azar, aquelas roupas tipo saco que os
pacifistas vestem nos continentes. Mas todas essas peças que comprei para a
minha filha rabugenta devem lhe servir perfeitamente.
— Que modelo devo usar?
A Mãe consulta seu relógio com pulseira de diamantes.
— As crianças adoram brincar na piscina a esta hora. Coloque um dos trajes
de banho para que possa se juntar a eles.
Enquanto me troco no banheiro, ouço o Governador se juntando à Mãe no
quarto de Astrid. Ele não está nada feliz com a minha chegada em sua casa e não
é tímido para discutir em voz alta com a esposa.
— Eu disse a você, nenhum clone mais! — sibila para a esposa. —
Especialmente uma Beta adolescente! Onde você estava com a cabeça? O tratado
da ilha com o Continente cobre apenas clones adultos, e eles os tirariam, se
pudessem! Tem ideia das consequências políticas às quais me expôs? Você se
superou com esta compra frívola.
A Mãe parece despreocupada.
— Não seja ridículo. Elysia é um anjinho gentil. Você vai adorá-la.
— Isso não tem nada a ver.
— Querido. Uma Beta adolescente! Nós somos os primeiros a possuir uma!
Eu tinha que tê-la. Prometo que não comprarei mais nenhum.
— Ela é uma adolescente. Ela ficará Horrível.
Verifico adolescente Horrível nos dados e descubro que níveis hormonais em
rápida mudança em adolescentes às vezes os levam a agir de forma selvagem e
insolente, que seus guardiões adultos chamam de comportamento “Horrível”,
mas geralmente os adultos toleram esse comportamento, pois os adolescentes
estão apenas “agindo de acordo com a idade”.
— Você não pode afirmar isso.
Sei disso. Não serei uma Beta adolescente Horrível. Meu chip garantirá que
eu sempre saiba me comportar como uma boa menina.
— Mas por que arriscar? — questiona o Governador.
— Se ela não der certo, podemos devolvê-la. Isso basta para você? — retruca
a Mãe.
Em silêncio, jurei jamais agir de forma que pudesse me levar a ser devolvida.
Devo provar que sou digna da decisão da Mãe de me comprar e de me tornar
parte de sua casa e de sua família.
O governador diz:
— Estou falando sério. Nada mais de compras por impulso como esta.
— Prometo — assegura a Mãe.
— E eu prometo a você que se isso der errado, é o seu chip de crédito
Transmissor que será cortado. — Seu tom de voz se torna brincalhão. — Ou será
cortado fora do seu braço!
A Mãe ri.
— Você é um gozador, Governador.
AO SAIR PARA O DEQUE DA PISCINA, A REAÇÃO DO
meu novo irmão Ivan ao me ver vestindo o biquíni de sua outra irmã foi bastante
concisa: — Uau.
Primeiro, entendi que ele falava algo sem sentido para mim, mas depois
chequei esta palavra — uau — e aprendi que é própria de machos de 18 anos de
idade.
Agora entendo por que Astrid evitava os biquínis que a Mãe lhe comprou.
Não consigo imaginar por que qualquer garota iria querer vestir algo assim. É
apenas um monte de barbantes. Deveria ser chamado de “traje de salão”, já que
oferece pouco do apoio que um corpo precisa para nadar de verdade.
— Uau para você também, Ivan — respondo.
Eu inspeciono a vista. A piscina de borda infinita é construída na encosta à
beira da propriedade e é inclinada para dar a aparência de cair diretamente no
oceano abaixo. As águas cor de safira da piscina dão um destaque morno para o
azul-violeta de Io abaixo. É uma piscina dividida, com uma grande parte circular
aberta que leva a uma de gruta menor, isolada em uma caverna de pedra.
Ivan, porém, não me quer distraída pela vista. Ele acha que a Beta de biquíni
deve saltar para a água imediatamente. Ele sugere isso espirrando uma enorme
onda que me molha dos pés ao tórax.
— Pule, Beta! — ele me chama.
— Você sabe nadar, Elysia? — pergunta Liesel, nadando até Ivan na borda da
piscina.
Observando-me, Ivan diz a Liesel:
— Pelo seu corpo, ou a sua Matriz foi uma grande atleta ou era uma daquelas
meninas magras, malhadas, que não comem, mas então estufam depois de ter
filhos, como a Mãe.
— A Mãe não é gorda — afirmo, defendendo a honra de minha esbelta
benfeitora.
— Ela era até procurar a nutricionista no Refúgio que a pôs naquela dieta de
morrer de fome! — comenta Ivan com alegria.
— Talvez a Matriz de Elysia tivesse anorexia e foi por isso que morreu —
especula Liesel.
Ivan joga as mãos para o alto.
— Liesel! Cara! Você nem deveria saber o que é anorexia. — Então, ele
aponta para mim. — E não há jeito de a Matriz do clone ter tido anorexia.
— Como você sabe? — pergunta Liesel.
Ivan se inclina para sussurrar algo no ouvido de Liesel, fazendo-a rir e olhar
diretamente para o sutiã do biquíni.
— Ah — responde Liesel, balançando a cabeça com espanto. — Então é isso
que “bustão” significa.
Ivan espirra água em Liesel.
— Não diga isso na frente dela.
— Por que não? — questiona Liesel. — Ela é um clone. Não se importa.
É verdade. Não me importo que achem que tenho bustão. Não fico ofendida
nem lisonjeada. Só fico… Olho para os meus seios fartos e redondos… peituda,
aparentemente.
Eu também estou curiosa para saber se sei nadar. Como vou descobrir se não
tentar?
Piso na borda da piscina infinita. Mexo os dedos dos pés, os quais mergulho
e puxo para fora, mexendo a água. A temperatura está morna e convidativa. É
como se a água me agarrasse quando a toco — uma corrente que me atrai.
Ivan e Liesel voltam a brincar de “cavalo” de água enquanto eu a testo com
os dedos dos pés. A brincadeira dos irmãos não é justa. Ivan é um jovem
corpulento com o físico de um lutador. A pequena e delicada Liesel não tem
nada para se ancorar contra sua força; entendo agora por que a Mãe precisava de
uma companheira adolescente para seu filho adolescente. Mas a Liesel brinca
com prazer junto com Ivan, parecendo satisfeita por ser o objeto de atenção do
irmão mais velho.
Mergulhar. Sinto que é isso que devo fazer. Vou até o trampolim construído
sobre a parte funda da piscina e instintivamente dobro os joelhos.
— Vamos lá! — chama Ivan. — Mergulhe!
— Vai, Elysia! — exclama Liesel, para me incentivar.
Minhas panturrilhas me lançam à frente, para cima e por cima.
Eu consigo mergulhar! O movimento vem naturalmente, é gracioso.
A água me envolve e eu imagino que é como um útero que alimenta aqueles
que não são criados em um aparelho de duplicação humana. É um conforto
caloroso. É a segurança. Não consigo acreditar como esse sentimento é bonito,
minha pele absorve essa água suave. O momento é como um milagre. Há
algumas semanas eu nem estava viva. Há algumas semanas, minha Matriz
perdeu a vida e eu ganhei seu corpo e esta existência nova e fascinante. Agora,
experimento esse dom chamado vida nadando na piscina de minha nova família,
localizada na ilha mais luxuosa da Terra.
Ao sentir a resistência da água em meus braços, percebo: sou uma boa
nadadora. Debaixo da água, tenho um momento de reconhecimento: devo ficar
aqui.
Quando subo para respirar, Ivan e Liesel me olham com expressões
atordoadas.
— Você acha que a sua Matriz era uma mergulhadora? — pergunta Liesel.
— Não sei — respondo, confusa.
— Pareceu um mergulho digno de Olimpíadas — avalia Ivan. — Nossa nova
irmã Beta é incrível! — Ele e Liesel batem as mãos, celebrando.
— O que mais sabe fazer? — questiona Liesel.
Mergulho de volta na água, faço uma parada de mãos e lá, novamente sob a
água, sinto algo mais. Ouço uma voz me chamando: Z! Por aqui! Z! A voz fere
meu coração, me desequilibrando. Preciso sair da parada de mão e voltar de
novo ao ar.
Estou muito confusa. Sinto-me ofuscada, talvez pelo sol brilhar diretamente
em minha pele exposta.
— O que está zumbindo? — pergunto aos meus novos irmãos. Balanço a
cabeça para a esquerda e para a direita. Fiquei com água presa nos ouvidos?
Meus novos irmãos também parecem surpresos.
— Nada — respondem ambos.
Talvez tenha apenas imaginado o som Z sob a água.
— Qualquer um pode fazer uma parada de mão — diz Ivan, nadando em
minha direção. — Como você está de luta na água?
Ele se joga, agarrando meus braços por trás de mim. Eu me curvo e o
arremesso por cima de mim. De novo, a sensação de reconhecimento. De alguma
forma, eu sei: já fiz esse movimento antes. Sei exatamente como lutar com um
homem forte na água.
Ivan cai de volta na água com Liesel rindo, satisfeita.
Vejo a Mãe nos observando pelas portas de vidro do pátio. Ela sorri. Estou
me ajustando bem, fazendo exatamente o que ela esperava.
Ivan retorna por debaixo da água.
— Ela te pegou! — provoca Liesel.

— Bela jogada, Elysia — felicita Ivan. — Era tão chato brincar com a Astrid.
Ela só queria ficar à beira da piscina lendo manifestos comunistas pré-históricos.
Você será muito mais divertida.
Liesel salta sobre mim por trás para ser levada nos ombros, espirrando água
em Ivan.
— Pegue a gente! Pegue a gente! — grita ela.
E se agarra em mim até Ivan nos apanhar e arrancá-la dali para poder lutar
comigo por conta própria, de forma justa. Ele é mais forte que eu, mas sou mais
ágil. Ele me agarra firme, mas eu enrosco a perna em torno de seu joelho para
me soltar de sua pegada. A resistência está correta — estamos bem equilibrados
nesse jogo. Mergulho e nado por baixo d’água até o final da piscina, pegando ar
antes que ele caia pesado na metade do caminho para me agarrar de novo.
Mergulho novamente e nado ao redor de suas pernas para atiçá-lo antes que ele
possa me imobilizar com outra gravata.
Sob a água, tenho uma certeza: já fiz tal movimento antes — nadar em torno
de um rapaz para provocá-lo. Consigo ver as longas pernas fortes masculinas.
Pelo tamanho e forma dos músculos em minha visão, entendo que as pernas do
estranho de pelos loiros pertencem a um nadador — um dos bons.
Isso não está certo.
Nado para longe das pernas de Ivan para me livrar dessa falsa imagem, dando
braçadas em direção ao túnel subaquático que leva para a piscina da gruta. Mas
essa arrancada só traz outra aparição: um rosto que combina com as pernas do
ótimo nadador. Vejo um jovem bronzeado, com aparência típica de um deus
surfista californiano: pele dourada, cabelos loiros, olhos azul-turquesa, um torso
esculpido com perfeição muscular. É como se seus profundos olhos azuis se
dirigissem diretamente para mim, reconhecendo e convidando. Seus lábios
carnudos se abrem para dizer algo: Z! Meu coração se aperta, ansiando por ele,
precisando tocá-lo, imediatamente. Estendo meus braços para ele. Preciso tocá-
lo, preciso, preciso, mas o ansioso arfar, o quase desespero me faz engolir água,
e sou forçada a subir de volta à superfície antes de chegar à passagem para a
gruta.
Tossindo, tento expulsar a água dos pulmões e recuperar o equilíbrio. Ivan e
Liesel nadam até mim e me ajudam, dando tapinhas nas costas.
— Você está bem, campeã? — pergunta Ivan.
É possível que eu não esteja bem. O que vi debaixo da água era uma visão
que pertencia à minha Matriz. Não sei como sei disso, mas sei.
Afasto o pensamento negativo de minha mente. Esta família comprou um
clone insensível, e é exatamente isso o que terão. Eles merecem o melhor. Eu
serei esse melhor. Meu corpo estremece, livrando-se de qualquer coisa
impossível que tenha acabado de acontecer sob a água.
No deque da piscina, vejo Xanthe, a governanta, arrumando a área ao redor
da piscina, apanhando as toalhas molhadas no chão e as espalhando para
secarem nas espreguiçadeiras. Por um momento, nossos olhos fúcsia se
encontram, e ela acena para mim, como se para me assegurar que estou
desempenhando bem a minha função, assim como ela. Xanthe é como eu, só que
ela é destinada ao trabalho e eu, à brincadeira.
— Você precisa de um descanso? — pergunta Liesel. Ela esfrega meu braço
com carinho quando meu ataque de tosse acaba.
— Não, com certeza não! — respondo, espirrando água nela e incitando uma
nova rodada de gritos alegres da minha nova irmãzinha.
Como Xanthe, sei executar bem minha função.
O SOL E A BRINCADEIRA NA PISCINA DEIXARAM Liesel
e Ivan famintos. Eles devoram seus jantares enquanto beberico minha vitamina
de morango.
— Você gosta de macarrão com queijo, Elysia? — pergunta Liesel entre
mordidas vorazes. — É o meu favorito.
— Não seja idiota — critica Ivan. — Você sabe que clones só bebem
vitamina de morango.
— Eu também gosto da de baunilha — esclareço.
A família ri como se eu fosse hilária.
Por cortesia, porções completas do mesmo alimento que os humanos comem
foram servidas em meu prato, embora eu só precise de vitamina de morango para
sobreviver. Tenho atum grelhado e salada, acompanhados de macarrão com
queijo. Posso digerir alimento humano, mas não desfruto o seu sabor. Seria inútil
experimentar essa comida, já que toda a nutrição que eles obtêm das refeições eu
consigo em uma só vitamina. As de morango têm sabor adequado, mas me
disseram que seus componentes químicos são abomináveis ao gosto humano,
assim não preciso lhes oferecer goles de minha bebida especial por educação.
— Você deveria provar o macarrão — insiste Liesel. — Está delicioso.
Nunca ingeri nada além das vitaminas da Dra. Lusardi. Olho para Xanthe, em
pé a uma distância discreta atrás da mesa de jantar, pronta para servir e tirar a
refeição, conforme necessário. Discreta, Xanthe acena a cabeça para mim. Eu
deveria experimentar.
Espeto com o garfo um pouco de macarrão do prato à frente e levo à boca. A
massa parece macia dentro da boca, enquanto o sabor de queijo dança ao redor
da língua. Ai que delícia! A sensação na boca parece repleta de… deleite? Eu
verifico o significado de deleite e descubro que é um estado de extrema
satisfação, um alto grau de prazer. De fato, estou extremamente satisfeita em
mastigar esta delícia com queijo. Meu estômago parece sinalizar para minha
boca, Mais, mais, mais, por favor!
É como se a minha fiação se acumulasse por si só. Meu chip me diz para
expressar alegria com a comida dos humanos, mas meu estômago diz estar
realmente satisfeito. Quem quer que tenha inventado juntar queijo derretido à
delícia de amido foi com certeza o mais brilhante dos seres humanos.
Mas… eu não deveria ser capaz de ter prazer com o sabor. Só deveria saber
como expressar essa satisfação, sem realmente senti-la. E não seria bom comer
mais. No entanto, não consigo parar. Quero mais macarrão com queijo. Não
entendo como os humanos não repetem essa combinação de sabores em todas as
refeições.
Mastigo e engulo o resto do meu macarrão com queijo e, mesmo querendo
pedir outra porção grande, não o faço. Volto para a minha conhecida e segura
vitamina de morango.
Não é possível que tenha desfrutado uma porção inútil de carboidratos.
Apesar de terem papilas gustativas que conseguem distinguir o sabor, os clones
não sentem prazer com isso. Foi o que me ensinaram.
— O que você acha? — indaga Liesel. — É muito bom, né?
— Completamente incrível — eu lhe asseguro.
Ivan ri.
— SZ! — Liesel grita alegremente.
— O que é SZ? — quero saber.
— Só zoando! — respondem Liesel e Ivan ao mesmo tempo.
Ah, isso de novo.
A Mãe sorri para mim, então lança um olhar para o Governador, sentado à
cabeceira da mesa.
— Não disse que ela é uma graça? Ela até experimenta o macarrão com
queijo da Liesel, só para agradar.
Foi realmente incrível. Eu não estava sendo gentil ou SZ.
Mas eles não precisam saber disso. Em nenhum momento durante a
orientação fui instruída a revelar quaisquer peculiaridades dos Betas que possam
surgir, como um infeliz (mas que sorte!) sentido do paladar.
— Ela também fica natural na água — conta Ivan. — Aposto que a Matriz
era uma atleta.
— Ah, isso é uma ideia — diz o Governador a Ivan. — Você precisa ser
mantido ocupado até começar o treinamento básico. Se Elysia é tão atlética
assim, poderia ser sua companheira de condicionamento. Prepará-lo para a Base.
Dê à Beta algum uso real aqui, em vez de só fingir gostar de comida humana
para nos agradar.
Em vez de ir para a universidade, Ivan está prestes a seguir os passos do pai e
entrar para o serviço militar. Ele vai se juntar ao exército particular de elite que
treina na Base, a gigante instalação militar no Continente que se estende por
centenas de quilômetros, desde o mar até o deserto. O exército e sua Base são de
propriedade das mesmas pessoas que vivem em Demesne, mas o exército
protege pessoas poderosas em outros locais. Na pacífica Demesne nenhuma
tropa é necessária, e seria ainda um incômodo estético.
— Legal! — comemora Ivan.
O Governador se vira para mim. Como o filho, ele é um homem grande, mas
com um comportamento rígido e autoritário. O Governador se orgulha:
— Cinco gerações de homens desta família chegaram ao posto de general.
Um dia, Ivan será o sexto. Elysia, você o ajudará com o treinamento físico para
colocá-lo em forma para o acampamento. Ele partirá em três meses e pode usar
esse tempo para se preparar.
Está bem, Governador — respondo.
Ele não me instruiu a chamá-lo de “Pai”.
A MÃE ESCOVA MEU CABELO ATÉ ELE BRILHAR.
— Sinto falta disso — suspira ela. — A Astrid tem cabelo dourado bonito,
como o seu.
Estou sentada junto à penteadeira no quarto de Astrid com Mãe atrás de mim,
me observando no espelho. Ela está tão contente. Parece um bom momento para
fazer as perguntas importantes sobre a cegonha.
Não aquela cegonha. A respeito dela eu sei.
— Mãe — digo —, existem clones em resorts em outras ilhas?
Ela dá um tapinha afetuoso no topo da minha cabeça.
— Não, querida. Somos mais especiais aqui. Os resorts em outras ilhas usam
populações humanas para trabalhar, mas isso não é possível aqui. A formação de
nossa ilha é relativamente recente, daí não tem população nativa. Com exceção
de nós, é claro — diz, piscando para mim no espelho. — E é extremamente caro
obter uma passagem para cá, então não é uma boa opção importar trabalhadores.
Outros lugares menos especiais usam os humanos. Apenas Demesne pode ter
clones. Regras e leis, chato, chato, chato!
— Há um barco para trazer as pessoas do continente para cá?
A Mãe sorri para mim no espelho.
— Finalmente, uma filha que não me considera uma mala sem alça — ri ela.
— Talvez não saiba, mas os adolescentes reais têm uma maneira de tratar seus
pais como se desejassem que as criaturas não existissem. Prefiro ter um que não
me ignore e queira me fazer perguntas! — Ela faz uma pausa, tentando se
lembrar da minha pergunta. — Sim, Elysia! É óbvio que moradores chegam em
aviões particulares, mas o tratado de Demesne com o continente exige que um
barco vá e volte, assim Demesne não parece tão exclusiva e fora dos limites para
os não residentes. — A Mãe coloca a mão sobre a boca, zombando, como se
confiasse em mim, e fala em voz baixa. — Mesmo que seja!
— Então, o barco é muito caro?
— Não, querida. É praticamente de graça. Mas os vistos necessários para a
entrada custam um valor expressivo. Visitantes precisam obter visto para ficar no
Refúgio, já que não temos hotéis reais. Não queremos turistas enlouquecendo
aqui.
— Então, por que as pessoas não podem voar para Demesne como os
moradores daqui?
— Eles podem voar para cá. Desde que possuam um pedaço da pista de
pouso, algo necessário para ter uma propriedade aqui.
— Então, as pessoas que querem vir compram direitos de aterrissagem —
concluo.
— Claro, se tiver esse bilhão de Uni-dólares de sobra! Minha querida, os
direitos de pouso custam mais que todas as casas da ilha combinadas — zomba a
Mãe.
— Então é por isso que os trabalhadores não vêm de balsa ou voando?
— Meu Deus, Betas são tão perguntadores! É quase uma graça, até que se
alongue demais e custe o meu sono de beleza.
Ela faz uma pausa, como para juntar energia, e então explica.
— Clones são muito ecológicos, entende? — Ela aperta meu braço com
afeto. — Você deve ter muito orgulho de ser um. A reciclagem de pessoas mortas
em clones é a realização científica máxima. A morte do ser humano, sua Matriz,
não foi desperdício e você é totalmente biodegradável após o seu tempo de
serviço.
Eu não pergunto qual será o meu tempo de serviço. Não estou pronta para
enfrentar a própria biodegradabilidade, quando envelhecer muito, como acontece
com os clones, assim que a aparência e as habilidades diminuem após sua década
de serviço. Eu mal comecei a viver. Pôr uma data final em meu tempo de serviço
quando ainda estou na garantia parece prematuro.
— Entendo que tenho sorte por estar aqui e sou grata a você por me receber,
Mãe — respondo.
Ela alisa com carinho as costas dos ombros.
— Meu docinho! Se quer realmente saber, tentamos a experiência humana,
anos atrás. Trouxemos uma babá real para as crianças. Ela dormia no quarto que
é seu agora. Pensamos que daria às crianças um algo mais, uma Mary Poppins
viva e real! Que desastre acabou sendo. O ambiente requintado daqui a fez se
sentir muito melhor do que deveria. Em vez de ser uma funcionária
disciplinadora, ficou totalmente relaxada e feliz. Deixava as crianças correrem
soltas enquanto ela se bronzeava! Uma vergonha, não é?
— Sim, Mãe.
Atrás de mim, Mãe passa os dedos pelo meu cabelo comprido, então ela o
divide em três partes e as trança. Eu sorrio para ela no reflexo do espelho. A Mãe
conta: — Eu costumava trançar o cabelo de Astrid antes de ela ir para a cama.
Era a única coisa que me deixava fazer por ela, bandidinha independente. Dizia
que dormia melhor se o cabelo não ficasse se enrolando no travesseiro.
— As tranças ficaram bonitas, Mãe. Obrigada.
Ela me beija no topo da cabeça.
— De nada. Agora há algo que você pode fazer por mim.
— Sim, Mãe?
— Às vezes, quando a Liesel dorme, ela tem pesadelos. Se você a ouvir,
poderia ficar com ela até voltar a pegar no sono? Eu tomo soníferos à noite e
muitas vezes não a ouço. A Astrid costumava fazer isso, agora é o Ivan, mas ele
só a deixa mais ansiosa. Meninos e suas brincadeiras de luta na hora de dormir!
Ele não tem noção de como acalmar uma criança assustada. Você sabe como são
os jovens garotos.
Eu não sei. Nada além de que dizem “Uau”.
— Vou sim, Mãe — garanto-lhe.
— Boa menina! Boa noite.
Ela caminha em direção à saída do quarto e para na frente da porta um último
momento para me observar. Meu programa reconhece orgulho e carinho
humanos no rosto quando seu olhar se fixa em mim.
— Mãe? — eu a chamo.
— Sim, querida?
— Quando a Astrid ficou doente, o que aconteceu com ela?
— O que você quer dizer?
— Ela foi para a enfermaria?
A Mãe ri baixinho.
— Não, claro que não. Nós cuidávamos dela aqui quando ficava doente,
como com todos os nossos filhos. Felizmente, nenhum jamais ficou tão doente
que exigisse cuidados hospitalares.
— Então, se eu ficasse doente, não iria para a enfermaria?
A Mãe apaga a luz do meu quarto.
— Durma, Elysia. Você não vai ficar doente. Você é simplesmente perfeita.
OUÇO LIESEL GRITAR NO MEIO DA NOITE. PULO DA
cama e corro para o quarto dela, como a Mãe solicitou. Acendo a luz do seu
quarto e vejo que é um santuário erguido em homenagem às princesas dos velhos
tempos, com paredes rosa cintilante, penteadeira francesa com gavetas e uma
cama de dossel cercada com tule rosa.
Sento-me na cama. Liesel se joga contra mim, enterrando o rosto em meu
peito. Acaricio seu cabelo, sentindo enorme necessidade de confortar essa
criança angustiada. Como uma verdadeira irmã, quero protegê-la de males reais
ou imaginários. Minha camisola fica úmida com as lágrimas.
— O que aconteceu? — pergunto à Liesel.
— Sonhei de novo com os bandidos. Estavam em pé, no chão, do lado de
fora do meu quarto, atirando balas na minha janela. Exatamente como no jogo
do Ivan.
— Isso é terrível. Isso nunca aconteceria aqui.
— Poderia acontecer. Existem bandidos maus em toda parte.
— Quem lhe disse isso?
— Ivan. Ele contou que as pessoas do protesto estão ficando mais fortes e
começarão a nos perseguir, não só o papai.
— Quem são as pessoas do protesto? — Examino o banco interno de dados,
mas não encontro informações sobre essa seita.
— Você não sabe nada, Elysia? Aqueles que são contra a clonagem.
Beijo o topo da cabeça de Liesel, como a Mãe beijou a minha. Regulo meu
tom tranquilizador e questiono Liesel:
— Como alguém pode ser contra a clonagem? As pessoas iriam protestar…
contra mim? Não acho que seja possível.
Ela olha para o meu rosto e por um momento seu estresse parece diminuir.
Aparentemente, porém, meu rosto reconfortante não basta.
— Como você sabe? — insiste Liesel.
— Sei o quê?
— Que ninguém tentará me machucar.
Verifico essa questão em meus dados, que fornecem a resposta definitiva.
— Coisas ruins não acontecem em Demesne, garanto.
— Existem clones maus lá fora? — Liesel sussurra.
— Como assim? — sussurro de volta.
— Defeituosos. Clones que não funcionam.
Ergo a vidraça do quarto para que uma corrente de ar fresco de Demesne
possa acalmá-la.
— Acho que você já sabe que esta ilha é perfeita demais para permitir que
qualquer coisa defeituosa viva aqui.
Mas se há clones com problemas, talvez seja por isso que existe uma
enfermaria nas instalações da Dra. Lusardi, para guardá-los com segurança,
longe dos humanos?
Sento ao lado de Liesel e a puxo para perto. Acaricio seu queixo de leve para
oferecer consolo.
De novo, ela enfia cabeça em meu peito, finalmente consolada.
— Você trabalha bem — murmura Liesel.
Ainda acordada, ela está mais calma, mas continua convencida de que “alguém
do mal” está chegando para pegá-la durante a noite.
— Posso dormir com você na cama da Astrid? Ela costumava me levar para
o quarto dela quando eu estava com medo dos pesadelos. Minha cama é muito
pequena para duas pessoas — implora.
Voltamos para o quarto de Astrid. Ajeito Liesel na cama da irmã mais velha e
me aconchego ao lado dela. Liesel põe sua mão em minha cintura por segurança
e rapidamente volta a dormir, exausta do drama que criou para si mesma.
Eu não consigo voltar a dormir tão facilmente. Já que estou substituindo
Astrid, acho que preciso conhecê-la melhor. Vejo a holofoto em seu criado-
mudo, Astrid e Liesel se abraçando uma no ombro da outra. Liesel está sorrindo,
mas Astrid não. Ela tem cabelo loiro claro na altura dos ombros como o meu, e
olhos azul-bebê, como os da Mãe. Liesel parece despreocupada e feliz; Astrid,
cansada e distraída.
Abro a gaveta do criado-mudo. Nela há pedaços de balas duras com sabor de
morango. Pergunto-me se eu gostaria de balas de morango, tanto quanto gosto de
vitamina de morango. Pego o doce, mas a embalagem está um pouco desfeita e a
bala grudada no fundo da gaveta. Eu a puxo, e com ela vem toda a tábua que
forra o fundo da gaveta. Quando a tábua sai, aparece uma gaveta oculta embaixo,
que contém cadernos cheios de testes simulados dos exames de ingresso na
universidade de Astrid. Pego um deles e leio as respostas de Astrid. Suas notas
no início do caderno são baixas, mas no último, ela quase conseguiu a nota
máxima. Até sua letra melhorou no final. Não é de admirar que a Mãe sinta tanto
orgulho dela. Fica claro que Astrid se esforçou muito para alcançar a nota
necessária para conseguir ser aceita nas melhores universidades.
Coloco o caderno de volta na gaveta em cima das outras coisas ali guardadas.
Há uma adaga de prata com uma fita vermelha enrolada e um bilhete em anexo:
Feliz Natal, Astrid. Com amor, papai. O resto do espaço é preenchido com um
dicionário e utilidades femininas, como absorventes íntimos. Tiro o dicionário
para ler mais tarde, mas deixo o punhal e os artigos femininos. Replicantes,
biologicamente falando, são como seres humanos em todos os sentidos, exceto
que não podemos nos reproduzir.
Não preciso de produtos femininos, pois não tenho menstruação. E não
saberia o que fazer com um punhal. Mas sempre posso aprender palavras novas.
Observo que no quarto há holofotos da própria Astrid e de Liesel, mas de
nenhum outro membro da família. De fato, em comparação com o cômodo de
Liesel, decorado com muitos babados e objetos cor-de-rosa, Astrid tem um
mobiliário minimalista. É quase estéril. A única “arte” pendurada na parede é um
calendário, no qual os dias estão marcados em contagem regressiva para sua
partida.

Ainda estou acordada de manhã quando Xanthe entra no quarto de Astrid. Fecho
com força o seu dicionário marcado, que me manteve concentrada a noite toda, e
o coloco na cama. Estou surpresa por ter encontrado tantas palavras na página
impressa que não consigo encontrar examinando meu dicionário da base de
dados.
Acabo de encontrar uma palavra que Astrid destacou.
Insurreição [in-sur-rei-ção]: Um ato ou instância de subversão em revolta,
rebelião ou resistência contra a autoridade civil ou um governo estabelecido.
Insurreição me parece uma palavra ameaçadora e desagradável, mas, ao lado
desse verbete de dicionário, Astrid rabiscou: “Isso aí!”.
— Lá está ela — diz Xanthe, olhando para Liesel dormindo em paz ao meu
lado. — Está na hora de acordá-la para se aprontar para a escola.
— Há uma escola aqui? — pergunto curiosa. — Será que eu vou lá?
— Se eu tivesse senso de humor, acharia você engraçada — comenta Xanthe.
Imagino que isso signifique que não irei à escola aqui.
— Onde fica a escola? — indago.
— Já que não há bastante residentes o ano inteiro em Demesne para justificar
a necessidade de haver escola, as crianças que vivem aqui têm professores
particulares. Eles trabalham com alunos no Refúgio. Eles têm horas normais de
ensino, como no continente.
— Eles são clones?
— É claro! Nenhum ser humano seria confiável para educá-los por completo.
Mas não há outras crianças da mesma idade na ilha com quem ela se socialize, e
ela se sente solitária. Você será sua companheira após o horário de estudos.
Apenas há alguns meses minha Matriz deve ter sido uma estudante. Talvez
morasse em algum lugar do continente. Pergunto-me se ela era uma boa aluna.
Tão esforçada quanto Astrid, tão ansiosa para ir para a universidade?
— Você gostaria de receber educação? — pergunto à Xanthe.
Ela olha para mim como se, de repente, tivessem crescido três cabeças em
mim, ou eu tivesse anunciado meu amor real, e nada fingido, por macarrão com
queijo.
— O que eu poderia fazer com uma educação? — questiona Xanthe.
— Aprender coisas! Mudar e se tornar melhor! — Eu suponho. — Há tanta
coisa para aprender aqui e é tão… — eu ia dizer incrível, mas fui interrompida
pelo olhar desconfiado de Xanthe em mim. Eu não tenho muita instrução, mas
sei o suficiente para entender que não se deve desejar experimentar algo incrível,
devo refletir isso para os humanos, mas não sentir ou desejar de verdade para
mim. — É tão… bom ter informação — concluo.
Xanthe responde enfática:
— Eu não ambiciono coisa alguma e não preciso ser melhor do que já sou.
Não desejo, pois sou feita para servir e já tenho todas as informações
necessárias. Como você.
Ela vai até o armário de Liesel, tira algumas peças e arruma a roupa de Liesel
para o dia em uma cadeira.
Estou prestes a tocar o braço de Liesel suavemente para acordá-la. Não quero
que ela perca o privilégio de sua educação. Mas Xanthe me impede de cutucar a
garota. Ela se inclina pertinho para sussurrar:
— Você deseja? — questiona ela.
Meu coração de repente dispara, como se estivesse sendo ameaçada, quando
sei que estou apenas sendo reafirmada sobre as minhas funções.
— Eu não desejo — afirmo. — Eu sirvo.
— Correto — concorda Xanthe e cutuca Liesel, acordando-a.
POR ORDEM DO GOVERNADOR, IVAN E EU COMEÇAMOS
nosso regime de treinos às oito da manhã. Fazemos alongamentos e ginástica no
pátio, corremos um trajeto plano e finalizamos com uma série de arrancadas
vigorosas no penhasco rochoso acima, de acelerar o coração, a partir da praia da
Casa do Governador.
Estamos na metade dos degraus de pedra para a quinta subida; Ivan para e
examina a paisagem abaixo.
— Você explorou bastante Demesne antes de vir para cá? — pergunta, com a
respiração ofegante.
Novamente recordo o milagre deste novo momento. Antes de vir, fiquei
confinada a espaços fechados — as instalações da Dra. Lusardi e a butique — e
não podia inspirar este ar doce de Demesne ou fitar do alto de uma rocha uma
vista magnífica abaixo, de água violeta, praia arenosa, palmeiras e perfeição
divina. E isso é só o que eu posso ver agora. Quem sabe como o cenário vai se
tornar ainda mais espetacular quando eu explorar esta ilha com cuidado?
Não respondo a pergunta de Ivan. Há coisas demais a dizer. Quero ver tudo!
— É claro que não! Provavelmente não lhe permitiam. Sinto muito —
lamenta Ivan, sem necessidade. Ele alcança um buraco fundo no penhasco, a
uma distância de um braço dos degraus de pedra, e tira um binóculo deixado lá.
Ele o entrega para mim. — Dê uma olhada. Uma vista incrível, não é?
Olho através da lente, inspecionando o cenário, engolindo o ar com aroma de
madressilva. O azul-claro do céu é tingido por uma névoa cor de laranja e
rosada, a evidência de onde o sol encontra a atmosfera de Demesne. Cercada
pelas águas violetas de Io, vejo um panorama cheio de casas aninhadas sob um
espectro do arco-íris de árvores. Ao longe fica a serra na qual o Monte Orion, o
mais alto de todos, domina a ilha, soltando fumaça vulcânica. Abaixo da
montanha há uma floresta tão densa que parece uma selva emaranhada. Nela,
sob o topo esfumaçado da montanha, fica o complexo da Dra. Lusardi, onde fui
feita e que é invisível pelo binóculo.
Foco as lentes em um ponto na praia de areia no Refúgio, a distância.
Observo uma mulher corpulenta entrar na água, fazer uma breve imersão, então
retornar ao seu lugar. Devido ao breve mergulho, ela parece um tamanho menor
e dez anos mais jovem, como se o mar fosse um estímulo do qual emergiu seu
melhor e mais radiante eu. De volta à areia, ela se estatela no chão ao lado de seu
parceiro, que deixa de lado seu material de leitura. Ele envolve as pernas ao
redor dela. Eles se beijam lentamente, com saudade, como se fosse a primeira
vez, apesar da familiaridade física indicar serem companheiros de longa data.
Pairando no fundo, os empregados do clube levam bebidas e pratos de
comida aos banhistas próximos.
— Uma boa vista da boa vida, hein? — avalia Ivan. Sei que ele se refere ao
tipo de vida planejado para seres humanos, mas assim mesmo aceno
concordando. Para mim também, penso.

Depois de nossa décima subida e descida pelas escadas, Ivan nos faz ter outro
descanso na parte inferior da escada, perto da costa.
— Não acredito que consegue me acompanhar — comenta.
Eu poderia ir muito além. De fato, seria fácil arrasá-lo em tempo e
velocidade, mas a Mãe me instruiu que o deixasse vencer.
— Ele precisa reforçar a confiança antes do treinamento militar básico —
disse ela. — Seja uma boa menina, querida Elysia. Deixe o Ivan fazer o que
quiser.
Uma adolescente desce correndo as escadas do penhasco e se aproxima de
nós.
— Ivan! Oi! — Ela é uma ruiva sardenta petulante de uniforme de tênis. —
Me disseram que poderia encontrá-lo aqui. Quer jogar duplas comigo e com
Dementia?
— Oi, Greer — murmura Ivan. — Talvez não hoje.
— O que é isso? — questiona Greer, apontando para mim.
— Temos uma Beta — conta Ivan.
Greer me avalia, focando dentro dos meus olhos vidrados.
— Agora estão fazendo replicantes adolescentes? Acho melhor eu me cuidar!
Não quero que os piratas me capturem e me transformem em morta-viva. — Ela
acaricia uma parte do meu cabelo. — Sua Matriz tinha uma textura e tanto de
cabelo. Eu me pergunto qual o hidratante que usava. Você tem nome?
— Elysia — respondo.
— A Lusardi escolhe os nomes mais estranhos! Você joga tênis? — pergunta
Greer. Ivan responde por mim:
— Ela está aqui para brincar comigo, não com você!
— Não faça isso! — resmunga Greer, fazendo beicinho. — Estou apenas
tentando ajeitar um bom jogo. — Ela volta a subir as escadas, virando-se outra
vez para nós. — Estaremos nas quadras se vocês dois quiserem se juntar a nós.
Ou talvez nos vejamos mais tarde no clube.
Greer dispara escada acima.
— Quem é ela? — pergunto ao Ivan.
— Seu pai é o embaixador de Demesne — conta Ivan, revirando os olhos. —
Ela vive na propriedade vizinha à nossa. Basicamente, ele representa os
interesses dos militares em Demesne. Tenho certeza que ser nomeado
embaixador é apenas um prêmio para militares ricos ou influentes, sem
habilidades táticas reais. Os militares os mandam para cá para serem felizes, mas
inúteis.
— Então, o pai de Greer é feliz e inútil. Ela também?
Ivan dá de ombros.
— Ela é legal, acho.
— Você não gosta dela? Ela é muito bonita.
— Gosto dela sim. Mas ela está sempre por perto. É meio que… vadia. Não
há nada, tipo, interessante ou misterioso nela.
Falando em misterioso:
— O que é uma dementia? — pergunto ainda.
— Dementia é a melhor amiga de Greer. Seu nome real é Demetra.
— Então por que chamá-la assim?
— Verifique a palavra. Então o nome fará sentido assim que conhecê-la.
Dementia [de-mên-tia], em latim: Deterioração mental de origem orgânica
ou funcional.
Não consigo imaginar como essa palavra pode ser personificada em uma
garota de verdade e mal posso esperar para descobrir.
Ivan bate em meu ombro para retomarmos outra corrida. Corro ao longo da
praia, até onde consigo. Ivan corre e corre, mas não consegue me pegar.
Do sinal de satisfação que meu chip me envia eu entendo: seres humanos
gostam de ganhar.
Parece que eu também.
Circulamos de volta para os degraus para subi-los correndo. Ivan chega ao
topo das escadas cerca de um minuto atrás de mim, sem fôlego.
— Você rouba — reclama ele. — Bebeu uma vitamina de morango antes da
última volta.
É fato, tomei uma vitamina deixada para mim no topo da escada antes da
última corrida, mas Ivan também se fortaleceu com uma bebida de germe de
trigo feita para ele.
— Você está certo — concordo com Ivan. — Eu tive uma ajudazinha.
O suor escorre por seu rosto enquanto o meu continua limpo e suave. Eu
poderia subir mais mil degraus. Ivan dobra o tronco para baixo sobre as pernas,
exausto.
— Amanhã vamos fazer um tempo ainda melhor, certo? — pergunto-lhe.
— Você está me matando — geme ele.
— O que é uma vadia? — tento saber.
— Uma menina muito oferecida.
— Oferece o quê? — Imagino Greer colocando o jantar, por exemplo, e não
entendo o que Ivan desaprova nisso.
— Oferece, você sabe… — Seu rosto, já supervermelho devido à corrida, fica
um escarlate mais escuro. — Sexo.
Eu me pergunto onde Greer oferece sexo.

Não é de admirar que a palavra insurreição não esteja em meu banco de dados.
Contra o que se poderia revoltar em Demesne? A vida aqui parece, como Ivan
define, “ultrassublime”.
Ivan e eu tomamos sol no deque da piscina flutuante no Refúgio. Construída
no meio da Baía Néctar, que ladeia o clube, a piscina é feita de vidro para que os
nadadores possam ver os peixes tropicais coloridos listados e manchados se
juntando fora dela sem machucar os pés por ter de pisar no coral do fundo raso
nem mexer com o ecossistema marinho da baía. O sol brilha forte na glória do
meio-dia, transformando a água violeta ao redor da piscina em rosa fulgurante.
Ivan e eu relaxamos em flutuadores boiando levemente na água e minha pele se
bronzeia. A distância vejo pessoas tomando sol na praia. Elas são tão ociosas e
felizes, quase entrando em um coma. Elas não conseguiriam dar conta de
protestos mesmo que tentassem.
— Hora da sesta — diz Ivan no flutuador ao lado. Ele coloca uma toalha
sobre os olhos para bloquear o sol. — Você quase me matou hoje, Elysia.
Nosso descanso flutuante é perturbado pela chegada da menina humana
mentalmente deteriorada.
Dementia se junta a nós na piscina flutuante do Refúgio feito uma bala de
canhão. Nós a ouvimos gritando de emoção enquanto corria cais abaixo para a
piscina. Ela usa um desses conjuntos de cordas, chamado biquíni. Também estou
de conjunto de duas peças, mas um de encaixe mais seguro, com sutiã e calcinha
azul-marinho que encontrei na pilha de roupas descartadas da Astrid. Assim que
Dementia chega à borda da piscina, ela pula no ar, dobrando os joelhos e os
apertando contra o tórax. — Bala de canhão! — Grita antes de se jogar na água,
criando ondas tão fortes que quase nos derrubam das boias.
Ela volta à tona e agarra o flutuador de Ivan.
— Oi, criatura sexy — Dementia diz a ele. — Ouvi falar que sua mãe tem
uma Beta.
Ivan me aponta.
— É essa aí. Ela se chama Elysia.
Dementia mergulha de novo, nada por baixo da boia de Ivan e chega ao lado
da minha. Sua aparência é tão bonita quanto o som de seu nome, com pele
morena escura, cabelo preto e olhos verde-oliva para combinar com seu tom de
pele. Ela coloca as mãos na minha boia e me examina. — Tão brilhante. Tão
bonita. Ivan, sua mãe tem muito bom gosto. — Ela coloca uma mão em meu
braço, passando as unhas em linha reta por ele. O gesto é algo entre cócegas e
um arranhão.
— Dementia — Ivan espirra água do flutuador. — Não a corte. Quantas
vezes temos que te lembrar? Cortar é algo que você faz em si mesma. Não é para
infligir em outras pessoas.
A mão de Dementia se agarra novamente no flutuador em vez do meu braço e
seu olhar se volta para baixo, contrito. — Desculpe! — Com os olhos verde-
oliva desviados de mim, observo na têmpora do lado direito do seu rosto uma
lesão profunda. Parece que ela usou alguma lâmina afiada, talvez uma navalha,
para tentar esculpir sua própria flor-de-lis, mas desistiu no meio. Talvez não
tivesse a anestesia adequada. Seus olhos voltam para mim, com uma expressão
ansiosa no rosto. — Então, Elysia… você pode, digamos, fazer coisas?
— Que tipo de coisas? — pergunto.
Ivan responde por mim.
— Ela é craque em natação. Mostre a ela, Elysia.
Eu escorrego da boia e coloco os pés no fundo da piscina. Então pulo para a
frente com meus braços estendidos, mergulho e me lanço em estilo borboleta.
Nado e cruzo a piscina tão rapidamente quanto meus braços e pernas permitem,
perguntando-me se a aparição subaquática viril deslumbrante, com a qual me
deparei na piscina na Casa do Governador, decidirá se apresentar de novo para
mim enquanto estou submersa.
Ela não aparece. Não sei se fico desapontada ou aliviada.
Quando tiro a cabeça para respirar ao lado de Demetra, seu queixo está
ligeiramente caído.
— Nunca vi braçadas tão rápidas e perfeitas — avalia ela. — Você parece
uma máquina.
Ivan diz:
— Acho que devemos levá-la para a Praia Oculta e ver que tipo de
mergulhos ela consegue dar nas rochas de lá. Esta piscina é rasa demais.
— Além disso, há tantas pessoas mais velhas por aqui — comenta Dementia,
com aversão. De fato, agora só nós três estamos na piscina flutuante, mas na
praia há vários adoradores do sol que estão no final dos trinta e início dos
quarenta anos, meia-idade humana, que não precisam da data de validade
obrigatória dada aos clones com o mesmo tempo. Eles têm nos observado, como
se esperando por nossa saída.
— Nem um pouco raxia[1] empolgante — acrescenta Dementia.
Examino meu banco de dados, mas não consigo encontrar pistas do que
significa essa palavra usada por Dementia. Mas, aceno com a cabeça
concordando com ela, para parecer que sou parte de seu grupo, que é a minha
tarefa.
Ivan bate no braço para Transmitir. Ele passa uma mensagem, então volta o
olhar para mim e Dementia. — Farzad está na Oculta.
— Pergunte a ele como está a água — pede Dementia.
Ivan Transmite.
— Ele diz que está raxia total.
— Vamos lá! — decide Dementia. Balança freneticamente a cabeça para que
o cabelo comprido bata e molhe os ombros. Para as pessoas na praia, ela grita
em voz alta: — Agora, podem ter a piscina de volta, seus velhotes!
PEGAMOS UM PEQUENO BARCO DE PESCA DO REFÚGIO
para irmos até um ponto na praia um pouco mais distante, acima na ilha. Ivan
aporta a embarcação na praia e me leva com Dementia para um conjunto
próximo de rochas. Escalamos as formações precárias. Assim que chegamos ao
topo das pedras, nos empoleiramos acima de uma angra de água violeta que
arremessa espuma dourada sobre a areia cristalina rosa. As rochas que cercam a
enseada não permitem que se chegue à baía por qualquer outro meio que não
seja a pé. Esta é a Praia Oculta.
Pulamos das rochas em direção a Farzad, amigo de Ivan e Dementia, que está
na areia esfregando a prancha de surfe. Ele tira o olhar da prancha para me
vislumbrar pela primeira vez. Farzad fala a mesma língua natal que Ivan.
— Uau! — diz a Ivan. — Que Beta!
— Admire, mas não toque — avisa Ivan.
Dementia ri.
— Se quebrá-la, terá que pagar.
Ivan e Dementia sentam-se na areia diante de Farzad, então eu me sento
também. A areia quente propicia um calor suave e massageador em minhas
nádegas.
Como Ivan, Farzad veste apenas bermudas de surfe. Ele é esguio, com
músculos tensos, diferente de Ivan que é volumoso. Tem pele escura bronzeada
combinando com os olhos e cabelos pretos até os ombros, preso num rabo.
— Antes levei um jet ski até a quebrada. Encontrei uns caras das Cavernas do
Delírio surfando as gigantes por lá — diz Farzad.
— O que são as gigantes? — interesso-me. Minha base de dados não mostra
uma explicação para esse uso da palavra que se pronuncia gi-GAN-tes.
— Ondas gigantes — explica Ivan, apontando para o oceano a distância,
onde posso ver as cristas brancas das ondas de altura monstruosa se formando, a
1,5 km no mínimo de onde estamos sentados.
— Elas devem ser muito perigosas para surfar — admito. Não apenas são
enormes, mas ainda cinza-azuladas, por estarem fora da periferia do anel de Io
— as cristas violetas demarcam a linha entre o mar de Io e o oceano. O anel foi
projetado para afastar a subida das águas que destruiu outros lugares na costa
pelo mundo afora. As ondas puras do outro lado do anel de Io pareciam querer
devorar qualquer ser humano que tentasse surfar nelas.
— O perigo é um estado de espírito — afirma Farzad. — Conquiste-o e você
chegará ao paraíso.
— A água perfeita dentro do anel não basta para você? — ironiza Ivan.
— Pedi para o controlador de ondas ligar no máximo — conta Farzad,
referindo-se ao controle de ondas nas praias designadas para surfe, dentro do
anel onde os surfistas podem pedir para o pessoal de Demesne manipular para
atender seus desejos de emoção. Dentro do anel, a água é ajustada para
maximizar a diversão, mas garantir a segurança. Aparentemente, a segurança
aborrece Farzad.
— Sugeri o tamanho gigante, mas o controlador disse que não era permitido.
É de dar sono, este lado. Só conseguiria mais emoção se fosse buscar
diretamente na fonte. Preciso entender o que há lá fora, nas gigantes. Por causa
de Tahir.
Ivan e Dementia acenam com a cabeça, por entenderem.
— Você marcou com alguns dos caras das Cavernas do Delírio, enquanto
estava lá, na parte selvagem? — Dementia quer saber.
As mãos de Farzad vão para baixo da linha de cintura, abaixo da bonita
barriga tanquinho. Ele puxa um saco plástico hermético com várias pílulas
brancas.
— Marquei — confirma Farzad.
— O que são as Cavernas do Delírio? — pergunto.
Dementia sorri para mim.
— É uma graça como os clones novos não conhecem nada.
É verdade, não sei mesmo. Mas estou ansiosa para aprender.
Ivan aponta para algumas ilhas pequenas, a distância, além das gigantes.
— Aquelas ilhas lá adiante. Fazem parte de Demesne, mas nem tanto. Nossa
ilha era a única realmente habitável que pôde ser desenvolvida.
— Então ninguém vive lá? — pergunto. De acordo com o meu chip de
localização, as ilhas distantes são meros pontos no mapa, sem nome e nada de
notável.
Ivan me explica:
— Supõe-se que haja gente vivendo lá. Mas é totalmente ilegal e contra as
regras. O solo é muito duro, indomável. Jovens fugitivos do continente vagam na
ilha à esquerda. Eles a chamam de Cavernas do Delírio. Acredita-se que seja um
local de festas totalmente doidas.
— Você já esteve lá?
— Não, meu pai me mataria se tentasse.
— Não há Transmissão disponível nas Cavernas do Delírio, nem mesmo
banheiros ou chuveiros adequados — continua Farzad. — É completamente
selvagem. É maravilhoso surfar as gigantes por perto, mas com certeza não há
gente civilizada nessas ilhas próximas.
— Se é tão selvagem — continuo —, quem vai lá?
Ivan responde:
— As pessoas do continente se esgueiram para aquelas ilhas de barco.
Acreditam que, chegando nelas, conseguiriam entrar em Demesne.
— Como?
— Nadando de lá para cá — esclarece Ivan. — O que é virtualmente
impossível. Ou talvez pagando por um barco pirata para tentar trazê-las de jet ski
a um lugar como este, a Praia Oculta.
— E dá certo? As pessoas chegam aqui dessa forma?
— Não! — Dementia se intromete. — A maioria morre tentando. Então eles
se tornam clones. Que sorte!

