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Livro IV Simpósio. 2017-2018

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autores

Adson de Souza Queiroz


Alaíde Linhares Carlos
Ana Paula França Rolim
Ananda Pórpora Fernandes
Andréa dos Santos Teixeira Tarin Cristino Frota Mont’Alverne
Anna Virginia Pereira L. de Freitas
Antônio de Freitas Freire Júnior Silvana Paula Martins de Melo
Arielly Handhel C. de Araújo
Arthur Gustavo Saboya de Queiroz
Arthur Gustavo Saboya de Queiroz
Beatriz Nogueira Caldas
Bruna Souza Paula (Organizadores)
Carlos Alfredo de Paiva John
Cássia Fernanda Cardoso Campos
Cintia Campos da Silva
Cristina de Fátima A. de Oliveira
Daniel Silva Marques
Danielle Carvalho Rebouças
Diego Jeferson Fernandes Marques
Fabiana Costa Lima de Sá
Fabricia Helena L. C. da S. Pereira
Gertrudes de Sousa Regis
Ingrid Forte Moura Rocha
Jéssica Ferreira Araújo
Jocasya Ferreira Firmeza
Jonh Lenon Pereira da Silva
Juliana Wayss Sugahara
Laís Maria Belchior Gondim Os Desafios do
Lara Campos Arriaga
Letícia Marques Souza
Livia Maria de Sousa
Direito Internacional
Liziane Paixão
Lucas Saraiva de Alencar Sousa
Marcos Sousa França
Contemporâneo
Mariana Urano de Carvalho Caldas
Matheus Quezado de Sousa
Mayna Cavalcante Felix
Monaliza Lima
Nael Neri de Souza Júnior
Nedson Danildo da Fonseca
Nikaelly Lopes de Freitas
Paulo Augusto Carlos M. Filho
Pedro Roney Dias Ribeiro
Rafael Aguiar Nogueira e Franco
Rafaelly Oliveira Freire dos Santos
Raquel de Santana Iraha
Ricardo da Silva Araújo
Rogério da Silva e Souza
Sara Dias Pinheiro
Sarah Dayanna Lacerda M. Lima
Sônia Alves Bezerra Lins
Theresa Rachel Couto Correia
Thiago Fernando de Queiroz
Ulisses Levy Silvério dos Reis
Verônica Maria Teresi
Zairo José de A. e Silva
Os Desafios do Direito
Internacional Contemporâneo
TARIN CRISTINO FROTA MONT’ALVERNE
SILVANA PAULA MARTINS DE MELO
ARTHUR GUSTAVO SABOYA DE QUEIROZ
(Organizadores)

Os Desafios do Direito
Internacional Contemporâneo

Belo Horizonte
2018
CONSELHO EDITORIAL
Álvaro Ricardo de Souza Cruz Jorge Bacelar Gouveia – Portugal
André Cordeiro Leal Jorge M. Lasmar
André Lipp Pinto Basto Lupi Jose Antonio Moreno Molina – Espanha
Antônio Márcio da Cunha Guimarães José Luiz Quadros de Magalhães
Bernardo G. B. Nogueira Kiwonghi Bizawu
Carlos Augusto Canedo G. da Silva Leandro Eustáquio de Matos Monteiro
Carlos Bruno Ferreira da Silva Luciano Stoller de Faria
Carlos Henrique Soares Luiz Henrique Sormani Barbugiani
Claudia Rosane Roesler Luiz Manoel Gomes Júnior
Clèmerson Merlin Clève Luiz Moreira
David França Ribeiro de Carvalho Márcio Luís de Oliveira
Dhenis Cruz Madeira Maria de Fátima Freire Sá
Dircêo Torrecillas Ramos Mário Lúcio Quintão Soares
Emerson Garcia Martonio Mont’Alverne Barreto Lima
Felipe Chiarello de Souza Pinto Nelson Rosenvald
Florisbal de Souza Del’Olmo Renato Caram
Frederico Barbosa Gomes Roberto Correia da Silva Gomes Caldas
Gilberto Bercovici Rodolfo Viana Pereira
Gregório Assagra de Almeida Rodrigo Almeida Magalhães
Gustavo Corgosinho Rogério Filippetto de Oliveira
Gustavo Silveira Siqueira Rubens Beçak
Jamile Bergamaschine Mata Diz Vladmir Oliveira da Silveira
Janaína Rigo Santin Wagner Menezes
Jean Carlos Fernandes William Eduardo Freire

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio eletrônico,
inclusive por processos reprográficos, sem autorização expressa da editora.
Impresso no Brasil | Printed in Brazil

Arraes Editores Ltda., 2018.


Coordenação Editorial: Fabiana Carvalho
Produção Editorial e Capa: Danilo Jorge da Silva
Revisão: Responsabilidade do Autor

341.1 Os desafios do direito internacional contemporâneo / [organizado


D441 por] Tarin Cristino Frota Mont’Alverne, Silvana Paula Martins de
2018 Melo, Arthur Gustavo Saboya de Queiroz. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2018.
497 p.

ISBN: 978-85-8238-498-5
ISBN: 978-85-8238-499-2 (E-book)

1. Direito internacional. 2. Desenvolvimento sustentável. 3. Direito ambiental – Brasil. 4. Brasil – Tratados


internacionais. 5. Acordos internacionais. 6. Direito processual penal. I. Mont’Alverne, Tarin Cristino Frota
(Org.). II. Melo, Silvana Paula Martins de (Org.). III. Queiroz, Arthur Gustavo Saboya (Org.). IV. Título.

CDD(23.ed.)– 341
CDDir – 341.1

Elaborada por: Fátima Falci


CRB/6-700

Matriz Filial
Av. Nossa Senhora do Carmo, 1650/loja 29 - Bairro Sion Rua Senador Feijó, 154/cj 64 – Bairro Sé
Belo Horizonte/MG - CEP 30330-000 São Paulo/SP - CEP 01006-000
Tel: (31) 3031-2330 Tel: (11) 3105-6370

www.arraeseditores.com.br
arraes@arraeseditores.com.br
Belo Horizonte
2018
Organizadores

TARIN CRISTINO FROTA MONT’ALVERNE


Doutora em Direito Internacional do Meio Ambiente - Universite de Paris V
e Universidade de São Paulo (2008). Mestre em Direito Internacional Públi-
co - Universite de Paris V (2004). Bacharel em Direito pela Universidade de
Fortaleza (2001).Professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal
do Ceará (UFC) . Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Direi-
to da Universidade Federal do Ceará. Foi Vice-Coordenadora do Programa
de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (2012-2016).
Coordenadora do Grupo de Estudos em Direito e Assuntos Internacionais
(GEDAI) e do Mundo Direito. Coordenadora do Projeto de Pesquisa em Di-
reito do Mar. Foi Professora Convidada na Universidade Paris-Saclay e na
Universidade Paris V. E-mail: tarinfmontalverne@yahoo.com.br.

SILVANA PAULA MARTINS DE MELO


Mestra em Direito, com área de concentração em Constituição, Sociedade e Pen-
samento Jurídico pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Federal do Ceará (PPGD/UFC). Especialista em Direito Constitucional pelo
Complexo Jurídico Damásio de Jesus. Graduada em Direito pela Universidade
de Fortaleza (UNIFOR), tendo exercido a função de pesquisadora de iniciação
científica da Fundação Edson Queiroz, no Laboratório de Análises Políticas,
Econômicas e Sociais (LAPES). Foi coordenadora do Grupo de Estudos intitu-
lado Islã, Direitos Humanos e Transconstitucionalismo (IDHT), vinculado ao
Grupo de Pesquisa em Filosofia dos Direitos Humanos cadastrado no CNPq
sob coordenação do Professor Doutor Regenaldo Rodrigues da Costa. Professo-
ra orientadora do projeto de extensão da Universidade Federal do Ceará (UFC)
intitulado Grupo de Estudos em Direitos e Assuntos Internacionais (GEDAI)
na linha de Direitos Humanos. Coordenadora de Atividades Complementares
e Professora das disciplinas Filosofia e Hermenêutica no Centro Universitário
Christus (Unichristus). E-mail: silvanapmmelo@gmail.com.
V
ARTHUR GUSTAVO SABOYA DE QUEIROZ
Mestrando em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito da Univer-
sidade Federal do Ceará (PPGD/UFC). Especialista em Direito e Relações In-
ternacionais pela Universidade de Fortaleza, e em Filosofia e Teoria do Direito
pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bacharel em Direito
pela Universidade de Fortaleza. Pesquisador-bolsista do projeto “A estratégia
brasileira para a gestão sustentável dos recursos vivos e não-vivos marinhos”
(CAPES). Advogado. Email: arthur_agsq@hotmail.com.

VI
Autores

ADSON DE SOUZA QUEIROZ


Graduando em Direito na Universidade Potiguar - Campus Mossoró. Dis-
cente-pesquisador do Projeto de Pesquisa Direitos Fundamentais e Políticas
Públicas da Universidade Potiguar.

ALAÍDE LINHARES CARLOS


Graduanda em Direito na Universidade Federal do Ceará.

ANA PAULA FRANÇA ROLIM


Graduanda em Direito na Universidade Federal do Ceará.

ANANDA PÓRPORA FERNANDES


Graduanda em Relações Internacionais na UniSantos. Participou do Progra-
ma de Iniciação Científica da Graduação, sendo bolsista PROIN.

ANDRÉA DOS SANTOS TEIXEIRA


Graduanda do curso de Direito na Universidade Federal do Ceará. Participou
dos cursos de “Cidadania Judiciária” e “Agentes Ambientais” pela Univer-
sidade Aberta do Nordeste da Fundação Demócrito Rocha e do Minicurso
“Fundamentos do Direito Internacional”, ministrada pela professora Marlene
Pinheiro Gonçalves.

ANNA VIRGINIA PEREIRA LEMOS DE FREITAS


Graduanda em Direito no Centro Universitário Farias Brito.

ANTÔNIO DE FREITAS FREIRE JÚNIOR


Graduando em Direito na Universidade Potiguar - Campus Mossoró. Discente-
-pesquisador do Projeto de Pesquisa Direitos Fundamentais e Políticas Públicas da
Universidade Potiguar. Extensionista voluntário da Assessoria Jurídica Universitá-
ria Popular “Ser-tão”, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
VII
ARIELLY HANDHEL CAVALCANTE DE ARAÚJO
Graduanda em Direito na Universidade Potiguar – Campus Mossoró.
Discente–pesquisador do Grupo de Pesquisa Científica Políticas Públicas e
Direitos Fundamentais.

ARTHUR GUSTAVO SABOYA DE QUEIROZ


Mestrando em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito da Univer-
sidade Federal do Ceará (PPGD/UFC). Especialista em Direito e Relações In-
ternacionais pela Universidade de Fortaleza, e em Filosofia e Teoria do Direito
pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bacharel em Direito
pela Universidade de Fortaleza. Pesquisador-bolsista do projeto “A estratégia
brasileira para a gestão sustentável dos recursos vivos e não-vivos marinhos”
(CAPES). Advogado.

BEATRIZ NOGUEIRA CALDAS


Graduanda em Direito na UNI7.

BRUNA SOUZA PAULA


Professora no Centro Universitário Estácio do Ceará, Doutoranda em Ciên-
cias Jurídicas-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa (2012), Es-
pecialista em Direito Processual pela Unisul (2008) e em Ciências Jurídico-
-Políticas pela Universidade de Lisboa (2009) e Graduada em Direito pela Uni-
versidade de Fortaleza (2007).

CARLOS ALFREDO DE PAIVA JOHN


Graduando em Direito na Universidade Federal da Paraíba.

CÁSSIA FERNANDA CARDOSO CAMPOS


Bacharel em Direito e Pós-graduanda em Direito e Relações Internacionais
pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Pesquisadora do CNPq na área de
Direito Internacional e Relações Internacionais. Pesquisadora do Núcleo de
Estudos Internacionais, vinculado à Fudação Alexandre de Gusmão (FUNAG).
Coordenadora de Departamento Na Cruz Vermelha Brasileira no Ceará.

CÍNTIA CAMPOS DA SILVA


Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará, terceirizada do
Tribunal de Justiça vinculado ao Gabinete da Desembargadora Adelineide
Viana. Coordenadora-Adjunta de Departamento na Cruz Vermelha Brasilei-
ra no Ceará.
VIII
CRISTINA DE FÁTIMA ALVES DE OLIVEIRA
Graduanda em Direito na Universidade Potiguar – Campus Mossoró. Discen-
te–pesquisadora do Grupo de Pesquisa Científica Políticas Públicas e Direitos
Fundamentais.

DANIEL SILVA MARQUES


Graduando em Direito na Universidade Federal do Ceará. Docente-coordenador
do Centro de Estudos em Direito Constitucional (CEDIC). Atuou como Vice-
-Secretário-Geral e Secretário Acadêmico da Simulação da Organização das Na-
ções Unidas e como bolsista-pesquisador do PIBIC de 2015-2017, pesquisando
o Direito Natural na Fundamentação dos Valores Jurídicos. Fundador e coorde-
nador do grupo de discussões Promethea, em Direito, Filosofia e Cultura Pop.

DANIELLE CARVALHO REBOUÇAS


Mestranda em Direitos Humanos na Universidade Tiradentes e bolsista do
PROSUP/CAPES.

DIEGO JEFERSON FERNANDES MARQUES


Graduando em Direito na Universidade Federal do Ceará. Participou da
SONU 2017 na Corte Interamicana de Direitos Humanos como juiz, e pro-
fessor no Curso Pré-vestibular Paulo Freire, tem posto de organizador do livro
denominado “Nas entrelinhas da Constituição”.

FABIANA COSTA LIMA DE SÁ


Doutoranda em Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza-Unifor;
Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará-UFC; Docente do cur-
so de Direito do Centro Universitário Estácio do Ceará.

FABRÍCIA HELENA LINHARES COELHO DA SILVA PEREIRA


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Fe-
deral do Ceará, Especialista em Direito Aplicado ao Ministério Público pela
Escola Superior do Ministério Público da União; Assessora do Ministério Pú-
blico Federal no Ceará.

GERTRUDES DE SOUSA REGIS


Graduando do curso de Engenharia Civil na Universidade Federal do Ceará -
Campus Russas. Participou do curso “Água e Educação Ambiental”, realizado
pelo Ministério do Meio Ambiente.

INGRID FORTE MOURA ROCHA


Graduanda em Direito na Universidade Federal do Ceará. Estudante colabora-
dora da Comissão de Direito Internacional da OAB/CE.
IX
JÉSSICA FERREIRA ARAÚJO
Graduanda em direito no Centro Universitário Estácio do Ceará.

JOCASYA FERREIRA FIRMEZA


Graduada em Direito na UNIFOR. Advogada Autônoma.

JONH LENON PEREIRA DA SILVA


Graduando em Direito na Universidade Federal do Ceará.

JULIANA WAYSS SUGAHARA


Doutora em Desenvolvimento e Meio Ambiente pelo Programa de Pós Gra-
duação em Desenvolvimento e Meio Ambiente - PRODEMA/UFC. Atual-
mente é coordenadora do Curso de Direito da Faculdade Metropolitana da
Grande Fortaleza - FAMETRO - CE.

LAÍS MARIA BELCHIOR GONDIM


Graduanda em Direito na Universidade Federal do Ceará (2017.2), cursando
Inglês pela Casa de Cultura Britânica (UFC), sexto semestre (2017.2), membro
participante do Grupo de Estudo em Direito e Assuntos Internacionais - GE-
DAI (2017.2).

LARA CAMPOS ARRIAGA


Doutoranda em Direito na Université René Descartes (Paris V) em cotu-
tela com a Universidade Federal do Ceará. Exerceu o cargo de Assistente
administrativa na Delegação de Portugal junto à UNESCO (Paris-França).
Mestrado em direito pela Université René Descartes (Paris V). Advogada
inscrita na OAB/CE. Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza.
E-mail:laracampos_@hotmail.com.

LETÍCIA MARQUES SOUZA


Graduanda em Direito na Universidade Federal do Ceará (UFC).

LÍVIA MARIA DE SOUSA


Doutoranda e Mestre em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade Federal do Ceará; Procuradora da República no Ceará.

LIZIANE PAIXÃO SILVA OLIVEIRA


Pós-Doutorado e Doutorado pela Universidade Aix-Marseille III. Mestre em Di-
reito pela Universidade de Brasília. Coordenadora do Programa de Pós-Gradua-
ção em Direito/Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Tiradentes.
X
LUCAS SARAIVA DE ALENCAR SOUSA
Graduando em Direito na Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro-
-pesquisador do GEDAI na linha Ambiental.

MARCOS SOUSA FRANÇA


Graduando do curso de Direito na Universidade Federal do Ceará. Participa
de cursos no Portal ANA e no Ministério do Meio Ambiente, tais como “Água
e Educação Ambiental” e “Juventudes, Participação e Cuidados com a Água”.
Participou do GPDD - Grupo de Pesquisa Democracia e Direito- da Faculdade
de Direito da UFC, no período de 2017.1 e é integrante do GEDAI - Grupo de
Estudos em Direito e Assuntos Internacionais.

MARIANA URANO DE CARVALHO CALDAS


Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal
do Ceará (PPGD/UFC). Graduada em Direito pelo Centro Universitário Ch-
ristus (Unichristus). Bolsista pela Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvi-
mento Científico e Tecnológico (FUNCAP). Advogada.

MATHEUS QUEZADO DE SOUSA


Graduando em Direito na Faculdade Farias Brito. Membro do Gedai Penal
Internacional.

MAYNA CAVALCANTE FELIX


Mestranda em Direito Constitucional na Universidade Federal do Ceará. Es-
pecialista em Direito Civil e Empresarial. Advogada atuante na área cível.

MONALIZA LIMA
Licenciatura e Bacharelado em Geografia - Universidade Federal do Ceará
(UFC), Especialização em gestão pública - Universidade Estadual do Ceará
(UECE), Graduanda em Direito – UFC.

NAEL NERI DE SOUZA JÚNIOR


Graduando em Direito na Universidade Federal Rural do Semi-árido
(UFERSA). Bolsista PIVIC/UFERSA. Membro do grupo de Pesquisa em
História Constitucional e Direitos Sociais e extensionista do projeto “Me-
mória, verdade e justiça: os desafios da efetivação democrática em contex-
tos de transição”.

NEDSON DANILDO DA FONSECA


Graduando em Direito na Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA).
XI
NIKAELLY LOPES DE FREITAS
Graduanda em direito no Centro Universitário Estácio do Ceará.

PAULO AUGUSTO CARLOS MONTEIRO FILHO


Advogado. Graduado em Direito na Universidade Federal do Ceará. Especia-
lização em Direito e Relações Internacionais (UNIFOR). Diretor da Global
Shapers Fortaleza. Diretor Conselheiro do Grupo de Estudos em Direito e
Assuntos Internacionais.

PEDRO RONEY DIAS RIBEIRO


Mestrando em Antropologia na UFC/Unilab.

RAFAEL AGUIAR NOGUEIRA E FRANCO


Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Editor da Revista
Virtual Direito Diário e Diretor Conselheiro do Grupo de Estudos em Direito
e Assuntos Internacionais.

RAFAELLY OLIVEIRA FREIRE DOS SANTOS


Graduanda em Direito na Universidade Federal da Paraíba. Estagiária do Mi-
nistério Público Federal.

RAQUEL DE SANTANA IRAHA


Bacharel em Tradução e Interpretação (UNISANTOS), Especialista em Filo-
sofia e Direitos Humanos (PUC PR) e atualmente graduanda em Relações
Internacionais (UNISANTOS).

RICARDO DA SILVA ARAÚJO


Mestre em Biologia de Fungos pelo Programa de Pós-Graduação em Biologia
de Fungos da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE; e graduando em
Direito pelo Centro Universitário Estácio do Ceará.

ROGÉRIO DA SILVA E SOUZA


Membro da Comissão de Direito Constitucional da Seccional da OAB/CE.
Docente dos cursos de graduação e pós-graduação e membro da Comissão de
Direito Constitucional do Centro Universitário do Ceará. Docente também
da Faculdade Metropolitana de Fortaleza - FAMETRO. Criador do Informati-
vo Independente de Direito iure-mail (ISSN 1980-3583).

SARA DIAS PINHEIRO


Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Advogada.
XII
SARAH DAYANNA LACERDA MARTINS LIMA
Doutoranda em Direito Público na Universidade de Coimbra-UC; Mestre em
Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará-UECE;
Especialista em Direito Internacional pela Universidade de Fortaleza-Unifor.
Docente do curso de Direito do Centro Universitário Estácio do Ceará.

SÔNIA ALVES BEZERRA LINS


Mestrado em Ciências da Educação; Assistente Social no Centro de Atenção
Psicossocial - CAPS 2 em Mossoró/RN e na Diretoria da Políticas e Ações
Inclusivas - DAIN da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.

THERESA RACHEL COUTO CORREIA


Doutora em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Mestra em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Graduada em Direito pela
Universidade de Fortaleza (Unifor). Professora de Direito Previdenciário e do
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará
(UFC). Consultora em matéria previdenciária.

THIAGO FERNANDO DE QUEIROZ


Graduando o curso de Direito na Universidade Potiguar e Graduando o
Curso de Licenciatura em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte; pessoa com deficiência visual; conselheiro do Conselho
Municipal de Saúde representando ONG’s e Pessoas com Deficiência; mem-
bro da Comissão de Direito e Legislação do Conselho Municipal dos Direi-
tos das Pessoas com Deficiência e conselheiro da Associação dos Deficientes
Visuais de Mossoró.

ULISSES LEVY SILVÉRIO DOS REIS


Doutorando em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito da Uni-
versidade Federal do Ceará (PPGD/UFC). Mestre em Ciências Jurídicas pelo
Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal
da Paraíba (PPGCJ/UFPB). Especialista em Direitos Humanos e Bacharel em
Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Pro-
fessor Assistente da Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA).

VERÔNICA MARIA TERESI


Doutoranda em Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC
(São Paulo-Brasil). Graduada em Direito e com Mestrado em Direito Interna-
cional pela Universidade Católica de Santos (São Paulo - Brasil).
XIII
ZAIRO JOSÉ DE ALBUQUERQUE E SILVA
Graduado em Ciências Sociais e Mestre em Filosofia pela Universidade Esta-
dual do Ceará (UECE). Docente-pesquisador do Grupo de Pesquisa Científica
Políticas Públicas e Direitos Fundamentais.

XIV
Sumário

PARTE I
OS INSTRUMENTOS DE IMPLEMENTAÇÃO DOS OBJETIVOS
PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL..................................... 1

Capítulo 1
AS LIMITAÇÕES DO DIREITO AMBIENTAL BRASILEIRO:
UMA ANÁLISE DA BANCADA RURALISTA E DO OBJETIVO
17.14 DA AGENDA 2030
Lucas Saraiva de Alencar Sousa......................................................................... 2

Capítulo 2
CHERNOBYL AMAZÔNICA: O QUE O POLÊMICO CASO
PODE ENSINAR SOBRE A RELAÇÃO ENTRE ARBITRAGEM E
SUSTENTABILIDADE?
Rafaelly Oliveira Freire dos Santos; Carlos Alfredo de Paiva John........... 16

Capítulo 3
BACIAS HIDROGRÁFICAS NUMA PERSPECTIVA GLOBAL:
UMA ANÁLISE DE CONFLITOS TRANSFRONTEIRIÇOS E
DE TRATADOS BRASILEIROS INTERNACIONAIS
Marcos Sousa França; Andréa dos Santos Teixeira;
Gertrudes de Sousa Regis...................................................................................... 35

Capítulo 4
A IMPORTÂNCIA DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO PARA
A SUSTENTABILIDADE DO MEIO AMBIENTE MARINHO:
UMA ANÁLISE DO ESTADO DO CEARÁ A LUZ DO ODS
Nº 14, DA AGENDA 2030
Jocasya Ferreira Firmeza...................................................................................... 53

XV
Capítulo 5
IMPACTOS NOCIVOS CAUSADOS PELO TERMINAL PORTUÁRIO
DO PECÉM/CE: O ÍNDICE DE DESEMPENHO AMBIENTAL (IDA)
À LUZ DA LEGISLAÇÃO AMBIENTAL
Ricardo da Silva Araújo; Rogério da Silva e Souza;
Juliana Wayss Sugahara....................................................................................... 65

PARTE II
A EVOLUÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA INTERNACIONAL
PENAL E O SEU REFLEXO NO SISTEMA PENAL BRASILEIRO...... 82

Capítulo 6
LEI ANTITERRORISMO BRASILEIRA (Nº 13.260/2016):
ATENTADO CONTRA O SISTEMA PENAL ACUSATÓRIO?
Nedson Danildo da Fonseca; Ulisses Levy Silvério dos Reis....................... 83

Capítulo 7
A POSSÍVEL RESPONSABILIDADE DO EX-PRESIDENTE DA COSTA
DO MARFIM À LUZ DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
Anna Virginia Pereira Lemos de Freitas.......................................................... 101

Capítulo 8
AS REGRAS DE BANGKOK E O TRATAMENTO MÍNIMO DA
MULHER MÃE ENCARCERADA NO BRASIL
Nikaelly Lopes de Freitas; Jéssica Ferreira Araújo;
Bruna Souza Paula................................................................................................. 119

Capítulo 9
A INVISIBILIDADE DO TRÁFICO DE PESSOAS NAS MISSÕES
DE PAZ DA ONU: O CONFLITO EM KOSOVO
Ananda Pórpora Fernandes; Raquel de Santana Iraha;
Verônica Maria Teresi........................................................................................... 136

Capítulo 10
LÍBIA: ANÁLISE DO CASO PROCURADORIA V. SAIF AL-ISLAM
GADDAFI À LUZ DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
Anna Virginia Pereira Lemos de Freitas; Laryssa Figueiredo de Azevedo.... 154

Capítulo 11
O ACORDO DE PAZ NA COLÔMBIA À LUZ DO TRIBUNAL PENAL
INTERNACIONAL
Matheus Quezado de Sousa; Diego Jeferson Fernandes Marques............... 172

XVI
Capítulo 12
O TPI E OS TRIBUNAIS PENAIS INTERNACIONAIS AD HOC:
UMA ANÁLISE DAS EVOLUÇÕES E DAS DEFICIÊNCIAS
Beatriz Nogueira Caldas; Pedro Roney Dias Ribeiro.................................... 187

Capítulo 13
A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DA CRIANÇA-SOLDADO:
DIREITO INTERNACIONAL FRAGMENTADO?
Cintia Campos da Silva; Cássia Fernanda Cardoso Campos...................... 205

PARTE III
A IMPLEMENTAÇÃO DOS COMPROMISSOS
INTERNACIONAIS PELO BRASIL: AVANÇOS OU
RETROCESSOS?..................................................................................................... 223

Capítulo 14
A ADOÇÃO DA INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA DE
VICIADOS EM DROGAS PELO ESTADO BRASILEIRO E O
FERIMENTO DAS RECOMENDAÇÕES INTERNACIONAIS
PARA TRATAMENTOS BASEADOS EM DIREITOS
FUNDAMENTAIS
Cristina de Fátima Alves de Oliveira; Arielly Handhel Cavalcante de
Araújo; Zairo José de Albuquerque e Silva...................................................... 224

Capítulo 15
A LIBERDADE RELIGIOSA DOS REFUGIADOS E O
MULTICULTURALISMO
Fabiana Costa Lima de Sá; Rogério da Silva e Souza;
Sarah Dayanna Lacerda Martins Lima............................................................ 237

Capítulo 16
A REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA À LUZ DO DIREITO
INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS: REFLEXOS DO
CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL
Antônio de Freitas Freire Júnior; Adson de Souza Queiroz;
Zairo José De Albuquerque e Silva.................................................................... 254

Capítulo 17
CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE NO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL: UMA ANÁLISE DA ADPF 153
Nael Neri de Souza Júnior................................................................................... 270
XVII
Capítulo 18
CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DAS
PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E SEUS IMPACTOS NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Thiago Fernando de Queiroz; Sônia Alves Bezerra Lins.............................. 288

Capítulo 19
TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO: UMA ANÁLISE
SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS BRASILEIRAS
Danielle Carvalho Rebouças; Liziane Paixão.................................................. 301

Capítulo 20
A PROTEÇÃO DOS REFUGIADOS NO BRASIL E A LEI DE
MIGRAÇÕES (LEI Nº 13.445/17)
Paulo Augusto Carlos Monteiro Filho; Rafael Aguiar Nogueira e Franco... 320

Capítulo 21
FAZENDA BRASIL VERDE VS. BRASIL - DOIS ANOS DA
SENTENÇA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS
Ana Paula França Rolim...................................................................................... 334

Capítulo 22
TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA E DEFENSORIA
PÚBLICA: ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA NO CEARÁ À LUZ
DE DIRETRIZES GLOBAIS
Mariana Urano de Carvalho Caldas; Sara Dias Pinheiro;
Theresa Rachel Couto Correia............................................................................. 347

Capítulo 23
REFUGIADOS BRASILEIROS NO EXTERIOR: BREVE ANÁLISE
JURÍDICA DA PROTEÇÃO AO SER HUMANO
Letícia Marques Souza; Monaliza Lima; Jonh Lenon Pereira da Silva.... 361

Capítulo 24
A GARANTIA DE ACESSO AO SUS PARA O RESIDENTE
FRONTEIRIÇO: AVANÇOS E DESAFIOS NO BRASIL COM
A NOVA LEI DE MIGRAÇÕES
Livia Maria de Sousa; Fabricia Helena Linhares Coelho Da Silva Pereira . 375

PARTE IV
OS DESAFIOS DO DIREITO INTERNACIONAL: OUTROS
TEMAS RELEVANTES........................................................................................ 389
XVIII
Capítulo 25
A ATUAÇÃO CHINESA NA AMÉRICA DO SUL: MECANISMOS
DE INSERÇÃO E PERSPECTIVAS FUTURAS
Arthur Gustavo Saboya de Queiroz.................................................................... 390

Capítulo 26
RUI BARBOSA E A DEFESA DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE
ENTRE OS ESTADOS NA CONFERÊNCIA DA PAZ DE 1907
Mayna Cavalcante Felix....................................................................................... 407

Capítulo 27
ANÁLISE CRÍTICA DO FUNDAMENTO HISTÓRICO
DOS DIREITOS HUMANOS: UM RESGATE DA PROPOSTA
JUSNATURALISTA
Daniel Silva Marques............................................................................................ 418

Capítulo 28
ANÁLISE DAS MEDIDAS DA OMC PARA O COMBATE
AO PROTECIONISMO NAS RELAÇÕES DE COMÉRCIO
INTERNACIONAL
Laís Maria Belchior Gondim............................................................................... 436

Capítulo 29
MISSÕES DE PAZ DA ONU: UMA ANÁLISE DOS DIFERENTES TIPOS
DE RELACIONAMENTOS INTERPESSOAIS ESTABELECIDOS ENTRE
OS PACIFICADORES E AS MULHERES DAS COMUNIDADES LOCAIS
Ingrid Forte Moura Rocha................................................................................... 446

Capítulo 30
A ATUAL CONDIÇÃO JURÍDICA DO REFUGIADO NA FRANÇA
Alaíde Linhares Carlos; Lara Campos Arriaga;
Theresa Rachel Couto Correia............................................................................. 459

XIX
PARTE I

OS INSTRUMENTOS DE
IMPLEMENTAÇÃO DOS OBJETIVOS
PARA O DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL
Capítulo 1
As Limitações do Direito Ambiental
Brasileiro: Uma Análise da Bancada
Ruralista e do Objetivo 17.14 da Agenda 2030
Lucas Saraiva de Alencar Sousa

INTRODUÇÃO

Se por um lado o governo brasileiro é favorável para cumprir as propos-


tas dos acordos ambientais internacionais, todavia, na esfera nacional, a ban-
cada ruralista assume uma conduta cada vez mais liberal. O grande problema
das questões ambientais ainda resulta do entrave entre a economia capitalista,
que tem como finalidade o lucro excessivo, e a utilização consciente dos recur-
sos naturais que é defendida pelos acordos ambientais internacionais.
Nesse artigo, tal problema é evidenciado por meio de uma análise da
bancada ruralista e do objetivo 17 da Agenda 2030, principalmente, a meta
14. Para isso, a bancada ruralista é estudada sob uma ótica sociológica e
política, para que seja destacada a sua influência nas políticas públicas bra-
sileiras, especificamente, as ambientais, influenciando o direito ambiental
brasileiro. Em paralelo, o Brasil, que é membro participante da Agenda
2030, deve alcançar os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Dentre elas, a meta 14, do objetivo 17, prega a Coerência Política para o
Desenvolvimento Sustentável (CPDS).
A partir dessa análise, esse artigo propõe mostrar a dificuldade de im-
plementar um direito ambiental efetivo no contexto brasileiro, uma vez que
a política internacional brasileira não demonstra a mesma força da nacional.
Portanto, a conscientização ambiental ainda não permeia, totalmente, o direi-
to ambiental brasileiro.

2. DESENVOLVIMENTO
A principal preocupação dos acordos internacionais relacionados ao
meio ambiente é a implementação do desenvolvimento sustentável, uma vez
que o desenvolvimento econômico tradicional está ligado à lógica capitalista,
possuindo uma visão ultrapassada da utilização dos recursos naturais. Por ou-
tro lado, o desenvolvimento sustentável prega o desenvolvimento econômico
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 3
sem a degradação ambiental, para que os recursos naturais que são esgotáveis
não comprometam as necessidades das gerações futuras1.
Nessa perspectiva, a bancada ruralista, que é a favor da expansão do agro-
negócio, ainda revela resquícios do capitalismo tradicional, principalmente,
quanto à visão ultrapassada dos recursos naturais como apenas matéria prima.
Sob a ótica da sociologia, tais resquícios podem ser explicados por meio da
nova roupagem dos interesses lucrativos2. Dessa maneira, o lucro continua
sendo o principal objetivo dos donos do agronegócio que pressionam a esfera
pública, para que seus objetivos sejam realizados.
Para explicar a origem das políticas públicas que beneficiam, proposital-
mente, a esfera privada, Raymundo Faoro desenvolve o patrimonialismo, mas
Jessé Souza entende que o conceito de patrimonialismo não é suficiente3. De
maneira breve, o patrimonialismo é fruto da sociedade estamental portuguesa
que a estrutura social brasileira herdou, assim, os interesses de quem ocupa o
cargo público se confunde com os próprios interesses privados, utilizando o
poder estatal para se beneficiar4.
Numa análise ainda mais crítica, esse mesmo autor afirma que o patrimo-
nialismo não só não evidencia o verdadeiro mecanismo de controle do estado,
mas também ocupa o lugar da escravidão, servindo como um alvo fajuto
para o ataque da sociedade5. Em verdade, as raízes da sociedade brasileira são
originadas na escravidão, que não existe de maneira significativa em Portugal,
deixando seus resquícios nas relações sociais. Jessé Souza aprofunda a sua crí-
tica ao patrimonialismo:

Mas isso ainda não é o pior. O patrimonialismo esconde as reais bases do


poder social entre nós. Ele assume que o interesse privado é interesse indi-
vidual privado, de pessoas concretas, as quais se contraporiam aos interesses
organizados do Estado. Tudo como se houvesse interesses organizados apenas
no Estado, suprema estratégia de distorção da realidade. Uma noção de senso
comum do leigo não percebe os interesses privados organizados no mercado e
a sua força, ou seja, que não percebe, em suma, como o capitalismo funciona.
Daí decorre a noção absurda, mas tida como verdade acima de qualquer sus-
peita entre nós: a noção que a elite poderosa está no Estado, com isso invisibi-

1
MENDES, Luís Marcelo.; TYBUSCH, Jerônimo Siqueira. Desenvolvimento econômico versus susten-
tabilidade: um prognóstico sobre o protagonismo do direito tradicional na materialização do equilíbrio
intergeracional. In: CONGRESSO DO CONSELHO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUA-
ÇÃO EM DIREITO, 25., 2016, Curitiba. Direito e sustentabilidade III: cidadania e desenvolvimento
sustentável: o papel dos atores sociais no Estado Democrático de Direito. Florianópolis: CONPEDI,
2016, p. 223- 243. Disponível em: <>. Acesso em: 25 jan. 2018.
2
SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. 1. ed. Rio de Janeiro: Leya, 2017, p. 19- 24.
3
SOUZA, Jessé. op. cit., p. 191- 199.
4
SOUZA, Jessé. op. cit., p. 200- 206.
5
SOUZA, Jessé. op. cit., p. 202.
4 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

lizando a ação da elite real, que está no mercado, tanto nos oligopólios quanto
na intermediação financeira6.

Frente esse entendimento, esse autor conclui que, em verdade, existe uma
elite de empresas encrustadas no estado, permeando as decisões a partir dos
seus interesses comuns, colaborando entre si para alcançarem suas finalidades.
Além disso, numa perspectiva política, a bancada ruralista é um grupo
de interesse e, quando necessário, manifesta-se como um grupo de pressão, ou
seja, quando um grupo de interesse pressiona o congresso para que aprove ou
rejeite determinados projetos7. A ação dos grupos de pressão é lecionada por
Paulo Bonavides:

Os grupos querem a ‘decisão favorável’, não trepidam em empregar os meios


mais variados para alcançar esse fim. Aperfeiçoaram uma técnica de ação que
compreende desde a simples persuasão até a corrupção e, se necessário, a inti-
mação. O trabalho dos grupos tanto se faz de maneira direta e ostensiva como
indireta e oculta. A pressão deles recai principalmente sobre a opinião pública,
os partidos, os órgãos legislativos, o governo e a imprensa8.

Tais grupos de pressão buscam legitimar as suas condutas por meio da


opinião pública, utilizando os meios de comunicação em massa9. Dessa ma-
neira, a maioria dos indivíduos adotam uma opinião já formada e o acesso
ao argumento contrário é dificultado. Assim, a conduta de uma sociedade
é influenciada, principalmente, a parcela social mais marginalizada que não
possui capital para refinar o seu entendimento, reproduzindo a opinião das
empresas que controlam os meios de comunicação em massa10.
Portanto, a bancada ruralista é um alicerce do empresariado agropecuário
no governo brasileiro, pressionando o congresso para alcançar os seus obje-
tivos e se associam às empresas que controlam os meios de comunicação em
massa para legitimar o seu interesse. O fato empírico dessa análise é a aprova-
ção do novo Código Florestal.
O Código Florestal de 1965 estabeleceu as áreas de preservação perma-
nente (APPs) e as áres de reservas legais (RLs) como os principais instrumentos
para a proteção da vegetação nativa11. Enquanto que as APPs objetivavam a
6
SOUZA, Jessé. op. cit., p. 208.
7
PENA, G. T. A. Grupos de pressão. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 80, set 2010. Dispo-
nível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_
id=8352>. Acesso em: 25 jan. 2018.
8
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p 432.
9
SOUZA, Jessé. op. cit., p. 214- 220.
10
SOUZA, Jessé. op. cit., p.214- 220.
11
MARQUES, H. R.; SAMBUICHI, R. H. R.; SILVA, A. P. M. (Org.). Mudanças no código florestal
brasileiro: desafios para a implementação da nova lei. 1. ed. Rio de Janeiro: Ipea, 2016, p. 12.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 5
proteção de áreas sensíveis, possuindo uma grande restrição para o seu acesso,
as RLs são áreas dentro da propriedade privada de dimensão variável que per-
mitem a exploração da vegetação somente por meio de práticas sustentáveis12.
A nova Lei Florestal (Lei nº 12.651/2012), de maneira resumida, promove
alterações métricas dos principais instrumentos da lei anterior13. A diminui-
ção dessas medidas reflete uma preocupação dos proprietários rurais quanto
à legalidade de suas terras, uma vez que devido ao pouco monitoramento e à
baixa ocorrência de multas, o desmatamento havia aumentado14.
No início do século XX, o governo brasileiro enrijeceu a fiscalização na
Amazônia Legal devido à pressão internacional que criticava o desmatamento.
Para isso, as métricas de proteção se tornaram mais rígidas por meio da MP nº
2.166-67/2001 e a regulamentação da Lei de Crimes Ambientais por meio do
decreto nº 6.514, de 22 de Julho de 2008. Tais mudanças geraram preocupação
para os proprietários rurais, pois as possibilidades de multas e de penalidades
aumentaram. Por isso, a bancada ruralista pressionou o congresso para a apro-
vação do novo Código Florestal15.
Diante disso, o agronegócio é um grupo de interesse que se torna um
grupo de pressão para permanecer com os seus privilégios, associando-se com
outras grandes empresas para mente acordos bilaterais e a sua legitimidade. A
pressão da comunidade ambiental internacional conseguiu reter o desmata-
mento da Amazônia, todavia ficou claro que quem desmatou ficou impune
evidenciado por Silva, Marques e Sambuichi:

Na prática, a aprovação da nova lei implicou na anistia das multas e sanções


decorrentes de desmatamentos iligais realizados antes da promulgação da Lei
de Crimes Ambientais e na insenção, principalmente para os pequenos pro-
prietários da obrigatoriedade de recuperar as áreas desmatadas16.

Em paralelo, o governo brasileiro se comprometeu em cumprir os ob-


jetivos da Agenda 2030, que se destaca por sua ambição e pela profundidade
de suas metas em comparação com as propostas anteriores. A Rio 92 reuniu
mais de 100 chefes de Estado na cidade do Rio de Janeiro, firmando por meio
da Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente o reconhecimento do desen-
volvimento sustentável com foco nos seres humanos e na proteção do meio

12
MARQUES, H. R.; SAMBUICHI, R. H. R.; SILVA, A. P. M. (Org.). op. cit., p. 12.
13
MARQUES, H. R.; SAMBUICHI, R. H. R.; SILVA, A. P. M. (Org.). op. cit., p.11- 19.
14
LOZARDO, Ernesto. Apresentação. In: MARQUES, H. R.; SAMBUICHI, R. H. R.; SILVA, A. P. M.
(Org.). Mudanças no código florestal brasileiro: desafios para a implementação da nova lei. 1. ed. Rio
de Janeiro: Ipea, 2016, p. 9.
15
MARQUES, H. R.; SAMBUICHI, R. H. R.; SILVA, A. P. M. (Org.). op. cit., p. 11- 13.
16
MARQUES, H. R.; SAMBUICHI, R. H. R.; SILVA, A. P. M. (Org.). op. cit., p. 13.
6 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

ambiente17. Para isso, os países participantes adotaram a Agenda 21, que é a


primeira carta com intenções globais de promover um novo padrão de desen-
volvimento no século XXI18.
A Rio+20, após 20 anos da Rio 92, 193 delegações e representantes da
sociedade civil voltaram para o Rio de Janeiro, objetivando avaliar o progres-
so obtido e as lacunas que surgiram diante do novo contexto mundial. Essa
conferência focou no combate a pobreza como um alicerce para a implemen-
tação e a efetivação do desenvolvimento sustentável. Ao final do evento, a
formulação de metas foi entendida como necessárias para que os objetivos
fossem alcançados, de maneira efetiva, por meio do documento “O Futuro
que Queremos”:

Reconhecemos que a formulação de metas poderia ser útil para o lançamento


de uma ação coerente e focada no desenvolvimento sustentável. Reconhece-
mos ainda a importância e a utilidade de definir um conjunto de metas de de-
senvolvimento sustentável, fundamentado na Agenda 21 e no Plano de Imple-
mentação de Johanesburgo, que respeitem plenamente todos os princípios do
Rio, tendo em conta as diferentes circunstâncias, capacidades e prioridades de
cada país [...] Esses objetivos devem abordar e incorporar de forma equilibrada
todas as três dimensões do desenvolvimento sustentável e suas inter-relações.
Eles devem ser coerentes e integrados na Agenda de Desenvolvimento das
Nações Unidas para além de 2015, contribuindo assim para a realização do
desenvolvimento sustentável e servindo como um guia para a implementação
e integração do desenvolvimento sustentável no sistema das Nações Unidas
como um todo19.

Esse documento serviu como base para as ações da comunidade inter-


nacional nos três anos seguintes, iniciando um processo de consulta global
para a estruturação de metas universais de desenvolvimento sustentável para
o pós-2015. Além disso, o prazo para a implementação dos Objetivos de De-
senvolvimento do Milênio (ODM), que impulsionou os Estados-membros da
ONU, em 2000, a enfrentarem os principais desafios sociais do século XXI,
também terminava em 201520.

17
PLATAFORMA AGENDA 2030. A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Disponível
em: <http://www.agenda2030.com.br/sobre/>. Acesso em 25 jan. 2017.
18
PLATAFORMA AGENDA 2030. A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Disponível
em: <http://www.agenda2030.com.br/sobre/>. Acesso em 25 jan. 2017.
19
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração final da Conferência das Nações Unidas
sobre o Desenvolvimento Sustentável: O Futuro que Queremos. Rio de Janeiro, 2012, p. 48. Tra-
dução de: Júlia Crochemore Restrepo. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/port/conama/proces-
sos/61AA3835/O-Futuro-que-queremos1.pdf >. Acesso em: 25 jan. 2018.
20
PLATAFORMA AGENDA 2030. A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Disponível
em: <http://www.agenda2030.com.br/sobre/>. Acesso em 25 jan. 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 7
O primeiro relatório dedicado à futura agenda foi o “Uma Vida Digna
para Todos”21, que afirmava o início de uma nova era, a pós-2015, exigindo
uma nova visão e uma estrutura responsiva. Dessa maneira, o documento
“Transformando o Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento
Sustentável” adotado na Assembleia Geral da ONU em 2015, destaca-se em
relação aos acordos anteriores, por que contou com o envolvimento de 70
países e das mais diversas partes interessadas por meio do Grupo de Trabalho
Aberto para a Elaboração dos ODS (GTA-ODS)22.
A partir desse entendimento, a Agenda 2030 é um plano de ação compos-
to por 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e suas 169 metas
que devem ser alcançadas até o ano de 2030. Para António Guterres “a Agenda
2030 é a nossa declaração global de interdependência”23. Convém lembrar que
essa agenda não requer sua ratificação pelos parlamentos de cada país, mas
se recomenda que cada um, em âmbito nacional e subnacional, realizem um
diagnóstico geral e um acompanhamento, para que os meios de implementa-
ção das ODS sejam revisados24.
Portanto, a Agenda 2030 é fruto de um trabalho coletivo entre os gover-
nos e os cidadãos de todo o mundo. Além disso, a sua implementação deve ser
realizada não só no âmbito nacional e subnacional, mas também por meio do
trabalho conjunto global, pois os países participantes se comprometeram em
“[...] não deixar ninguém para trás”25. Finalmente, essa nova agenda é a elabo-
ração de um novo modelo global ambicioso e audaz, almejando à erradicação
da pobreza e ao desenvolvimento econômico, social e ambiental até 203026.

21
UNITED NATIONS. A Life of Dignity for All: accelerating progress towards the Millennium Devel-
opment Goals and advancing the United Nations development agenda beyond 2015. Paris, 2013, p. 1.
Disponível em: <http://www.un.org/millenniumgoals/pdf/A%20Life%20of%20Dignity%20for%20All.
pdf>. Acesso em 25 jan. 2018.
22
PLATAFORMA AGENDA 2030. A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Disponível
em: <http://www.agenda2030.com.br/sobre/>. Acesso em 25 jan. 2017.
23
GUTERRES, Antonio apud PLATAFORMA AGENDA 2030. A Agenda 2030 para o Desenvolvimen-
to Sustentável. Disponível em: <http://www.agenda2030.com.br/sobre/>. Acesso em 26 jan. 2017.
24
AGUIAR, Marcela Nunes. Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável e coerência em políticas:
recomendações da OCDE na edição 2016 de Better Policies for Sustainable Development. Material
didático-instrucional complementar para vídeo-aulas. In: RIO DE JANEIRO. Superintendência de do-
cumentação. Repositório institucional UFF. Fluminense: RIUFF, 2017, p 3. Disponível em: <http://
www.repositorio.uff.br/jspui/handle/1/2853>. Acesso em: 26 jan. 2018.
25
UNITED NATIONS. Transforming our world: the 2030 Agenda for Sustainable Development. 2015,
p. 1. Disponível em: <http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/70/1&Lang=E>.
Acesso em: 26 jan. 2018.
26
CAMÕES INSTITUTO DA COOPERAÇÃO E DA LÍNGUA. Agenda 2030: Objetivos de Desen-
volvimento Sustentável. Disponível em: <http://www.instituto-camoes.pt/activity/o-que-fazemos/
cooperacao/cooperacao-portuguesa/mandato/ajuda-ao-desenvolvimento/agenda-2030>. Acesso em:
26 jan. 2018.
8 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

A Coerência Política para o Desenvolvimento Sustentável (CPDS) tam-


bém é uma abordagem estruturada pela Organização de Cooperação e de De-
senvolvimento Econômico (OCDE) para a era pós-2015, propondo ser uma
melhor ferramenta de implementação do que a Coerência Política para o De-
senvolvimento (CPD), que foi utilizada até 2015. Nessa perspectiva, enquanto
que a CPD analisa as políticas sem as prescrever, a CPDS indica como imple-
mentar por meio da lógica nacional e internacional27. Para Angel Gurría28 a
CPDS é a ferramenta para a realização concreta das propostas da Agenda 2030,
sendo essencial para a vida de todos.
Dessa forma, a CPDS deve envolver todas as partes interessadas, reunindo
diferentes perspectivas de todos os setores sociais. Em Fevereiro e Março de
2015, o Ministro de Negócios Estrangeiros da Suécia, por exemplo, organizou
uma consulta de processo da Agenda 2030, envolvendo, aproximadamente,
130 organizações civis, bem como empresas e acadêmicos29. Assim, o compar-
tilhamento de opiniões promoveu um amplo apoio para a implementação da
Agenda 2030 na Suécia. Na Finlândia, o Primeiro Ministro, entre Fevereiro e
Março de 2016, elaborou uma pesquisa para descobrir quais instrumentos po-
líticos poderiam colaborar com a implementação das ODS e quais poderiam
ser criados30, permitindo o governo saber qual era a sua área de ação.
Os estudos sobre os instrumentos políticos são essenciais para a CPDS,
logo para a implementação dos ODS, pois estes precisam ser alcançados sem
que um objetivo seja sacrificado em detrimento do outro, ou seja, a proposta
de ter coerência política. Por exemplo, uma lei que permita a expansão das
terras agricultáveis, visando acabar com a fome, pode resultar na perda de bio-
diversidade do local, em outras palavras, não pode acontecer de uma lei que
alcançar a ODS 2, mas comprometer a meta 5 da ODS 15.
Enquanto isso, Henrique Villa, secretário nacional de Articulação Social
de Governo da Presidência da República, entende que o Brasil avançou na
implementação da Agenda 2030:

O Brasil avançou de forma preponderante na montagem de uma estrutura


de governança que fosse capaz de estabelecer um apoio inicial à caminhada
do país até 2030. A chamada Agenda 2030 Brasil se consolidou em 2017 não
só com a instalação da Comissão Nacional dos Objetivos de Desenvolvimen-
to Sustentável, instância de governança máxima da Agenda brasileira, mas

27
AGUIAR, Marcela Nunes. op. cit., p. 3.
28
GURRÍA, Angel. Foreword. In: ORGANIZATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND
DEVELOPMENT. Better policies for Sustainable Development 2016: a new framework for
Policy Coherence. Paris: OECD Publishing, 2016, p. 3. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1787/
9789264256996-en>. Acesso em: 26 jan. 2018.
29
AGUIAR, Marcela Nunes, op. cit., p. 3.
30
AGUIAR, Marcela Nunes, op. cit., p. 3.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 9
também com a elaboração do Plano de Ação da Comissão para o período
2017-201931

Em verdade, o Brasil não avançou, de maneira significativa, no processo de


implementação da Agenda 2030 e nos estudos dos instrumentos políticos32, sendo
este o elo para o crecimento sinérgico entre os ODS. Ainda que o Brasil vivencie
um contexto de instabilidade política, Maitê Gauto, coordenadora de políticas pú-
blicas da Fundação Abrinq, ressalta o sentido da Comissão Nacional para a ODS:

É papel da Comissão Nacional para os ODS fomentar a construção de um


ambiente político favorável à implementação da Agenda 2030. Para isso, é
essencial exercer o seu papel indutor da implementação tanto em nível nacio-
nal como subnacional, por meio de políticas e incentivos que mobilizem os
gestores públicos das diferentes esferas, assim como o setor privado e a socie-
dade civil, a perceberem os ODS como reflexo dos nossos desafios nacionais
e também como uma oportunidade única de avançarmos na superação das
desigualdades estruturais que temos no país33.

Diante disso, os estudos brasileiros que envolvem a CPDS são mínimos.


Essa política nacional fraca reflete nos formuladores de decisão política, pro-
pondo e editando leis que deixam lacunas. Desse modo, os grupos de interesse
que permeiam o Congresso permanecem com seus privilégios, principalmente,
aqueles que vivenciam um grande crescimento econômico enquanto que o
país enfrenta um a recessão, como é o caso do agronegócio que é representado
pela bancada ruralista.
No terceiro trimestre de 2017, o IBGE divulgou dados estatísticos do PIB
brasileiro. Enquanto que o crescimento acumulado no ano da indústria e de
serviços foram negativos, obtendo, respectivamente, -0,9% e -0,2%, o da agro-
pecuária foi positivo e de 14,5%34. O PIB do agronegócio participa, reunindo
as atividades primárias, as de distribuição e as de transformação, com 23% a

31
VILLA, Henrique apud PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. O
Brasil avança na implementação da Agenda 2030. PNUD Brasil, 5 Jan. 2018 . Disponível em: <http://
www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/presscenter/articles/2018/01/05/brasil-avan-a-na-implementa
-o-da-agenda-2030.html>. Acesso em: 26 jan. 2018.
32
PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. Portifólio dos projetos
PNUD Brasil à luz dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: <http://www.
br.undp.org/content/brazil/pt/home/library/ods/portfolio-dos-projetos-do-pnud-brasil-a-luz-dos-objeti-
vos-de-des.html>. Acesso em: 26 jan. 2018.
33
GAUTO, Maitê apud PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. O
Brasil avança na implementação da Agenda 2030. PNUD, 5 jan. 2018. Disponível em: <http://www.
br.undp.org/content/brazil/pt/home/presscenter/articles/2018/01/05/brasil-avan-a-na-implementa-o-da
-agenda-2030.html>. Acesso em: 26 jan. 2018.
34
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA apud MINISTÉRIO DA AGRICUL-
TURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO. Agropecuária puxa PIB de 2017. Mapa, 4 dez. 2017.
10 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

24% do PIB brasileiro35. Tal crescimento é utilizado como uma ferramenta


para pressionar o com políticas e leis que reforcem esse setor.
A partir desse entendimento, O Banco do Brasil anunciou o destinação de
103 bilhoes de reais para o financiamento do Plano Safra 2017/201836. Dessa
quantia, 91,5 bilhões são créditos rurais aos produtores e às cooperativas37. Além
dos recursos disponibilizados, o banco aplicou uma redução no juros. Com isso,
o teto máximo de juros caiu de 9,5% ao ano para 8,5% ao ano38. Paulo Caffarelli,
presidente do Banco do Brasil, afirmou que “o agronegócio foi determinante
para a melhoria de vários indicadores econômicos, entre eles a inflação”39. Por
fim, ele conclui que “esse quadro do setor é fruto da combinação de crédito e tec-
nologia mas, acima de tudo, pela eficiência dos produtores rurais brasileiros”40
Ainda nessa perspectiva, o relatório “Perspectivas Agrárias 2017–2026”
realizada pela a OCDE e a FAO mostrou que o Brasil vai ultrapassar os Estado
Unidos como o maior produtor de soja na próxima década, sendo esperado
que a produção desse grão cresça 2,6% por ano41. Além disso, Alan Bojanic,
representante da FAO Brasil, preocupa-se com a percepção nacional e interna-
cional que se tem do agronegócio brasileiro, afirmando que “O agronegócio já
desenvolve muitas iniciativas sustentáveis, mas isso precisa ser melhor divulga-
do para a sociedade, assim como os planos que se tem, como o Plano ABC”42.

Disponível em: <http://www.agricultura.gov.br/noticias/agropecuaria-puxa-o-pib-de-2017>. Acesso


em: 28 jan. 2018.
35
MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO. Agropecuária puxa PIB
de 2017. Mapa, 4 dez. 2017. Disponível em: <http://www.agricultura.gov.br/noticias/agropecuaria-pu-
xa-o-pib-de-2017>. Acesso em: 28 jan. 2018.
36
BRASIL. BB anuncia R$ 103 bilhões para a safra de 2017 e 2018. Governo do Brasil, 11 set. 2017.
Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2017/07/bb-anuncia-r-103-bilhoes-pa-
ra-safra-de-2017-e-2018>. Acesso em: 28 jan. 2018.
37
BRASIL. BB anuncia R$ 103 bilhões para a safra de 2017 e 2018. Governo do Brasil, 11 set. 2017.
Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2017/07/bb-anuncia-r-103-bilhoes-pa-
ra-safra-de-2017-e-2018>. Acesso em: 28 jan. 2018.
38
BRASIL. BB anuncia R$ 103 bilhões para a safra de 2017 e 2018. Governo do Brasil, 11 set. 2017.
Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2017/07/bb-anuncia-r-103-bilhoes-pa-
ra-safra-de-2017-e-2018>. Acesso em: 28 jan. 2018.
39
CAFFARELLI, Paulo apud BRASIL. BB anuncia R$ 103 bilhões para a safra de 2017 e 2018. Go-
verno do Brasil, 11 set. 2017. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2017/07/
bb-anuncia-r-103-bilhoes-para-safra-de-2017-e-2018>. Acesso em: 28 jan. 2018.
40
CAFFARELLI, Paulo apud BRASIL. BB anuncia R$ 103 bilhões para a safra de 2017 e 2018. Go-
verno do Brasil, 11 set. 2017. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2017/07/
bb-anuncia-r-103-bilhoes-para-safra-de-2017-e-2018>. Acesso em: 28 jan. 2018.
41
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ALIMENTAÇÃO E AGRICULTURA. Seto-
res produtivos do agronegócio debatem inovação para a sustentabilidade socioeconômica am-
biental. FAO Brasil, 6 set. 2017. Disponível em: <http://www.fao.org/brasil/noticias/detail-events/
pt/c/1035189/>. Acesso em: 27 jan. 2018.
42
BOJANIC, Alan apud ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ALIMENTAÇÃO E
AGRICULTURA. Setores produtivos do agronegócio debatem inovação para a sustentabilidade
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 11
Durante a 15º Conferência das Partes (COP-15), o governo brasileiro se
comprometeu, até 2020, reduzir entre 36,1% e 38,9% das emissões de gases de
efeito estufa. Para tanto, foi necessário identificar as suas ações, como reduzir a
taxa de desmatamento em 80% na Amazônia e em 40% no cerrado, ampliar a
eficiência energética e “adotar intensivamente na agricultura a recuperação de
pastagem atualmente degradadas; promover ativamente a integração lavoura-
-pecuária (iLP); ampliar o uso do sistema de plantio direto (SPD) e da fixação
biológica de nitrogênio”43.
Tais compromissos foram ratificados no artigo nº 12 da Lei nº 12.187, de
29 de Dezembro de 2009, que institui a Política Nacional sobre as Mudanças
Climáticas (PNMC) e, em 9 de Dezembro de 2010, o decreto nº 7.390 os re-
gulamentou. Para o setor da agricultura, entre 2010 e 2011, os compromissos
originais firmados na COP-15 foram detalhados e modificados, adaptando-os
à realidade brasileira. A partir dessa estruturação, o Plano de Agricultura de
Baixa Emissão de Carbono (Plano ABC) foi elaborado.
Em resumo, o Plano ABC é um instrumento de implementação dos ob-
jetivos propostos da COP-15 adaptados à realidade nacional, sendo uma estra-
tégia de desenvolvimento sustentável para o setor agropecuário até 2020. Por
outro lado, esse plano ainda possui uma adesão muito baixa, possuindo como
obstáculo o investimento nele, pois esse plano recebe o equivalente à 2% do
total investido na safra44. Além disso, a pouca divulgação e, principalmente, a
falta de interesse do plano colaboram para o aprofundamento das suas lacunas
destacado por Reis, Bontolotto, Braga e Lopes:

Outro fator que dificulta a implementação do ABC é o aspecto cultural de


aversão ao risco por parte do setor agropecuário. O produtor, em geral, não
tem inclinação a investir na recuperação de pastos ou na adoção de sistemas
produtivos eficientes por não vislumbrar o potencial impacto na produtivi-
dade final. Isso facilita a manutenção dos sistemas produtivos tradicionais de
reduzida qualidade ambiental (MMA, 2016b). Esse fator tem relevância baixa
para a consecução das metas, pois, frente aos argumentos e demonstrações ne-
cessárias, o produtor frequentemente muda seu modo de pensar. Apesar disso,

socioeconômica ambiental. FAO Brasil, 6 set. 2017. Disponível em: <http://www.fao.org/brasil/noti-


cias/detail-events/pt/c/1035189/>. Acesso em: 27 jan. 2018.
43
MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO. Plano Setorial de Miti-
gação e Adaptação às Mudanças Climáticas para a Consolidação de uma Agricultura de Baixa
Emissão de Carbono: Plano ABC (Agricultura de Baixa Emissão de Carbono). Brasília: MAPA/ACS,
2012, p. 19. Disponível em: <http://www.agricultura.gov.br/assuntos/sustentabilidade/plano-abc/arqui-
vo-publicacoes-plano-abc/download.pdf>. Acesso em: 29 jan. 2018.
44
SILVA, Ana Paula Moreira da. et al. Desafios e oportunidades para avançar as Contribuições Na-
cionais no setor agropecuário e de florestas na América Latina: O caso do Brasil. Disponível em:
<http://ipam.org.br/bibliotecas/desafios-e-oportunidades-para-avancar-as-contribuicoes-nacionais-o-
caso-do-brasil/ >. Acesso em: 29 jan. 2018.
12 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

é fundamental esclarecer ao produtor a importância de contabilizar em seu


planejamento produtivo os custos ambientais e potenciais prejuízos futuros
decorrentes de más práticas45.