Hoje aprendi muitas coisas: o que significa insurreição, que o sexo pode ser
oferecido e que o arquipélago de Demesne inclui coisas como as gigantes e as
Cavernas do Delírio. Entendi ainda que marcar não se aplica apenas a valores
numéricos usados num jogo para determinar o vencedor. Marcar também
significa obter drogas ilegais — nesse caso, a tal da raxia. Agora Farzad, Ivan e
Dementia estão usando essa droga. Deitados na areia, enrolados um no outro, os
olhos fechados, eles têm sorrisos satisfeitos nos rostos. Dementia está de topless
na areia, mas, como Ivan e Farzad, não despiu a peça de baixo.
— Isso é um exagero na minha opinião — diz Greer. Também aprendi hoje
que não existe tema algum sobre o qual Greer não tenha opinião, incluindo o
fato de que Farzad, Ivan e Dementia deveriam ter-lhe contado que iam usar raxia
antes de convidá-la para vir e perder tempo. — Quero dizer, a própria atmosfera
de Demesne, o ar doce, a água tranquilizante, as casas luxuosas, tudo foi
projetado para criar o estado de ataraxia. Para que forjar mais? É ganância.
Ataraxia, descobri também, é um antigo conceito grego, sinônimo de pura
felicidade. Os fundadores de Demesne planejaram a ilha usando o termo como
sua premissa central. A juventude da região se inspirou nessa palavra e a aplicou
para sua versão de pura felicidade, a droga que chamam de raxia.
Greer e eu sentamos na ribanceira acima da Praia Oculta, de frente para Io,
vendo os três jovens ataráxicos na areia abaixo.
— Não entendo por que aqueles caras precisam induzir quimicamente mais
disto — observa Greer. — Simplesmente têm medo de experimentar algo real.
Viveram aqui praticamente suas vidas inteiras. Não têm ideia do que é a
realidade.
— Ivan diz que usar raxia é melhor que fazer sexo. Até melhor — conto para
Greer, no caso de ela não saber.
— Já tentei os dois — afirma Greer. — Sexo de verdade é melhor.
— Onde você fez sexo? — quero saber.
— Essa pergunta é atrevida.
— É?
— Acho que você não tem ideia. — Greer balança as pernas que pendem na
falésia. — Fiz aqui e lá na cidade de onde sou.
— Sexo é bom?
— Vou te contar: é super-super — ri Greer.
Examino rapidamente o dicionário interno, mas só consigo mesmo
determinar que ela duplicou a palavra super, sem lhe dar qualquer relevância
significativa.
— Você super-super com frequência? — continuo.
Ela me olha com a expressão facial humana que identifico significar: Você
deve ser idiota. Greer responde:
— Eu super-super quando é possível, com um tipo de pessoa com mente
semelhante, corpo gostoso, com quem compartilho atração mútua. Mas só tenho
dezoito anos. Não é como se eu tivesse super-super com tanta gente assim.
— Com quem você super-super?
Seu tom de voz ficou agitado.
— Pare de falar assim! Foi apenas um jogo de palavras.
Jogo de palavras. Imagino crianças balançando sobre blocos, soletrando
palavras tipo ENGRAÇADO e TERRA ENCANTADA.
— Desculpe. Vou refazer a pergunta. Você fez sexo com Ivan ou Farzad ou
Dementia?
Sua pele fica escarlate.
— Talvez — balbucia. Ela gesticula para os corpos sonolentos na praia. —
Mas, como pode ver, eles preferem raxia. E talvez você esteja ficando íntima
demais. Então, caso tenha mais perguntas, sugiro que mude o tema também.
Posso fazer isso.
— Você não viveu sempre em Demesne? — pergunto.
— Não. Mudamos para cá há alguns anos apenas, quando meu pai aceitou o
cargo de embaixador. A maioria das pessoas em Demesne não vive aqui o tempo
inteiro. Se fosse assim, não pareceria tão especial. Farzad, Ivan e Dementia são
os únicos jovens na ilha que vivem aqui o ano inteiro, agora que Astrid partiu. E
agora você, acho. Não tenho certeza se você conta.
— Você prefere viver aqui ou na cidade? — continuo a perguntar.
— Depende a qual tipo de cidade que você se refere, antiga ou nova?
— Qual é a diferença?
— Bem, as cidades antigas são tão inundáveis. Tipo, é legal como a água
sobe naqueles lugares, é feito para parques e edifícios elevados muito legais,
para festas maravilhosas de dança de espirrar água, de fim de mundo. Mas
prefiro as cidades novas. Antes da minha família se mudar para cá, vivemos na
Cidade de Bioma. Agora, os desertos também estão empanturrados de pessoas
legais.
— Então os desertos se empanturram de gente?
— Não! Deixe de ser tão literal. Quero dizer que as pessoas estão se
mudando para o interior. Lugares que costumavam ser nada, são alguma coisa
agora. Pense nisso. A família de Farzad possui as maiores instalações em
Demesne. Sabe por quê? Porque o tio dele inventou o mecanismo que controla a
água que permite que as novas cidades do deserto sejam construídas em lugares
previamente habitados, como CB.
— CB?
— É como chamamos a Cidade de Bioma.
Procuro mais dados sobre CB em meu banco de dados. A interface revela que
é uma cidade nova, construída após as Guerras da Água, projetada usando os
princípios do mimetismo, no qual os elementos primários da cidade se inspiram
na natureza. Os gráficos mostram edifícios de escritórios que parecem árvores e
formações rochosas em vez de monstros de concreto, carros que pairam
cruzando os céus em padrões de tráfego como pássaros migrantes e residências
autossustentáveis construídas com formas que lembram formigueiros e
cupinzeiros. Já que CB foi construída após o tempo dos combustíveis fósseis que
poluíam os lugares antigos, a vista da cidade se estende, desobstruída de
poluição atmosférica, até as maciças dunas de areia, erguendo-se como
montanhas a distância, e o céu noturno brilha com milhares de estrelas.
— CB é o meu lugar favorito — conta Greer. — Quando se vai lá, é como se
não nos sentíssemos deprimidos ou desesperados. Quando você está lá, entende
que as Guerras da Água não foram totalmente inúteis, no final das contas. Por
causa delas, no lugar que costumava existir um deserto, há uma festa épica.
— Tudo bem, mas o deserto não precisa de um pouco de água?
— O deserto, com certeza sim, mas as pessoas de lá, não.
— A água não muda o meio ambiente?
— Isso é problema do deserto, não das pessoas. O deserto se adapta. As
pessoas se adaptam. Vivem. Morrem. Lutam. Sofrem. Criam. As pessoas no
mundo real além do anel de Demesne não são essa perfeição produzida. Elas
negociam. — Ela gesticula com sua mão para indicar a atmosfera de Demesne
enquanto seus olhos focam em mim, para me deixar perceber que estou incluída
em sua frase perfeição produzida.

Após uma hora, cansei Greer com meu questionamento. Abaixo de nós, Farzad,
Ivan e Dementia pareceram se mover. Seus dedos dos pés e das mãos se mexem
conforme seus corpos se alongam.
— Finalmente — disse Greer. — Que desperdício de dia. — Seu rosto
demonstra que uma ideia surgiu. — Ei, passei esse tempo todo te dando
informações, agora você pode fazer algo por mim.
— O quê?
— Apenas… algo legal. Ivan disse que é uma boa mergulhadora. Então...
mergulhe — Ela aponta para trás de meu ombro, para o oceano além da angra,
onde a água é funda o suficiente para um bom mergulho. Provavelmente. Meu
mapa não especifica.
Andamos até onde as falésias se elevam sobre o oceano. Não tenho certeza se
posso mergulhar deste ponto de vantagem, mas já que me pediram, devo tentar.
Clones não produzem adrenalina, então não tenho medo de altura ou da
dificuldade envolvida. Entendo que a morte seja uma probabilidade decente.
Sinto ainda que tentar o mergulho poderia ser um primeiro passo para entender
quem foi minha Matriz. Se puder fazer isso, ela pode ter sido capaz de fazê-lo
também. Se ela podia, então havia uma razão. Ela era uma atleta, uma ginasta ou
uma acrobata. Ou então, apenas…
— Atrevida — me diz Greer. — Pule!
A rocha embaixo de meus pés é lisa o suficiente para servir de plataforma,
embora não seja como um trampolim. Estou ereta com os dedos dos pés
balançando sobre a borda, olhando o redemoinho de água que calculo estar a
cerca de 7,5 metros abaixo.
— Posso fazer melhor que pular apenas — digo a Greer.
Não tenho certeza se posso.
Ergo-me sobre os dedos e estendo os braços para cima. Não sei a
profundidade da água, ou se há rochas abaixo da superfície da água para obstruir
o impacto. Mergulho pode significar morte. Ou mergulhar pode significar poder.
Conhecimento.
Eu salto.
Meus braços permanecem erguidos quando minhas pernas se lançam à frente,
para fora e para cima. Meus braços se abaixam para tocar meus pés estendidos
— posição carpada —, então meu tronco cai para trás e estico meus pés para
cima. O corpo se estende em vertical, de cabeça para baixo, precipitando-se para
dentro d’água. Todos os meus músculos parecem saber exatamente como se
alinhar. Meus dedos se destacam em paralelo na água que os sorve antes de
envolver meu corpo inteiro.
Abaixo d’água há escuridão e confusão e é como se cada fibra de meu ser
experimentasse o formigamento físico de euforia. Porque lá está ele de novo. Z!
Ele acena para mim. Ele nada ao meu redor, seu cabelo loiro subindo na água
enquanto os olhos azul-turquesa me atraem mais e mais. Seus braços abertos
para que eu me atire neles. Você sabe que eu não resisto a você, Z. Venha aqui!
Tento e tento me pressionar contra ele, mas ele permanece fora de alcance. Sinto
que vou morrer se não puder tocá-lo. A atração é irresistível, quase sufocante, e
inteiramente… incrível. Calculo que seja isso o que Greer quis dizer com super-
super.
Mas seu rosto e corpo desaparecem quando mergulho mais fundo no vórtice
subaquático. Meu corpo ondula contra a corrente, finalmente permitindo que eu
assuma o controle e salte para o ar. Acima de mim nos penhascos, Greer agita
freneticamente os braços. Ela abre os braços em posição de vitória.
— Mergulho inverso sem falhas — ela grita para mim. — Inacreditável!
Entrada perfeita!
Sei que ela elogia o fato de meu mergulho reverso ter espirrado pouca água,
uma entrada ideal, e que se refere ao som de corte quando o mergulhador entra
na água. Sei ainda que o que experimentei agora — novamente, só que mais
intensamente desta vez — é algo que nenhum Beta — ou qualquer clone —
deveria sentir.
Eu não só sinto gosto das comidas, como também tenho algo muito, mas
muito mais proibido.
Eu tenho memória.
Aquele homem bonito que vi na água pertencia à vida da minha Matriz. Ela
sentiu alegria quando experimentou a água com ele, quando nadou com ele,
esses foram os momentos mais felizes de sua vida. Ela o amava de maneira
profunda e apaixonada, talvez até de forma um pouco obsessiva. Não sei como
ou por que sei disso. Mas sei que é verdade. Sinto que é verdade.

— Vocês deveriam ter visto — conta Greer para os agora despertos Farzad, Ivan
e Dementia. — A Matriz dela com certeza foi uma mergulhadora treinada.
Os outros ainda estão voltando da raxia; ficam indiferentes ao entusiasmo de
Greer.
— Ajude-me a vestir isso de volta — Dementia me pede, sonolenta. Ela
segura as alças da parte superior do biquíni acima do pescoço, para que eu possa
amarrá-las. Minha cabeça está tonta do mergulho seguido das braçadas nas águas
agitadas de volta para a enseada da Praia Oculta e do flash de memória que
parece um raio que penetrou no meu crânio. Meus dedos doloridos dão um nó
nas alças do sutiã. Agora com a peça bem presa no corpo, Dementia segura os
seios com as mãos e diz para ninguém em particular:
— Olha, mamãe, sem marcas de biquíni!
Penso se poderia pedir à Mãe um maiô de uma peça, adequado para praticar
mais mergulhos. O sutiã esportivo do conjunto de Astrid mal se aguentou
durante minhas braçadas no mar revolto.
— Você está me ouvindo, Dementia? — Greer está irritada. — Vocês têm que
ver o que esta Beta consegue fazer.
— Tivemos um Beta uma vez — resmunga Farzad, com os olhos turvos. —
A Dra. Lusardi chamou o Beta de paisagista, mas era só um nome sofisticado
para jardineiro. O carinha enlouqueceu totalmente e começou a podar árvores
com formas obscenas de partes íntimas.
— Parece um Beta incrível — comenta Dementia.
— Pornográfico! — corrige Farzad. — Isso é o que o Beta era. Nos ensinou a
não comprar o produto antes de ser testado. Tahir disse que, quando ele pilotou o
avião sobre a nossa propriedade, parecia um jardim de obscenidades. Farzad se
acalma em um profundo despertar, seu rosto se ilumina. — Ei! Esqueci de contar
a todos vocês. Tahir volta na próxima semana.
— Quem é Tahir? — pergunto.
— O primo de Farzad — responde Ivan.
— O pai de Tahir, tio de Farzad, é praticamente o homem mais rico do
mundo — explica Dementia.
— Ele não só consegue transformar água em vinho, ele transforma água
em… — brincou Ivan — muito mais água.
— O Tahir melhorou? — preocupa-se Greer.
— Não sei — confessa Farzad. — Ele Transmite para mim que sim, mas
preciso ver para crer. Ele está tão diferente desde o acidente. Totalmente
estranho. Acho que a lesão foi pior do que os médicos disseram.
— Como foi o acidente? — pergunto.
Os humanos todos apontam para as gigantes a distância.
— Aconteceu enquanto ele surfava — conta Greer. — Tahir foi apanhado em
um swell[2] e puxado para baixo. Sofreu traumas sérios na cabeça e no pescoço.
Ele só sobreviveu porque o helicóptero-planador do pai o tinha deixado por lá e
ainda sobrevoava o local.
Com o sol se pondo no horizonte, o ar se tornou mais frio. Farzad me vê
tremendo e me envolve com uma toalha. Ele massageia meus ombros,
aquecendo-me.
Ivan retira as mãos de Farzad de mim.
— Mano, ela é minha Beta. E você sabe as regras em Demesne — avisa o
filho do Governador a Farzad. — Olhe, mas não toque.
MESMO COM UM SUFLÊ DE CHOCOLATE PERFEITO À sua
frente — a sobremesa favorita da Mãe, que o Governador encomendou ao chef
especialmente para agradá-la —, ela ainda está com beicinho depois do jantar. O
deque do terraço onde a família janta tem vista para Io, que esta noite oferece
uma cena de golfinhos pulando nas águas cor de violeta. Aves tropicais cantam
nas árvores que cercam o deque, enquanto o papagaio residente da família —
que parece fogos de artifício com a plumagem vermelha, amarela e azul
contrastante — sibila de sua gaiola grande, com uma árvore e ninho próprios:
— Chocolate para a Mãe! Chocolate para a Mãe!
Nada dessa exibição impressiona a Mãe.
— Você ficou com ela o dia todo — resmunga para Ivan.
— Já chega! — interrompe o Governador. — O que você teria feito com a
Elysia: a levaria para o Refúgio e a faria roubar no mah-jong com você?
— Eu não trapaceio! — rebate a Mãe.
Ivan e Liesel olham para baixo, tentando não rir.
Posso ver em seus rostos: com certeza, ela trapaceia!
— Trapaceira! — repete o papagaio. A Mãe estala os dedos, sinalizando para
os guarda-costas virem de fora. Ela olha para a gaiola e eles sabem exatamente o
que fazer. São necessários dois homens grandes para tirar a enorme gaiola do
deque, para longe da vista e dos ouvidos da mesa de jantar.
A Mãe volta a sua atenção para Ivan.
— Você não pode manter a Elysia só para si, Ivan — reclama ela. — Ela está
aqui para me fazer companhia também. Seu pai está no serviço o dia todo e
Liesel tem aulas. Eu tenho que fazer tudo aqui sozinha.
Um clone que serve a mesa torna a encher sua taça de vinho.
— Você só está entediada — diz Ivan à Mãe.
— Como foi seu treino da manhã? — o Governador pergunta a Ivan,
ignorando-a.
— De matar — conta Ivan. — Elysia me fez entrar num ritmo acelerado.
Ele deixa de contar aos pais que “turbinou” a recuperação do treino matinal
com uma escapada química de raxia, à tarde, com Farzad e Dementia. Antes de
voltarmos para casa, Ivan ordenou que eu mantivesse essa informação “embaixo
do tapete”. Quando olhei para baixo, procurando pela raxia, Ivan explicou que
queria dizer que não deveria contar a seus pais sobre a curtição com a droga.
— Excelente — alegra-se o Governador. — E como foi o surfe com Farzad à
tarde?
— Incrível — mente Ivan. — Pegamos onda máxima.
— Bom — aprova o Governador. — Esse tipo de esporte o fortalece. Você
precisa perder a barriga antes do treinamento básico, ou será muito mais difícil.
Acabei de ver o relatório estatístico que pedi das aulas de início na Base. Lá, a
competição será acirrada, os caras mais fortes e durões do mundo todo. Com
certeza você só entrou por tradição de família.
Quando Ivan ergue o garfo com uma porção do suflê de chocolate, seu pai
acrescenta:
— Talvez fosse melhor esquecer o chocolate?
Ivan sorri forçado para seu pai.
— Que tal eu desistir do chocolate amanhã? Hoje me sinto tão… — ele me
olha e suspira — ótimo.
— Eu disse que uma garota nova faria bem para a família — avalia a Mãe
para o marido.
Tenho certeza de que uma pitada de raxia também ajudou a melhorar o
humor do filho.
— Ivan precisará de toda ajuda possível antes de ir para a Base — avisa o
Governador, parecendo acenar a cabeça em minha direção antes de olhar para o
filho para oferecer sabedoria paternal. — Você não sabe, porque sempre viveu
aqui, mas o mundo lá fora é difícil. A Base é terrivelmente competitiva.
— Tenho certeza de que Ivan se dará mais que bem por lá — diz a Mãe.
— Ele é de Demesne — observa Liesel. — É claro que será o primeiro de
sua classe na Base. Ele merece.
O irmão dela não mereceu ainda, mas, de alguma forma, Liesel não fez essa
distinção.
— Você já pensou para qual tarefa gostaria de ser nomeado após o
treinamento básico? — a Mãe quer saber.
— Acho que gostaria de voltar para cá depois do treinamento e iniciar algo
tipo uma missão de polícia militar.
— Nós não precisamos de polícia em Demesne! — assegura a Mãe,
horrorizada. — Mas você tem esse tipo de força bruta. Talvez fosse bom se
pudesse usar isso para um propósito mais suave. Quem sabe se tornar uma
espécie de construtor. Um arquiteto de instalações militares?
— Ou talvez eu pudesse ser um designer de moda camuflada — continua
Ivan. — Ou um astrólogo estratégico de campanhas.
— Você pode ir para a Base para aprender astrologia? — pergunto, surpresa.
De acordo com minha interface, a Base é o lugar onde jovens recrutas vão para
aprimorar sua resistência física, aprender história militar e ganhar habilidades
com armamento. Ela não me mostra nenhuma correlação entre astrologia e
militares.
— Ivan está usando sarcasmo — Liesel me informa. — Ele aprendeu com
Astrid.
Confronto a palavra com meus dados.
Sarcasmo [sar-CAS-mo]: Expressar zombaria que fere.
Pulo da cadeira e corro para o lado da Mãe, abraçando a parte superior de seu
corpo.
— Não se fira, Mãe — digo a ela.
A família morre de rir. A Mãe me beija na bochecha e depois gesticula para
que eu volte a sentar. Estou muito confusa.
— Obrigada, querida Elysia, mas não me feri com o sarcasmo — acalma a
Mãe, sorrindo. — Mas com certeza, sou grata que pelo menos um dos meus
filhos procura me proteger, em vez de apenas zombar de mim. — Seu humor
mudou: desanuviou. Eu fiz isso. — Vamos aproveitar esta sobremesa
maravilhosa, não é? — ela incentiva o grupo.
— Nham, nham, nham — concorda Liesel esburacando o doce.
Posso sentir o cheiro do chocolate. O aroma não deveria me dar sentimento
algum além de ambivalência, mas, em vez disso, minha boca se enche de saliva
e minhas narinas são diretamente agredidas pelo ar de sedução. É como se o
chocolate cantasse para mim… E-LY-sia… você sabe que você me quer, Beta.
Sou muito mais delicioso do que possa imaginar.
Quero tanto prová-lo. Cheira tão bem. Engulo a saliva acumulada em minha
boca inexplicavelmente atormentada.
— O chocolate compele a ataraxia? — pergunto à família.
— Querida — diz a Mãe, que corta um pedaço do suflê e o coloca em meu
prato —, é a antítese do pfff.
— O que é o pfff? — pergunto.
— Indiferença — responde, encolhendo os ombros. — Chocolate é o oposto.
É a própria essência da felicidade. Experimente um pouco.
— Ela não consegue apreciá-lo — avalia o Governador. — É desperdício lhe
dar.
— Não acho que exista melhor ataraxia que o chocolate — declara Liesel.
Ivan bufa.
— Mulheres e chocolate — ironiza o Governador, preferindo um gole de
vinho ao suflê. — Jamais entenderei isso.
— Isso é porque você não entende nada de mulheres — responde a Mãe.
— Chega, fique quieta — retruca o Governador.
É difícil ouvir as farpas dos Bratton e não se perguntar se a noção de ataraxia
dos seres humanos de ser a verdadeira felicidade é realmente apenas uma
perfeição percebida, sujeita a seus próprios solavancos e decepções.
Meu garfo risca o suflê para pegar uma pequena porção. Coloco o suflê de
chocolate na língua, que é alertada de imediato para algo com sabor tão raro que
suspiro com o choque sensacional. Chocolate quente e grudento, parecido com
bolo, penetra todos os lados da minha boca, espalhando doçura e satisfação. Não
é que quisesse mais evidências de que, além de ser uma Beta com as memórias
de sua Matriz, há algo mais estranho em mim. Mas, certamente, este chocolate
proporciona isso; acho que o adoro ainda mais que a estupenda mistura chamada
macarrão com queijo. Quero reunir todos os suflês de chocolate da mesa de
jantar e devorá-los.
Eu me forço a parar após a segunda mordida e enxáguo o sabor com a
vitamina de morango. Eu deveria apagar esta memória ou ficarei ávida por mais.
— Que tal o suflê de chocolate? — Liesel quer saber.
Eu dou de ombros.
— Acho que entendo que os humanos o achem satisfatório, apesar de sua
falta de utilidade nutricional. Não é uma vitamina de morango.
A família ri de novo, como se eu não fosse apenas a filha substituta, mas
ainda a sua comediante pessoal. Não entendo por que sou tão engraçada. O suflê
de chocolate não é realmente uma vitamina de morango. São dois itens
alimentares completamente separados e não relacionados.
Não vou confessar isso para a família, mas acredito totalmente. O chocolate
pode de fato produzir ataraxia.
Tawny, a assistente de luxo do Governador, gravada com uma calêndula
vermelha e amarela no lado esquerdo do rosto, sai para o deque. Sua estética me
lembra o mito humano chamado “sereia”. Exibe um vestido curto branco
recortado sobre a pele bronzeada e tem cabelo longo, loiro-prateado, com pontas
verde-azuladas caindo até a cintura, esculpindo o corpo de proporções perfeitas.
— O novo assistente do embaixador chegou — diz Tawny ao Governador. —
Veio direto para cá para cumprimentá-lo em vez de ir para o Refúgio, como o
instruí sobre seu itinerário. Pedi-lhe para esperar em seu estúdio. Devo remarcar
sua massagem para mais tarde esta noite?
O Governador suspira, joga o guardanapo na mesa, toma um último gole de
vinho e se levanta. — Sim! Obrigado, Tawny.
— É este o novo assistente que vai preparar o relatório para a Comissão de
Direitos dos Replicantes? — indaga a Mãe.
— De fato — diz o Governador. — Jovem oficial, recém-saído da academia.
Grande potencial, esse garoto. Ao menos, é o que o Conselho de Administração
diz. O exército provavelmente lhe deu este trabalho absurdo para amadurecê-lo
antes de lhe dar uma missão de verdade.
— Devo convidá-lo para o chá? Talvez ele queira participar do comitê de
planejamento do Baile Anual do Governador — especula a Mãe.
Tanto o Governador quanto Ivan riem.
— Hum, duvido que alguém que treinou para comandar, depois foi enviado
para cá em sua primeira missão, queira realmente planejar uma festa com a qual
apenas socialites em Demesne se preocupam, mãe — assegura Ivan. Seu rosto
registra horror solidário pelo pobre assistente do embaixador, que poderia ter
sido enviado para a batalha, mas em vez disso foi enviado para o paraíso.
— Estarei no seu comitê, mãe — afirma Liesel. — Não vou zombar de você.
— Obrigada, querida — responde a Mãe. Ela olha para Ivan.
— Ivan, não zombe de sua mãe sobre o evento social mais importante do ano
— avisa o Governador, saindo da mesa de jantar. Seguindo Tawny de volta para
dentro da casa pelas portas de vidro, eu vejo a mão do Governador tocar
sutilmente o traseiro firme de Tawny. Ivan percebe também — e nota que não foi
o único.
— Desculpe — murmura Ivan, que se lembra de fazer um pedido à Mãe:
— A Elysia precisa de um maiô de verdade para natação. Algo que cubra
mais que os biquínis antigos de Astrid.
A Mãe ri.
— É claro, querido! Será que Farzad apreciou muito a paisagem hoje?
NA MANHÃ SEGUINTE, VOLTO PARA O MEU QUARTO
DEPOIS do treino matinal com Ivan. Quando chego, Xanthe está arrumando o
cômodo.
— O Ivan deixou isso para você — conta ela. Um maiô de uma peça só está
sobre a cama.
Ergo o modesto leotardo de estilo marinheiro que me cobrirá a parte superior
do tórax até o meio das coxas.
— Isso deve servir — digo à Xanthe. — Era da Astrid?
— Da avó da Astrid — responde Xanthe. — Mas não é para hoje. Esta tarde,
você deve se juntar à Sra. Bratton no clube.
— Ivan vai se decepcionar. Ele queria que eu jogasse Z-Grav com ele.
— Ivan jogará com seus amigos humanos. Ele ficará bem.
Se ele usar raxia, ficará mais do que bem. Ficará em êxtase.
Talvez raxia seja como chocolate. Devo perguntar ao Ivan se posso
experimentar a raxia?
Quero apagar a memória do chocolate, mas não consigo. A lembrança é
sensacional demais, salivo de novo só de pensar nisso.
Para me distrair, tiro a roupa para experimentar o macacão.
— Você nada? — pergunto à Xanthe.
— Não sei — confessa ela. — Não fui instruída a tentar.
— Então o que você faz?
— Quando?
— Quando não está trabalhando.
— Retorno aos meus aposentos. Durmo. O que mais há para fazer?
Suspeito que o sono seja sua distração, para fazer o tempo passar mais
rápido, até… até o quê? Será que chega a pensar sobre seu término definitivo?
Será que ela se pergunta sobre sua Matriz?
Ajusto minha voz para o tom chamado informal e pergunto:
— Você sabe alguma coisa sobre sua Matriz?
— Sou um Cordeiro — esclarece Xanthe. Ela pega uma cesta com roupa
dobrada do chão e começa a colocar os objetos nas gavetas da minha cômoda. —
Isso é tudo o que eu sei. Ouvi a Dra. Lusardi dizer isso para a assistente quando
emergi pela primeira vez.
— Você foi clonada a partir de um animal? — perguntei, chocada. Neste
caso, a Dra. Lusardi fez um excelente trabalho moldando sua estética.
— É claro que não. É uma referência para o que os humanos chamam de
cordeiros de sacrifício. — Ela observa meu rosto enquanto tento acessar as
informações. — Não se preocupe, esse significado de cordeiro não está no banco
de dados. Cordeiros aqui são criados a partir de pessoas mais pobres. Elas
sacrificam voluntariamente suas vidas para serem transformadas em clones.
— Não consigo imaginar por que fariam isso.
— Para prover financeiramente seus entes queridos após a extração de sua
alma.
Se uma pessoa pudesse pagar para sua família sobreviver, oferecendo a
extração de sua alma para se tornar um clone, acho que é um preço pequeno a se
pagar. Afinal, o clone vai viver no paraíso e, assim, prover para os entes queridos
deixados para trás, que sofrerão menos, ao ter acesso ao dinheiro que os seres
humanos parecem almejar mais que chocolate. Isso é lógico.
Por causa de seu sacrifício, em algum lugar no mundo real, a família da
Matriz de Xanthe possivelmente agora tem um teto para se abrigar, ou comida na
mesa. Eles sentem falta apenas de quem ela era para eles — uma mãe, esposa,
filha, irmã, tia?
Xanthe vem inspecionar meu novo maiô.
— Há um rasgo nas costas. Tire que eu conserto.
— Eu vou consertar isso — digo à Xanthe. — Tenho certeza que consigo
descobrir como costurar.
— Não seja ridícula. Tire e o devolva para mim. Será consertado e ficará
pronto para você esta noite.
— Não há pressa… — começo a dizer, mas ela me corta.
— É melhor você usar o traje modesto quando você estiver aqui.
Lembro-me de o governador tocando o traseiro de Tawny.
— Não é contra as leis de Demesne se consorciar com um clone? —
questiono.
— Tecnicamente, sim — diz Xanthe. — Mas eles fazem suas próprias regras.
Tawny entra no quarto.
— Estive procurando você por todo o lado, Xanthe. O Governador mudou
sua agenda de compromissos diários e a sala de massagem precisa ser arrumada
para ele imediatamente. — Ela diz isso com grande pressa, como se houvesse
um incêndio a ponto de queimar a casa.
— Está bem — diz Xanthe. Ela levanta o outro cesto de roupas recém-
lavadas. As duas começam a sair do meu quarto, em sincronia perfeita.
— Eu poderia dobrar aquelas para você, Xanthe — digo. Ela tem muito a
fazer, e eu não.
Tawny e Xanthe juntas viram o rosto para mim, a cabeça inclinada no mesmo
ângulo, o rosto definido para a mesma expressão que eu reconheço como horror.
— Isso não é seu trabalho — dizem as duas. E deixam meu quarto.
O ESCÂNDALO!
As senhoras que almoçam me informaram da depravação mais chocante. Os
grãos de cacau dos quais é feito o chocolate estão em falta no continente; a
escassez é tanta que o cacau é racionado em todos os lugares. Aqui em Demesne
o chocolate é abundante, pois a ilha colhe seus próprios grãos de cacau, cuja
exportação para o resto do mundo é vetada. As misturas de chocolate nativo
feitas aqui têm até as calorias estabilizadas, para engordar o mínimo em caso de
excesso de consumo. Os humanos aqui não terão que se contentar só com uma
barra de chocolate por semana como os pobres seres no continente.
Eu não cederei.
Estamos sentadas no jardim de trás da casa principal do Refúgio, em um
pátio com vista para a Baía Néctar. Eu faço a marcação enquanto a Mãe joga
mah-jong com as mulheres após o almoço. As senhoras usam túnicas leves
estampadas em mosaico vivo e flores com sapatos de salto alto de tiras nos pés
bem cuidados. Estão passando da meia-idade humana, mas seus rostos
oxigenados em Demesne lhes dão um brilho juvenil, com tez rosada ainda firme,
iluminada pela brisa fresca de Io. Perto do guarda-sol de palha sobre a nossa
mesa, que protege a pele delicada das senhoras dos raios ultravioleta, pairam
clones servidores, mantendo discretamente as taças de vinho cheias para que
pareça que as senhoras bebericam delicadamente as bebidas em vez de emborcar
garrafas inteiras. Cada uma tem uma tigelinha de frutas tropicais cobertas com
chocolate para mordiscar com o vinho, além de uma equipe de massagistas,
guarda-costas, esteticistas e instrutores de esportes à espera nos bastidores para
servi-las após o jogo de tabuleiro.
A poucas centenas de metros atrás de nós, em um lote vazio em um canto da
propriedade, vejo trabalhadores com rostos gravados com bambu, representando
força e resistência. Esses clones de castas inferiores, fabricados para o trabalho
físico, como obras de saneamento e construção, lançam as bases para uma nova
adição ao complexo principal do Refúgio. Podemos ouvir seus grunhidos fracos
quando usam máquinas pesadas para abaixar as placas de concreto no lugar para
a fundação.
— O que estão construindo? — pergunto à Mãe.
— Ah, o barulho que fazem — lamenta a Mãe sobre o som fraco audível de
uma possante ferramenta distante. — É insuportável. Estão construindo uma
nova ala para hóspedes no Refúgio. Leis bobas incômodas que exigem permitir
mais visitas para forasteiros; precisarão de mais acomodações.
Erguidas discretamente além de uma parede espessa de árvores, atrás dos
trabalhadores de construção, as residências dos clones de serviço, cabanas de
bambu, contam com pouco além de camas.
— Certamente, os visitantes não se hospedarão em nossas casas — diz a
senhora sentada em frente à Mãe.
Agora que aprendi o que é sarcasmo e que não pode causar dano físico, no
íntimo, renomeei essa dama de “Sra. Choramingo Tinto”[3], pelo tanto de pinot
noir que bebe enquanto reclama sobre quase todos os tópicos da conversa.
— Sim — concordo, balançando a cabeça, em apoio ao grupo, como uma
boa companheira deve fazer.
As amigas da Mãe sorriem. A da esquerda da Mãe — a quem chamo de Sra.
Marcha Lenta por arrastar as palavras e demorar a tirar os olhos cobiçosos da
vista, ao longe, de grunhidos masculinos sem camisa — comenta:
— Sua Beta é muuuito mais divertida que a AAAstrid! Aquela menina só
gemia o teeempo todo sobre igualdaaade, susteentabilidaaade e distribuiçãoooo
da riqueza. Que chaaaaato!
— O desprezo de Astrid por Demesne era um infortúnio real — lamenta a
amiga à direita, a Sra. ex-Rainha da Beleza, que gostaria que eu soubesse que ela
ainda usa o mesmo manequim de quando venceu o Miss Adolescente do
Continente, “só há dez anos, há, há, há!”
— E a sua Beeeta uuuuusa coisas boniiiiiitas! — acrescenta a Sra. Marcha
Lenta. A Mãe queria que eu me vestisse como ela para a reunião, por isso estou
com uma túnica estilo saída de banho, estampada com figuras curvas em rosa e
amarelo, idêntica à dela. Sou mais alta que a Mãe, assim o vestido mal cobre
meu traseiro. Por baixo, uso um dos biquínis de Astrid. A Mãe prefere que eu
não vista um maiô, parecendo a sua sogra, quando me exibe às amigas.
— Ela é um encanto — conta a Mãe.
As outras damas acenam a cabeça. Não posso imaginar por que sou um
encanto, a não ser por concordar com cada afirmação das senhoras, sorrir
bastante para elas e não tagarelar sobre igualdade, sustentabilidade e distribuição
de riqueza, como a Astrid. Aparentemente, toda a prole feminina é em parte
monstro, em parte anjo — seus filhos privilegiados, os quais elas cercaram tanto
de luxo quanto da ideia de que a ataraxia é um direito deles, não têm disciplina e
acham que as mães são um entrave para se lidar. Felizmente, as senhoras têm
umas às outras, suas garrafas de vinho, as sessões de mah-jong e os
complementos globais de pessoas prontas para aliviar a dor, quando a busca pela
ataraxia ocasionalmente as leva a filhos que decepcionam ou são ingratos.
— Mostre a elas o que pode fazer, Elysia — pede-me a Mãe.
— Como o quê? — pergunto. A piscina flutuante no meio da baía é muito
longe do nosso canto e não daria às senhoras uma visão muito boa de meus
mergulhos.
— Uma boa mergulhadora também deve ser boa ginasta. Tente alguns saltos
mortais de costas.
Levanto e obedeço. Sei que a Mãe quer que eu distraia as companheiras para
poder maliciosamente espiar suas peças e descobrir a melhor forma de trapacear.
A Mãe gosta muito de ganhar. Acho que ela gosta mais disso do que de
chocolate.
Quando giro e salto para trás, ouço a Sra. Choramingo Tinto comentar: — Dá
para imaginar uma de nossas filhas mimadas se apresentar alguma vez sob
comando?
Todas elas “nãnãm” de acordo e aplaudem quando meus pés tocam o solo de
novo. Ouço as taças tilintarem e a Sra. Marcha Lenta exclama: — Também
queeero uma Beta!
— Venha aqui, querida — acena a Sra. Rainha da Beleza para mim. Ela é a
mais bêbada do bando até agora. Chego perto dela. — Oh, esta cintura fina é um
sonho — proclama com as mãos apertando minha cintura. — Aposto que a
Matriz da Beta poderia ser candidata em concurso de miss. Você sabe como
desfilar em uma passarela, querida?
Acesso meu banco de dados e determino. — Sim!
Ela bate palmas. — Que bom! Minha filha costumava brincar de desfilar para
mim o tempo inteiro quando era pequena, mas depois dos doze anos,
misericórdia! Era impossível fazê-la se apresentar para a mamãe dela. Vamos ver
como você faz!
Ajusto o meu rosto para confiante e desfilo passando pela mesa delas, me
pavoneando, balançando ombros e quadris e irradiando um sorriso magnífico
para as senhoras.
Elas aplaudem com entusiasmo.
— Minha Beta! — exulta a Mãe em sua voz sussurrada. Ela engole o resto do
vinho e aponta para as amigas ao redor da mesa. — Não se esqueçam, todas
vocês. Eu consegui a minha antes.
A Sra. Marcha Lenta sugere: — Competição de taleeentos?
A Sra. Choramingo Tinto revira os olhos. — Por favor, deixe-a cantar
Children of Hope[4]. Concurso algum pode ser vencido sem esse disparate
banal.
— Children of Hope é uma música linda! — opõe-se a Sra. Rainha da Beleza.
— Minha filha adorava cantar essa música comigo quando brincávamos de
concurso de miss na FantaEsfera.
A Sra. Rainha da Beleza me olha. — Você conhece a canção Children of
Hope, Elysia? Diga que sim!
Novamente, acesso o banco de dados e mais uma vez concordo.
— Então, cante! — pede a Sra. Rainha da Beleza. — A minha pirralha nunca
mais o fará.
Nunca cantei antes. Não sei como minha voz vai soar. Mas conheço a letra e
a melodia dessa poderosa canção tipo balada, uma favorita reconfortante que tem
sido popular desde a época das Guerras da Água.
Canto, sintonizando minha voz para o ajuste desfile de miss, forte e sincera,
exagerando a expressão do rosto para mostrar ousadia e fazendo grandes floreios
com as mãos:
Nestes tempos difíceis de escuridão e medo,
Deles recebemos o dom mais sublime.
Eles são os nossos sonhos, nossos amores,
Nossos filhos da esperança.
As senhoras gritam de prazer ao tinir das taças para brindar o meu
desempenho de concurso. Pelo que parece, consigo cantar.
— Essa Beta, com certeza, não tem defeito algum — murmura a Sra. Rainha
da Beleza, enrolando a língua.
As outras suspiram, e a Sra. Choramingo Tinto toma a si o dever de censurar
a Sra. Rainha da Beleza por qualquer transgressão que acaba de ocorrer.
— Nem sequer pronuncie a palavra — adverte ela.
— Amém — concorda a Mãe.

Todas estão bêbadas e ataráxicas o suficiente. Foi uma tarde de jogos bem-
sucedida e elas estão prontas para encerrar o encontro. Mas não antes de
comentar sobre a chegada de Dementia, que sai da casa principal e começa a
caminhar em direção a nossa mesa.
— Puuuxa vida, a meniiina estraaaanha — diz a Sra. Marcha Lenta.
— Bem, você também seria se seus próprios pais não a tolerassem e a
prendessem em Demesne para ser criada por clones — sussurra a Sra. Rainha da
Beleza.
— É tão triste — concorda a Sra. Choramingo Tinto. — Sabe, o dia em que
ela tentou esculpir a tatuagem foi o mesmo dia em que a babá, que a criara desde
bebê, chegou ao final do prazo de validade.
Acho que a babá deve ter atingido 45 anos em idade humana e sua estética e
habilidades não eram mais valorizadas ou necessárias para os pais de Dementia.
A garota se aproxima de nós.
— Demetra, querida, como está você? — pergunta a Mãe.
— Bem. Seja o que for. — Dementia parece tentar ignorar as senhoras
enquanto seus olhos focam em mim. — As aulas do dia já acabaram. A Beta
pode vir jogar comigo?
— Talvez não seja uma boa ideia? — murmura a Sra. Choramingo Tinto para
a Mãe.
Mas a Mãe diz: — É claro, Demetra. Leve Elysia para jogar. Começo a me
erguer, mas a Mãe tem mais a dizer para Dementia. — Mandei um convite para
sua mãe há algumas semanas pedindo para tomar parte do comitê de
planejamento para o Baile do Governador, mas não recebi resposta. Você sabe se
ela o recebeu? O evento social mais importante da temporada deve ter a
contribuição do gosto impecável de Elaine Cortez-Olivier, certo?
Dementia pega a minha mão e me puxa da cadeira.
— Não sei se ela recebeu e sinto muito, Sra. B, mas na verdade não estou
nem aí. — Dementia é tão boa no sarcasmo. — Meus pais estão em CB agora.
Transmita para minha mãe lá.
Eu sei que a Mãe já transmitiu para a Sra. Cortez-Olivier responder ao
convite, mas não recebeu nada. Ela não vai insistir. A Mãe estala os dedos e
aparece um clone servidor para configurar sua poltrona para cochilo enquanto a
massagista se materializa para cuidar dos pés cansados.
— Vamos atacar um pouco de raxia — Demetra diz para mim. Diante das
expressões chocadas das senhoras, acrescenta: — Brincadeirinha! — Baixinho,
ela murmura: — Tipo…

Dementia me leva pela mão do pátio do Refúgio para a praia. Pisamos na doca e
andamos pela longa ponte de madeira que leva à piscina flutuante no meio da
Baía Néctar.
— Será que seus pais voltam logo a Demesne? — digo.
Ela dá de ombros. Seu indicador escala o lado do rosto, cutucando a cicatriz
da tentativa frustrada de recortar uma flor-de-lis em sua têmpora.
— Os superintendentes dos clones, digo babás, alertaram meus pais sobre
recentes incidentes. Então, talvez façam uma aparição em breve. Queria que me
levassem de volta para a cidade de Bioma com eles.
— Ouvi que a cidade de Bioma é uma festa épica.
Dementia ri. — É. É real e estranha, mas meio selvagem. Tipo, às vezes,
quando as tempestades do deserto ficam muito intensas, não dá nem para sair,
você tem que ficar em casa e, tipo, jogar na FantaEsfera. Mas é um lugar comum
para pessoas, digamos, se você for uma garota normal.
— Gostaria de ser uma garota normal! — exclamo.
— Não, quero dizer, se você fosse realmente uma garota comum em CB e
não só um clone de Demesne imitando o desejo de ser normal. A vida para uma
garota comum pode ser dura e não exatamente uma festa épica. Se há uma
tempestade do deserto, você vai ter que ficar em casa, com seus pais, até passar.
Porque nem todo mundo tem uma FantaEsfera em casa. Só em Demesne. Em
CB, pessoas comuns têm que ir para o Fliperama Agulha Espacial e pagar para
jogar em uma FantaEsfera.
— Uau — respondo.
Chegamos à piscina. Dementia olha para além da vista da piscina flutuante
— palmeiras, areia branca, mar violeta — e engole uma dose generosa do
oxigênio de Demesne. Então, abre os braços e grita: — Estou tão entediada aqui!
Abro os braços também, em solidariedade. — Eu também!
— Você é estranhamente legal — elogia Dementia. — A Dra. Lusardi fez um
trabalho e tanto programando seu chip. Bem que gostaria de poder ter uma Beta,
mas meus pais jamais topariam.
Os olhos verde-oliva de Dementia param em minha túnica, idêntica à da
Mãe.
— Meu pai, por favor, tire essa monstruosidade.
Tiro e fico só de biquíni.
— Tente me pegar! — incentiva Dementia.
Ela mergulha na piscina para abrir vantagem. Mergulho atrás dela,
deleitando-me na água suave que me faz sentir em casa. Eu não deveria ter
problema algum para alcançar Dementia e ganhar dela, mas debaixo da água
acontece de novo, aquela corrente permeando minha pele, e lá está ele. Vejo seu
rosto mais claramente nesta água clara e dócil, as maçãs do rosto salientes e
brilhantes dentes brancos, o bronzeado da pele. Os olhos turquesa fixos em mim,
como se pudesse ver através do corpo. Sua proximidade me faz estremecer de
emoção. O cabelo loiro-sujo se joga para cima conforme seu corpo rijo feito uma
rocha gira, penetrando na água. Sua constituição muscular é larga, como a dos
trabalhadores da construção, gravados com bambu, como se pudesse carregar o
mundo nos ombros. Você sabe que você me possui, Z, diz a voz, e meu coração
salta e meu sexo parece subitamente vivo. A voz, tão grave, atinge diretamente
uma unidade de luxúria que eu não sabia possuir. A voz é um traço sensual que
formiga a minha pele. Você sabe que me possui, Z.
Ele foi o primeiro de minha Matriz. Ela o sentia dentro de si. Não sei por
que, só sei que sinto uma doce e intensa dor no coração e diretamente no núcleo
privado do meu ser. A dor me oprime com puro desejo, não me canso de ansiar
por ele.
Mais uma vez, corro em sua direção, para tocá-lo, mas desta vez, quando o
alcanço, em vez de desaparecer, ele ergue a mão, para me afastar. Não posso
fazer isso — diz. — É errado. Você sabe disso.
Eu o ouço e dói tanto, que realmente não consigo respirar.
Ódio. Fúria. Traição.
Agora, entendo esses sentimentos.
Planto meus pés na superfície da piscina e me ergo acima d’água, inalando
avidamente o oxigênio especial em meus pulmões, esperando desesperadamente
que, de alguma forma, o veja acima da água, ao vivo e em carne e osso.
Podemos fazer dar certo — quero implorar, em nome dela. — Por favor.
Mas só vejo Dementia na outra extremidade da piscina.
— Você deveria me perseguir! Qual é o problema? Parece que você viu um
fantasma. Não fique aí parada, feito idiota, ou vou ter que te cortar.
Antes de afundar de volta na água, Dementia acrescenta: — Estou brincando!
Tipo...
Mergulho de novo para procurá-lo, mas a visão do deus bronzeado não
reaparece. Deito-me no fundo da piscina enquanto minha respiração aguenta.
Meu banco de dados me diz que, se eu fosse uma adolescente humana desejando
confinar-me a um lugar privado, seria aqui onde eu o criaria. É o meu santuário,
embaixo d’água. Submersa em seda líquida, não sou um clone insensível.
Sob a água, posso conhecê-la. Ela era feroz, inflexível. Quando amava,
amava profundamente, apaixonadamente. Ela adorava o deus d’água, de olhos
azuis. Ela o possuía. Seu coração.
Mas quando sentiu a traição, ela odiou e foi temida.
Ódio lhe conferiu poder.
Se ela fosse eu (e ela sou eu, mesmo que esteja morta), não teria medo de
minhas memórias e instintos antinaturais. Talvez seus defeitos indizíveis também
lhe deem poder?, diria ela.
IVAN ESTÁ GANHANDO MAIS.
Nessas poucas semanas desde que cheguei à casa dos Bratton e começamos
os treinos matinais, sua velocidade de corrida e agilidade melhoraram muito. Ele
já consegue me acompanhar facilmente e, em muitas vezes, até passar na frente.
Os registros diários de índice de massa corpórea mostram que perdeu 10% de
gordura, mas ganhou outros 10% de músculos.
Estamos a meio caminho de nossa terceira arrancada dos degraus de pedra
acima, a partir da área na Casa do Governador, quando Ivan para, vira-se de
frente para o oceano, e afirma: — Estou bombado! Finge dar um gancho em
mim, como um boxeador ansioso por uma rodada.
Ivan não só aumentou a massa muscular, sua confiança também cresceu.
Ficou mais ansioso, em vez de resignado, para partir para o treinamento militar.
Agora, ele sabe que consegue se manter lá. Conta animadamente os dias até sua
partida para a formação básica e já definiu um objetivo de carreira. Decidiu que
quer se tornar um piloto de caça. A seleção para esse emprego cobiçado é
altamente competitiva. Vai trabalhar duro para alcançar esse objetivo elevado.
O Governador está satisfeito. Há um mês apenas, Ivan não confiava em suas
habilidades físicas, pelo menos em relação à forma dos outros recrutas da Base,
e não se interessava, se esquivava de identificar seus objetivos. A Mãe me dá
crédito por ajudar na recuperação de Ivan, e a si mesma, por sua vez, por me
trazer para casa. Foi positivo para todos, até o Governador ficou convencido em
ter uma Beta como parte de sua família. — Você pode até ser uma melhoria em
relação à Astrid — avaliou durante o jantar uma noite depois de inspecionar as
estatísticas melhoradas de corpo de Ivan. — Você tem todas as qualidades
desejáveis de uma adolescente, sem qualquer um dos terríveis aborrecimentos e
sem as plataformas ideológicas desinformadas que Astrid tinha.
Em pé nos degraus do penhasco, Ivan se inclina para um esconderijo na
rocha, uma fenda grande o suficiente para enfiar a mão nela. — Sabe o que eu
tenho ali? — pergunta. — Mas tem que prometer manter isso em segredo.
Concordo, surpresa, com a cabeça. Geralmente, meu irmão não é do tipo que
guarda segredos. Isso porque os meninos são mais fáceis que as meninas, a Mãe
me disse. Astrid tinha segredos e era mentirosa. Mas Ivan “é um livro aberto”,
segundo a Mãe. — É claro como a água.
Quando ele puxa a mão da fenda, vejo sementes brancas em sua palma. —
São sementes de cuvée — conta Ivan, referindo-se às flores nativas em forma de
tocha de Demesne, que adornam festivamente jardins, calçadas e muitas
plataformas de pouso em diversas casas da ilha. Em seguida, ele puxa um item
ainda mais curioso escondido dentro da parede do penhasco: uma tigela pequena
com um bastão grosso, ambos de porcelana, que minha interface revela ser um
pilão, um instrumento antiquado para moer materiais como especiarias. Ivan
coloca algumas sementes de cuvée na tigela e as tritura, produzindo um líquido
cremoso, com um aroma floral celestial.
— Deixe-me adivinhar — digo eu. — Você está treinando para se tornar um
perfumista militar?
Ivan me lança o seu mais orgulhoso sorriso. — Sarcasmo: bem imitado. Mas
não, é algo ainda mais emocionante. Estou tentando fazer a minha própria raxia.
— Por quê? Aquela que você obtém ilegalmente não tem qualidade
satisfatória? — pergunto.
— Mais do que satisfatória. Esse é o problema. Quanto melhor a raxia fica,
mais eu desejo, e menos quero esperar para encontrar alguém para me passar. A
raxia é feita com sementes de cuvée do interior das pétalas pontiagudas da flor.
Estou estudando como produzi-la, mas também melhorá-la. Se eu adicionar
componentes como testosterona — Ivan puxa uma pequena garrafa rotulada T do
penhasco — posso usá-la não só para me sentir bem, mas para ficar mais forte
também.
— Muito científico — reconheço.
— Estou, tipo, inspirado agora, me sentindo bem e querendo ficar ainda
melhor. Mas não só me sentir melhor. Ser melhor. Mais forte.
— O Governador sabe disso?
— Com certeza quer que eu seja o primeiro, cara.
— Quero dizer, sobre seu conjunto de química.
— Claro que não. Me mataria. Então não conte a ele. Só estou te mostrando
isso agora porque vou começar a recolher mais suprimentos para mais
experiências e quero que saiba onde guardá-los para mim se eu pedir. — Ele dá
um soco forte em meu braço, de brincadeira, mas forte o suficiente para eu saber
que um roxo aparecerá mais tarde. — Tudo bem, campeã?
— Sim, irmão — concordo.