Quanto à divulgação de dados e avanços esses mesmos autores discorrem:

Os resultados sobre o impacto ambiental desse plano tampouco são de conhe-


cimento público até o momento. Dessa forma, embora o ABC apresente am-
plo potencial para incentivar a conservação ambiental em áreas agricultáveis
e tenha um grande potencial para reduzir a emissão brasileira de GEE, a me-
dição prática da mitigação (MRV) promovida pelo Plano ainda não ocorreu.
Nesse sentido, não se sabe quanto em emissões o Plano foi capaz de reduzir
ou evitar até então46.

Dessa forma, em 2017, a Embrapa instituiu a Plataforma Multi-institu-


cional de Monitoramento das Reduções de Gases de Efeito Estufa na Agricul-
tura (PlatABC), para que seja monitorada as ações previstas e a execução do
Plano ABC. Em contrapartida, esse lançamento ainda depende da confirma-
ção do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento47. Angelo Gurgel,
coordenador do Observatório ABC, pondera sobre o atual contexto brasileiro:

Apesar de todas as dificuldades que o Brasil vem enfrentando, como a falta de


recursos públicos para tocar a agenda política, o Plano ABC tem conseguido
disseminar junto à sociedade a importância da agricultura de baixo carbono.
Alguns exemplos disso em 2017, além do decreto de instituição da Plataforma
de Monitoramento, foram as discussões na Conferência do Clima (COP-23)
sobre o tema, os grupos de trabalho de ABC na Coalização Brasil Clima, Flo-
restas e Agricultura e no Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, a iniciati-
va da Rede de Fomento em Integração Lavoura-Pecuária-Floresta, que demons-
tram, inclusive, o apoio do setor privado à agricultura de baixo carbono48.

Angelo se mostra muito esperançoso quanto à implementação dessa pla-


taforma, mas o histórico da agropecuária não fundamenta tanta confiança.
Assim, mesmo que o Brasil possua leis bem estruturadas, surge um obstáculo,
uma força contrária a sua implementação, querendo tardar o máximo possível

45
BORTOLOTTO, F.; BRAGA, L.; LOPES, G. R.; REIS, Tiago. op. cit., p. 15.
46
BORTOLOTTO, F.; BRAGA, L.; LOPES, G. R.; REIS, Tiago. op. cit., p. 16.
47
OBSERVATÓRIO ABC. Monitoramento é desafio da agricultura de baixo carbono em 2018. Ob-
servatório ABC, 28 dez. 2017. Disponível em: <http://observatorioabc.com.br/2017/12/monitoramento
-e-desafio-da-agricultura-de-baixo-carbono-em-2018/>. Acesso em: 29 jan. 2018.
48
GURGEL, Angelo apud OBSERVATÓRIO ABC. Monitoramento é desafio da agricultura de bai-
xo carbono em 2018. Observatório ABC, 28 dez. 2017. Disponível em: <http://observatorioabc.
com.br/2017/12/monitoramento-e-desafio-da-agricultura-de-baixo-carbono-em-2018/>. Acesso em:
29 jan. 2018.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 13
as mudanças que vão de encontro aos seus interesses. Por fim, os meios de
propagação de informação meios de propagação de informações mostram,
premeditadamente, para a nação brasileira os grandes avanços econômicos da
agropecuária, mas é importante frisar as consequências que um crescimento
sem limitações pode trazer.

CONCLUSÃO

De fato, a conduta brasileira para aceitar os acordos ambientais interna-


cionais não se revela tão eficiente quanto à conduta nacional para a imple-
mentação desses compromissos. Sob essa ótica, os compromissos ambientais
brasileiros engrenam na esfera nacional, principalmente, quando as propostas
envolvem os interesses agropecuários, pois esse setor econômico, claramente,
possui poder e influência política.
Quanto à origem desse poder, ele pode ser evidenciado pelo grande cres-
cimento econômico, associando-se à outras grandes empresas visando o lu-
cro, especialmente, às empresas que controlam os meios de comunicação em
massa. Nessa perspectiva, o crescimento do agronegócio é divulgado como,
totalmente, benéfico e de grande importância para o PIB brasileiro, mas essas
mídias evitam comentar os custos e danos ambientais resultantes desse pro-
cesso. Em paralelo, a sua influência política é explicada por meio da bancada
ruralista, sendo um grupo de interesse que pressiona o Congresso com argu-
mentos estatísticos para manter o privilégio de quem representa.
Dessa forma, este artigo tem como principal objetivo destacar que esse
poder e influência política do agronegócio retardam a implementação das leis
ambientais brasileiras e a CPDS, pois estas medidas limitam o crescimento
desenfreado e sem consciência do setor agrícola e pecuário. Tais crítica ao
agronegócio brasileiro são fundamentadas no seu histórico, uma vez que o
novo Código Florestal deu anistia aos principais envolvidos com a desmatação
da vegetação nativa, como também a dificuldade de efetivar as leis que regulem
o seu crescimento.
Diante disso, planos e propostas que visem implementar o desenvolvi-
mento sustentável na agricultura são dificultados, revelando que ainda falta
um efetivo estudo do governo brasileiro para alcançar a CPDS. A dificuldade
de implementação do Plano ABC e de outros semelhantes é o desinteresse e
a aversão pela maior parte dos proprietários rurais. Dessa maneira, para uma
efetiva CPDS é necessário admitir que o agronegócio ainda não tem plena
consciência da importância do desenvolvimento sustentável.
Portanto, assim como a Agenda 2030 prevê a sociedade civil e os gover-
nos subnacionais não devem depender dos planos nacionais para implementar
os ODS. Além disso, a conscientização dos indivíduos sobre o atual contexto
14 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

ambiental político brasileiro e da importância do desenvolvimento susten-


tável são vitais para forjar um elo entre os setores interessados da sociedade,
objetivando vencer uma corrida contra o tempo para manter a estabilidade
ambiental do planeta.

REFERÊNCIAS

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avança na implementação da Agenda 2030. PNUD Brasil, 5 Jan. 2018 . Disponível em: <http://www.br.undp.
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Capítulo 2
Chernobyl Amazônica:
O que o Polêmico Caso pode Ensinar Sobre a
Relação entre Arbitragem e Sustentabilidade?
Rafaelly Oliveira Freire dos Santos
Carlos Alfredo de Paiva John

1. INTRODUÇÃO

Há tempos a arbitragem vem sendo utilizada pelas sociedades modernas


como forma alternativa na solução de litígios, notadamente, por aqueles que
vislumbram nela mais vantagens quando comparada à jurisdição comum. Es-
tes observam no Poder Judiciário uma barreira procrastinadora e não uma ma-
neira de resolver suas disputas. A arbitragem, por sua vez, parece-lhes fornecer,
dentre outras benesses, a celeridade almejada.
No entanto, indaga-se: sendo pacífico na doutrina que a arbitragem
apresenta vantagens significativas para particulares, será que o pode fazer
também para uma coletividade? Neste sentido, a presente construção teó-
rica busca compreender se a arbitragem possui algum papel no desenvol-
vimento sustentável.
Para fins do disposto no presente escrito, considera-se desenvolvimento
sustentável, aquele consonante com o disposto no art. 170 da Constituição Fe-
deral de 1988. Demonstrando uma efetiva preocupação com a defesa do meio
ambiente, tal dispositivo constitucional impõe ao desenvolvimento econômi-
co um cuidado maior com o meio ecológico, e uma exploração econômica em
harmonia com a preservação ambiental. Assim, na linha apresentada por Edis
Milaré, para alcançar o desenvolvimento sustentável se faz necessário levar em
consideração a variável ambiental em qualquer ação, sempre que esta possa
trazer alguma consequência para o meio ambiente.1
Superada a conjuntura dogmática, o primeiro problema encontrado na
delimitação do possível papel da arbitragem no desenvolvimento sustentá-
vel está no conteúdo do artigo 1º da Lei 9.307 de setembro de 1996 (Lei de
1
MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2005. p.161.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 17
Arbitragem). Se a Lei de Arbitragem impossibilita arbitragens relativas a direi-
2

tos patrimoniais indisponíveis, tais como o direito ao meio ambiente saudá-


vel, de que modo haveria de se falar em uma possível relação entre o instituto
e o desenvolvimento sustentável?
Os conflitos ambientais podem se manifestar das mais diversas formas,
ocasionando irreparáveis danos aos ecossistemas, os quais atingem não apenas
particulares, mas, sobretudo a coletividade que depende daqueles recursos na-
turais danificados. É o que ocorre com os danos ocasionados pelo vazamento
de plataformas petrolíferas, “off-shore” que, comumente, geram uma cadeia de
contaminação sucessiva, atingindo um vasto volume de água marinha, trans-
mitindo agentes tóxicos para os animais aquáticos, que por sua vez contami-
nam o indivíduo que deles se alimenta.
Nesse vestígio, vislumbra-se que o meio ambiente se encontra em um
universo de possíveis conflitos de difícil mensuração, alcançando diversos
direitos, desde o direito econômico de exercer a atividade petrolífera, até o
direito humano à saúde. O envolvimento de tais direitos leva a uma discussão
envolvendo institutos das mais diferentes áreas da ciência jurídica.
Sublinhando o exposto, pode-se compreender que o direito ambien-
tal enquanto um objeto interdisciplinar, tendo em vista que ele se insere
na seara civil, no tocante à indenização por danos ambientais; na esfera
penal, quando o meio ambiente é tutelado pela Lei de Crimes Ambientais
(Lei n o 9.605, de 12 de fevereiro de 1998); por fim, alcança o âmbito
administrativo, quando condutas lesivas ao meio ambiente são respon-
sabilizadas administrativamente com aplicação de multas, é o que ocorre
com a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010, de 2 de
agosto de 2010).
Reconhecida tal característica do direito ambiental, faz-se necessário des-
tacar que o presente escrito busca abordar a arbitragem apenas quando relacio-
nada ao aspecto civil dos conflitos ambientais.
Para entender melhor o exposto, analisou-se a arbitragem sob dois
prismas. No primeiro, verificou-se as características e vantagens do insti-
tuto quando utilizado para solucionar controvérsias envolvendo direitos
patrimoniais.
Já no segundo, buscou-se, na prática, os efetivos contornos, em face de
litígios ambientais, da utilização da arbitragem. Para a realização dessa análise,
optou-se por investigar o caso mais paradigmático de arbitragem envolvendo
questões ambientais, o caso Chevron e Texaco x Equador, apresentado ao Tri-
bunal Arbitral de Haia em 2009.

2
Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a
direitos patrimoniais disponíveis.
18 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

2. ANÁLISE TEÓRICA DO INSTITUTO DA ARBITRAGEM

Diante dos obstáculos provenientes da tutela jurisdicional comum, a Lei


de Arbitragem (LA) trouxe novos paradigmas no que diz respeito a resolução
de conflitos. Apesar da ampla difusão em outros países, no Brasil o instituto
enfrentou severa resistência e receio por parte da classe jurídica.

2.1 Conceito de arbitragem

A arbitragem é um instituto que preza pela autonomia da vontade das


partes. Segundo Carlos Alberto Carmona, um dos propulsores da LA, com-
preende-se a arbitragem como sendo uma técnica alternativa à jurisdição co-
mum, na qual, diante de um conflito, as partes escolhem uma ou mais pessoas,
formadas em direito ou não, para decidir a controvérsia.3
Em outras palavras, fala-se em arbitragem quando as partes conflitantes
buscam, voluntariamente, um terceiro para que este, analisando os fatores
envolvidos na questão, apresente uma solução justa para a controvérsia. An-
tônio Beltrão, narrando as vantagens alcançadas por meio da arbitragem,
inovou, chamando-a de “direito processual de 4ª geração”, tamanho o avan-
ço por ele vislumbrado.4
Para Luiz Antônio Scavone, a arbitragem pode ser compreendida como:

[...] o meio privado e alternativo de solução de conflitos decorrentes de direitos


patrimoniais e disponíveis por meio de árbitro, normalmente um especialista
na matéria controvertida, que apresentará uma sentença arbitral que constitui
título executivo judicial.5

Ainda, segundo a LA, as partes podem livremente pactuar o direito – ma-


terial e processual – a ser aplicado a solução da controvérsia que enfrentam,
podendo até mesmo optar por decisões pautadas na equidade, em princípios
gerais de direito, nos costumes ou em regras internacionais de comércio.
Para iniciar o procedimento arbitral se faz necessária a convenção de
arbitragem, a qual pode ser firmada através do compromisso arbitral ou da
cláusula compromissória. Trata-se do acordo que as partes firmam no sentido
de aderir a arbitragem e, consequentemente, retirar da jurisdição estatal a com-
petência para solucionar o litígio.

3
CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário a Lei nº 9.307/96. São Paulo:
Atlas, 2009. P. 15.
4
BELTRÃO, Antônio F. G. Manual de direito ambiental. São Paulo: Método, 2008. Pagina.288
5
SCAVONE, Luiz Antônio. Manual de Arbitragem Mediação e Conciliação. Rio de Janeiro: Forense,
2014
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 19
Por sua vez, a cláusula compromissória define que diante de conflitos
surgidos no decorrer da relação, estes serão solucionados por meio da arbitra-
gem. A cláusula pode já estar inserida no corpo do contrato, sendo contem-
porânea a este, ou ser definida após a sua pactuação, sendo convencionada na
troca de e-mails ou cartas, por exemplo. Já o compromisso arbitral será invo-
cado sempre que as partes, diante de um conflito, optem pelas vantagens que
a jurisdição arbitral lhes pode oferecer, afastando assim a jurisdição estatal.
De tal modo, em suma, com a cláusula compromissória se estabelece
a convenção de arbitragem antes do conflito surgir, enquanto que no com-
promisso arbitral, a convenção se institui após o surgimento do litígio entre
as partes.
A arbitragem pode ser dividida em duas espécies, a arbitragem institu-
cional e a arbitragem do tipo ad hoc. Na primeira, também denominada de
administrada, as partes submetem o conflito a uma entidade chamada de câ-
mara arbitral, a qual administrará a matéria de acordo com procedimentos
processuais previamente firmados por esta, tais como pratica dos atos, prazos,
escolha dos árbitros, direito aplicado, entre diversos outros.
Já na arbitragem ad hoc, não há qualquer entidade arbitral propriamente
dita que solucione o conflito. Deverão as partes definir o árbitro, bem como
o procedimento a ser seguido por este em todo o processo. Sendo assim, nesta
espécie de arbitragem, também conhecida como avulsa, as partes têm maior li-
berdade e os custos tendem a ser mais baixos. No entanto, há de se reconhecer
uma maior insegurança quando comparada com a arbitragem institucional.
Dentre as mais notórias câmaras, figura a Corte Permanente de Arbitragem,
instituída pela Convenção sobre a Resolução de Controvérsias Internacionais
durante 1ª Conferencia da Paz realizada em 1899 em Haia, conhecida como Tri-
bunal Arbitral de Haia. Esta foi criada para solucionar conflitos internacionais
que não o foram pela via diplomática, fazendo uso das regras apresentadas pela
Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional - UNCI-
TRAL (United Nations Commission on International Trade Law).

2.2. Da (im)possibilidade do uso da arbitragem em face de litígios


envolvendo bens indisponíveis.

Superada esta parte conceitual, deparamo-nos com um dos pré-requisitos


para a utilização da arbitragem, qual seja: o litígio envolver apenas direitos
disponíveis. Destarte, os bens em discussão pela via da arbitragem devem, obri-
gatoriamente, ser passíveis de alienação e transação inter-partes, não envolvendo
direitos indisponíveis, como direito à vida, ao próprio corpo, a liberdade ou a
honra das pessoas e até mesmo direitos transindividuais, como o direito à um
meio ambiente sadio, a priori.
20 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

2.2.1. Da natureza (in)disponível do direito ambiental.

O direito ambiental é entendido como um direito indisponível, uma vez


que consiste em um conjunto de normas criadas para garantir o direito à um
meio ambiente ecologicamente equilibrado. Este, por sua vez, foi positivado
expressamente no art. 225 da Constituição Federal de 1988.
O conceito de meio ambiente é dado pelo art. 3º inciso I da Lei nº 6938/81
que regula a Política Nacional do Meio Ambiente, segundo o qual o meio am-
biente é “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física,
química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.”
Tal definição engloba uma vasta gama de fatores complexos e extrema-
mente dinâmicos presentes no ecossistema, como a temperatura, a radiação
solar, pressão atmosférica, fauna, flora e cadeias alimentares, por exemplo.
Com base na proteção constitucional conferida ao meio ambiente, enten-
dido conforme o conceito dado por Paulo Leme, define-se o direito ambiental
como sendo um ramo do direito que envolve um “complexo de princípios e
normas coercitivas reguladoras das atividades humanas que, direta ou indireta-
mente, podem afetar a sanidade do ambiente em sua dimensão global, visando
a sua sustentabilidade para as presentes e futuras gerações. ”6
Com base nessa percepção, constatando que a potencialidade do desres-
peito de normas ambientais tem reflexos sobre uma coletividade indetermi-
nada, tem-se entendido que o direito ambiental protege um direito coletivo,
portanto indisponível.
Neste sentido, o Princípio da Natureza Pública da Proteção Ambiental,
alicerçado na noção de meio ambiente como sendo um valor a ser protegido
a fim de permitir o uso de todos, impõe à coletividade e ao Poder Público o
dever de zelar pelo meio ambiente, buscando alcançar sua sustentabilidade.
Assim, a tutela do meio ambiente propriamente dito, bem como o direito
de acesso a este, não pode se dá de forma a torná-lo objeto de posse privada.
Tal tutela deve atender aos interesses de uma sociedade, a qual cumpre o dever
coletivo de preservá-la. Sendo assim, não se concebe a possibilidade de barganha
do meio ambiente, nem dos direitos a ele atrelados, os quais, por força consti-
tucional, devem ser protegidos observando que os elementos componentes do
meio ambiente são bens de uso comum do povo e essenciais a qualidade de vida.

2.2.2. Do uso da arbitragem em conflitos ambientais

Apresentadas tais premissas, há de se questionar de que maneira haveria


de se aplicar a arbitragem, conforme a LA método de resolução voltado para

6
LEME MACHADO, Paulo Affonso. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2005. p.116.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 21
bens disponíveis, em conflitos que envolvam o direito a um meio ambiente
ecologicamente equilibrado, o qual, como visto, tem natureza indisponível.
Para autores como Paulo de Bessa Antunes, diversos exemplos na legis-
lação brasileira comprovam que não há nenhum óbice ao uso da arbitragem
mesmo quando envolvendo direitos de natureza ambiental.7 Entende o pro-
fessor que a indisponibilidade conferida ao direito ambiental nada mais é que
uma exceção constitucional.
O constituinte, ao mencionar a indisponibilidade das “terras devolutas
ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à pro-
teção dos ecossistemas naturais” no artigo 225, § 5º apenas buscou impedir
a alienação das terras por parte dos Estados, aplicada exclusivamente a tais
situações. Portanto, segundo o autor, não haveria de se falar em uma regra,
dotando o direito ambiental de caráter indisponível, mas sim de uma exceção,
aplicada apenas a alguns cenários.
Neste sentido, o referido autor ainda menciona diversos outros dispositivos
legais os quais visam a tutela do meio ambiente e que, ao contrário do entendi-
mento doutrinário majoritário, mitigam o caráter indisponível deste, permitindo
que a proteção do meio ambiente possa ser convencionada entre as partes.
Destaca-se, por exemplo, a Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981 a qual
dispõe acerca da Política Nacional do Meio Ambiente, tendo atribuída ao
Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) a competência para “homo-
logar acordos”, precisamente quando envolvendo interesses ambientais. Con-
forme o art. 8º, inc. IV da Lei, in verbis: “compete ao Conama (...) homologar
acordos visando à transformação de penalidades pecuniárias na obrigação de
executar medidas de interesse para a proteção ambiental.”
Ao passo, no âmbito internacional, há tempos a arbitragem vem sendo
utilizadas em conflitos ambientais. Como ocorrido no ano de 2002, no caso
envolvendo o Brasil e a Argentina, solucionado pelo Tribunal Arbitral Ad Hoc
do Mercosul, em seu sétimo laudo.
No referido caso, o Governo brasileiro impediu a entrada de produtos
fitossanitários/agrotóxicos argentinos, alegando que os mesmos poderiam afe-
tar o ecossistema brasileiro, configurando um risco à fauna e flora. Assim,
necessitaria de um registro especial para a sua comercialização.
Em contrapartida, alegava o Governo Argentino que tal medida violava a
livre circulação de bens e produtos, princípio basilar do Mercosul. O Tribunal
Arbitral, então, consentindo com a argumentação argentina, entendeu que o
Brasil tinha o dever de liberar a entrada de tais produtos no mercado.

7
ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental ...DIREITO AMBIENTAL, INDISPONIBILIDADE
DE DIREITOS, SOLUÇÃO ALTERNATIVA DE CONFLITOS E ARBITRAGEM. Doutrinas Essen-
ciais Arbitragem e Mediação, Recife, v. 4, p.1263-1296, set. 2014.
22 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Apesar dessa decisão favorável aos direitos comerciais, ao formarem


referida sentença, os árbitros levaram em conta aspectos como a preservação
e conservação da natureza, estudando os possíveis impactos que o uso dos
produtos poderia trazer. Tal análise indica uma preocupação do referido
Tribunal com o equilíbrio ambiental. Desse caso, observa-se que tribunais
arbitrais tem a potencialidade de examinar questões de caráter econômico
sob sua dimensão ecológica, o que revela uma possibilidade no uso da arbi-
tragem em conflitos ambientais.
O Brasil é signatário de diversos tratados e convenções internacionais
voltadas ao equilíbrio do meio ambiente e que resguardam em seu bojo
cláusulas arbitrais. Cita-se como exemplo a Convenção de Viena sobre Pro-
teção da Camada de Ozônio, a Convenção sobre Diversidade Biológica e o
Protocolo de Kyoto.
A Emenda Constitucional nº45 de 2004 dispõe em seu § 3º que os trata-
dos e convenções internacionais sobre direitos humanos, tal como as conven-
ções supramencionadas, aprovadas por três quintos dos votos dos respectivos
membros, serão equivalentes a emendas constitucionais.
A Convenção de Viena, enquadrando-se na temática apontada pela emen-
da, passou pela referida aprovação e goza, portanto, do título de emenda consti-
tucional. Destarte, há de se convir que o entendimento alcançado por meio arti-
go 11, inciso 3, a, da Convenção, quando colocado ao lado do artigo 1º da LA,
alcança patamar hierárquico superior, devendo-se adotar aquele em detrimento
deste. Assim, vislumbra-se a possibilidade revelada pela legislação brasileira no
uso da arbitragem quanto aos litígios envolvendo o meio ambiente.
Por outro viés, pode-se adotar ainda a argumentação vinculada à especi-
ficidade das leis, tal qual apontado pela Lei de Introdução ao Código Civil
brasileiro (Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002) em seu §2º do artigo 2º. Esta
estabelece que a Lei específica deve prevalecer sobre a geral.
Logo, não é possível aplicar o disposto na LA, excluindo bens indispo-
níveis do seu âmbito de atuação, quando existem tratados e convenções inter-
nacionais promulgadas pelo Brasil que possibilitam o uso da arbitragem em
conflitos envolvendo o meio ambiente.

3. DAS POSSÍVEIS VANTAGENS PROPORCIONADAS PELO


USO DA ARBITRAGEM

Conforme a doutrina dominante, a utilização da arbitragem como mé-


todo de resolução dos conflitos traz diversos benefícios para as partes envolvi-
das, pois se trata de um meio consideravelmente mais célere quando compara-
do com a Jurisdição comum, estabelecendo, de acordo com o artigo 23 da Lei
9.307, o prazo de seis meses para a apresentação da sentença arbitral.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 23
Embora na prática tal prazo, comumente, não seja respeitado, denota-se
que diante das dificuldades apresentadas pelo Poder Judiciário, principalmente
quanto à escassez de juízes e servidores, bem como do alto número de recursos
possíveis de serem interpostos pelas partes, a jurisdição arbitral aponta caminho
a ser considerado. Além do mais, não são poucas as vezes em que os árbitros
gozam de uma infraestrutura mais completa que a oferecida aos Juízes.8
Ao passo, ao contrário do que ocorre na jurisdição estatal, onde os juízes
aspiram ao estrito cumprimento da lei, na arbitragem os juízes nomeados in-
tencionam solucionar o litígio das partes, permitindo-as que o superem.
Ora, o prolongamento dos processos, arrastando-se por longos lapsos
temporais, faz com que quantias pecuniárias em questão sejam mantidas into-
cáveis, acarretando graves prejuízos às partes.
No entanto as potenciais vantagens da arbitragem não se limitam apenas
à área econômica. A agilidade advinda da arbitragem estimula a solução dos
conflitos ambientais, nos quais, comumente, a extensão do dano ambiental se
alarga diante inação do homem, preso aos ditames burocráticos do Judiciário.
Assim, aumentar o tempo de espera pela remediação dos danos aos re-
cursos naturais, pode agravar os prejuízos sofridos, atingindo, por ricochete,
a própria sociedade.
Segundo a doutrina, com a arbitragem alcança-se ainda um maior grau
de especialização das decisões. Os árbitros escolhidos pelas partes podem deter
conhecimentos mais aprofundados a respeito do Meio Ambiente. Proporcio-
na-se, destarte, uma análise com maior razoabilidade dos fatos e das conse-
quências advindas de suas decisões.
Tal fato aponta para uma redução de possíveis erros a serem cometidos
quando comparados com os juízes da jurisdição comum, tendo em vista sua
falta de conhecimento técnico e a estranheza com a matéria analisada.
Há de se convir que o árbitro dotado de conhecimentos técnicos cien-
tifico específicos, como um biólogo marinho por exemplo, possui maior ca-
pacidade para compreender os danos aos recursos naturais existentes no mar,
averiguar as extensões desses danos e buscar, na sentença, meios hábeis de
remediar o ecossistema.

4. ANÁLISE EMPÍRICA DA ARBITRAGEM: CASO CHEVRON E


TEXACO X EQUADOR

Constatada a possibilidade jurídica de utilizar a arbitragem para so-


lucionar controvérsias envolvendo prejuízos aos recursos naturais, visando

8
PUGLIESE, Antônio Celso Fonseca; SALAMA, Bruno Meyerhof. A Economia da Arbitragem: Escolha
Racional e Geração de Valor. Revista Direito Gv, São Paulo, v. 4, n. 7, p.15-28, maio 2008.
24 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

o desenvolvimento sustentável, a presente análise passará a averiguar se na


prática tal possibilidade pode ser observada. Com tal escopo, selecionou-se
o caso de conflito ambiental mais paradigmático, o qual se arrasta por tri-
bunais norte-americanos, equatorianos, argentinos e, inclusive, brasileiros há
mais de 20 anos: o Caso Chevron e Texaco x Equador.

4.1. Dos fatos

Por volta de 1960, o Equador descobriu um campo de petróleo com gran-


de potencial de exploração situado na floresta amazônica, na região do Lago
Agrio. Devido sua escassez de recursos financeiros e tecnológicos, em 1964, o
Estado firmou um contrato de concessão com duas petroleiras norte-ameri-
canas, cedendo-lhes o direito de explorar o petróleo ali detectado, durante 28
anos. A época o contrato foi firmado com as empresas “Texpet” (Texaco) e
“Gulf Oil Company”.9
Passados 29 anos, em 1993, a “Gulf Oil Company” foi substituída pela
estatal PetroEquador, a qual, apenas em 1990, assumiu o comando do consór-
cio que antes pertencia a Texaco, obtendo a participação de 62,5% dos ativos,
deixando a norte-americana com 37,5%. Nessa oportunidade, foi feito um
laudo técnico ambiental, o qual indicou que a extração do petróleo causara
um dano ambiental estimado em US$ 13 milhões.10
Segundo o relatório, identificou-se na região do Lago Agrio o lançamento
de cerca de 16 bilhões de galões de líquido tóxico não tratados, a formação de
cerca de 910 piscinas de lodo venenoso e a queima de milhões de metros cú-
bicos de gases poluentes. Conjectura-se que esse malefício tenha decorrido da
falta de utilização das medidas segurança para extração do petróleo em terra,
como: a ausência de manta impermeabilizadora nos poços de lama tóxica e a
injeção dessa lama e de águas tóxica nos rios da região.11
À época, o local era ocupado pelas comunidades indígenas Sakoya e
Cofan que naquela terra, não só habitavam, como também extraiam todos
os seus alimentos, a água que bebiam e que utilizavam para as necessidades
cotidianas.12 Nessas águas consumidas pela comunidade, foi constatado a
9
CORTE DISTRITAL DE HAIA. Case number/ cause-list number: C/09/477457 / HA ZA 14-1291.
República do Equador VS. Chevron e Texaco. Mr. D.R. Glass e Mr. D. Aarts and mr. J.W. Julgado em
20/01/2016. Publicado em 20/01/2016. Disponível em: http://www.italaw.com/sites/default/files/case-
documents/italaw7104.pdf. Acesso em 09/09/2016. Parágrafo 2.1.
10
Permanent Court Of Arbitration Of Hague. Third Interim Award nº 3. Parágrafo 3.10.
11
THE true story of Chevron’s Equador Disaster. S.i: Chevron Tóxico, 2013. P&B. Disponível em: <ht-
tps://youtu.be/_azgdnGBdh8>. Acesso em: 22 jul. 2017.
12
JIM LOBE (Estados Unidos). Chefe do Escritório do Inter Press Service: News Agency. Chevron Wins
Latest Round in Ecuador Pollution Case. 2014. Disponível em: <http://www.ipsnews.net/2014/03/
chevron-wins-latest-round-ecuador-pollution-case/>. Acesso em: 09 set. 2016
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 25
concentração de hidrocarbonetos de 10 a 10 mil vezes superior ao permitido
pela United States Environmental Protection Agency.13
Aponta-se que o resultado dessa falta de cuidado foi a contaminação em mas-
sa das comunidades, causando-lhes diversos problemas de saúde, sendo constatada
nelas uma incidência de células cancerígenas 30 vezes maior que o normal.14
No mesmo ano da substituição da “Gulf Oil” e da constatação do passivo
ambiental, o Equador firma um Tratado Bilateral de Investimento (BIT) com
os Estados Unidos, mediante o qual, dizia-se, objetivavam estimular e proteger
os investimentos feitos pelas companhias de um Estado no território de outro.
O tratado entraria em vigor em maio em 1997, sendo aplicável aos investimen-
tos existentes nessa data e posteriores a ela.15
Com o acordo, visava-se também, pelo menos no plano teórico, promo-
ver o desenvolvimento socioeconômico de ambos os Estados, na medida em
que reconheceram expressamente no tratado que o desenvolvimento econômi-
co e os negócios poderiam contribuir para o bem-estar social.16
No mesmo ano de assinatura dos referidos termos, os afetados pelos da-
nos causados pelas empresas norte-americanas propuseram, pela primeira vez,
uma ação conjunta visando ver reparados os prejuízos socioambientais aos quais
foram submetidos. O Tribunal Federal de Nova York foi eleito para julgar a
demanda, em razão de serem instaladas lá as sedes das empresas demandadas.17
Em sua defesa, a Texaco alegou que a corte norte-americana não pos-
suía competência para julgar o caso, vez que o tribunal competente seria
aquele do local onde os danos foram causados. Seria competente, portan-
to, o foro de Lago Agrio. O tribunal acolheu as alegações da empresa e o
processo foi suspenso.18

13
HURTIG, Anna-karin; SEBASTIAN, Miguel San. Incidence of Childhood Leukemia and Oil Exploita-
tion in the Amazon Basin of Ecuador. International Journal Ou Occupational And Environmental
Health.  Londres, p. 245-250. set. 2004. Disponível em: <http://chevrontoxico.com/assets/docs/chil-
dhood-leukemia.pdf>. Acesso em: 22 jul. 2017. P. 2
14
SEBASTIAN, Miguel San; CORDOBA, Juan António. The impact of oil development on the health
of the people of the Ecuadorian Amazon. Londres: London School Of Hygiene And Tropical Medi-
cine Medicus Mundi, 1999. Disponível em: <https://chevrontoxico.com/assets/docs/yana-curi-eng.pdf>.
Acesso em: 22 jul. 2017. P. 14.
15
ESTADOS UNIDOS. Tratado de Investimento Bilateral nº Doc. 103-15, de 27 de agosto de 1993. Tratado
de Investimento Com A República do Equador: Tratado entre os Estados Unidos da América e a Republica
do Equador sobre incentivo e proteção reciproca de investimentos. Washington-DC, Disponível em: <https://
www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0ahUKEwjXjeiViYPPAhWL-
fZAKHe9WAMsQFggfMAA&url=http://www.state.gov/documents/organization/43558.pdf&usg=AFQjC-
NHwqHrFvErXdGJVa9vX7ITHYVo7rg&bvm=bv.131783435,d.Y2I&cad=rja>. Acesso em: 09 set. 2016.
16
Cf. Nota supra.
17
CHEVRONTOXICO: THE CAMPAIGN FOR JUSTICE IN EQUADOR.  Trial Timeline. 2011. Dis-
ponível em: <http://chevrontoxico.com/pop-ups/trial-timeline>. Acesso em: 09 set. 2016.
18
Cf. Nota supra.
26 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Em março de 1995, já ciente das lesões causadas, a Texaco firma um


acordo com o Equador e com a estatal PetroEquador, chamado “Contract for
Implementing of Environmental Remedial Work and Release from Obliga-
tions, Liability and Claims”. Neste, a multinacional se comprometeu a reparar
parcela dos prejuízos causados se o Equador e sua estatal liberassem-na de
toda e qualquer responsabilização que fora ou que pudesse ser reclamada pelo
Governo, pela estatal e por suas filiais em decorrência de tais danos.19
Em setembro de 1998, outro acordo entre o Estado e a empresa estaduni-
dense fora firmado. Neste, o Governo Equatoriano liberou-a “para sempre de
qualquer responsabilização e reclamação, por parte do Estado e de sua estatal,
pelos itens relatados nas obrigações assumidas pela TexPet no Contrato de
1995”, vez que tais obrigações haviam sido cumpridas pela empresa.20
Estima-se que a Texaco tenha gasto cerca de US$ 40 milhões com ações
de recuperação socioambiental, dentre as quais cita-se a construção de centros
educacionais, a criação de ambulância aquática e a doação de um avião.21
Em 2001, a petroleira americana Chevron fundiu-se com a Texaco, razão pela
qual assumiu o papel de litisconsorte na demanda ajuizada pelos equatorianos
perante a Corte de Justiça de Lago Agrio, a qual foi proposta em maio de 2003.22
Devido ao grande contingente de pessoas prejudicadas pelo desastre ambien-
tal em questão, formou-se a Assembleia dos Afetados, composta por cerca de 30
mil residentes da região, os quais atuaram no polo ativo da demanda judicial.23
Prevendo a probabilidade de sua condenação, em 2009, a Chevron inter-
pôs, perante o Tribunal Arbitral Permanente de Haia, uma “Notice of Arbitra-
tion”, baseada no supracitado Tratado Bilateral de Investimento de 1993, dada
a previsão do art. VI que estabelecia a cláusula arbitral e a possibilidade de as
partes escolherem a câmara de arbitragem que solucionaria o litígio.24
Com citado instrumento processual, a multinacional buscou na Corte
Arbitral uma decisão que impossibilitasse a execução de eventuais decisões

19
EQUADOR. Contrato nº 1, de 14 de maio de 1995. Contrato para A Execução de Trabalhos de Repa-
ração Ambiental e Liberação de Obrigações, Responsabilidades e Demandas. Quito, Disponível em:
<http://www.italaw.com/sites/default/files/case-documents/italaw1585.pdf>. Acesso em: 09 set. 2016.
20
CORTE DISTRITAL DE HAIA. Case number/ cause-list number: C/09/477457 / HA ZA 14-1291.
República do Equador VS. Chevron e Texaco. Mr. D.R. Glass e Mr. D. Aarts and mr. J.W. Julgado em
20/01/2016. Publicado em 20/01/2016. Disponível em: http://www.italaw.com/sites/default/files/case-
documents/italaw7104.pdf. Acesso em 09/09/2016. Parágrafo 2.4.
21
Permanent Court Of Arbitration Of Hague. Third Interim Award nº 3. Parágrafo 3.24.
22
CORTE DISTRITAL DE HAIA. C/09/477457 / HA ZA 14-1291. 2016. Parágrafo 2.6.
23
G1 (Brasil). Equatorianos abrem no Brasil processo para cobrar multa milionária à Chevron. 2012.
Disponível em:<http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/06/equatorianos-abrem-no-brasil-processo
-para-cobrar-multa-milionaria-a-chevron.html>. Acesso em: 09 set. 2016.
24
TRIBUNAL ARBITRAL DE HAIA. Notice of arbitration. Disponível em: <.https://www.italaw.com/
sites/default/files/case-documents/ita0155_0.pdf>. Acesso em: 09/10/2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 27
proferidas contra as empresas, bem como a sua responsabilização pela reme-
diação dos estragos ambientais causados em Lago Agrio.
Como já previsto, em 2011, o processo na Justiça Equatoriana teve seu
desfecho concluído com a condenação da Chevron e da Texaco a indenizar
os reclamantes no valor total de US$18 bilhões, dos quais US$ 8,6 bilhões
eram devidos a títulos de danos morais e materiais decorrentes dos prejuízos
socioambientais; US$ 8,6 bilhões a título de multa caso as petroleiras não pe-
dissem desculpas publicamente por sua conduta; e, por fim, US$ 86 milhões
para o pagamento dos ônus sucumbenciais.25
Notadamente insatisfeitas, as empresas apelaram para a segunda instân-
cia, a qual, em setembro de 2012, confirmou a decisão do juiz singular, re-
duzindo, no entanto, a condenação para o montante de US$ 9,46 bilhões,
excluindo a multa pela ausência de retratação das companhias. Novamente, as
condenadas recorram e, em novembro de 2013, a Suprema Corte Equatoriana
confirmou a decisão proferida em segunda instância.26
Para melhor compreender os fatos do caso, é preciso destacar a extensão
do dano ambiental e o capital gasto para recuperar a região amazônica, te-
cendo um comparativo entre esse desastre e o acidente ocorrido em 2010 no
Golfo do México.
Enquanto no primeiro houve o lançamento de 16 bilhões de galões de lí-
quidos tóxicos nos rios e nas florestas amazônicas, durante 9 anos, no segundo
houve o vazamento de 5 milhões de galões de petróleo no mar, durante apenas
três meses. No entanto, apesar da floresta de Lago Agrio ter sido contaminada
com um volume cerca de tóxicos 3.200 vezes maior, o valor direcionado à sua
recuperação foi 350 vezes menor que o montante investido na recuperação
ambiental do Golfo do México. Em Lago Agrio foram empregados 40 milhões
de dólares, ao passo que ao Golfo do México foi destinado o montante de 14
bilhões de dólares para a recuperação da área.27

4.2. Do processamento perante a Corte de Arbitragem de Haia

O apelo feito pela Chevron e pela Texaco foi recebido pelo Tribunal
Arbitral de Haia em setembro de 2009, dando início ao processo arbitral

25
CORTE DISTRITAL DE HAIA. Case number/ cause-list number: C/09/477457 / HA ZA 14-1291.
República do Equador VS. Chevron e Texaco. Mr. D.R. Glass e Mr. D. Aarts and mr. J.W. Julgado em
20/01/2016. Publicado em 20/01/2016. Disponível em: http://www.italaw.com/sites/default/files/case-
documents/italaw7104.pdf. Acesso em 09/09/2016. Parágrafo 2.6.
26
Cf. Nota supra.
27
GREENPEACE (Brasil). Desastre no Golfo do México completa cinco anos. 2015. Disponível em:
<http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Noticias/Pior-vazamento-de-petroleo-completa-cinco-anos/>.
Acesso em: 22 jul. 2017.
28 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

internacional.28 O primeiro momento procedimental se deu com a escolha


dos árbitros, na forma como será explanada.

4.2.1. Da escolha dos árbitros

Para instruir e julgar o caso no procedimento arbitral, as partes esco-


lheram os seguintes árbitros: Dr. Horacio A. Grigera Naón, designado pelo
Equador, Prof. Alan Vaughan Lowe, designado pelas empresas, e V.V. Veeder
QC, designado pelo secretário-geral da Corte de Haia.29
Dr. Naón foi graduado pela Universidade de Buenos Aires, com pós-
-graduação em Harvard, é professor da Washington College of Law (WCL),
Secretário Geral da Corte de Arbitragem da Câmara de Comércio, arbitro
independente e consultor de comercio internacional.30
O Professor Alan Vaughan Lowe é advogado da Essex Court Chambers
(ECC), a qual consiste em uma espécie de associação de advogados altamente
especializados em comercio, litígios financeiros, arbitragem, direito público e
direito internacional público. Prof. Vaughan é, também, juiz ad hoc da Corte
Europeia de Direitos Humanos.31
Por fim, V.V. Veeder é especialista em direito empresarial, tratados inter-
nacionais, investimentos internacionais, direito bancário e arbitragem comer-
cial internacional. Veerder atuou como advogado e como árbitro em Londres,
bem como em diversos outros países, e, assim como prof. Alan, é, também
Membro da Essex.32

4.2.2. Das decisões da Corte Permanente de Arbitragem de Haia

Em abril de 2010, as empresas requereram uma medida provisória para


garantir que a decisão de Lago Agrio não fosse executada. A Corte conce-
deu a medida, ordenando que o Equador tomasse: “todas as medidas a sua

28
Tribunal Permanente de Arbitragem de Haia. Decision on Track 1B. Disponível em: <http://www.
italaw.com/sites/default/files/case-documents/italaw4222.pdf>. Acesso em: 10 set. 2016.
29
PERMANENT COURT OF ARBITRATION OF HAGUE. Third Interim Award nº 3. Claimants
Chevron e Texaco. Respondant Equador. Relator: Dr. Horacio A. Grigera Naón; Professor Vau-
ghan Lowe; V.V. Veeder (President). Hague, 27 de fevereiro de 2012. Disponível em: <http://www.
italaw.com/sites/default/files/case-documents/ita0175.pdf>. Acesso em: 10 set. 2016.
30
WASHINGTON COLLEGE PF LAW (Estados Unidos). Horacio Grigera Naón Distinguished Prac-
titioner in Residence Director of the Center on International Commercial Arbitration. 2012. Dis-
ponível em: <https://www.wcl.american.edu/faculty/grigeranaon/>. Acesso em: 22 jul. 2017.
31
ESSEX COURT CHAMBER (Inglaterra). PROFESSOR VAUGHAN LOWE QC. 2017. Disponível
em: <https://essexcourt.com/barrister/professor-vaughan-lowe-qc/>. Acesso em: 22 jul. 2017.
32
ESSEX COURT CHAMBERS (Inglaterra). V V VEEDER QC. 2017. Disponível em: <https://essex-
court.com/barrister/v-v-veeder-qc/>. Acesso em: 22 jul. 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 29
disposição para suspender ou causar a suspensão da execução ou do reco-
nhecimento, dentro ou fora do Equador, de qualquer julgamento contra a
Chevron no caso de Lago Agrio33.”34
Em julho do mesmo ano, o Equador apresentou seu memorial, alegando
que o Tribunal Arbitral não possuía competência para julgar o caso, posto que
a disputa de Lago Agrio, diferentemente do que afirmavam os autores, não
envolvia diretamente um investimento internacional, não dizendo respeito,
portanto, ao objeto do Tratado de Proteção ao Investimento de 1993.35
O Estado consignou ainda que, mesmo se fosse considerado que o litígio
de Lago Agrio envolvia o contrato de concessão realizado entre ele e a Texaco,
o Acordo de Proteção ainda não poderia ser aplicado, pois o contrato expirara
em 1992, antes mesmo da assinatura do BIT.36
Afirmou também que nem o acordo de 1998 – “Final Release” –, tam-
pouco o de 1995 tinham caráter de investimento internacional, vez que não
tratavam da aplicação de capital estrangeiro com o intuito de obter lucro, mas
sim de formas de remediação de danos advindos da exploração de petróleo de
forma irresponsável.37
No entanto, a Corte Arbitral rechaçou tais argumentos, afirmando que
existia uma intrínseca ligação entre o Contrato de exploração petrolífera e o
Acordo de liberação de responsabilidades decorrentes de tal atividade, pois o
segundo jamais teria sido firmado sem a existência do primeiro.38
Nesse raciocínio, o Tribunal considerou: uma vez que o contrato de explo-
ração petrolífera de 1973 se enquadra no conceito de investimento internacional,
os acordos dele decorrentes, como o de liberação de responsabilidades, também se
enquadrarão. Destarte, dado que o caso de Lago Agrio se relaciona com o contrato
de 1973, torna-se aplicável a ele o Tratado de Proteção ao Investimento de 1993.39
Em 2012, as empresas peticionaram à Corte de Arbitragem que reforças-
se a medida provisória concedida, tornando-a definitiva, argumentando que,

33
“Tomasse todas as medidas necessárias para suspender ou fazer com que suspenda a execução, bem
como o reconhecimento, dentro ou fora da jurisdição do Equador, de qualquer julgamento contra a Che-
vron no caso de Lago Agrio” (tradução nossa).
34
CORTE DISTRITAL DE HAIA. C/09/477457 / HA ZA 14-1291. 2016. Parágrafo 2.9.
35
EQUADOR, República do. Memorial on Jurisdictional Objections of The Republic of Ecua-
dor.  2010. Disponível em: <http://www.italaw.com/sites/default/files/case-documents/ita0161.pdf>.
Acesso em: 10 set. 2016.
36
Cf. Nota supra
37
Cf. Nota supra.
38
PERMANENT COURT OF ARBITRATION OF HAGUE. Third Interim Award nº 3. Claimants
Chevron e Texaco. Respondant Equador. Relator: Dr. Horacio A. Grigera Naón; Professor Vau-
ghan Lowe; V.V. Veeder (President). Hague, 27 de fevereiro de 2012. Disponível em: <http://www.
italaw.com/sites/default/files/case-documents/ita0175.pdf>. Acesso em: 10 set. 2016.
39
Cf. Nota supra.
30 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

mesmo após sua concessão, o Equador não apenas haveria permitido que a
empresa fosse condenada, como também que os afetados de Lago Agrio com-
prassem a decisão judicial.40
Atendendo aos reclamantes, no mesmo ano, o Tribunal Arbitral reafirmou
a medida provisória, reconhecendo que o Equador havia violado a determinação
do tribunal ao permitir a condenação das empresas pelo seu Poder Judiciário.41
Em 2013, novamente, as empresas buscaram a Corte para denunciar no-
vas transgressões à medida provisória, dessa vez, traduzidas pela tentativa dos
Afetados de Lago Agrio de executar a decisão fora dos limites do território
equatoriano, como em tribunais do Canadá, Argentina e Brasil.42
Em setembro do mesmo ano, a primeira decisão de mérito do Tribunal
Arbitral foi prolatada. Nela, foram acolhidas as pretensões das petroleiras, sob
o argumento de que a Chevron e a Texaco haviam sido liberadas das respon-
sabilidades de Lago Agrio pela cláusula 5.1 do Acordo 1995.43
O Tribunal Arbitral, como quem faz surgir uma faísca luminosa no fim
do túnel, ressaltou que apesar de tal cláusula vedar a responsabilização das em-
presas em face de reclamações difusas pelos danos socioambientais causados,
ela não poderia proibir as reclamações individuais de mesma natureza.44
Em março de 2015, houve mais uma decisão, na qual, a pedido do Equa-
dor, a Corte declarou que no caso de Lago Agrio haviam reclamações indivi-
duais envolvendo direitos ambientais reconhecidos pela legislação equatoriana,
em razão das quais o acordo de liberação de responsabilização não poderia exi-
mir as multinacionais de serem executadas. Por essa razão, declarou que a deci-
são de Lago Agrio não se encontra inteiramente invalidada pelo citado acordo.45
Muito embora a última decisão arbitral tenha sido favorável ao Equador,
o Estado sucumbira na maioria das decisões.46 Razão pela qual o Tribunal con-
denou o Equador a pagar custas processuais no valor de 1 milhão de euros.47
Insatisfeito, o Equador apelou para a Corte Distrital de Justiça de Haia,
pedindo que as decisões arbitrais fossem anuladas e que a Chevron fosse con-
denada a pagar os custos do procedimento. Todavia, a Corte, no julgamento
proferido em 2016, entendeu que razão não assistia ao Estado, condenando-o
ao pagamento de mais custas no valor de € 7.030,00.48
40
SPALDING, King &. Claimantes Letter of Information. 2012. Disponível em: <http://www.italaw.
com/sites/default/files/case-documents/ita0171.pdf>. Acesso em: 10 set. 2016.
41
CORTE DISTRITAL DE HAIA. C/09/477457 / HA ZA 14-1291. 2016. Parágrafo 2.10.
42
Cf. Nota supra.
43
Cf. Nota supra.
44
Cf. Nota supra.
45
HAIA, Tribunal Permanente de Arbitragem de. Decision on Track 1B. 2015. P. 59
46
Cf. Nota supra.
47
CORTE DISTRITAL DE HAIA. C/09/477457 / HA ZA 14-1291. 2016. Parágrafo 4.42.
48
CORTE DISTRITAL DE HAIA. C/09/477457 / HA ZA 14-1291. 2016. Parágrafo 5.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 31
CONCLUSÃO

Da presente elucidação extrai-se que no caso Chevron vs Equador, discu-


tido junto Tribunal Arbitral de Haia, houve uma privatização de um interesse
público, eis que o referido Tribunal voltou sua atenção, essencialmente, para
aspectos privatistas, negligenciando o direito coletivo ao meio ambiente sau-
dável que estava ali em jogo.
Em que pese essa problemática, pôde-se ver que a supracitada corte, ape-
sar de julgar contrariamente ao Equador, limitou os efeitos de sua decisão a
invalidar o decisum equatoriano que condenava as multinacionais a pagar uma
indenização coletiva pelos danos ambientais. Tal limitação se deu na medida
em que a corte reconheceu a possibilidade de responsabilização das empresas
pelos danos individuais causados em decorrência dos prejuízos ambiental.
Considerando o reconhecimento desse direito, somado a todo o exposto
nos tópicos antecessores, conclui-se que a arbitragem pode ter sim um papel
no desenvolvimento sustentável. Tal função pode ser exercida mesmo sob a
legislação brasileiras, pois, apesar de a Lei de arbitragem falhar ao vedar de for-
ma ampla o uso dessa jurisdição alternativa para conflitos envolvendo direi-
tos indisponíveis, como o direito ambiental, o ordenamento jurídico pátrio,
como um todo, não oferece essa resistência, dados os tratados internacionais
sobre a matéria já ratificados.
Em segundo lugar, esse modelo de jurisdição - caracterizado pela celeri-
dade, economicidade e especialidade – revela-se promissor na medida em que
possibilita pensar formas de remediar danos ambientais de maneira mais ágil,
responsabilizando o causador dos prejuízos e estimulando-o a investir em
obras ambientais mais profícuas.
Essas medidas podem ser facilmente determinadas por árbitros especia-
lizados nas diversas áreas do conhecimento, como um engenheiro ambiental,
um oceanógrafo ou um advogado especializado na legislação ambientais. A
decisão desses profissionais terá a potencialidade de fazer surtir efeitos pre-
ventivos, tornando não lucrativo a utilização de recursos naturais de forma
irresponsável.
Em um exame mais detido, constata-se que a necessidade de repensar a
arbitragem, sob o prisma de seu papel na sustentabilidade se torna mais latente
na medida em que a arbitragem tem sido, paulatinamente, mais utilizada nas
controvérsias envolvendo vultosas questões econômicas, disputadas entre Es-
tados, Multinacionais e outros agentes econômicos mundialmente relevantes.
Tais questões econômicas, não raramente envolvem a exploração de re-
cursos naturais, tais como o petróleo, podendo o seu esgotamento ou a má
utilização gerar impactos negativos para uma vasta gama de indivíduos. Não
obstante, muitos desses litígios, solucionados pela arbitragem, acabam sendo
32 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

observados exclusivamente sob o prisma do capital, ofuscando um direito im-


prescindível à toda humanidade: o direito ao meio ambiente saudável.
Foi exatamente esse ofuscamento que ocorreu no caso Chevron e Te-
xaco x Equador. Neste, a exploração petrolífera de forma negligente oca-
sionou a transformação de um ecossistema, tornando inutilizáveis recursos
bióticos e abióticos da região, causando a perda da biodiversidade local e
contaminando, com resíduos altamente tóxicos, as comunidades indígenas
que ali viviam. Apesar de tais prejuízos, o caso acabou reduzido a um con-
flito meramente econômico, julgado por uma Corte Arbitral formada por
profissionais, de fato, especializados, no entanto, em direito comercial, não
em direito ambiental.
A negligência para com o dano à floresta amazônica fica mais evidente ao
reparar que, em todas as decisões, a Corte Arbitral de Haia adotou uma pos-
tura altamente contratualista, limitando-se ao exame da extensão das cláusulas
dos acordos envolvidos, o que o levou a conclusão de que o Equador deveria
ser reprimido por permitir que o seu Poder Judiciário reconhecesse o direito
coletivo das comunidades de serem ressarcidas pelo desastre ecológico advindo
da exploração petrolífera irresponsável.
E não poderia ter sido diferente, dada a disparidade de armas do Esta-
do do Equador, subdesenvolvido e com uma perceptível fragilidade política,
em comparação com as Multinacionais Chevron e Texaco, detentoras de um
Produto Interno Bruto que chega a ultrapassar o daquele país. Especula-se que
a falta de formação dos árbitros em áreas que discutem os recursos naturais
tenha corroborado para o resultado da sentença arbitral proferida no caso.
Por essa razão, vislumbra-se que a participação de um julgador especia-
lizado em direito ou engenharia ambiental, poderia ter influenciado as deci-
sões proferidas, guiando-as, quando menos, para um debate mais aprofunda-
do acerca dos danos ecológicos constatados, das medidas de restauração que
deveriam ter sido adotadas, sobre o desenvolvimento sustentável e o papel da
arbitragem internacional nesse contexto.
Problemático perceber que a falha de turvar a importância do direito ao
meio ambiente sadio, em função dos interesses econômicos, tende a ser mais
desejada quanto maior o capital financeiro envolvido. Esse não é um proble-
ma do qual o Brasil estará alheio nos próximos anos, seja pelas tentativas de
homologação de sentenças estrangeiras envolvendo tal direito, seja em razão
dos contratos de concessão do pré-sal que estão sendo firmados pela Agência
Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustível, os quais preveem a utili-
zação da arbitragem em conflitos decorrentes desses contratos.49

49
BRASIL. Dispõe Sobre A Política Energética Nacional, As Atividades Relativas Ao Monopólio do
Petróleo, Institui O Conselho Nacional de Política Energética e A Agência Nacional do Petróleo e Dá
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 33
É por esse motivo que o debate sobre o papel da arbitragem no
desenvolvimento sustentável é tão atual e tão relevante. É com essa discussão
que a visão individualista e limitada que se tem hoje da arbitragem poderá ser
modificada, tornando-a um eficaz instrumento para a efetivação do direito
universal ao meio ecológico sadio.

REFERÊNCIAS
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34 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)
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Capítulo 3
Bacias Hidrográficas Numa Perspectiva Global:
Uma Análise de Conflitos Transfronteiriços
e de Tratados Brasileiros Internacionais

Andréa dos Santos Teixeira


Gertrudes de Sousa Regis
Marcos Sousa França

1. INTRODUÇÃO

A abundância da água no mundo concedeu a esse recurso uma noção


de infinitude, entretanto, nota-se cada vez mais nos últimos anos conflitos
gerados por sua escassez. A água passa a ser vista como o produto do século.
Visto isso, é importante uma distribuição mais equitativa desse recurso, para
buscar um acesso mínimo para a população mais carente, além da diminuição
desses conflitos.
Para entender melhor este assunto é fundamental compreender os re-
cursos hídricos, mais precisamente as bacias hidrográficas, como um único
sistema e devido a impossibilidade de delimitar fronteiras para um curso de
água, a importância do entendimento da real funcionalidade dos tratados in-
ternacionais, para a deliberação sobre os recursos hídricos que abrangem mais
de uma nação.
Todos os seres vivos dependem da água, no entanto apesar de sua quan-
tidade não ter mudado, a qualidade mudou bastante e para pior. Durante
a formação das primeiras civilizações, estas buscaram proximidade aos rios,
pois dependiam para o cultivo de seus alimentos. Posteriormente, tal bem foi
utilizado na movimentação de máquinas e moinhos, além de ter início seu uso
em processos industriais.
O grande problema hídrico da atualidade é que a água não está distribuí-
da regularmente na Terra. Em algumas áreas do planeta as chuvas são mínimas
e não há formação de vegetação, como no caso dos desertos. Outras áreas, tais
como o Brasil, possuem esse recurso em abundância, superior ao necessário
para a sobrevivência da população, pois aproximadamente 12% das reservas
mundiais de água doce superficial se encontram no país, o que não implica
dizer que não ocorrem conflitos por esse recurso no Brasil.
36 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

A carência de água acaba se tornando um dos motivos para guerras,


principalmente entre países que disputam o controle de bacias hidrográficas.
A luta pela exploração ocorre em todo o mundo, principalmente em continen-
tes que não possuem uma quantidade tão elevada desse recurso. Desta forma,
escolheu-se analisar conflitos transfronteiriços de regiões que sofrem com a
escassez desse recurso, mas que possuem grandes rios, como é o caso do Nilo
na África e dos rios Indo e Ganges na Ásia.
Tendo isso em vista, tratados surgem em todo o mundo com o intuito
de estabelecer medidas de compartilhamento da água, no que diz respeito ao
seu uso e a manutenção de sua qualidade. A riqueza de recursos hídricos do
Brasil, somada a sua extensa fronteira, fazem do país um dos mais propensos
a criação de acordos internacionais. Neste trabalho serão analisados três trata-
dos brasileiros internacionais, um em cada região fronteiriça do país: na região
norte, o Tratado de Cooperação Amazônica; na região centro-oeste, o Acordo
de Cooperação entre Brasil e Paraguai para o Desenvolvimento Sustentável e
a Gestão Integrada da Bacia Hidrográfica do Rio Apa, no Mato Grosso; e na
região sul, o Tratado da Bacia do Prata.
A escolha dos tratados da região sul e norte se deram principalmente
devido as suas grandes importâncias para o país: a importância econômica da
região da Bacia do Prata e a importância ambiental da Bacia Amazônica. Já a
escolha da Bacia do Rio Apa deve-se a possibilidade de analisar a formulação
de um tratado para uma bacia de menor importância, que não possui tanta
visibilidade. Ou seja, analisou-se tratados de bacias com maior riqueza e rele-
vância, como a Bacia Amazônica e a Bacia do Prata para entender como são
formados os acordos nessas regiões, além da analise de uma bacia de menor
relevância como a Bacia do Rio Apa, e seus consequentes interesses acordados.
Destarte, o objetivo deste trabalho é analisar as bacias hidrográficas como
um único sistema, formadas por todos os organismos ali presentes, como o
próprio homem, analisando os conflitos e os pactos desenvolvidos nesses ter-
ritórios. A pesquisa possui natureza qualitativa e, a partir do método dialético,
busca-se alertar sobre a gravidade hídrica atual. Para isso, será utilizada a técni-
ca de pesquisa de investigação indireta, por meio de pesquisas bibliográficas e
documental de autores nacionais e estrangeiros.
A pesquisa foi movida pelo questionamento a respeito da possibilidade
de apropriação dos recursos hídricos, assim busca-se uma análise tanto da
questão da privatização, como das questões do controle de rios pelos Estados.
Desta forma, tal trabalho visa analisar os conflitos gerados em torno
da apropriação da água, para isso é importante perceber que a Terra é um
único ecossistema, além de se ter uma noção sobre as bacias hidrográficas,
usando como base a legislação brasileira. Desenvolve-se também uma análise
de conflitos de bacias internacionais a partir do caso da Bacia do Rio Nilo,
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 37
além do estudo de tratados internacionais assinados pelo Brasil. Analisar-se-á
a possibilidade de uma gestão descentralizada dos recursos hídricos, além de
um pacto global, que visa um desenvolvimento sustentável da água, mas que
preocupa-se mais com a preservação desse bem. Com isso, torna-se imprescin-
dível uma análise dos tratados internacionais e de obras de autores renomados.
O objetivo mundial deve ser a implementação de uma gestão sustentável da
água, baseada no uso racional e respeitoso desse recurso.