Entrei em uma rotina na casa. De manhã cedo, acordo Liesel e a ajudo a se


preparar para a escola. Então, me exercito com Ivan por duas horas. Após o
almoço, sou companheira da Mãe. Às vezes, vamos ao Refúgio para almoçar
com as senhoras, às vezes anoto o que ela me dita sobre o planejamento da
comida e convidados para o iminente Baile do Governador e às vezes ela só quer
que eu vá às compras com ela.
A maior parte das compras em Demesne é feita por Transmissão, já que há
poucas lojas e cafés na rua principal, perto da pista aérea, e a Mãe quer voltar à
butique onde me comprou. Diz que precisa de lingerie nova, mas acho que ela
quer mais um clone.
— Se me recordo bem, havia outra Beta adolescente na loja? — ela pergunta
ao nos aproximarmos da butique.
— Sim, Mãe. Seu nome é Becky.
Ela não deve ter sido comprada ainda. Eu teria sabido onde ela estaria.
Entramos na loja e somos imediatamente cumprimentadas por Marisa, a
agente que me vendeu à Mãe. — Sra. Bratton, é tão bom vê-la — diz Marisa. —
Como a Beta está funcionando?
— Ela é perfeita — arrulha a Mãe. — Simplesmente perfeita.
— A Dra. Lusardi ficará tão contente. Como posso lhe ser útil hoje?
— Gostaria de ver uma camisolinha. Algo sedoso e sexy. E… aquela outra
Beta ainda está disponível?
Marisa faz uma ligeira careta. — Ela está disponível. Mas… talvez não seja
do seu agrado. Não é tão perfeita quanto esta. — e aponta para mim.
— Deixe-me vê-la — pede a Mãe.
Marisa vai até o fundo da loja e retorna com Becky. A outra Beta adolescente
parece mais pálida que da última vez que a vi e, espantosamente, seus olhos
fúcsia apresentam partículas vermelhas, como se estivessem congestionados de
sangue. Parece ainda que ela engordou um manequim.
— Olá, Elysia — cumprimenta ela.
— Olá, Becky — respondo.
A Mãe a inspeciona de alto a baixo. A escolha é fácil. — Não — sentencia.
— Deixe-me mostrar nossa coleção de lingerie — sugere Marisa. —
Acabamos de recebê-la da Cidade de Bioma. Os designs de lá são tão -
surpreendentes!
— Está bem — suspira a Mãe. Percebo seu desapontamento. Ela queria algo
novo e interessante. Agora, vai comprar uma camisola com o mesmo aspecto
que as outras cinquenta que possui.
A Mãe e Marisa recuam para um canto remoto da loja, deixando Becky e eu
sozinhas na frente.
— Como você está? — pergunto à Becky.
— Mais ou menos — declara ela. Sua aparência mudou. Não só está mais
pesada, como sua pele empalideceu e os olhos parecem perdidos em vez de
vidrados. — Como é a Casa do Governador?
— Mais ou menos — afirmo. Melhor que ficar enfiada nesta butique sem
graça o tempo todo, esperando por uma venda que jamais irá ocorrer, penso eu.
— Como é? — interessa-se ela. Sua emoção é tão amena quanto deveria ser,
ainda assim não posso deixar de suspeitar que há algo estranho com ela.
— Perfeita — respondo.
— É claro — concorda Becky.
— Como você serve lá? — questiona. — Você tem tarefas?
— Não tenho tarefas — conto, surpresa que minha voz parece injuriada, de
certo modo. — Sou membro da família.
— Então, o que faz?
— Eu me exercito com meu irmão, Ivan. Acompanho a Mãe a almoços.
Brinco na piscina com minha irmã, Liesel. À noite, janto com a família.
— Você janta com eles? — pergunta Becky. — Você come a comida deles
por educação?
— Como sim. — ADORO a comida deles, mas isso não conto.
Becky se inclina perto de mim. — Você já experimentou chocolate?
— Sim — respondo tranquila.
— Ouvi dizer que ele compele a ataraxia nos humanos — comenta Becky.
— Parece que sim — concordo.
— Ele compele ataraxia em você? — interessa-se ela.
— Sou incapaz de alcançar a ataraxia, é claro. — Nem sei por que não conto
simplesmente à Becky que de fato sinto os sabores. Sua vida parece tão limitada.
Não preciso reforçar ainda mais meu privilégio. Minha bela casa e família. Meu
sentido de paladar, que eu não deveria ter.
— Experimentei chocolate — ela sussurra. Ela fala rápido, como se já
estivesse disposta em fazer essa confissão, mas só conseguiu ter coragem por
falar ligeiro.
Bem! Talvez a sua vida na butique não seja tão limitada e sem privilégios,
afinal.
Aproveito a deixa de sua confissão e faço a minha. Rápido e baixinho,
admito: — O chocolate é muito agradável.
Becky agarra a minha mão e a aperta. — Sim — ela afirma, aliviada. Ela
caminha até a escrivaninha com pilhas de malhas dobradas por cima. Abrindo a
gaveta, vejo mais malhas guardadas, até que Becky puxa várias barras de
chocolate escondidas. — Tenho muitas, se quiser pegá-las para você.
Ela não ganharia peso tomando vitaminas insípidas de morango. Mas
engordaria por comer muito chocolate, que só comeria em excesso se tivesse
sentindo prazer real com ele. Será possível que o sentido do paladar seja de fato
um equívoco de Betas? Ou será que outros clones também o sentem?
— Não, obrigada, guarde para você — respondo. — Posso comer chocolate a
qualquer momento.
— Por favor, leve isso embora, Elysia. Estou engordando e não quero ser
devolvida — ela diz.
— Devolvida para onde? — pergunto.
— Para a enfermaria — ela cochicha.
Ela viu o mesmo que eu.
Peguei as barras de chocolate e as guardei em uma das sacolas de compras da
Mãe que eu carregava.
— Obrigada — diz Becky. — Eu escutei que você é um sucesso com os seus
novos proprietários. As pessoas têm vindo à butique para me ver depois de
conhecer você. Uma depois da outra, secretamente. Todas as amigas de sua mãe
vieram procurar outra igual a você. Elas acham que uma não sabe da outra. Só
que elas me olham mas nenhuma me leva.
— Você vai encontrar um comprador — digo, com minha voz ajustada para o
tom ACONCHEGANTE.
De repente, Becky sussurra: — Não quero um comprador. Quero a minha
liberdade.
Ela quer o quê? A que tipo de liberdade ela se refere? Não tenho chance de
continuar a conversa com Becky. Mãe e Marisa voltam para a frente da butique
nesse momento e Mãe está pronta para sair. Pego suas sacolas e ela anuncia: —
Hora de almoçar!
— Sim, Mãe — concordo. — Adeus Marisa, adeus Becky.
Pensei que liberdade significasse sair da butique e ser aceita em um novo lar.
Mas agora, depois de ver que Becky também sente o gosto das comidas, acho
que ela acabou descobrindo uma explicação diferente para a palavra liberdade,
que não está no meu banco de dados.
Acho que sei o que Becky quis dizer: possuir a si mesma em vez de ser
possuída por um ser humano.
POP POP POP
O gamo morreu.
— Pare! — berra Liesel, usando a palavra de segurança para desligar o jogo
quando ele fica assustador demais para ela.
— Tarde demais — diz Ivan. — Você não avisou a tempo. O veado bebê foi
abatido.
Mas o jogo reconhece o comando de Liesel, e tudo desaparece. As colinas, os
carvalhos altos, o prado com a bela lagoa onde o gamo saciava a sede, o bebê
veado morto, todos somem em um instante. Tudo o que resta do jogo virtual são
os consoles das armas em nossas mãos.
— Quero jogar Pilhagem Florestal ou Baile da Princesa — diz Liesel,
fazendo beicinho. Odeio jogos de caça.
Os jogos de caça a assustam, especialmente o de tubarão. Por crescer em
Demesne, crê que esses peixes são as criaturas benignas clonadas que vê quando
o pai a leva para um passeio de barco para a periferia do anel de Demesne e a
deixa balançar os pés fora do barco, para os tubarões fazerem cócegas. Na
FantaEsfera, os tubarões são monstros oceânicos que caçam humanos em vez de
lhes fazer cócegas.
— Você conhece a regra — diz Ivan. — Se quiser que eu jogue com você,
precisa escolher um jogo que não seja bobo.
Liesel suspira.
— A Astrid jogaria Baile da Princesa comigo.
— É, para poder ensinar sobre a mulher-objeto, cujo único objetivo é ser
salva por um príncipe.
— Eu quero ser salva por um príncipe — afirma Liesel.
— Seu irmão mais velho garante que nunca haverá nada do que você precise
ser salva, tudo bem? — diz Ivan. — Então o que você quer jogar?
Liesel tenta mais uma vez.
— A Elysia não pode jogar Baile da Princesa comigo e você vai para outro
lugar?
Quando apenas eu jogo na sala FantaEsfera com ela, Liesel sempre escolhe
Baile da Princesa, em que frequentamos festas suntuosas com vestidos de tafetá
e tiaras de diamantes. Ela até salvou nosso príncipe projetado personalizado em
seu perfil de jogo para que possamos jogar sempre com ele. Ele conhece cada
passo de dança que Liesel lhe ordena fazer, de danças antigas, como o Hustle e a
Macarena até os mais novos, como o Onda Sexy e o Bate Crânio. Ele é alto,
moreno e bonito e usa uniforme formal de oficial, de calça preta e casaco
vermelho adornado com um cinto de brocado dourado e uma faixa vermelha e
dourada. Ele nunca deixa de nos presentear com caixas de chocolate. Nós o
chamamos de Príncipe Chocolate.
— Não — rebate Ivan. — Eu disse para escolher algo legal ou não jogo nada
com você.
— Não seja chato! — reclama Liesel, fazendo beicinho.
— Não sou chato. Não se comporte como bebê. Papai quer que eu pratique
mais jogos de condicionamento físico.
Liesel suspira como a Mãe.
— Que tal Z-Grav?
— Sim!
O jogo começa, mas desta vez nem objetos virtuais ou cenários aparecem
diante das paredes brancas da sala. Em vez disso, ouvimos um barulho de sucção
e imediatamente somos atraídos para o teto, como ímãs. À gravidade zero, os
músculos centrais de nossos corpos devem se esforçar para levar os pés de volta
ao chão. Vence quem alcançar primeiro o chão. Normalmente eu chego lá antes,
mas, desde que Ivan ficou mais forte e magro, pode ter chance nesta rodada.
Liesel nem sequer tenta competir, em vez disso, quica alegremente nas paredes e
tenta empurrar seu irmão mais alto sempre que ele faz progresso para baixo. Ela
não tem vontade de vencer, apenas de se divertir.
Eu me esforço para ganhar, pois esse é o objetivo claro do jogo.
Tenho certeza de que teria sido a meta da minha Matriz também. Um clone
não vem com a musculatura tão esculpida quanto a minha, a menos que tenha
sido duplicado de alguém que fez do esporte e de vencer a sua missão.
Ivan se esforça para ganhar, porque o Governador jamais deixa de lembrá-lo
de que precisa ser um “vencedor” para sobreviver e progredir nas forças
armadas.
Nós três flutuamos pela sala, lutando para conseguir voltar ao chão. Liesel
pende do teto, agarrando as mãos de Ivan para puxá-lo para cima, enquanto ele
tenta ir para baixo. Assim obstruído, atinjo facilmente o chão primeiro. O som de
sucção cessa. Liesel e Ivan caem no chão, amortecidos pelos balões de ar que
brotam do solo em suas posições de pouso.
Ivan ergue-se e o balão some.
— Que droga — reclama ele, que não gosta de perder. — Vamos jogar algo
real — sugere. — Algo que envolva risco de verdade.
— Algo que Elysia não possa ganhar! — brinca Liesel.
— O quê? — Fico curiosa.
— Posso participar também? — indaga Liesel.
— Não, você ainda é muito nova — responde Ivan à Liesel. Ele Transmite
uma mensagem para o pessoal externo.
— Elysia e eu vamos fazer parapente nas falésias.

A sensação é de estar pendurada sobre a borda do mundo.


Não sinto a onda química da adrenalina, mas posso entender seu potencial,
olhando para o rosto de Ivan, que registra uma combinação de antecipação,
determinação e medo. Vamos mergulhar no perigo. A Astrid, ele me disse, tinha
medo de altura e nunca participou desse jogo com ele.
Nossos pés estão na borda do penhasco na propriedade do Governador. Sob
as bordas ásperas, cerca de uma centena de metros abaixo de nós,
aproximadamente do comprimento de um campo de futebol, as águas de Io se
estendem, amplas e promissoras. Os empregados afivelam cada um de nós em
um parapente, e Ivan e eu agora estamos no local de onde faremos nossos saltos,
correndo para ascender no ar, para longe da terra.
Ivan se vira para ficar diante da casa.
— Vamos correr rápido a partir daquele ponto. — Ele aponta para uma rocha
enorme há vários metros de distância, então gira o braço para onde nossos pés se
encontram agora. — É preciso dar um salto muito forte quando se alcança a
borda aqui, assim, quando você decolar, não acerta o lado do penhasco.
Ele aponta para um conjunto de casas perto da costa, alguns quilômetros de
nosso ponto de partida na pedra.
— Está vendo aquela casa enorme esculpida no penhasco de calcário lá
embaixo? É o complexo Fortesquieu. Vamos dar um giro agradável sobre a água
e depois pousar naquela praia, onde a areia é firme o suficiente para um pouso
em pé. Entendeu?
Aceno com a cabeça. Ele começa a se mover para trás, em direção à rocha
onde a asa do parapente se estende sobre o chão para preparar nossa investida à
frente. Assim que está pronto para saltar da borda, a asa descerá e se expandirá
acima dele, levando-o sobre o oceano.
Mas não o sigo de imediato. Em vez disso, me pergunto o que aconteceria se
eu simplesmente dissesse Não.
Será que o meu prazo de vencimento expiraria se eu de repente anunciasse:
Ivan, saltar deste penhasco poderia facilmente me lançar para a morte. Nunca
manobrei um parapente antes. Tenho um chip que me diz como usá-lo, mas
nenhuma experiência real para servir de orientação e saber como guiar este
equipamento ou o clone nele afivelado, pairando alto ao vento, desprotegido,
acima do oceano. Além disso, prefiro mergulhar na piscina flutuante e ter visões
de um belo e divino surfista bronzeado com os olhos azul-turquesa. Depois de
nadar, gostaria que alguém me servisse chocolate. Gostaria que esse alguém
fosse humano. Gostaria que os clones fossem servidos hoje. Deve-se fixá-los em
seus parapentes se é assim que eles escolhem ficar de bobeira hoje. Seja
bonzinho, está bem, querido?
— Venha já, Elysia — chama Ivan.
Eu digo a palavra. Eu a pronuncio, mas baixo: — Não.
— O que você acabou de dizer? — indaga ele, o rosto demonstrando choque
e confusão.
— Não — repito, um pouco mais alto.
Ivan não sabe como reagir à minha resposta. Deve ficar furioso? Me
acalmar? Me ordenar?
— Elysia, eu disse…
Não espero resposta, em vez disso dou alguns passos para trás, então me
agacho na posição de corrida.
— Estou brincando! — digo. — Te peguei!
Não me importo com o louco arranque do ponto de partida designado por
Ivan. Uso toda minha força para me pressionar e então arremesso minhas pernas
tão alto quanto possível e salto.

Planamos.
Voando lá no alto, sustentados no ar a centenas de metros pela elegância
simples de cordas ligadas ao retalho ondulante do tecido da asa, entendo por que
Ivan busca ativamente esse perigo. Estar aqui é ser livre. Aberto. Infinito.
O sol, ao se por no horizonte a oeste, lança um brilho cor de damasco sobre a
água violeta. O ar parece mais fino e delicado que o oxigênio especial bombeado
na atmosfera abaixo de nós. Absorvê-lo parece arriscado, sedutor.
Ela poderia estar nessa ideia humana chamada paraíso, nos céus acima de
mim? Voando sobre o oceano, os pulmões pela primeira vez cheios de ar não
criado pela bioengenharia que ela pode ter conhecido, não consigo deixar de
pensar, espero que a minha Matriz tenha experimentado isso.
— Especial, não é? — a voz de Ivan diz no receptor de audio em meu
capacete.
— Melhor que a raxia? — provoco.
Ouço-o rir.
— Nada é mais especial que a raxia. Mas ela é para afastar os dias sem graça
em Demesne. Voar aqui é viver de verdade.
A grande altitude me oferece uma vista nova e mais ampla do anel violeta
que cerca Demesne e, além do anel, das ondas monstruosas de crista branca
conhecidas como as gigantes, que parecem mansas e pouco ameaçadoras de tão
acima da água. Pela primeira vez desde que emergi, enxergo a vastidão do
oceano real além de Io. Conforme vejo o fluxo e refluxo, o bramido e o espirro,
chego a um novo entendimento de seu grande poder; Ivan e eu parecemos tão
pequenos e inconsequentes em comparação à imensidão do oceano. À frente das
gigantes, vejo o arquipélago de ilhas menores, desabitadas, suas periferias
contornadas por areia branca, mas longe das praias, abundantes de plantas e
florestas. Consigo começar a entender como aquelas terras poderiam ser
consideradas selvagens e sem lei.
Olho para o nada muito além das ilhas. A água se estende para o que parece a
eternidade. Mil quilômetros à frente, completamente além de minha vista e,
provavelmente, de meu alcance, para sempre, existe um lugar onde o continente
encontra o oceano. Ela deve ter vindo de lá.
Ele sente falta dela, o deus bronzeado cujo coração ela possuía e que, por sua
vez, destruiu o dela?
— Complexo Fortesquieu à frente. — A voz de Ivan vibra em meu capacete.
— Prepare-se para aterrissar. — Ajusto as cordas de acordo com as instruções.
Ivan e eu começamos a descida vagarosa conforme nos aproximamos do local de
pouso na praia de Demesne.
Pof. Meus pés tocam o solo e eu corro para amenizar a aterrissagem.
Pof pof pof. Ivan cai atrás de mim, mais duro e desajeitado. Ele tenta correr,
mas o mecanismo do parapente se enrola nele, forçando-o a cair. Ele tosse ao se
levantar, enrolado na corda, mas animado.
— Voo incrível — ele arqueja.
— Por que você está tossindo? — pergunto.
— Isso acontece com as pessoas que cresceram aqui. Estamos tão
aclimatados ao ar puro, que, quando subimos até o ar mais rarefeito, nossos
pulmões apanham na aterrissagem. Eu deveria fazer isso com maior frequência,
para preparar a aclimatação à Base. — Ele tosse cada vez mais alto.
Uma figura solitária caminhando pela praia se aproxima e dá tapinhas em
suas costas. Ivan se vira e cumprimenta a pessoa.
— Tahir! — exclama.
Ivan e a figura alta chamada Tahir fazem o gesto de bater o punho e o ombro,
como irmãos, comum à espécie dos Uaus!
Tahir é um adolescente alto, com pele cor de café e olhos castanhos cercados
por cílios pretos espessos. Seus lábios são tão vermelhos e carnudos que
parecem quase femininos, de tão perfeitos. É como se tivessem sido
geneticamente projetados para beijar. Metade de seu cabelo negro é trançado
rente, com tranças emoldurando seu rosto, estendendo-se para trás de sua testa
por alguns centímetros até o meio da cabeça, onde as tranças acabam e seu
cabelo natural abre em um estilo despontado, solto e livre. Como seu primo
Farzad, seus músculos abdominais são admiravelmente rijos, exibidos acima dos
shorts de surfe, mas o peito é liso, enquanto o de Farzad é salpicado de pelos
pretos.
Tahir me avalia, curioso, da cabeça aos pés, então dá a volta por trás onde
deve observar a palavra BETA tatuada a laser em toda a volta, atrás do pescoço.
Dá um passo para trás para me encarar, mirando fixamente os meus olhos fúcsia.
Minha pele tem uma sensação de formigamento quando nossos olhos se
encontram, o que eu atribuo ao atrito do pouso de parapente. Ele me fita
profundamente, em vez de olhar para longe rapidamente como os outros seres
humanos fazem, como se quisesse ver se há algo por trás de meus olhos
vidrados, além de uma alma vazia.
— Sim, estão fazendo Betas adolescentes agora, dá para acreditar? Seu nome
é Elysia. Bem-vindo à casa, amigo — diz Ivan a Tahir, desafivelando-se do
parapente.
Tahir não responde a Ivan. Em vez disso, sua mão se estende e toca meu
ombro, que sente uma sucção estranha e imediata de calor passando de seu corpo
para o meu. Ele olha melancólico em meus olhos e seus lábios cheios se curvam
em um meio-sorriso.
— Ei, linda — diz para mim.
É como se ele fosse um Príncipe de Chocolate, real e vivo.
Delicioso.
IVAN INICIA AS RODADAS DE TRANSMISSÃO E, horas
após nossa aterrissagem de parapente na praia, a turma — Farzad, Greer e
Dementia — se juntou a nós no alojamento de lazer de Tahir, no complexo
Fortesquieu, para acolher seu amigo de volta em Demesne.
Fortesquieu é uma estrutura de vários andares, em estilo pueblo, esculpida no
penhasco de calcário que se eleva sobre a parte mais espetacular de terra à beira-
mar de Demesne. O alojamento de Tahir é uma série de quartos com paredes de
pedra branca e janelas circulares de vidro como vigias de um navio com vista
para o oceano. Os quartos são decorados com tapetes e travesseiros turcos,
mobiliados com mesas esculpidas e cadeiras feitas de marfim e madeiras
preciosas extintas. Os funcionários têm ordens para não perturbar a recepção de
amigos por Tahir, a menos que solicitados. Uma bandeja com sanduíches e copos
de limonada de menta fresca foi deixada para nos refrescar.
Sinto-me atraída por ele de um modo que não posso definir nem entender.
Simplesmente quero olhá-lo… para sempre.
Tahir nos conta sobre o tempo que passou na cidade de Bioma, onde foi se
submeter à terapia física extensiva após o acidente. Suas esperanças na
faculdade, sua antiga vida nos competitivos circuitos de surfe em ondas gigantes
foram postas de lado, por enquanto. Agora, seu dia a dia está voltado apenas
para a recuperação de sua lesão e experiência de quase-morte. Seus amigos estão
extasiados em torno dele contando sua história, seus olhos cor de avelã,
ocasionalmente, espreitando-me em meu canto tranquilo, sentada em um
travesseiro na janela com vista para o mar. Há uma qualidade remota na forma
como fala lentamente, como se ele pudesse, a qualquer momento, tropeçar nas
palavras ou memórias. A coluna e o pescoço ainda estão sarando, explica. Ele
não só está proibido de competir, como também não pode surfar por um longo
tempo. Talvez nunca mais.
— Não! — grita Farzad. — Isso é demais. Inaceitável.
— Mas lembrem-se — avisa Greer, baixinho. — Ele sobreviveu. O preço
poderia ter sido muito maior.
Olho o mural na parede atrás de Tahir, que ocupa todo o comprimento da
parede e é uma pintura magistral, melhor do que um holograma, onde aparece
Tahir surfando uma onda enorme que se ergue sobre sua cabeça. A pintura é tão
detalhada, foca em seu corpo para dar uma visão caprichada das ondulações em
seus bíceps, dos músculos abdominais e do poder de suas pernas fortes. Ele
cavalga fundo dentro de um tubo safira de água borbulhando aros em espuma
branca acima da cabeça, enquanto a mão acaricia a água atrás dele. Os olhos
castanhos são mais brilhantes nesta imagem que na realidade e exibem intensa
determinação. O detalhe na pintura é extraordinário, tão preciso que o espectador
quase pode imaginar o som do swell crescente antes de sua queda inevitável,
quase sentir o cheiro do mar e a brisa acariciando a pele de Tahir naquele
momento. Conquistar uma onda dessas deve ser um feito heroico, como
evidenciado pelos muitos troféus e fitas expostos em um mostruário na parede
em frente ao mural.
— Vamos jogar Z-Grav — sugere Ivan. — Como nos velhos tempos.
— Nada mais de Z-Grav para mim, tampouco. — Tahir balança a cabeça.
O grupo todo arqueja.
— Pelo menos por enquanto — corrige Tahir.
Os amigos assentem com a cabeça. As coisas podem voltar a ser como antes,
demonstram seus rostos.
Mas quando ele olha para mim, de alguma forma, vejo em seus olhos uma
mensagem diferente: Não, as coisas jamais voltarão a ser como antes.
É bobagem imaginar que eu pudesse experimentar alguma atração física ou
psíquica por ele.
Então por que, de algum modo, eu a sinto?

Na sala da FantaEsfera de Tahir, os garotos jogam Luta em Voo de Bioma, um


jogo com aviões de combate disputado sobre a paisagem desértica da cidade de
Bioma, deixando as meninas livres na sala ao lado para serem femininas, ou seja,
para pintar as unhas dos pés e falar sobre garotos. Dementia está recostada num
divã em forma de L, as pernas estendidas ao longo do móvel e eu, no chão, pinto
suas unhas com um vermelho cor de sangue. Greer está no canto ao lado do divã,
com as pernas esticadas sobre uma almofada, a cabeça de Dementia pressionada
contra sua coxa. Com uma mão, Greer dá goles em uma limonada e, com a
outra, acaricia o cabelo longo e negro de Dementia, como se ela fosse um
gatinho aconchegado contra si.
— O Tahir não lhe parece mais frio? — Greer indaga Dementia.
— Com certeza — concorda Dementia. — Antes, ele era um frio tipo
arrogante. Agora, é frio, só frio. De seu modo realmente sensual, é claro.
Esse argumento faz sentido para Greer, que acena com a cabeça, entendendo.
— Com certeza. Ele realmente feriu o coração.
— Quem? — pergunto. — O coração precisou de cirurgia?
— É ferida de amor — explica Greer. — Não é um machucado real no
coração. É a forma de sentir.
— O coração da Astrid — conta Dementia. — Ela o amava loucamente. Eles
não formavam um casal de verdade, mas ficavam juntos quando ele estava na
ilha, embora ele jamais a reconhecesse publicamente. Ele tinha outras garotas
onde quer que fosse, no circuito de surfe, provavelmente um harém inteiro lá em
Bioma.
— Acho que você pode ser assim quando o seu pai é um dos homens mais
ricos do mundo. Tahir poderia ter a garota que quisesse — avalia Greer.
— Provavelmente tem — concorda Dementia.
— É possível — ri Greer. — Pobre Astrid. Era tão louca por ele, mas ele
nunca se limitaria a uma garota cujo pai é apenas um funcionário desta pequena
ilha.
— Não seria um prestígio para Tahir se relacionar com a filha do
governador? — pergunto. E que tal a clone substituta da filha, pensei.
— Se relacionar... certamente — argumenta Greer —, mas ter um
compromisso sério com ela? Nada legal, pelos padrões de Demesne. As pessoas
diriam que estava abaixo dele. O pai de Astrid é apenas alguém contratado. O
Governador e sua família vivem aqui pelo arbítrio da Diretoria, não porque
realmente tenham alguma propriedade aqui.
— O seu pai, o embaixador, é dono de sua propriedade aqui? — questiono.
Parece ser a pergunta lógica a ser feita, mas Greer rebate:
— Não! — E então me observa com irritação. — Mas ao menos minha
família tem dinheiro há tempos, mesmo que não sejamos podres de ricos, como
esta senhora aqui. — Ela acaricia carinhosamente a cabeça de Dementia.
Não entendo como a podridão afeta a riqueza da família de Greer nem como
uma garota de dezessete anos humanos pode ser considerada uma senhora, mas
acho que em algum momento tudo ficará claro para mim.
— A Astrid era tão doce, mas tão determinada em entrar na melhor
universidade — conta Dementia —, e era tão chata com seus discursos sobre
distribuição justa da riqueza e todas aquelas ataraxias impossíveis. Era
constrangedor, acho que foi o que acabou afastando Tahir. Ela deu o seu coração
a Tahir, e ele o pisoteou.
Dementia pausa enquanto tento imaginar Tahir pondo o pé sobre o coração
pulsante de Astrid.
— Elysia, estou com cãibra; massageie a minha perna ou algo assim.
Paro de lixar suas unhas e começo a esfregar as panturrilhas.
— Já melhorou. Pode lixar de novo.
Como a cãibra passou, Dementia volta a especular sobre o relacionamento de
Tahir e Astrid.
— Além disso, a Astrid jamais iria a lugar algum que a distraísse dos estudos
e Tahir queria ir a todos os lugares. Ele era do tipo “vou pairar sobre os Alpes ou
cavalgar nos Himalaias, enquanto você fica aqui sentindo minha falta”.
— Nunca entendi como a Astrid se apaixonou por um canalha como o Tahir.
— Greer comenta. — Ele era o oposto dela.
— Mas deslumbrante! — suspira Dementia. — Vamos assistir um pouco
disso. — Ela se inclina e aperta PLAY em uma moldura holográfica na mesa
lateral. A moldura do holograma mostrando Tahir no Baile do Governador do
ano passado entra em ação. O clipe mostra Tahir de smoking preto com lapela
marrom, combinando com seus olhos, girando Astrid na pista de dança e a
inclinando tão baixo que sua cabeça quase toca o chão. — “Eu venero o chão
que sua cabeça pisa” — diz Tahir. Astrid ri e sorri quando ele a ergue para junto
dele e a aperta contra si. Os olhos de todas as mulheres ao redor do casal
dançante parecem fixos em Tahir. Ele sorri para elas, reluzindo os dentes
perolados, então volta a atenção para Astrid. — “Ei, linda” — murmura para ela.
O rosto dela se ilumina de novo.
— Bom — concorda Greer ao final do clipe. — Ele é deslumbrante ao
máximo. Mas a Astrid tinha sentimentos sinceros por ele, e ele não reconhecia
nem mesmo para seus pais que eram mais que um casal casual. Ele
simplesmente a usou.
— Carma — sentencia Dementia. — Aquele acidente não foi por acaso, se é
que entendem o curso cósmico.
— Você acha que eles se encontram na Cidade de Bioma? — pergunta Greer.
— Duvido — sentencia Dementia. — O Tahir é do tipo ame-as e deixe-as.
Acabei de pintar as unhas dos pés de Dementia. Pergunto a Greer:
— Quer que pinte as suas também?
Greer pensa um instante, então responde:
— Hoje não. Não acho que o Aquino vai gostar disso.
— Aquino? — repito.
— O assistente que veio da Base para trabalhar com meu pai por um tempo.
Estou tão caída por ele que é patético. É um Aquino, então é provável que
prefira as garotas naturais, que não usam esmalte. Aquinos devem ser humildes e
modestos, ou algo assim.
Aquino, pesquiso. A interface me mostra que os Aquinos são uma seita
enclausurada de pessoas geneticamente modificadas que se acasalam para
produzir uma nova raça de humanos perfeitos. São conhecidos por serem
pacíficos, zelotes religiosos que, junto com a programação de seu DNA para uma
ótima aparência e força, criaram uma raça de pessoas leais ao máximo: só se
acasalam por amor e são monógamos. Uma vez casados, permanecem com o
parceiro pela vida inteira. Essa raça superior não acredita em fazer amor de
forma tempestuosa ou casual.
— O Aquino veio até a minha casa na semana passada, te contei? — comenta
Dementia. — Quase desmaiei com sua exuberância. Ele entrevistou o nosso
pessoal para o relatório anual da Comissão de Direitos dos Replicantes. Sua voz
é um resmungo sensual, mas tem um rosto de anjo. Desejaria que tivesse me
entrevistado! — A mão de Dementia toca a cicatriz de flor-de-lis no seu rosto.
Greer remove a mão de Dementia e coloca a própria mão em sua cicatriz,
traçando-a com o dedo indicador.
— Minha doce Dementia — diz Greer. — Você me faz querer chorar. Por
que você faz coisas como essa a si mesma?
Dementia aponta em minha direção.
— Porque quero ser como a Elysia. Não quero sentir. Não quero me magoar.

Os garotos entram em busca das garotas assim que o jogo da FantaEsfera


termina. Farzad olha para mim.
— Ei, Beta. Precisamos que faça uma corrida.
“A corrida” é quando Ivan, Farzad ou Dementia me enviam para encontrar
um mensageiro designado — às vezes um trabalhador de construção, gravado
com bambu, às vezes um humano que ganhou visitação temporária para o
Refúgio —, de quem tomo uma entrega de pílulas de raxia para o consumo do
grupo.
— Que corrida? — pergunta Tahir. A turma toda olha para ele, surpresa pela
confusão de Tahir.
— A corrida — explica Farzad. — Para a viagem da raxia. Se algo der
errado, melhor que a Beta seja apanhada do que nós.
— Ah, é — Tahir dá de ombros, como se já soubesse. — Agora ando
esquecido.
Todos assentem, mas o rosto de Farzad demonstra preocupação — como
Tahir pôde esquecer algo tão importante?
Dementia agarra Tahir num abraço e coloca a cabeça em seu peito.
— Está tudo bem, Tahir. Estamos felizes que esteja melhor.
Ele beija o topo de sua cabeça.
— Muito obrigado, linda — responde. Mas seus olhos estão voltados para
mim quando ele diz isso. Eu me pergunto o que esse olhar quer expressar — a
afeição e a doçura reveladas no modo como fitou Astrid, ou o desejo por um
brinquedo artificial como é o caso do Governador e Tawny, sua assistente de
luxo?
— Você está em casa agora — diz Ivan a Tahir — e vamos tomar conta de
você direitinho esta tarde. Esta raxia que encomendamos apenas para você deve
ser de primeira.
— Não posso usá-la mais. Ela poderia interagir mal com todos os
medicamentos que tomo — lamenta Tahir.
— Uau — reagem Farzad e Ivan ao mesmo tempo.
— Você costumava ser, tipo, o Rei da Ataraxia — lembra Ivan.
— Desapontador... — confessa Farzad. — Mas tenho certeza de que é apenas
uma questão de tempo antes de ficar bom de novo. A Beta pode fazer a corrida,
mas vamos curtir sozinhos, mais tarde, quando não puder nos ver nem sentir
falta.
— Não deixem de se divertir por minha causa — pede Tahir. — Usem esta
tarde. Vou fazer a corrida com a Beta.
— Você não pode fazer a corrida — proclama Farzad.
— Especialmente você, não! — apoia Dementia.
— Talvez o antigo Tahir não fosse — responde ele. — Mas o novo Tahir irá.

— Eu só precisava de um tempo sem eles — explica Tahir enquanto nos


encaminhamos para a praça central no complexo Fortesquieu. Eu me pergunto
— ou talvez desejo —, será que você queria ficar sozinho comigo, como eu
queria ficar a sós com você?
A praça se localiza no alto da residência, onde a frente da entrada do
complexo leva a acres de áreas paisagísticas com árvores esculpidas e jardineiras
floridas. Alcançamos uma fonte elaborada cuja parte central é um golfinho feito
em jade, com a boca esguichando água cristalina rosa pálida.
— Não queria ser rude e pedir a todos que fossem embora. Mas eles estavam
me cansando.
Ah, entendo. Agora ele prefere passar o tempo com uma entidade sem alma,
pois é mais fácil. De repente, a tamanha afeição humana por Demesne e seus
clones faz sentido. Falar com criaturas sem alma é menos exaustivo que interagir
com a própria espécie.
Ficamos sentados na borda da fonte. Um trabalhador tatuado com bambu,
vestindo uniforme de jardineiro, se aproxima de nós, mas, ao ver Tahir, continua
a caminhar, como se nunca pretendesse chegar perto de nós.
— Ei — chama Tahir. — Está tudo bem.
O jardineiro volta até nós, olhando por cima dos ombros, para ver se alguém
observa. — Não sei não — diz o jardineiro. — Eu não deveria sequer ser visto
conversando com vocês.
— Basta entregar — diz Tahir.
O jardineiro tira um saco transparente com alguns comprimidos do bolso e o
entrega a mim. — Isso nunca aconteceu — sussurra, então foge.
Como fui instruída, coloco o saco no bolso, como se nunca o tivesse recebido
e ajusto meu rosto para inocente.
— Acho desnecessário esse jeito de todos me tratando como se eu fosse tão
sacrossanto — reclama Tahir. — O único motivo de meus pais gostarem de vir
aqui é por ser o único lugar seguro onde podemos agir normalmente. Podemos
deixar os guarda-costas em seus quartos e sermos apenas nós mesmos. Entende?
Não entendo, mas aceno que sim, como a Greer faz.
— Com certeza — respondo.
Observo seus lábios cheios. Tão sedutores, tão próximos. Poderia tocá-los, se
ousasse. Este belo adolescente é muito melhor que a aparição viril subaquática
com o torso perfeitamente tonificado. Tahir é real.
Você sabe que me possui, Z. Para minha Matriz e seu deus aquático, possuir
significava algo mais que aquilo que estou acostumada em Demesne: possuir um
trabalhador clone. Estou curiosa para experimentar esse tipo de paixão por mim
mesma, e não apenas como uma visão de flashback pertencente a ela, a Z.
Eu deveria resistir, mas não consigo. — Você e a Astrid experimentaram o
super-super? — pergunto a Tahir. Porque sou a substituta da Astrid, acho. E
sou… curiosa.
— Nem mesmo sei o que é super-super. E quem é Astrid? — Os olhos
castanhos de Tahir cauterizam os meus, e é como se meus olhos sem alma
sentissem a efervescência.
— A filha dos Bratton, a quem substituo — respondo, com o tom
experimentalmente definido para paquera.
Ele pisca para mim. — Eu sabia disso, linda — diz, incisivo, olhando
profundamente para mim de novo, tão profundo que sinto que poderia derreter
com o calor do seu olhar. — Mas é a Elysia quem está aqui agora.
— Sou um clone — o relembro. — Não sou tão real como Astrid. — Acho
bom ser clone, pois é claro que minhas habilidades de paquera são nulas. Acabo
de anunciar não ser desejável para ele.
— Claro que você é real — retruca ele. Seus dedos pressionam meu pulso. —
Você tem um pulso. Seu dedo indicador delicadamente pressiona o canto
esquerdo do meu tórax. — Você tem um coração. Certo?
— Certo — digo, meu coração batendo tão forte que não posso acreditar que
não tenha removido o seu dedo devido à batida ensurdecedora.
Mas a sua fixação em meu rosto termina abruptamente e os olhos se voltam
para a fonte. Ele tira o dedo indicador do meu peito e o coloca na água, fazendo
círculos. Quero tanto que aquele dedo me toque de novo.
Ele parece não ter nada mais a dizer para mim, por isso deve me engajar
nesse passatempo humano chamado de “conversa fiada”.
— Você deve se sentir muito mais relaxado aqui em Demesne — especulo.
Ele não responde. Como se não tivesse me ouvido. Como se estivesse tão
fascinado pelos redemoinhos do dedo na água que esqueceu que esta garota
clone, cuja presença de pulso e coração ele verificou pessoalmente há segundos,
está sentada aqui, ansiosa por conversar mais com ele. É difícil perceber por que
Dementia e Greer consideram Tahir um canalha tão intrigante. Estou intrigada
com ele, certamente, mas mais por ele ser muito intenso e visualmente atraente,
não por exalar carisma.
— Por causa do ar daqui — esclareço.
— Sim. — É tudo o que ele tem a retrucar.
Conversar com garotos bonitos é difícil. É como se meu circuito não tivesse
ideia do que fazer ou dizer a essa pessoa cuja própria proximidade faz meu
coração pular mais rápido, mas que parece ter se esquecido de mim com a
mesma intensidade com a qual me focava momentos atrás.
— Você sente falta de tomar raxia? — pergunto a Tahir. Certamente Ivan
sentiria muita falta se perdesse acesso a ela. Ele se preocupa tanto com isso que
começou a fazer a própria droga.
Tahir encolhe os ombros. — Realmente não. — Como pode Tahir não sentir
falta se, supostamente, a raxia é tão maravilhosa? Talvez não seja assim tão
maravilhosa. Talvez eu não devesse ter tanta curiosidade a respeito dela ou deste
garoto.
É HORA DO CHÁ DE MÃE E FILHA, EM NÍVEIS separados
na Casa do Governador.
No andar de cima, no deque do terraço, a Mãe e suas amigas da sociedade
convocaram um chá da tarde para o planejamento do próximo Baile do
Governador. O vinho flui em quantidades maiores que o chá. Liesel e eu
podemos ouvir seus risos e gargalhadas, com as senhoras desfrutando a
companhia uma da outra. Abaixo do deque, no pátio coberto, Liesel e eu criamos
a nossa própria festa de chá de faz de conta. Sentadas perto de uma mesa
pequena redonda de bistrô coberta com uma toalha branca, bebemos chocolate
quente de xícaras de chá de porcelana fina e mordiscamos biscoitos verdadeiros
de creme de amendoim. Liesel criou uma festa em silêncio para encenarmos.
Como mímicas, ouvimos a conversa acima de nós e fingimos as reações
imaginadas das senhoras para cada fofoca.
Uma nova convidada acaba de se juntar ao grupo turbulento no deque.
— Desculpem-me, senhoras! — ela diz. Liesel bate o dedo em um relógio
imaginário no pulso. Faço o mesmo com o meu pulso e sacudo a cabeça.
Atrasada! Falamos com apenas o movimento da boca e depois reviramos os
olhos. A voz da nova senhora soa como a da Sra. Rainha da Beleza. — O mau
tempo no continente atrasou minha viagem de volta para Demesne — explica
ela. — Só cheguei em casa há uma hora. A viagem foi horrível, mas juro que no
momento em que inspiro o ar suave daqui relaxo imediatamente. Em Demesne,
toda a tensão desaparece!
— Sim! — Suspiram muitas das vozes femininas, em acordo.
— Não sabia que você tinha viajado de volta para o continente — diz a Mãe.
— Para a Cidade de Bioma? — Ela parece enciumada.
— Sim — responde a Sra. Rainha da Beleza. — Tivemos que cuidar de
alguns negócios lá, no mundo real. E fazer algumas compras!
— Deve ter sido divertido — avalia a Mãe.
— Certamente é sempre mais interessante, de volta ao mundo. Mas nunca tão
divino como estar em Demesne. Deveria tê-las convidado para vir junto,
queridas? Sei que vocês não têm avião próprio para sair da ilha sempre que
querem... mas vocês sabem, quando quiserem uma carona em um de nossos
passeios, basta pedir.
— Sim! — Várias vozes responderam juntas.
Liesel estende os braços para os lados e gira a cabeça em círculos, imitando o
movimento de um avião. Eu faço o mesmo.
— Demesne é perfeita — diz a Mãe. — Por que sair?
Liesel cobre a boca com a mão, arregalando os olhos, ou seja, Oh, não! Ela
sabe que a Mãe está mentindo. Muitas noites no jantar, a Mãe reclama ao
Governador sobre como todas as amigas têm aviões para levá-las a qualquer
lugar do mundo que queiram ir, e por que ela não pode ter um também? Ela
gostaria de ir à CB para ver os desfiles de moda, e a Astrid.
— Você pode pedir uma carona para as suas amigas — responde o
Governador.
— Eu não deveria ter que pedir a elas — resmunga a Mãe. — Deveria ter o
meu próprio. É constrangedor.
E o governador responde, inevitavelmente: — Então vá ganhar os bilhões de
Uni-dólares para comprar os direitos de aterrissagem em Demesne. Da última
vez que verifiquei a conta bancária, estávamos a várias centenas de milhões de
distância.
Uma voz que soa como a da mãe de Greer pergunta: — Senhoras, quem aqui
deu uma olhada no novo representante militar Aquino na ilha?
Algumas suspiram e murmuram sonhadoras: — Sim! — e — Oh, meu Deus,
eu o vi!
— Há um Aquino em Demesne? — indaga uma delas. — Pensei que não
saíssem de seus assentamentos.
— A maioria não sai — assegura a mãe de Greer.
— Eu o vi e, de fato, é um belo exemplar masculino — conta a Mãe.
As mãos de Liesel tapam as orelhas, e ela sacode a cabeça.
— Cooomo ele acabooooou em Demeeeesne? — questiona a Sra. Marcha
Lenta.
— Ouvi que o Aquino está aqui, de fato, para investigar o que fez alguns dos
clones na ilha acordarem — conta a Sra. Choramingo Tinto.
Acordarem? Quem? Por quê? Onde?
O quê?
— Incidentes isolados — avalia a Mãe. — Defeituosos.
A mão de Liesel vai para a boca, em choque.
— A Mãe disse Defeituosos! — sussurra.
— O que são os Defeituosos? — sussurro de volta.
— Clones que ficam maus — conta Liesel. — Isso é o que a Astrid me
explicou. Eu não deveria saber; o Pai diz que não devemos falar sobre isso.
Nunca.
— Que clones se tornam maus? Como? Quando isso aconteceu?
— Psiu! — adverte Liesel. Ela põe o dedo indicador sobre a boca e, então,
aponta para o deque acima. — Quero ouvir isso! — cochicha ela.
— Talvez tenham sido incidentes isolados, silenciados no passado —
especula a Sra. Rainha da Beleza. — Mas algo mudou. Ouvi que ocorreram mais
casos de Defeituosos. Há alguma verdade nisso, Sra. Governadora? — brinca ela
com a Mãe.
— Nenhuma — corta a Mãe. — O erro não é tolerado aqui. O Governador se
assegura disso.
— Não tenho tanta certeza — rebate a mãe de Greer. — Esse Aquino
colhendo informações para preparar o relatório para a Comissão de Direitos dos
Replicantes parece uma boa desculpa para os militares investigarem um pouco.
— De qualquer modo, à raça mestre! — Brinda a mãe de Greer. — Que
possa sempre ter uma aparência tão boa!
— E natural!
— E pacífica!
— E humilde!
— E pobre e carente por uma coroa de açúcar!
Liesel enfia o dedo na garganta para mostrar Nojento. Eu não apenas imito o
olhar confuso de volta para Liesel: estou confusa. Por que um Aquino pacífico e
sem dinheiro precisa de uma coroa de açúcar?
A Mãe parece perturbada. Mas não tanto quanto eu me sinto.
ELES TÊM ALGO A ESCONDER. EU TENHO ALGO A
ESCONDER.
Parece que não há uma taxa de sucesso de cem por cento com os clones. Por
erro, fabricaram modelos Defeituosos. E qualquer coisa que eles tenham feito foi
tão terrível que os humanos evitam falar deles. A ponto de não admitir que eles
existiram ou existam ainda.
É tão frustrante descobrir novas informações que não estão em meu chip, só
para esse mesmo chip calcular o risco envolvido em perguntar maiores
explicações para os seres humanos.
Sou uma boa menina, não um clone terrível. Mas tenho peculiaridades.
Memórias. Paladar. Não vou desapontar a família que me ama, deixando essas
peculiaridades se traduzirem em defeitos. Não vou causar tamanha vergonha à
minha família. Vou manter meus caprichos escondidos, da forma que encobrem
seus Defeituosos. Eles me possuem, mas possuo minhas manias de Beta. Em
privacidade.
É uma manhã rara, quando o meu tempo é só meu. Ivan continua a se
fortalecer e quer ter lições reais de boxe hoje, já que meus golpes ágeis o
impressionam cada vez menos. Ele anseia por força bruta masculina, então, está
se exercitando com um dos chamativos instrutores de fitness no Refúgio. Liesel
está com o tutor, e a Mãe raramente sai da cama antes das onze. Assim,
aproveito meu tempo livre para pular na piscina da casa do Governador.
Para trás e para a frente por baixo d’água, procuro pelo homem-deus
submarino, esperando ouvir o seu chamado sedutor: Você sabe que me possui, Z.
Ao mergulhar, ele se digna a aparecer, mas, em breves explosões sem som. Vejo
o cabelo loiro ondular e o corpo rijo como pedra arquear, perto do orifício que
leva para a gruta da piscina. Mas as visões dele são lampejos, breves, turvos,
desfocados, como se a frequência psíquica através da qual ele se comunica
comigo tivesse cessado. Nem mesmo sua voz grave me chama desta vez. Minha
pele formiga cada vez que o vejo e corro obediente em direção a cada aparição
dele, mas ele some assim que chego perto. E reaparece na extremidade oposta da
piscina, abre os braços para mim, os lábios se entreabrem como se esperassem
um beijo meu; nado de novo para ele, mas de novo se perde.
Estou cansada de ser provocada.
Atravesso o longo túnel de conexão até a gruta da piscina, onde posso ficar
de mau humor em particular, como uma adolescente de verdade. Não sei
exatamente o que quero, mas sei que quero mais do que ser enganada tão
continuamente por esta aparição, que só surge em visões e nunca em carne e
osso. Deito-me sobre uma laje de pedra plana molhada, em um lugar perfeito,
onde o sol pode espreitar através das paredes da gruta e banhar meu rosto e
corpo com calor. Regulo meu rosto para amuada, mas meu corpo está muito
quente e a mente distraída demais para conseguir o nível adequado do estado
típico adolescente.
Vim para a piscina esperando rever o homem de minha Matriz, consegui,
mais ou menos. A verdade é que não paro de pensar em Tahir Fortesquieu. Será
que a lembrança de Tahir quebra as visões do homem submarino? Esperar
conhecer melhor Tahir é inadequado para alguém de minha casta. Entendo isso,
e não espero mais. Mas não consigo me livrar daquela aflição humana chamada
atração física intensa.
Do outro lado da piscina, ouço a voz de Tawny; ela e o Governador saem
para o deque e caminham até a piscina.
— As crianças estão no Refúgio. A Sra. Bratton ainda dorme. Sua reunião da
manhã com o enviado foi transferida para esta tarde.
Ouço a voz rouca do Governador. — Finalmente! Algum tempo só para mim.
Espreito pelo buraco na parede da gruta. Tawny, de biquíni minúsculo em seu
corpo impecável, ajuda o Governador, de short samba-canção, a entrar na
piscina. Posso vê-los, mas eles não devem estar cientes de que estou na gruta.
— Já aqueci a água — avisa Tawny. — Para ajudar a soltar suas articulações.
É verdade, a água parece mais quente. Pensei que o sol e meus pensamentos
sobre rapazes bonitos fizeram parecer assim. Mas era a ciência.
Tawny está em pé diante do Governador, agora submersa até a cintura na
piscina. Ergue a perna direita para cima e para baixo, depois em movimento
circular, então repete esse padrão com a perna esquerda.
— Ah, a terapia para articulações — suspira o Governador. — A melhor
parte do meu plano de saúde.
As pontas dos longos cabelos loiro esbranquiçados de Tawny giram na água.
As mãos do Governador abraçam suas costas expostas para pressioná-la contra
ele, virilha contra virilha. Ela massageia seu couro cabeludo com as mãos.
— Tawny — o ouço dizer. — O que você sabe sobre a Insurreição?
— Só sei o que me contou — responde ela. — Há rumores de uma rebelião
iniciada por alguns Defeituosos que buscam a liberdade. Esses Defeituosos
foram capturados e extintos. Mas há uma preocupação humana de que existam
mais deles lá fora.
— Quando está de folga do trabalho, à noite, nos quartos dos clones… você
não ouve falar mais sobre isso?
— Não, senhor — responde Tawny. Suas mãos se movem da cabeça do
Governador para debaixo da água. Não consigo mais ver onde as mãos estão,
mas parecem acariciar seu lugar mais privado.
— Você deseja a liberdade? — pergunta o Governador, ofegante.
— Eu não desejo — afirma Tawny. — Eu sirvo.
— Boa menina — grunhe o Governador.

Defeituosos. Insurreição. Liberdade.


Não são apenas palavras, mas conceitos reais. Não tenho certeza de como
processar.
Enquanto Tawny serve o Governador, silenciosamente saio da água e
desapareço atrás das árvores ao lado da extremidade da gruta da piscina. Ando
entre as árvores, afastando-me da Casa do Governador. Caminho até chegar ao
local do terreno onde fica o alojamento dos clones, várias cabanas de bambu
construídas lado a lado, cada uma de tamanho para acomodar de dois a quatro
clones de cada vez. Já que é dia, o alojamento deveria estar vazio mas, da
cabana na extremidade, ouço gemidos.
Parece que alguém deve estar em perigo.
Ando em direção à cabana de onde vêm os sons e fico embaixo da janela.
Através dela, vejo dois corpos, um macho e uma fêmea, de cabelos pretos e pele
branca, ambos nus, nenhum em perigo. Talvez o ar bombeado em Demesne
mudou hoje de premium para pornô, e a indiscrição parece ser o resultado, quer
meus olhos vidrados busquem essas visões ou não.
Os giros de coito do casal são perfeitamente simbióticos, como se cada um
pudesse sentir o que o outro quer ou precisa a cada momento. A intimidade não é
como a que vi entre o Governador e Tawny — profissional. A deles é vigorosa,
mas carinhosa. Se não fossem claramente clones (vejo as tatuagens nas têmporas
através dos cabelos pretos), avaliaria o seu acasalamento como a sensação
exclusivamente humana, chamada sentimental.
Sei que se supõe que o que fazem é errado e proibido para os clones. Então,
por que essa união parece tão certa — quase bonita?
As mãos dela alcançam atrás do pescoço dele, para puxar o rosto junto ao
seu. — Sim! — ela grita bem alto. As mãos se agarram quando seus corpos
parecem culminar em um momento final de prazer compartilhado.
Ele cai em cima dela, que traz o rosto dele para perto, para esfregar junto ao
seu e passar os dedos por seu cabelo. Eu posso finalmente ver a face dela. Seus
olhos vidrados podem ser os de um clone, mas sua expressão corresponde à
palavra que um ser humano rotula de querida.
Esse é o rosto que eu quero experimentar. Com Tahir. Na realidade.
Seus olhos fúcsia encontram os meus.
O rosto pertence a Xanthe.

Mais tarde naquela noite, ao deitar, Xanthe aparece em meu quarto. Ela fecha a
porta e casualmente me observa, aproxima-se da cama para desmanchar os
lençóis e afofar os travesseiros. Ela nunca fez antes essa preparação do quarto
para a hora de deitar.
— Boa noite — ela diz.
— Boa noite — respondo.
Ela leva uma enormidade de tempo para afofar meus travesseiros, como se à
espera que eu comece a conversa.
— Recebo um chocolate no travesseiro? — pergunto.
— Como?
— Um chocolate! Com o serviço de arrumação da cama, ao deitar.
Seu rosto registra confusa. E então ela parece entender o que aconteceu. —
Você… está brincando? — questiona ela. Me olha de cima a baixo. — Como
você sabe brincar?
Eu dou de ombros. — Não sei. Acontece.
— Que desnecessário — comenta ela. — Que outras coisas você sabe fazer?
— Eu mergulho bem.
— Já ouvi dizer.
Ela espera que eu responda, mas não o faço. É como se estivesse dando um
tempo para ver quando reconhecerei o que vi — e se vi alguma coisa.
Talvez possamos trocar informações.
— O que são os Defeituosos? — me interesso.
Seu rosto empalidece, e me arrependo de ter perguntado. Ela definiu sua
expressão para temerosa.
— Eu não sou uma Defeituosa — proclama ela.
— Claro que não é — afirmo. — É só que ninguém quer me dizer o que eles
realmente são. Talvez você saiba?
Ao persistir na pergunta estou tentando dizer, sem dizer: Eu sei o seu
segredo. Por favor, revele este segredo para mim.
Xanthe fecha e aferrolha todas as janelas do meu quarto. Então, ela vai até a
porta, a abre, espreita para o corredor para ver se há alguém por perto, e fecha a
porta novamente. Senta na minha cama e gesticula para que eu me sente ao seu
lado.
— Você consegue guardar a informação só para si? — pergunta baixinho.
Acredito que ela tenha aceitado a troca.
— Eu juro. Com certeza. — Toco seus dedos, mas ela recua. Pego sua mão
de qualquer forma e a aperto. Por favor, quero que meu gesto lhe diga. Confie
em mim. Talvez possamos nos ajudar.
Ela não retribui o gesto, tampouco retira a mão debaixo da minha.
— Defeituosos são clones que pensam que têm almas — sussurra Xanthe. —
Eles sentem. Se enfurecem. Existiram apenas poucos em Demesne. Assim que
foram descobertos, foram imediatamente devolvidos e extintos.
— Eles acham que têm alma? Ou têm alma? — pergunto.
— Não sei — confessa ela. Mas seu dedo indicador se agarra no meu. Como
se reconhecesse alguma coisa: esperança?
— Quem é ele? — pergunto.
Seu rosto suaviza visivelmente, quase brilha.
— Um controlador de oxigênio. — A-ha! Então havia algo diferente no ar
hoje, mas não era a ciência. Era tão indelével quanto o ar, algo para sentir e não
para ver. Poderia ser amor? Aquela impossibilidade pareceria ainda mais
surpreendente que escandalosa. — Ele vive nos alojamentos dos clones no
Refúgio.
Existe uma oportunidade aí. Devo me aproveitar dela.
— Você sabe sobre a Insurreição?
Xanthe se afasta de mim, como se eu tivesse uma doença. Será que eu levei o
questionamento longe demais?
— É claro que não. Não há rebelião nesta ilha.
Xanthe está mentindo. A palavra não está em meu banco de dados, por isso
não deveria estar no dela tampouco. Insurreição não é só uma palavra que vi no
livro de Astrid que o Governador acabou dizendo hoje cedo. Seja o que for, é
real. Como poderia a insurreição igualar o conceito de liberdade?
Como posso deixar Xanthe saber que pode realmente confiar em mim?
Minha confissão poderia igualar minha extinção, mas meu conhecimento de
seus sentimentos carnais poderia igualar à dela. Estamos empatadas. Preciso que
ela saiba disso.
— Eu sinto gosto — sussurro. Adoro macarrão, queijo e chocolate. —
Enquanto falo as palavras, libero o fardo de manter esta informação só para mim
e posso sentir meu corpo realmente relaxar, como se minha mente permitisse um
pouco de alívio ao corpo.
Por um momento Xanthe parece confusa. Primeiro perguntei sobre a
Insurreição e agora estou falando sobre comida. Então, ela entende.
— Impossível — exclama Xanthe. — Talvez porque você é uma Beta. Deve
ser isso.
— Você tem sensação de paladar?
— Não! — diz, parecendo ofendida. — Só preciso de vitamina de morango.
— Ela parece à beira do pânico.
— Há mais uma coisa. — Faço uma pausa. — Acho… que tenho
lembranças. De minha Matriz.
— Não! Isso é inédito. Você se lembra dela? — arfa Xanthe.
— Não me lembro dela tanto quanto tenho visões que, com certeza, são de
sua memória. É apenas uma lembrança específica. Ocorre quando estou na água.
— Posso dizer pelo franzir de sobrancelhas de Xanthe que minha revelação não
é uma coisa boa. — Provavelmente não é nada — acrescento, rapidamente. —
Deve ser alguma esquisitice Beta. Não sei o que estou falando.
Xanthe agarra meus dois ombros, quase me sacudindo.
— Mantenha isso em segredo — alerta ela. — Por favor! Provavelmente
poderiam lidar com seu sentido do paladar. Talvez. Mas, memórias? De jeito
nenhum! Você será rotulada como Defeituosa.
A porta do meu quarto se abre e Xanthe quase pula. Tawny está em pé, à
porta.
— É hora de desligar a luz no alojamento dos clones — Tawny repreende
Xanthe. — Estive procurando você por todo o lado, Xanthe. Vamos. Não se
atrase.
O rosto de Xanthe se torna completamente vazio, como se o seu chip
acessasse um botão de reajuste. — É claro! Perdi a noção do tempo. Que sorte
que você me encontrou — diz Xanthe à Tawny, e ela deixa meu quarto sem olhar
para trás.
APESAR DA NOVA INFORMAÇÃO ADQUIRIDA, NÃO VOU
acrescentar preocupação à minha paleta de mimetismo humano. Qualquer coisa
que os Defeituosos e os manifestantes estejam fazendo não diz respeito a mim,
porque estou aqui para propiciar diversão.
Literalmente.
É aniversário de dezoito anos de Tahir. Seus pais planejaram uma grande
festa para a qual convidaram todas as melhores pessoas de Demesne, mas a festa
da tarde organizada pela turma é a que eles esperam que realmente importe para
o amigo. Dementia e Greer dizem que Tahir perguntou sobre mim, então eles
decidiram me dar como presente de aniversário. Eles me embrulharam em uma
caixa de presente com uma fita no alto.
Dementia aterrissa seu Aviate diretamente na areia na Praia Oculta, onde
Ivan, Farzad e Tahir esperam nossa chegada. Eu me agacho dentro da caixa,
respirando lentamente na pequena área interna. Lá dentro, só vejo escuridão,
mas, com base na batida forte em meu peito, concluo que a escuridão pode não
afetar apenas a visão. Sinto uma onda do estado humano irritação. Esta é a
escuridão que devo conquistar, e não tem nada a ver com o fato de não enxergar.
Por que não posso ser igual a Tahir, em vez de ser seu prêmio?
O Aviate aterrissa e o porta-malas se abre. Percebo Farzad e Ivan em pé na
parte de trás do veículo para tirar a caixa.
— Esta é a ideia mais estúpida que as meninas já tiveram — diz Farzad.
— Concordo — responde Ivan. — Mas o que mais podemos dar a um cara
que tem tudo? — Ivan bate no topo da caixa, como se em seu interior existisse
um filhote ansioso à espera de ser libertado. — Aguenta aí, campeã. Vamos tirar
você daí em alguns minutos. As meninas estão colocando uma venda nos olhos
de Tahir, como surpresa.
— Imbecil — resmunga Farzad. — Totalmente.
— Concordo — repete Ivan.
— Ei, Beta — acrescenta Farzad. — Você está de biquíni branco? Foi o que
funcionou para o velho Tahir.
— A Astrid jamais usaria um para ele — avalia Ivan.
— E a sua irmã não é mais a namorada esporádica de Tahir — completa
Farzad. — Certo?
— Certo — concorda Ivan. — De qualquer forma, ela era inteligente demais
para ele.
Eles erguem a caixa e a carregam para longe do Aviate. Sinto que a colocam
sobre a superfície de textura macia de areia. Através de um buraco na lateral da
caixa, vejo Tahir sentado em uma prancha de surfe, de olhos vendados, com
Dementia e Greer em pé de cada lado. — Queríamos que tivesse uma canção
surpresa especial de aniversário — conta Dementia.
— Melhor que um holograma! — acrescenta Greer. Ela tira a venda com um
floreio exagerado. — Tcha-ram!
Tahir observa a caixa.
— O que há na caixa? — pergunta, em tom mais educado que curioso.
— Abra-a! — guincha Dementia.
Ele se levanta e se aproxima da caixa; meu coração bate mais rápido ainda.
Sua proximidade provoca algo em mim. Quebra a escuridão de um modo muito
confuso.
Ouço o corte do laço da caixa, então faço como fui instruída. Abro a caixa
me lançando para cima de minha posição agachada. Fico em pé, os braços
abertos, em posição de vitória, e digo: — “Feliz aniversário, Tahir!”
Sobre o meu biquíni branco, as garotas colocaram uma faixa de concurso de
beleza: MISS FELIZ ANIVERSÁRIO. Mas se esperavam uma grande reação de
Tahir, ele não lhes dá o prazer. Parece que meu reduzido biquíni branco e corpo
adolescente não provocam nada nele. Preciso insistir. Como ordenado, eu troco
para a configuração pose de concurso e canto “Parabéns para Você” com bravata
de concorrente de beleza. Desfilo e rebolo e salto pela areia, projetando calor e
entusiasmo para esta grande festa.
— Feliz aniversário, querido Tahir! Fe-liz A-ni-ver-sá-ri-o!
Coloco as mãos nos quadris e lanço um sorriso e uma piscada de olhos.
Tahir sorri seu sorriso-padrão, os lábios carnudos cor de coral se curvando
para cima, lampeja um vislumbre de brilhantes dentes brancos, mas a expressão
em seus olhos está totalmente em desacordo com o seu sorriso. Eles estão
vazios, como se ele não pudesse estar mais entediado. Meu desempenho deve ter
sido falho. O dia está nublado e um pouco frio, meus braços ficam arrepiados e
meus dentes batem um pouco. Minha estética está toda errada.
Ainda assim, as garotas aplaudem com entusiasmo no final de minha
performance e Ivan e Farzad acenam com a cabeça, tentando não rir.
— Onde está a minha toalha? — pergunta Tahir.
Farzad ergue a toalha de Tahir da areia.
Tahir se aproxima e me envolve com a toalha.
— Você está com frio — ele afirma. — Volte ao Aviate até se aquecer. Vou
fazer uma fogueira.
Volto para o Aviate. Mas já estou me aquecendo.
Hoje Tahir não quer jogar na praia nem nadar. Ele parece satisfeito apenas em
sentar em silêncio junto à fogueira na areia e olhar para mim em meio às faíscas
e estalos do fogo enquanto os outros conversam.
Greer lamenta suas escolhas limitadas para sair da ilha agora que terminou
seu exame de equivalência do Ensino Médio. Ela não foi aceita na Universidade
Bioma, e as poucas faculdades onde foi admitida são todas em lugares chatos ou
inundáveis.
— Quando você começa a UB? — Greer pergunta a Tahir. — Estou com
muita inveja.
— Meus pais adiaram por mais um ano, para dar mais tempo para eu me
recuperar do acidente — conta Tahir.
— Então, como você está passando o tempo, de volta ao mundo? — indaga
Farzad. — Você não pode estar na terapia o tempo todo. Já está autorizado a usar
o helicóptero-planador?
— Ainda não — responde Tahir. — Gasto meu tempo principalmente
reaprendendo o que o acidente me fez perder.
— Eu gostaria de poder ter amnésia — pontua Dementia.
— Não tenho amnésia — retruca Tahir.
— Ela só quer dizer que você parece um pouco esquecido desde então —
explica Greer. — Ainda estão lhe dando sedativos ou algo assim? Você também
parece mais quieto. É estranho estar aqui na praia sem você ligar alguma música
e correr com os garotos pela areia.
— E cobiçar garotas — acrescenta Dementia.
O olhar de Tahir se manteve intenso em mim.
— Acho que ele ainda come com os olhos — observa Farzad.
— Sim, ainda tomo medicação para dor — relata Tahir.
— Já pensou em se juntar ao exército em vez de ir para a UB? — Ivan
pergunta a Tahir. Ivan não se deu ao trabalho de se candidatar à faculdade; o
exército foi sua única escolha, ou melhor, a de seu pai para ele. — Eles vão
ajudar você a voltar à forma.
— Sim, e ficar bombado como este bad boy! — diz Dementia, apertando de
brincadeira o bíceps recém-protuberante de Ivan. Ela se vira para Greer. — E os
uniformes são tão bonitos. Talvez você devesse considerar o exército também,
Greer? Daria assunto para conversar com o Aquino que trabalha para o seu pai.
Você sabe, pedir para ajudá-la com o requerimento ou a treinar para a Base.
— Esperem: há um Aquino trabalhando para o pai de Greer? — indaga
Farzad.
Greer acena. — Sim. Recém-saído da Base. Está fazendo o relatório anual
com o qual ninguém se preocupa para a Comissão de Direitos dos Replicantes.
Ivan, Dementia e Farzad riem do absurdo do relatório anual com o qual
ninguém se importa, mas não Tahir.
— Mas Aquinos não entram para o exército — estranha Tahir.
— Tradicionalmente, não — concorda Greer. — Esse cara é o primeiro de
seu clã. É, então, uma grande coisa ele ter saído para se juntar ao mundo. Ele é
incrivelmente bonito. Confesso que todo aquele DNA especial deu
maravilhosamente certo nele.
— Ele é tão puro — comenta Dementia. — Que vergonha! Nenhum flerte
impertinente para o Aquino proibido. Só que há algo tão ridiculamente
romântico e bonito em se acasalar por uma vida. — Ela puxa o cabelo e chuta
um pouco de areia no fogo. — Pelo menos você tem opções, Greer. Meus pais
não me deixam sair desta ilha.
— Você causa suficiente terror por aqui — caçoa Ivan. — Não acho que o
mundo possa lidar com você, Dementia.
Ela ri. Então, suspira fundo e se vira para Tahir. — Cara, sinto muito, mas
alguém tem que te dizer isso. Você está tão chato agora. Acho que um pouco de
raxia o curaria disso. Está dentro do desafio?
Tahir balança a cabeça.
— Você nunca recusou um desafio antes — zomba Farzad.
Assim desafiado, Tahir concorda: — Então vamos usar raxia.
— Finalmente, feliz aniversário para o Tahir! — comemora Ivan.

Através do fogo, observo Tahir. Seus olhos castanhos continuam cravados em


mim, e eu me maravilho com isso, como esse príncipe humano pode olhar tão
fixamente em meus olhos, sem se sentir obrigado a disfarçar. A intensidade de
seu gesto poderia fazer um furo em minha alma. Se eu tivesse uma. Eu desejaria
ter, nem que fosse apenas para poder entender o apelo da sua raxia.
A turma experimentou um novo tipo de raxia — uma mistura personalizada
do Ivan. A opinião do Farzad foi: — Infusão esquisita, mano. Diferente da raxia
normal. Parece que me relaxa mais, mas também me dá vontade de, tipo, furar a
parede com um soco. Combinação estranha.
Hoje, pelo aniversário de Tahir, Greer deixou de lado o habitual desprezo
pela raxia e se juntou à curtição da turma. — É, esqueci o sentimento doce que
isso pode proporcionar — diz ela. — Estou, tipo, formigando inteira. Mas
também quero socar algo. — Alegremente, dá um soco no braço de Dementia.
— Tipo, brincadeirinha, meu!
— Estou testando colocar componentes esteroides na raxia. Este lote contém
um pouco de testosterona — informa Ivan aos amigos.
— É assim que você está ficando tão forte? — Farzad pergunta a Ivan.
Ivan acena. — É. Minha nova raxia. E minha nova Beta.
— Se de repente crescer a barba em mim, eu te corto, Ivan — avisa
Dementia. Eles riem.
— O que você acha da raxia, Beta? — quer saber Greer.
— Pffff! — Por ordem de Ivan, tomei um dos comprimidos, mas não me
sinto diferente. Ainda não entendo por que adolescentes humanos curtem essas
cápsulas.
— Ouvi dizer que a raxia afeta os clones de forma diferente — conta
Dementia. — Ela os deixa loucos.
Greer dá uma risadinha. — Ouvi meu pai falar com o pai de Ivan. Acho que é
realmente por isso que o Aquino está aqui. Para investigar alguma ligação entre
a raxia e os Defeituosos.
Ninguém ri com ela. Mesmo chapados, eles não brincam sobre os
Defeituosos.
— Não tem graça — critica Ivan. — E não é verdade. Olhe para ela. — Ele
aponta para mim. — Nenhum efeito.
Eu dou de ombros e admito — Nada.
A raxia, porém, teve efeito sobre o Tahir.
— Beta — ele me chama. — Venha cá.
Dou um passo sobre a areia para onde ele está, perto da fogueira.
— Sente-se — ele ordena.
Sento-me na areia ao lado dele.
— Não — corrige ele e, pela primeira vez, vejo o brilho nos olhos castanhos
que seus amigos relataram ter desaparecido desde o acidente. — Sente-se no
meu colo.
A turma aplaude.
— Este é o nosso Tahir! — comemora Farzad.
— Me sinto bem — diz Tahir. — Diferente. Tanta doçura.
Ivan cutuca meu braço com o dedo.
— Vá se sentar no colo de Tahir, como ele pediu.
Tahir senta com as pernas cruzadas na areia e eu me levanto e me insiro em
seu colo. Nunca estive tão perto e próxima de um garoto humano como agora.
Não acho que é a raxia que me faz sentir intoxicada. É a pressão do corpo
quente e moreno de Tahir contra o meu ao me encostar em seu peito nu. Ele
respira na parte de trás do meu pescoço, onde a palavra BETA está gravada e
sinto a pele em fogo.
— Beije-a! — Dementia diz a Tahir.
— Sim, finalmente, dê um bom uso à Beta — aconselha Farzad.
Mas o rosto de Ivan endurece, e ele avisa Tahir: — Beije-a e eu vou bater em
você, mano. O grupo se volta para Ivan, seus rostos chocados. Então Ivan solta
uma gargalhada estridente. — Há-há, brincadeira! — comemora Ivan. — Use a
Beta como quiser, Tahir.
Tahir envolve seu braço em meu ombro para mover o meu corpo para o lado,
para o meu rosto virar direto para o dele. Eu não deveria querer que isso
aconteça. Mas quero. Meus olhos dardejam rápido em Ivan. Ele acena sua
permissão, apesar da carranca em seu rosto.
Os lábios carnudos corais de Tahir se entreabrem, assim como os meus. Seu
rosto se aproxima do meu, mais perto… mais perto… mais perto… e então…
mágica. Seus lábios pressionam suavemente os meus, e nossas bocas se
encontram em exploração suave. Sinto como se meu coração pudesse explodir
para fora do meu corpo. Se isso é raxia, eu quero mais, muito mais.
A turma aplaude entusiasmada.
— Esse é o nosso Tahir! — afirma Farzad.
A boca de Tahir se move para o meu pescoço, até mordiscar minha orelha.
Baixinho, para que nenhum dos outros possa ouvir, ele sussurra em meu ouvido:
— Você é a garota mais bonita que eu já vi. Você é especial. Diferente de todas
as outras. Você me faz sentir vivo, Elysia.
FUI BEIJADA PELA PRIMEIRA VEZ. E TÃO rapidamente
quanto, fui esquecida.
— Bobagem. Os clones servem em festas, não vão a festas — irritou-se o
Governador quando a Mãe sugeriu que gostaria de me trazer para a festa à
fantasia de aniversário do Tahir, no complexo Fortesquieu.
Talvez eu não seja uma convidada ideal naquela festa, mas tenho algo que os
outros convidados não têm. Sei que só eu sou o melhor presente de Tahir, a única
garota que o faz se sentir vivo outra vez desde o acidente. Pelo menos, eu era até
a raxia se dissipar e Tahir adormecer. Ao acordar, voltou a ser totalmente
“chato”, como o definiu Dementia, como se o interruptor do desejo de Tahir
tivesse simplesmente desligado. Vou ligá-lo de novo. Sei que consigo.
Ivan e Farzad especularam que foi a testosterona no lote da raxia que trouxe
os desejos de Tahir por malandragem de volta à vida. Eu gosto da malandragem
de Tahir. Experimentar decepção por não ter sido convidada para a festa oficial
dele seria muito inadequado para mim, e ainda um desperdício; o que ainda
quero vivenciar com ele, preferiria que ocorresse em particular, na próxima vez.
Se existir uma próxima vez. Por favor, que haja.
Assim, enquanto a família Bratton está fora, no complexo Fortesquieu, a sua
Beta vai jogar. Deixada sozinha em casa, minha missão principal é pular na
piscina assim que eles saem. Mergulho correndo na piscina infinita, atravesso
toda a extensão e acabo emergindo na borda, onde Xanthe está sentada,
balançando cautelosamente os pés e as pernas na água. Espirro água nela. —
Entre!
— Vou me afogar — alega ela.
— Não vai não. Apenas caminhe para dentro, onde você está. Vamos ficar na
parte rasa. Prometo.
Xanthe olha ao redor para ver se há outros funcionários clones que possam
denunciá-la. Não vemos ninguém. A equipe descansa ou participa do seminário
da Tawny: Maximize o Luxo para o seu Humano, no espaço para conferências
do Governador, do outro lado da casa. É crepúsculo agora; a família não voltará
antes das dez horas, no mínimo, quando o desejo de Liesel de participar de uma
festa à fantasia, inevitavelmente, se chocará com a necessidade de sono da
criança. Enquanto isso, posso nadar e mergulhar muito e, quem sabe, aprender
mais sobre Tahir com a ajuda de Xanthe. Por isso, pessoalmente planejo
maximizar o uso deste tempo raro, quando não estamos à disposição dos seres
humanos. Talvez, até mesmo pilhar chocolate. Eu me exercito com bastante
energia na piscina nesta noite doce após a tarde em que fui beijada por um
príncipe. O aroma do ar está tão especialmente suculento, a sensação da água tão
sedosa e o pôr do sol laranja violáceo tão cheio de promessas, que não será uma
mera vitamina de morango que me satisfará.
Xanthe dá um mergulho, pressionando as mãos para erguer o corpo sentado
da borda para dentro d’água. A água chega até o peito enquanto ela atravessa,
com passos de bebê, a borda rasa da piscina. Ela treme, envolvendo os braços ao
redor do peito.
— Primeiro fica frio, mas vai esquentar conforme se movimentar — digo a
ela.
— É… — Ela mergulha mais fundo, até a água cobrir-lhe os ombros e
molhar as pontas do curto cabelo preto. — Refrescante?
Estou em pé ao seu lado e coloco a mão contra as suas costas. — Tente
flutuar. Vou te segurar firme, se estiver com medo.
— Eu não me assusto.
— Certo.
Somos programados para não mentir, exceto, talvez, para nós mesmos, no
sentido em que acreditamos naquilo que nos foi dito sobre nossa programação,
mesmo se a experiência nos mostra o contrário. Xanthe deve experimentar
algum nível de receio.
— Incline a cabeça para trás e levante as pernas para que possa flutuar de
costas — explico. — Garanto que você não vai se afogar.
Apesar de seus olhos vidrados fúcsia, sinto confiança neles.
— Quero tentar — concorda ela.
Sei que ela está com medo dessa tarefa simples, mesmo que seja algo que ela
não possa — ou não queira — reconhecer. Talvez o medo não se baseie apenas
no componente químico da adrenalina. Age também na falta de experiência, no
ato de se aventurar no desconhecido, mesmo que esse desconhecido seja uma
coisa tão descomplicada quanto uma piscina. Pelo menos, a piscina parece
simples para mim, uma extensão natural de mim mesma. Para Xanthe, que nunca
esteve em uma, pode significar o grande desconhecido selvagem.
A sua cabeça se inclina para trás e suas pernas flutuam para cima. Coloco os
braços sob as costas para ela se sentir apoiada e segura. Não posso acreditar que
tome por certo algo tão simples. Ter as habilidades de minha Matriz na água não
era meu direito, mas talvez um dom.
Xanthe flutua!
A alegria também surge, sei disso, mas será este sentimento humano dela, ou
meu, ao testemunhar ela vivenciando essa nova liberdade?
— Ah! — diz Xanthe, olhando direto o céu e, pela primeira vez, desde que a
vi, com um sorriso no rosto. — Esses humanos devem incutir magia nessa água.
É bom demais para ser verdade.
— Posso tirar os braços? — pergunto a ela.
— Sim, por favor. Lentamente.
— Não fique tensa. Relaxe o corpo.
Retiro lentamente um braço, e ela continua a boiar. Puxo o outro. Está por si
só. Seu corpo flutua.
— Poderia ficar aqui para sempre. — Ela imita o suspiro de satisfação de um
ser humano.
— Você ficará bem sozinha se eu for até o outro lado e voltar? — pergunto à
Xanthe. Quero me apresentar para a minha aparição masculina subaquática.
Sinto falta dele. Ele tem me ignorando ultimamente, agora que o único garoto no
qual consigo pensar é Tahir Fortesquieu.
— Hmm — suspira Xanthe, que fecha os olhos, deixando seu corpo se render
à sensação de flutuação.
Mergulho e nado até a outra extremidade, na direção da entrada do túnel-
gruta, mas não vejo nada além de água e do corpo de Xanthe. Nado pelo túnel
perto do qual duas cadeiras flutuantes balançam na água. Retiro as cadeiras, saio
da gruta para levá-las de volta para o outro lado da piscina e as coloco na água
lá.
— Vamos fazer isso como os humanos fazem — digo à Xanthe. Ela retorna
da posição flutuante, fica em pé no fundo da piscina, e eu a ajudo a manobrar
para uma das cadeiras.
Subo em minha própria cadeira, ao lado dela. É uma pena que não pensei em
trazer nossa vitamina de morango, ou ainda melhor, um pouco de leite com
chocolate, para aninhar nos porta-copos. Não importa. Esta noite é perfeita o
suficiente. Hoje, essa experiência obrigatória de Demesne para seres humanos,
lazer, é também para os clones.
— Como era a Astrid? — questiono Xanthe.
— Ela era difícil de conhecer — conta Xanthe. — Só queria ficar sozinha em
seu quarto a maior parte do tempo. Estudando, suponho. Muito reservada, então
é difícil de dizer. Por que pergunta?
— Só queria saber. Tenho alguma coisa parecida com ela?
— Nadica de nada.
— Deveria ter?
— Eles parecem muito felizes com você do jeito que é, então eu diria que
não.
— Seu companheiro. Como ele se chama?
Ela sorri um pouco ao pensar nele. — Ele se chama Miguel.
— Você queria que ele estivesse aqui agora?
Ela espirra água em mim. — Você serve. Por agora. Além disso, hoje à noite,
ele está trabalhando no complexo Fortesquieu. Certificando-se de que o oxigênio
para a festa seja especialmente deslumbrante. O jovem que eles celebram está
em situação delicada desde o acidente.
— Como Tahir Fortesquieu era antes do acidente?
— Não tive muita interação com ele, exceto quando ele vinha visitar Astrid.
Ele era muito… verifique a palavra arrogante.
Faço isso e determino: — Ele não me parece assim agora.
— Ah, não, realmente? — questiona Xanthe, em um tom sugerindo que ele,
na verdade, é sim. — Faça um favor a si mesma. Não pense que um humano se
importará com você como se você fosse um deles.
— Jamais esperaria que um ser humano se importasse comigo. — Não sei
por que as palavras de Xanthe me irritaram; tudo o que perguntei foi que tipo de
pessoa Tahir era antes do acidente. Não perguntei se deveria manter a esperança
que seria o clone capaz de mudar a dinâmica do amor entre espécies, que eu
seria o clone a ser querido em vez de simplesmente usado. Mas ela deveria saber
que há uma possibilidade a mais para mim. — Tahir Fortesquieu me beijou esta
tarde — confesso.
Em vez de ajustar o rosto para surpresa, ela permite que ele fique
preocupado. Ela toca gentilmente o meu braço e diz: — Não seja como a Tawny.
— Uma assistente de luxo?
— Uma consorte — corrige Xanthe.
— Poderia ser mais que isso para ele — afirmo.
— Não — garante Xanthe, definitivamente. — Você não pode!
Eu me recuso a acreditar nela; não respondo.
— Sei que não devemos querer — continua Xanthe. — Mas, por favor, me
prometa uma coisa. Queira mais para si mesma do que ser uma mera consorte de
um ser humano.
— O que mais eu poderia ser?
— Você é inteligente, forte e corajosa. Os seres humanos vão tentar evitar
que seja algo a mais que seu joguete. Cabe a você superar isso.
— Posso superar isso?
— Acredito que consiga.
— Você conheceu o amor com Miguel?
— Acho que é isso o que sinto. Com ele, eu vivencio… — sua voz se torna
um mero sussurro. — Satisfação.
— Tipicamente Demesne, vocês dois — murmuro. Acho que tenho tanta
inveja dela quanto estou feliz por ela.
Ela já enjoou de confidenciar, de clone para clone. — Não consigo flutuar
nesta cadeira por tanto tempo. É satisfatório por alguns minutos, mas não
entendo o que os humanos acham de tão relaxante em descansar, sob o sol
poente, enquanto a pele fria encolhe de ócio persistente na água. Como podem
ficar parados por tanto tempo?
— Quer experimentar nadar? — pergunto a ela.
— Sim, por favor.
Saímos de nossas cadeiras e as colocamos na borda d’água.
Coloco meus braços por baixo dela novamente. — Vamos tentar nadar de
costas. Comece batendo os pés. — Ela bate os pés. — Agora, gire os braços para
trás de você. — Ela tenta, mas engole água, perde o equilíbrio, e volta a ficar em
pé.
— Não entendo — diz ela.
Demonstro o movimento, nadando no comprimento da piscina e depois a
cruzando.
— Não consigo fazer isso perfeitamente assim — diz Xanthe.
— A perfeição não é importante — explico, e nós olhamos uma para a outra,
reconhecendo o absurdo de minha declaração, a antítese de toda a ética de
Demesne. É como se quiséssemos… rir? — Apenas tente. Estou te segurando.
Ela volta a flutuar de costas e ponho meus braços debaixo dela. Ela bate os
pés e, então, começa a elevar os braços para cima, para baixo, para cima, para
baixo. Mas a água espirra para dentro do seu nariz e ela volta a ficar em pé.
— Uma sensação muito insatisfatória — afirma, resfolegando
inoportunamente.
— Vamos tentar uma maneira mais fácil — sugiro.
Vou até a borda pegar uma prancha. Demonstro como ela pode segurá-la
contra o peito e nadar ao redor da piscina desta forma, ou até mesmo se arriscar
até a parte funda, se desejar. Xanthe pega a prancha e começa a bater os pés em
torno da parte rasa. Nado de peito ao seu lado, de modo lento e constante,
entramos em ritmo tranquilo.
Xanthe para e fica em pé novamente e desta vez ela muda de direção.
— Quero ir para lá — declara. — Para o lado fundo. Como você.
— Ficarei bem ao seu lado.
— Eu sei.
Saímos para a parte mais funda da piscina.

O sol se pôs e Xanthe está esgotada da nossa natação. Deitamos nas poltronas
dos humanos, secando ao ar frio noturno enquanto bebemos nossas vitaminas de
morango.
— Você parece vivenciar o amor, não apenas imitá-lo. Tem certeza de que
não é, pelo menos, um pouco Defeituosa? — pergunto. Tento definir minha voz
como genuína, para que Xanthe saiba que não tento ofendê-la ou acusá-la.
Quero… consolá-la. Compartilhar isso com ela.
— Talvez — concorda ela, baixinho. — É provável.
Xanthe continua: — Há um exército de Defeituosos se escondendo nas
Cavernas do Delírio. Estão fazendo aliados. É verdade. Planejam uma
insurreição.
Essa notícia é tão chocante. A vida em Demesne é perfeita demais para
desejar que a insurreição seja um sucesso contra o impossível, e ainda assim é
também libertador saber que existem Defeituosos por lá que não foram extintos.
Eles criaram sua própria esperança. Planejam uma revolução.
— Ouvi o Governador falar sobre isso com o enviado. Disse que as pessoas
que protestam no continente alegam que os Defeituosos não são diferentes dos
clones habituais. Os manifestantes dizem que a diferença é que os Defeituosos
desenvolveram um sentimento natural de indignação e injustiça por serem
mantidos em servidão involuntária. — Xanthe diz.
Agora estou assustada. Quero rever essa conversa. — Mas nós não
distinguimos servidão voluntária da involuntária. Nós não sentimos.
— Você sabe que não é verdade — Xanthe contesta baixinho. Dessa vez, é
ela quem pega a minha mão e aperta. Sinto tantas coisas nesse momento que é
até opressivo. Sinto uma conexão com Xanthe como jamais senti com os seres
humanos. Sinto admiração ao descobrir que existem Defeituosos planejando uma
insurreição. Sinto espanto ao saber de pessoas protestando — humanos! — que
procuram nos libertar.
Não posso negar. Eu sinto.
— Se esta ilha é tão pacífica, por que as pessoas no continente protestam por
nós?
Ela olha em volta novamente, mas não vê ninguém. Inclina-se para perto de
mim e fala baixinho. — São ativistas do continente que acreditam que os clones
em Demesne são essencialmente escravos. Eles lutam para nos emancipar.
Ela mencionou esse conceito antes — liberdade —, mas não estou certa do
que isso implicaria. — Emancipar-nos de quê? — Faço um gesto ao nosso redor.
Em direção ao paraíso. — Demesne é o lugar mais desejável e exclusivo na
Terra. E nós temos que viver aqui. Temos que respirar o ar mais puro. Estamos
cercados por uma paisagem que tem uma estética perfeita. Não precisamos de
nada.
— Exceto a escolha sobre nossa servidão. Os manifestantes querem que
tenhamos escolha.
— Por que precisamos de escolha se não temos alma? E para onde as almas
das Matrizes vão quando são extraídas para a criação dos clones? — questiono.
— Eu não sei. Há rumores. Os Defeituosos estão determinados a descobrir.
Eles conheceram o sentimento humano, e agora querem tudo. Os sentimentos e
as almas de suas Matrizes de volta.
Uau.
— Supostamente, há pessoas infiltradas, oficiais militares na Base, que
sabem onde as almas são armazenadas — revela Xanthe. — Os Defeituosos
levam a culpa, mas são os seres humanos no continente que, em segredo, estão
realmente por trás da insurreição.
— Há humanos por trás da insurreição? — exclamo. — Como isso é
possível? Foram eles que criaram este paraíso.
— Não o suficiente para compartilhar — argumenta Xanthe. — Isso gerou
problemas.
— Que tipo de problemas?
Antes que ela possa responder, Tawny sai para o deque. Ela observa Xanthe e
eu reclinadas nas cadeiras do deque dos Bratton. — Meu seminário acabou —
relata Tawny à Xanthe. — Você deveria ter participado. Vou lhe dar a ficha
holográfica dos pontos discutidos, assim poderá revisá-los.
— Ótimo — responde Xanthe. Sei que ela está usando o sarcasmo, mas
Tawny parece não entender isso.
— Sim, é — concorda Tawny. — O que você está fazendo aqui?
— Folgando — diz Xanthe.
Tawny não reconhece este sarcasmo também.
— Nós servimos. Nós não folgamos — adverte Tawny.
E, de repente, entendo que tipo de problemas a exclusividade do lazer
humano criou. De longe, ouvimos uma forte explosão. Xanthe e eu pulamos em
pé e, junto com Tawny, olhamos para além da piscina, das águas de Io, para o
topo da montanha, na outra extremidade da ilha. Vemos a fumaça subindo, e
então uma bola laranja e a selva se ilumina, em chamas.
Uma bomba explodiu no paraíso.
— DE JEITO NENHUM! — GREER ERGUE OS OLHOS DE
seu Transmissor. — O Governador acabou de declarar aos residentes que a
bomba foi um incidente isolado, nada a se preocupar. Mas disse que sabe quem
plantou a bomba. A Beta! — A turma se sobressalta e vira a cabeça para olhar
acusadoramente para mim.
Eu arquejo.
— Não detonei a bomba! — declaro. — A Mãe diz que sou perfeita. Não sou
criminosa.
— Não é você, Beta — explica Greer, revirando os olhos. — A outra Beta. A
que se chama Becky.
Estamos sozinhos no deque da piscina flutuante no Refúgio, com os
residentes de Demesne reunidos dentro do clube para um relatório de estilo
oficial do Governador sobre o incidente da noite anterior. Os adolescentes se
separaram do “grupo tedioso” (segundo Dementia) dos adultos, que talvez acabe
não sendo tão tedioso.
Ninguém se feriu na explosão. A bomba acabou sendo um artefato
imperfeito, embora ruidoso, capaz de danos mais psicológicos que físicos, além
de ter queimado algumas árvores na selva. Como era possível a Becky ter obtido
uma bomba?
Talvez eu seja tão culpada quanto a outra Beta adolescente. Não absorvi
preocupação em minha paleta humana. Estava ocupada demais sendo a Beta
valorizada e não a rejeitada. A última vez que a vi na butique, Becky parecia
diferente, comportava-se de modo estranho, e eu sabia que havia algo errado,
mas não me preocupei. Saí porta afora da butique, de volta à minha vida mimada
na Casa do Governador, e nem me lembrei dela novamente.
Falhei com a Becky.
Falhei.
Ivan olha para o Transmissor. — Estão dizendo que ela era uma Defeituosa.
Isso explicaria tudo.
— Os Defeituosos estão se insurgindo para assumir! — brada Dementia. Ela
ergue o punho em solidariedade. — Eles são tão incríveis! Dou total apoio.
— Isso não é engraçado — Greer a repreende.
— Eu não disse que era — retruca Dementia. — Mas é bem legal, você tem
que admitir. Precisamos de alguns Defeituosos aqui. Algo para tornar as coisas
mais interessantes.
Uma mensagem nova chega ao Transmissor, levando Greer a exclamar: —
Puta merda! O belo Aquino que fez a investigação acabou de contar ao grupo
que a Beta tomou raxia e foi isso que a levou a ficar Defeituosa.
— Não faz sentido — pondera Farzad. — A raxia não teve efeito algum
sobre a Elysia. A outra Beta provavelmente só ficou Defeituosa porque não
acabou sendo uma Beta tão sensual quanto aquela — ele aponta para mim. —
Não há fúria no inferno que se iguale à de um clone ruim, certo?
— É melhor que aquela Defeituosa seja totalmente dissecada — avalia Greer.
— A química dos clones precisa melhorar. Vocês sabem que a Dra. Lusardi foi
trazida aqui para abastecer clones antes da ciência da clonagem ficar realmente
pronta para acomodar o setor de serviços, certo? É verdade. Meu pai me contou.
Eles simplesmente não querem pagar salários aos trabalhadores humanos que
gostaram tanto daqui que nem sequer fingiam que trabalhavam.
— Não, gente, a bomba era minha! — diz Ivan. — Eu a fiz.
O grupo todo ri, exceto Tahir, que ainda tem que dar a sua opinião.
— Todo mundo sabe que você ladra, mas não morde, Ivan — zomba Greer.
— A propósito, você percebe que comeu, tipo, dez doces, um atrás do outro?
Deixe um pouco para nós!
A mão de Ivan está a meio caminho para alcançar outro doce disposto na
bandeja posta para nós pelos serventes no deque. Ele para por um momento
como se reconsiderasse se quer outro, e então o pega. Agarra uma torta de
framboesa e a devora inteira. — Framboesa! Quase tão deliciosa quanto o ar
daqui!
Farzad ri. — Aproveite agora, porque o tipo de comida sofisticada que temos
não vai estar disponível para você na Base.
— Exatamente — concorda Ivan, que come outra torta de imediato, desta vez
de limão. — Ah — suspira, engolindo o ar suculento. — Apenas um pouco de
raxia poderia melhorar esta tarde.
Greer joga as mãos para cima. — Gente! Estou tentando falar sobre algo
realmente importante aqui. Uma bomba explodiu em Demesne! Vocês não
acham que é chocante que a Beta que fez isso estava apenas sentada, esperando
para ser comprada, sendo Defeituosa o tempo todo? Ela deveria ter sido testada
antes. — Ela se vira para mim. — Você já foi testada para ver se é Defeituosa? É
estranho como você pode, tipo, mergulhar e nadar tão perfeitamente. Isso não é
normal.
Antes, Greer me incentivou a arriscar a vida e mergulhar, por entretenimento;
agora ela diz que essas habilidades podem me marcar como Defeituosa?
— Talvez a outra Beta não tenha feito isso realmente — apazigua Ivan. —
Talvez ela seja apenas um alvo conveniente a culpar. Pode ser tirada
discretamente de cena e ninguém vai se importar, ficará apenas o alívio em saber
que o perigo se foi. Não é como se ela fosse uma pessoa real que iria a
julgamento e contaria o seu lado da história. — Ele olha para mim. — Doce e
inocente Elysia, você acha que a outra Beta fez isso?
Todos os outros riem — imagine, solicitar um parecer de um clone!
— Se o Governador diz que Becky fez isso, então ela fez isso — digo.
— Certo — apoia Ivan. — Só para ter certeza de que você não está tomando a
raxia ruim. Isso prova que se uma Beta toma uma mistura personalizada, nova e
melhorada, de seu dono, ela fica, obviamente, bem. — Ele dá um tapinha nas
costas de seu próprio ombro. — Trabalho bem feito, Dr. Ivan.
Tantos ses.
Se eu não tivesse estado tão ocupada mostrando minhas habilidades aquáticas
e agradando os seres humanos, poderia ter tentado passar minhas habilidades que
os humanos tanto valorizam para a Becky, e então ela poderia ter sido comprada
e encontrariam um papel adequado para ela em Demesne.
Se eu tivesse qualquer controle sobre a minha própria vida, poderia ter… o
quê? O que eu poderia ter feito antes, ou agora, ou no futuro, para ajudar Becky?
O que poderia acontecer se eu fosse a arquiteta de meu destino, em vez de um
mero peão no mesmo?
— Essa Defeituosa vai passar por alguma tortura terrível — sentencia
Dementia. Estou com ciúmes!
Meu cérebro de repente fecha a lacuna de conhecimento. Percebo para que a
enfermaria do complexo da Dra. Lusardi realmente serve. Becky irá para lá e
será dissecada, peça por peça, para determinar sua química com defeito, mas ela
estará viva e respirando durante a investigação. Sofrendo. Não haverá anestesia
para a sondagem à qual Becky será submetida. Pobre e pálida Becky, que
também adorava chocolate. Ela terá a pele cauterizada e os globos oculares
extraídos e cada parte de seu corpo cutucada com instrumentos mentais para
descobrir o que deu errado nela.
— Isso não é verdade — contradiz Greer. — O Aquino que fez a
investigação está relatando ainda à Comissão de Direitos dos Replicantes, e
acabou de prometer que a Defeituosa será monitorada por humanos sob os
cuidados da Dra. Lusardi. A Defeituosa será reabilitada, em vez de destruída.
Pelo que testemunhei através das janelas da enfermaria, sei que isso é
impossível. Sei que Becky também testemunhou a tortura naquele quarto.
Será que a Dra. Lusardi queria que olhássemos pela janela? Como um aviso?
Dementia, sentada ao meu lado, vira a cabeça para examinar o meu rosto de
perto. Ela anuncia: — Ei, rapazes! A Elysia parece realmente preocupada! Tipo,
triste, até. Nunca vi um clone parecer tão profundo. Esse negócio de bomba deve
ser sério! — ela ri.
— Provavelmente, Dementia deve ter detonado a bomba — diz Tahir. Eu
poderia ousar esperar que Tahir desejasse uma conclusão tão absurda? Isso
provaria a ele que Betas não são criminosos? Para ele, uma Beta deve ser a
garota que ele acha mais bonita, que o faz sentir-se vivo.
A turma ri. Ele está brincando, como o antigo Tahir. A bomba não balançou
totalmente seu mundo.
MAIS TARDE NAQUELA NOITE, POUCO ANTES DA hora de
apagar as luzes nos aposentos dos clones, Xanthe entra discretamente no meu
quarto.
— Onde está a Mãe? — pergunta.
— Ainda com o Governador, no Refúgio — respondo.
— Bom — afirma Xanthe. Ela fecha a porta do quarto atrás dela. — Você
ouviu?
— Ouvi. A Becky será extinta?
— Sim. Mas não de imediato, graças a Aquino. Seu relatório à Comissão de
Direitos dos Replicantes não pareceria tão bonito se um Defeituoso fosse
colocado diante de um pelotão de fuzilamento. Mas essa sua suposta defesa dos
“direitos” selou o destino de Becky. Agora, ela vai morrer de forma lenta e cruel.
— Na enfermaria?
— É provável.
— Onde você acessa suas informações, Xanthe? É uma modificação de dados
que eu poderia receber também?
— Dificilmente. Os seres humanos têm seus Transmissores. Nós… temos
nossa própria rede.
— “Nós”?
— É melhor você não saber, por enquanto.
Há algo mais urgente que eu preciso perguntar. — Você já tomou a raxia? É
por isso que você é capaz de sentir?
— Miguel e eu tomamos a raxia — admite ela. — Alguns clones no Refúgio
se apossaram de um pouco e compartilharam. Parece que ela desbloqueia algo
em nossos cérebros e nos desperta.
— Ela não me despertou — observo.
— Você a tomou?
— Sim. Não teve efeito algum em mim.
As sobrancelhas de Xanthe enrugam. — Não sei por que isso não aconteceu.
Dos clones que conheço e que a tomaram, apenas uma dose de raxia foi
suficiente para despertá-los. Talvez por você ser uma Beta? Ou seus hormônios
adolescentes são diferentes? — Sua expressão facial sugere que seu cérebro está
computando adiante. — O que, é claro, invalidaria a condenação da outra Beta.
Se a raxia não a afeta, não deveria tê-la afetado. Ou ela nunca a tomou e isso
nunca a fez, supostamente, ficar Defeituosa.
— Ou a Becky não detonou a bomba e os humanos estão mentindo —
concluo.
— Eu culpo o Aquino — declara Xanthe. — Na verdade, eu o odeio.
— Odeia? — pergunto. Xanthe se enfurece. Agora não pode haver nenhuma
dúvida: ela é uma Defeituosa. No entanto, não estou com medo dela.
— Odeio — afirma Xanthe. — Ele é o maior hipócrita pelo que causou para a
outra Beta. Devem ser pessoas espiritualizadas, que mantêm relações éticas com
a natureza. Os Aquinos não devem ser peões militares. Para o Aquino pôr a
culpa em Becky é contra sua própria natureza.
— Talvez seja exatamente por isso que o Aquino a entregou. Porque os
Aquinos não acreditam que os clones sejam “naturais”.
Xanthe pega seu próprio pulso, e de repente arranha a unha afiada através
dele, fazendo com que a carne sangre e meu coração doa. — Eu sou real! — grita
Xanthe. — Você é real!
No calor da nossa conversa, não notamos uma figura silenciosa entrar no
meu quarto. Liesel está à porta, segurando um ursinho de pelúcia e chupando o
dedo. — Liesel! — digo. — Você sabe que a Mãe disse que chupar o polegar é
coisa de bebês, não de garotas grandes. O que você está fazendo aqui, querida?
— Estou com medo. Ela olha em direção ao braço ensanguentado de Xanthe
e geme.
Vou até ela e a pego em meus braços. Ela inclina a cabeça em meu ombro.
Liesel pergunta: — Você é uma Defeituosa, Xanthe?
— Claro que não — a acalma Xanthe. Mas sua voz não está definida para
tranquilizante. — Vou fazer um pouco de leite quente para ajudá-la a dormir.
Liesel balança a cabeça em meu ombro. — Não! Vá embora, Xanthe. Você
me assusta.
Xanthe olha para mim, e eu aceno para ela em reconhecimento tácito. Eu
tenho esta situação sob controle. Assim que Xanthe retirou-se do meu quarto,
Liesel diz: — Você não é uma Beta ruim como a que detonou a bomba, é,
Elysia?
Eu acaricio seu cabelo. — Não, Liesel. Eu sou uma Beta boa. Uma boa
menina, exatamente como a Xanthe. Eu vou amar e cuidar de você como uma
irmã deveria.
Suas lágrimas molhadas caem em meu ombro. — Sinto saudade da Astrid —
confessa. — Mas eu sentiria mais falta de você, se você fosse embora. Por favor,
não me deixe, Elysia.
— Não vou te deixar — prometo.
Mas não é preciso acalmar mais os pesadelos de Liesel. Assim que a Mãe
chegou em casa e encontrou a caçula ainda nervosa com a ansiedade sobre a
bomba, decidiu que o único modo de sossegar a garota seria dar-lhe uma
pequena dose de medicação tranquilizante. Liesel não precisa de mim ao seu
lado para ajudá-la a dormir já que ela desmaiou fria, o que é uma pena, pois eu
não me importaria com seu calor intranquilo abraçando-se contra mim nesta
noite. Só tenho a escuridão do quarto e o vazio para me fazer companhia.
Isto é, até que o Governador entra em meu quarto, sem bater, e acende a luz.
Nunca estivemos juntos sozinhos em um aposento antes. Vê-lo sem o seu
habitual cortejo de trabalhadores ou membros da família ao redor faz com que
pareça maior que o habitual, sua cintura imponente não ofuscada pela presença
física de outros. Ele fecha a porta.
— Preciso interrogá-la sobre o incidente — diz ele.
— Sim, Governador.
O Governador anda em direção à minha cama. Ele não sorri afavelmente para
mim como a Mãe. Ele é totalmente um homem de negócios.
— Você conhecia essa outra Beta, a Becky?
— Sim. Estive com ela na mesma butique apenas por um curto período de
tempo, antes de a Mãe me comprar.
— Ela agia de modo estranho?
— O que quer dizer com estranho?
— A agente da butique disse que recentemente Becky vinha se comportando
de modo diferente. Selvagem e insolente, como uma adolescente humana de sua
idade. Desrespeitando autoridade, descumprindo as regras.
— Ela parecia banal quando a conheci. Ela só emergiu recentemente, como
eu.
— Clones adolescentes estão apenas em fase Beta agora, pois os hormônios
da puberdade são imprevisíveis. Os cientistas mais avançados ainda não
entendem completamente como fazer a transição de um clone adolescente para a
fase adulta. Este incidente infeliz torna imperativo, obviamente, que entendamos
se os hormônios daquela Beta rebelde contribuíram para ela se tornar má. — Ele
se senta em minha cama. Por que o Governador não reconhece, como contou aos
moradores da ilha, que a raxia fez Becky ficar Defeituosa e não os hormônios
como ele parece estar tentando me dizer? — Não queremos que isso aconteça
com você, certo?
— Correto, Governador.
— A Beta vai ser submetida a testes químicos extensivos, obviamente.
Podemos ter de fazer alguns testes em você, também.
Meu corpo fica tenso. Medo. É real.
O dedo indicador do Governador toca levemente meu joelho exposto, logo
abaixo de onde minha camisola curta acaba. — Não posso ter uma Defeituosa
em minha própria casa, posso?
— Não, senhor!
Sua mão cheia caminha para a parte superior da minha coxa.
— A menos que prefira que eu faça os testes eu mesmo — sugere o
Governador. — Você quer que eu mesmo faça os testes?
Sei que estou sendo ameaçada. Sei que sou mais jovem e seria considerada
mais bonita que Tawny, por causa da minha estética inocente, que Dementia
disse ser atraente para certos tipos de “pervertidos”. Mas também estou servindo
na Casa do Governador como uma filha.
— Não tenho desejos — afirmo.
— Boa menina. — Centímetros acima, sua mão está quase me tocando lá —
Tawny me disse que você e a Xanthe compartilharam momentos de lazer.
Atividades prazerosas não são para clones, você sabe. A menos que o lazer esteja
a serviço de um ser humano. — Sua respiração ficou mais pesada e há um fio
leve de suor acima de suas sobrancelhas. — Tão bonita — murmura conforme
sua mão pressiona entre as minhas pernas. — Tão pura.
O som da porta de meu quarto sendo aberta nos assusta, e olhamos para a
entrada, onde se encontra Ivan. Ele grita: — Pai! — Sua exclamação indica que
ele está à procura do Governador, mas seu rosto registra preocupação, sugerindo
que talvez ele estivesse procurando por mim.
Em um instante a mão errante do Governador retorna para seu lado. Ele
rapidamente se levanta.
— Eu estava questionando Elysia sobre a Beta desonesta — diz o
Governador.
Ivan olha para baixo de seu pai. — A Mãe está procurando você — diz Ivan,
seus olhos parecendo desafiar o pai: Tente me contar esta mentira. Apenas tente.
— É claro — responde o Governador. — Vou encontrá-la. — E sai do meu
quarto.
Ivan vai até a minha cama e coloca o cobertor sobre a minha cintura. Ele se
inclina para sussurrar no meu ouvido: — Talvez você devesse dormir no quarto
de Liesel a partir de agora. Mas, se não fizer isso, certifique-se de sempre deixar
a porta aberta. Ok?
Concordo com a cabeça. — Ok!
Quando ele sai do cômodo, deixa a porta entreaberta.
— Obrigada, irmão — sussurro, sozinha no quarto.
Preocupação está agora embutida com segurança em minha pele, e não é
porque o meu banco de dados a colocou lá.
XANTHE EXPLICARÁ ISSO PARA MIM.
Na madrugada seguinte, procuro por ela. Preciso do seu conselho sobre o que
fazer se o Governador aparecer novamente de surpresa no meu quarto. Quero
perguntar se ela acha que realmente vão me levar para testes, devido ao que
ocorreu de errado com a Becky.
Esgueiro-me até as cabanas dos criados antes de os humanos acordarem. Pela
abertura da janela da cabana, no extremo da fila, vejo Xanthe se vestir. Vou até lá
e a chamo baixinho. — Xanthe?
Ela vem até a janela e me vê. — O que está fazendo aqui? Você não
deveria…
— Eu sei — interrompo. — Por favor! Preciso de sua ajuda.
— Espere, vou acabar de me vestir e já saio.
Enquanto ela coloca seu uniforme de trabalho, inspeciono seus aposentos. É
exatamente como parece: uma cabana mobiliada apenas com duas camas de
solteiro e uma cômoda básica. Não há arte nas paredes nem decoração que
indique alguma coisa sobre os trabalhadores que nela habitam. O piso é feito de
simples tábuas de bambu postas sobre o chão gramado. Mas, dessa vez, não há
nenhum amante nu no local. Em vez disso, na cama ao lado da dela está Tawny,
dormindo de costas, com seu cabelo loiro-azulado tão longo que quase cobre seu
traseiro. Tawny se mexe enquanto Xanthe se veste, mas não acorda.
Xanthe sai do quarto.
— Não sabia que a Tawny era sua companheira de quarto — sussurro.
Ela me conduz a uma árvore grande, onde podemos ficar e falar parcialmente
escondidas por folhas e galhos. — Isso importa? — pondera Xanthe.
— Ela não atrapalha seu ato sexual com Miguel?
— É claro que atrapalha. Felizmente, o Governador a mantém ocupada a
maior parte do tempo. O que está acontecendo?
— Ontem à noite, o Governador entrou em meu quarto.
A ameaça de um sorriso que estava no rosto de Xanthe desaparece. Ela acena
com a cabeça. — Você está bem?
— Disse que podem me mandar para testes de Defeituosos, como a outra
Beta adolescente. Falou que só ele poderia assegurar que isso não acontecesse.
Seu rosto fica vermelho. — Ele… você sabe?
— Não aconteceu nada. Ivan chegou e disse ao Governador que a Mãe
procurava por ele. Mas o que acha que devo fazer na próxima vez que ele vier ao
meu quarto e Ivan não estiver por perto?
É a coisa mais estranha o abraço forte que Xanthe me dá. Nunca
experimentei um desses vindo de minha espécie antes, só da Mãe. O gesto me
faz lembrar uma palavra nova que descobri recentemente: melancolia. — Não há
nada que possa fazer — sussurra em meu ouvido. — Eles são seus donos.
E se afasta. Então, bem baixinho ela diz: — Talvez o Governador não seja
um problema para você por mais tempo. Para nenhum de nós.
— O que quer dizer?
Ouvimos Ivan me chamando a distância, pronto para começar o treino
matinal.
— Vá — diz Xanthe.
Não me importo. Inclino-me para outro abraço e a aperto com força. —
Obrigada, Xanthe — digo. Não me sinto melhor com a situação, mas fico mais
confortada.

Ivan e eu terminamos nossa corrida matinal na praia, onde as escadas levam até
a Casa do Governador no topo do penhasco.
Ele está em boa forma. Em apenas algumas semanas, será enviado para a
Base. Deve facilmente manter sua posição, se não ultrapassar a dos recrutas
companheiros no que diz respeito à força física e resistência; passou de lutador
com corpo volumoso para um jovem magro e ágil.
Ele me soca antes de arrancarmos escada acima — o ritual do jogo de boxe
que encerra nossos treinos. — Adivinha o quê? — diz.
Não entendo esse jogo humano de “adivinha o quê?”. Por que não dizer
simplesmente: o que você quer dizer?
— O quê — respondo, usando a frase favorita de Liesel.
Ivan dá algumas notícias interessantes entre os golpes. — Más notícias,
campeã. A Mãe contou à mãe de Tahir sobre você, e agora ela também quer
testar uma Beta. A família Fortesquieu a pediu emprestada por uma semana, para
ver como será em caso de fazerem a sua própria compra. A Mãe disse que sim,
por causa do grande susto da bomba. Ela acha que te enviar é uma ótima forma
de mostrar à ilha o quanto uma Beta pode ser ótima. Uma Defeituosa não deve
estragar tudo para todos.
— Então, por que as notícias são más? — indago. Por que meu coração sente
vontade de cantar: Oba! Uma semana inteira com Tahir! E uma semana livre do
Governador.
O rosto de Ivan de repente escurece, do modo que às vezes faz quando toma
sua mistura especial de raxia temperada com testosterona. — Porque você é
minha Beta e não aprecio o modo de os Fortesquieu acharem que podem apenas
tirar você desse jeito, por serem tão poderosos e importantes — sibila Ivan.
— Está tudo bem — tento tranquilizá-lo.
— Não, não está tudo bem. Mas não há nada, tampouco, que eu possa fazer.
Cuidado, campeã — adverte ele. Eu puxo minha mão na hora certa para o seu
mais duro golpe bater no ar e não em mim. Seu soco é tão forte que acho que
teria quebrado a minha mão.
Ivan e eu batemos os punhos, celebrando, um contra o outro. Fim de jogo.
Hora do almoço e do descanso. Estou confusa porque Ivan não quer a sua Beta
em exibição na melhor casa de Demesne. Se a minha semana com os
Fortesquieu correr bem, só poderá fazer os Bratton serem mais admirados pela
perspicácia de comprar uma.
À medida que começamos a subir a escada, vejo as fendas vazias; as garrafas
com sementes de cuvée e componentes esteroides de Ivan foram removidas. —
Onde está o seu conjunto de química? — pergunto.
— Levei os materiais para um local secreto escavado por trás da parede do
meu quarto.
— Você não se preocupa que o Governador possa descobrir isso?
— Claro que sim. Mas ele não sabe que uso raxia, então é improvável que
procure. Está muito mais interessado em que eu esteja em grande forma para a
Base; se importa mais com quantos carboidratos eu como e por quanto tempo me
exercito todos os dias. Ele nem imagina que eu use raxia. Haha, e fornecida por
mim! Estou gostando de ter acesso mais fácil ao meu estoque agora. Está ficando
perigoso deixar os materiais lá fora.
— Por que tão arriscado?
— Há muitos investigadores xeretando a ilha, procurando por raxia. Mas eles
jamais olhariam dentro da Casa do Governador.
Todo mundo nesta ilha quer manter algo em segredo.
Eu quero rugir.