2. TERRA: UM ECOSSISTEMA INTERLIGADO

Para buscar entender melhor o meio ambiente e as consequências climáti-


cas, advindas da exploração exacerbada dos recursos naturais, deve-se primeiro
entender o Planeta Terra como um conjunto, um único ecossistema interli-
gado. Tal percepção fundamenta-se no fato de que ações praticadas em uma
parte do globo podem ter suas consequências estendidas a todo o planeta.
Um exemplo recorrente é o degelo da Antártida, causado principalmente pela
emissão de poluentes das indústrias das grandes cidades.
Neste contexto, ganha extrema importância a preservação da água, já que
a mesma é fonte vital para sobrevivência na Terra, entretanto, sua preservação
não pode ocorrer isoladamente da preservação de florestas. O grande exemplo
é a Amazônia, onde estima-se que existam cerca de 600 bilhões de árvores.
Cada árvore com copa de 20 metros lança diariamente cerca de 1000 Litros
de água para a atmosfera. Esta água se transforma nos “rios voadores” que
graças aos ventos que sopram do oceano, levam chuvas para outros países
da América e outras regiões do Brasil como, por exemplo, a Região Sudeste,
compreendendo-se deste modo a Amazônia como o ar-condicionado da Terra,
por sua grande dispersão de chuvas para outras regiões, mais um exemplo de
interligação no planeta1.
Nessa perspectiva é interessante analisar o pensamento do britânico Ja-
mes Lovelock, ele formulou uma hipótese denominada Hipótese Gaia, onde
afirma que o planeta é um único organismo, ou melhor, um “superorganis-
mo vivo”. Desse modo, ainda de acordo com a Hipótese Gaia, os efeitos do
aquecimento global para a vida humana e de outras espécies são irreversíveis
e, segundo o cientista, a saída seria buscar formas de minimizar tais efeitos.
O planeta irá sobreviver, o que devemos fazer é tentar salvar uma parte da
humanidade. Caso contrário, de acordo com suas previsões, nas próximas
décadas, principalmente a partir de 2040, cerca de 80% da população humana
morreria, os demais 20% viveriam em alguns locais onde a temperatura não

1
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Curso Água e Educação Ambiental. Disponível em: <http://
ava.mma.gov.br/>. Acesso: 20 jul. 2017.
38 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

iria subir muito e onde ainda choveria o mínimo para poder plantar, esses
locais o próprio autor chamou de “ilhas-botes-salva-vidas”2.
O grande gerador da catástrofe iminente, segundo Lovelock, é a superpopula-
ção humana, que emite muitos gases e que destrói grandes áreas para a agricultura.
A continuidade das atuais atitudes, no que diz respeito à exploração dos recursos
da Terra, ao contrário do que se pensa não destruiria esse organismo, pois segundo
o autor, Gaia seria mais forte que os homens e somente atingida superficialmente
por suas ações. Assim a grande questão é encontrar uma saída para não permitir a
extinção humana, pois foram necessários 3,5 bilhões de anos para desenvolver-se
um animal capaz de pensar e agir conscientemente e talvez não surja outra espécie
com essas capacidades. E como dito pelo autor, seriamos o sistema nervoso de
Gaia, nossa extinção seria uma grande perda para o planeta3.
O pensamento de Lovelock se faz importante para este trabalho justa-
mente porque ele considera o planeta um “superorganismo”, onde todos os
integrantes agem juntos em uma espécie de cooperação4. Foi essa ajuda mútua
que possibilitou o desenvolvimento do ser humano e é ela que tem se mos-
trado a alternativa para tentar atenuar, e talvez reverter, o presente estado do
planeta. O entendimento de que ações em uma parte do mundo resultam em
efeitos em outro é um grande passo para a responsabilização internacional de
agentes que degradam o meio ambiente.

2.1. Século XX: um primeiro olhar para a questão ambiental

A gestão das águas passou a ser pensada no mundo após as grandes trans-
formações causadas pelas Revoluções Industriais e pelas duas Grandes Guer-
ras. A partir das Revoluções Industriais ocorridas primeiro na Inglaterra e
depois estendidas ao restante do mundo, com a incorporação de máquinas
para produção de bens de consumo, a capacidade industrial de processamento
de matérias primas cresceu vertiginosamente. É crível salientar que atrelado a
esse aumento da produção industrial, houve um equivalente aumento no uso
da água. Os recursos hídricos passaram a ser afetados tanto em quantidade,
devido ao uso nas indústrias e pelo consumo humano, quanto em qualidade,
pelo despejo de esgoto doméstico e industrial5.

2
LOVELOCK, JAMES. Gaia: alerta final. Título original “the vanishing face of gaia: a final warning”.
Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010.
3
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Curso Água e Educação Ambiental. Disponível em: <http://
ava.mma.gov.br/>. Acesso 20 jul. 2017.
4
LOVELOCK, op. cit., p. 16-17.
5
CÁNEPA, Eugênio Miguel; PEREIRA, Jaildo Santos; LANNA, Antonio Eduardo. Água e economia.
In: BICUDO, Carlos E. de M.; TUNDISI, José Galizia; SCHEUENSTUHL, Marcos C. Barnsley (orgs.).
Águas do Brasil: Análises estratégicas. São Paulo, Instituto de Botânica, 2010, p. 43-54.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 39
Nos últimos séculos, a superprodução do capitalismo levou a exploração
desmedida do meio ambiente, além do que, não se tinha noção dos problemas
que essa exploração desenfreada poderia trazer. Devido à demanda exacerbada
de água para suprir as necessidades industriais, ainda no fim do século XX co-
meçaram a surgir os primeiros indícios de que medidas teriam que ser tomadas
diante de tal problemática6. Muitas conferências começaram a surgir promoven-
do pactos a nível mundial para com a responsabilidade sobre o uso da água.
O grande impulsionador, nesse período, do movimento ambientalista
foi o livro de Rachel Carson intitulado de Primavera Silenciosa, publicado
em 1962, que alertava sobre os perigos do uso de inseticidas como o DDT -
Dicloro-Difenil-Tricloroetano. Seu título poético, na verdade, é uma alusão ao
que poderia ocorrer com o prolongamento do uso de pesticidas, a primavera
silenciosa seria provocada pela morte dos pássaros, quando não se ouviria
mais o seu canto na estação das flores.
A obra contribuiu para que surgisse em 1972 um relatório intitulado “Os
limites do crescimento” elaborado pelo Clube de Roma, formado por cientis-
tas, industriais, políticos e ambientalistas, que alertavam sobre os problemas
que essa exploração poderia trazer. A partir daí, cabe destaque a Conferência
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente de 1972 em Estocolmo e em es-
pecial a Conferência Internacional sobre Água e Meio Ambiente de 1992,
realizada em Dublin. Esta começa a alertar sobre a disponibilidade hídrica e
a discutir temas como a participação social na gestão desse recurso, além da
importância de dar um valor econômico a água, buscando criar uma forma de
consciência ecológica.
Ainda em 1992, ocorre a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento - ou Cúpula da Terra - no Rio de Janeiro, onde
se percebe claramente a necessidade de conciliar o desenvolvimento e a sus-
tentabilidade, sendo aprovada a Agenda 21, uma tentativa de desenvolvimento
sustentável em escala global.
Nesse contexto, os estados brasileiros começam a criar leis pautadas em
alguns princípios abordados nessas conferências como a gestão descentraliza-
da da água, ou seja, a participação social nas decisões, um dos marcos da Lei
das Águas7. Visava-se ainda uma análise da água como um bem público e com
valor econômico, para fomentar um uso consciente desse bem, porém não

6
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CAPTAÇÃO E MANEJO DE ÁGUA DE CHUVA, ABCMAC.
Declaração de Dublin sobre água e desenvolvimento sustentável. Disponível em: <http://www.ab-
cmac.org.br/files/downloads/declaracao_de_dublin_sobre_agua_e_desenvolvimento_sustentavel.pdf>.
Acesso em: 25 out. 2017.
7
Ao analisar mais profundamente, nota-se que a grande aceitação desse modelo de participação está rela-
cionada ao momento político vivenciado, pois o país acabara de sair de uma ditadura e a democracia era
proclamada em todos os cantos da sociedade brasileira.
40 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

transformando-a em um produto, além de estabelecer a relevância das bacias


hidrográficas.

2.2. A questão da remunicipalização

Um dos pontos positivos atualmente em escala mundial, referente a ques-


tão hídrica, é o recente movimento de reestatização de empresas de forneci-
mento de água. Um movimento importante que revela o pensamento de que a
água não deve ser considerada um produto, mas sim um bem natural.
Nas últimas décadas do século XX, o movimento neoliberal atingiu as
empresas de abastecimento de água no mundo inteiro, através das Parcerias
Público-Privadas. O principal argumento para essa parceria é a suposta maior
eficiência dos órgãos privados, entretanto, a privatização pode transformar a
água em uma mercadoria, dotada apenas de valor econômico. A empresa que
possuir seu domínio poderá “dificultar” o acesso à água, pois já que esta é
um produto, seu preço está sujeito ao mercado e tem seu valor reajustado por
este, tornando a população carente a mais afetada por um possível aumento
de preços8. A água não pode ser vista como um produto, ela é necessária para
a subsistência humana, é um direito humano e dificultar o acesso à água é
atentar contra a própria vida humana.
Dessa forma, a partir do final do século passado e início deste século
ocorreram inúmeros protestos, principalmente na América do Sul. Em países
como Peru e Bolívia, milhares de pessoas nas ruas chamaram a atenção do
mundo para a questão da privatização da água9. Um movimento que resul-
tou na reestatização de 267 empresas de água desde a virada do milênio, em
cidades como Berlim e Paris, por exemplo, e mostram que é importante não
transformar a água em mais um produto capitalista, já que a água é um direito
existencial humano e todos possuem o direito de acesso à água de qualidade e
na maioria dos casos a iniciativa privada não prioriza tais valores10.
Assim é de fundamental importância ressaltar que a reestatização não sig-
nifica em si uma melhor distribuição da água, mas que a privatização, nestes
casos, resultou em seu encarecimento e portanto, numa maior dificuldade em
seu acesso nos países em que foram implementadas. Deste modo, a reestatiza-
ção significou uma valorização do direito fundamental a água e por isso seu
destaque neste trabalho é importante.

8
CARNEIRO, Júlia Dias. Enquanto Rio privatiza, por que Paris, Berlim e outras 265 cidades rees-
tatizaram saneamento? Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/brasil-40379053>. Acesso
em: 31 ago. 2017.
9
TENDER, Sílvio. Encontro com Milton Santos: O mundo global visto do lado de cá. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=-UUB5DW_mnM>. 2006. Acesso: 10 out. de 2017.
10
CARNEIRO, op. cit.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 41
3. LEI DAS ÁGUAS E O DESTAQUE DADO ÀS BACIAS
HIDROGRÁFICAS

A Lei n° 9.433 de 1997 que ficou conhecida como Lei das Águas, acaba
de completar 20 anos e é o grande marco da legislação brasileira no tocante
ao meio ambiente. Essa lei institui a Política Nacional de Recursos Hídricos
(PONAREH) que é a responsável pela criação do Sistema Nacional de Geren-
ciamento de Recursos Hídricos (SINGREH). O SINGREH é o encarregado
pela aplicação de tudo que é previsto na PONAREH, sendo constituído de
diversos órgãos com diferentes níveis de atuação, em âmbitos nacional, esta-
dual e local11.
Tal lei é baseada no modelo francês de participação social nas decisões,
tendo em vista que a França foi um dos pioneiros a assumir uma forma
de gestão descentralizada. No Brasil, assim como na França, o território é
dividido em bacias hidrográficas, e as decisões sobre os problemas de cada
bacia devem ser resolvidos pelos diferentes atores sociais durante os comitês
de bacia. A Lei das Águas ainda regulamenta a outorga de direito de uso dos
recursos hídricos, a cobrança pelo uso desse bem e garante enorme impor-
tância às bacias e seus comitês.

3.1. O que são as Bacias Hidrográficas?

Um dos grandes marcos da lei das Águas é a importância dada às bacias


hidrográficas. Assim, para se ter uma melhor noção dessa região, é importante
compreendê-la de maneira geográfica, como também de maneira sistêmica.
Portanto, para entender o real funcionamento de uma bacia hidrográfica é
fundamental uma análise global desse território, com isso a bacia deve ser
compreendida em sua completude, pois o que ocorre em uma parte dela reflete
nas demais. Desta forma, por exemplo, se um agricultor coloca agrotóxicos na
sua plantação e este atinge o rio em um ponto, o restante da bacia será afetada.
A bacia hidrográfica, segundo sua definição geográfica, é uma região na
qual toda a água escoa para um único ponto, o estuário, ela é formada pelo rio
principal e seus afluentes. Tendo isso em vista, pode-se entender que mesmo
uma cidade grande está inserida em uma região hidrográfica, já que a sua água
escoa para um determinado ponto, desta maneira também deve ser local de
atuação dos órgãos do SINGREH e de participação pública da sociedade na

11
BRASIL, Lei Nº. 9.433, 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria
o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21
da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a
Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
L9433.htm>. Acesso em: 25 out. 2017.
42 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

gestão dos recursos hídricos. A divisão de duas bacias é feita pelos chamados
divisores de água, normalmente em uma elevação onde a água que escoa por
um lado insere-se em uma bacia, enquanto a que escoa para o outro lado inse-
re-se numa outra bacia. A Lei das Águas definiu essas regiões como o local de
atuação do SINGREH e de implementação da Política Nacional de Recursos
Hídricos (PONAREH)12.
Outro bom exemplo para entender essa relação sistêmica nas bacias hi-
drográficas são as tão comuns usinas hidrelétricas. Para isso devemos estar
cientes dos impactos ambientais que a construção de uma hidrelétrica pode
produzir, onde os mais notórios são: mudança no percurso dos rios, inun-
dações em áreas antes não inundadas, afetando a sua fauna e flora, além do
desmatamento de áreas que serão ocupadas pelo novo leito do rio. No caso
de hidrelétricas construídas no leito do Rio Amazonas ou de algum de seus
afluentes, os efeitos provavelmente serão sentidos em mais de um país diante
da dimensão da Bacia do Rio Amazonas, desse modo as discussões acerca da
utilização da água dessa bacia não podem ser tomadas apenas por um dos
países, mas em conjunto com todos os outros integrantes desta bacia, sendo
necessária a implementação de Tratados Internacionais.

3.2. Os Comitês de Bacias: uma gestão descentralizada

O comitê de bacia é o órgão deliberativo de cada bacia e tem por objeti-


vos, como salienta a própria Lei das Águas no seu artigo 38:

I- promover o debate das questões relacionadas aos recursos hídricos e articu-


lar a atuação das entidades intervenientes; II- arbitrar, em primeira instância
administrativa, os conflitos relacionados aos recursos hídricos; III- aprovar o
Plano de Recursos Hídricos da bacia[..]13.

Ainda segundo a Lei, os comitês devem ser compostos por representantes


da União, dos Estados e do Distrito Federal cujo território se situe, ainda que
parcialmente, além dos municípios que integram a bacia, dos seus usuários e
das entidades civis com atuação comprovada na bacia, buscando refletir os
inúmeros interesses de cada região hidrográfica.
Entretanto, nota-se ainda uma composição majoritária de alguns inte-
resses nos comitês, herança ainda da falta de educação voltada para a área e
do baixo nível participativo da população. A lei busca justamente uma demo-
cratização, contudo, na realidade os indivíduos que integram esses conselhos

12
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Curso Água e Educação Ambiental. Disponível em: <http://
ava.mma.gov.br/>. Acesso 20 jul. 2017.
13
BRASIL, Lei Nº. 9.433, 8 de janeiro de 1997, loc. cit.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 43
não representam verdadeiramente as classes populares . Logo, percebe-se uma
14

grande falha na realização dos comitês, pois grande parte da população desco-
nhece a existência desses conselhos que vivem da “participação social”, outro
motivo para a não participação desses grupos é a extrema burocratização des-
ses debates.

4. BACIAS HIDROGRÁFICAS TRANSFRONTEIRIÇAS

Um problema recorrente na modernidade diz respeito às relações interna-


cionais de países que possuem em comum uma bacia hidrográfica importante.
Assim, quando uma bacia hidrográfica está situada em mais de um país con-
figura-se uma Bacia Hidrográfica Internacional ou Transfronteiriça. Usando
a perspectiva anterior de que a bacia deve ser entendida em sua integralidade,
nota-se que medidas desenvolvidas em um país podem gerar consequências
em outros países, é justamente essa a questão das bacias tranfronteiriças, a
passagem de um país para outro de consequências, que podem ser positivas
ou negativas.
Daí surge a necessidade de um tipo de gestão feita em conjunto entre os
Estados envolvidos, caso contrário é corriqueiro o surgimento de conflitos
internacionais de disputa sobre a utilização dos recursos hídricos, para isso é
importante entender também a noção de país a jusante e a montante.
A água de um rio faz um percurso que vai da nascente para a foz. A
nascente está a montante e a foz está a jusante. Esses aspectos são de estrita im-
portância para o entendimento do funcionamento de uma bacia transfrontei-
riça. Os Estados a jusante recebem o fluxo de água com um desconto da água
utilizada pelos países a montante, também podem receber qualquer alteração
na qualidade desse recurso. Tais alterações recebem o nome de externalidades,
que são consequências de ações praticadas em outros países. Em alguns casos,
os países a jusante podem ser os causadores de externalidades, como no caso
de represas que podem alterar o nível do curso de água dos países a montante.
Esse repasse de problemas de um país para outro é o grande gerador de con-
flitos relacionados a bacias hidrográficas, e o que faz surgir a necessidade de
tratados internacionais.
Portanto, devido ao compartilhamento de uma bacia hidrográfica, de-
senvolve-se involuntariamente uma relação entre esses Estados, podendo ser
uma relação de cooperação, quando possuem o mesmo objetivo e decidem
se ajudar, como na construção de uma hidrovia que beneficiará os dois terri-
tórios, ou em outros casos, essa relação se configura conflituosa, quando um

14
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Curso Água e Educação Ambiental. Disponível em: <http://
ava.mma.gov.br/>. Acesso 20 jul. 2017.
44 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

integrante se sente prejudicado em decorrência do mau ou excessivo uso desse


recurso por um outro país. A partir daí a problemática passa a ser política e
infelizmente os órgãos internacionais, como a Organização das Nações Uni-
das (ONU), em muitos casos não são neutros, defendendo muitas vezes os
interesses de um país com maior influência no órgão, já que mesmo sendo
internacionais, essas instituições são gerenciadas e mantidas pelos próprios
países, que acabam interferindo tanto em favor da cooperação como muitas
vezes em favor do conflito. Com isso, Tatemoto afirma existir uma assimetria
de poder nas relações internacionais15.

4.1. Impasses na Bacia do Rio Nilo

Localizado no nordeste africano, o Nilo é o segundo rio mais longo do


mundo. Sua bacia está dividida em dez países Burundi, Egito, República De-
mocrática do Congo, Eritreia, Etiópia, Ruanda, Sudão, Uganda, Tanzânia e
Quênia, que são inteiramente dependentes dos recursos desse rio. O país onde
o rio deságua é o Egito, o mais forte militar e economicamente dentre o grupo,
enquanto os países a montante são extremamente pobres, dentre os dez países
do grupo, oito estão entre os países menos desenvolvidos das Nações Unidas16.
Essa desproporcionalidade de força fez com que o Egito conseguisse manter
o controle da região durante os últimos séculos, mesmo sendo o país mais a
jusante, ou seja, o último país a receber as águas do rio consegue controlar a
bacia, até mesmo na proporção desse recurso usado por cada país. Nos últimos
anos, todos os Estados da região têm apontado maior demanda de recursos
hídricos, o Egito temeroso pela redução das águas no Nilo, principalmente no
período de seca, torna o ambiente propenso à guerra.
Alguns tratados no decorrer da história foram criados principalmente
para beneficiar os países a jusante como Egito e Sudão. Muitos foram acor-
dados ainda no período de colonização europeia no continente, sendo a
Grã-Bretanha – colonizadora de Egito e Sudão - e a Itália – colonizadora da
Eritreia - os dominantes da região. Em 1891 a Itália, diante de um tratado
com a Grã-Bretanha, se comprometeu a não desenvolver projetos de irrigação
que afetasse significativamente o fluxo do Atbara, um afluente do Nilo. Em
1929, Grã-Bretanha e Egito acordaram que nenhuma obra, que prejudicasse
o abastecimento do Egito, seria realizada no Nilo. Em 1953, esses dois países
ainda decidiram pela elevação da represa Owen Falls, de geração de energia na

15
TATEMOTO, Letícia CB. Poder e conflito em bacias hidrográficas internacionais. Dissertação
(Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-graduação em Rela-
ções Internacionais. Programa de Pós-graduação, Belo Horizonte, p. 30-31, 2011.
16
Ibid., p. 70.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 45
Uganda, elevando o nível do lago Vitória deixando mais água para irrigação
no Egito. Em 1959, Sudão e Egito determinaram que o volume de 84 bilhões
de metros cúbicos de água fosse dividido, cabendo ao Egito 55,5 bilhões e ao
Sudão 18,5 bilhões de metros cúbicos. O que mostra justamente a soberania
dos países a jusante, no Nilo17.
Desenvolveram-se, no plano internacional, projetos de estudos e ajuda na
formação de cooperação dos países da bacia. No entanto, esses esforços não
foram bem-sucedidos, mas contribuíram para o surgimento de um espírito
cooperativo, originando a Iniciativa da Bacia do Nilo – NBI - em 1999, um
projeto de transição até que se forme um acordo permanente18.
Nos últimos anos algumas convenções entre os países menos privilegia-
dos da bacia têm deixado Egito e Sudão insatisfeitos, um exemplo é o “Acordo
de Entebbe”, assinado por Etiópia, Uganda, Tanzânia, Quênia e Ruanda, em
2010. O acordo se opõe aos antigos tratados que beneficiaram Egito e Sudão
na utilização das águas do Nilo, como o de 1959, propondo uma distribuição
mais equitativa da água, gerando mais tensão na região. Egito e Sudão são de-
pendentes economicamente do Nilo, por isso, essa é uma questão de segurança
para os países19. A situação no Nilo é uma questão de conflitos históricos e
não estamos perto de resolver tais conflitos, talvez estejamos até mesmo dando
um passo adiante no conflito.

4.2. Índia e seus conflitos hídricos

A Índia é um dos países com uma das maiores populações e com maior
desigualdade social no mundo. Possui conflitos históricos com seus vizinhos,
principalmente Paquistão e Bangladesh, esses três países no tempo de coloni-
zação britânica - de 1858 à 1947 - formavam um único país. A divisão desse
vasto território acabou por dividir duas grandes bacias, de um lado Paquistão
e Índia agem cooperativamente na bacia do Nilo, já no Ganges a Índia domina
totalmente o seu curso, afetando a população de Bangladesh.
O rio Indo banha parte do território da Índia e do Paquistão, sua princi-
pal nascente está localizada no Tibet, cruzando a fronteira indiana para depois
chegar ao Paquistão, além disso, seus principais tributários estão na Índia. A
economia do Paquistão é dependente de seus sistemas de irrigação, ou seja, em
um conflito entre esses dois países a Índia poderia sufocar a economia paquis-
tanesa. Uma questão importante de se levantar é que ambos os países possuem
conflitos históricos na busca do domínio da região da Caxemira, fonte de
17
TATEMOTO, 2011, p. 73.
18
Ibid., p. 77-79.
19
Ibid., p. 80.
46 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

vários rios e afluentes do Indo. No entanto, mesmo com tantas desavenças a


relação entre esses países é na maioria das vezes de cooperação, baseado princi-
palmente no Tratado de Água do Indo. A cooperação também é devida a inte-
resses econômicos, já que o Paquistão possui importante economia na região20.
Outro conflito hídrico com atuação indiana diz respeito ao rio Ganges,
o qual a Índia possui total domínio, regulando a quantidade de água que vai
para Bangladesh. A bacia do Ganges engloba Bangladesh, China, Índia e Ne-
pal, entretanto, quase 80% do território da bacia está na Índia. Bangladesh é
o país mais a jusante da bacia e é um dos países mais pobres do mundo, não
possuindo força econômica que possa interessar a Índia, nem força bélica, que
possa intimida-la. Alguns acordos entre Bangladesh e Índia foram assinados,
como o Acordo das Águas do Ganges, em 1977, no entanto Bangladesh ainda
sofre com a diminuição do acesso a água no seu território21.
Assim percebe-se, que mesmo o Paquistão possuindo um potencial de
conflito maior com a Índia, os interesses econômicos fazem o país ceder mais
água para o Paquistão, enquanto Bangladesh sofre por não ter nada a oferecer.

4.3. Tratados de Bacias Internacionais Brasileiras

Os tratados internacionais visam estabelecer medidas entre países para


o desenvolvimento sustentável de bacias hidrográficas conjuntas, ou melhor,
bacias hidrográficas internacionais, que englobam o território de mais de uma
nação. Esses acordos reforçam ainda mais a noção de que a bacia deve ser en-
tendida em sua totalidade.
Um exemplo de tratado internacional brasileiro é o Tratado de Coope-
ração Amazônica (TCA) formada por oito países Bolívia, Brasil, Colômbia,
Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela, com o objetivo de:

promover o desenvolvimento harmônico de seus respectivos territórios ama-


zônicos, de modo a que essas ações conjuntas produzam resultados equitativos
e mutuamente proveitosos, assim como para a preservação do meio ambiente
e a conservação e utilização racional dos recursos naturais desses territórios 22.

20
TZINGUÍLEV, Wladimír. Os conflitos internacionais sobre recursos hídricos. Disponível em:
<http://www.jornal.ceiri.com.br/os-conflitos-internacionais-sobre-recursos-hidricos/>. Acesso: em
31 out. 2017.
21
TATEMOTO, 2011, p. 90-92.
22
BRASIL. Decreto nº 85.050, de 18 de agosto de 1980. Promulga o Tratado de Cooperação Ama-
zônica, concluído entre os Governos República da Bolívia, da República Federativa do Brasil,
da República da Colômbia, da República do Equador, da República Cooperativa da Guiana, da
República do Peru, da República do Suriname e da República da Venezuela. Tratado de Coo-
peração Amazônica. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1980-1987/decreto-
85050-18-agosto-1980-434445-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 7 out. 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 47
Entretanto, tal acordo não responsabiliza verdadeiramente os países,
pois como mostra o artigo quarto do referido tratado: “As Partes Contratan-
tes proclamam que o uso e aproveitamento exclusivo dos recursos naturais
em seus respectivos territórios é direito inerente à soberania do Estado e
seu exercício não terá outras restrições senão as que resultem do Direito
Internacional”23. Aqui se reconhece mais uma vez o princípio da soberania,
que dessa forma passa a servir a interesses individualistas, já que, apesar da
preservação dos recursos naturais produzir ganhos universais, nem sempre
traz ganhos econômicos. Deste modo, entende-se que é necessário que a
civilização dita “evoluída” passe a espelhar-se mais nos povos “primitivos”,
nas comunidades tradicionais, para buscarem um desenvolvimento que não
agrida o meio ambiente.
Outro tratado importante na América do Sul é o Tratado da Bacia do
Prata adotado por Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai, em 1969,
onde afirmam que: “As partes contratantes convêm em conjugar esforços com
o objetivo de promover o desenvolvimento harmônico e a integração física da
Bacia do Prata e de suas áreas de influência direta e ponderável”24.
Contudo, este acordo ganha ares mais voltados para as relações econô-
micas do que as ambientais. Alguns de seus pontos principais são a facilitação
e assistência em matéria de navegação, ao aperfeiçoamento das interconexões
rodoviárias, ferroviárias, fluviais, aéreas, elétricas e de telecomunicações e a
complementação regional mediante a promoção e estabelecimento de indús-
trias de interesse para o desenvolvimento da Bacia25.
Já o Acordo de Cooperação entre Brasil e Paraguai para o Desenvolvi-
mento Sustentável e a Gestão Integrada da Bacia Hidrográfica do Rio Apa,
assinado em 2006, possui uma perspectiva voltada justamente para a sustenta-
bilidade, o desenvolvimento não é apriorístico como afirma o artigo primeiro:
“As partes estabelecerão uma estreita cooperação para promover o desenvolvi-
mento sustentável e a gestão integrada da Bacia Hidrográfica do Rio Apa”26.
As principais diretrizes desse acordo dizem respeito à utilização racional, equi-
tativa e sustentável da água para fins domésticos, urbanos, agropecuários e
industriais; a solução dos problemas decorrentes do uso indevido das águas;
23
Ibid., Artigo IV.
24
BRASIL. Decreto n° 67.084, de 19 de agosto de 1970. Promulga o Tratado da Bacia do Prata.
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-67084-19-agosto-
1970-408584-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 26 out. de 2017.
25
Id. Ibid.
26
BRASIL. Decreto n° 7.170, de 6 de maio de 2010. Promulga o Acordo de Cooperação entre o
Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República do Paraguai para o
Desenvolvimento Sustentável e a Gestão Integrada da Bacia Hidrográfica do Rio Apa. 11 set.
2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D7170.
htm>. Acesso em: 7 out. 2017.
48 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

a proteção das áreas de mananciais de fontes superficiais e subterrâneas e a


regulamentação das vazões e o controle das inundações, por exemplo27.
Esses acordos fazem refletir se de fato são mecanismos na busca da pre-
servação ambiental ou apenas meios para se desenvolverem economicamente,
já que não se nota uma real responsabilização dos países. Uma vez que a inter-
ferência externa de outras nações pode ser vista como uma ameaça à soberania
de um Estado, o princípio da soberania prejudica a responsabilização dos
países, mesmo que suas ações tragam prejuízos ao meio ambiente. Os países,
com sua soberania, encobrem a destruição que produzem.

5. UMA SAÍDA UNIVERSAL

Nota-se, que a degradação ambiental e os conflitos internacionais são


provenientes, sobretudo, da exploração econômica da natureza. Em vista dis-
so, se a humanidade pretende subsistir para os próximos séculos deve repensar
esse modelo de desenvolvimento material. Desta forma, acredita-se que a saída
mais eficaz é um acordo global.
Como visto, a água ganhou valor econômico, o que foi de certa forma
necessário para refrear seu uso, mas em contrapartida empobrecedor do seu
real significado, como salienta Leonardo Boff quando afirma que a água é um
bem da natureza e um recurso hídrico, mas na respectiva ordem, ela é primei-
ro um bem da natureza e só depois um recurso hídrico, ou seja, reduzir esse
bem a recurso hídrico é empobrecê-lo28.
Como possuidora de valor econômico, a água se tornaria mais um dos re-
cursos naturais utilizados à exaustão, o que é ínfimo perto da sua importância
para a manutenção da vida na Terra. Diante desse valor a água é considerada,
pela ONU, um direito universal, e de acordo com seu Comitê de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais do Conselho Econômico e Social:

O direito humano à água atribui a todos água suficiente, segura, aceitável,


fisicamente acessível e a um preço razoável para usos pessoais e domésticos.
Uma quantidade adequada de água é necessária para prevenir a morte por
desidratação, para reduzir o risco de doenças relacionadas com água e para
prover água para cozinhar, consumir e para satisfazer necessidades pessoais,
domésticas e de higiene29.