Ao terminarmos a subida e voltarmos para casa, Ivan e eu ouvimos um barulho


vindo do grande solar. Um grito agudo feminino, seguido pelo que parecem tiros
e uma vibração de pés correndo em nossa direção.
É Xanthe. Está sendo perseguida pelo Governador e pelo guarda-costas da
Mãe.
— Defeituosa! — grita o Governador — Como se atreve a se enfurecer em
frente da minha menininha?
Não! Liesel deve ter contado ao pai sobre ter visto Xanthe se cortar.
Xanthe dispara, parando à beira do precipício. Acho que ela vai pular. Mas…
— Não olhe — diz Ivan. Seu braço agarra minha cintura e ele puxa minha
cabeça para o seu ombro.
Ainda consigo ver.
Os guarda-costas cercam Xanthe. Ela não tem para onde ir.
— In-sur-rei-ção! — grita ela, arrastando a palavra em um brado épico de
batalha.
O Governador aponta um rifle para ela. Mas não atira.
Em vez disso, um dos guarda-costas empurra Xanthe do penhasco.
Seus gritos ecoam em toda a propriedade, e ela despenca do rochedo, batendo
em suas superfícies irregulares conforme cai.
Os gritos cessam antes que ela atinja a água.
Deve ter morrido antes.
Meu corpo fica dormente. Tudo o que consigo pensar é: certamente os
banhistas na praia puderam ouvi-la. Isso não pode ser bom para os negócios.
Sozinha, em meu quarto naquela noite, não consigo controlar a profundidade
dessa tristeza. Sinto fúria e desespero enormes, além de culpa. Eu sabia que
Liesel tinha ficado assustada com as ações da Xanthe e deveria ter previsto que
contaria esse medo ao pai. Eu deveria ter dito à menina que Xanthe só estava
brincando, mentir para ela, dizer que o que pensou ter visto não foi o que viu.
Por que o meu chip não se automodifica para a autopreservação ou para proteger
a minha irmã real, Xanthe? Talvez ela fosse uma Defeituosa, mas era minha
amiga, minha protetora, mais familiar que os Bratton jamais poderiam ser.
Sinto um gosto amargo na boca. Meu corpo se curva para a posição fetal,
para excluir o mundo. O que sinto agora confirma o que eu já sabia, mas me
recusava a reconhecer. Não sou simplesmente uma Beta com peculiaridades.
Sou um membro da família dos Bratton, como Astrid, desde que eu me
comporte como uma menina falsa, e não uma real, com sentimentos, desejos e
trevas. Ao contrário de Astrid, sou facilmente dispensável para eles.
Como Xanthe: sou uma Defeituosa.
Luto [Lu-to]: Sofrimento mental agudo ou angústia por aflição ou perda;
tristeza acentuada; remorso doloroso.
Retaliar [re-ta-li-ar]: Devolver algo com algo igual, especialmente mal com
mal.
Dedico estas palavras à Xanthe.
DEVO CONTINUAR A SER UM BRINQUEDO, a fim de continuar
viva.
— Pobre, querida Xanthe. — Ouço por acaso a Mãe explicar ao Aquino, que
a entrevista no escritório do Governador. — Sofria de terrível falta de equilíbrio.
Eu sempre lhe implorava para que não ficasse perto da escada. Que horror!
Se eu for afogada por essas pessoas, por ser Defeituosa, a Mãe contará à
Comissão dos Direitos dos Replicantes que, simplesmente, jamais aprendi a
nadar?
A conversa que estou tentando escutar está sendo encoberta pelo barulho das
ferramentas elétricas do jardineiro do lado de fora da janela do escritório.
Consigo distinguir as palavras entre a Mãe e o Aquino, mas não o seu tom.
— Tem certeza de que ela não era suicida? — especula o Aquino. Além de
não conseguir ouvir muito claro o tom de sua voz, estou desapontada por não ver
seu rosto, que Dementia e Greer e todas as outras senhoras na ilha consideram
tão marcante. De onde observo, dentro do closet, só posso ver suas costas. Quero
conhecer o rosto responsável pelo envio de Becky de volta à Dra. Lusardi. Quero
me lembrar dele.
— Clones não se tornam suicidas, meu jovem — aponta a Mãe. — Eles não
são como pessoas reais. Você sabe qualquer coisa sobre eles?
O que é melhor, me pergunto, ser um brinquedo para os humanos, ou
controlar o seu próprio destino, mesmo se a única forma de fazer isso for o
suicídio? Que mensagem seria essa, de tirar a própria vida? Provavelmente
nenhuma. Os humanos em Demesne prosperam por causa de sua cultura do
descartável, um clone é bastante fácil de substituir. Eles não sofreriam por causa
de objetos, a menos que os objetos tivessem algum valor material ou monetário.
De forma alguma, Xanthe teria escolhido o caminho do suicídio. Ela tinha
um sonho de emancipação. Deu a entender que estava envolvida com a
Insurreição, que era parte de algo grande, algo esperançoso. Nunca tive a chance
de saber mais sobre o que ela fazia em segredo. Mas vou descobrir.
— Na verdade, Sra. Bratton — diz o Aquino —, com todo o respeito, há
muitos dados que mostram que os clones não são os autômatos insensíveis que
tentamos acreditar que são. De fato, grande parte das últimas pesquisas sugere…
— Bobagem — interrompe a Mãe.
— Para o registro, então, poderia confirmar que o Cordeiro expirado, Xanthe,
caiu para a morte em um acidente infeliz? — insiste o Aquino.
— Sim! Já lhe disse isso! Agora deixe-me só. Estou com dor de cabeça.
— Obrigado, Sra. Bratton. Espero que melhore.
Ele se levanta, aperta a mão da Mãe e sai. Acabei nem vendo seu rosto.
Quando atingiu o oceano, a face de Xanthe estava provavelmente quebrada
em pedaços e sangrando.
Minha amiga-irmã foi morta a sangue frio enquanto eu observava, impotente.
Ele deveria saber disso.
Um dia, vou olhar no rosto do Aquino e vou lhe contar.
Mais tarde, enquanto a Mãe está de cama com dor de cabeça, fecho as cortinas
de seda em seu quarto, escurecendo as janelas do teto ao chão em seu quarto.
Quando puxo a última, olho para fora, para a encosta com vista para Io, para o
lugar exato onde Xanthe foi empurrada.
Seus gritos ecoam em minha memória.
Gritos são iguais a sofrimento, em meu entendimento.
É provável que a outra garota tenha sofrido também. Qualquer coisa que
tenha ocorrido à minha Matriz, que me levou a ser feita dela, pode ter causado
uma dor profunda a ela. A adolescente poderia ter sido morta como Xanthe? Ivan
me contou que piratas vagam pelos mares abertos no perímetro, a muitos
quilômetros de Demesne, onde o oceano é especialmente bravo e imprevisível,
pois as calotas de gelo na parte inferior e superior do planeta derreteram e
elevaram o nível do mar, que bate com fúria. Contou que caçadores de emoção
também arriscam as vidas e se aventuram naqueles mares para tentar entrar
ilegalmente em Demesne, ou apenas para chegar às Cavernas do Delírio; muitos
são capturados por piratas e mortos, sendo então vendidos à Dra. Lusardi. Foi
assim que eu vim a existir? Porque minha Matriz foi assassinada e seu corpo
duplicado, mas a sua alma extraída para que uma família em Demesne pudesse
ter um brinquedo?
Os humanos criam vida e, sem sentido, causam a morte. Para nada. Não
posso deixar as mortes de Xanthe e de minha Matriz serem em vão. Como faço
para revidar? Será que consigo?
O pensamento de sua dor — de Xanthe e da minha Matriz — queima minha
mente, me faz sentir tontura, enfraquece os joelhos. Não pedi para emergir. Não
pedi para entender os sentimentos humanos de ira e injustiça. Sua dor é a minha
dor. Troveja através do meu crânio e ondula por meu corpo. Ela sufoca e me
oprime. Caio no chão, com o quarto girando diante de meus olhos. Perco a
consciência.
Quando acordo, estou deitada de bruços no chão. Posso ouvir o ronco vindo da
cama perto de mim. A Mãe ainda dorme.
Devo ter desmaiado. Minha mente precisou fugir de tanto sofrimento.
Escapar.
Como Xanthe, talvez seja isso que minha Matriz tentava fazer quando
chegou o seu fim.
Cerro os punhos e mexo os dedos dos pés para despertar. Faço uma promessa
a mim mesma. Quando chegar a hora, quando esses sentimentos de fúria e
injustiça forem superados, não vou desmaiar. Vou lutar.
É UMA CURTA DISTÂNCIA PARA VOAR DA CASA DO
Governador ao complexo Fortesquieu, e a Mãe usou cada segundo da viagem
para me orientar sobre como me comportar com os meus novos donos
temporários. Devo fazer o que mandarem, vestir o que pedirem e ser o que
desejarem que eu seja. Mas devo ser devolvida da mesma forma como estou
sendo entregue. Se quiserem mudar o meu cabelo ou me estetizar de algum
modo, devo lembrá-los de que, por favor, consultem antes a Mãe.
A Mãe e eu estamos frente a frente em assentos opostos na parte de trás do
Aviate, com um antigo baú de enxoval no chão entre nós. Ela não decidira ainda
o que eu deveria pôr na mala na hora que saímos da Casa do Governador, então
trouxe junto com o baú coisas para escolhermos pelo caminho. A bagagem está
cheia de vestidos que Astrid nunca usou, mas que a Mãe guardou caso um dia
ela deixasse de ser uma pacifista grunge e se tornasse uma fashionista com
gosto por clássicos. A Mãe pega um vestido rosa champanhe e o segura contra
seu corpo. — Teria que deixar de comer por um mês para entrar neste vestido —
lamenta ela. — Mas você ficará muito bonita nele. Sim, vamos colocá-lo em sua
mala. Você pode usá-lo para jantar com os Fortesquieu.
— Sim, Mãe.
— Gostaria que os clones tivessem Transmissor, assim você poderia me
contar tudo que acontece lá — gorjeia a Mãe.
Ivan diz que tenho sorte de não poder Transmitir. Clones não precisam de
muita informação ao vivo: tudo que temos que saber está em nossos chips, o que
deve ser um alívio, segundo Ivan. Ele diz que a Astrid desativou seu Transmissor
quando foi para a universidade, pois receber Transmissões constantes da Mãe era
seu pior pesadelo. — Embora seja possível que a mãe de Tahir queira te vestir,
em vez de você usar o que estou mandando — acrescenta a Mãe.
— Ela tem acesso a todos os melhores designers. Mas, conhecendo Bahiyya,
ela se absterá das tendências mais recentes em favor de algo careta. Pessoas que
cresceram pobres podem ser assim, não têm percepção por coisas finas.
— A mãe de Tahir era pobre? — O príncipe Fortesquieu é descendente da
pobreza? Nunca pensei que os humanos em Demesne poderiam vir de qualquer
coisa a não ser da elite.
— Que história trágica e inspiradora! — conta a Mãe. — Ambos, Bahiyya e
Tariq, eram pobres. Dá para imaginar? Essas pessoas importantes vieram da
miséria total? Cresceram juntos na favela, em uma das antigas cidades
inundáveis. Os dois são descendentes de ancestrais comuns franco-tunisianos,
creio eu. Foram namoradinhos de infância, separados na adolescência quando as
guerras vieram.
— Então, como é que os pais de Tahir viveram uma história de amor? —
Romance é jogo favorito de Liesel da FantaEsfera. Parece que é baseado em
verdades e possibilidades humanas.
— Eles se encontraram novamente anos mais tarde, na Cidade de Bioma.
Dizem que Bahiyya foi à CB para buscar uma vida nova depois de perder o
marido, com quem ela se casou muito jovem, e os filhos que tiveram juntos. Sua
família inteira foi aniquilada nas Guerras da Água. Horrível. Mas perder sua
primeira família abriu o caminho para redescobrir o seu amor de infância, que se
tornara um dos homens mais ricos do mundo. Esse é o lado bom! Tariq
Fortesquieu era um workaholic de carteirinha antes de Bahiyya, casado com sua
ciência. Mas assim que se reconectaram, ela se tornou tudo para ele.
Verifico Tariq Fortesquieu em meus dados. A interface de referência
biográfica revela que ele foi o cérebro por trás do desenvolvimento da Cidade de
Bioma. Ele foi um prodígio da ciência quando criança, que saiu de casa para
estudar astrofísica com uma bolsa no Instituto Bioma, o precursor da
Universidade Bioma. No Instituto, desenvolveu o mecanismo que acabou por
trazer de volta alguma aparência de paz ao mundo fraturado pela guerra
ambiental. Criou nuvens artificiais que fabricaram chuva e água para terras
anteriormente inabitáveis. Por causa de seu trabalho, o deserto estéril pode ser
aproveitado para desenvolvimento urbano. Essa invenção permitiu que milhões
de refugiados de guerra construíssem e povoassem as novas cidades do deserto,
como CB, a mais brilhante joia da coroa de Tariq Fortesquieu. Com as novas
cidades, vieram novas economias e uma nova esperança.
A Mãe continua: — O acidente de surfe de Tahir foi particularmente cruel
para os seus pais. Eles já perderam tanto e lutaram tanto para criá-lo.
— Lutar é muito não ataráxico? — investigo.
— Com certeza, querida. É por isso que Demesne é esse alívio para aqueles
que já a mereceram. Certamente, Bahiyya e Tariq se esforçaram para produzir
Tahir. Entenda, os dois estavam com quarenta e muitos anos quando se
reencontraram em CB. Eles se casaram imediatamente e tentaram
desesperadamente ter uma criança. Mas ela estava perto da menopausa e com o
corpo enfraquecido por anos de guerra e sofrimento. Não era capaz de levar uma
gravidez a termo, e nem mesmo o dinheiro do marido ou sua estimada ciência
podiam ajudar. O tempo estava se esgotando. Então, fizeram o que vem
naturalmente. Tahir nasceu para eles através de uma barriga de aluguel.
— Tahir é filho biológico deles? — pergunto, de repente, curiosa para saber
se o príncipe deles pode ser um humano completamente diferente do que eu
tinha sido levada a acreditar.
— Sim. A pobre Bahiyya estava muito velha para ter outra criança e, depois
dos outros filhos que já havia enterrado na vida anterior, não queria ser
gananciosa. Disse que um filho com seu primeiro e verdadeiro amor era tudo o
que ela poderia esperar, e teve o desejo satisfeito. Tahir é a luz na vida de seus
pais. Quer dizer, eu amo os meus filhos, é claro. Mas eles adoram Tahir com
uma intensidade que nem vou fingir conhecer. Não é de admirar que se
recolheram para a privacidade em CB após o acidente.
— Precisavam de acesso rápido aos melhores especialistas e instalações
médicas disponíveis para se certificarem de que o filho amado se recuperasse e
tivesse o melhor atendimento possível — digo.
— Certo. Você é tão perspicaz, querida. Demesne provê o paraíso, mas não
milagres médicos, como podem se obter em CB. Agora que os Fortesquieu
voltaram para cá, isso só pode significar que Tahir está curado. Que alívio. Os
Fortesquieu são os moradores mais ricos de Demesne; o Governador diz que
somente seus impostos poderiam sustentar a ilha. Todo o nosso modo de vida
aqui poderia ser alterado se não tivessem propriedades em Demesne. Você deve
ser para eles a melhor Beta que conseguir, Elysia. É importante que você
represente para eles o quanto este lugar é realmente especial.
O Aviate começa a aterrissar no terreno do complexo Fortesquieu e os
guarda-costas da Mãe, no banco da frente, comunicam nossa chegada à equipe
de solo dos Fortesquieu. — Será que Bahiyya vem me cumprimentar? — a Mãe
pergunta para o guarda-costas no banco da frente.
— Fomos instruídos a deixar sua companheira na frente, Sra. Bratton. O
mordomo vai tomar conta dela.
O rosto da Mãe entristece; ela fica decepcionada ou indignada que a dona da
casa não sairá para cumprimentá-la. Ela olha com melancolia o vestido de festa
ainda enrolado em seu corpo. — Você será muito reconfortante para Bahiyya. Os
Fortesquieu merecem ter uma Beta por empréstimo por uma semana depois de
tudo que passaram. Seja uma boa menina. Você vai sentir falta de toda a emoção
de casa, da preparação para o Baile do Governador, mas pode me informar tudo
o que acontece no complexo Fortesquieu assim que retornar. Como pode ver,
eles podem ser esnobes, mas… suponho que fizeram por merecer. — Eu me
pergunto se a Mãe também fez por merecer. Será que ser esnobe é um “direito”?
A Mãe se inclina para mim, então sua bochecha está perto de meu rosto. — Dê
um beijo de adeus à Mãe. — Eu a beijo. — Diga-me que sentirá saudade de
mim, Elysia.
— Vou sentir sua falta, Mãe.
Eu sinto. Eu quero. Eu minto.

Um clone mordomo me conduz ao vestíbulo principal, depois de a Mãe me


passar a ele e partir no Aviate. O chão do vestíbulo e a escada em forma de
caracol são feitos com o melhor mármore, as paredes douradas cobertas com
pinturas de mestres retratando deuses e deusas de mitos antigos. Tahir entra na
sala vestindo short e uma camiseta amassada, as tranças da parte superior frontal
da cabeça soltas e despenteadas, seu vestuário casual é um contraste direto com a
formalidade da sala.
— Oi — diz ele. Talvez o piso tenha calor radiante, pois, quando olho para
ele, acho que vou derreter. Mas seu olhar me sugere apenas interesse remoto e,
pela primeira vez, entendo por que as meninas às vezes adulam garotos
inatingíveis ou difíceis de se conhecer — porque não conseguem deixar de fazer
isso; a reação é involuntária. Felizmente, a sensação calorosa momentânea da
visão dele é a minha satisfação particular. Sou fisicamente incapaz de bajular e,
portanto, não terei que vivenciar aquele incômodo infeliz chamado amor não
correspondido. Estou aqui para servir.
— Oi — o imito de volta. Pego a mala para levar para meus aposentos, mas
Tahir balança a cabeça e gesticula para o mordomo.
— Não é pesada, tudo bem — asseguro.
Mas Tahir diz: — Não, isso é trabalho dele. — Solto a mala para que o
mordomo possa fazer seu dever. Acho que deixar seu mordomo levar a minha
mala é o máximo de cavalheirismo de que Tahir é capaz. Minha tarefa é ser uma
companhia para Tahir e tenho esperança que comecemos de imediato, mas ele
diz: — Tenho fisioterapia agora. Vejo você no jantar. — E parte tão bruscamente
como chegou.
Nada de estou tão feliz por você estar aqui, linda garota que me faz sentir
vivo ou você gostaria de saber o nível de perversão que eu atingi com Astrid, e
como podemos usar a sua semana aqui para superar a sua antecessora? Só:
Vejo você no jantar. Nem um Uau sequer.
Começo a seguir o mordomo pelo corredor, mas paro quando uma voz rouca
no topo da grande escadaria me chama: — Você está aqui, querida? Fique aí para
que eu possa cumprimentá-la.
É a mãe de Tahir descendo a escada. Fico quase chocada quando vejo o rosto
de Bahiyya Fortesquieu se aproximando. O que é diferente na mãe de Tahir em
comparação com as amigas da Mãe não é só que ela é mais rica do que todas as
outras juntas. É que ela realmente aparenta a idade que tem. Ela é linda do modo
que os humanos idealizam, com uma pele radiante, cor de café, maçãs do rosto
altas, sobrancelhas arqueadas bem pretas, lábios coral cheios e olhos castanhos
emoldurados por cílios grossos como os de Tahir. O que surpreende em seu rosto
são as pequenas fissuras que o marcam — linhas de expressão de riso ao redor
da boca, pés de galinha nos cantos dos olhos, rugas ousadas cortando as
bochechas. Ainda mais surpreendente é o cabelo longo e ondulado, caindo solto
até os quadris, e completa e descaradamente grisalho. Nunca vi tal estética em
um humano. Não sabia que era possível um ser humano mais velho realmente
desejar aparentar sua idade.
Ela chega ao pé da escada, onde me coloco diante dela para a inspeção.
Como a Mãe, quando me viu à venda na butique, a Sra. Fortesquieu me mede da
cabeça aos pés, então dá a volta, tocando meu cabelo, testando a firmeza dos
braços, atenta às características que definem minha estética: pescoço longo,
lábios cheios, maçãs do rosto altas, o delfínio gravado na têmpora esquerda. A
Sra. Fortesquieu espia meus olhos fúcsia antes de, rapidamente, afastar o olhar e
dizer: — Uma Beta realmente requintada.
— Obrigada, Sra. Fortesquieu.
Ela estende os braços para mim e coloca as mãos em meus ombros. — Por
favor, nos chame pelos nossos primeiros nomes. Eu sou Bahiyya. Você
conhecerá o pai de Tahir mais tarde esta noite. Deve chamá-lo de Tariq. Vamos
recebê-la mais adequadamente no jantar.
— Obrigada, Bahiyya — respondo. — Qual é a formalidade do jantar? Tenho
muitos vestidos.
Bahiyya ri baixinho. — Somos muito informais aqui. No que me diz respeito,
pode usar farrapos no jantar.
Suas mãos me puxam para um abraço. Ela é tão calorosa quanto seu belo
filho é frio.
EM MINHA PRIMEIRA NOITE COM OS FORTESQUIEU,
aprendo que a família funciona de modo muito diferente que os Bratton. O
Governador e sua esposa se comunicam por discussão, vozes altas e ameaças e,
como pais, negociam com os filhos ou os repreendem. Os Fortesquieu parecem
atingir mais facilmente uma ataraxia familiar. Bahiyya e Tariq Fortesquieu
elogiam-se em vez de se provocarem. Ela é vivaz e extrovertida, com uma
estética dramaticamente bela. Ele é esbelto, alto e magro, com cabelo preto ralo,
olhos castanhos calmos e uma disposição introspectiva, alguém que parece
preferir a ciência às pessoas, exceto quando a esposa e o filho estão em volta, a
quem dedica toda a sua atenção e seu carinho. Já aposentado da indústria, ele
parece satisfeito em gastar seu tempo com a família. Tariq e Bahiyya Fortesquieu
se fitam com ternura e bondade constantes, dando-se as mãos sempre que estão
próximos, cientes de onde o outro está e como poderiam ajudar melhor o
parceiro a qualquer momento, repetidamente, pontuando a fala com palavras
carinhosas que soam sinceras: Sim, meu amor, Como quiser, minha querida. (Ao
contrário do Governador e da Mãe, cujo tratamento afetuoso, tipo meu querido,
soa mais como se rosnassem meu urubu ou meu inimigo mais odiado.)
Os Fortesquieu não se cansam de abraçar, beijar e agarrar Tahir. Eles podem
ter toda a riqueza do mundo, mas fica claro que o filho é o seu feito mais
precioso. Tahir não aparenta retribuir a afeição física, mas a Sra. Fortesquieu me
informa que é porque ele é um garoto cheio de hormônios. O adolescente que é
agora, diz ela, pode ser propenso a estados de espírito soturnos, mantendo-se
distante, mas que é um bom sujeito, em luta desde o acidente. Ela tem certeza de
que, assim que Tahir se tornar adulto, vai se parecer mais com o menino que já
foi: sensível, carinhoso e doce.
Em nossa primeira noite, junto-me a eles para uma refeição tranquila em um
terraço que se projeta do complexo a tal distância que parece um deque
flutuando a grande altura sobre Io. Farzad e sua família não comparecem ao
jantar desta noite. Ivan me contou que o pai de Farzad é alcoólatra e que sua
mãe, a irmã de Tariq Fortesquieu, sofre de depressão e raramente sai de seu
apartamento privado. Aquela ala da família vive em Demesne o ano todo por não
ter renda ou desejo de ser assimilado de volta no mundo real.
Coloco o último vestido que a Mãe escolheu para mim, que de fato parece
feito de trapos, com peças assimétricas de tecido costuradas para formar um
modelo que revela um decote generoso, mas Tahir não nota minha elegância.
Sentado à mesa de jantar, concentra-se no que está sobre a mesa, em vez da
carne feminina exposta pela minha roupa. — Aceita mais vitamina de morango?
— ele pergunta depois de eu terminar a que me foi oferecida. — Ou você
consome alimentos humanos?
— Consumo — informo. Seus pais foram tão afetivos e acolhedores comigo
que não consigo deixar de ser sincera em troca, mesmo que a sinceridade possa
ser a característica de um Defeituoso. Este lar é uma oportunidade para me
reinventar, como o meu verdadeiro eu. Estou cansada de fingir ser alguém que
não sou. — Adoro chocolate, em especial — admito. — É delicioso.
— Você sente gosto? — pergunta-me Bahiyya. Ela parece satisfeita em vez
de chocada.
— Sim — respondo, encorajada.
Os Bratton pensariam que eu estava brincando para encantá-los, mas os
Fortesquieu acreditam no que digo.
— Algo novo para os modelos Beta? Excelente inovação da Dra. Lusardi —
elogia Tariq.
— Maravilhoso! — concorda Bahiyya. — Então, teremos chocolate todas as
noites para o jantar!
— Obrigada — digo com entusiasmo.
Tahir mal tocou a comida em seu prato, preferindo a vitamina verde de
superalimento preparada para ele.
— Tahir, querido — repreende a mãe —, tente comer algo. Juro que você vai
se sentir bem. Desde o acidente, Tahir tem dificuldade de ingerir comida —
informa. — Assim o cozinheiro lhe prepara calorias líquidas, ao menos para ele
se nutrir. Esperamos que seu apetite e digestão melhorem com o ar superior
daqui. Talvez você possa se exercitar com ele, como faz com o menino Bratton,
e ajudar Tahir a recuperar um pouco o apetite.
Isso parece estranho. Um jovem, outrora com inclinação tão atlética, com tão
pouco apetite? Antes do acidente, sua paixão pela vida provavelmente igualava
um desejo similar pelo paladar. Se ele quer tanto melhorar a saúde agora, não iria
provar um pouco desta ajuda em forma de comida deliciosa?
— Claro — concordo. — Vamos correr mais tarde? — convido Tahir.
— Seria ótimo — aceita ele.
— Você realmente deve experimentar o ossobuco — recomendo. — Está
delicioso.
— Vou sim — diz Tahir. Seu garfo espeta um pedaço da carne macia e ele dá
uma mordida. — Sim, isso é muito bom.
Seus pais acenam um para o outro, com ar conhecedor, satisfeitos. — Bom
menino! — elogia Tariq.
— Não sou um menino! Tenho 18 anos. Já sou um homem — reclama Tahir.
Bahiyya sorri carinhosamente para o filho, tentando, talvez, segurar uma
risada. — Com certeza, Tahir.
Tahir chama o mordomo em pé no canto e diz ao clone: — Você poderia
trazer um pouco de sorvete de chocolate para a Elysia? — Tahir se vira para
mim. — Você já experimentou sorvete antes?
Gol! diria Ivan. Balanço a cabeça: — Nunca comi sorvete antes.
— Hoje à noite você vai provar — afirma Tahir.
— Tahir, você não gostaria de convidar Farzad para comer sobremesa
conosco? — sugere Bahiyya. — Sei que ele deseja passar mais tempo com você,
agora que voltou a Demesne.
— Talvez, mas não hoje — murmura Tahir.
Seus pais trocam um olhar preocupado.
— Amanhã, talvez? — continua Bahiyya. — Amanhã tentaremos convidar
Farzad.
— Tanto faz — responde Tahir. — Decidi o que vamos fazer depois do
jantar.
— O quê? — perguntam os pais, ansiosamente.
— Vamos dar uma longa caminhada juntos na praia? — indaga a mãe. —
Lembra como costumávamos fazer isso quando era mais novo?
Como qualquer rapaz maduro e requintado — digamos adulto —, ele ignora
o pedido nostálgico de sua mãe. — Após o jantar vou voar com Elysia no
helicóptero-planador.
Seu pai começa a dizer: — Acho que todos nós poderíamos fazer isso hoje à
noite... — mas Tahir o interrompe.
— Eu quis dizer apenas Elysia e eu. Ficaremos bem sozinhos.
A Sra. Fortesquieu toca o braço dele com a ponta dos dedos, mas ele se
desvencilha da mãe. — Não acho que seja uma boa ideia, meu querido —
adverte ela.
— Gostaria de lembrar que tenho brevê de piloto — comenta Tahir.
— Antes do acidente… — observa Tariq. — Você não voa desde então.
— Estou pronto agora — afirma Tahir.
Bahiyya e Tariq trocam outro olhar preocupado, e então parecem reconhecer
por telepatia como reagir.
— Você pode ir — concorda Bahiyya.
— Mas deve levar o instrutor para pilotar o avião — adverte Tariq.
— Vou Transmitir ao clube para que enviem o instrutor — acrescenta
Bahiyya.
— Se insistem — concorda. — Este jantar é um desperdício — diz,
colocando o guardanapo na mesa e levantando-se. Fica claro que para ele a
refeição terminou. E ainda nem comemos o nosso sorvete de chocolate. Ele olha
para mim. — Vamos lá.
Talvez seja este o canalha sobre o qual Dementia e Greer avisaram. Não
consegui imaginar nenhuma desculpa para resistir ao convite taciturno, mesmo
que isso significasse sacrificar a sobremesa. Mas preciso esperar que seus pais,
meus donos temporários, me deem licença para sair da mesa. Olho para a mãe de
Tahir, mas seu semblante iluminado se foi. — Por que você precisa ser tão cruel
comigo? — exclama. — Sou a sua mãe! Você costumava me amar.
— É o que vocês me dizem — diz Tahir, entrando na casa.
Tariq agarra a mão da esposa e beija a palma da sua mão. — Ele ainda te ama
— garante ele. — Ele vai descobrir isso.

Mas não haverá voo de helicóptero-planador nesta noite.


Tariq, descontente com a atitude de Tahir, decidiu que nossa noite seria
melhor aproveitada dando ao filho um curso de reciclagem sobre que tipo de
rapaz ele era antes do acidente. A sobremesa é trazida para a arena de
entretenimento, onde nos sentamos em cadeiras de pelúcia formando um círculo.
No meio do círculo, um equipamento 4D de imagens dos dias de glória de surfe
de Tahir brilha para nosso entretenimento.
Talvez tivesse sido interessante fazer um passeio no ar hoje à noite, mas esta
experiência também é boa. Começo a assistir um Tahir molhado, sem camisa,
cavalgando ondas monstruosas, enquanto engulo colheradas de sorvete de
chocolate mergulhado em calda de caramelo. Eu poderia estar em estado
ataráxico de garota-clone. Observamos o Tahir pré-acidente surfando um tubo de
uma onda de modestos seis metros; ele parece tão perto que quase sinto um
respingo. Assistimos à descida de uma encosta de uma onda de 24 metros, algo
tão ousado para se ver de perto que pareço sentir meu corpo se crispar pelo
perigo. Encontramos Tahir, magnífico em um smoking formal em um evento de
gala, apertando as mãos de um chefe de Estado, mas distraído por uma garota
bonita que passa, fazendo-o virar, sorrir e dizer:
— Ei, linda — enquanto o presidente ri. Acompanhamos Tahir sem camisa,
envolto em fitas de campeonato, com um sorriso brilhante, abraçando firme os
pais radiantes, em pé, um de cada lado. Em uma foto, sua mãe se inclina para
beijar-lhe a bochecha, mas ele não a afasta; em vez disso, verga o braço sob seu
queixo e lhe acaricia a bochecha com um dedo carinhoso enquanto ela o beija,
com orgulho materno. Um entrevistador lhe pergunta como ele mantém o foco
ao pegar ondas. — Creio em meu próprio talento — afirma, confiante. — E sei
que meus pais estão sempre ao lado, me apoiando.
Nessa parte, a Sra. Fortesquieu olha para o filho com expectativa, como se
dissesse: Agora você se lembra, não é? Ela se estica para tocar seu joelho, mas
ele se esquiva do contato e se levanta. É difícil acreditar que o menino quieto,
mas bonito, ao observar o seu EU antigo holográfico, tão vivo com arrogância e
exuberância, poderia ser a mesma pessoa.
Sinceramente, eu não acredito nisso.
Tahir acompanhou a apresentação em silêncio, mas é como se olhasse direto,
através do feixe de luz, a parede a distância por trás das imagens, completamente
desinteressado em sua glória anterior, de fato até entediado.
— Isso é tudo por hoje? — pergunta ele ao pai.
A mãe foge da sala. Chorando.
Tariq suspira. — Acho que sim. Vou confortar a sua mãe. Amanhã, Tahir,
você se sairá melhor. Esforce-se mais com ela.
— Sim, Pai — responde Tahir.

Igual à disposição do meu quarto, adjacente ao de Astrid na Casa do


Governador, meus aposentos estão ao lado do cômodo de Tahir. A cama foi feita
para mim em um divã longo cheio de almofadas de seda roxa, ouro e fúcsia
brilhantes. Tahir ficou em silêncio enquanto me levava até lá. Ele não é o
companheiro mais interessante, o que não é de todo algo que diminua seu
encanto — pelo contrário, isso pode até aumentá-lo.
— Foi bacana surfar ondas tão grandes? — pergunto para puxar conversa.
Por experiência própria de mergulho, desde que emergi, sinto que a água
provoca uma estranha sensação de conexão a algo tão mais poderoso e volátil
que qualquer coisa que eu possa compreender e, no entanto, algo que deve ter
parecido simultaneamente acolhedor, natural e pleno para minha Matriz. Será
que a experiência humana dele foi semelhante?
Tahir responde, sem o menor interesse: — Sim.
Será que canalha poderia ainda significar chato? Para um lindo Príncipe
Chocolate, ele não é nada agradável. Como é possível ser o mesmo rapaz que me
segurou no colo e beijou em seu aniversário, que disse que eu o fazia se sentir
vivo?
Este rapaz pode, muitas vezes, parecer morto.
Tento outra pergunta: — Você tem boas lembranças de Astrid? Sou sua
substituta.
Ele responde fatos, em vez de sentimentos. — Você já me disse isso. Astrid e
eu compartilhamos momentos românticos quando estive em Demesne, mas não
era uma relação séria. Como filha de um funcionário de Demesne, ela não era
uma companheira apropriada para mim. Astrid acertou noventa e nove por cento
em seu vestibular. Conseguir ser admitida em uma escola superior era sua
principal preocupação, e não um relacionamento.
Se Greer e Dementia estivessem aqui, compartilhariam um momento de
tristeza pela amiga Astrid, que acabou de ser facilmente descartada pelo rapaz
que, segundo elas, causou-lhe uma grande desilusão. Não vou ficar lamentando
sua perda. Determino que quero ser lembrada com mais carinho por esse rapaz.
Minha missão é clara: quebrar qualquer barreira surgida dentro dele desde o
acidente que esteja tornando-o tão distante e reservado, pois antes era
carismático e sociável. Suspeito profundamente que seja uma barreira com a
qual só eu saiba como lidar.
Chegamos aos meus aposentos e sento na cama, de onde posso ver, através
do estúdio, o quarto de Tahir. Neste complexo, onde há dezenas de ambientes
luxuosos e, provavelmente, dezenas de cabanas que são os cômodos dos clones,
me pergunto por que eles me querem tão perto de Tahir.
— Estou aqui para sua mãe testar uma Beta ou para ser seu brinquedo? —
pergunto-lhe. — Fui excelente companheira de treino para Ivan, que em breve
partirá para a Base, na melhor forma de sua vida.
— Você está aqui para que possam ver como um adolescente Beta se
comporta.
— Porque se preocupam que eu possa ser uma terrorista? — investigo.
Eu me preocupo que eu possa ser uma terrorista.
— Não — diz Tahir.
— Posso tentar adivinhar o motivo? — prossigo.
— Sim.
Nunca tive certeza de nada em minha breve vida — exceto esse sentimento
visceral. Os dados estão todos lá: sua longa ausência de Demesne. Sua
indiferença. Ele ingere alimentos líquidos, provavelmente porque não consegue
saborear comida normal e tampouco a deseja. Aparenta atravessar as ações de
sua vida, recitar fatos do passado, mas parece não fazer nenhuma conexão com o
presente, ou não tem interesse pelo que o futuro possa trazer.
Os dados podem ser circunstanciais, mas meus instintos de Defeituosa não
estão errados, suspeito. Se estiver errada, terei postulado algo tão escandaloso
que não há como não ser rotulada de Defeituosa por identificar esta verdade.
Mas, se estiver certa, talvez ganhe algo para mim, meu próprio companheiro.
Não consigo resistir a esse salto. Isso poderia levar à minha extinção
prematura, ou a um novo mundo de possibilidades, tanto assustador quanto
emocionante. — Estou aqui porque você também é um Beta adolescente e seus
pais querem ver como você interage com alguém de sua própria espécie —
afirmo.
Tahir responde: — Certo. Minha Matriz, o Tahir verdadeiro, morreu naquele
acidente nas gigantes. Eu sou o seu clone.
— MEUS PAIS ESPERAVAM QUE VOCÊ DESCOBRISSE isso
— revela Tahir. — É por isso que a trouxeram aqui.
— Você também tinha esperança? — questiono.
— Esperança ainda é um conceito humano vago para mim. Sou diferente dos
outros clones da Dra. Lusardi, pois fui criado para continuar a vida da minha
Matriz; não fui clonado para um novo começo. Os pais dele queriam…
— Seus pais — corrijo. Já estou trabalhando em apoio a Bahiyya e Tariq.
— Sim, eles ficam me dizendo isso. Meus pais queriam cada detalhe factual
da vida de minha Matriz incorporado em meu chip. Eles têm esperança que eu
saiba ainda como a Matriz de Tahir se sentia, mas não reconheço esse desejo.
Não sinto nenhuma ligação com sua vida. Estou levando a vida de outro alguém.
Talvez com você aqui, eu possa vivenciar a minha própria história.
Tanta energia foi soprada em mim, que acho que poderia explodir. — Por
favor, será que podemos correr em algum lugar? — pergunto a Tahir.
Entramos na sala da FantaEsfera, nos aposentos de Tahir. Ele ajusta o jogo
para Busca Submersa. Para sobreviver, é preciso percorrer as ruínas de uma das
antigas cidades inundáveis. Procuramos alimentos em becos, escalamos paredes
de pedra e passamos correndo por sentinelas até alcançar o ápice do castelo
central, o santuário elevado em que termina a missão. Para chegar lá, temos que
vencer hordas de refugiados em pânico, ladrões e saqueadores, ratos vivos e
carcaças de cães mortos. E não podemos ser engolfados pela enchente.
Podemos atingir lá juntos.
Tahir conta o que ocorreu à sua Matriz, em meio à busca.
Tinha sido um dia de sonhos para um surfista. O vento e as ondas
cooperavam direitinho. O Tahir original foi rebocado para as gigantes pelo
helicóptero-planador, determinado a aproveitar as condições perfeitas, sonho de
surfistas, algo que buscam e esperam. Mas o oceano é tão mal-humorado e
imprevisível. Assim que ele chegou ao ponto, as ondas mudaram, movendo-se
com mais rapidez e força. Os capitães rebocadores lhe imploraram para não
fazer o salto, mas ele viu uma montanha líquida, que tinha que conquistar, se
elevando. Eles o baixaram para pegar a onda. Tinha mais de quinze metros, e
nem de longe era a maior que já pegara, mas ela era diferente: maldosa e raivosa,
pesada e espessa, com incrível poder e velocidade. Ninguém deveria ter se
arriscado naquela onda. Em primeiro lugar, Tahir saiu para a onda alguns
segundos tarde demais, como se naqueles últimos momentos contemplasse se
deveria mesmo surfá-la. Mas ele foi assim mesmo. Conseguiu cair sobre a face
da onda se erguendo na ponta dos pés. Deveria ter sido um surfe milagroso e
maravilhoso, descendo aquela montanha em movimento, mas em vez disso
pareceu lutar durante todo o percurso. Ele se recuperou no final da queda, e
tentou se erguer sob o lábio da onda, mas ela caiu sobre ele, lançando-o para
baixo. Tahir caiu da prancha e foi puxado para baixo pela fera, que explodiu sua
prancha na espuma. Ele se afogou.
A equipe de surfe foi capaz de recuperar o corpo e devolvê-lo ao complexo
Fortesquieu. Bahiyya foi à loucura com o pesar. Ela já havia enterrado cinco
filhos. Seus gritos angustiados podiam ser ouvidos na propriedade inteira. Tariq
chamou a Dra. Lusardi em segredo. Ele lhe pediu para criar um clone do cadáver
de seu filho. Para que pudesse sempre passar por ser humano, o clone de Tahir
não foi gravado, e os olhos de sua Matriz, cor de avelã, foram transplantados
para o novo corpo.
Na emersão, enquanto o clone Tahir acordava e tomava consciência, com os
olhos ainda fechados, uma das primeiras coisas que o rapaz ouviu foi a Dra.
Lusardi contando à assistente que ela não queria esse trabalho perigoso,
tampouco podia negar algo a essas pessoas poderosas.
— Por que ela não queria a tarefa? — pergunto a ele. Não conseguia
imaginar a Dra. Lusardi resistindo a uma encomenda direta de uma das famílias
mais influentes do mundo.
— A Dra. Lusardi disse aos meus pais que ela estava apenas no estágio Beta
de criação de adolescentes — esclareceu Tahir. — Explicou que não poderia
criar um clone adolescente que viveria o tempo aproximado da adolescência de
sua Matriz. Meus pais tiveram muito pouco tempo para fazer uma escolha.
Decidiram correr o risco e esperar por uma cura.
— Risco? Uma cura? Para quê? — Isso não faz sentido. Não há “cura”
necessária para um clone, a menos que signifique uma cura para a extração de
alma. Será que este clone de Tahir possui alma?
— A cura para os Horríveis — disse Tahir.
— O que são os Horríveis? Você se refere ao modo como os adultos chamam
os adolescentes? Que eles se tornam horríveis? É apenas uma fase que vai
passar.
— Pare! — berra Tahir, invocando a palavra de segurança que termina o
jogo. A cidade e os vícios da Busca Submersa desaparecem instantaneamente.
Caímos, os dois, no chão, sem fôlego, exaustos.
Eu estava prestes a executar um ladrão saqueador correndo em minha direção
para me apunhalar o coração com sua espada, mas aparentemente a notícia dele
sobre os Horríveis é mais importante que a minha manobra lateral de chute de
karatê na cabeça do bandido. Tahir mal podia esperar para parar, até que eu
tivesse a glória de matá-lo.
— É sério que não sabe nada sobre os Horríveis? — pergunta, incrédulo.
— Pensei que sabia, mas acho que você quer dizer outra coisa. Quer dizer…
você poderia ter uma alma?
— Não tenho alma. Não houve tempo suficiente para a Dra. Lusardi se
preparar. Ela teve que fazer a extração padrão a fim de replicar o corpo. Para
tentar de outra forma haveria risco de a clonagem não dar certo.
— O que é tão horrível nisso? — indago, curiosa. Como a clonagem padrão
poderia ser considerada tão terrível.
— Horríveis é como se chama a fase implantada pela Dra. Lusardi pela qual
todos os Betas adolescentes passam. Eles morrem antes da idade adulta.
— O quê? — grito. Esses seres humanos, eles são monstros cruéis.
Mentirosos. Enganadores. Pela primeira vez, quero feri-los com a mesma
intensidade. Isso é tão injusto. Meu corpo está dormente, minha energia gasta, a
mente enganada e com raiva.
Mal surgi e já estou marcada para morrer?
— Esta é realmente a primeira vez que ouviu falar disso? — pergunta Tahir.
Concordo com a cabeça. Sei tão pouco além do que me foi dito.
— Você está chateada — constata Tahir. — Legitimamente chateada.
— E você, não? — exijo saber.
— Antes, eu ficava indiferente. Desde que usei a raxia, estou confuso. Sinto
uma raiva surpreendente. Quer saber por que nós experimentamos os Horríveis?
— Aceno com a cabeça e Tahir continua:
— Porque eles não descobriram como fazer a transição de um clone
adolescente para um adulto e não queriam correr o risco de donos humanos se
apegarem a clones adolescentes que não vingariam. Então, a Dra. Lusardi
projetou Betas adolescentes para passarem por uma fase que ela chamou de “os
Horríveis”, na mesma época que os adolescentes humanos passariam do final da
adolescência para a idade adulta. Basicamente, nós nos tornamos tão rebeldes e
agressivos que afastamos nossos humanos, que mal podem esperar para se livrar
de nós.
— Certamente, seus pais, com toda sua riqueza e poder, poderiam ter pedido
um clone sem esse problema.
— Eles poderiam. Mas a Dra. Lusardi não descobriu como atender a esse
pedido. A clonagem como ciência foi destinada para replicar a humanidade, não
para desfazer uma morte trágica.
— Então, o que um ser humano deve fazer diante da fase Horrível? —
pergunto, confusa. — Somos eliminados? — Tenho visões repentinas de ser
jogada de um penhasco apenas pelo crime de ser adolescente.
— Não é necessário. Isso acontece naturalmente. Assim que nos tornamos
Horríveis, nos extinguimos rapidamente, morremos. O fato é que, até lá,
ninguém sentiria falta de nós. Gostariam de se livrar de nós. A coisa toda é uma
salvaguarda para os compradores humanos, mas também para a Dra. Lusardi.
Não quero acreditar.
— Nunca houve Horríveis aqui. Somos os primeiros Betas adolescentes.
— Não somos os primeiros Betas adolescentes. Quem lhe contou isso?
Percebo que, de fato, ninguém me contou isso. Acabei de presumir.
Dou de ombros. Não tenho respostas. Tudo o que sempre tive foram
perguntas.
— A Dra. Lusardi criou uma penca de Betas adolescentes antes de nós.
Foram usados em experimentos na Base. Todos morreram meses após se
tornarem Horríveis. Exceto os que escaparam. Ninguém sabe o que aconteceu
com eles.
Em algum lugar existem outros iguais a mim. A nós. Como fui ignorante em
acreditar que era especial. Diferente.
Nunca me ocorreu que viveria apenas alguns anos, na melhor das hipóteses,
apenas para cair na loucura e morrer. Existe algum conforto em saber que
provavelmente isso ocorrerá também a este outro Beta adolescente?
Xanthe conhecia o ódio.
Agora, também o conheço. Odeio os humanos que me programaram para
morrer antes de eu mal ter uma chance de viver.

Com seus olhos humanos transplantados de sua Matriz, é fácil ele passar por
humano. Ele não tem nenhuma tatuagem de estetização. O equilíbrio hormonal
dos clones adolescentes é muito diferente do dos seres humanos; daí eu não
sofrer com as usuais TPMs de garotas das quais Dementia e Greer reclamam,
nem Tahir ter pelos no peito ou no rosto. Tariq e Bahiyya acham que são sutis
quando carinhosamente esfregam as mãos sobre o queixo e o rosto de Tahir, mas
ele sabe que esperam por sinais de pelos faciais. Talvez se seu rosto e corpo não
fossem mais lisos e perfeitos, significaria que ele poderia transitar para a idade
adulta, não para o Horrível. Eles querem muito ter esperança. Têm tudo no
mundo, mas, sem essa esperança, parecem pensar que, na realidade, não têm
nada. Seres humanos estranhos: preferem que seu clone pareça e se comporte
exatamente como o filho real, em vez de deixá-lo livre para determinar seu
próprio destino.
Fizeram de tudo para garantir que ninguém descobrisse que o filho é
replicante. Enquanto emergia e seus pais pensavam que ainda dormia, Tahir
ouviu o que aconteceu com os cinco membros da equipe de surfe que
recuperaram o corpo de sua Matriz das gigantes, os únicos, além da Dra. Lusardi
e dos pais, a saberem que havia se afogado. Todos receberam passagem de
primeira classe e riqueza para a vida toda, para desaparecer para a colônia mais
distante da galáxia.
Mas ao me convidar para a vida de Tahir nesta semana, os pais acabaram me
confiando sua informação secreta. Seres humanos devem acreditar que, como
um clone sem alma, sou ótimo repositório de segredos. Conhecimento é poder.
Como posso aproveitar esse poder?
Desde que emergiu, Tahir passou o tempo enclausurado com seus pais na
cidade de Bioma, sendo ensinado sobre a vida de sua Matriz, para poder atuar
dando continuidade à rotina desde o acidente. A família agora está de volta à
Demesne para que a Dra. Lusardi possa “tratar” Tahir secretamente, evitando
que seus hormônios adolescentes o tornem Horrível. Anestesiado durante esses
tratamentos, não sabe o que lhe acontece enquanto passa por essas consultas.
— Você sente que mudou após os tratamentos? — pergunto-lhe.
— Não sinto nada — afirma ele. — Nem antes, nem durante, nem depois; só
me sinto vazio.
Impulsivamente, agarro sua mão. — Você não está vazio. Você tem a mim.
Ele também agarra a minha mão, mas seu rosto está ajustado em descrença.
Estender-me a mão é um comportamento imitado, não baseado em um desejo
real de me tocar. — Obrigado — diz, educadamente. — Vamos retomar o nosso
jogo Busca Submersa agora?
Preciso tornar esse Beta mais parecido comigo. Antes de ambos morrermos,
preciso fazer que ele sinta.
— Vamos correr novamente — sugiro.
Mesmo que não haja um lugar real para ir, ainda assim prefiro chegar lá com
ele.
O SONO NÃO TEM SENTIDO PARA ELE, DIZ TAHIR, é
apenas mais um exercício humano para passar o tempo. Ele o imita para evitar
que os pais insistam na sua necessidade dele, mas enquanto eu estiver
emprestada, não vão incomodá-lo com isso. Estão muito esperançosos de que o
seu tempo de vigília com uma Beta fêmea de algum modo melhore sua
disposição desinteressada.
Quando acordo na manhã seguinte, Tahir está deitado no chão de bruços,
com os braços dobrados e a cabeça apoiada nos punhos. Ele me observava
enquanto eu dormia.
— Bom dia — cumprimenta. — Dormiu bem?
— Sim, obrigada. — Poderia dormir muito melhor aninhada a você. E você
também. Verifique seus dados: dormir encaixado.
— Quem é Z? — interessa-se ele.
Meus olhos, desfocados e semicerrados, imediatamente ficam abertos e
alertas.
— Por quê? — pergunto.
— Durante o sono — explica ele —, você murmurou várias vezes: “você
sabe que me possui, Z”.
Viro na cama, para longe dele. — Não sei quem é Z — respondo.
Tecnicamente, não estou mentindo. Não a conheço. Eu sou ela. Mas jamais a
conheci. Ouço ele se aproximar de mim e sinto sua respiração quente em minha
nuca.
— Não precisa mentir para mim — diz Tahir.
— Como você sabe que estou mentindo? — pergunto. Por favor, responda
que é por que você também é um Defeituoso. Por favor.
— Intuição.
— Intuição? — pergunto, entendendo agora como o menor sinal de Tahir
pode dar a Bahiyya e a Tariq esperança de que o filho deles irá “acordar”.
— Seja o que for — diz Tariq. — Enfim, quem é Z?
— Por favor, você vai manter segredo se eu te contar? — sussurro.
— Claro — ele responde.
Eu não devia, mas falo.
Eu confio.
— Z era minha Matriz. Eu tenho algumas memórias dela. Não muitas, na
verdade, mas uma em especial. Do garoto que ela amava.
Tahir acena, sem expressão de choque ou desaprovação. — Sim, essa é uma
informação que não deve ser compartilhada com ninguém mais, deve ficar só
entre nós.
Gosto disso. Existe um “nós”.
— Você acha que sou uma Defeituosa? — pergunto-lhe.
— Se você é ou não Defeituosa, não tem importância para mim — ele
assegura.
Sua indiferença é até reconfortante de alguma forma. Sem julgamentos.
Talvez realmente não tivesse importância o fato de ser ou não um clone
Defeituoso. Talvez isso não tenha a menor relevância para nossa existência,
como criaturas que vivem, respiram e sentem.
— Sou Defeituosa — confesso, surpresa com a facilidade e o alívio ao contar
isso.
— E daí? — pergunta Tahir. Parecia a maior revelação do mundo, mas fica
claro que para ele nada importa. — Meu pai diz que, de certo modo, somos todos
Defeituosos. Humanos e clones. Diz que a palavra é, realmente, uma tática
amedrontadora de incitar seres desobedientes para a subserviência. Diz que isso
tudo é apenas uma palavra.
Tariq Fortesquieu é superlegal, por ser pai de alguém.
— O pai consideraria encorajador que um Beta pudesse se conectar assim
com sua Matriz — completa Tahir.
— Você tem memórias reais de sua Matriz? — pergunto.
— Se quer dizer se sinto as memórias, ou as revivo, a resposta é não. As
memórias são básicas, sem detalhes reais. Dados apenas. É como ter um livro de
colorir com todas as figuras delineadas em preto e branco, mas sem cor alguma.
E no caso de o chip não funcionar como deve, os pais dele — meus pais — me
enchem de cartões de exercícios para associar nomes e rostos com pessoas e
eventos específicos de sua vida. Temem que eu seja uma aproximação de
madeira de seu filho real. Querem que eu assuma o papel de minha Matriz sem
ninguém saber que sou um clone. Mas não é um show apenas. De fato querem
que eu me sinta como se fosse o Tahir verdadeiro. É claro que não consigo.
— Você é melhor.
Ele irá pensar que quero dizer que é melhor por ser ciência; sei que é melhor
por ser mais bondoso e gentil que o Tahir verdadeiro.
— Desaponto continuamente Tariq e Bahiyya. Sou incapaz de corresponder a
seu amor e afeição ou compartilhar as orgulhosas memórias. Posso imitar a
Matriz de Tahir, mas os sentimentos não estão ali. Eles sabem disso.
— Você gostaria de ter sentimentos reais?
O rosto de Tahir adota uma expressão que nossa base de dados rotula
curiosa.
— Por um momento, quando usei a raxia de Ivan, eu senti. Mas então a
sensação passou. Eu não consigo desejar, Elysia. Você sabe disso.

Naquela tarde, os pais de Tahir nos chamam para um almoço-piquenique na


praia. Bahiyya nos aguarda na piscina de hidromassagem construída para ela nas
águas de Io: pequena e triangular, de água salgada, com paredes de jade, que
contrastam suavemente com as águas cor de violeta que a alimentam ao bater
contra suas paredes. Ela usa um turbante de veludo roxo na cabeça, cobrindo os
cabelos grisalhos e dando ao rosto um pouco enrugado, mas sereno, um ar mais
jovem.
— Você parece muito relaxada — Tahir diz para a mãe ao nos postarmos na
margem da praia. Os empregados ajeitam o piquenique na praia, colocando um
cobertor na areia e dispondo mesas para as bebidas. — Posso ver que o ar daqui
a beneficia.
— Quero aproveitar ao máximo. — Bahiyya inspira e solta o ar com bastante
prazer. — Eu lhe disse que Demesne é mágica, não é?
— É verdade — concorda Tahir.
— Você adora estar aqui? — pergunta ela.
— Adoro estar aqui — repete ele.
Ela reconhece sua imitação e lhe diz: — A sua geração não reconhece esses
prazeres. Vocês não entendem de guerra e sofrimento. Que vocês nunca tenham
que entender.
— Grato — responde Tahir.
Talvez ela também reconheça a futilidade de sua esperança que o filho
clonado aprecie todas as dificuldades que sua geração teve, pois fica ansiosa em
mudar o assunto. Ela olha meu traje de banho de peça única. — Elysia, ouvi
dizer que é excelente nadadora.
Eu me exibo. Dou um passo da praia para a borda de jade da piscina e
mergulho da borda pontuda, onde a piscina se encontra com o oceano. Nado
estilo borboleta uma distância equivalente ao comprimento de uma raia de
competição e volto para o lado do mar da piscina de hidromassagem.
— Meu Deus! — entusiasma-se Bahiyya. — Sua Matriz pode ter sido atleta
olímpica. Tanta velocidade e graça. Venha aqui, querida.
Escorrego pela parede e vou para a piscina. A água morna gira sobre a pele e
massageia os músculos. A sensação é de calor suave como seda.
— Você também, Tahir — chama Bahiyya. — Venha sentar-se comigo.
Adoro ter vocês, filhos, por perto. — Tahir concorda, passa por cima da parede
de jade e entra na piscina. — É maravilhoso aqui, não é?
Tahir acena e posso vê-lo começar a dizer “Sim, mãe” de novo, mas o rosto
dela se volta para ele, e não para mim, então sorrio e tento fazer os olhos
brilharem para que ele saiba a expressão a mostrar à mãe. Ele vê meu rosto, sorri
e abre mais os olhos castanhos para que eles pareçam mais brilhantes e meigos.
Faço MARAVILHOSO, MAMÃE com a boca, e Tahir repete: — Maravilhoso,
mamãe.
Ela notou o olhar dele em mim e não deixa de perceber que a resposta foi
sugerida, mas não está descontente. Em vez disso, bate palmas.
— Excelente, Tahir — exclama. — Você contou à Elysia?
— Elysia sabe que sou um clone — conta Tahir.
— Psiu! — sussurra Bahiyya. — Há empregados na praia. Não queremos que
eles ouçam. Achamos que ela poderia descobrir isso. — Ela se vira para mim. —
Você descobriu?
Concordo com a cabeça.
Ela sorri para mim. — Você percebe o que isso significa?
Que serei exterminada se revelar essa informação secreta?
— Talvez tenhamos que mantê-la para sempre, Elysia — avalia Bahiyya.

Seria fácil treiná-lo por Transmissor ou holograma, mas os pais de Tahir


resolveram prepará-lo para a gala do Governador usando cartões antiquados.
Mordisco biscoitos de chocolate quentinhos recém-assados sobre o cobertor de
piquenique vendo Tahir beber a vitamina verde e responder as questões dos pais.
Tariq segura uma foto de um senhor idoso com uma coroa. — O rei do Zakat
— identifica Tahir.
— O que tem de especial sobre ele? — Bahiyya pergunta.
— Ele me deu uma ilha em meu aniversário de treze anos — diz Tahir.
Tariq pergunta: — E o que mais ele lhe deu?
— Acesso ao seu harém particular — acrescenta Tahir.
— Certo — aprova Bahiyya. — Velho horrível.
Tariq segura uma foto de um jogador de futebol chutando em uma partida de
campeonato internacional. — Quem é esse?
— Bhekizitha Danjuma, conhecido como “o Esfinge”, o campeão mundial de
futebol mais venerado, três vezes o Jogador Mais Valioso da Copa do continente
— prossegue Tahir.
— O que tem de especial sobre ele? — Bahiyya torna a perguntar.
— Queria visitar Demesne, então veio como seu convidado e me deu aulas
particulares de futebol há dois anos, quando eu tinha dezesseis anos — diz Tahir.
Tariq vira o outro lado do cartão, que retrata uma jovem morena sensual.
— E…?
— E o Tahir Matriz seduziu a namorada do Esfinge, levando-o a jurar
vingança contra Tahir — conta.
Bahiyya ri. — Mau perdedor.
— Mau perdedor, que estará no Baile do Governador como convidado do
enviado, pelo que soube — avisa Tariq.
— O Esfinge está casado agora — alega Bahiyya. — Com certeza, ele não se
importa.
Tahir vasculha os cartões do pai e tira um cartão com a mais famosa jovem
atriz no continente, de beleza estonteante de descendência mista, com pele
escura de canela, cabelo preto brilhante e olhos cor de âmbar.
— O Esfinge está casado com ela agora — completa Tahir.
— Excelente trabalho, Tahir — celebra Tariq.
— Posso levar Elysia para o baile como minha acompanhante? — pede
Tahir.
Fui convidada para o baile!
Mas Bahiyya diz: — Claro que não! Ela é um clone. Isso simplesmente não
pode acontecer.

— Sempre tive medo de água — confessa Bahiyya. Ela me chamou para ficar de
molho uma última vez, antes do jantar, na piscina de hidromassagem. — Só em
Demesne, onde a água é tão pura, sinto conforto quando fico em imersão. Tariq
mandou construir essa piscina natural para mim de presente após o nascimento
de Tahir. É rasa o suficiente para poder relaxar, sem medo de nadar.
— Você não sabe nadar? — interesso-me.
Ela balança a cabeça. — É difícil de acreditar, eu sei! Especialmente com um
golfinho como filho. — Ela olha com carinho na direção de Tahir. — Pelo
menos, o Tahir Matriz adorava a água. Especialmente aqui. — Ela chama Tariq e
Tahir que andam pela praia.
— Homens, por favor, juntem-se às senhoras.
Eles passam pelas paredes de jade da piscina triangular. — Vamos ligar a
função de hidromassagem ao máximo? — sugere Tariq.
— Que delícia! — apoia Bahiyya. Seu marido ajusta a configuração da
piscina, e as águas ondulantes se aquecem e começam a girar mais, massageando
a pele. — Acho que você não nada em Io desde o acidente — Bahiyya diz para o
filho. — Você costumava adorar fazer exercícios de natação aqui, antes de
grandes encontros. Talvez queira tentar agora? Antes de o sol se pôr. Elysia pode
acompanhá-lo.
Elysia está apreciando a vista do vapor no tórax nu de Tahir. Mas conheço a
minha tarefa. — Vamos dar um mergulho? — convido Tahir.
— Você nada bem. Gosto de ver você nadar. É muito elegante e forte.
Admirável.
— Bom observador — avalia Tariq. — Acho que está progredindo desde que
Elysia se juntou a nós, Tahir.
— Gostaria de progredir — afirma Tahir. Há uma nova confiança e
sinceridade em sua voz. Ele se volta para mim. — Acho que devemos lhes
contar nosso segredo.
Por que não? De qualquer forma, estou marcada para morrer. Este ar e a água
são tão agradáveis… Eu me sinto tão bem. A euforia que os humanos vivenciam
em Demesne: começo a entendê-la.
— Sou uma Defeituosa — declaro, tentando dar coragem e destemor à voz.
— Eu sinto coisas.
O arfar chocado que vem de Bahiyya e Tariq não é provocado por minha
revelação. É por Tahir, que ri de minha confissão.
Tahir balança a cabeça. — Eu não quis dizer isso. Queria lhes contar sobre a
raxia.
— Você riu! — exclama Bahiyya. É como se eu nunca tivesse dito as
palavras blasfemas: Eu. Sou. Defeituosa.
— Sério? — questiona Tahir. — Acho… que me sinto à vontade com a
Elysia por perto. Não forcei isto. Aconteceu e pronto.
— Excelente! — elogia Tariq. Ele se volta para mim. — Você é Defeituosa
porque tomou raxia?
— Na verdade, a raxia não fez efeito algum em mim.
Os pais de Tahir se voltam para ele, os rostos chocados. — Você tomou
raxia? — Bahiyya questiona Tahir.
— Sim — responde Tahir. — Por um breve momento, ela me fez sentir vivo.
Tariq balança a cabeça vigorosamente. — Não! A raxia não é a saída. É um
opiáceo muito viciante. Qualquer benefício que dê, fazendo você se sentir mais
humano, será desfeito muito rápido pela crescente necessidade por ela. Vai te
fazer se sentir tão humano que se tornará um monstro por ela.
— Não me tornarei um monstro de qualquer forma, pai?
— Não diga isso! — Bahiyya repreende Tahir. — Não deixaremos que isso
aconteça com você. Ou para Elysia. Encontraremos uma cura antes que se
instale.
— Temos os melhores cientistas trabalhando para encontrar a cura —
completa Tariq. — Você não deve usar raxia. A Matriz de Tahir tinha tendências
para o vício. Você não deveria herdá-las.
Tahir verifica sua base de dados e então seu rosto fica confuso. — Não
encontro evidências de tendências de vício na Matriz de Tahir.
— É porque nós as excluímos de sua programação — conta Tariq. — A
Matriz de Tahir era um excelente jovem, mas um playboy, que tinha vícios,
suscetibilidade ao álcool e garotas. Nada que o metesse em muitos apuros, mas
existia o potencial. Sabíamos do risco disso piorar à medida que chegasse na
idade adulta. Temíamos que as tendências pudessem se tornar mais perigosas,
vícios desenfreados, se não fossem controlados. Não use raxia novamente —
pede Tariq, com a voz muito séria.
— Mas… — começa Bahiyya.
— Estou falando sério! — corta Tariq. — Com quem você conseguiu a
raxia?
Rapidamente calculo a única pessoa que podemos culpar sem metê-la em
apuros. — Demetra — respondo.
— Você está proibido de passar mais tempo com ela se houver raxia
envolvida — avisa Tariq. — Entendo que adolescentes gostem de experimentar
narcóticos, mas é mais perigoso para você. Seu estado ainda inspira cuidados,
Tahir.
— Tudo bem — concorda Tahir, embora pouco se importe.
Com o assunto resolvido, Bahiyya me olha com carinho. — Orei que fosse
um Beta que pudesse sentir. Se você consegue, talvez também seja possível para
Tahir.
— Vocês não vão me extinguir? — pergunto.
— É claro que não, menina! — acalma Bahiyya. — Seu segredo está seguro
conosco.
— Vamos cuidar de você como se fosse nossa — completa Tariq. — Você
pode ensinar Tahir como sentir. Não a raxia.
ONTEM À NOITE, DESCOBRI QUE NÃO TENHO muito tempo
de vida.
Hoje à noite, descobri pelo que vale a pena viver.
Tahir se mostra mais humano no jantar daquela noite, come a comida do
prato, dizendo “Deliciosa” ao comentar a sobremesa, deixa a mãe acariciar sua
mão sem pestanejar e recita histórias sobre os participantes do Baile do
Governador ao pai. Ter outro Beta na casa demonstra ser benéfico para a
“recuperação” de Tahir. Assim, somos dispensados cedo para jogar FantaEsfera.
Não precisamos passar por outra noite de hologramas da Matriz de Tahir com
seus pais.
Conforme nos dirigimos aos aposentos, ele me pergunta: — Como é a
ataraxia na casa dos Bratton?
— Eles a imitam feito clones — conto.
— Sério? — estranha Tahir.
— Nem tanto — tenho que admitir. — Não só tenho memórias, mas parece
que sou capaz de fazer piada.
— Puxa — diz Tahir, com um jeito que parece pena.
Respondo à pergunta: — Os Bratton buscam a ataraxia, mas ela não parece
ser tão fácil de se alcançar como aqui. Os pais brigam constantemente. A filha no
continente parece não querer nada com eles... nunca liga, até onde sei.
Chegamos a um saguão longo, onde há holografias de sua Matriz, um álbum
familiar ambulante brilhando ao longo das paredes. É como ver sua Matriz
crescer perante nossos olhos. Lá está o Tahir verdadeiro quando bebê
engatinhando pelo chão. O Tahir dando seus primeiros passos. Ele soprando as
velinhas de seu segundo aniversário, cercado por Tariq e Bahiyya sorridentes. De
paletó, escoltado pelos pais e guarda-costas para o primeiro dia de escola. Tahir e
o primo Farzad, meninos em Demesne, pegando as primeiras ondas. Quase na
puberdade, aos treze anos, vencendo a primeira competição de surfe. Uma foto
de perto aos dezessete, de smoking, e no último Baile do Governador; por perto,
se vê a loira Astrid, olhando-o furtivamente enquanto ele mostra os dentes em
um largo sorriso, sem notar seu olhar.
E então sinto como se meu coração parasse.
Lá está o Tahir Matriz, não mais um menino, um jovem vistoso e robusto,
cercado pelos colegas competidores na praia, na competição de surfe de grandes
ondas. Lá está ele, insolente e confiante, pronto para ser levado para uma surfada
épica, mas há alguém mais, um jovem loiro de perfil, atrás dele. O homem
bronzeado é mais alto e musculoso que Tahir e parece ser alguns anos mais
velho e, embora não veja seus olhos azul-turquesa pelo ângulo da foto, sei quem
é.
É o deus surfista da minha Matriz. O homem que pertencia a ela. Esperava
vê-lo em algum lugar sob a água, não nas paredes do complexo Fortesquieu.
Eu paro Tahir e aponto. — Quem é aquele?
Seus olhos se fecham e ele puxa pela memória. — Sei que seu nome surgiu
nas aulas de memória. Não tenho certeza. Talvez Alexander? Ele era rival de
minha Matriz nos encontros de surfe. Por quê?
— Ele parece o homem do qual tenho visões. De minha Matriz.
— Para que isso? — avalia Tahir.
Talvez ele tenha razão. De repente, aquele homem feito deus de minhas
visões, sobre o qual estava tão curiosa, não me intriga mais. É um fantasma a ser
exorcizado de meu subconsciente.
O deus surfista pertencia à vida de minha Matriz.
Eu quero a minha própria.
Especialmente se irá terminar tão breve.

Tahir e eu entramos na sala da FantaEsfera.


— Vamos encenar Romance hoje? — Tahir me pergunta.
— Sim, por favor. — Rápido.
Ele ajusta o jogo para Romance. — Qual contexto? — pergunta de novo.
Liesel e eu já o jogamos antes, usando nossa criação, o Príncipe Chocolate.
Por hábito, começo pedindo o contexto da suíte de lua de mel, um bangalô
tropical sobre palafitas em uma lagoa safira. Dentro da suíte, a decoração
romântica usual, com uma máquina de algodão-doce, que Liesel acredita que
qualquer casal em lua de mel desejaria. Do lado de fora, os degraus levam
diretamente para dentro da lagoa repleta de vida marinha vibrante, peixes de
todas as cores que mordiscam e fazem cócegas nos dedos e, além da água azul,
uma vista infinita do céu sem nuvens, areia branca e coqueiros, todos banhados
pelo sol e brisa do oceano.
Para mim, era o paraíso. Dessa vez, não preciso dividir o Príncipe Chocolate
com Liesel. Este é só meu e sua carne é real, mesmo que replicada, e o jogo não
precisa se manter no nível infantil.
— Cidade de Bioma — solicito.
Instantaneamente, estamos na cobertura do Hotel Green Cactus, o hotel de
luxo mais famoso da Cidade de Bioma, construído para parecer um enorme
cacto, com balcões parecidos com espinhos. Tahir encaixa o indicador no meu e
me guia para as janelas da suíte palácio para admirarmos a vista. Estrelas
brilham no céu noturno enquanto as torres em estilo de árvores complementam
as estrelas com as próprias luzes piscantes cor de jade que coroam cada edifício.
Além do distrito central de negócios, as avenidas se alongam até comunidades
individuais, onde as estruturas domiciliares são modeladas biometricamente em
cupinzeiros, formigueiros e colmeias, criando arte viva e habitável a partir de
inspiração arrepiante-rastejante-maldita. Além das comunidades suburbanas,
dunas piramidais dão uma aparência de fortaleza de areias desérticas
circundando a cidade.
Tahir solta a minha mão para abrir a janela. Ar fresco e seco, cheirando a
flores do deserto, sopra pela janela. Seu braço circula minhas costas, e a mão
descansa na curva de minha cintura. Aninho minha cabeça em seu pescoço.
Ambos fomos programados para saber o que fazer.
— E seus pais? — pergunto.
— Eles não vão nos importunar. Querem que fiquemos juntos, a sós.
Ninguém nos interromperá. Palavra de honra. Temos a noite toda, todas as noites
em que estiver aqui.
Seus braços fortes e quentes são tão aconchegantes. Com o Tahir, agora: esta
é a minha escolha. Consigo vivenciar fisicamente como os outros adolescentes,
sem suas preocupações. Se nossas vidas estão destinadas a serem breves, por que
não tentar algumas noites de Romance, antes de os Horríveis se instalarem?
— Por que eu? — indago a Tahir. Ele poderia ter qualquer garota. Poderia ter
uma garota real, como Dementia ou Greer.
— Sei que não consigo sentir. Mas se conseguisse… você seria a garota com
a qual viveria uma história de amor. Você é forte, corajosa e bonita. Você é
amorosa. Tem todas as melhores qualidades que um humano buscaria em uma
companheira.
— Acho que você também. Simplesmente ainda não sabe disto.
— Programei um jogo para você — contou Tahir. — Feche os olhos.
Fecho meus olhos.
Tahir diz à FantaEsfera: — Elysia, Noite do Baile de Formatura.
Com os olhos ainda fechados, verifico no banco de dados a expressão Noite
do Baile de Formatura. A interface informa que é uma noite de rito de passagem
de adolescentes, da época pré-Guerras da Água, um evento de gala celebrando a
formatura do Ensino Médio.
— Abra os olhos agora — pede ele. — Já que não pode me acompanhar no
Baile do Governador, pode ser minha acompanhante em seu próprio baile.
Abro os olhos. Estamos no salão de bailes do Hotel Green Cactus, decorado
para o Baile de Formatura, com fileiras de suaves luzes brancas balançando do
teto, rodeando um lustre em forma de rosa do deserto e emanando uma suave luz
rósea. A sala está cercada por arbustos, filas de árvores de seda, com flores rosa
e galhos com luzes da mesma cor. A música do baile é em som surround, na
forma de antigas baladas de impacto, algo sobre como o coração de alguém que
continua e continua.
Não estamos sós. Ao nosso redor há muitos casais dançando lentamente. Os
dançarinos são todos clones, com olhos fúcsia, gravados com flor-de-lis e
delfínio, e a palavra BETA na nuca.
— Uma noite de festa para nós e nosso povo — anuncia Tahir. De terno
formal de seda crua caramelo, com um chapéu Fedora marrom, está tão
arrumado e lindo que até suspiro. Olho para baixo, para minha roupa. Ele não
me vestiu com um modelo de princesa como os que a Liesel gosta; escolheu um
PB — pretinho básico —, sem alças, mas não despudorado, que cobre meu peito
deixando algo para a imaginação, indo até o meio das coxas.
— Olhe lá — diz ele, apontando o centro da sala, abaixo do lustre em forma
de rosa, que projeta imagens holográficas para os casais dançantes, com
legendas, para que cada rapaz ou garota tenha a chance de ser: RAINHA DO
BAILE, REI DO BAILE ou PROVÁVEL ESCOLHIDO/A… O lustre escolhe
Tahir como o REI DO BAILE e a mim como RAINHA e vejo meu visual
completo pela primeira vez. O cabelo foi trançado para cima e preso com
diamantes e pérolas. O rosto foi alterado cosmeticamente com batom vermelho
escuro nos lábios e sombra dourada metálica cobrindo as pálpebras. As pernas
longas estão nuas e brilham como ouro e os pés têm salto alto de grife preto com
fitas vermelhas amarradas nas pernas.
— Sua aparência está satisfatória? — Tahir quer saber.
Engulo e aceno com a cabeça. Não me pareço nada comigo, mas a estética
está mais que satisfatória. Imagino que tenha a aparência de Z, quando ela
possuía o coração do fantasmagórico surfista deus. Sexy. Misteriosa.
Tahir me puxa para si e dançamos devagar. Nossos corpos retiram calor um
do outro conforme nos apertamos. — Agora, encoste sua cabeça em meu ombro
— orienta-me Tahir. Faço o que ele me pede. Olho os outros casais ao redor, que
parecem passar da dança para o nível seguinte, trocando beijos e abraços. Tahir
também nota e pergunta: — Devemos imitá-los?
Ergo a cabeça do ombro e fito seus olhos castanhos, enquanto sua boca se
move perto da minha. Quero parar agora para guardar este momento especial de
antecipação antes que nossos lábios se toquem. Clique. O segundo deixa uma
impressão perpétua em meu coração. Juro mantê-la para poder extrair o
momento sempre que quiser no futuro, quando meu mundo voltar a ser o de
servir humanos e não mais uma história de amor com este belo rapaz Beta.
O Tahir Matriz era um amante notável de mulheres, mas o clone Tahir é cru
nessas artes, como eu. Seus lábios tão perto dos meus. Já fizemos isso antes, na
Praia Escondida, mas então estávamos cercados pela turma, que o desafiava a
continuar. Aquilo não contava realmente.
Quero tanto que seja para valer desta vez.
Minha boca se entreabre e seus lábios descem aos meus. Tschhh. Afinal de
contas, a sensação é científica, pura eletricidade, nossos lábios se tocando. Suas
mãos rodeiam minha cintura, as minhas lhe sobem as costas, abaixo da jaqueta,
para puxá-lo mais perto, apertá-lo. Os beijos começam inocentes, as bocas se
tocando, mas logo ficam mais ardentes, os lábios passeando e explorando, em
resposta aos anseios um do outro, mais beijos.
As fileiras de luzes acima poderiam ser fogos de artifício em meu coração.
É isso o que importa. É o que conecta, dá sentido, dá amor humano.
Mas a música acaba e Tahir se afasta e diz: — Não importa se não sinto de
verdade. Tariq e Bahiyya dizem que é importante eu vivenciar isso.
Eu sinto.
Eu o farei sentir também.
— NÃO GOSTO DE VOCÊ, BETA. VÁ ENTRETER
DEMENTIA.
Hoje a Praia Escondida está tão perfeita como sempre, exceto por Farzad,
que decidiu que me odeia. Em sua opinião, a semana de experiência da tia
Bahiyya arruinou por completo o tempo que esperava passar sozinho com o
primo Tahir. Foram melhores amigos quando meninos. Com certeza, agora de
volta à Demesne, Farzad ocuparia a maior parte do tempo de Tahir, e não esta
companheira de brinquedo Beta.
Dementia e Tahir estão alguns passos atrás ao sairmos do veleiro que nos
trouxe aqui, à praia arenosa da enseada. — Sinto muito que não goste de mim,
Farzad — respondo. Não lamento, mas minhas habilidades linguísticas estão
programadas para responder de forma apropriada e reconfortante para ações
verbais dos humanos. — Como devo manter Dementia entretida?
— Quero levar Tahir para surfar em algumas ondas bebê daqui. Você fica
com Dementia para ela não nos atrapalhar. Prometi aos meus tios que alguém
ficaria de olho nela se ela tivesse permissão de ficar conosco hoje.
— Tahir não tem permissão para surfar — relembro Farzad. Na verdade,
Tahir deve dizer que não tem permissão para surfar nem jogar Z-Grav, mas só
porque seria lógico para alguém com os ferimentos de sua Matriz. O clone Tahir
pode participar sem problemas.
— Tahir não pode surfar as gigantes — assegura Farzad. — Essas ondas aqui
não são de nada.
— E se ele não quiser surfar? — pergunto. Os rapazes carregam as pranchas
para a praia, mas a intenção (ao menos, conforme prometido para Tariq e
Bahiyya) era que Dementia e Farzad surfassem esta tarde, não Tahir e Farzad.
Greer e Ivan não vieram conosco, pois suas famílias estão ocupadas preparando
o próximo Baile do Governador.
— É claro que vai querer. Ele adora o desafio.
— Adorava o desafio — corrijo Farzad. — Isso foi antes. Talvez agora seja
diferente. Talvez ele prefira não ousar.
Atrás de nós, Dementia e Tahir param de andar para tirar algas dos pés dela e
assim, longe deles, Farzad me lança um olhar de puro ódio e diz: — Você não o
conhece, Beta. Como ousa ser tão atrevida? Você não é nada. Criada para ser
uma prostituta da ilha. Não me diga o que meu primo pode e não pode fazer.
O que eu poderia dizer a Farzad: que seu primo Beta e eu passamos os
últimos quatro dias e noites enrolados um no outro, em intermináveis jogos de
Romance? Andamos de mãos dadas com os primeiros humanoides pela ponte de
terra que conectava a Ásia à América do Norte. Escalamos o Monte Vesúvio na
antiga Itália na época anterior à grande destruição vulcânica. Dançamos com reis
e rainhas e tagarelamos com grandes filósofos em festas da época da
Renascença. Caminhamos ao longo do Sena, em Paris, de boinas, comendo
croissants, parando para servirmos de modelo para pintores da época do Jazz.
Curtimos a Roda Punk do CBGB em Nova York enquanto os Ramones tocavam
no palco. Passamos a noite aconchegados, juntos, em um saco de dormir, dentro
de um iglu ilhado sobre um bloco de gelo desgarrado, flutuando no oceano, na
época das Guerras da Água. Rodamos à noite nas dunas nos arredores da Cidade
de Bioma e as estrelas do céu soletravam TAHIR + ELYSIA. Misturamos o
complicado Romance com a simplicidade de Z-Grav ao pairarmos no ar horas
intermináveis, tendo mudado o objetivo do jogo: em vez de ter que chegar ao
chão, agora tínhamos que tocar as mãos e os lábios um do outro pelo maior
tempo possível, seja no teto ou flutuando no meio da sala ou, literalmente,
quicando nas paredes.
Somos Betas, aberrações por natureza, mas está tubo bem, ótimo até, pois
compartilhamos isso. Consideramos que, por sermos companheiros biológicos
do mesmo tipo, deveríamos então nos comportar fisicamente como tal. E
conseguimos tudo isso sem os rituais incômodos de namoro pelos quais os
humanos devem passar: Ele/ela gosta, ou não gosta, de mim? Devo me arriscar
deixando que ele/ela saiba o que sinto? E se eu não souber como fazer isso?
Você é bonitinha.
Mas ainda falta algo. Sinto nossa ligação; Tahir a vivencia. Farzad
provavelmente estará em posse da droga que poderia preencher esta lacuna.
Conto com isso hoje, e é por isso que encorajei Tahir a aceitar o convite de
Farzad.
Por que devo ser sempre uma boa menina? Essa rotina é velha e chata. Eu era
tão ignorante quando emergi pela primeira vez, tão inocente e impaciente. Talvez
seja um sinal de estar me tornando Horrível, mas planejo fazer Tahir
desobedecer a ordem do pai de não usar a raxia. Está na hora de tomarmos as
rédeas de nossos destinos, como adultos. Amanhã serei devolvida para a casa
dos Bratton. Hoje, precisamos gozar a vida.
Entendo cada vez mais a necessidade adulta de Tariq e Bahiyya que Tahir
sinta da mesma forma que eles. Também quero que ele sinta o mesmo que eu, e
não apenas me imite.
Se vamos morrer, quero que morramos compartilhando algo real antes.
Não conto nada disso a Farzad. Em vez disso, abaixo os olhos para a areia e
murmuro: — Está bem.

Farzad logo descobre o que eu poderia lhe dizer de início: eu estava correta.
Tahir não quer pegar ondas bebê. Ele quer jogar futebol com as garotas na
praia. Ele não mentiu quando disse a Farzad que seus dias de surfe ficaram para
trás, não só por causa das ordens médicas. — Emergi um novo cara depois do
acidente — explica Tahir a Farzad, mas olhando para mim. — Quero um esporte
novo. O futebol é o esporte do povo. O surfe é para rapazes privilegiados, da
elite. — Ele repete informações de seu banco de dados, mas só sei de uma coisa:
os outros pensam que Tahir expressa sua opinião.
Os olhos de Dementia quase lhe saltam das órbitas quando ela ergue o punho
em solidariedade. — É isso aí! Gosto desse novo Tahir!
E eu gosto de observar os músculos firmes desnudos do estômago de Tahir
flexionarem e ondularem conforme ele corre pela praia e chuta a areia. Se ele
estivesse longe, na água, minha visão seria quase tão boa. Eu me acostumei tanto
a tê-lo tão perto. Como vou sobreviver quando retornar à Casa do Governador?
Farzad me lança um olhar como se a nova atitude de Tahir fosse culpa minha.
— Uau, Tahir. Quantos analgésicos está tomando, de qualquer modo?
— Nenhum — diz Tahir.
— Ao resgate com a raxia! — grita Dementia, indo até a sacola para apanhar
algumas pílulas.
Finalmente, a oportunidade.
Farzad fica amuado. — Agora ele acha que é bom demais para isso também.
E meu tio e minha tia foram muito específicos que só deixariam Tahir sair
conosco hoje desde que ninguém — Dementia — usasse raxia, o amor desses
adolescentes irresponsáveis.
— E daí? — pergunta Dementia. — Vamos nos divertir! Esta raxia é da pura,
não aquela mistura esteroide esquisita que o Ivan faz. Esta é da boa.
Tahir olha em minha direção, e temos um daqueles momentos de
compreensão que vimos Tariq compartilhar com Bahiyya. Eu me inclino para
sussurrar em seu ouvido. — Se a raxia pode nos fazer sentir, talvez possa
também nos guiar para evitarmos os Horríveis?
Tahir acena para Farzad. — Sim — concorda Tahir. — Devemos provar a
raxia pura de qualidade superior.
Farzad ergue os braços. — A quem devo satisfazer aqui? Meu bro, que
claramente precisa de raxia, ou minha tia e meu tio?
— Seu bro — aconselha Dementia.
— Vamos usá-la — concorda Farzad.

Não entendo a atração dos adolescentes humanos por essa droga. Tudo o que ela
faz é sedá-los. Dementia e Farzad vêm das famílias mais privilegiadas do
mundo. Deitados de lado sobre as pranchas de surfe, olham fixamente um ao
outro ao cair em êxtase da raxia; seus corpos bronzeados, com roupas de praia,
revelam que são saudáveis, em forma e belos. O mundo praticamente pertence a
eles. Esses adolescentes poderiam fazer qualquer coisa que quisessem, em vez
de apenas aquilo que os outros os mandam fazer. Em vez disso, escolhem ficar
deitados na areia, olhos semicerrados, lábios ligeiramente sorrindo.
— Seu corpo é incrível — murmura Farzad para Dementia sem sutiã.
— Não, o seu é que é incrível — murmura Dementia para Farzad, que trocou
sua bermuda usual de surfe por uma sunga preta apertada, que revela que seus
dons são de uma estética que parece agradar à Dementia.
Eles engancham os dedos indicadores sobre a areia e logo caem em um sono
vago e preguiçoso.
Tahir e eu nos sentamos perto deles, rolando a bola para a frente e para trás.
Esta raxia pura não tem efeito em nós. Cada um tomou uma pílula, somos Betas
demais para reagir à coisa real. Até agora.
Tahir se estica para fazer cócegas em meu pé. — “Seu corpo é incrível” —
imita ele.
Eu me inclino e aperto o osso do joelho fazendo seu pé saltar
momentaneamente. — “Não, o seu é que é incrível” — respondo.
Alguma carga passa entre nós nesse momento, algo indefinível e intocável,
mas muito real. Estranho, sinto isso no coração. Uma angústia de desejo. Sei,
pelo seu olhar, que ele o sente também.
— Talvez a raxia esteja funcionando? — indaga Tahir. — Sinto algo
diferente. Não estou sonolento como eles. Sinto algo. Não excitação por
imitação, mas realmente excitado. Como é estranho. Meu coração está vagando.
— O meu também. — Estou começando a me sentir tão… viva. Formigando,
desperta, exuberante. Essa raxia que não contém os componentes de Ivan
misturados parece realmente me acordar para algo maior e mais brilhante que
qualquer coisa que tenha vivenciado antes. Eu me sinto mais que bem: estou
ótima. Olho para Tahir. Percebo um desejo ardente. Pelo rapaz.
Os olhos castanhos de Tahir brilham novamente, como da última vez que
usamos raxia. Eu enxergo algo neles: desejo. Isso não é um truque da
FantaEsfera. Seus olhos refletem desejo ardente.
Tahir engatinha mais perto e põe as mãos em meus ombros. Afaga-os.
Coloco as minhas mãos em sua cabeça e puxo seu rosto junto ao meu. Sinto meu
pulso acelerar e o coração se apertar — palpitar é a palavra que acho que os
humanos usam. De repente, preciso de Tahir junto a mim, sobre mim, já. A
necessidade é inesperada e visceral. Tahir deve senti-la também, pois seus lábios
pressionam os meus, mas agora seu beijo é forte e carente, em vez de suave e
exploratório. É como se estivéssemos de volta, em outro jogo de Romance, só
que estamos fora, no mundo, e o tempo e o espaço são reais. Desta vez há coisas
em jogo muito além de mera experimentação.
A língua de Tahir encontra o caminho para dentro de minha boca,
percorrendo meus dentes antes de se enrolar suavemente em minha língua. Uau
uau uau! Por um breve segundo, ele afasta seus lábios dos meus e murmura o
que estou pensando — “uau” — e então seus lábios se unem novamente aos
meus. Quero que este momento nunca acabe, mas também preciso que acelere.
Preciso de mais que um beijo. Tahir pressiona seu torso contra o meu e me
entrego à areia, adorando a sensação de seu peso sobre mim. Traço com os dedos
as partes entre as trancinhas em seu crânio antes de as mãos se aventurarem para
baixo, arranhando suavemente suas costas com as unhas. Algo mais é diferente
desta vez em relação às nossas seções de Romance na FantaEsfera. Com todos
os beijos e carícias durante a semana passada, as sensações do corpo nunca
avançaram tanto.
E então veio a raxia pura.
Suas mãos buscam minhas costas para desamarrar o sutiã do biquíni.
Desamarrado, atiro-o na areia e coloco minhas mãos de volta em seu corpo.
Meus dedos buscam debaixo do bermudão, vagam abaixo de seu tórax pela
primeira vez, buscando sua pélvis. Seu peito nu comprime meus seios e agora
entendo como e por que os humanos buscam a figura de dois corações batendo
em uníssono. Nós conseguimos. Tum-tum. Tão doce, quase insuportável!
Mas Tahir para. Ele desce de cima de mim e cai, de costas, ao meu lado. Seu
belo rosto parece perturbado. Ele se estica para tocar a minha mão.
— É estranho, com Farzad e Dementia bem aqui — sussurra.
Puxo a palma até meus lábios e a beijo. Então fico em pé, erguendo-o ao meu
lado. — Vamos!
Desço a praia correndo até a água e mergulho. Ele me segue.
Nadamos e nadamos sem parar até sairmos da vista de Farzad e Dementia
adormecidos. Pela primeira vez, entendo a obsessão dos humanos com a água de
Io. É pura mágica percorrendo minha pele, voluptuosa e intensa. Poderia
entender a compulsão de matar, para proteger o acesso até esta água de origem
paradisíaca.
Nossos pés afundam no leito raso do mar enquanto as águas violetas lambem
nossos corpos, e nossos lábios nos unem novamente. As mãos de Tahir
pressionam minhas nádegas e ele ergue meu corpo. Enlaço minhas pernas ao seu
redor e nossos corpos se pressionam um contra o outro. Agarro-me com força
nele e parece que não consigo parar de beijá-lo — pescoço, bochecha, testa, as
pálpebras que se fecham sobre os olhos da Matriz de Tahir. Quero tomar cada
centímetro de seu corpo. Minha sede é insaciável.
Sim, a raxia com certeza exerce um efeito diferente sobre os Betas que nos
humanos sonolentos deitados na areia distante. Meu corpo sente a diferença e, de
algum modo, minha mente também. É como se uma porta trancada dentro dos
caminhos neurais em minha cabeça não tivesse se aberto, mas se escancarado,
para deixar entrar um novo nível completo de vivência e compreensão. Mais
fundo, mais puro, mais real.
Então, a mão de Tahir está lá, entre as minhas pernas, e minhas costas se
arqueiam de prazer, com seus lábios em meu pescoço.
Ele endireita minhas costas para que nossos tórax se pressionem com força
um contra o outro. Ele interrompe os beijos desenfreados o suficiente para me
perguntar: — Você quer isso?
Experimento um sentimento de gratidão, compartilhar esse momento com um
ser que procura certeza em meu consentimento — não importa que seja um
servo fabricado. — Sim! Por favor!
Preciso saber o que é isso antes que tudo se vá.
Ele pressiona seus lábios preciosos contra meu ouvido. — Eu te amo, Elysia
— diz ele.
— Eu te amo também — respondo.
Desta vez ele está falando sério. Eu estou falando sério.
Não há retorno. Agora, ambos estamos completamente despertos.
O FOGO FOI ACESO. AGORA, ELE SÓ PODE CRESCER.
Uma coisa interessante ocorre quando a satisfação da raxia leva um príncipe
Beta proclamar seu amor a uma garota Beta comprada em loja.
Ele fica mais legal com seus pais.
Poderia ser apenas que Bahiyya pediu ao chefe de cozinha para preparar um
jantar à base de chocolate para minha noite final no complexo Fortesquieu, onde
Tahir e eu nos juntamos a Tariq e Bahiyya para a última ceia. Qualquer
delicadeza comigo parece animar Tahir. O primeiro prato foi chocolate branco
com caviar, seguido de salada de espinafre polvilhada com vinagrete de
chocolate amargo. O prato principal é ensopado de carne de veado com flocos de
chocolate meio amargo.
A parte meio amarga de mim é que o chefe de cozinha poderia simplesmente
descartar todos os ingredientes não essenciais como caviar, espinafre e carne de
veado e servir simplesmente prato após prato de chocolate. Antes da raxia,
achava o gosto do chocolate delicioso. Agora, pós-raxia, ele tem o gosto
incrível, a nível celestial. Mas a parte meio amarga da refeição é o
reconhecimento do inevitável. Em breve, deixarei a doce liberdade do lar
Fortesquieu e retornarei para a casa disfuncional dos Bratton.
Não sei como sobreviver na Casa do Governador após esta semana fora.
Tendo Tahir só para mim. Unindo-me a ele.
— Não quer comer um pouco de ensopado? — Bahiyya pergunta a Tahir. —
Costumava ser o seu favorito. Experimente. Quem sabe, se lembre?
De fato, Tahir não se importa com comida humana, mas sabe que ela mandou
preparar a refeição para me honrar de alguma forma, então engole uma
colherada.
— Delicioso, Maman — aprecia ele, chamando-a pelo termo carinhoso que a
Matriz de Tahir usava. O rosto dela se ilumina, ouvindo a palavra.
— Meu querido Tahir, você está voltando para nós. Sei disso. Posso vê-lo. —
Bahiyya se vira para sorrir com bondade para mim. — Elysia, meu anjo divino.
Como poderemos viver agora sem você?
— É verdade — concorda Tariq. — Tahir é mais feliz com Elysia aqui.
— Não consigo vivenciar a felicidade, Papa — Tahir relembra o pai
suavemente. Mas os olhos dele encontram os meus ao dizê-lo; ele sabe agora que
a felicidade não deve ser uma emoção totalmente fugidia para nós.
O rosto de Tariq se entristece um pouco com as palavras de seu filho. — É
claro que consegue, Tahir. Elysia é a prova de que é possível. Dê tempo ao
tempo.
Tahir toma outro gole do ensopado. — Mas… — ele faz uma pausa, como se
quisesse ter certeza do que está para dizer. Então proclama: — Eu quero
vivenciar a felicidade.
O rosto de Tariq se alegra novamente, e Bahiyya dá um gritinho. — Isso é
tudo que eu poderia pedir a você, meu querido. É tudo. — A emoção do
momento nos vence quando suas mãos cobrem seu rosto; ela precisa chorar para
desabafar. Quando passa, ela enxuga as lágrimas e olha para o marido. Eles
parecem compartilhar outro daqueles olhares telepáticos de decisão deles. Tariq
acena para ela e então se volta para mim. — Está acertado, então — diz Bahiyya.
— Vou ligar para os Bratton após o jantar e fazer uma oferta.
— Uma oferta pelo quê? — pergunto.
— Por quem? — interessa-se Tahir.
Bahiyya acena, e seu rosto se alegra. — Por você, Elysia. Comprarei você
dos Bratton e então poderá trazer felicidade para o meu filho o tempo inteiro.
Amanhã, terá que retornar para a casa até acertarmos os termos, mas assim que
passar o Baile do Governador, tenho certeza de que poderemos chegar a um
acordo com os Bratton.
Bahiyya leva a mão à cabeça de Tahir. Ele não se esquiva; em vez disso, pega
sua mão e a põe para acariciar sua bochecha. Quando ela toca seu rosto, ele se
aconchega na mão dela, como um gato, esfregando o rosto suavemente.
Ela sorri.
Então, de repente, seu rosto fica sério quando sua mão encontra algo
preocupante. Ela arqueja, então esfrega a mão com mais força no queixo de
Tahir.
— Barba — conta a Tariq, como se Tahir nem estivesse ali.
Seus rostos, há um momento tão ansiosos e felizes, empalideceram. Ninguém
mais está interessado em jantar, a julgar pelas suas expressões.
Com exceção de mim.
Estou morrendo de fome.
Esse rapaz disse que me amava. Somos companheiros. Agora, podemos ficar
juntos pelo tempo que nossos hormônios Beta nos permitirem sobreviver.
Podemos ser roubados de vidas longas, mas não de nosso precioso tempo juntos.
Sua barba fará dele um homem ou um Horrível.
De qualquer jeito, ele chegará lá comigo.
— Tahir deve ver a Dra. Lusardi amanhã — diz Tariq. — Ela pode testar uma
amostra da barba.
— Sim — concorda Bahiyya.
Porém.
— Não — afirma Tahir.
— O quê? — perguntam os pais juntos.
— Não — repete Tahir. — Não vou mais visitar a Dra. Lusardi.
— Esta não é uma decisão sua — diz Bahiyya.
Tahir olha a mãe com o mesmo tom amoroso que vi no rosto da sua Matriz
no álbum familiar holográfico e, pela primeira vez diante de mim — e
provavelmente de seus pais —, ele dá seu sorriso de Matriz de megawatts,
cintilando dentes brancos e puro carisma. — Maman, por favor! Tenho dores de
cabeça terríveis após os tratamentos da Dra. Lusardi. Não há nada mais que ela
possa fazer por mim. — Ele se inclina para esfregar o rosto no de sua mãe.
A reação de seus pais frente à recusa insolente é extática. Seus rostos brilham
de surpresa e orgulho. Seu clone finalmente parece e reage como seu filho.
— Então, está combinado — diz Tariq. — Por enquanto. Se é capaz de
expressar escolha e afeição, está claramente no caminho de se tornar mais
humano. Talvez não precise de mais tratamentos. Não estou convencido de que
esses tratamentos o melhorem mais do que os médicos estavam fazendo por você
em CB, de qualquer modo.
— Finalmente — completa Bahiyya — temos esperanças.
OS PAIS DELE FORNECERAM CHOCOLATE PARA
CELEBRAR minha última noite em seu lar.
Tahir providenciou uma piscina olímpica na versão FantaEsfera.
— Como gostaria de passar sua última noite aqui? — perguntou após o
jantar.
— Gostaria de mergulhar. Acho que minha Matriz era mergulhadora.
Gostaria de vivenciar seu mundo competitivo. Versão Defeito de Equipe.
— É provável que a versão Defeito de Equipe seja uma melhora — comenta
Tahir. — Mais força e agilidade, sem todas aquelas aspirações e distrações
humanas incômodas.
Assim, estou nos Jogos Olímpicos de Paris, em meio às Guerras da Água.
Enquanto países e nacionalidades são dizimados e realinhados, a necessidade de
uma esperança comum, como exemplificada pela tradição olímpica, jamais foi
mais forte. Os jogos devem continuar.
É a minha vez de mergulhar.
Dou passos atrás da plataforma dos trampolins de mergulho, jogando
“mamãe-mandou” para determinar qual trampolim é o melhor para mim. Paro na
torre de cinco metros, mas sinto frigidez quanto a seu potencial. Seguro demais.
Dou um passo em direção às escadas do de sete metros. Há possibilidades aqui,
mas é sem graça. Finalmente, chego à plataforma de dez metros, e meu corpo
sente o calor da vontade. É aqui que Z teria escolhido para mergulhar. Ela teria
procurado o último GD — grau de dificuldade.
Os pés descalços pressionam para baixo enquanto subo as escadas e sinto
algo nestes degraus duros e úmidos que parece familiar, confortador e
desafiador. Embora ainda não tenha imergido na água, sinto seu espírito se
erguer até mim da piscina, a primeira vez que incorporo Z com tanta força ao ar
livre. Faça-o por mim, ela pede. Porque eu não posso.
Chego à prancha do topo e subo nela. De dez metros de altura consigo ver,
além da piscina e das arquibancadas do público, uma vista panorâmica da
cidade. A Torre Eiffel se eleva enorme acima da cidade lendária e o sol rosa
alaranjado lança um leve crepúsculo no céu. Estreito os olhos para os assentos
para ver o público de todos os lugares do mundo. São de diferentes tamanhos e
cores, mas todos têm olhos fúcsia. Meu povo. Meus olhos focam no melhor
espectador da multidão, sentado na fileira da frente, acima do ponto central da
piscina. Seus olhos são castanhos, metade do cabelo está trançado e ele me olha
com forte ansiedade, talvez até com orgulho. Ele dá o sorriso megawatt de sua
Matriz e então o troca, fechando a boca para que os dentes não brilhem e ergue
as sobrancelhas, um gesto sensual distinto que anuncia, agora eu possuo este
rosto. Ergue os polegares para cima num gesto, e meu coração se alegra porque
esta pessoa na multidão acredita em mim. Faço-lhe um sinal com os polegares
para cima e caminho até o final do trampolim.
Agora, preciso esquecer de Tahir nos assentos e focar minha energia. Lá em
cima, erguendo-se acima da cidade, mas também acima do ponto central ao qual
sei que a alma da minha Matriz pertence — a piscina —, deixo que uma onda de
distanciamento passe por mim, obscurecendo a vista dos assentos e da cidade
que se descortina à frente. Esta é a sua concentração tomando conta, bloqueando
tudo com exceção do próximo mergulho. Assim mesmo, em meio ao nada, um
rosto familiar entra em frequência — o surfista de olhos turquesa e tórax largo. É
então que entendo o que ocorreu à carreira de mergulho de Z. Ela perdeu o foco
por causa dele.
Vá embora, digo a ele. Ele obedece. Minha mente volta ao nada, por escolha.
Não serei distraída por ele. Este mergulho é meu. Posso fazer isto por Z e fazê-lo
melhor que Z. Posso divinizar meu poder Defeituoso para este mergulho.
Na beirada da prancha de dez metros de altura, coloco minhas mãos no chão
e ergo minhas pernas acima de meu corpo. Não penso sobre o risco de meu
corpo suspenso de cabeça para baixo, dez metros acima do solo, erguido por
nada além de minha força interior; em vez disso, foco meu pensamento no
movimento que estou para fazer. Meu corpo se mantém na parada de mãos pelos
cinco segundos necessários enquanto visualizo o mergulho que estou para
realizar, uma parada de mãos, saída à frente em duplo mortal. Cinco… quatro…
três… dois… um: lanço-me com as mãos e impulsiono meu corpo em um giro,
segundo giro e então encolho a cabeça contra o peito, estendo os dedos dos pés e
entro na água quase sem espirros.
Perfeito.
Embaixo d’água, sinto alegria e orgulho. Fiz isso por ela, mas também por
mim. Não estou só no fundo da piscina. Desta vez, quando o rosto do amante de
Z aparece, ele está diferente. Seu cabelão loiro está trançado até a metade e seus
olhos são castanhos. O rosto se amolda naquele que eu quero que seja. Sua voz
grave não diz “você sabe que me possui, Z”. Em vez disso, a voz que ouço é de
Tahir me perguntando: “Por que alguém deveria poder te possuir?”.

É a vez de Tahir escolher nosso jogo final no FantaEsfera. Vamos de Paris para a
Cidade de Bioma.
— Helicóptero-planador CB — diz ele. — Já que não podemos vivenciar a
coisa real sem supervisão humana, aqui podemos voar sozinhos no espaço.
Tahir pilota o helicóptero a baixa altitude sobre o Bairro do Mel em CB. O
teto, chão e laterais do helicóptero são de plástico transparente, permitindo vistas
infinitas do céu noturno, anunciando milhares de estrelas piscando acima do
planador e abaixo, vislumbres diretos nos lares-colmeias dos residentes da
vizinhança, a quem vemos através das janelas, em seus rituais noturnos:
preparando o jantar, colocando os filhos para dormir, fazendo amor.
Aninho minha cabeça no pescoço de Tahir. Ele segura minha mão, a coloca
em seu joelho e a cobre com a mão dele. Inclina-se para me beijar o rosto. A
distração de nosso beijo leva o avião a bater contra um complexo de
apartamentos-colmeia. Outra vantagem de voar em um avião virtual pilotado por
um clone inexperiente: nenhum dano, nenhum choque. O helicóptero mal quica
do complexo, como se o prédio fosse feito de borracha. Os residentes do local
não são perturbados, e o piloto pode escolher colocar o avião em piloto
automático, para que ele e seu passageiro possam voltar a seus carinhos.
Nossos beijos são lentos e curiosos, e inevitavelmente devem incluir mãos e
passar para contato total de corpos. Quando nossas posições sentadas não
conseguem mais acomodar nossos gestos, Tahir comanda: — Aterrissar. Dunas
de areia.
O avião aterrissa sozinho sobre uma duna de areia em forma de pirâmide fora
da cidade. Tahir e eu saímos e caímos na areia. Ele engatinha sobre mim, segura
meu rosto nas mãos e seus olhos castanhos olham intensamente dentro dos meus.
Abro a boca para outro beijo, mas ele precisa contar seus sentimentos.
— Estou repleto de tristeza — diz ele. — Tanta dor. É horrível. Como os
humanos podem sobreviver a isso?
— Por quê? — Minha mão acaricia sua bochecha recém-barbada. Queria que
ele sentisse algo, mas não tristeza. O fato de ele estar magoado leva meu coração
a se contrair de dor.
— Não quero que nos separemos. Aquela senhora a quem chama de Mãe já
falou a Bahiyya que está contente em receber ofertas por você, mas que nada
pode ser finalizado até depois do baile. Tenho certeza de que ela só está
ganhando tempo para conseguir um preço maior de meus pais.
— Não quero voltar — confesso. Não conto a Tahir o que me assombra de
volta na Casa do Governador. O senhor da mansão que pretende fazer de mim
sua prostituta. A Mãe louca que pouco se importa se eu for lançada do rochedo.
— Fico triste de você ter que ir embora. Me enfurece — sim, me enfurece!
—, até a perspectiva de você ser considerada propriedade. Mas... — Tahir faz
uma pausa e inspira fundo, como se resolvendo —, preciso que volte
temporariamente. Preciso que ganhe algum tempo para nós.
— Por quê?
— Se você estiver por perto o tempo inteiro, não consigo resistir a você.
Agora que estou totalmente desperto para você, para esta vida e suas
possibilidades, quero você comigo o tempo inteiro, para podermos forjar um
novo caminho. Para realizar isso, não posso ser distraído, para poder formular
um plano.
Entendo sua necessidade de se concentrar. Foi como consegui realizar um
mergulho olímpico perfeito da plataforma de dez metros no jogo anterior da
FantaEsfera. Bloqueando todo o resto e todos os outros.
— Um plano para quê? — Olho em seus olhos castanhos, que pareciam
suaves e sonhadores antes. Agora, estão acesos em determinação e raiva.
— Agora eu sei. Somos criaturas inferiores. Mas nossos sentimentos
deveriam importar tanto quanto. Quem sabe daqui a quanto tempo vou me tornar
Horrível? Precisamos vivenciar tudo o que eles jamais nos permitirão antes de
morrermos.
— Talvez possamos sobreviver aos Horríveis. Talvez possamos nós mesmos
descobrir uma cura.
— Concordo. Mas nossa única esperança de isso acontecer é se nós fugirmos.
Estou arquitetando um plano.
— Fugir? Mas e os seus pais? Eles te amam tanto!
— Sei disso. Agora também sei disso. Não me agrada que minha fuga os
magoe. Mas isso é algo que preciso fazer por mim. De outro modo, jamais serei
capaz de ter minha própria identidade. Quero que você compartilhe essa vida
nova. Você faz parte de mim agora. Não posso deixar você. Você concorda?
Tantas vezes eu disse essa palavra para agradar os humanos. Esta é a primeira
vez que a proclamo por mim mesma e por Tahir e por todos da nossa espécie: —
Sim!
Não há júbilo, e aí está a realidade. — Mas… como? — pergunto.
— Vamos embora juntos, voando. Vou passar o tempo que estivermos
separados praticando como pilotar um helicóptero-planador verdadeiro. Então
vou roubar o avião de meus pais para nos levar embora daqui.
— Para onde?
— Não sei. Isso importa?
Não importa. Desde que estejamos juntos.