27
Id. Ibid.
28
MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Curso Água e Educação Ambiental. Disponível em: <http://
ava.mma.gov.br/>. Acesso: 20 jul. 2017.
29
BRZEZINSKI, Maria Lúcia Navarro Lins. O direito à água no direito internacional e no direito bra-
sileiro. Confluências. vol. 14, n. 1. Niterói: PPGSD-UFF, dezembro de 2012, páginas 60 a 82. ISSN
1678-7145. Disponível em: <WWW.Confluências.uff.br>. Acesso em 12 de outubro.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 49
Considerando esse cenário, Leonardo Boff afirma a necessidade de se criar
uma cultura da água. Ainda segundo Boff é essencial o uso da racionalização
para preservá-la e para isso é necessário um pacto de uso da água, que deve ser
seguido por todos os governos e cidadãos do mundo. Essa cultura promoveria
um uso consciente que afetaria o próprio capitalismo, pois a racionalização
desse bem não traz nenhum tipo de lucro para o sistema, reafirmando que este
é pautado, muitas vezes, numa exploração irracional30.
A cultura da água seria uma forma de gerenciamento racional da água,
promovida a partir do engajamento dos diversos atores e usuários de tal re-
curso. Pautando-se na deliberação a respeito da gestão da água, o atendimento
as necessidades da população e a manutenção do meio ambiente equilibrado,
surgiriam como principal objetivo e não somente o favorecimento das grandes
corporações. Nesse aspecto, o principal exemplo de uma gestão participativa é
a França, cujo modelo inspirou o Brasil, como já citado.

CONCLUSÃO

A partir do exposto no decorrer deste trabalho, nota-se a importância da


Lei das Águas e da formulação de inúmeros mecanismos nela contidos, como
o SINGREH, além da relevância das bacias hidrográficas como um fórum de
discussão de todos os grupos sociais, em âmbito nacional, sendo fundamental
a disseminação da existência e da competência do órgão, para que não sirva
apenas a uma classe elitista. Levando em consideração esses órgãos, tais comi-
tês devem servir de base para a criação de órgãos semelhantes a nível global,
que tenham objetivos análogos aos desenvolvidos nestes órgãos locais, mas que
sejam pensados numa perspectiva internacional, contando com a participação
de todos os envolvidos em determinada região hidrográfica que abranja mais
de um país.
Visto isso, é indispensável a criação de comissões que possam visitar os
menos privilegiados nessas discussões, que muitas vezes nem sabem ou sen-
tem-se confortáveis em participar dos comitês, já que esses são muito forma-
lizados e burocráticos. A maioria desses povos possui uma excelente relação
com a natureza, como as comunidades tradicionais, um ótimo exemplo de
como explorar o meio ambiente de maneira sustentável, cultuando a natureza
e preservando-a. É necessária a participação das comunidades estabelecidas
nestas bacias, pois estas são partes integrantes do ecossistema local.
Logo, também é crucial a responsabilização internacional dos países, vis-
to que, a sobrevivência humana deve ser tratada com maior importância do

30
PENA, João Carlos Firpe. ‘Sem uma cultura da água, passaremos por grandes catástrofes’, alerta Leo-
nardo Boff. Revista do Minas. N° 114. Março de 2015.
50 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

que a soberania dos Estados. Esta é usada como pretexto para convalidar os
maiores desrespeitos ao meio ambiente e a humanidade, como o vivido atual-
mente onde o desenvolvimento exploratório e degradador do meio ambiente
são mais importantes do que o respeito à vida e o direito das próximas gera-
ções. A soberania brasileira transforma o país no dono de uma floresta que
serve a toda a humanidade, uma distorção de princípios. A soberania não deve
ser considerada superior à vida, ferindo diretamente esse bem, ao servir de base
para um discurso de exploração sem fim.
Assim, os tratados internacionais devem servir justamente para responsa-
bilizar os países e tentar impedir que destrua-se o planeta com o objetivo de
um desenvolvimento que no fim das contas pode ser inútil. Nosso objetivo
com esse trabalho não é indicar como tais acordos devem ser estabelecidos,
com suas condições próprias, mas sim explicar a importância de suas imple-
mentações, visto que para sua formulação muitos aspectos interferem em sua
elaboração, como os interesses políticos e econômicos, por exemplo.
É importante citar ainda o novo constitucionalismo latino-americano, as
propostas de países como Bolívia e Equador são assustadoramente inovadoras.
A personificação de entes como o rio, faz surgir inúmeras críticas de pessoas
que não buscam entender o objetivo de caracterizá-lo como ente jurídico,
passando a ser representados em tribunais. A valorização e a preservação desse
bem deve ser vista sempre como algo positivo.
Nota-se também através dos inúmeros tratados uma tentativa de coope-
ração, os gastos altíssimos com guerras fazem os países buscarem acordos. A
questão no Nilo é uma questão de conflitos históricos, tais conflitos não estão
próximos de serem resolvidos, estão, talvez, até mais próximos de serem agra-
vados, pois a chance de desabastecimento humano, previstas para as próximas
décadas, tem grandes chances de levar a uma guerra nessas regiões, por isso são
necessários acordos para regular a distribuição equitativa desse bem, partindo
inicialmente pela responsabilização dos países que agredindo a natureza ofen-
dam a vida humana na terra.
Contudo, vimos que a água é um bem que não pode ser apropriado nem
mesmo por um Estado, tendo em vista que os rios são móveis, nem por em-
presas, sabendo-se que o sistema capitalista volta-se para o lucro e a exploração
desse bem é diferente da exploração de outros recursos como o petróleo, por
exemplo, pois quando este recurso desaparecer, com certeza buscar-se-á outra
fonte de energia para substitui-lo, enquanto a água é insubstituível, reafirman-
do mais uma vez a necessidade de se buscar acordos internacionais para sua
preservação. No entanto, percebe-se a importância destas instituições como
gestoras da água, possibilitando uma distribuição mais equitativa desse bem.
Um pacto mundial não pode ser visto como utópico, a sobrevivência da
humanidade passa a priori pelo respeito à água e a responsabilização pelo seu
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 51
mau uso, a cultura da água é urgente, não se pode deixar que a situação piore
até o ponto de um estado de degradação irreversível, como também não é cor-
reto que a escassez desse elemento sirva de discurso para a sua mercantilização.
É necessário preservar a água e por isso o pacto mundial é fundamental.
Nesse pacto devem estar incluídas a manutenção de todos os elementos que
condicionam a preservação da água, como a preservação das matas ciliares e
a preservação das florestas, esta última disseminadora da água para outras re-
giões. Nesse sentido é essencial entender que a água não possui um dono, não
é algo apropriável, ninguém a produziu ela já estava lá, assim, a humanidade
não pode agir como dono dela, sendo no máximo gestores desse elemento.
A população humana possui o direito fundamental de acesso à água, a não
preservação da água é a não preservação da vida.

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Capítulo 4
A Importância das Unidades de Conservação para
a Sustentabilidade do Meio Ambiente Marinho:
Uma Análise do Estado do Ceará a luz do
ODS Nº 14, da Agenda 2030
Jocasya Ferreira Firmeza

1. INTRODUÇÃO

O Brasil é dotado de uma riqueza inestimável em seu território costei-


ro e marinho, caracterizado por abranger uma extraordinária variedade de
ecossistemas emersos e submersos que abrigam inúmeras espécies de flora e
fauna. Além da diversidade de seres vivos e não-vivos, esses espaços naturais
destacam-se por possuírem grande importância para a economia, bem como
por proporcionarem benefícios essenciais para a sobrevivência da popula-
ção humana e para os demais tipos de vida existentes na Terra. Contudo,
observa-se que o ambiente costeiro e marinho é considerado um dos mais
complexos e frágeis de todo o planeta, fato que implica crescente preocupa-
ção em torno dos processos de degradação que essas regiões vêm sofrendo
com as atividades humanas1.
A poluição, a exploração excessiva de recursos, a ausência de programas e
políticas públicas e a falta de investimentos financeiros, estão entre as maiores
dificuldades enfrentadas2. Perante este dilema e considerando a importância
desse patrimônio natural e cultural, torna-se essencial que os indivíduos, como
parte integrante da natureza, adotem posturas que possibilitem a efetiva garan-
tia do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para
as presentes e futuras gerações.
Vê-se que as questões ambientais ainda demandam profundas mudanças
relacionadas, especialmente, a proteção e conservação das espécies e paisagens
existentes na esfera costeira e marinha. Com isso, a preocupação mundial

1
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Panorama da Conservação dos Ecossistemas Costeiros e
Marinhos no Brasil. Brasília, 2010.
2
LEUZINGER, Márcia Dieguez; SILVA, Solange Teles da. Unidades de Conservação Marinhas. In:
OLIVEIRA, Carina Costa de (Coord.). A exploração e a investigação na zona costeira, na plataforma
continental e nos fundos marinhos: aspectos institucionais e normativos ligados ao meio ambiente,
ao petróleo, à mineração e a energia renovável. Curitiba: Juruá, 2015, p. 255-287.
54 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

com a degradação dos ecossistemas costeiros e marinhos vem aumentando


substancialmente, impulsionando vários estudos que buscam favorecer pro-
postas de ações, programas e políticas institucionais viáveis para conter e, pos-
sivelmente, reverter às causas que conduzem ao comprometimento ambiental
dessas regiões. Uma maior efetividade a tais propostas é visualizada por meio
de acordos internacionais pactuados entre os países interessados na temática,
inclusive com a participação do Brasil, a exemplo da Convenção sobre Diver-
sidade Biológica (CDB) e da Agenda 2030, com o destaque do Objetivo de
Desenvolvimento Sustentável (ODS) nº14.
Aspecto comum registrado em ambos os instrumentos internacionais é
a forte preocupação direcionada ao desenvolvimento sustentável. De maneira
pontual as metas estabelecidas pela CDB se relacionam com a conservação
da diversidade biológica, dando ênfase na necessidade de especial e efetiva
proteção de determinadas regiões3. Já a Agenda 2030 possui um conteúdo
mais amplo e aponta objetivos a serem alcançados por meio do equilíbrio das
dimensões: econômica, social e ambiental, especificando seu cuidado com os
ecossistemas marinhos e costeiros no objetivo nº 144.
Nessa perspectiva, vale consignar que o Brasil vem contribuindo com a
apresentação de estratégias políticas que viabilizam a criação, conservação e
expansão de Espaços Territoriais Especialmente Protegidos (ETEP), tais como
o Cadastro Nacional de Unidades de Conservação (CNUC)5 e o Plano Estra-
tégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP)6.
A acepção de ETEP é ampla, mas dentre as suas espécies analisaremos as
Unidades de Conservação (UC) de uso sustentável, estabelecido pelo Sistema
Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), tendo em vista que se adéquam
perfeitamente as metas apresentadas na CDB e no ODS nº 14, da Agenda 2030.
Nessa perspectiva, o debate que se propõe enfrentar nesse trabalho diz
respeito à possibilidade de se promover a conservação e o desenvolvimento
sustentável no meio ambiente marinho através do estabelecimento de UCs,
analisando, pontualmente, a atuação do Estado do Ceará frente ao ODS nº
14, da Agenda 2030.

3
BRASIL. Decreto Legislativo 2, de 03 de fevereiro de 1994. Aprova o texto da Convenção sobre Di-
versidade Biológica. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decleg/1994/decretolegisla-
tivo-2-3-fevereiro-1994-358280-publicacaooriginal-1-pl.html> Acesso em 5 ago. 2015.
4
BRASIL. Organização das Nações Unidas no Brasil. Transformando nosso mundo: a agenda
2030 para o desenvolvimento sustentável. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/pos2015/agen-
da2030/>. Acesso em: 15 set. 2017.
5
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Cadastro Nacional de Unidades de Conservação. Disponível
em <http://www.mma.gov.br/areas-protegidas/cadastro-nacional-de-ucs>. Acesso em: 13 dez. 2016.
6
BRASIL. Decreto nº 5.758, de 13 de abril de 2006. Institui o Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas
– PNAP, seus princípios, diretrizes, objetivos e estratégias, e dá outras providências. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5758.htm> Acesso em 1 ago. 2015.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 55
Para uma tomada de posição mais realista acerca da matéria, demonstrar-
-se-á as necessidades de proteger os interesses ambientais, expressamente con-
sagrados na ordem constitucional, bem como as possibilidades de promover
uma fiel implementação de UCs. Afinal, é necessário que junto com a criação
desses espaços de proteção haja aplicação de políticas públicas efetivas e com-
patíveis com a realidade ambiental local, capaz de exercer influência direta no
contexto econômico e socioambiental.
Por tudo isso, faz-se importante o estudo e a pesquisa sobre a referida
temática, a fim de esclarecer os pontos relevantes sobre o assunto e, sobretudo,
para fomentar estratégias efetivas que permitam o equilíbrio entre a conser-
vação dos ecossistemas marinhos, a geração de renda, o desenvolvimento e a
melhora na qualidade de vida das populações em geral, garantindo, assim, um
direito fundamental ao meio ambiente.

2. UNIDADES DE CONSERVAÇÃO

Conforme observa-se na CDB, CF/88 e Lei nº 6.938/81, uma das estraté-


gias direcionadas a proteção dos elementos e patrimônios naturais é a criação
e implementação de ETEP. Nesse sentido, vale destacar que a CDB define em
seu artigo 2º que área protegida “significa uma área definida geograficamente
que é destinada, ou regulamentada, e administrada para alcançar objetivos
específicos de conservação”.
Atenta-se que, nos moldes do artigo 8º da CDB, as partes signatárias
deste Tratado, dentre elas o Brasil, devem, na medida do possível, estabelecer
um sistema de áreas protegidas ou áreas onde medidas especiais precisem ser
tomadas para conservar a diversidade biológica.
Com isso, reconhecendo a importância da conservação das características
naturais existentes em nosso país, o Brasil além de criar um sistema de prote-
ção especial de determinadas áreas, ainda ofereceu a todos os ETEPs garantia
constitucional, permitindo-lhes, assim, uma maior estabilidade frente aos ou-
tros espaços que não sejam assim classificados7.
Cumpre esclarecer que, de acordo com o artigo 225, §1º, incisos I a VII
da CF/88, a acepção de ETEP oferecida pelo texto constitucional apresenta-se
de forma ampla, contudo, a lei criada8 com objetivo de regulamentar tal dis-
positivo constitucional institui o SNUC e trata unicamente das UCs. Diante

7
LEUZINGER, Márcia Dieguez; SILVA, Solange Teles da. Unidades de Conservação Marinhas. In:
OLIVEIRA, Carina Costa de (Coord.). Meio ambiente marinho e direito: exploração e investigação
na zona costeira, na plataforma continental e nos fundos marinhos. Curitiba: Juruá, 2015, p. 255-287.
8
Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição
Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9985.htm> Acesso em 8 ago. 2015.
56 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

dessa perspectiva, valioso apresentar o conceito de UC trazido pelo artigo 2º,


inciso I, da Lei nº 9.985/00:

unidade de conservação - espaço territorial e seus recursos ambientais, incluin-


do as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente
instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites defini-
dos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias ade-
quadas de proteção

Impende asseverar que o SNUC estabelece que as UCs dividem-se em


dois regimes básicos, cada um com características específicas que permitem a
seguinte classificação:

As UCs são divididas em dois grupos: as de proteção integral e as de uso


sustentável. No primeiro grupo, também denominado UCs de uso indireto,
não se admite a presença humana nas áreas. De acordo com a Lei 9.985/2000
fazem parte dessa categoria as Estação Ecológica; Reserva Biológica; Parque
Nacional; Monumento Natural e Refúgio de Vida Silvestre. As UCs de uso
sustentável, ou de uso direto, permitem a presença humana, inclusive a utiliza-
ção econômica da área dentro de critérios ambientalmente controlados. Fazem
parte desse grupo: Área de Proteção Ambiental; Área de Relevante Interesse
Ecológico; Floresta Nacional; Reserva Extrativista; Reserva de Fauna; Reserva
de Desenvolvimento Sustentável; e Reserva Particular do Patrimônio Natural.9

Ou seja, conforme a finalidade a que se destinarão, as UCs poderão ser


classificadas como “de proteção integral” ou “de uso sustentável”. Cumpre
destacar que, independente dessa classificação, grande pode ser a contribuição
das UCs para o meio ambiente marinho, tendo em vista que os espaços com
delimitação especial de proteção tornam-se grandes aliados na luta contra a
degradação desse patrimônio cultural e natural que, inclusive, vem aumentan-
do substancialmente.
Todavia, vale frisar que, dentre as duas modalidades, as UCs de uso sus-
tentável podem, ainda, oferecer subsídio para a implementação do ODS nº 14,
da Agenda 2030, pois conforme depreende-se do trecho citado acima, longe
de ser mero espaço intocável, as UCs de uso sustentável possibilitam a conser-
vação da biodiversidade juntamente com a geração de emprego e renda, o que
favorece a defesa do meio ambiente conjugada com a contribuição do desen-
volvimento social e econômico, tanto local quanto nacional.
Por estas razões, as UCs de uso sustentável configuram-se como uma
estratégia de proteção perfeitamente adequada às metas da Agenda 2030, que

9
WANDSCHEER, Clarissa Bueno. Unidades de Conservação e violação dos objetivos legais de prote-
ção. In: Revista Direito Ambiental e sociedade. v. 6, n. 2. 2016. p. 201-224.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 57
buscam alcançar o desenvolvimento sustentável por meio do equilíbrio das
três dimensões: econômica, social e ambiental.

3. A SUSTENTABILIDADE DO MEIO AMBIENTE MARINHO

No tocante ao desenvolvimento sustentável, a Agenda 203010 passou a


ser o instrumento jurídico de maior destaque nos últimos tempos, pois de-
clara um plano de ação global, constituído por 17 Objetivos (ODSs) e 169
metas correspondentes, em busca de um mundo mais sustentável e resiliente.
Enfatiza-se que, dada à relevância da “vida na água”, o ODS nº 14 destina-se,
especialmente, a “conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos
recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável”.
Interessante pontuar que, em apoio à implementação do ODS nº 14,
recentemente aconteceu a Conferência sobre os Oceanos O evento ocorreu
em junho de 2017, na sede das Nações Unidas, contando com a participação
dos principais chefes de Estado e de Governo, bem como da sociedade civil e
outras partes interessadas11..
Conforme destaca o documento final12 da Conferência dos Oceanos, a
importância do oceano para o nosso planeta é imensurável. Logo, a fim de
evitar o declínio da saúde e produtividade do oceano e seu ecossistema, que
chegam a prejudicar, inclusive, o desenvolvimento e crescimento econômico
sustentável, torna-se necessário uma abordagem mais atenta e profunda sobre
diversos temas que o cerca.

3.1. Da necessidade de criação e efetiva implementação de UCs


Marinhas

Acredita-se que a implementação de estratégias direcionadas a proteção


e conservação marinha é fundamental para preservação ambiental. Nesse sen-
tido, a especial e efetiva proteção de determinados espaços destaca-se como
interessante ferramenta destinada à preservação ambiental.
No documento final13 da Conferência dos Oceanos é apresentado al-
gumas medidas que devem ser aplicadas, em caráter de urgência, em prol da
conservação sustentável dos oceanos, mares e recursos marinhos. Dentre elas,

10
NAÇÕES UNIDAS. Plataforma Agenda 2030. Disponível em: <http://www.agenda2030.com.br/>.
Acesso em 02 out. 2017.
11
NAÇÕES UNIDAS. ONU divulga versão em português do documento final da Conferência dos
Oceanos. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/onu-divulga-versao-em-portugues-do-documento-
final-da-conferencia-oceanos/>. Acesso em 30 ago. 2017.
12
Id. Ibid.
13
Id. Ibid.
58 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

destacamos o item 13, j, pois menciona a atenção que deve ser oferecida para
as áreas marinhas protegidas, vejamos:

13. Nós apelamos a todas as partes interessadas para que conservem e utilizem


de forma sustentável os oceanos, mares e recursos marinhos para o desenvolvi-
mento sustentável através das seguintes ações, as quais devem ser aplicadas
com caráter de urgência, inclusive a partir do aproveitamento de instituições
e parcerias já existentes:
[...]
(j) Sustentar o uso efetivo e apropriado de ferramentas baseadas em área,
inclusive áreas marinhas protegidas e outras abordagens integradas e inter-
setoriais, incluindo planejamento espacial marinho e gestão integrada da zona
costeira com base na melhor ciência disponível, bem como o engajamento de
partes interessadas e a aplicação de abordagens ecológicas e preventivas, consis-
tentes com o direito internacional e de acordo com a legislação nacional, para
aprimorar a resiliência oceânica e melhorar a conservação e o uso sustentável
da biodiversidade marinha.

O trecho citado acima demonstra que a comunidade global reconhece


a contribuição que as áreas de proteção podem oferecer para melhoria da
conservação e do uso sustentável da biodiversidade marinha e apelam pela
contribuição de todas as partes interessadas.
É importante salientar que todas as normas direcionadas para a proteção
dos recursos naturais são de grande valia, porém não basta que sejam apenas
instituídas. Como esclarecem Luiz Araújo Júnior e Liziane Oliveira:

[...] problemas de planejamento e implementação, que implicam na ineficácia


de políticas públicas gerais, provocam, no caso das políticas públicas ambien-
tais, o agravamento dos danos causados ao meio ambiente, que por suas pró-
prias características tendem a ser de difícil reversibilidade e, em alguns casos,
possuem caráter de irreversibilidade. 14

Com isso, percebe-se que a mera criação de espaços territoriais de prote-


ção, transformados em UCs, não é suficiente para garantir que eles alcancem
o fim a que se destinam, tendo em vista que sua finalidade é assegurar a con-
servação do patrimônio natural e cultural constante em determinadas áreas, o
que demanda de administração eficaz.
A adequada gestão de políticas públicas é imprescindível para o pleno
cumprimento a que se destinam, uma vez que sua fragilidade geralmente
resulta em ineficiência. Nessa perspectiva, vale evidenciar que muitos dos
14
ARAÚJO JÚNIOR, Luíz Ricardo Santana de; OLIVEIRA, Liziane Paixão Silva. Políticas públicas e
meio ambiente: o caso do mexilhão dourado. In: Revista de Direito Ambiental e Socioambientalismo.
v. 2, n. 2. jul/dez, 2016. p. 169-185.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 59
espaços protegidos no Brasil não obtiveram êxito no pleno cumprimento de
seus objetivos15.
Essa situação pode ser perfeitamente observada no Parque Estadual Ma-
rinho da Pesca da Risca do Meio (PEMPRIM), tendo em vista que, apesar da
UC Marinha situada no Estado do Ceará possuir ampla diversidade de flora
e fauna marinha capaz de permitir a formação de belos cenários, não possui
efetiva implementação.
Logo, como forma de exemplificar a viabilização jurídica da proteção e
conservação sustentável por meio da criação de UCs Marinhas no Estado do
Ceará, o PEMPRIM ganha destaque para nossos estudos.

3.1.1. Uma análise da UC Marinha situada no Estado do Ceará

Conforme dados disponibilizados pela SEMACE16, o Estado do Ceará


possui algumas áreas naturais protegidas que foram cadastradas como UCs de
proteção integral ou de uso sustentável, se enquadrando nessa última categoria
uma UC Marinha, localizada próximo ao Porto do Mucuripe de Fortaleza/CE,
situado no litoral do Estado – Nordeste do Brasil, registrada como PEMPRIM.
O espaço delimitado pela UC Marinha obteve especial proteção em 05 de
setembro de 1997, após a publicação da Lei Estadual nº 12.717/97. Sua criação
ocorreu após intensa mobilização da sociedade civil organizada em prol do
combate as ações irrestritas que vinha ocorrendo sobre aquele ecossistema.
Dentre os objetivos ambientais, sociais e econômicos apresentados pelo dis-
positivo normativo supracitado podemos mencionar o de resguardar habitats,
incentivar a prática artesanal da pesca e promover atividades subaquáticas17.
O PEMPRIM contempla área rica em diversidade de fauna e flora aquáti-
cas. Abrange em sua integralidade um território submerso, assim, é caracterís-
tico por não possuir ilha ou qualquer espaço emerso e por apresentar favorável
disponibilidade de peixes e belas paisagens subaquáticas. É frequentado por
pescadores locais e mergulhadores, porém quase que desconhecido por outras
pessoas, até mesmo por aqueles que residem na capital cearense18.

15
MARCON, Victor Trevilin Benatti. A vinculação do poder público na criação de unidade de conserva-
ção. In: Revista Veredas do Direito: direito ambiental e desenvolvimento sustentável. v. 11. n. 22.
Belo Horizonte: Arraes, jul/dez 2014, p. 175-198.
16
CEARÁ. Secretaria do Meio Ambiente. UCs estaduais. Disponível em: <http://www.semace.ce.gov.br/
monitoramento/areas-naturais-protegidas/ucs-estaduais/>. Acesso em: 5 jul. 2017
17
LIMA FILHO, Joseilton Ferreira de. Análise da efetividade de manejo de áreas marinhas protegidas:
um estudo do Parque Estadual Marinho da Pedra da Risca do Meio. Tese de Dissertação de Mestrado
– Curso Desenvolvimento e Meio Ambiente, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza/CE, 2006.
18
CEARÁ. Secretaria do Meio Ambiente. Parque Estadual Marinho da Pedra da Risca do Meio. Dis-
ponível em: <http://www.semace.ce.gov.br/2010/12/parque-estadual-marinho-da-pedra-da-risca-do-
meio/> Acesso em: 20 ago. 2017.
60 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Junto a essa baixa ou quase inexistente divulgação da UC Marinha na


região, o PEMPRIM apresenta outros pontos negativos que demonstram fragi-
lidades em sua gestão consequentemente comprometem o pleno cumprimento
dos objetivos da UC em análise, dentre os quais destacamos: o conflito norma-
tivo entre sua lei de criação (lei estadual) e a lei que foi posteriormente criada
para regulamentar as UCs (lei federal), a ausência de um plano de manejo, a
falta de investimentos direcionados à sua administração, bem como à pesquisa
voltada a conservação do Parque, e a ineficiência ou ausência de fiscalizações
que objetivem o combate de atividades ilegais19.
Diversas irregularidades já foram detectadas na área do Parque20, e em-
bora existam limitações impostas para a prática de determinadas atividades,
algumas delas vêm sendo plenamente desrespeitadas, tais como a pesca ilegal,
embarcações de coleta de organismos ornamentais, presença de caçadores sub-
marinos e disposição de lixo.
Diante disso, observa-se que a mera criação de UCs Marinha é insuficien-
te para a conservação sustentável que se almeja, pois existe a necessidade de
sua efetiva implementação. No caso em comento, deve-se buscar meios efetivos
que possibilitem o PERPRIM alcançar suas finalidades. Dentro dessa perspec-
tiva, acredita-se que deva haver uma adequação da Lei Estadual à Lei Federal,
bem como a criação de um plano de manejo adequado à realidade local.
Torna-se evidente que, conforme a legislação ambiental federal, o PER-
PRIM não se enquadra na classificação que lhe foi imposta, uma vez que o
SNUC proíbe qualquer atividade extrativista em um parque. Dessa forma,
apesar da legislação estadual defini-lo como UC de uso sustentável, em âmbito
federal é considerado como UC de uso integral.
Por esse motivo se dá a proposta de adequação legislativa, tendo em vista
que um dos objetivos de criação do PERPRIM foi promover a pesca artesanal,
o que colide com a essência de uma UC de uso integral.
Compreende-se que esse desacordo normativo gera como consequência
a geração de conflito de uso e o não reconhecimento da UC pelos órgãos
ambientais nacionais, o que lhe impede a obtenção de investimentos federais.
Com isso, a atitude mais prudente a ser tomada será a de adequar o
PERPRIM ao SNUC. Para tanto, só existem duas possibilidades de tomada de
decisão, quais sejam: para manutenção da UC na modalidade Parque, deverá
haver a imposição de regras severas em prol da preservação, inclusive com a

19
LIMA FILHO, Joseilton Ferreira de. Análise da efetividade de manejo de áreas marinhas protegidas:
um estudo do Parque Estadual Marinho da Pedra da Risca do Meio. Tese de Dissertação de Mestrado
– Curso Desenvolvimento e Meio Ambiente, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza/CE, 2006.
20
SOARES, Marcelo de Oliveira; et al. Gestão de unidades de conservação marinhas: o caso do Parque Esta-
dual Marinho da Pedra da Risca do Meio, NE – Brasil. In: Revista de Gestão Costeira Integrada. v. 11, n.
2. jun 2011, p. 257-268. Disponível em: <http://www.aprh.pt/rgci/rgci261.html>. Acesso em 3 ago. 2015.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 61
proibição da pesca em todos os segmentos; ou, para evitar qualquer vedação
às atividades permitidas, deverá haver a modificação da categoria de UC de
proteção integral para UC de uso sustentável.
Dentre as duas alternativas apresentadas, entende-se que a segunda opção
é a mais vantajosa, tendo em vista que essa adequação possui compatibilidade
com os objetivos propostos na criação do PERPRIM. Logo, a sua escolha evi-
taria maiores prejuízos para as comunidades tradicionais.
É preciso ter em mente que o termo “Parque” agregado ao nome da UC
em análise pode ter ocorrido de maneira aleatória e diante da posterior regu-
lamentação da legislação ambiental federal se faz necessário sua modificação
para uma categoria de manejo coerente com as atividades propostas em sua
criação, até porque a UC não tem como objetivo prejudicar as atividades co-
mumente praticadas ali naquela região.
A criação de plano de manejo também possui fundamental importância
para a efetivação dos objetivos do PERPRIM, tendo em vista que esse docu-
mento é responsável por estabelecer diretrizes para o “uso da área e o manejo
dos recursos naturais” 21.
Nesse aspecto, interessante destacar que a SEMACE realizou reunião22 em
prol do PERPRIM, objetivando traçar ações que protejam ambientalmente o
espaço, por meio da integração de algumas instituições que colaborem com
a gestão da unidade de conservação, elaborando estratégias para o desenvol-
vimento de trabalhos e estudos no local. Na oportunidade foram discutidos
assuntos como a sinalização da UC, levantamento de espécies existentes, plano
de manejo e revisão de sua extensão.
É essencial que haja a cooperação de todos os envolvidos necessários à
concretização dos objetivos de uma UC, sejam eles integrantes das comuni-
dades tradicionais, da sociedade civil ou do Poder Público, pois como bem
pontua Paula Emília23 “o Estado sozinho não poderia realizar com a necessá-
ria eficiência a tarefa da salvaguarda ambiental. Para alcançar o cumprimento
deste mister, precisa ser ajudado pelo corpo social”.
Com isso, percebe-se que o Estado do Ceará obteve grande avanço na
busca pela conservação ambiental sustentável com a especial proteção desti-
nada ao espaço marinho pertencente ao PEMPRIM. Todavia, a fragilidade

21
ARAÚJO, Luis Cláudio Martins. Espaços Territoriais Especialmente Protegidos. In: Revista da AGU.
Disponível em: <www.agu.gov.br/page/download/index/id/1312626>. Acesso em: 20 ago. 2015.
22
PATRÍCIA, Luanna. Unidade de conservação marinha cearense é tema de reunião na Semace.
Disponível em: <http://www.semace.ce.gov.br/2011/05/unidade-de-conservacao-marinha-cearense-e-
tema-de-reuniao-na-semace/>. Acesso em 13 ago. 2015.
23
BRASIL, Paula Emília Moura Aragão de Sousa. A proteção do meio ambiente como dever funda-
mental. Tese de Dissertação de Doutorado – Curso de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortale-
za/CE, 2016.
62 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

em sua gestão demonstra forte violação a seus objetivos legais, o que dificulta
a concretização dos propósitos para os quais foi criado e consequentemente
distancia-se das metas estabelecidas no ODS nº 14, da Agenda 2030.