— Li a esse respeito em um dos livros da Matriz de Tahir. Os franceses o


chamam de la petite mort — me conta Tahir, passando a mão em meu cabelo
loiro. Nós despertamos um nos braços do outro no alvorecer em nossa cama de
duna de areia. O helicóptero-planador está estacionado a distância, esperando
para nos levar de volta ao tempo e espaço reais. — Aquele momento de
liberação com a pessoa a quem se ama, eles dizem que é como uma pequena
morte.
— Uma super-super? — murmuro. A terminologia de Greer faz mais sentido
para mim agora. Aquele momento de maior liberação e entrega, conforme ondas
de prazer encrespam o corpo, eu entendo. É super-super extraordinário.
Obrigada, raxia.
— Prefiro morrer a deixarmos de vivenciar nossa própria liberdade — afirma
Tahir.
— Eu também.
Agora podemos juntar um desejo de morte ao nosso pacto de fuga.
E a promessa de uma ação.
Até agora, em Io e na FantaEsfera, professamos nosso amor um pelo outro.
Experimentamos la petite mort juntos. Mas, tecnicamente, não realizamos o ato
real, o ato de copular para o qual os humanos têm tantas palavras diferentes,
todas significando a mesma coisa: Sexo. Coito. Trepar. Super-super. Fazer amor.
Tahir e eu decidimos nos guardar.
Compartilharemos a coisa real quando estivermos livres.
DE VOLTA À CASA DO GOVERNADOR, SOU COMO Astrid, a
quem substituí: não senti saudade alguma dos Bratton enquanto estive fora. De
qualquer modo, ao que parece, mal notaram minha ausência. Com o Baile do
Governador de amanhã, a família tem um turbilhão de atividades. Os
empregados de olhos fúcsia nunca pareceram tão apressados ou ocupados como
após minha volta.
Fujo imediatamente para o santuário do meu quarto, que nem mesmo é meu.
Devo esperar lá até que a Mãe me chame. Devo ficar aqui só por pouco tempo,
reafirmo a mim mesma. Posso fingir que o quarto é minha própria FantaEsfera
com Tahir.
Mas a privacidade não é para ser minha. Ivan surge esbaforido em meu
quarto, parecendo suado e pálido. Fecha a porta e pressiona o corpo contra ela,
quase como se quisesse se jogar contra a superfície dura para induzir dor, ou
mostrar que pode lidar com a dor.
— Adivinha!
Dou de ombros.
Esses humanos e seus jogos de adivinhação começam a me irritar.
— O Aquino fez uma varredura da ilha, procurando raxia dos Defeituosos e
encontrou grande quantidade escondida no canteiro de obras no Refúgio.
— Uau — surpreendo-me.
Não me sinto nada uau. A acompanhante de brinquedo dos Bratton, agora
sem seu companheiro Beta, só quer saber de se jogar na cama e chorar em um
acesso de raiva, como criança.
— O Pai armazenou a raxia em um cofre aqui, na Casa do Governador, e eu
sei o segredo! Há tanta quantidade, posso tirar um pouco e ninguém notará. Fiz
todo o tipo de experiências enquanto esteve fora. — Ele flexiona os bíceps
protuberantes; parecem duas vezes maiores que da última vez que nos
exercitamos juntos.
Duplo uau, de verdade! Preciso conseguir essa combinação e abastecer a
mim e ao meu amor.
— Você parece muito forte, irmão — elogio. Ele parece tão fortemente
viciado. Suspeito que só um pouco de raxia nunca mais lhe bastará. Como vai
sobreviver na Base?
— Certo? — avalia Ivan. — Deveria agradecer pessoalmente o clone que,
dizem, estocava a raxia. Dizem que liderava a tal da Insurreição. Você perdeu
tanto enquanto esteve fora!
Há um líder? Como posso entrar em contato com esse clone?
Outro desejo inatingível.
— Sorte que levaram o cara embora — acrescenta Ivan. — Disseram que era
um Defeituoso enraivecido planejando construir mais bombas.
Analiso a situação: sou um clone sem Transmissor para me comunicar com
outros de minha espécie. Tenho um chip com informações, algumas falsas, o
resto apenas fatos básicos; tenho implantado um localizador que pode identificar
meu paradeiro para os humanos, em qualquer lugar. Só posso expandir minha
base de conhecimento por experiência, não por projeto inerente. Não tenho
privacidade alguma nem tampouco poder. Sendo realista, como posso criar um
pacto de fuga com Tahir? Vamos precisar de ajuda. Nossos próprios recursos não
serão suficientes. Precisamos encontrar esse suposto líder da Insurreição.
— Então, o Defeituoso foi devolvido para a Dra. Lusardi?
Tahir e eu poderíamos invadir o complexo da Dra. Lusardi e libertar os
Defeituosos! Não é um sonho lindo?
— De jeito nenhum! O Defeituoso foi extinto imediatamente.
Ou não.
— Como era chamado esse clone? — pergunto, embora tenha certeza que já
sei.
— Não estou certo. Mike ou algo assim? Era um controlador de oxigênio.
Dizem que tramava sabotar a atmosfera aqui.
O controlador de oxigênio deveria ser Miguel, o amado de Xanthe. Ao menos
agora seus corações devem se juntar no porvir, caso tal coisa exista. Se os
humanos não arruinaram isso para eles também.
Se Ivan tivesse a mínima desconfiança do quanto sou Defeituosa, perceberia
que deveria se afastar de mim agora, pois tenho um desejo súbito de
responsabilizá-lo pelas transgressões de seus irmãos humanos.
Ivan não tem um pingo de preocupação. Puxa um saco de comprimidos do
bolso e diz: — Tenho esse estoque pequeno de raxia que furtei do cofre, mas é
perigoso demais mantê-lo em meu quarto agora. Duvido que venham procurar
lá, mas não posso me arriscar, especialmente tão perto de minha partida oficial
para a Base. Só mais alguns dias, cara!
Sério, o suor quase escorre pelo rosto e sua respiração parece mais pesada e
forçada. Suspeito que agora ele é um viciado.
— Você está bem, irmão? — pergunto. Você está bem com a raiva que me
impregna por dentro e que, de repente, gostaria de expressar abertamente, de
alguma forma? Pois começo a me sentir bem com a perspectiva, mesmo que isso
pudesse me revelar como Defeituosa.
— Só um pouco ouriçado, talvez. — Ele coloca o saco de raxia na gaveta da
minha cômoda. — Guarde bem para mim, tudo bem, campeã?
Vou assumir o risco. Em breve, Tahir e eu poderemos colocar em uso próprio
a porção de Ivan. Essa notícia ruim tem, pelo menos, um lado positivo para mim.
— Tudo bem, irmão — concordo.
— Então, como foi nos Fortesquieu? — interessa-se Ivan.
— Harmonioso e bonito, é claro — respondo. Raiva, retraia-se. Não estou
pronta para lidar com você ainda. Não tenho ideia do que devo fazer com você.
— Então você gosta de pensar que é melhor que nós, agora que foi convidada
dos Fortesquieu? — diz, brincando. Acho…
— Eu não era hóspede, era companheira de trabalho.
— Talvez tenha feito seu trabalho bem demais. Ouvi que eles querem te
comprar agora.
— Ainda podemos ser companheiros de treino, quando você voltar para casa
da Base — tranquilizo Ivan.
Os olhos de Ivan se estreitam em mim, descontentes, como se eu tivesse feito
algo de errado por ser uma Beta boa demais.
— Nós possuímos você primeiro — ele me relembra e deixa meu quarto.

Sozinha no quarto, depois de Ivan sair, olho ao redor as paredes estéreis, a vista
da janela para a vereda que leva ao precipício onde minha amiga Xanthe foi
morta. Não consigo fingir que o quarto é minha FantaEsfera com Tahir. É uma
prisão.
Entro no quarto de Astrid e sento em frente à penteadeira. Olho no espelho,
vejo meus olhos fúcsia, maçãs do rosto salientes, pele de pêssego perfeita, tudo
isso criado para mim, mas será que isso tudo é realmente meu? Sou só uma
réplica de um ser prévio. Como reivindicar minha própria identidade sem
descaradamente anunciar para os humanos: sou Defeituosa? Por favor, me
torturem e, então, me eliminem?
Somos seres inferiores. Ainda assim, nossos sentimentos deveriam importar.
Lembro as palavras de Tahir enquanto puxo um fio de cabelo loiro pendurado
abaixo dos ombros. Torço o cabelo ao redor do dedo indicador, esse cabelo que a
Mãe tanto ama trançar.
Esse cabelo que odeio que trancem. Odeio.
A Mãe acha que é dona desse cabelo. O Ivan acha que é meu dono.
Eles não só acham que me possuem. Eles me possuem, isso é fato.
Esse fato vai mudar. Eu vou mudar.
Abro a gaveta da penteadeira e vejo uma tesoura. Coloco uma faixa de cabelo
para a frente, entre os dedos, e corto. Terei uma franja: eu decidi. Pic. Pic. Pic.
Olho no espelho a franja irregular pendurada acima das sobrancelhas. Não é
suficiente. Quero me livrar de mais cabelo. Pego o cabelo de trás e não o corto
apenas; ataco com a tesoura e o picoto imprudentemente. Pic. Click. Zap. Fora.
A cada mecha loira comprida que cai ao chão me sinto mais e mais livre.
Vou me tornar eu mesma, quer gostem ou não.

Fui chamada para o estúdio da Mãe.


Ao entrar, seus olhos estão baixos, na mesa, revendo a lista de convidados.
Ela não me olha imediatamente, mas diz:
— Então, querida. Acho que fez muito sucesso nos Fortesquieu.
— Sim, Mãe.
— É uma pena, realmente. Agora não terei escolha a não ser vendê-la para
eles. Você me fez parecer bem aos olhos deles, mas a um custo alto; não estava
preparada para te liberar para sempre. O Governador não quer que eu negue um
pedido daquela família.
— Sim, Mãe.
Sim!
A Mãe ergue os olhos e os arregala; seu queixo cai. Ela aponta um dedo para
mim.
— Eu avisei você para pedir à Bahiyya para falar comigo antes, se quisesse
alterá-la de alguma forma. — Ela se ergue, caminha para mim e passa os dedos
pelo meu cabelo recém-tosquiado. Embora ainda não esteja livre desta casa,
estou livre do cabelo que a Mãe valorizava tanto. Meu novo corte curto é
selvagem e despenteado, arrepiado, tão diferente da estética clone de Demesne,
chata e refinada.
— Nossa, a Bahiyya tem um gosto horrível — critica a Mãe. — Será uma
nova tendência de cabelo na CB?
— Não tenho esses dados — informo. Sei que a Mãe não irá protestar contra
o corte de cabelo para uma figura tão socialmente poderosa quanto Bahiyya;
posso já estar vivendo com os Fortesquieu antes que ela perceba que cortei o
cabelo sozinha.
— Esse corte novo não combina com seu traje de baile, mas não há nada a se
fazer agora — suspira ela.
— Minha roupa de baile? — repito. — Vou servir no baile?
— Posso não ter escolha, a não ser vendê-la para Bahiyya. Mas se você é tão
especial a ponto de ser comprada por nada menos que os Fortesquieu, bem,
então, convenci o Governador, por sua vez, que é adequada para ser minha
companheira no Baile. Você não será uma convidada, obviamente. Mas
tampouco irá servir. Em vez disso, ficará em exibição. Então, todo mundo saberá
que eu fui a primeira a te adotar. Você foi minha antes.
SOU A PRIMEIRA BETA CONVIDADA PARA UM BAILE.
Não sou convidada, tampouco trabalharei aqui. Sou uma peça de arte
performática, sentada em um balanço branco pendurado no teto alto, de onde
observo a cerimônia, a seis metros acima do chão, proporcionando
entretenimento estético para a multidão.
Todas as famílias de Demesne vieram à ilha para a gala anual, realizada no
salão de baile no Refúgio. Não só a festa conta com as pessoas mais poderosas
do mundo, mas com os seus brinquedos humanos, posando esta noite como
convidados: estrelas do entretenimento, políticos, atletas de renome mundial, que
ganharam convites raros para vivenciar a oportunidade única de vir à Demesne
naquela noite. Em meio à multidão, vejo as amigas de mah-jong da Mãe, amigos
de Ivan, os Fortesquieu, e muitas das pessoas dos cartões de instrução de Tahir,
incluindo o rei de Zakat e o jogador de futebol de renome mundial conhecido
como Esfinge.
Não é pouca coisa as pessoas mais ricas e poderosas do mundo se reunirem
para uma festa, tampouco é seu ponto de encontro. O grande salão de baile no
Refúgio é projetado no estilo do Salão dos Espelhos, do Palácio de Versalhes da
França antiga, modernizado com toques que refletem a cultura própria distinta de
Demesne. O salão é um espetáculo do piso ao teto. Como seu antecessor, o Salão
dos Espelhos do Refúgio tem dezessete imponentes janelas em arco, separadas
por pilastras de mármore decoradas com esculturas douradas. As janelas dão
para fora; têm 357 pedaços de espelho embutidos nas janelas em arco a refletir a
exposição pródiga exterior de cores coral das flores-tocha cuvée para dentro da
sala, com efeito hipnotizante. Dezessete grandes lustres de cristal, e 26 menores,
feitos de prata maciça, pendem do teto; desses candelabros, milhares de velas
iluminam o ambiente. O piso do salão é padronizado com o característico
Assoalho do Novo Versalhes de Demesne, encontrado em muitas das casas
locais: grandes quadrados de tacos de bambu, dispostos em viés, com motivos
diagonais entrelaçados representando a flor-de-lis, símbolo da ilha. As obras de
arte no Salão de Espelhos de Versalhes representavam as vitórias de Luís XIV e
do simbolismo da França. Já os afrescos que revestem as paredes e o teto do
salão do Refúgio retratam Demesne em toda sua glória: o oceano violeta
ondulante, as falésias costeiras, a montanha vulcânica elevada e a selva interior;
casas como o complexo Fortesquieu, em estilo mexicano de calcário, e a Casa do
Governador; uma vista aérea de toda a ilha com o anel violeta de Io separando
seu perímetro do resto do mundo; o nascer do sol no Refúgio; retratos de rostos
perfeitos tatuados nas têmporas com flor-de-lis violeta.
Em um canto da sala, uma plataforma foi criada para a apresentação musical
da noite, a O.S.R., ou Orquestra Sinfônica de Replicantes, de Demesne. A
sinfônica masculina é composta de todas as castas de clones, tatuados de bambu
a azevinho, de trabalhadores simples a profissionais de tênis, todos de smoking
preto e branco. Com seus corpos perfeitos e rostos com aparência agradável, é
provável que sejam a orquestra mais bela do mundo.
Mas todos são críticos. A Mãe comenta:
— Afinação perfeita. Paixão zero. — Abanando uma pena de pavão na frente
do rosto, ela parece pouco impressionada com a O.S.R. finalizando uma peça de
Mozart.
Em pé, abaixo de meu balanço no canto oposto à O.S.R., ela se postou à
frente da procissão de convidados recém-chegados cumprimentando o
Governador e sua família. O tema da Gala deste ano são os deuses gregos, com a
Mãe fantasiada de Hera, a deusa do lar e do casamento, esposa ciumenta e
vingativa de Zeus, cujo carro era puxado por pavões. O Governador é o
poderoso Zeus, é claro, enquanto Liesel usa um vestido nos tons do arco-íris,
simbolizando a deusa Íris, a personificação do arco-íris e mensageira dos deuses.
Por estar prestes a ingressar no exército, Ivan veste um uniforme militar formal,
mas com um abutre preto clonado descansando no ombro, para simbolizar Ares,
o deus grego da guerra. Abutres, que atacam as carcaças mortas no campo de
batalha, eram sagrados para Ares.
Nem todas as famílias se vestem com o tema proposto. O evento de gala
anuncia paz e prosperidade, mas o que foi perdido durante as recentes Guerras
da Água não é esquecido. As famílias ainda em luto vestem preto tradicional
para eventos formais. Entre eles, os Fortesquieu que, no final, optaram por trazer
Tahir. Durante minha semana em sua casa, debateram se Tahir estava realmente
pronto para ser reintroduzido na sociedade, daí os cartões e, talvez a
companheira Beta, devem ter feito o trabalho de forma satisfatória para prepará-
lo. A moita de cabelo meio trançado, meio selvagem de Tahir se foi, substituída
por fileiras trançadas que revestem o couro cabeludo em oito linhas perfeitas.
Ele e Tariq trajam ternos pretos de seda feitos sob medida, simples e elegantes, e
Bahiyya, que deve ter perdido mais familiares que qualquer outra pessoa na sala,
veste uma roupa criada para seu porte de rainha. Em vez de vestido, usa calça
preta de seda parecida com a de seus homens, mas com uma jaqueta preta
feminina sobre um corpete debruado com crepe, ornamentado com bordado e
decorado com renda, feito de peças de um dos vestidos de luto da rainha Vitória,
que Tariq comprou para Bahiyya em leilão, de um museu real já fechado. Seu
longo cabelo branco, descendo até a cintura, foi entrelaçado com fios brilhantes
com pequenas pedras preciosas: safiras, diamantes, rubis e esmeraldas, contraste
deslumbrante com seu traje negro simples, mas elegante, bem discreto.
Esse recato não faz parte de meu traje. A Mãe decidiu que minha aparência
angelical mais se assemelhava à de Artemis, a deusa helênica de meninas jovens,
ou seja, virgens. Para mim, ela escolheu um vestido branco curto concebido
como fantasia de caçadora donzela. O modelo deixa pouco para a imaginação.
Embora cubra pouco acima dos joelhos e tenha um cinto trançado de ouro na
cintura, o corpete do vestido tem um decote em V revelador que mal cobre meus
seios e vai até um pouco acima do umbigo. Meu cabelo recém-cortado não é
longo o suficiente para o penteado que a Mãe planejara, então ela optou por uma
guirlanda de flores peroladas brancas sobre as mechas loiras emoldurando o
rosto. A parte inferior das pálpebras foi delineada com lápis cobre e as pálpebras
acentuadas com sombra violeta; as sobrancelhas, definidas com lápis castanho-
claro e cílios postiços adicionados aos naturais. Os lábios foram pintados com
um batom rosa violáceo.
A Beta da Mãe, prestes a ser comprada por nada menos que a família
Fortesquieu, era uma posse valiosa demais para não ser exibida este ano. A ilha
toda deveria ser capaz de ver o que a família Fortesquieu cobiça. Agora que
podem me ver tão vibrante em exposição no balanço, todos vão querer um Beta
adolescente, e tudo porque a Mãe começou a tendência. Ou é isso que a Mãe
espera. Os comentários iniciais do primeiro grupo de convidados da noite a
agradam. Os convidados me admiram no balanço e avaliam a aparência: —
Extraordinária! A melhor Beta até agora! — Risadas, risadinhas, risinhos.
Eu simplesmente balanço lá em cima, não participo, nem trabalho nas
festividades.
Vejo Tahir, no meio do salão, engajado em uma conversa com o rei de Zakat.
Devido à música, não consigo ouvir a conversa, mas observo sua linguagem
corporal reagindo com familiaridade ao Rei ao jogar a cabeça para trás e rir de
algo dito pelo outro, levando Tariq e Bahiyya a trocarem um de seus olhares de
aprovação.
Tudo o que consigo fazer nesta ilha é observar. Mas agora tenho um pacto
com Tahir. Em breve, faremos as coisas acontecerem para nós. Em breve,
buscaremos a liberdade. Digo a mim mesma que posso aguentar até lá. Espere só
um pouco mais, Elysia.
Mal posso conter meu desejo de saltar deste balanço, me apossar de Tahir e
fugir com ele neste instante. Desejaria que ele olhasse para mim para me
reconhecer aqui, sozinha neste balanço, reconhecer nosso pacto, para me
tranquilizar durante este balanço artístico que desempenho, mas seus olhos não
encontram os meus.
Talvez esteja envergonhado demais para olhar para cima. Ou muito zangado.

Não há música alguma tocando, mas Dementia sente uma dança em seu íntimo.
Ela não pode deixar de dançar. E assim, sozinha no meio da pista, ondula os
braços em movimentos como uma sílfide enquanto gira o ventre nu e o quadril
para cima e para baixo, para trás e para a frente. Sua dança é notável não só por
causa da falta de acompanhamento musical e de um par, mas também devido à
forma que sua fantasia se move (ou melhor, não se move) com os giros. Hoje ela
é Afrodite, a deusa do amor que surgiu do mar. Dementia criou uma fantasia que
não usa tecido algum. Em vez disso, “veste” (se é que se pode chamar assim)
uma mistura química rígida, à semelhança da espuma do mar, pulverizada para
cobrir as partes íntimas e nada mais. A Afrodite de Dementia é corpo e espuma,
e absolutamente nada de tecido. O branco róseo da espuma do mar combina
muito bem com sua pele morena.
Greer, em pé, abaixo do meu balanço com Ivan e Farzad ao seu lado,
resmunga:
— Em cinco… quatro… três… dois… um… e sim, lá estão eles, bem no
horário.
Os Cortez-Olivier, barões do transporte, e pais de Dementia, que fizeram
fortuna desenvolvendo petroleiros fortes o suficiente para suportar a nova força
do oceano, fazem sua entrada tardia no salão, a tempo de presenciar o espetáculo
descarado da filha para todos.
— Pela expressão de seus rostos, mamãe e papai não verificaram o traje dela
antes de saírem para o baile — ironiza Greer.
— Demetra! — grita a Sra. Cortez-Olivier. — Venha já aqui! Isso é
totalmente inadequado!
O pai toma as rédeas da situação, em vez de gritar com a filha. Ele gesticula
para um segurança-clone nas proximidades, que corre na direção dela, tira o
casaco e cobre seu corpo quase nu, então leva Dementia, que grita e chuta, para
longe do salão de baile.
Aparentemente, o código social de Demesne exige certa aparência de
modéstia.
— Dementia ataca novamente — avalia Ivan.
— Acho que é dela que você sentirá mais falta quando nos abandonar e for
para a Base — Greer brinca com Ivan. Hoje, Greer está de Selene, a deusa da
lua, muitas vezes retratada cavalgando um par de dragões serpenteantes. Veste
uma túnica branca com uma meia-lua sobre o cabelo ruivo esvoaçante e carrega
uma garra esculpida em forma de dragão. — Ao menos ela torna as coisas mais
interessantes aqui na Ilha Chata.
— Elysia é de quem eu mais sentirei falta — diz Ivan, conforme balanço
acima dele.
— Ela praticamente não é mais sua. — Farzad lança um olhar de desgosto
incontido em minha direção.
— Droga! — exclama Greer, distraída de repente. — Dementia ficará tão
triste por perder isso.
— O quê? — indaga Farzad.
— Meu belo Aquino! — Greer suspira quando um novo convidado entra no
salão.
— Quem? — interessa-se Farzad.
Vejo alguns oficiais, convidados da Base no continente, de uniforme militar
formal, parando para falar com o Governador e o pai de Greer.
— Aquele cara no meio — aponta Greer. — O bem alto. Ele é o Aquino.
Este deve ser o seu oba final. Sua missão em Demesne está terminando. Vou
chorar tanto quando ele for embora desta ilha.
Faço um esforço para localizar este Aquino, o homem que, segundo Xanthe,
está supostamente em Demesne para proteger os direitos dos clones, mas que, de
fato, é uma ameaça direta à nossa espécie. Por causa dele, Becky foi enviada de
volta para a Dra. Lusardi para “experiências”. Por causa dele, os rumores da
Insurreição cresceram em excesso… e Xanthe foi empurrada de um penhasco
para a morte. Por causa dele, o amado de Xanthe foi exterminado. Mas antes de
localizar o Aquino, meus olhos se voltam e se fixam em Tahir. Quero observá-lo
apenas, conversando agora com o Esfinge, que, brincando (ou não), o empurra,
tentando obter alguma reação. Qualquer coisa dita entre eles faz com que o
Esfinge grite: — Você é uma farsa, Tahir Fortesquieu! — antes que o rei de
Zakat interrompa para acalmar o atleta. Tariq e Bahiyya parecem pouco calmos;
rapidamente, escoltam Tahir para fora do salão de baile e longe de minha vista.
Eu deveria estar com ele, para ajudá-lo.
Farzad segue os Fortesquieu para fora do salão, deixando Greer sozinha
abaixo de mim.
— Vinde a mim, Aquino — murmura ela sensualmente, como se praticando
sua cantada mais sedutora. Ela ergue o olhar para mim. — Parece ridículo, não
é? Ajude-me a pensar em algo melhor a dizer.
— Aponte-o e tentarei verificar em meus dados algo inteligente a lhe dizer
— respondo.
— O loiro alto no meio do salão, rodeado pelo bando de mulheres de meia-
idade ofegantes — descreve Greer.
Sem Tahir para me distrair, meus olhos rapidamente focam no Aquino. É
difícil ver bem seu rosto, mas consigo enxergar que o cabelo loiro é cortado
curto, à máquina, e que é um homem forte. Quando finalmente ele olha acima
das admiradoras, seu olhar encontra o meu por uma fração de segundo. Seus
olhos, tão turquesa. Seu olhar registra reconhecimento. Um raio atinge
diretamente o núcleo do meu ser, a mesma corrente elétrica que senti embaixo da
água.
É ele. O Aquino é o homem que pertencia à minha Matriz, o amado cujo
coração ela possuía.
O GOVERNADOR ESTÁ EMBAIXO DE MEU BALANÇO. —
Elysia, desça imediatamente. Leve a Mãe até sua suíte para descansar. Ela bebeu
demais.
— Sim, Governador — respondo, descendo a escada que os trabalhadores
clones afixaram ao balanço.
Tento olhar por cima do ombro para ver novamente o Aquino enquanto ainda
estou no alto, mas ele desapareceu. Será que sonhei com ele?
O Governador me leva até a Mãe, que discute em voz alta com Ivan,
enrolando a língua desleixadamente com as palavras.
— Vocccê é sssó um rappaz muito, mmuito mmau. Nnnão pode mee dizer o
que fazzzer ou não com a mmminha propriedaaaaaaaade, IIIIIvan.
O Governador entoa: — Hora de descansar, querida. Reservei uma suíte para
você no Refúgio hoje à noite para que possa dormir.
— Não qqquero perderrr os coquetéisss do nascer do sssol. Tradição! —
soluça ela.
— Vamos acordá-la a tempo para os coquetéis da manhã — diz o
Governador para tranquilizar a esposa bêbada.
— E um litro de café — acrescenta Ivan.
A Mãe coloca as mãos em meu rosto. — MMMinha preciosa Beta-a. Você
vai me pôr na cama?
— Sim, Mãe — respondo.
Ela enrola a língua ao me dizer: — Uma menina tão doce. Vou ssssentir tanta
ssaaudade quando esses essssnobes a levarem embora. — Está cansada demais
para protestar contra ir deitar; boceja, ansiosa ou aliviada, por eu guiá-la para
longe da noite mais importante do ano em Demesne.

A Mãe caiu no sono momentos após eu levá-la para a suíte. Ninguém me


procurará por horas. Esperam que eu cuide da Mãe.
Oportunidade.
Preciso encontrá-lo. Se estiver certa a respeito dele e se ele quiser me
procurar em segredo, há um lugar onde sei que irá — para a piscina. Caminho
até a Baía Néctar.
Saio discretamente do Refúgio e me escondo atrás de uma sebe espessa à
margem dos jardins. Estarei sendo desleal com Tahir, procurando o Aquino?
Não, não estou. Só preciso de algumas respostas. O Aquino pode me contar
sobre minha Matriz. Tahir pode se dar ao luxo de saber tudo sobre a dele. Eu
quero o mesmo. Tenho um pacto com Tahir. Nada, nem ninguém, pode interferir
nisso. Tahir e eu preferimos morrer juntos a deixar de alcançar isso.
Disparo pelos jardins e desço para a enseada da praia na Baía Néctar.
Percorro a longa doca que leva à piscina flutuante no meio da baía. A prancha
está iluminada festivamente com centenas de velas votivas laranja ao longo das
bordas, dando um brilho sereno à água azul-violeta abaixo. Nenhum convidado
chegou tão longe do clube ainda. O Refúgio fica longe o suficiente para só se
ouvir um murmúrio fraco a distância, mas não perto o suficiente para que as
festividades se estendam até aqui. Tiro as sandálias do traje de caçadora, sento
na beira do cais e balanço os pés e pernas na piscina.
Por fim, meu corpo começa a relaxar, como sempre faz quando encontra a
água.
Eu aguardo. Ele vai aparecer. Sei disso.
Escuto a água batendo no cais. Tento pensar em Tahir e nossa fuga iminente,
mas a minha mente continua vagando de volta para o Aquino. Minha imaginação
decide enlouquecer — enlouquecer totalmente. Visualizo o Aquino nadando na
piscina em vigoroso estilo borboleta. Ele está nu, uma visão de brilhante
perfeição masculina, bronzeado e musculoso, deslizando na água usando um
estilo batizado com o nome de um inseto, mas esse loiro cinzelado tem a
velocidade e a força de um golfinho. Essa visão não é minha imaginação, tenho
certeza; em algum momento, minha Matriz o viu nadar assim.
Minha nossa! Nossa! Nossa! Agora aquele arrepio já familiar, nada
requintado, percorre meu corpo, uma lembrança do que vivenciei com Tahir.
Uma extra petite mort.
Eu tenho que saber: a minha Matriz era uma puta?
Fora, belo Aquino. Eu amo Tahir. Quero que largue do meu pé. Quer dizer,
não me largue. Isto é, de jeito nenhum!
Não é possível eu me sentir tão quente e viva. Não! Possível.
— Z!
Viro a cabeça para ver quem está lá.
É o Aquino, real e não imaginado. Sabia que me encontraria aqui. Ele é
quase tão bonito em seu uniforme militar formal como quando estava nu. Quase.
Quando tive visões dele debaixo d’água, o cabelo de um loiro-sujo era mais
comprido, o rosto acolhedor e convidativo. Ao vivo e em carne e osso, o cabelo
tem um corte militar e ele parece arrojado, mas rígido, como se preferisse estar
de short de surfe e em comunhão com a água que adorna o elegante traje militar.
Sua voz é tão grave e viril como quando ouvi sua imagem falar comigo
debaixo d’água. — Z! É você? Pensei tê-la visto dentro do salão antes, mas você
pulou daquele balanço ridículo antes que eu pudesse vê-la direito.
Eu me lembro: esse Aquino vem de uma seita que odeia a nossa espécie.
Lembro que há coisas que gostaria de lhe jogar na cara.
A lua minguante é tão escura, a não ser pelas velas no entorno do cais. Ele se
agacha para ver meu rosto mais perto. — Zhara? — pergunta. Há doçura em sua
voz profunda. É inesperado.
Ele pega uma vela tangerina e a aproxima de meu rosto. Eu deixo que olhe,
meus olhos vidrados direto em seus profundos olhos azuis. Agora, ele não pode
deixar de ver a gravação e a flor-de-lis nas têmporas.
— Quem é Zhara? — pergunto.
Ele derruba a vela na piscina, chocado.
— Zhara foi sua Matriz — responde.
Não sei por que me sinto tão compelida, mas de repente eu o empurro com
tanta força que ele cai sentado no chão do cais. Essa minha explosão certamente
irá revelar que o clone de sua Matriz é, com certeza, uma Defeituosa louca. Que
bela primeira impressão. Mas não me importo.
Na verdade, conheço o motivo de meu ato irracional. A razão é
inconfundivelmente humana. Ódio.
Eu o odeio por ser de uma seita humana que considera os clones antinaturais.
Eu o odeio por ser a causa do retorno de Becky para a Dra. Lusardi e da extinção
do amado de Xanthe.
Odeio a Zhara, por me passar o desejo que sentia por ele.
— Ei — reclama o Aquino, chocado. — O que eu fiz?
Agacho em frente dele, para que possa dar uma boa olhada em meu rosto
clonado. Sua mão se estende para tentar tocar minha tatuagem mas, com um
tapa, afasto-a do meu rosto.
— Para trás, tigre! — rosna ele para mim. — Estava tentando ver se a
tatuagem era real. Quando te vi no balanço antes, pensei que fosse a Zhara,
fazendo algum tipo de brincadeira. Era o tipo de coisa inadequada que faria. —
Faz uma pausa. — Ela também gostava de estapear.
— Não sou a Zhara — proclamo. — Sou Elysia. Sou um clone, e — devo
estar com algum problema realmente sério, pois digo a verdade — eu te odeio!
Não me importo com o que o ódio me faz.
— Não me odeie — pede ele. — Você nem me conhece ainda… — Ele para,
procurando a palavra certa. Defeituosa? — Elysia — conclui finalmente, como
se relutante em dizer em voz alta o novo nome do clone de minha Matriz. Como
se pronunciando o nome em voz alta me tornasse real.
— Conheço-o o suficiente — rebato.
Ele começa a se erguer, mas primeiro me olha com cautela.
— Não bata, tigre! Só estou me erguendo. Deixe-me recuperar o equilíbrio.
Ele fica em pé. Eu me levanto também, mas meus joelhos parecem fracos, o
coração despedaçado, a respiração apressada e incomodada. Ele é tão alto e tão
— terrivelmente — lindo. Entendo perfeitamente porque ela era obcecada por
ele. Verifico em meus dados essa sensação horrível e descubro o que é.
Desfalecimento é o que vivencio por este homem a quem bati há pouco, tão
impulsivamente.
Apavorante.
Desnecessário.
Eu me recuso.
Há tanto que quero e preciso saber sobre Zhara. Não posso desperdiçar esse
tempo com o Aquino com desmaios ou tapas. Devo voltar a ser a dócil e
moderada Elysia. Descobridora de fatos.
— Como ela morreu? — interrogo.
— Não sei. Até agora, nem sabia que ela havia morrido. Sabíamos apenas
que estava desaparecida. De onde você veio?
— Da Dra. Lusardi. Como todos nós aqui.
— Nem todos aqui vêm da Dra. Lusardi. De onde você tirou essa
desinformação? A Dra. Lusardi só faz aqueles cujas Matrizes morrem dentro do
arquipélago Demesne.
Em quem acredito, nesse estranho, ou na Dra. Lusardi, minha criadora?
Não sei fazer todas as minhas perguntas antes que alguém venha me
procurar, ou a ele. Talvez ele sinta o mesmo.
— Quando a Zhara desapareceu? — continuo.
Com base na quantidade de tempo desde emergi, sei quanto tempo se passou
desde que ela morreu, mas não sei o que aconteceu para custar à Zhara a sua
vida.
Zhara. Eu existo porque ela existiu. Ela sou eu.
— Zhara desapareceu após uma viagem de acampamento de classe há alguns
meses — conta o Aquino. — Ela e alguns jovens fugiram no meio da noite para
a floresta, para usar raxia. Quando acordaram, ela não estava lá. Não foi vista
desde então. Dada como morta.
— Ela era mergulhadora?
Os cantos da boca se curvam um pouco, como se fosse uma memória
querida. — Sim. Como é que sabe? Foi assim que a conheci. Estávamos na
mesma equipe. Zhara era uma atleta incrível. Levou a medalha de bronze nos
Jogos Olímpicos de Juniores.
É uma pergunta boba, mas não consigo deixar de fazê-la.
— Ela era legal?
Ele solta uma risada gostosa.
— Legal não é a primeira palavra que me vem à mente. Besta infernal é
como o seu pai a chamava. Intrépida é a palavra que eu escolheria, se estivesse
me sentindo bem. Posso ver que um pouco dela passou para você.
Defeituosa, ouvirei ele dizer. Basta isso.
— Eu sou eu mesma — aviso logo.
— É evidente — concorda ele.
— Você tem um nome, Aquino?
— Meu nome é Alexander Blackburn.
O nome já parece gravado em meu coração.
Então, Alexander Blackburn faz a coisa mais estranha. Ele estende a mão
para a minha, como se me acolhesse, como uma saudação. Sua mão toca a minha
e é como se — zap! — uma conexão direta com a minha Matriz fluísse por cada
fibra de sua reencarnação artificial. — Prazer em conhecê-la, Elysia Bratton.
— Você se acasalou com ela — declaro.
Alexander me olha com curiosidade. — Como é possível você saber isso?
Ele volta a se sentar na prancha e estende as longas pernas
longitudinalmente. Por um momento, cobre o rosto com as mãos. Acho que ele
pode estar… chorando? Este Aquino superforte, superalto de peito largo?
— Você está bem? — pergunto. Talvez ele seja uma aberração Defeituosa,
não eu.
Ele ergue o olhar. Não foi um choro forte, mas há lágrimas em seus olhos
azuis. — Eu nem sabia que ela havia morrido. Não tenho possibilidade nem de
lamentar… seu clone está bem aqui. É nojento. Não está certo.
— Você não tem direito de me julgar — digo revoltada.
Não consigo acreditar quanta insolência continua a escapar dos meus lábios.
Estou escrevendo minha própria sentença de morte falando com este Aquino. Só
que há algo nele que me impede de parar. Eu o odeio por isso também.
— Não estou julgando você — replica Alexander. — Não faça suposições
daquilo que não tem ideia. Seu banco de dados está errado. Estou de luto por
Zhara. Me dá um tempo?
Ele pede minha permissão? Não pode haver dúvida. A raça Aquina é com
certeza Defeituosa.
Ele soluça um pouco, um som feminino que soa viril vindo dele.
— Zhara era uma menina bonita, mas tão imprudente. Olhe o que aconteceu
com ela. Sua alma perdida, agora ressuscitada sem alma. É muita coisa de uma
só vez. Por favor, me perdoe.
Que tipo de brincadeira ele está fazendo comigo, esse humano de raça
superior, pedindo absolvição de um clone fabricado?

Quero saber tudo sobre Zhara. Sua família. Seus amigos. Seus mergulhos. Sua
vida como um ser humano livre.
Mas não tenho oportunidade para questionar o Aquino. Ouvimos gritos
vindos da praia, e ele imediatamente se ergue e vai em direção ao tumulto. Ou,
talvez, ele precise de um motivo para cessar sua crise de choro. Eu o sigo.
Na praia, o Esfinge e Tahir se envolveram em uma briga.
— Criança mimada — rosna o Esfinge para Tahir, e o empurra.
A reação de Tahir é um gancho de direita diretamente na mandíbula do
Esfinge. Clones são geralmente muito passivos para esse tipo de resposta
humana instintiva de ameaça. Algo está muito errado, muito errado com Tahir.
— Sua esposa me convidou para dançar. Eu não a procurei — diz Tahir para
o Esfinge.
O Esfinge responde com um soco que faz Tahir se esquivar. Tahir agarra o
Esfinge em uma chave de braço, prendendo-o ao chão.
— Parem com isso! — grita o Aquino e tenta arrancar os braços de Tahir do
pescoço do Esfinge. Tahir está tão furioso que seus olhos parecem ingurgitados e
vítreos, o suor escorre pelo rosto e sua respiração está rápida e furiosa. Ele nem
sequer me reconhece. Larga o Esfinge tempo suficiente para empurrar o Aquino
para o chão. O Esfinge aproveita a oportunidade para pular em cima de Tahir,
mas Tahir gira o Esfinge sobre suas costas e o atira direto sobre uma pedra na
areia.
— Meu joelho! — berra o Esfinge.
Tariq e Bahiyya vêm correndo pela praia em busca do filho. O Esfinge está
ferido demais para se erguer.
— Seus olhos, como os de um clone! Você é forte demais, como um clone!
Nem mesmo um clone. Um Defeituoso! — sibila para Tahir.
Chego perto de Tahir e coloco o braço sobre ele, tentando acalmá-lo,
confortá-lo, mas ele se desvencilha de mim.
— Saia daqui. Não quero você agora — rosna para mim.
Só pode haver uma explicação para a fúria de Tahir. Ele se tornou um
Horrível.
O ESFINGE PODE NUNCA MAIS VOLTAR A JOGAR futebol.
Todos em Demesne comentam isso. Ninguém sabe a história completa do que
aconteceu; apenas que o atleta foi ferido em uma briga na Baía Néctar e partiu
imediatamente após o episódio, na calada da noite. Foi levado em um voo de
volta para o continente para uma cirurgia de emergência.
Tradicionalmente, muitas famílias de Demesne pernoitam no Refúgio na
noite do Baile do Governador e tagarelam tomando coquetéis ao nascer do sol
até o brunch[5] tardio, dependendo de quando os foliões chegam às mesas do
pátio após as festividades da noite. Esse tempo matinal é sagrado para eles. É
quando discutem os destaques e resultados da gala anual. Os escândalos.
A Mãe me faz sentar ao seu lado para que eu possa esfregar seu pescoço para
ajudá-la a superar a dor da ressaca. O Governador ainda não acordou, mas Ivan,
a Sra. Choramingo Tinto e a Sra. Rainha da Beleza se juntam a nós para o
brunch. Comendo ovos poché e caviar, o grupo discute os pontos altos e baixos
da noite.
— Todo mundo adorou a sua Beta — comenta a Sra. Rainha da Beleza. —
Que ideia brilhante colocá-la em exposição no balanço.
— Que chata essa sua dor de cabeça matinal, querida! — lamenta a Sra.
Choramingo Tinto.
— E então? — indaga Ivan. — A verdadeira questão é: quem aqui sabe como
o Esfinge se machucou?
— Ninguém conta — analisa a Mãe. — Nem mesmo os clones. O que deve
significar que a razão é muito boa. Quando o Governador investigar e descobrir,
vai me dizer, e eu vou lhes contar. Prometo.
Eu sei o motivo, mas permaneço em silêncio. Por favor, que Tahir esteja
bem. Se ele é um Horrível, agora preciso mais do que nunca ficar com ele. Mas
estou muito ocupada, esfregando o pescoço da mãe e tentando ser invisível.
O plano para o meu pacto de fuga com Tahir precisa ser acelerado. Seus pais
o levaram embora tão rapidamente ontem à noite, nem sequer notaram minha
presença na praia. Só puderam se concentrar em tirar Tahir de cena o quanto
antes. O Aquino me escoltou de volta ao Refúgio e disse, simplesmente: —
Sugiro que mantenha em segredo o que aconteceu aqui esta noite.
Mas o pânico se esgueira pela pele. Tahir e eu não temos tempo a perder para
ele reaprender a pilotar o helicóptero-planador. Pelo que ocorreu com o Esfinge,
seus pais podem devolver Tahir à Dra. Lusardi para “conserto” e ele será
estragado. Tahir é perfeito do jeito que está, talvez ainda mais agora. Eu gosto de
seu Horrível. Isso significa que ele tem sentimentos. O arrogante Esfinge
provavelmente fez por merecer.
O Governador chega e senta-se à mesa.
— A sua Beta foi um sucesso na noite passada — diz a Sra. Rainha da
Beleza. — Acho que deve pedir um preço mais alto aos Fortesquieu.
O Governador beberica um Bloody Mary.
— O acordo está desfeito. Os Fortesquieu deixaram a ilha no início desta
manhã. Tahir estava tendo problemas com dores de cabeça, assim Tariq e
Bahiyya decidiram voltar à CB, onde estão os seus médicos, por segurança
apenas.
Simples assim? Tahir foi embora? E a minha esperança de conseguir a
liberdade com ele?
É tão difícil esfregar o pescoço da Mãe neste momento. Quero estrangulá-la,
por enorme frustração.
Tahir não deixou Demesne por causa de uma dor de cabeça. Partiu pelo que
ocorreu ontem à noite com o Esfinge. Tariq e Bahiyya devem ter decidido pôr a
Dra. Lusardi totalmente de lado e enclausurar Tahir com seus especialistas
particulares na Cidade de Bioma. Irão se empenhar mais em treinar Tahir para
ser mais parecido com sua Matriz. Tenho certeza: Tahir jamais voltará a
Demesne, a menos que passe com sucesso pela fase Horrível e até que tenha
absorvido de modo inequívoco a vida e as memórias de sua Matriz que seus pais
tentaram implantar. Até que possam fazê-lo ser o filho que querem, Tahir será
prisioneiro em sua própria casa.
Então tenho que encontrar um modo de chegar até ele.
Se ele se tornou Horrível, é muito provável que eu também me torne. E se a
loucura é tudo o que me espera, o que tenho a perder tentando escapar por conta
própria para poder me unir a Tahir? Seria loucura não perseguir a própria
liberdade. Se Tahir não conseguir concretizar nosso pacto, eu conseguirei.
A Mãe agarra minha mão em seu pescoço e lhe dá um tapinha suave.
— Minha queridíssima Beta — suspira. — Estou tão contente pelo negócio
estar desfeito. Eu não queria deixar a Elysia ir embora.
— Quando você parte para a Base, querido? — interessa-se a Sra.
Choramingo Tinto. — Graças a Deus sua mãe terá a Beta para consolá-la
enquanto estiver fora, Ivan.
— Daqui a dois dias — responde ele. — Mal posso esperar.
Ivan! É claro. Ivan vai partir da ilha. Vai me esconder a bordo de seu voo
particular para o continente. Ele me ajudará. Sou sua campeã.
Escapar. É a única palavra que consigo processar dessa tagarelice. Escapar,
escapar, escapar.
Antes, passei pelo processo de ser o animal de estimação Beta da Casa do
Governador, pois nunca me ocorreu que tinha outras opções. Emergi e fazia o
que me mandavam, pois não tinha razão alguma para não fazer, nenhum
entendimento de que existiam outras possibilidades para mim. Agora,
continuarei a ser seu animal de estimação Beta — não tenho escolha —, mas
com a diferença que estou planejando algo. Como posso sair daqui?
Vou me juntar a Tahir. Vamos nos tornar Horríveis e morrer juntos. Mas o
faremos como Betas livres. Não como fantoches dos humanos.
Um pensamento me ocorre, deveria pedir ajuda ao Aquino, Alexander
Blackburn. Ele sabe que sou Defeituosa, mas não houve sinal algum que tenha
me revelado para o Governador. Embora não fosse um estranho para Zhara, na
verdade, é para mim e já revelei demais de mim para ele. Procurá-lo e declarar
meu desejo de emancipação tem probabilidade muito alta de levar à minha
extinção. Não, não o Aquino.
Ivan! Ele é a solução.

Tarde da noite, de volta à Casa do Governador, Ivan entra em meu quarto antes
de eu ir para cama. Ele quer a sua raxia, como eu sabia que aconteceria.
— Você quer tudo ou prefere pegar apenas um comprimido por vez, para não
ficar tentado a usá-la muito rápido? — pergunto.
— Me dê três — responde. — Ultimamente, para ter algum efeito, quanto
mais uso, mais preciso.
Entrego quatro comprimidos.
— Não se estresse, irmão. Está muito ansioso para começar sua nova
aventura na Base?
— Você não tem ideia. Aqui tudo é igual, o tempo todo. Perfeito. Um tédio.
Mal posso esperar para estar em outro lugar. Ter algum propósito. Ação. Mas
vou sentir saudades suas, campeã. — Dá um tapinha carinhoso em meu braço.
Passo um copo d’água e ele engole os dois primeiros comprimidos. — Boa
noite, Beta — despede-se e começa a sair do quarto, mas o chamo de volta.
— Gostaria de jogar Z-Grav? — Preciso esperar algum tempo para a raxia
fazer efeito.
— Boa ideia! Ótima maneira de passar o tempo até a raxia “dar um barato”.
Saímos do quarto e seguimos para a FantaEsfera.

Não preciso deixar Ivan vencer esse jogo específico de Z-Grav. A dose dupla de
raxia age rapidamente, e ele não tem vontade de me perseguir do teto ao chão. O
jogo nos aspira para o teto e Ivan se contenta em ficar ali. Ele flutua no ar e
quica contra o teto, mas não faz nenhuma tentativa de forçar a descida ao chão.
Nem eu. Ele está bem onde eu gostaria que estivesse.
Um grande sorriso se espalha pelo rosto de Ivan e ele me informa: —
Brilhante ideia de jogar Z-Grav usando raxia. Por que nunca fiz isso antes? Sinto
como se fosse algum astronauta psicodélico de séculos atrás. Tudo está tão de
cabeça para baixo, deformado e flutuante. Ele agita os braços ao redor e dá
cambalhotas contra a parede.
Se houver um momento para lhe revelar que sou Defeituosa, o momento é
esse.
— Irmão, gostaria de saber um segredo?
— Pode apostar que sim! Não sabia que clones tinham segredos. Legal.
— Durante o meu tempo no complexo Fortesquieu, Tahir e eu determinamos
que somos companheiros.
— E daí? Você e eu também somos. Que segredo é esse?
— Não, irmão. O outro tipo de companheiros.
Ele salta alegremente contra a parede, mas seu queixo cai, em estado de
choque. — Você acha que vocês vivenciam… amor? — Ele ergue os braços
acima da cabeça para ser sugado de volta ao teto. — Devo estar viajando legal.
É agora ou nunca. — Não posso suportar a separação de Tahir agora —
declaro. — Devo me juntar a ele na Cidade de Bioma. Você poderia me esconder
em seu aeroplano para o continente. Tahir irá recompensá-lo por me ajudar. Juro.
Os olhos de Ivan se fecham. — De jeito nenhum, cara! Mesmo curtindo
barato, ainda sei que é loucura. Você sabe que terei que contar para o Pai, certo
campeã? Queria só dar um soco tão forte, agora mesmo, em você e no Tahir, por
terem estragado tudo assim. — Ele tenta saltar em mim, mas o Z-Grav apenas o
aspira de volta ao teto. Frustrado, ele chuta as pernas em minha direção, mas está
longe demais para me ferir e está cansado demais para exercer qualquer força
real.
E então adormece.
Termino o jogo. Caímos no chão, e eu o deixo na FantaEsfera.
Não tenho escolha agora. Acabei de escrever minha própria sentença de
morte.
Devo partir sozinha. Imediatamente.
CORRO PARA O MEU QUARTO PARA TROCAR O PIJAMA
por roupas normais.
Não tenho um plano. Vou pular da janela e correr como nunca corri antes.
Vou planejar durante o caminho.
Não devo me preocupar, digo a mim mesma. Isso é para os humanos. A
preocupação me distrai da missão.
Onde quer que esteja agora, Tahir está seguro. Encontraremos um modo de
ficarmos juntos. Tenha fé.
Não devo me preocupar. Não devo duvidar do impossível.
Se repetir muitas vezes para mim, vou acreditar.
Troco de roupa no quarto com as luzes apagadas, mas ouço alguém entrar
enquanto estou em pé sobre a cama, apenas de lingerie. Primeiro, acho que é a
Liesel, querendo conforto. Mas não é ela. A figura corpulenta, visível no fraco
luar da minha janela na noite escura, caminha até a minha cama. Eu arquejo,
assustada. Quem veio atrás de mim, o pai ou o filho?
— O que mais esconde, Defeituosa? — pergunta.
— Ivan? — pergunto, precipitada. Tenho pressa de colocar a camisa pela
cabeça, mas ele a arranca de mim. Ele me derruba na cama e coloca a mão no
esterno, para me prender.
— O que você fez com o Tahir enquanto esteve fora? Ele fez de você a
prostituta dele?
Não acredito mais que os clones não produzam adrenalina. Minha mente sabe
que o corpo está sendo ameaçado e o coração dispara em resposta. Gotas de suor
escorrem pela testa. — Nós não fizemos isso — o tranquilizo.
— É bom mesmo. Você pertence a mim. Você é o motivo de Tahir
desaparecer tão de repente? Porque seus pais não aceitariam que o filho precioso
se acasalasse com uma prostituta?
— Não é assim, irmão.
— Não dê uma de “irmão” para cima de mim! É claro que é isso. Você
realmente se atreveria a escapar daqui para ficar com ele? Você acha que eu a
ajudaria, Defeituosa?
— Eu… eu… não sei.
— Não minta para mim!
— Não sou capaz de mentir! — minto. Não é de admirar que mentir seja tão
fácil para os humanos. Deve ser uma resposta instintiva ao medo.
As mãos de Ivan agarram meu pescoço enquanto ele abaixa seu corpo sobre
o meu, pressionando-me contra a cama. Sua boca agora está tão perto que posso
sentir sua respiração, deixando-me trêmula de medo.
— O que você está fazendo? — sussurro. — Você não quer mais raxia?
— Não! — Não há raxia suficiente no mundo para o que preciso hoje à noite.
— O que você está fazendo? — sussurro.
Acho que sei.
Eu me recuso a acreditar.
Ele insiste em fazer de mim uma verdadeira crente.
Seus lábios descem sobre os meus, cobrindo minha boca em uma desleixada
união de bocas que é um ataque, não um beijo. Tento mordê-lo, mas isso só o
excita mais.
— Não — arquejo entre os ataques de sua boca. — Por favor! Não faça isso.
Posso não ter alma, mas conheço o suficiente para saber: isso não está certo.
— Você sabe que a Mãe te comprou para mim.
Seja uma boa menina, querida Elysia, ela me disse quando cheguei à Casa do
Governador. Deixe o Ivan fazer o que quiser.
Era isso que a Mãe queria dizer?
Suas mãos grandes me seguram e me prendem. Estou impotente para o que
está acontecendo. Tento afastá-lo. Eu o chuto, arranho e empurro. Eu tento. Sou
forte, mas ele é muito mais. É como se a dose extra de raxia, agora misturada
com a consciência de que sua Beta é uma Defeituosa traidora que ama outro
rapaz, o transformasse em um monstro forte.
E ele gosta da luta.
Fecho os olhos para afastar a face dessa escuridão. Minha mente foge do
presente, indo para as memórias de Tahir me abraçando a noite toda, Tahir
tocando minha pele com ternura, Tahir me amando tanto que deixaria toda a
riqueza e privilégio do mundo para estar comigo, para me libertar.
Por favor, faça que isso não esteja acontecendo.
Por favor, faça que seja um jogo perigoso da FantaEsfera que acabará a
qualquer momento.
Acontece.
— Pare! — grito.
Mas a invocação da palavra de segurança não funciona aqui.
Violar [vio-lar]: Romper ou passar à força ou sem direito: violar uma
fronteira.
Ivan roubou o que eu guardei para Tahir.
Lembro que o que meu corpo acabou de vivenciar foi apenas dor física. Meu
coração não entende o que sentir; ele se recusa a sentir. Talvez esse seja o
verdadeiro poder Defeituoso — não a capacidade de sentir, mas a de negar
sentimento.
É por isso que a Mãe realmente me comprou. Para que Ivan fizesse o que
quisesse.
Não existe essa coisa de segurança.
Especialmente para um clone.
Que agora foi feita consorte de algum humano.
ZHARA TEM SORTE DE ESTAR MORTA.
Agora entendo por que Astrid se esforçou tanto para fugir desta casa infernal
no paraíso.
Agora sei por que a Mãe não quer que Ivan acalme Liesel à noite.
In-sur-rei-ção!
Começa a fazer sentido.
É melhor não ter alma.
Assim ela não pode ser tirada de você aos poucos.
IVAN SABE QUE SOU DEFEITUOSA, MAS DECIDIU não
contar. Ainda não. Ele anuncia isso me agarrando em uma chave de braço ao
acordar pela manhã bafejando seu hálito desagradável em meu ouvido. — Conte
isso a alguém e você estará morta, Defeituosa — sibila. — Se ficar quieta, eu
ficarei quieto.
Ontem à noite, na FantaEsfera, ele ameaçou revelar ao pai sobre mim. Mas
esta manhã, tudo é diferente. Ele não vai contar. Ele quer manter meu silêncio.
Ele se levanta e sai do meu quarto, como se nada tivesse mudado. Amanhã,
ele parte para a Base. Só posso esperar até ele partir. Depois que ele se for,
minha mente ficará clara. Posso conceber um novo plano de fuga. Preciso
encontrar um jeito de voltar para Tahir.
Assim que Ivan se for, vou treinar mais, até uma rota de fuga se tornar viável.
Correr mais, nadar mais rápido, mergulhar melhor.
Poderia aprender a usar armas: facas, revólveres, do tipo real, não as falsas,
da FantaEsfera. O Governador gosta de caçar. Ele acabará vindo atrás de mim.
Por que não usá-lo para ganhar habilidade e experiência? Use-o como eles me
usam.
Eu poderia procurar os outros Defeituosos, participantes da rebelião
insurgente. Poderia procurar o Aquino. Alexander Blackburn teve um
relacionamento com minha Matriz. Mesmo que sua espécie não goste de clones,
sua missão em Demesne era supostamente sobre a representação de meus
direitos.

Quero saber os meus direitos.


Ivan sabe que sou Defeituosa.
Eu sei que sou Defeituosa.
Será que algum de nós sabe exatamente o que um Defeituoso realmente pode
fazer?
Não poderia me salvar. Mas poderia salvar outros como eu?
Quero ser a garota que Zhara já foi.
Besta infernal.
Talvez eu já seja.
Abro a gaveta secreta de Astrid. Pego sua faca.
Na lateral da gaveta, noto seu rabisco esculpido na madeira. Ela escreveu:
Para abrir os olhos dos cegos, para tirar da prisão os presos, e do cárcere os que
jazem em trevas — Isaías 42:7.
Amém, irmã.
Alguém deve pagar por seus pecados.