CONCLUSÃO

Os acordos internacionais pactuados entre os países interessados nas te-


máticas relacionadas ao meio ambiente marinho tem evidenciado a preocu-
pação mundial em reverter às causas que conduzem ao comprometimento
desse patrimônio cultural e natural. Diante da análise de alguns instrumentos
internacionais verificou-se que a Convenção sobre Diversidade Biológica e a
Agenda 2030, com destaque do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº
14, enfatizam a importância do desenvolvimento sustentável.
Em estudo mais detalhado, observou-se que o Brasil vem adotando estra-
tégias favoráveis à conservação dos ambientes marinhos, tais como delimita-
ção e conservação de espaços territoriais de proteção. Contudo, notou-se que
existem UCs no território brasileiro, a exemplo do PEMPRIM – UC Marinha
localizada no Estado do Ceará, que não possui real implementação de seus
objetivos, o que dificulta a fiel colaboração de nosso país com os acordos
internacionais.
O PEMPRIM ganhou destaque em nossa pesquisa, pois os conflitos que
impedem a concretização dos propósitos para os quais essa UC Marinha foi
criada podem ser relacionados à falta interesse na aplicação de políticas públicas.
Não podemos desprezar que objetivo principal da UC Marinha em comento foi
possibilitar um desenvolvimento fundado em bases sustentáveis e igualitárias
para a sociedade como um todo, sendo permitido o uso dos recursos ali exis-
tentes, desde que observado as regras estabelecidas no dispositivo legal. Logo, a
fragilidade em sua gestão demonstrou forte violação a seus objetivos.
Dentro dessa perspectiva, concluiu-se que é evidente que a regulação de
normas direcionadas a proteção ambiental marinha possui fundamental im-
portância, contudo, a adequada gestão de políticas públicas é imprescindível
para o pleno cumprimento a que se destinam tais normas, uma vez que sua
fragilidade prejudica a concretização de direitos já implementados tanto na
ordem jurídica nacional, quanto na internacional.

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Capítulo 5
Impactos Nocivos Causados pelo Terminal
Portuário do Pecém/CE: O Índice de Desempenho
Ambiental (IDA) à Luz da Legislação Ambiental
Ricardo da Silva Araújo
Rogério da Silva e Souza
Juliana Wayss Sugahara

INTRODUÇÃO

As atividades portuárias da sociedade moderna vêm produzindo gran-


des quantidades de poluentes sedimentares, tóxicos e persistentes nas águas
e solos, acarretando assim um desequilíbrio dos ecossistemas. Muitos desses
resíduos são gerados pela indústria petroquímica e outros são depositados no
ambiente marinho através da constante atividade típica portuária observada
ao longo de toda a costa litorânea, gerando assim a deterioração do solo ou de
rochas em pequenas partes, aglutinando-as.1
Nesse contexto, o Terminal Portuário do Pecém, localizado na Esplanada
do Pecém, s/nº, Distrito do Pecém, município de São Gonçalo do Amarante, a
cerca de 60 km da capital do Estado do Ceará, Fortaleza – Brasil, foi planejado
com a fundamentação de atender as demandas das atividades industriais de
base voltadas à siderurgia, refino de petróleo para produção de seus derivados
e, por fim, geração de energia elétrica.2
Apesar do modelo de construção do Terminal Portuário do Pecém ser off
shore , garantindo assim um maior potencial técnico de segurança ao objeto
3

que visa tutelar (o bem ambiental)4, observou-se que isto não foi suficiente
para tolher os vários efeitos negativos ocorridos desde a sua construção.

1
SILVA, R. S. Produção de Biosurfactante por linhagens de Penicillium spp. Monografia. Recife. UFPE. 2007.
2
CEARÁPORTOS. Companhia de Integração Portuária do Ceará. Disponível em: <http://www.cearapor-
tos. ce.gov.br/index.php/institucional/apresentacao>. Acessado em 03 out. 2017.
3
Modelo Off Shore é considerado como uma alternativa de avanço tecnológico, principalmente no
que se refere à preservação da linha da costa, pois a corrente litorânea não é muito comprometida e o
transporte de sedimentos continua a ocorrer por entre os pilares de ligação entre a estrutura do porto
e a retroágua portuária.
4
ARAÚJO, S. C. O licenciamento ambiental no Brasil: Uma análise jurídica e jurisprudencial. Disserta-
ção de Mestrado. Ceará. UFC. 2012. p. 47.
66 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Dentre esses efeitos negativos cita-se, por exemplo, o fato de as piscinas de


marés naturais terem sido gradualmente assoladas, resultando em uma redu-
ção da biodiversidade, verificada pela eliminação de pelo menos 25 espécies de
peixes endêmicas daqueles habitats5. Outro efeito negativo observado foi que
a atividade portuária típica cria compostos tóxicos que contaminam os sedi-
mentos por, principalmente, cromo, cobre, nitrogênio, zinco e tributilestanho
(TBT). Sendo, este último, um composto altamente lesivo presente nas tintas
e usado nos cascos dos navios como anti-incrustante.6
Logo, para tornar as atividades portuárias do Pecém compatíveis com a
preservação do meio ambiente, bem como para melhor conhecer e avaliar o
atendimento à legislação e a adoção de boas práticas ambientais, imprescindí-
vel foi o acompanhamento da gestão ambiental portuária através do Índice de
Desempenho Ambiental – IDA.7
Com efeito, no que concerne à legislação imperativa norteadora das ati-
vidades portuárias no Terminal do Pecém, há de se destacar inicialmente a
Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81), seguida pela
“constitucionalização” da proteção ambiental através da promulgação da
Constituição Federal de 1988, mais precisamente com a previsão do capítulo
especializado (art. 225) que passaria então a tratar do tema.8
Destarte, tais edições normativas contribuíram significativamente para a
consolidação do Direito Ambiental, bem como para a afirmação e resgate de
valores ecológicos no sistema jurídico brasileiro. Ademais, também serviram
de regramentos a Lei do Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (Lei nº
7.661/88) e a Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433/97).9,10
Isto posto, ressalta-se que a proteção à diversidade de espécies deve ser
feita, não somente porque pode influenciar os ecossistemas em outra nação,
e nem porque é um direito fundamental humano, mas sim porque possui
valor per si 11. Logo, a prevenção ou reparação desses efeitos sempre será feita
em benefício da conservação de um “bem jurídico comum da humanidade”.

5
FREITAS, M. C. et al. Impact of the Construction of the Harbor at Pecém (Ceará, Brazil) upon Reef Fish
Communities in Tide Pools. Food Science and Technology. vol. 52, n. 1, p. 187-195, Jan-Feb, 2009.
6
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Ecotoxicology and Environmental Safety. vol. 135, p. 137-151. Jan. 2017.
7
BRASIL. Agência Nacional de Transportes Aquaviários. Disponível em: <http://portal.antaq.gov.br/
index.php/ institucional/a-antaq/>. Acessado em: 10 out. 2017.
8
ANTUNES, P. B. Direito Ambiental. 4ª ed. Versão ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 93.
9
SARLET, I. W. et al. Constituição e Legislação Ambiental comentadas. São Paulo. Ed. Saraiva. 2015.
10
BRASIL. Lei nº 7661, de 16 de maio de 1988. Institui o plano nacional de gerenciamento costeiro e dá
outras providências. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/L7661.htm>.
Acessado em 03 out. 2017.
11
FRANCO NETO, D. S. Direito Internacional do Meio Ambiente: Reconstruindo seus Fundamentos.
Revista de Direito Constitucional e Internacional. vol. 76. p. 307-322. Jul-set, 2011.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 67
Logo, considerando o crescente desequilíbrio dos ecossistemas ocasio-
nado pelo aumento da atividade portuária, o presente trabalho possui os ob-
jetivos de identificar os principais impactos ambientais nocivos na área do
Terminal Portuário do Pecém, exemplificar a normatização ambiental vigente
acerca do tema e analisar os valores e parâmetros ambientais de maior impor-
tância do IDA do Terminal Portuário do Pecém.

2. IMPACTOS AMBIENTAIS NOCIVOS NO TERMINAL


PORTUÁRO DO PECÉM

Poluição dos mares é a interação e aporte antropogênico no ambiente


marinho de substâncias ou energia que dispendem efeitos deletérios, em escala
local ou global, sobre os recursos vivos e a saúde humana, restringindo assim
as possibilidades de sua utilização.12
Nesse sentido, são muitos os impactos ambientais previsíveis na insta-
lação de terminais portuários. Dentre eles, pode-se citar a alteração da linha
costeira, alteração do padrão hidrológico, destruição ou alteração das áreas
naturais costeiras (habitats e ecossistemas), supressão da vegetação, modificação
e alteração no fundo dos corpos d’água, poluição da água, do subsolo e do ar,
perturbações diversas por trânsito de veículos pesados em ambientes urbanos,
geração de odores e ruídos, interação com outras atividades como pesca, tu-
rismo, aquicultura e recreação, atração de vetores de doenças, introdução de
espécies exóticas, entre outros.13
Neste amplo universo de impactos ambientais nocivos, é de se observar
que além das degradações que naturalmente ocorrem no Terminal Portuário
do Pecém, a área costeira sofreu com o transporte e sedimentação de areia em
porções mais a oeste da região, ocasionando o soterramento de algumas pro-
priedades particulares presentes na orla.14
Ocorreram também pequenas lagoas no entorno das praias costeiras. E
esse fato não existia antes da construção deste terminal portuário. Em reali-
dade, essas pequenas lagoas são ambientes novos no sistema costeiro e seus
efeitos sobre o macroambiente ainda precisam ser observados.15

12
GESAMP. Pollution in the open ocean: a review of assessment and related studies. Joint Group of Ex-
perts on the Scientific Aspects of Marine Pollution, n. 79, p.68. 2009.
13
BRASIL. Agência Nacional de Transportes Aquaviários. ANTAQ. Disponível em: <http://portal.antaq.
gov.br/ index. php/meio-ambiente/indice-de-desempenho-ambiental/estrutura-e-indicadores/>. Acesso
em: 09 out. 2017.
14
FREITAS, M. C; et al. Impact of the Construction of the Harbor at Pecém (Ceará, Brazil) upon Reef Fish
Communities in Tide Pools. Food Science and Technology. vol. 52, n. 1, p. 187-195, jan-feb, 2009.
15
MAGINI, C. et al. A influência da estrutura portuária na dinâmica costeira da Vila do Pecém, Ceará,
Brasil. Revista de Geologia. vol. 24, n. 2, 136-149, 2011.
68 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Adicionalmente, a degradação constante e gradual das piscinas de marés


por sedimentação contínua, ampliada pelo fluxo constante de navios, têm
reduzido a disponibilidade de abrigos e alimentos nesses ambientes, gerando
assim o desaparecimento da fauna local, ou, no mínimo, forçando a alteração
de habitat, levando consequentemente a redução de níveis ecológicos confor-
me foi observado pelo desalojamento ou eliminação de vinte e cinco espécies
locais de peixes.16
Bem como a atividade portuária típica do Pecém lança diretamente no
ambiente aquático compostos altamente tóxicos que comprometem a biodi-
versidade local, uma vez que alteram as propriedades químicas e físicas da água
e atuam diretamente nos processos metabólicos da fauna e flora estuarina.17
Ademais, muitos desses compostos lançados são responsáveis por uma
nociva interação antropogênica, em especial o cromo, cobre, nitrogêncio,
zinco e tributilestanho (TBT). Este último, derivado do elemento químico
estanho, é altamente tóxico por sua característica orgânica de se acumular
com o passar dos anos e produzir efeitos extremamente deletérios nas popu-
lações silvestres.18
E, alheia aos perigos dos efeitos tóxicos do TBT, a produção mundial desse
composto cresceu exponencialmente ao longo dos anos por ser amplamente in-
dicado para uso na agricultura como pesticida, como conservante de madeiras,
desinfetantes19 e, principalmente, como biocidas anti-incrustantes em barcos, na-
vios e cais de portos como estratégia para combater a incrustação em superfícies
submersas no oceano por moléculas orgânicas e por organismos marinhos. 20
A maior problemática referente ao uso do TBT é que a liberação desse
composto ocorre de modo gradativo das pinturas anti-incrustantes, ocasio-
nando os efeitos toxicológicos em organismos que não são alvos, ou seja,
em organismos marinhos que não compõem necessariamente a comunidade
bioincrustante aderida à parte submersa dos navios.21
Logo, todos esses impactos negativos designam um único estágio das ativi-
dades portuárias do Pecém, no qual cada vez mais tomam corpo ações deletérias
provenientes de sua atividade típica. E, neste sentido, caminhar para um Estado

16
FREITAS, M. C. et al. loc.cit.
17
MOREIRA, L. B. et al. loc. cit.
18
COSTA, B. V. M. Toxicidade do Tributilestanho (TBT) para o Copépodo marinho Tisbe biminiensis.
Dissertação de Mestrado. Recife. UFPE. 2013. p. 19.
19
BORGES, L. M. S. Alguns aspectos da biologia de Thais haemastoma (Gastropoda: Muricidae) e a sua
utilização como espécie indicadora de poluição por TBT, nas águas do porto e marina de Ponta Delgada.
Estágio de licenciatura em biologia, Universidade dos Açores, Ponta Delgada. 1997. 133 p.
20
KIRSCHNER, C. M.; BRENNAN, A. B. Bio-inspired antifouling strategies. Annual Review of Mate-
rials Research. 42: 211-229 p. 2012.
21
CASTRO, I. B. Estudo do Imposex em Muricídeos do gênero stramonita (Mollusca: Gastropoda) no
nordeste do Brasil. Dissertação de mestrado. Ceará. UFC. 2005. p. 26.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 69
Democrático de Direito que tem como parâmetro a questão sustentável é tomar
como referência os contornos de um Estado de terceira dimensão.22
Assim, a boa doutrina vai refletir por uma coletividade sócio-estatal con-
figurada à luz do meio ambiente, decorrendo assim, um Direito ambiental que
venha a conformar as realidades de cada Estado no comprometimento que se
deve satisfazer progressivamente.23

3. LEGISLAÇÕES AMBIENTAIS

Neste cenário de impactos ambientais negativos ocasionados pelas ativi-


dades portuárias típicas, o Brasil leva em consideração um Direito ambiental
sofisticado juridicamente.
Dito isto, especificamente no que se refere à poluição ambiental, foi insti-
tuída a Lei de nº 5.357 em 17 de novembro de 1967. Esta foi a primeira lei bra-
sileira a discutir a temática da poluição marítima, normatizando penalidades
para as embarcações e terminais portuários ou fluviais que lançassem resíduos
poluentes em águas brasileiras.24
Todavia, esta lei foi plenamente revogada no dia 28 de abril de 2000,
quando entrou em vigência a Lei de nº 9.966/00 que dispõe sobre a prevenção,
controle e fiscalização da poluição causada por lançamento de óleo e outras
substâncias nocivas e perigosas em águas sob a jurisdição nacional. Motivo
pelo qual, recebeu popularmente o apelido de “Lei do Óleo”.
Tal lei absorveu as demandas internacionais voltadas ao combate à polui-
ção no transporte marítimo e operações portuárias, além de instituir definitiva-
mente os primeiros elementos de gestão ambiental implementados pelo setor.25
Posteriormente, foi instituído o Plano Nacional de Gerenciamento Cos-
teiro através da Lei de nº 7.661, de 16 de maio de 1988, como parte integrante
da Política Nacional do Meio Ambiente, que em seu artigo terceiro e incisos I,
II e III, prevê o zoneamento de usos e atividades na zona costeira.26

22
De acordo com Dimoulis, D. & Martins, L. (2007, p. 34-35), Estado de terceira dimensão ou Terceira
geração é definido como o Estado que garante os Direitos da Solidariedade ou Fraternidade, no qual está
o direito a um meio ambiente equilibrado, uma saudável qualidade de vida, progresso, etc. Essa geração
é dotada de um alto teor de humanismo e universalidade, pois não se destinavam somente à proteção
dos interesses dos indivíduos, de um grupo ou de um momento. Refletiam sobre os temas referentes ao
desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade.
23
Ibid., p. 34-35.
24
BRASIL. Lei nº 5.357, de 17 de novembro de 1967. Coletânea da Legislação Ambiental Aplicável no
Estado de Santa Catarina. Florianópolis. 2002, p. 481.
25
BRASIL. loc. cit.
26
Art. 3º. “O PNGC deverá prever o zoneamento de usos e atividades na Zona Costeira e dar prioridade
à conservação e proteção, entre outros, dos seguintes bens: I - recursos naturais, renováveis e não re-
nováveis; recifes, parcéis e bancos de algas; ilhas costeiras e oceânicas; sistemas fluviais, estuarinos e
70 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Após a recepção dessas normatizações “preambulares” no ordenamento


jurídico brasileiro, observa-se que o marco regulamentário mais significante
para o nosso direito ambiental foi a promulgação da Constituição Federal de
1988, uma vez que, o seu art. 225 traz a questão ambiental como um tópico
central no atual Estado de Direito brasileiro27. Cabe ainda citar que ao Estado
impõe-se a função primordial de resguardar os cidadãos contra todas as novas
formas de violação à sua dignidade e aos seus direitos fundamentais, uma vez
que não restam dúvidas acerca de sua dimensão ecológica.28
Assim, é notório e relevante a concepção de que a dignidade da pessoa
humana é princípio primordial e fonte de legitimação do sistema jurídico como
um todo, inclusive da necessidade de tutelar outras formas de vida29, logo:

Sempre que ocorre um dano ambiental, o gozo dos direitos humanos é colo-
cado potencialmente em perigo. Uma situação-padrão observada cada vez com
maior frequência é, por conseguinte, a exposição de indivíduos à poluição do
ar, água contaminada ou substâncias químicas poluentes.30

Neste sentido, observa-se que a preocupação com a preservação do am-


biente vem ganhando cada vez mais relevo tanto no cenário nacional quanto
no internacional. E, decorre desse paradigma o fato de que encontrar o am-
biente ecologicamente equilibrado diz respeito não somente ao direito à vida,
pura e simplesmente, mas também a qualidade desta.31
Complementarmente, após essa ampla valorização constitucional do di-
reito ambiental, foi instituída em 31 de agosto de 1991, a Política Nacional do
Meio Ambiente através da Lei de nº 6.938 que, em seu artigo segundo elenca
os seus objetivos endossando a necessidade da preservação, melhoria e recupe-
ração da qualidade ambiental propícia à vida. O artigo quarto versa acerca dos

lagunares, baías e enseadas; praias; promontórios, costões e grutas marinhas; restingas e dunas; florestas
litorâneas, manguezais e pradarias submersas; II - sítios ecológicos de relevância cultural e demais
unidades naturais de preservação permanente; e III - monumentos que integrem o patrimônio natural,
histórico, paleontológico, espeleológico, arqueológico, étnico, cultural e paisagístico”. Lei nº 7.661/88.
Institui o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro e dá outras providências.
27
Art. 225. “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do
povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988.
28
SILVEIRA, T. A.: SOUZA, L. R. O conflito de interesses econômicos e proteção ambiental na atividade
de dragagem portuária. Prima Facie. João Pessoa. PPGCJ. v. 15. n. 30. p. 05. 2016.
29
SARLET, I. W. et al. loc. cit.
30
BOSSELMANN, K. O Princípio da Sustentabilidade. Transformando direito e governança. Editora Re-
vista dos Tribunais. São Paulo, SP. 2015, p. 147.
31
SAENGSUPAVANICH, C. et al. Environmental performance evaluation of an industrial port and state:
ISO14001, port state control-derived indicators. Journal of Cleaner Production. n. 17, p. 154-161, 2009.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 71
objetivos específicos desta política e o artigo sexto cria o Sistema Nacional do
Meio Ambiente – SISNAMA.32,33
Os instrumentos mencionados nesta referida lei encontram a sua base
constitucional no artigo 225 da nossa Carta Magna, especificamente no pa-
rágrafo primeiro e seus incisos, dando maior importância ao licenciamento
ambiental como principal instrumento de prevenção do ambiente, servindo
estes de base para os demais instrumentos.34, 35
Desta forma, o licenciamento de empreendimentos e atividades com
significativo impacto ambiental de âmbito nacional ou regional, fica sob a
atribuição do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis – IBAMA, conforme preceitua a Resolução do Conselho Nacio-
nal do Meio Ambiente – CONAMA 237/97. E tal resolução também impõe
o licenciamento das atividades portuárias, possibilitando uma análise apro-
fundada do órgão licenciador competente em relação aos padrões ambientais
exigidos na legislação. 36
Na sequência, e com interesse em promover a auto-modernização e amplia-
ção do comércio internacional perante o mercado globalizado, a atividade portuá-
ria necessitou alongar a qualidade da gestão de seus serviços e de sua mão-de-obra.
Desse modo, nascia a Lei nº 8.630 de 25 de fevereiro de 1993, também conhecida
como Lei de Modernização dos Portos, que através de suas definições tinha como
objetivo promover amplas reformas na estrutura dos portos brasileiros.37
Além disso, ela pretendia ser um marco no segmento estruturante dos
portos por inserir questões ambientais nessas reformas portuárias. O tema, até
os dias atuais, ainda não foi adequadamente incorporado ao sistema portuário
brasileiro, uma vez que é possível observar ações desarticuladas resultantes
de uma visão que considera a regulamentação ambiental um fator que pode
ameaçar a competitividade das empresas.38
Esta lei manteve a sua vigência por um período de vinte anos, uma vez
que foi revogada por lei posterior de nº 12.815/2013. Assim, tal instrumento

32
ANTUNES, P. B. Direito Ambiental. 4ª ed. Versão ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2004, p. 93.
33
BRASIL. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente,
seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Coletânea da Legislação
Ambiental Aplicável no Estado de Santa Catarina. Florianópolis. 2002, p. 343.
34
______. Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA. Resolução nº 237, de 19 de dezembro de
1997. Coletânea da Legislação Ambiental Aplicável no Estado de Santa Catarina. Florianópolis. 2002,
p. 390-394.
35
TRINDADE, A. A. C. Direitos Humanos e Meio Ambiente. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1993, p. 23.
36
BRASIL. Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA. op. cit. p. 390-394.
37
STEIN, A. S. Curso de Direito Portuário. São Paulo: LTr, 2002, p. 266.
38
KITZMANN, D. I. S.; ASMUS, M. L. Gestão ambiental portuária: desafios e possibilidades. Revista de
Administração Pública. Rio de Janeiro, 40(6):1041-60, 2006.
72 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

legal só permaneceu operante e promotor de reformas estruturais nos dezoito


primeiros anos de atividade do Terminal Portuário do Pecém.39
Após a Lei de Modernização dos Portos, os recursos hídricos da atividade
portuária típica passaram a ser regidos pela Lei nº 9.433, de 08 de janeiro de
1997, também denominada de Política Nacional de Recursos Hídricos. Desta
forma, tal atividade deveria prezar pelo uso sustentável desses recursos.40
Tal instrumento normativo deixa expresso em seus dispositivos a clara in-
tenção do legislador em estabelecer uma gestão descentralizada e participativa no
tocante à Política Nacional de Recursos Hídricos, atribuindo aos entes federativos
uma ação coordenada entre si, bem como delegando aos municípios e ao Distrito
Federal a competência para promoção das políticas locais de interesse ambiental.41
Deve-se ressaltar também que apesar de toda essa evolução normativa
conferida ao direito ambiental brasileiro, no final do século XX ainda ha-
via grande carência legislativa acerca da disposição de regramentos específicos
para os casos de poluição marinha, constando apenas o artigo 15 da Política
Nacional do Meio Ambiente como o texto: “O poluidor que expuser a perigo
a incolumidade humana, animal ou vegetal, ou estiver tornando mais grave
situação de perigo existente, fica sujeito à pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três)
anos e multa de 100 (cem) a 1.000 (mil) MVR”.42
Nesse sentido, havia um hiato legislativo acerca de uma normatização
mais repressora aos crimes ambientais. Assim, abarcando o contexto vigente
à época, foi instituída em 12 de fevereiro de 1998 a Lei de nº 9.605, também
conhecida como Lei dos Crimes Ambientais. Este regramento trouxe previsões
específicas a serem aplicadas nos casos de poluição marinha, criminalizando
de modo efetivo, as condutas nocivas ao ambiente marinho, conferindo res-
ponsabilização penal ao agente infrator.43
Não distante à realidade legislativa brasileira, a legislação internacional traz um
amplo compêndio normativo acerca do tema. Dentre elas, a Convenção das Nações
Unidas sobre o Direito do Mar. Esta resultou da Terceira Conferência das Nações
Unidas sobre Direito do Mar e foi celebrada em Montego Bay, Jamaica, em 10 de
dezembro de 1982. Tendo sido ratificada pelo Brasil em 22 de dezembro de 1988.44

39
BRASIL. Presidência da República. Lei 8630, de 25 de fevereiro de 1993. Dispõe sobre o regime jurídi-
co da exploração dos portos organizados e das instalações portuárias e dá outras providências. Disponí-
vel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8630.htm> Acessado em 02 out. 2017.
40
______. Lei 9433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a política nacional de recursos hídricos e dá outras providên-
cias. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9433.htm>. Acessado em 03 out. 2017.
41
SARLET, I. W. et al. loc. cit.
42
MACHADO, P. A. L. Direito Ambiental Brasileiro. 12ª ed. Atual Amp. São Paulo: Malheiros Editores.
2004, p. 870-871.
43
Ibid., p. 870-871.
44
SOARES, G. F. S. Direito Internacional do Meio Ambiente: emergência, obrigações e responsabilida-
des. São Paulo: Atlas, 2001, p. 234-236.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 73
Esta convenção consagrou regras gerais comuns a todas as formas de po-
luição marinha estabelecendo aos Estados, em seu artigo 211, várias obrigações
de proteção e preservação do ambiente marinho, conforme texto:

Os Estados, atuando por intermédio da organização internacional competente ou


de uma conferência diplomática geral, devem estabelecer regras e normas de caráter
internacional para prevenir, reduzir e controlar a poluição do meio marinho pro-
veniente de embarcações e devem do mesmo modo promover a adoção, quando
apropriado, de sistemas de fixação de tráfego destinados a minimizar o risco de aci-
dentes que possam causar a poluição do meio marinho, incluindo o litoral, e danos
de poluição relacionados com os interesses dos Estados costeiros. Tais regras e nor-
mas devem, do mesmo modo, ser reexaminadas com a periodicidade necessária.45

Nesse sentido, há a obrigatoriedade do estabelecimento de regras e nor-


mas de caráter internacional por parte dos Estados com o objetivo de preven-
ção, redução e controle da poluição do ambiente marinho proveniente das
embarcações e das atividades típicas portuárias.
Ressalta-se aqui também o que preconiza a Agenda 2030 que em seu
Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 14, discorrendo acerca da
conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos
para o desenvolvimento sustentável.46
Nesse contexto, tal objetivo apresenta metas mais resilientes através da di-
minuição dos impactos ambientais nocivos com ajuda científica e tecnológica
para o manejo sustentável dos ecossistemas marinho e costeiro. Também versa
sobre planos de gestão e legislação para esses ambientes.47
Destarte, é importante frisar que por maior que seja o aparato legislativo
brasileiro e internacional aqui citados, os mesmos não se exaurem com esta
obra. Servindo apenas de base ou orientação para futuras pesquisas.