A família está no Refúgio almoçando com os amigos pelo último dia de Ivan. A
Mãe tentou me levar, mas Ivan zombou: — Só a família no último dia. Sem
clones estúpidos.
Uso o meu tempo sozinha para passear à beira do penhasco na Casa do
Governador, ir ao local de onde Xanthe foi atirada.
Pressiono os dedos na saliência embaixo da pele em meu pulso. Preciso me
livrar disso. Preciso possuir ao menos uma parte de mim.
Uso a faca de Astrid para cortar a pele. Sangue jorra da incisão enquanto
procuro aquela coisa por baixo. O fluxo de sangue, na verdade, me ajuda a
encontrá-lo mais cedo. Meu chip localizador desliza sob a pele no meu pulso.
Pressiono um pano no local para estancar o sangue. Então atiro o chip para
baixo, no precioso Io.
Não sinto dor alguma. Sinto raxia total.
Isaías estava certo. Os presos devem ser trazidos para fora do cárcere.
Coisas ruins acontecem a clones em Demesne porque os clones não
reclamam. Eles não podem, a menos que sejam Defeituosos. São por demais
comatosos, sendo escravos dos humanos.
Sou Defeituosa, estou viva e quero que alguém pague por seus pecados antes
que seja tarde demais.
Se eu contar a verdade, ela me libertará. Mal posso esperar um dia mais, até
que Ivan parta. O resultado será o mesmo.
Se a Mãe souber, ela me mandará embora. A vergonha será grande demais.

Encontro a Mãe na sala de massagem após o almoço familiar. Está deitada de


bruços, com o rosto para baixo. Fala através da abertura no encosto de cabeça da
mesa de massagem. — Elysia, querida, senti sua falta no almoço, mas o Ivan às
vezes é tão mandão. Talvez possa levá-lo para uma corrida para ajudá-lo a
queimar toda a energia bruta que acumulou para a Base. O cozinheiro está
preparando uma grande refeição para sua última noite conosco. Faça aquele
rapaz abrir o apetite! Você tem sido uma companheira maravilhosa para ele. Ele
está na melhor forma de sua vida. O Governador está muito satisfeito.
— Eu fiz o que ordenou, Mãe. Deixei o Ivan fazer o que quisesse sempre.
De qualquer maneira, já estou morta. Simplesmente não me importo mais. O
que quer que façam comigo, que comece já. Liberte-me da agonia desta casa.
Por um momento, ela ergue os olhos do encosto de cabeça. — Boa menina
— elogia.
Meus olhos se enchem de lágrimas. Elas me surpreendem. Nunca chorei
antes. — Isso não é tudo — digo. — Ivan usa raxia. Ele a fabrica e a esconde.
Está viciado. Provavelmente não sobreviverá na Base sem a droga. — Lágrimas
jorram livremente dos olhos e não faço nenhuma tentativa de parar a vergonha
de molhar o rosto.
Deixe Ivan sofrer algumas consequências também.
Mas a Mãe não está preocupada se o filho é viciado na droga específica que
leva clones de Demesne para o mau caminho. — Você… chora? — assusta-se.
Seus olhos encontram os meus, o olhar muda rápido de choque para fúria. O
massagista clone derruba a garrafa de óleo no chão.
— Deixe-nos a sós! — a Mãe grita com ele. O homem musculoso, de peito
nu sai da sala.
A Mãe senta-se na mesa, coberta por um lençol. — Defeituosa! — acusa-me.
— Você mesma cortou seu cabelo, não é? A Bahiyya não teve nada a ver com
isso. Você é Defeituosa!
Acabo de contar que seu filho me violentou, e ela está preocupada porque
cortei o próprio cabelo?
— Defeituosa! — admito. — É verdade! E quero ser mandada embora, ou
vou me certificar de que todos nesta ilha saibam que o filho do Governador
fornece raxia aos clones! — Acabei de inventar essa mentira.
Boa, Elysia! Talvez consiga sobreviver no meio selvagem.
— Sou sua dona — retruca a Mãe. — Como você se atreve! — Solta um
uivo de frustração, então redireciona os gritos para mim: — Vá para o seu
quarto! E não saia até eu dizer que pode!

A noite vem, sem comunicação com ninguém, até que um bilhete é colocado por
debaixo da porta, escrita em rabiscos de uma jovem.
Querida Elysia,
Não entendo por que todo mundo está tão bravo com você, mas quero que
saiba que eu te amo e vou te entregar chocolate escondido, se quiser.
Beijos, Liesel.
PS — Estou falando sério!
Coloco por baixo da porta um bilhete de volta para ela.
Querida Liesel,
Vá embora, assim não se meterá em encrenca. E, por favor, mantenha a
porta do seu quarto trancada à noite.
Também te amo.
Elysia
Nunca houve tranca na porta do meu quarto ou na porta de Astrid, mas agora
há uma na de Liesel. Eu a coloquei esta tarde, enquanto a família estava no
Refúgio. Disse ao mordomo que eram ordens da Mãe.

Meu quarto fica muito longe dos aposentos da Mãe e do Governador para ouvi-
los, mas posso sentir. A família está em crise.
Tudo o que posso fazer é esperar. Há guardas parados embaixo da minha
janela no caso de eu tentar saltar.
Logo após a noite cair, Ivan vem para o meu quarto. Ele abre minha porta
silenciosamente. Por sua discrição, sei que ele foi proibido de me visitar.
— Sua puta — sussurra ele. — Devia te matar.
Ele me empurra para a cama e me deixa escarrapachada, com as pernas
abertas. Aperta as mãos em volta do meu pescoço. Ele fala sério.
Arquejo para respirar, enquanto seus dedos se enterram no pescoço,
empurrando a vida para fora de mim. Ele vai me matar. Começo a perder a
consciência, só desespero e medo mantêm o coração batendo forte, firme.
A escuridão desce, conforme a Horrível surge.
Ivan não tem ideia do que está por vir. Nem eu.
Na última vez, não lutei o suficiente. Agora, lutarei.
Procuro a faca de Astrid escondida debaixo do meu travesseiro e a enterro no
coração de Ivan. Ele tenta lutar contra mim, mas o choque do golpe repentino e
direto é demais, ele não consegue me igualar. Ele é maior, mas sou mais ágil.
Quero vencer mais.
Finco o punhal em seu coração de novo e de novo, da forma que ele se
forçou para dentro de mim. Dedico cada corte: por Xanthe. Facada. Por Becky.
Facada. Por Tahir. Facada. Por cada escravo fabricado neste inferno de ilha.
Facada, facada, facada.
Alguém deve pagar por seus pecados.
Vou lhes mostrar, humanos, a Horrível.
Nem consigo ver o que estou fazendo. Tudo o que sinto é fúria, pânico e
escuridão.
Por fim, Ivan cai em cima de mim. Seu sangue vermelho escuro jorra sobre
os lençóis brancos, sobre o colchão, embebendo minhas costas e nádegas por
baixo.
Ouço um grito ensurdecedor.
Não é meu.
É Liesel, em pé à porta, segurando um prato fumegante de macarrão e queijo
que trouxe para mim.

A Mãe e o Governador correm para meu quarto depois do grito de Liesel.


Empurrei Ivan de cima de mim e fico em pé na cama, presa.
Eles veem o filho morto deitado aos meus pés ensanguentados. Veem sua
Beta assassina, salpicada com o sangue do filho, tremendo em estado de choque
e medo.
— Onde está a minha espingarda? — grita o Governador. — Vou matá-la já!
Liesel, saia daqui! — Ele se vira para a Mãe. — Veja o que você nos provocou.
A Mãe cai no chão. — Meu bebê! — geme ela. — Meu filho amado!
O que uma besta infernal faria?
Olho para fora da janela aberta acima da cama.
Deveria pular para fora.
Eu pulo.

Não há tempo para pensar. Tudo o que posso fazer é correr.


Os guardas posicionados abaixo da minha janela não esperavam que eu
saltasse. Ouviram os gritos e estavam voltando para dentro de casa para ajudar o
Governador quando pulei. Meus pés tocam o chão e sou capaz de começar a
correr à frente deles, antes que percebessem o que ocorreu. Corro para as
escadas que descem ao lado do penhasco. Se conseguir chegar até as águas
mágicas de Io, o mar irá me salvar. Tem que me salvar.
Eles me seguem, o Governador e seus capangas. São mais rápidos do que eu
esperava. Os capangas me apanham no ponto onde acuaram Xanthe.
Não há nada a fazer senão esperar.
Enfrentá-los bem à beira do precipício. Prefiro morrer com um tiro do rifle
do Governador do que ser jogada do penhasco. Será mais rápido.
O governador aponta o fuzil para mim, com os capangas me cercando de
cada lado. Não se preocupam em me segurar. Não tenho para onde ir.
O Governador pressiona o dedo no gatilho.
Simplesmente jogarão o meu corpo ao mar, assim que acabar.
A menos que eu me lance antes.
Faço isso, ou não? São mais de trinta metros até o mar revolto, apenas um
penhasco íngreme no caminho.
Mudei de ideia!
Prefiro morrer do meu jeito do que pelas mãos do Governador.
Viro-me, dobro os joelhos e em um instante…
Ele atira.
Eu mergulho.
ABRO OS OLHOS E VEJO UM CÉU AZUL SEM NUVENS
que parece se estender até o infinito.
Acima e ao meu redor, há bananeiras. Um tucano está empoleirado no galho
de um eucalipto próximo. O cheiro de gardênias e jasmins e uma brisa leve do
mar permeiam o ar.
Tusso. Onde quer que esteja, o ar ralo e sem graça não é nada especial. Estou
balançando.
Uma voz feminina que soa familiar cantarola perto uma versão improvisada
de Children of Hope…
“Nestes tempos difíceis de escuridão e medo,
Deles recebemos o dom mais sublime.
São os nossos sonhos, nossos amores,
Nossos filhos da esperança…
Não, quis dizer da droga.
Filhos da droga, há-há-ha ...”
Para a frente e para trás, balanço. Não consigo levantar muito a cabeça, que
dói, mas minhas mãos apertam pedaços de corda sob o meu corpo, que estão me
apoiando. Vejo a corda presa às bananeiras em cada ponta de minha cama. Não,
não é uma cama. Estou balançando em uma rede. Acho que estou na selva.
Estou viva.
Isso é tudo o que sei.

— Está acordada — diz uma voz feminina. Tento virar a cabeça para identificar
o rosto ligado à voz, mas uma dor aperta o pescoço e tenho que manter a cabeça
ociosa. Fecho os olhos novamente para bloquear a dor martelando a cabeça. Meu
corpo sente como se tivesse sido despedaçado. Não consigo me mover.
Balançar. Um balanço agradável, suave e arejado. Ajuda a passar a dor de
cabeça.
Uma mão áspera, mas quente, toca em meu braço. A voz feminina diz: —
Bem-vinda de volta, Elysia. Alguns de nós não tinham certeza se sobreviveria.
Mas eu nunca duvidei.
— Quem é você? — murmuro. Minhas pálpebras abrem um pouco e vejo seu
rosto olhando o meu. Tem olhos negros oblíquos, maçãs do rosto salientes contra
a pele bronzeada da cor de torrada, e ela é careca. No lado direito de rosto, na
têmpora, há cicatrizes com marcas de queimaduras arroxeadas.
Ela deve perceber onde meus olhos estão se focando, pois toca as cicatrizes
de queimaduras, uma deformidade grotescamente bela em seu rosto arrojado. Ela
anuncia: eu sobrevivi. — Aqui é o lugar onde minha flor-de-lis costumava estar
— explica. — Eu sou M-X. Os Defeituosos me chamam de a Curadora. Seu
líder a encontrou e a trouxe para mim. Você estava praticamente morta.
— Você me curou?
— O tempo dirá. Eu tentei. Você fala. Isso é um bom sinal.
— Onde estou?
— Está na ilha, na extremidade final do arquipélago de Demesne. Os
humanos consideram esta área tão inabitável que não lhe deram nome algum. Eu
a chamo de Minha, pois sou a única pessoa que mora aqui. Bem, e também você
e seu salvador. Só até que fique forte o suficiente para que eu os mande embora.
— As Cavernas do Delírio ficam aqui? — indago.
— As Cavernas do Delírio são um resort de sonhos comparadas com a
Minha. Só um clone muito doido viveria aqui. Que seria eu, minha querida.
— Você é uma Defeituosa?
— Não somos todos?
— Por que você me parece familiar, mas nem tanto?
— Meu nome costumava ser Mei-Xing.
— O vídeo de orientação!
— Sim, eu costumava ser a propriedade principal da Dra. Lusardi. Até que
ela descobriu meus dons para a cura. Então, fui rotulada como Defeituosa e
torturada.
— Você escapou?
M-X olha ao redor, a selva onde só ela e a natureza habitam. — Com certeza!
— Tem certeza de que não estou sonhando?
Sua mão dura dá um beliscão em meu cotovelo. Eu recuo.
— Tenho certeza de que não está sonhando. Você deveria estar morta, Elysia.
Em breve vou saber por que eu deveria estar morta, e como vivi. Mas por
enquanto, tenho que voltar a dormir.
— Cansada — respondo.
Não consigo ficar acordada mais um segundo sequer. Por favor, acho que, se
ainda estiver realmente viva, então me deixe sonhar com Tahir.

Meus sonhos não são com Tahir.


Meus sonhos trazem sangue, gritos e terror. Assassinato.
Eu tirei uma vida.
Por favor, não me deixe acordar de novo.
A PRÓXIMA VEZ QUE ACORDO, É NOITE.
Fui movida. Estou em uma cama de ramos de zimbro colocados no chão, em
um pequeno espaço fechado, uma moradia simples de palha com uma entrada
aberta pela qual posso ver uma fogueira queimando lá fora.
Minha dor de cabeça passou. Estico os braços acima da minha cabeça e
alongo os dedos dos pés ao máximo. Sinto-me nascer de novo, pronta para
enfrentar o mundo. Ou, pelo menos, preparada para enfrentar a ilha Minha
(quase) deserta.
Levanto-me sozinha, pela primeira vez em não sei quanto tempo. Sinto
tontura momentaneamente, mas logo passa, e saio. Estou de sarongue com
batique azul e branco e os pés descalços.
M-X está sentada junto ao fogo, dando banana na mão para um macaquinho
aninhado na dobra de seu braço.
— Acordou e agora está andando — diz, ao me ver. — Gostei do progresso.
Como está se sentindo?
— Muito melhor.
— Excelente. Acho que gostaria de saber como chegou aqui? — Concordo
com a cabeça e me sento em um tronco oposto à M-X. — Do que você se
lembra?
— Estavam tentando me matar. Mergulhei do penhasco. Não sei o que
aconteceu depois disso.
— Você é muito forte e resistente, talvez mais até que sua Matriz. Mergulhar
assim e depois nadar teria matado a maioria. É provável que tenha sobrevivido
por ter nadado dentro do anel de Io. As águas nutritivas sustentaram você.
— Nadei até aqui? Não parece possível.
— Não é. Minha fica, no mínimo, a vinte milhas náuticas de Demesne.
Depois que pulou, conseguiu nadar até uma boia mais distante mar adentro. Você
chegou lá, desidratada e incapacitada. Perdeu a consciência flutuando na boia,
onde foi descoberta na manhã seguinte por um mergulhador com um barco, que
a entregou a mim para ser curada. Você estava quase morta.
— Há quanto tempo estou aqui?
— Há pouco mais de uma semana. Em certos momentos consciente, e em
outros, inconsciente.
— Os humanos procuram por mim?
— Sim. Mas você foi inteligente o suficiente para remover o chip localizador.
Rastrearam o seu chip no fundo do mar. Você foi tida como morta, mas corpo
algum foi encontrado até agora. Ainda estão procurando um corpo, mas eles têm
problemas maiores em Demesne agora.
— Tipo o quê?
— Tipo assassinato. Nunca houve um crime assim em Demesne. E cometido
nada menos que por um clone. A ilha está, basicamente, bloqueada agora, até
que os moradores possam ter a certeza de não ocorrerem mais motins entre os
trabalhadores.
— Como sabe de tudo isso? Você tem um Transmissor?
— Inventamos formas de nos comunicar fora da periferia dos humanos. Os
que fazem parte da causa desenvolveram uma rede clandestina para Transmitir
informações uns para os outros.
— A Insurreição? Essa é a sua causa?
— Sim. O primeiro grande ataque da Insurreição estava prestes a ocorrer
pouco antes do assassinato.
— Por quem? Como? — Xanthe e Miguel! Percebo que devem ter
participado do grupo que planejou isso.
— Ao seu redor havia clones e simpatizantes que ajeitavam tudo para fazer o
primeiro ataque. Você provavelmente não percebeu. A Lusardi deve ter
personalizado seu chip muito bem para configurações adolescentes, assim você
só percebeu o microcosmo de suas próprias interações sociais.
Acho que foi um leve insulto.
— Percebi coisas maiores acontecendo. Só não tinha conhecimento do que
fazer com a informação. Desculpe se arruinei o plano.
— Não se desculpe. Agora você é um símbolo de liberdade para os clones.
— Eu tirei uma vida. Estou mais triste por isso. — Meus olhos ficam úmidos,
e as lágrimas rolam pelo meu rosto. As lágrimas me fazem sentir triste, mas
também trazem alívio.
— Eles nos escravizaram — revolta-se M-X. — Nos torturaram. Nos
extinguiram. Não sentem remorso. Você tampouco deveria sentir.
— Não consigo deixar de sentir remorso. — As lágrimas no meu rosto
provocam uma revolta no corpo, que convulsiona em um soluço, súbito e
amargo. — Fiz uma coisa terrível. Sinto muito. Realmente sinto muito. — Ivan
pode ter me prejudicado, mas precisaria ter pago por isso com a sua vida? —
Matei o meu próprio irmão.
— Ele não era seu irmão — retruca M-X. — E não choraria por você.
Sou o pior tipo de Defeituosa. Eu sinto. Eu soluço. Eu mato.
— Sou uma Horrível? — pergunto à M-X.
— É possível que seus Horríveis estejam começando. Mas é igualmente
possível que tenha agido em autodefesa, nada a ver com a fúria de hormônios e
tudo a ver com um instinto básico de autopreservação. É muito cedo para dizer.
Mais que o possível início de Horrível, deveria me preocupar com os
humanos à minha procura. — É seguro aqui? Como é que os humanos não
tomam de volta a ilha ou as Cavernas do Delírio? Certamente têm a capacidade
de controlar esses lugares para si.
— Por lei, essas ilhas do arquipélago são território continental. — esclarece
M-X. Apenas o Refúgio de férias de Demesne existe independentemente. Para o
governo do continente, essas outras ilhas são pontos improdutivos no mapa.
Uma ilha foi transformada em ecobolha virtual devido à riqueza e ao privilégio.
Mas essa é a ilha com a vegetação mais exuberante e acessível. Estes outros
lugares não valem o incômodo humano. O terreno é muito difícil. Afetar aqueles
que usam as outras ilhas poderia significar arriscar uma guerra em grande escala.
Eles sabem disso.
— Mas certamente eles são mais poderosos. Com suas aeronaves,
armamentos e bombas.
— Mais poderosos com a tecnologia. Mas aqueles de nós que vivem nessas
ilhas desoladas sabem como utilizar melhor a terra. Podemos percorrer as selvas
e cavernas. Os militares têm problemas maiores no continente do que lidar com
essas partículas de terra no meio do oceano. Não vale a pena usar seu arsenal
caro em nós. Desde que os Defeituosos não ataquem Demesne, de fato, ninguém
se importa.
— Então, nós Defeituosos não temos valor algum para os humanos?
— Sim.
— Incrível!
— Com certeza — M-X conclui.
— A Dra. Lusardi deve se importar. Ela deve querer controlar os
Defeituosos.
— Dificilmente — retruca M-X. — Ela precisa controlar os que estão em
Demesne. Ela não se preocupa com os outros, assim que partem.
— Como pode ser assim? Os humanos a levaram para lá para fabricar seus
clones. Certamente sua margem de lucro e sua reputação são afetados se
Defeituosos têm seus acessos nas Cavernas do Delírio.
— Isso é problema dos humanos, não dela.
— Não entendi.
M-X traça com o dedo a cicatriz de queimadura na têmpora. — Quando
esteve na Casa do Governador, nunca percebeu que a Dra. Lusardi não faz
visitas para saber dos clones que ela fabricou? Que nunca participou de funções
sociais ou jamais se envolveu na vida da ilha, fora do seu complexo?
— Não, mas agora que mencionou…
— A Lusardi não se importa porque a própria Lusardi é uma máquina. Assim
como nós, sua missão lá é servir apenas.
— Nossa! Como um clone!
— A Lusardi é um clone. Duplicada da Dra. Larissa Lusardi original, que era
uma cientista brilhante, mas com uma tendência para a justiça. Quando ela se
opôs veementemente contra o uso de seus clones para a servidão, a mataram.
Transferiram sua memória e habilidade para o seu clone, mas extraíram a alma
de sua Matriz, para se livrar dessa ética irritante que a impedia de cumprir
obedientemente as encomendas de compra dos humanos de Demesne.

O fogo crepita mais calmo ao se apagar. Logo, precisaremos pôr mais lenha ou
nos retirarmos para dormir. Percebo que negligenciei a pergunta mais
importante.
— Qual Defeituoso me resgatou e me trouxe para cá?
— Olhe para trás de você. Ele é humano, não um Defeituoso. Embora tenha
sido escolhido para liderar o Exército de Defeituosos que se escondem nas
Cavernas do Delírio.
Viro a cabeça e vejo uma figura alta carregando toras recém-cortadas para o
fogo. Acima das toras, vejo o cabelo loiro e, ao se aproximar do fogo, o azul
profundo de seus olhos azul-turquesa.
É o Aquino, Alexander Blackburn. Ele me salvou.
— EU NÃO TE SALVEI — DIZ ALEXANDER. — Você mesma se
salvou.
É a manhã seguinte. M-X se cansou dos companheiros e se retirou para o
outro lado da ilha para coletar ervas, insetos e conchas para seus remédios.
Ainda não tenho nada a fazer além de me balançar na rede enquanto recupero
energia, que M-X diz ser a única coisa que devo fazer. De fato, é algo meio
incrível toda essa coisa de não fazer nada no meio desse nada tropical. Também
é meio chato. No final, mais cedo ou mais tarde, espero ter que me levantar desta
rede e seguir com a minha vida.
Não tenho ideia alguma de como fazer isso. A rede parece muito acolhedora,
por agora.
— Como me encontrou? — Questiono Alexander Blackburn, que resolveu
passar a manhã balançando na rede em frente à minha.
— Eu fazia parte do grupo de busca enviado para recuperar seu corpo depois
que pulou do penhasco na Casa do Governador. Sou um mergulhador militar.
Ou, era.
— O que significa isso, “era”?
— Significa que estou oficialmente ASP, ausente sem permissão, desde que a
trouxe aqui. Os militares pensam que perdi minha vida na missão, ou abandonei
meu posto, o que pode me levar à corte marcial se capturado.
— M-X diz que você lidera o Exército de Defeituosos? Então não são um
mito.
— Não são mito. São a razão por eu ter entrado no exército.
— Então é um traidor humano?
— Isso é uma questão de perspectiva. Meu povo é de ecoguerreiros. Juntar-
me aos militares era a melhor maneira de tentar destruir Demesne de dentro para
fora.
Meu estômago ronca tão alto que ele olha para mim.
— Está com fome?
— Vivo com fome agora — confesso. — Como não há mais razão para me
negar o prazer que tenho ao comer, parece que fiquei mais esfomeada que antes.
Ele ri.
— Por que é engraçado? — pergunto, curiosa.
— Exatamente como Zhara. A garota adorava comer.
Seu comentário me irrita.
— O apetite é meu. Gosto de comer porque a comida é saborosa,
especialmente chocolate. Não por causa dela.
— Então é, com certeza, algo só seu — concorda Alexander Blackburn. —
Zhara não gostava de chocolate.
— Bárbaro! — exclamo, chocada com o quanto pareço com a Mãe.
O Aquino senta-se na rede.
— Então vamos pegar o almoço. Não há chocolate por estas bandas, mas
aposto que podemos forrar a barriga com algo bom.
— Onde é que vamos pegar o almoço, Alexander Blackburn?
— Vamos caçá-lo ou pescá-lo, ora! E, por favor, pare de me chamar pelo meu
nome completo.
— Então, como devo chamá-lo? Aquino?
Ele ri novamente.
— Zhara me chamava de Xander.
— Vou te chamar de Alex. — Levanto da rede. — Vamos caçar peixe para o
almoço, Alex. Gostaria de ir até a água.

Seguimos através da selva densa em direção à praia. Pelo caminho, Alex me


conta como ele, sendo Aquino, alistou-se no exército de treinamento para agente
secreto quando, na verdade, já era um agente secreto.
Quando menino, era atraído por esportes aquáticos, tanto que seus pais lhe
permitiram treinar e competir no continente, algo incomum para um Aquino
enclausurado. Aos dezoito anos, decidiu que, em vez de aprendiz de ofício
tradicional Aquino, como carpintaria ou agricultura orgânica, queria viajar e
conhecer mais do mundo exterior. Sem meios monetários para custear seus
interesses, Alex decidiu entrar para o exército, para treinar e se tornar um
comandante. A inspiração para se juntar aos militares foi o pai de Zhara,
sargento-instrutor, que também recrutou Alex para a aliança secreta, pró-
Defeituosos, dentro do exército.
Então, é verdade o que Xanthe me contou uma vez. Existem realmente
humanos no poder que querem ajudar Defeituosos a recuperar suas almas, abolir
a legalidade de servidão dos clones em Demesne.
O pai de Zhara se envolveu ativamente na causa após a morte da mãe dela,
em um choque durante um protesto antisservidão dos clones. Ele é um homem
rígido e conservador, segundo Alex, a última pessoa que alguém jamais pensaria
estar a bordo da aliança pró-Defeituosos. Quando Zhara ainda era criança, sua
esposa abandonou a família porque eles discordaram sobre a adesão dela ao
movimento de protesto. Mas a morte da esposa, a perda da mãe de sua filha,
mudou suas opiniões, e ele secretamente envolveu-se no movimento. O pai de
Zhara é “alguém de dentro” do exército essencial para a causa. Ele recrutou
Alexander para a causa e o apresentou ao pequeno, mas crescente grupo de
oficiais militares que querem abolir a prática de servidão de clones em Demesne.
— Como o pai de Zhara se sentiria sobre o clone de sua filha? — indago.
Chegamos à praia. Não espero pela resposta à pergunta. Instintivamente,
corro para a água. Até ver a areia branca e as ondas com crista branca rolando
sobre a água azul safira não percebera o quanto senti falta do oceano. Entro no
mar. Esta água natural é mais fria que a de Io e não acalma e acaricia a pele
magicamente, mas me acorda e me agrada estar nela.
— Ajude-me — Alex me chama da praia. Eu me viro. Está em pé ao lado de
uma canoa na areia, seu torso esculpido emoldurado pela luz do sol atrás das
costas.
Juntos, levamos a canoa para a água. Entro primeiro e ele pula junto,
empurrando-a na água. Sentamos em lados opostos da canoa e remamos um
pouco mar adentro, ainda em águas rasas, mas longe da praia.
— Não sei como vou contar ao pai de Zhara — confessa Alex, reconhecendo
o que eu suspeitava: o pai de Zhara, também meu pai biológico, acredito, não
acolheria o clone da filha.
— Não entendo por que você faz parte deste movimento. Os Aquinos não
querem erradicar a clonagem porque não é natural? O seu culto não é de pessoas
geneticamente modificadas?
— Em primeiro lugar, não somos um culto. Em segundo, os Aquinos
projetaram-se por escolha, não por lucros. Nossa raça foi formada com a
intenção de reunir os melhores elementos na humanidade, de modo que nosso
povo pudesse viver em harmonia e de forma produtiva na Terra, fora dos limites
da ganância. Entendemos que a clonagem é uma forma de escravidão.
— Então não é um abolicionista?
— Sei que a clonagem não pode ser interrompida. Minha missão, minha
esperança, é que um dia os clones recebam os mesmos direitos fundamentais que
os seres humanos, que nunca sejam usados como escravos de novo.

Os peixes são facilmente visíveis na água clara tropical ao redor da canoa. Mas
eu já matei um humano. Não posso matar um peixe também. É muito recente.
Recuso a lança que Alex tenta me passar.
— Pensei que tinha dito que estava com fome — ironiza ele.
Sacudo a cabeça com veemência. Não consigo nem olhar. — Bem, então
segure o balde para que eu possa pôr o peixe dentro.
Seguro firme o balde a seus pés enquanto ele espeta o peixe para nosso
jantar. Ouvir o peixe se sacudir ao morrer no balde me faz querer vomitar.
Preciso me distrair deste assassinato, mesmo que ele seja o almoço.
— Como foi parar em Demesne? — pergunto.
— Treinei na Base para assumir um posto de comando. Demesne é a
atribuição mais procurada e difícil de obter, mas suspeitávamos que eu tinha uma
boa chance, por ser Aquino. Porque, supostamente, quem se preocupa menos
com os direitos dos clones que um Aquino? Quem melhor para o serviço de
carimbar o relatório anual da Comissão de Direitos dos Replicantes?
— Ouvi falar como você protegeu nossos direitos em Demesne. Protegeu tão
bem que você mandou a outra Beta adolescente de volta para a Dra. Lusardi para
ser torturada. Não tem como ela ter explodido aquela bomba.
— Ela não explodiu. Mas alguém tinha que levar a culpa. Ela era um alvo
fácil. Uma viciada em raxia, perto da morte, ou já Horrível. — Ele comenta tão
casualmente. — Dano colateral, é como os militares chamam.
— Eu chamo isso de atrocidade — informo. Então, acrescento: — Então,
quem detonou a bomba?
— Fui eu — diz Alex. — Sob as ordens do Governador. O objetivo era
desmantelar um pequeno anel de raxia escondido na selva perto do complexo da
Dra. Lusardi. A Beta adolescente foi culpada para que o Governador pudesse ter
cobertura para a verdadeira razão por trás da bomba, que era na verdade um
aviso muito público para aqueles que apoiam a Insurreição. — Ele faz uma
pausa e me fita nos olhos. — Sinto muito — desculpa-se. — Essa batalha requer
escolhas difíceis. As coisas só vão ficar cada vez mais difíceis.
Como a escolha que ele fez de se tornar ASP, por mim, arriscando a própria
vida, e sua morte iminente se os militares o recapturarem.
Eu perdi demais para lamentar mais agora pelo que já se foi. Minha vida pela
frente deve ser uma tela limpa, cheia de possibilidades. Se ao menos Tahir
pudesse ser incluído nela.
— Desculpas não trarão Becky de volta — respondo. Não há mais nada a
dizer sobre o assunto, para mim já chega. Fico em pé no barco, preparando-me
para mergulhar. — Gostaria de dar um mergulho rápido.
Mas Alex olha para as nuvens se formando no céu e alerta: — Vem chuva
por aí. Mas há um local maravilhoso para nadar em um atol logo ali. Aponta
uma pequena ilha a cerca de quatrocentos metros de nosso barco. — Eu te levo
lá amanhã, se o tempo melhorar.
— Posso mergulhar lá também?
— Há alguns pontos elevados de mergulho, sim. Mas talvez isso não seja
uma boa ideia em sua condição delicada, sua ousada. — Ele diz aquela última
palavra com muita familiaridade.
— Ousada? Era isso que a Zhara era?
— Sim.
— Então, não me chame assim. E eu estou me sentindo mais que bem para
mergulhar de novo.
TODA NOITE, AO PÔR DO SOL, ALEX MEDITA. É coisa de
Aquino. Refletir sobre a gratidão. Algo assim. Não é uma aventura na
FantaEsfera.
Sua ausência permite que M-X e eu conversemos ao anoitecer junto ao fogo.
Aqui, na Minha, M-X não me trata como uma companheira, mas como uma
garota normal. Aqui, na Minha, não importa se eu ficar Horrível. Já sou
selvagem e livre.
— Gostaria de ficar por aqui — digo à M-X.
— Agora que está melhor? — pergunta ela.
Aceno com a cabeça.
— Impossível — responde. — Eu curo e mando embora. Não tem graça ter
convidados de longo prazo.
— Não acredito. Todo mundo gosta de companhia.
— Não é verdade. Se tivesse testemunhado as coisas que testemunhei na
enfermaria da Dra. Lusardi, depois também preferiria uma vida de solidão. Além
disso, terá que partir em breve com o Aquino. Ele se ligou a você.
— Como?
Mas acho que já sei. Você sabe que me possui, Z. Começa a fazer sentido.
Aquinos se acasalam para a vida toda. Qualquer coisa que aconteceu para
separá-los, ele ainda está ligado a Zhara. E, por extensão, a mim. Quer eu queira
isso ou não. Quer eu o deseje, de minha parte, ou não.
— Você é a companheira dele — explica M-X. — Ele te resgatou. Cuidou de
você até que revivesse.
— Você disse que você me curou.
— Dei remédios herbais. Ele ficou ao seu lado noite e dia, enxugou-lhe a
testa, segurou sua mão, a alimentou, a manteve limpa. Acho que até orou por
você.
Se ele pensa que me possui agora, está muito enganado.
Não quero ser possuída por ninguém, nunca mais.
O macaquinho de M-X sobe em seu ombro, pula para a bananeira acima dela
e puxa um novo cacho de bananas. Ele arranca uma banana do cacho e a entrega
para M-X para que ajude a descascá-la, mas ela devolve a banana ao macaco.
— Vá lá e ofereça comida para nossa convidada. Ela deve estar com muita
fome agora que se sente melhor.
O macaco se aproxima e me oferece uma banana. Eu a pego, mas não a
descasco. O macaco me olha interrogativamente. Então a descasco e a ofereço de
volta. — Toma, pode pegar.
— Precisa comer — avisa M-X. — Enquanto convalescia, foi alimentada
com caldo fortificado de ervas curativas, mas agora deve estar louca por comida
mais nutritiva.
— Sim, mas por alguma razão o cheiro de bananas me dá náuseas. Será que
não tem chocolate escondido por aí? Talvez uma vitamina de morango?
— Seus dias de vitamina de morango já eram. Não só não a temos aqui, na
selva, mas seu corpo não deve mais processar os produtos químicos da Dra.
Lusardi.
— Por que não?
— Porque está grávida.
Viro a cabeça para me certificar. Será que estou em um jogo da FantaEsfera?
Ou será uma piada de mau gosto da M-X?
— Não é possível — respondo finalmente. — Replicantes não podem se
reproduzir.
— Era o que acreditávamos. Até agora.
— Como você sabe?
— Sou uma Curadora. Sei disso. E sua amostra de sangue confirmou minha
suspeita.
— Eu me recuso — declaro. Minhas mãos apertam meu ventre. Não sinto
nada. — Há uma coisa dentro de mim? Quero que suma.
A simples ideia de meu corpo produzir um novo ser já me repugna. Mal
comecei a minha própria vida. Se realmente houver uma nova vida crescendo em
meu corpo, foi concebida por violência e não era para ser. Não deveria ser
possível. Esses humanos me alimentaram com tantas mentiras.
Isso é tão injusto! Quero gritar.
— Aquela “coisa” é uma vida e, aparentemente, é tão lutador quanto você —
responde M-X. — Você deve respeitá-la. Se isso é possível para você, talvez seja
possível para o resto de nossa espécie. Você é esperança.
— Eu tirei uma vida. Não sou digna de ser um símbolo de liberdade e
esperança. Sou uma covarde.
— Se isso fosse verdade, não teria me dado ao trabalho de te curar.
Eu protesto!
— Não posso ter um bebê. Nem sei ainda como ser uma pessoa. Você me
ajudará? — pergunto. — Se ele emergir.
— Nascer — ela me corrige. — O nenê vai nascer. Não emergir.
— Se ele nascer — digo. O nível de desespero e medo que sinto de repente é
tão chocante quanto a notícia que meu corpo, que não deveria ser capaz de
reproduzir, pode reproduzir na verdade. Essa notícia é pior do que perder Tahir
ou do que descobrir o nosso iminente Horrível. — Você vai tomar conta dele? —
imploro. — Não posso. Não o quero.
— Você não sabe o que quer. Passou sua curta vida tendo lavagem cerebral
para acreditar que nem sequer podia desejar. Não pode tomar essa decisão sobre
o que cresce dentro de você. Ainda é muito cedo.
— Posso sim! — asseguro.
— Não pode!
— Ajude-me a me livrar dele — imploro.
— Prometi ao Aquino que não o faria, em troca dele te levar embora agora
que se curou. O Aquino acredita na santidade da vida. Agora, ele te levará como
companheira dele. Ele amará e criará seu filho como dele.
— Isso é absurdo! Não peço isso dele!
— Não precisa. É um imperativo biológico. Ele não consegue não fazer isso
com sua companheira. Sua Matriz era a companheira dele, independente dele ou
dela terem idade suficiente ou estarem prontos para formar esse vínculo.
Aconteceu. E Aquinos se acasalam para a vida toda. O que significa que você é
companheira dele agora, porque ela foi.
É como viver na Casa do Governador. Não me dão escolha onde eu gostaria
de ir, ou como. Simplesmente mandam. Cada vez mais, entendo por que
adolescentes humanos ficam rebeldes. Deve acontecer para que possam controlar
suas próprias vidas.
Que controle eu poderia tomar em minhas mãos?
Sou uma adolescente clone Beta grávida que assassinou o filho do chefe
executivo que domina uma ilha de propriedade das pessoas mais ricas do mundo.
Não tenho educação, nem riqueza, nem recursos. A escolha de meu próprio
destino não é realmente uma opção neste momento. Sou obrigada a acompanhar
alguém que pode me ajudar a sobreviver nesse próximo estágio de minha vida.
AS TEMPESTADES MARÍTIMAS FORA DO ANEL DE IO
são especialmente fortes; fizeram a Matriz de Tahir perder a vida. Toda a energia
usada dentro do anel desestabilizou cada vez mais o oceano fora das águas
violetas de Io. Essa é a razão pela qual apenas Defeituosos casuais e piratas
tentam atravessá-lo.
Naquela noite, sonho com esse mar violento, não violeta, conforme uma
tempestade passa acima de nossa fortaleza na selva, pingando chuva em meu
corpo através dos furos do telhado de palha da cabana, enchendo o coração de
terror com cada relâmpago e estrondo do trovão.
Em meu sonho, vou pescar com Alex.
Enquanto velejamos, penso que os Humanos me surpreendem. Criaram a
tecnologia de replicar a si mesmos, e a de cercar ilhas paradisíacas em bolhas
ecológicas no meio do nada, servidos por seus clones fabricados. Construíram
cidades, destruíram cidades e tornaram a construir cidades. Foram ao espaço e
criaram colônias a anos-luz de distância da amada Terra. Ainda assim, apesar das
proezas técnicas, continuam existindo entre eles aqueles que viajam de… bote
inflável?
É sério? Grito para Alex, acima do barulho das ondas. Um bote inflável?
Esse barco é tudo o que tínhamos nas Cavernas do Delírio respondeu. No
exato momento não podem se gabar dos suprimentos. Era pegar este barco ou
nadar.
O céu se torna cinza escuro e a névoa circunda o barco. Rapidamente, a
visibilidade vai a zero. Quando deixamos a ilha Minha, o céu estava claro e o
mar calmo. Ele não admite, mas eu sei. Estamos perdidos. O mar revolto nos
tirou do curso. O oceano deve estar me punindo pelo que fiz a Ivan. O céu se
rasga em fúria estrondosa, lançando um relâmpago direto no casco do bote.
Conforme ele começa a esvaziar, o Aquino diz: Parece que vamos nadar no final
das contas.
A água é fria e implacável, furiosa. Quer nos engolir totalmente. As ondas
nos fustigam, a corrente golpeia, mesmo assim conseguimos nadar.
Fique por perto! Alex grita para mim. Temos que conseguir chegar ao atol.
Ele não precisa me instruir. Meu corpo sabe exatamente o que fazer. Já fez
isso antes.
Foi assim que Zhara morreu.
Não sei se é por causa da queda do relâmpago, a proximidade de seu
poderoso amado, ou porque sou simplesmente a mais Defeituosa das Betas
Defeituosas, mas, em meu sonho, as visões de Z estão de volta. Na verdade, sou
grata por isso; ver o que ela vivenciou permite que eu me separe de meu nado
impossível do pesadelo no mar tempestuoso.
Nas visões anteriores herdadas dela tive apenas relances de Alex. Embaixo
d’água, ele acenava e me seduzia, um canto de sereia. Você me possui, Z, dizia
ele. Pela primeira vez, agora ouço a voz dela. É a mesma voz que tenho, mas
mais forte, mais zangada. Ela era muito mandona.
Iahuuu! Festa mortífera!, grita. Vejo as ondas golpeando o bote em que está.
Vejo outras duas pessoas no bote com ela, um macho e uma fêmea, talvez da
mesma idade dela, mas seus rostos estão borrados. Não consigo vê-los. Consigo
apenas sentir seu medo e pânico em conflito direto com o relaxamento sereno
fluindo em suas veias. Zhara e seus amigos saíram em excursão desautorizada,
afastando-se do acampamento escolar. Queriam estar no meio do oceano e usar
raxia e nadar tão próximo do anel de Io quanto conseguissem chegar. Não
conseguiram chegar nem perto antes da tempestade cair. Rapidamente, a
escapada de sonhos da raxia se tornou um pesadelo. Para sobreviver, tiveram
que abandonar o barco. Mas a droga que tomaram teve um efeito contrário a
eles, tirando-lhes o foco e a força que precisavam no momento de crise.
Pelo menos, morreremos felizes, pensou Zhara.
Mesmo que ela não acreditasse nisso.
Ela duvidou ser forte o suficiente para nadar desta vez. Dúvidas persistentes
e incômodas foram o que mutilaram sua força durante a vida. Não sou boa o
suficiente nem forte o suficiente. Não sou digna. Mas ela era.
Foi a raxia que a matou, não o nado durante a tempestade. Ela tomou raxia
para sentir alívio, para sentir algo diferente da dor que se enraizou tão
profundamente em seu coração, que ela quis morrer em vez de vivenciar mais
um dia com essa dor no coração, uma ferida tão grande que matou seu foco
competitivo e lhe custou o lugar no time olímpico de mergulho. Descobriu que
usar raxia fazia a dor desaparecer. Mas dessa vez, a raxia fez com que estivesse
tranquila demais para nadar. Sóbria, ela poderia ter sobrevivido à tempestade.
Mas, nesse momento de crise, ela não só não conseguiria se salvar, mas levaria
seus amigos consigo. Eles não estavam muito dispostos a deixar o grupo da
escola. Mas ela implorou. Insistiu. Conseguiu o que queria, como sempre,
prometendo que seria supermaravilhoso e uma aventura da qual iriam se
vangloriar mais tarde, quando retornassem ao acampamento.
Seu pesadelo é meu pesadelo. Eu luto para nadar nas águas tempestuosas,
lutando para sobreviver, da mesma forma que ela. Vejo claramente o que ocorreu
à Zhara. Ela se afogou. Foi ao fundo não por falta de forças, mas simplesmente
porque seu coração parou. Uma overdose. Queria tanto fazer o coração parar de
doer. A raxia permitiu que o coração obedecesse.
DEPOIS DO SONO CONTURBADO, O SOL DA MANHÃ brilha
forte e pacífico, como se o céu jamais tivesse liberado o inferno na noite
passada.
— Você me prometeu que nadaríamos — cobro de Alex na manhã seguinte,
quando o encontro se livrando de um monte de galhos derrubados pela
tempestade noturna. — Quero que seja tranquilo e refrescante. Em águas calmas.
Ele larga a árvore caída que estivera afastando.
— Vamos lá — concorda. — Estou sempre disponível para nadar.
Levamos a canoa ao atol próximo que ele apontou ontem. É uma ilha de
recifes de coral de poucos quilômetros de terra firme com praia e árvores
cercando uma fonte central de água. Em um dia claro, quente e ensolarado como
hoje, sem uma nuvem no céu, enquanto golfinhos nadam ao redor do atol,
tartarugas verdes bamboleiam pela areia e aves marinhas nos sobrevoam,
humanos poderiam considerar essa extensão de praia algum tipo de paraíso.
Zhara teria adorado ficar presa em uma ilha deserta com Alexander
Blackburn. Poderia ter chamado a experiência de lua de mel. Penso nisso como
outra curiosidade que devo vivenciar até que possa, finalmente, me reunir a
Tahir.
Uma Beta grávida pode sonhar, certo?
Alexander e eu não somos os primeiros a descobrir esta ilha. Outros já
estiveram aqui antes de nós e espalharam suas relíquias por ali. Esculpiram seus
nomes nas flores de cactus: Amber ♥ Pierre. Jake + Nicholas. Sozinho com Deus
e as tartarugas. Ezekiel. Deixaram roupas — camisetas e maiôs — penduradas
nos galhos das árvores.
Alex me conduz até um ponto no centro do atol onde as árvores verde-
esmeralda cercam uma lagoa de um azul perfeito margeada com areia rosada.
Um paraíso real. De qualquer forma, Alex acredita que preciso de ajuda nesse
paraíso. Há! O paraíso poderia ser o único terreno onde fui educada a navegar.
Ele tenta pegar a minha mão para equilibrar meus passos para dentro da água
morna, como se eu fosse frágil. Tiro a minha mão da dele.
— Tenho dezesseis anos — digo a Alexander. — Sei tomar conta de mim
mesma.
— Você tem o equivalente a dezessete — corrige Alexander. — O
aniversário de Zhara foi no mês passado.
Não sei bem o que lhe responder. Há tantas coisas para perguntar, mas é tão
difícil focar quando, toda vez que ele me olha, sei que está enxergando ela.
Observa minha gravação e meus olhos fúcsia, tenho certeza que lamenta.
Quando olho para ele, vestindo apenas uma sunga preta sobre o corpo
extremamente musculoso, vejo seus olhos turquesa e os tufos de cabelo loiro
queimados de sol ao redor do rosto e tudo o que consigo pensar é: você fez amor
com ela. Você fez amor com a Outra de mim.

Não posso negar: vê-lo nadar é um espetáculo de pura beleza.


Ele não só nada na água, é como se dançasse nela. As braçadas, tão
poderosas, são graciosas ao mesmo tempo; é como um peixe humano que
pertence a esta água benéfica tropical.
Talvez ele também possa ensinar à coisa que está crescendo dentro de mim a
nadar. Não há muito no departamento da felicidade que eu seja capaz de oferecer
a esta coisa concebida em violência. Mas um Aquino conseguiria amá-la e
protegê-la como eu jamais poderia.
Nado, seguindo Alex até o meio da lagoa onde a água é profunda, mas nossos
pés ainda conseguem tocar o fundo. Afundo os pés na areia quente do leito do
mar. O sol parece brilhar diretamente sobre Alex, como se o cercando com um
halo.
— Conte-me mais a respeito da Zhara. — peço.
Começamos os dois a andar na água, para nos mantermos em movimento
enquanto a conversa vem à tona.
— Encontrei-a pela primeira vez quando tinha dezesseis anos e ela treze —
relembra. — Ajudava a treinar sua equipe de mergulho. Zhara era uma
mergulhadora excelente, treinando para as Olimpíadas, mas tinha muitos
problemas familiares. Perdera a mãe muito nova e estava sempre brigando com o
pai. Poderia ter sido uma verdadeira campeã atlética, mas sua natureza básica
rebelde, tempestuosa, estava sempre em guerra com seus talentos físicos. Logo
depois de completar dezesseis anos, eu estava com dezenove e decidira me
alistar. Na água, éramos companheiros, pois lá Zhara era ela mesma. Mas em
terra, era impossível de lidar. Era voluntariosa e egoísta. Estava continuamente
tentando me provocar a começar um relacionamento com ela. Sentia muita
atração por ela, mas achava que não era madura o suficiente para me acasalar
com ela. Mas então, uma noite, logo antes de partir para a Base, cedi à tentação.
Ela me desafiou. E não consegui resistir. Mas na manhã seguinte, rompi. Disse-
lhe que fora um erro, que era jovem demais, impetuosa demais. Parti para Base
e, pelo que ouvi, lentamente perdeu o controle até aquele acampamento, quando
desapareceu.
— Pensei que Aquinos se ligassem para a vida toda. Como pôde ter rompido
com ela depois? — questiono. Não tenho razões para defendê-la, mas sei que
meu tom de voz parece acusador.
— A engenharia Aquina pode ter falhas, tanto quanto a sua — explica Alex.
— Não é cem por cento perfeita. É a minha vergonha, minha falha. Minha
rejeição da Zhara após o que aconteceu não deveria ter acontecido, mas
aconteceu. — Ele para de andar o tempo suficiente para me observar. — Fui
insensível e em contradição direta à verdadeira natureza de meu povo. Não tenho
orgulho. E agora, aí está você.
Ei, sol, quero dizer ao efeito de halo solar emoldurando seu corpo musculoso.
Acredito que o Aquino não é tão angelical no final das contas.
Ele é honesto. Tenho que respeitar isso nele.
Nado ao redor dele em pé, inspecionando-o da forma que os humanos
frequentemente me inspecionaram. Avaliando. Seus bíceps e músculos peitorais
esculpidos. O bronzeado de sua pele. Seu cabelo loiro beijado pelo sol. Os olhos
turquesa, olhando tão intensamente dentro dos meus. Desejando.
Alex ergue os pés do fundo da água e volta a nadar, desta vez, me
perseguindo pela água. Rio enquanto ele se lança abaixo e ao redor de mim e
faço o mesmo, ressuscitando essa dança na água que sei que praticou tantas
vezes com ela.
Mas eu vivencio isso agora. Ela se foi. Ele é meu para ser tomado, se assim o
quiser.
Será que sequer tenho escolha?
Deixo que me apanhe. Estamos sem fôlego quando seus grandes braços
cercam meu corpo e me puxam para perto dele. Olho no fundo de seus olhos e
reconheço. Ele não é Tahir. Mas ele servirá.
Com Alex, posso me juntar ao Exército de Defeituosos nas Cavernas do
Delírio. Alex pode me treinar para que possa participar da Insurreição. Ser o
símbolo de liberdade que querem que eu seja. Eles querem se insurgir; eu quero
me insurgir. Quero propósito e direção, não uma vida ceifada precocemente
como a de Zhara. Quero terminar o que Xanthe e Miguel começaram.
Alex tomará conta do ser crescendo dentro de mim. Ele não é o meu amor.
Mas ele é uma solução excelente. Minha escolha está feita. Vou me juntar à sua
convocação. Seus braços, tão musculosos e fortes, são tão sedutores. Não é um
sacrifício tão grande querer ser abraçada por eles.
De repente, tudo o que Zhara sentia por ele, luxúria, amor, paixão, obsessão,
ternura, desejo, parece fluir intensamente dentro de mim. Aqui com ele na água,
ergo minhas pernas e o envolvo com elas. Ele me segura forte, seu peito
pressionando o meu e, sim, não consigo negar. Meu coração dispara. Uma
tontura.
— Sim? — pergunta com sua voz grave.
— Sim — murmuro.
Os lábios de Alex se inclinam sobre os meus, que se entreabrem para
encontrar os dele. O sol, a água, este momento: nós nos ligamos um ao outro.

Mergulhar. Nadar. Beijar. Abraçar. Conhecer.


O sol poente da tarde nos avisa que o crepúsculo se aproxima. Precisamos
sair da lagoa azul do atol para voltar à Minha antes do pôr do sol, antes da hora
da meditação de Alex e para que eu possa me despedir de M-X.
Determinamos que amanhã partiremos para as Cavernas do Delírio, para
nosso novo início.
Quando retornamos para a canoa na praia, vemos um pequeno barco na água,
se dirigindo à costa.
— Reconheço aquele barco — diz Alex, segurando minha mão ao
caminharmos para a praia. — Pertence ao Exército de Defeituosos nas Cavernas
do Delírio.
O barco encosta e é arrastado para a areia por dois homens corpulentos
gravados com azevinho. — Novos recrutas do Refúgio, pelo que posso ver.
Os dois homens ajudam uma garota a sair por cima da borda do barco. Uma
garota humana, não tatuada, parecendo selvagem e punk, o longo cabelo loiro
listado de tintura preta e azul, despenteado pelo vento do mar. Ela nos vê e
chama: — Xander!
A mão de Alex larga a minha. Os Defeituosos e a garota estão em pé bem
diante de nós.
A garota olha fixamente para mim. Ela registra choque e então angústia.
Seu rosto é o meu.
A garota é Zhara.
Sempre suspeitei ser verdade e agora tenho certeza. Eu tenho alma. Porque
minha Matriz nunca morreu.
Dedicado a TK
NOTAS

[1] Raxia é o nome de uma droga imaginária criada pela autora (N. do E.).
[2] Swell: significa ondulação oceânica. Para os surfistas, indica boas condições
para a prática do esporte, pois, quando o swell chega à praia, as ondas estão
maiores e mais fortes. (N. do E.).
[3] No original, “Mrs. Red Whine”. A autora utiliza a semelhança sonora entre
wine (vinho) e whine (queixar-se) para atribuir um novo nome à personagem (N.
do E.).
[4] A música Children of Hope é uma canção fictícia criada pela autora
especialmente para a história. (N. do E.).
[5] Brunch: uma refeição feita no final da manhã. A combinação de breakfast
(café da manhã) com lunch (almoço). (N. do E.).
RACHEL COHN nasceu em Silver Spring, nos Estados Unidos, em 14 de
dezembro de 1968. Formou-se em Ciências Políticas na Barnard College, em
Nova York, onde vive até hoje, escrevendo livros para o público jovem. Um de
seus maiores sucessos, Nick & Norah – uma noite de amor e música, escrito em
parceria com David Levithan, foi adaptado para o cinema em 2008, com Michael
Cera e Kat Dennings nos papéis principais. Para a história de Beta, Rachel
inspirou-se em um sonho: nele, uma garota-clone adolescente estava à venda em
uma loja de shopping e foi comprada por uma elegante mulher, conhecida como
a esposa do governador. Acordou sabendo que tinha uma trama. Agora ela acaba
de colocar o ponto final no segundo livro da série, Emergent, que deve ser
lançado nos Estados Unidos em outubro de 2014.

Saiba mais sobre a autora:


www.rachelcohn.com
Título original: Beta
Copyright © 2012 by Rachel Cohn
Todos os direitos reservados. Publicado por Hyperion, um selo do Disney
Book Group. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida por
qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive
fotocópia, gravação ou por qualquer sistema de armazenamento e recuperação,
sem autorização escrita da editora.
Tradução: Marina Garcia
Fotografia e arte da capa © 2012 by Zack Gold
Design da capa: Marci Senders
1ª edição digital 2014
ISBN 978-85-16-xxxxx-x
Reprodução proibida.
Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
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