4. ÍNDICE48 DE DESEMPENHO AMBIENTAL (IDA) DO


TERMINAL PORTUÁRIO DO PECÉM

Neste universo de impactos ambientais nocivos causados pela instalação


do Terminal Portuário do Pecém e com o objetivo de uma concreta proteção

45
MARTINS, E. M. O. Direito marítimo internacional: da responsabilidade internacional pelos danos
causados ao meio ambiente marinho. Verba Juris. Ano 7, n. 7, p. 257-288, jan./dez. 2008.
46
ONU – ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Agenda 2030. ODS 14. Disponível em: https://
nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/. Acessado em: 10/10/2017.
47
SILVA, J. R. Agenda 2030 e Felicidade Interna Bruta: Uma Aproximação? Trabalho de Conclusão de
Curso. Niterói. UFF, 2016.
48
Segundo Siche et al. (2007, p.139-140), “o termo índice como um valor numérico que representa a cor-
reta interpretação da realidade de um sistema simples ou complexo (natural, econômico ou social),
74 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

e equacionamento destes impactos de forma mais sistemática, fez-se necessário


que o gerenciamento da infraestrutura e operação do transporte aquaviário
fossem regidos pelo princípio da sua compatibilização com a preservação do
meio ambiente. Surgindo daí o Índice de Desempenho Ambiental – IDA como
instrumento de acompanhamento e controle de gestão ambiental em instala-
ções portuárias. 49
Este índice permite quantificar e simplificar informações de forma a faci-
litar o entendimento do público e de tomadores de decisão acerca das questões
ambientais portuárias.50
Ele foi instituído por meio da Resolução de nº 2650, de 26 de setembro
de 2012 pela ANTAQ – Agência Nacional de Transportes Aquaviários. Esta
resolução traz instrumentos de acompanhamento e controle de gestão ambien-
tal em instalações portuárias que são avaliados por indicadores através de sua
eficiência e qualidade.51
O IDA é composto por 14 indicadores globais que são classificados em 4
categorias (Quadro 1). A primeira sendo a categoria Econômica-Operacional
que trata das ações da organização, estruturação e capacidade de resposta, bem
como de sua harmonia com as operações portuárias. A segunda categoria é a
Sócio-Cultural, responsável pela avaliação de métodos e ações sociais inseridas
na lógica ambiental. A terceira é a Físico-química onde são relacionadas às
ações de gestão dos possíveis tipos de poluição decorrentes da atividade por-
tuária. E, por último, existe a categoria Biológico-Ecológica que, por sua vez,
avaliam as questões mais diretamente relacionadas aos organismos presentes
nas áreas portuárias.52

utilizando, em seu cálculo, bases científicas e métodos adequados. O índice pode servir como um ins-
trumento de tomada de decisão e previsão, e é considerado um nível superior da junção de um jogo de
indicadores ou variáveis. O termo indicador é um parâmetro selecionado e considerado isoladamente ou
em combinação com outros para refletir sobre as condições do sistema em análise. Normalmente um
indicador é utilizado como um pré-tratamento aos dados originais”.
49
BRASIL. Agência Nacional de Transportes Aquaviários. ANTAQ. Disponível em: <http://portal.antaq.
gov.br/ index. php/institucional/a-antaq/>. Acessado em: 10 out. 2017.
50
Ibid. Acessado em: 10 out. 2017.
51
______. Agência Nacional de Transportes Aquaviários. ANTAQ. Resolução Nº 2650, de 26 de setembro
de 2012. Aprova os instrumentos de acompanhamento e controle de gestão ambiental em instalações
portuárias. Brasília, 2012.
52
BRASIL Agência Nacional de Transportes Aquaviários. ANTAQ. Disponível em: <http:// portal.antaq.
gov.br/index.php/ meio-ambiente/indice-de-desempenho-ambiental/>. Acessado em: 10 out. 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 75
Quadro 1: Indicadores e categorias que compõem o IDA

Econômica-Operacional Sócio-Cultural Físico-Química Biológico-


CATEGORIAS
-Ecológica
- Governança ambiental - Educação - Monitoramento - Biodiversi-
- Segurança ambiental da água dade
- Gestão das Operações - Saúde pública - Monitoramento
Portuárias do solo e material
- Gerenciamento de energia degradado
INDICADORES
- Custo e benefício das - Monitoramento do
ações ambientais ar e ruído
- Agenda ambiental - Gerenciamento de
Gestão condominial do resíduos
porto organizado
Disponível em: http://portal.antaq.gov.br

A inclusão desse índice em todas as áreas portuárias brasileiras, inclusive


no Terminal Portuário do Pecém, advém de programas Green Ports53, ou ‘mo-
delo portuário mundial’ introduzidos nessas três últimas décadas. O objetivo
primordial de tal implementação é a promoção da conservação, prevenção e o
controle ambiental de áreas portuárias.54
Os índices analisados foram divulgados pela própria ANTAQ, responsável
por atualizar essas informações, em seu sítio público55. Tais valores e indicadores
são revisados com periodicidade semestral. Porém, a última atualização de dados
ocorreu para o período de 2016.1, ou seja, primeiro semestre do ano de 2016.
Logo, a análise crítica desta obra resume-se ao período em questão.
Quanto ao licenciamento ambiental, a Resolução do Conselho Nacional
do Meio Ambiente – CONAMA 237/97, destaca este como o indicador de
maior importância no que se refere à prevenção ambiental, pois ele é base de
fundamentação para todos os outros demais instrumentos. Neste ponto, o Ter-
minal Portuário do Pecém possui plena Licença de Operação válida e vigente.56,57
Tal licença trata da certificação de habilitação ambiental. Este indica-
dor refere-se apenas ao processo de solicitação, atendimento às exigências am-
bientais e à emissão da respectiva licença de acordo com o art. 10 da Lei nº
6.938/1981 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente), o art. 34 do Decreto

53
Segundo Jesus, R. D. (2015, p. 11), o termo Green Ports ou Portos Verdes refere-se aos portos que
adotam as boas práticas reconhecidas internacionalmente como forma de ações sustentáveis.
54
WOOLDRIDGE, C. F. et al. Environmental management of ports and harbours – implementation of
policy through scientific monitoring. Marine Policy. v. 23, n. 4-5, p. 413-425, 1999.
55
BRASIL. Agência Nacional de Transportes Aquaviários. Disponível em: <http://portal.antaq.gov.br/
index.php/meio-ambiente/indice-de-desempenho-ambiental/>. Acessado em: 12 out. 2017.
56
CASTRO, M. C. T. Porto do Rio de Janeiro: caracterização da atividade portuária, inserção no cenário
nacional e bioinvasão. Revista Marítima Brasileira. v. 128, n. 10-12, p. 223-230, 2008.
57
KITZMANN D.; ASMUS M. loc cit.
76 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

nº 4.340/2002, Lei Complementar nº 140/2011 e Resolução CONAMA nº


237/1997 (acima citada).58
Quanto ao treinamento e capacitação ambiental, menos de 50% dos fun-
cionários do núcleo ambiental do Terminal Portuário do Pecém participa-
ram de treinamento/capacitação. Este dado está aquém do que é desejado
pelas orientações de referência da ANTAQ que determinam que, no mínimo,
pelo menos metade dos funcionários do Núcleo Ambiental devem passar por
treinamento/capacitação. Isso inclui participação em seminários e congressos,
sendo, no mínimo, 24 horas/por pessoa.59
O indicador referente à Base de Dados Oceano Meteorológica corres-
ponde a um acervo de informações sobre as características da região onde está
inserida a instalação portuária. Neste sentido, pode-se afirmar que o Terminal
Portuário do Pecém não possui, e nunca possuiu desde à sua construção, um
banco de dados oceano meteorológico.60
Nesse ponto, o indicado seria que ele possuísse ao menos o registro de
medições de determinados parâmetros oceanográficos (ex. velocidade e direção
de correntes, regime de marés, ondas), hidrológicos (ex. vazão) e meteorológi-
cos/climatológicos (ex. direção e velocidade de ventos, pluviosidade).61
Os dados desse indicador devem estar organizados de maneira que
permitam análises integradas, aplicáveis para diversas finalidades, como
estudos para a promoção de adequações da instalação portuária às condi-
ções climáticas e ambientais, o dimensionamento e disposição de obras de
engenharia e de equipamentos de movimentação de cargas, planejamento
e adoção de medidas de segurança (prevenção de acidentes), planos de
contingência, etc.62
Quanto aos riscos ambientais, existem cinco planos/programas que, de
acordo com a ANTAQ, servem de base preventiva à gestão ambiental que
são: Plano de Ajuda Mútua – PAM; Plano de Controle de Emergência – PCE;
Plano de Emergência Individual – PEI; Plano de Área – PA; e Programa de
Prevenção de Riscos Ambientais – PPRA. E, atualmente, o Terminal Portuário
do Pecém atende apenas a três deles. O ideal e satisfatório seria que o porto
atendesse todos os cinco planos/programas.63
58
BRASIL. Agência Nacional de Transportes Aquaviários. ANTAQ. Disponível em: <http://portal.antaq.
gov.br/ index.php /institucional/a-antaq/>. Acessado em: 12 out. 2017.
59
KITZMANN D.; ASMUS M. loc cit.
60
BRASIL. Agência Nacional de Transportes Aquaviários. ANTAQ. Disponível em: <http://portal.antaq.
gov.br/ index.php /institucional/a-antaq/>. Acessado em: 12 out. 2017.
61
SICHE, R. et al. Índices versus Indicadores: precisões conceituais na discussão da sustentabilidade de
países. Ambiente & Sociedade. vol. 10, n. 2, p. 137-148, 2007.
62
BRASIL. Agência Nacional de Transportes Aquaviários. ANTAQ. Disponível em: <http://portal.antaq.
gov.br/ index.php /institucional/a-antaq/>. Acessado em: 12 out. 2017.
63
KITZMANN D.; ASMUS M. loc cit.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 77
Outro dado a ser observado é que somente no semestre 2016.1, ocor-
reram de um a três acidentes ambientais na área da instalação portuária do
Pecém e em seus arredores. Destarte, têm-se a compreensão de que aciden-
tes ambientais só estejam associados ao derramamento de óleo ou desastres
de grandes proporções. Porém, a realidade aponta para lançamentos ao mar,
incêndios, explosões e produção de nuvens de gás como os mais frequentes
acidentes portuários.64
Quanto ao tipo de energia utilizada no Terminal Portuário do Pecém,
pode-se relatar que em sua atividade característica não são empregados meca-
nismos fomentadores de energia limpa e renovável. Este indicador faz menção
ao fornecimento de energia para navios, denominado em inglês de Onshore
Power Supply – OPS ou Cold Ironing, que têm como objetivo a redução das
emissões de poluentes atmosféricos, gases de efeito estufa (GHG) e ruídos, em
nível local. Sendo assim, uma eficiente medida para melhorar a qualidade do
ar nas instalações e cidades portuárias.65
Porém, quando atracados no terminal portuário, os navios utilizam os
seus motores auxiliares, geralmente movidos a diesel, para produzir energia
destinada às suas atividades de bordo, carregamento e descarregamento de
produtos. E, atualmente, esses motores auxiliares utilizam um tipo de com-
bustível barato e de baixa qualidade, resultando em impactos negativos ao
ambiente e à saúde das pessoas.66
Destaca-se também que o Terminal Portuário do Pecém não possui certi-
ficação voluntária, planejamento formal para requisição de certificação volun-
tária, nem certificação voluntária em processo de desenvolvimento. Certifica-
ção esta também recomendada pela ANTAQ.67
Adicionalmente, este porto executa um programa de monitoramento
contínuo ou periódico da qualidade da água, mas não possui banco de dados
acerca da qualidade ambiental do corpo hídrico. E de acordo com a Portaria
do Ministério do Meio Ambiente – MMA de nº 424/2011 e Resolução do
CONAMA de nº 357/2005, tal banco de dados faz-se necessário.68
Quanto ao controle de espécies exóticas e/ou invasoras, o Terminal
Portuário do Pecém já realizou levantamento e caracterização das espécies

64
DABRA, R. M.; CASAL, J. Historical analysis of accidents in seaports. Safety Science, v. 42, n.2, p.
85–98, 2004.
65
ACSELRAD, H. Ambientalismo espetáculo? Ciência Hoje. v. 50, p. 66-68, 2012.
66
GOULIELMOS, A. M. European policy on port environmental protection. Global Nest. v.2, n.2, p.189-
197, 2000.
67
BRASIL. Agência Nacional de Transportes Aquaviários. ANTAQ. Disponível em: <http://portal.antaq.
gov.br/ index.php /institucional/a-antaq/>. Acessado em: 12 out. 2017.
68
BRASIL. Agência Nacional de Transportes Aquaviários. ANTAQ. Disponível em: <http://portal.antaq.
gov.br/ index.php /institucional/a-antaq/>. Acessado em: 12 out. 2017.
78 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

aquáticas exóticas/invasoras presentes em sua área. E existe monitoramento


com periodicidade regular bem como são adotadas ações de controle e com-
bate a esses organismos.69
Por fim, de acordo com todos esses indicadores utilizados para expressar
o Índice de Desempenho Ambiental, o valor da ANTAQ para quantificar o
IDA do Terminal Portuário do Pecém foi de 67,22 em uma escala de 0 a 100.
Logo, tal resultado confere a este porto o décimo segundo lugar no ranking
dos trinta maiores portos brasileiros em relação à análise da combinação de
variados atributos. Acima foram citados os principais atributos ambientais,
não sendo objetivo deste trabalho abarcar todos os indicadores existentes.

CONCLUSÃO

A proteção ao meio ambiente que propicie o desenvolvimento pleno e


digno para todos é objeto de contínua expansão no Direito Ambiental Inter-
nacional, neste sentido há uma constante busca de soluções para os problemas
que ora se apresentam, na medida em que os estados celebram vários tratados
e buscam estabelecer uma maior aproximação desta problemática. Neste sen-
tido há a advertência de que esta proteção ambiental aliada à proteção dos
direitos humanos constituem as grandes prioridades da agenda internacional
contemporânea.
Cabe salientar que as atividades portuárias devem possuir normas que
abarquem ações de prevenção e remediação no caso de possíveis impactos am-
bientais deletérios, bem como uma infraestrutura capaz de exigir do sistema as
melhores tecnologias e as melhores técnicas em destinação de resíduos.
Assim há de se reportar que o IDA é um elemento fundamental para o
setor, pois a pesquisa e o monitoramento das áreas portuárias são veemen-
temente importantes ao melhor conhecimento da própria atividade, à uma
ampla visualização do impacto ambiental causado, e, à adoção de planos de
gestão ambiental ou possíveis métodos e meios de mitigação e minimização de
passivos ambientais negativos.
Neste sentido, os principais indicadores abordados para o IDA do Termi-
nal Portuário do Pecém foram o licenciamento ambiental, o treinamento e capa-
citação ambiental, a base de dados oceano meteorológica, a prevenção de riscos
ambientais, a quantidade de acidentes ambientais, o tipo de energia utilizada, a
certificação voluntária, o programa de monitoramento contínuo ou periódico
da qualidade da água e o controle de espécies exóticas e/ou invasoras.
Dentre esses indicadores, os que o Terminal Portuário do Pecém melhor
se destaca são o de licenciamento, onde o porto possui Licença de Operação

69
CASTRO, M. C. T., 2008, loc. cit.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 79
válida e vigente, o programa de prevenção de riscos ambientais, no qual o
porto contempla os cinco planos determinados pela legislação, e no controle
de espécies exóticas e/ou invasoras, no qual o terminal portuário já realizou
um levantamento e caracterização dessas espécies presentes em sua área, bem
como já realizou um monitoramento com periodicidade regular e a adoção de
ações de controle e combate a tais organismos.
Já os indicadores que o Terminal Portuário do Pecém precisa adotar me-
didas para uma melhora em seu desempenho são o treinamento e capacitação
ambiental, onde consta que menos de 50% dos funcionários do núcleo ambien-
tal do terminal portuário participaram de treinamento/capacitação, a base de
dados oceano meteorológica, a qual se pode afirmar que o porto não possui, e
nunca possuiu desde a sua construção, o número de acidentes ambientais, que
no semestre do estudo em questão verificou de um a três acidentes ambientais
no Terminal Portuário do Pecém, o indicador do tipo de energia utilizada, que
no caso do porto verifica-se que não há uso de energia limpa e/ou renovável,
bem como também se observa que não há certificação voluntária e nenhuma
iniciativa para tal. E, como último indicador analisado, verifica-se que o porto
executa um programa de monitoramento contínuo ou periódico da qualidade
da água, mas não possui um banco de dados desse monitoramento.
Com efeito, vale observar que tanto a legislação nacional quanto a inter-
nacional, criaram diversas normatizações que contemplam os perigos advin-
dos da atividade portuária, restando, neste ponto, a toda sociedade, bem como
aos usuários dos sistemas portuários, a responsabilidade pela fiscalização do
cumprimento desses regramentos no tocante à sua aplicação, bem como ao
cumprimento das demais normas que regem o setor.

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PARTE II

A EVOLUÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA
INTERNACIONAL PENAL E O
SEU REFLEXO NO SISTEMA
PENAL BRASILEIRO
Capítulo 6
Lei Antiterrorismo Brasileira (Nº 13.260/2016):
Atentado Contra o Sistema Penal Acusatório?
Nedson Danildo da Fonseca
Ulisses Levy Silvério dos Reis

1. INTRODUÇÃO

Embora não possam ser considerados fenômenos recentes, as ações prati-


cadas por grupos paraestatais terroristas apresentam-se ao século XXI como um
dos principais desafios a ser superado pela sociedade internacional na busca da
paz e da segurança. Como efeito do crescente número de ataques praticados
contra alvos civis em diversos países e seguindo o direcionamento dos orga-
nismos internacionais expresso nas mais diversas convenções, vários Estados
têm acrescido ao seu ordenamento jurídico normas de cunho administrativo,
processual e penal na busca do combate à crescente escala de atentados. Neste
aspecto, no Brasil, é a Lei n 13.260/2016 que disciplina o terrorismo, tratando
das disposições investigatórias e processuais, além de reformular o conceito de
organização terrorista.
No entanto, o referido instrumento legal vem sofrendo diversas crí-
ticas de juristas e da comunidade acadêmica, dentre elas a de que diverge
do sistema penal acusatório, visto que prevê atuação do órgão julgador de
ofício em diversas fases da investigação e/ou na ação penal. Assim, a Lei nº
13.260/2016 traz expressamente a autorização para a atuação do magistrado
como um juiz de instrução, podendo decretar de ofício medidas cautelares,
tanto na fase de investigação criminal quanto no curso do processo, poden-
do vir a comprometer a garantias constitucionais do sistema acusatório.
Portanto, de qual forma a previsão da atuação do juiz de ofício, constante
no art. 12 da Lei nº 13.260/2016, fere o sistema penal acusatório consagrado
na Constituição Federal?
Diante deste contexto, o presente trabalho teve como objetivos: i) refletir
sobre a necessidade de criação de uma lei antiterrorismo no Brasil a partir da
discussão da temática no plano do direito internacional; ii) caracterizar o siste-
ma penal acusatório adotado pelo Brasil e suas implicações na atuação do juiz;
84 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

e iii) demonstrar que a previsão do art. 12 da Lei nº 13.260/2016 se contrapõe


ao sistema penal acusatório brasileiro.
A pesquisa partiu de uma revisão bibliográfica realizada nas áreas do
direito internacional público e do garantismo processual penal. Em seguida,
fez-se uma análise de julgados provenientes do Supremo Tribunal Federal com
o fito de demonstrar como esta Corte tem se posicionado acerca da atuação
jurisdicional no sistema penal acusatório brasileiro.
Assim, este trabalho foi estruturado em três momentos: i) foi inicialmen-
te pontuada a questão do terrorismo a partir de uma perspectiva internacio-
nal, sem perder de vista o contexto do Brasil; ii) analisou-se as características
garantidoras do sistema acusatório adotado pela Constituição Federal de 1988,
bem como suas implicações na atuação dos órgãos jurisdicionais no processo
penal; e i) demonstrou-se de que modo a Lei n 13.260/2016 atenta contra o
sistema penal acusatório, a partir da análise do entendimento jurisprudencial
da Suprema Corte brasileira.
Diante disso, passa-se a observar como esse fenômeno tem evoluído ao
longo da história, desaguando na sua atual concepção e nas convenções inter-
nacionais que visam sua prevenção e seu combate.

2. O TERRORISMO COMO FENÔMENO COMPLEXO E O SEU


MARCO NORMATIVO INTERNACIONAL E NACIONAL

Embora o combate ao terrorismo seja um dos principais desafios da se-


gurança global, no âmbito dos órgãos internacionais não tem sido tarefa fácil
definir um conceito que se adeque aos interesses dos Estados que os integram.
É oportuno afirmar que a dificuldade inicial para formular um conceito inter-
nacionalmente aceito passa pela necessidade de se diferenciar uma definição
de um mero julgamento de valor.
Portanto, a ausência de definição para a expressão em estudo, embora
tenham ocorrido diversas tentativas de conceitua-la no âmbito da Organiza-
ção das Nações Unidas (ONU), demonstra a dificuldade de se obter consenso
perante a sociedade internacional acerca de sua abrangência. Falta, assim, uma
definição teórica que consiga conter as vertentes desse complexo fenômeno
que atingiu contornos diferentes na contemporaneidade, sem cair no erro de
enumerar situações e atos terroristas1.
Assim, o terrorismo pode ser entendido como os atos violentos prati-
cados por uma pessoa ou grupo de pessoas contra inocentes ou alvos sem
1
GUERRA, Bernardo Pereira de Lucena Rodrigues. O Terrorismo, A luta contra o Terror e o Direito
Internacional dos Direitos Humanos. 2008. 291f. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo, São Paulo, p. 44.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 85
interesses militares com o fito de demonstrar insatisfação para com os poderes
constituídos na tentativa de substituir ou modificar o regime político existen-
te2. Pode também ser praticado para chamar a atenção da opinião pública acer-
ca de um interesse determinado, ou, ainda, para manter um regime vigente, em
vias de ser alterado (comumente nos regimes antidemocráticos).
Para tanto, as estratégias se valem de alvos que possuem forte apelo
simbólico no sentido de transmitir ao mundo mensagens de cunho ideoló-
gico, político ou religioso, convertendo-se em um método de comunicação e
controle social3. Trata-se, portanto, de uma ação política extrema, em grande
parte ligada a interesses regionais, muito embora a configuração atual do
terrorismo não tenha um território definido, apresentando-se em muitos
casos de modo difuso.
Diante do exposto, o direito internacional continua sem definição uni-
forme do fenômeno em estudo a ser aplicado nas discussões presentes nos
fóruns multilaterais mais emblemáticos. Entretanto, tal dificuldade se deve,
em parte, pela transformação que a noção de terror e terrorismo atravessou ao
longo da história.
Muito embora estudos demonstrem que, no século I D.C., grupos te-
nham atuado utilizando-se do terrorismo em suas ações, é com o advento da
Revolução Francesa que este passa a ganhar um novo sentido, se aproximando
da concepção atual que se empreende ao termo. Na citada revolução, o terro-
rismo passou a ser utilizado como instrumento de poder do governo, como
exercício de violência política em nome da revolução, com fito de desenvolver
no território francês o sentimento de solidariedade nacional4.
Mas é no século XXI que o terrorismo deixa de ser um fenômeno local e
periférico, tornando-se, ao contrário, globalizado e transnacional5. Muito em-
bora diversos outros acontecimentos tenham evidenciado o risco de ataques
terroristas, foi o ocorrido em 11 de setembro de 2001, tendo como alvo sím-
bolos do império americano capitalista e de toda a ideologia que representa
para o Ocidente, responsável por trazer ao fenômeno real destaque nos órgãos
internacionais e nas agendas de governos em todo o mundo.

2
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 9 Ed, São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2015, p. 1203.
3
CAVALCANTI, Sabrina Correia Medeiros; GOMES, Olívia Maria Cardoso. Lei Antiterrorismo no
Brasil e seus Reflexos no Estado Democrático de Direito. In: MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira
(Coord).Constituição e Justiça. Florianópolis: CONPEDI, 2016. Disponível em: <http://www.conpedi.
org.br/publicacoes/y0ii48h0/509my5cz/x7eG0d1rOWz9PuPg.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2017, p. 385.
4
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 9 Ed, São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2015, p. 1202.
5
GUERRA, Bernardo Pereira de Lucena Rodrigues. O Terrorismo, A luta contra o Terror e o Direito
Internacional dos Direitos Humanos. 2008. 291f. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo, São Paulo. p.35.
86 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Os acontecimentos desse período foram propulsores da elaboração de


novas convenções com o intuito de estabelecer cooperação entre os Estados no
combate ao terrorismo, com determinação de medidas específicas de adequa-
ção e recrudescimento de normas internas6.
Com relação a estas últimas, diversos Estados passaram a aprovar legis-
lações com alto teor de restrição aos direitos humanos e com predomínio do
uso da violência e discriminação. Neste aspecto, algumas relevantes alterações
incorporadas pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido merecem destaque,
respectivamente o USA Patriot Act e o Terrorism Act 2000 e 2006. As citadas
normas trazem como características marcantes, as restrições de direitos e liber-
dades individuais na busca da segurança nacional, o aumento da restrição da
política migratória e o fortalecimento de leis penais, servindo de combustível
para as críticas à política de segurança nacional adotada. No âmbito do direito
penal, foram criadas diversas condutas incriminadoras permitindo a prisão de
indivíduos em práticas suspeitas, passando a se utilizar do fortalecimento da
violência no combate ao terror e ao terrorismo.
Em se tratando das convenções, é na década de 1960 que se intensificam
as preocupações internacionais acerca do tema, motivadas diretamente pelo
sequestro de aeronaves. Tal problemática culminou, no âmbito nas Nações
Unidas, em tratados específicos sobre a matéria, como a Convenção relativa a
infrações e a certos outros atos praticados a bordo de aeronaves (1963).
No âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), merece des-
taque a Convenção Interamericana de Combate ao Terrorismo, aprovada em
Barbados, no dia 03 de junho de 2002, tendo entrado em vigor em 10 de junho
do mesmo ano. O Brasil promulgou internamente tal convenção por meio do
Decreto n. 5.639/2005.
Esta visa prevenir, combater e erradicar o financiamento do terrorismo,
dispõe sobre o embargo e o confisco de fundos e outros bens, delitos prévios
de lavagem de dinheiro, cooperação nas fronteiras e entre autoridades compe-
tentes para aplicação da lei, mútua assistência jurídica, dentre outras normas.
Um aspecto que merece ser destacado é que, em seu art. 157, fica demons-
trada a preocupação de que a luta no combate ao terror só pode se desenvolver
6
MALUF, Elisa Leonesi. Terrorismo e Prisão Cautelar: Eficiência e Garantismo. 2014. 207f. Disserta-
ção (Mestrado em Direito). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, p.9.
7
Art. 15 - Direitos Humanos 1. As medidas adotadas pelos Estados Partes em decorrência desta Conven-
ção serão levadas a cabo com pleno respeito ao Estado de Direito, aos direitos humanos e às liberdades
fundamentais. 2. Nada do disposto nesta Convenção será interpretado no sentido de desconsiderar ou-
tros direitos e obrigações dos Estados e das pessoas, nos termos do direito internacional, em particular
a Carta das Nações Unidas, a Carta da Organização dos Estados Americanos, o direito internacional
humanitário, o direito internacional dos direitos humanos e o direito internacional dos refugiados. 3. A
toda pessoa que estiver detida ou com relação à qual se adote quaisquer medidas ou que estiver sendo
processada nos termos desta Convenção será garantido um tratamento justo, inclusive o gozo de todos
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 87
na observância dos preceitos do direito internacional dos direitos humanos,
“em uma visão integral, indivisível, inter-relacionada e interdependente dos
Direitos Humanos, unindo o Direito Internacional dos Direitos Humanos ao
Direito dos Refugiados e ao Humanitário, com observância [...] do princípio
da não discriminação8”.
Neste sentido, observa-se que o Estado brasileiro tem reiterado seu repú-
dio às formas de manifestações e atos terroristas, em consonância com o que
prescreve a própria Constituição Federal de 19889, quando apresenta o repúdio
ao terrorismo como uns dos princípios que regem suas relações internacionais.
No plano infraconstitucional, os atos terroristas eram previstos apenas no
art. 2010 da Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/83); entretanto, no dia 17 de
março de 2016, foi sancionada a Lei n. 13.260/2016, que passou a tratar sobre a
matéria, elaborada e avaliada pelo Congresso Nacional em caráter de urgência
tendo em vista a proximidade das Olimpíadas e Paraolimpíadas Rio 2016.
Diante da problematização que se desenvolverá sobre tal norma, convém
inicialmente indagar: o Brasil atualmente encontra-se concretamente ameaça-
do por algum grupo terrorista? De fato, necessita-se aqui de uma Lei específica
de combate ao terrorismo?
A resposta curta seria não, de modo que o Brasil está, em tese, associado
a uma conduta pacifista em sua política externa e, embora internamente sofra
graves problemas decorrentes do crime organizado, não há registro de ataques
terroristas de destaque, pelo menos nos últimos 30 anos. Entretanto, convém
chamar atenção para o fato de que, muito embora o terrorismo esteja frequen-
temente associado à execução de atos que causam o terror, como mortes em
decorrência de ataques de armas de fogo e explosões, o fenômeno ocupa uma
cadeia muito mais extensa e complexa, sendo o ataque apenas uma pequena
fase dentro do que se pode chamar ciclo da atividade terrorista, que vai deste o
planejamento até a exploração política e ideológica dos atentados11.

os direitos e garantias em conformidade com a legislação do Estado em cujo território se encontre e com
as disposições pertinentes do direito internacional.
8
GUERRA, Bernardo Pereira de Lucena Rodrigues. O Terrorismo, A luta contra o Terror e o Direito
Internacional dos Direitos Humanos. 2008. 291f. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo, São Paulo. p. 116.
9
Art. 4º - A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes prin-
cípios: [...] VII – repúdio ao terrorismo e ao racismo.
10
Art. 20 - Devastar, saquear, extorquir, roubar, sequestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depre-
dar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou
para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas.
Pena: reclusão, de 3 a 10 anos. Parágrafo único - Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-
-se até o dobro; se resulta morte, aumenta-se até o triplo.
11
LASMAR, Jorge Mascarenhas. A legislação Brasileira de Combate e Prevenção do Terrorismo Quator-
ze Anos após 11 de Setembro: Limites, Falhas e Reflexões para o Futuro. Rev. Sociol. Polit., v. 23, n.
53, p. 47-70, mar. 2015, p. 48.
88 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Portanto, a inexistência de um aparato legal específico também poderia


trazer sérios problemas, muito embora qualquer conduta pudesse recair sobre
outras tipificações presentes no direito penal brasileiro, como, por exemplo,
homicídio, lesão corporal, sequestro, destruição de bens públicos etc. No en-
tanto, as atividades terroristas não se limitam aos ataques e seu modus operandi
se distinguem das práticas criminais comuns, demonstrando verdadeiro desa-
fio para as normas penais até então existentes12. Embora passível de muitas crí-
ticas, a lei brasileira que trata de tal matéria se demonstra necessária, sem, no
entanto, perder de vista que devem ser observadas as garantias fundamentais e
processuais presentes no ordenamento jurídico brasileiro.

3. O SISTEMA ACUSATÓRIO BRASILEIRO E AS GARANTIAS


PROCESSUAIS CONSTITUCIONAIS

Antes de iniciar diretamente a discussão acerca do sistema acusatório,


carece observar que a Constituição Federal traz em seu bojo espécies de prin-
cípios gerais, que funcionam como pedras tocantes da fundamentação e das
características de um Estado Democrático de Direito, sendo o ponto de parti-
da de qualquer análise que busque observar o sistema penal por ela adotado.
Neste aspecto, a Carta Maior ocupa ponto central no sistema vigente, capaz de
irradiar efeitos que precisam ser captados na edição e aplicação de leis infra-
constitucionais, funcionando como lei ordenadora e dirigente 13.
A noção de vinculação à norma constitucional é simples e indiscutível, de
modo que “no Estado de Direito Democrático-Constitucional todos os poderes
e funções do Estado estão juridicamente vinculados às normas hierarquicamente
superiores da Constituição14”. Cumpre destacar que tal vinculação afeta todos os
poderes e cidadãos, não se limitando apenas a quem cabe legiferar.
Um dos aspectos desta vinculação é o garantismo trazido à lume pela
Constituição Federal de 1988 consistente na necessidade de se fazer observar
os direitos fundamentais dos cidadãos, valorando os princípios gerais ali es-
tampados, sendo capaz de irradiar efeitos no plano da legislação infraconstitu-
cional. Nesta senda, as garantias devem se apresentar como técnicas presentes
no ordenamento que têm por finalidade reduzir a distância estrutural entre
12
LASMAR, Jorge Mascarenhas. A legislação Brasileira de Combate e Prevenção do Terrorismo Quator-
ze Anos após 11 de Setembro: Limites, Falhas e Reflexões para o Futuro. Rev. Sociol. Polit., v. 23, n.
53, p. 47-70, mar. 2015, p.56.
13
FISHER, Douglas. O Sistema Acusatório Brasileiro à Luz da Constituição Federal de 1988 e o PL 156.
Custos Legis: Revista Eletrônica do Ministério Público Federal. 2011. Disponível em: <http://www.
prrj.mpf.mp.br/custoslegis/revista_2011/2011_Dir_Penal_fischer.pdf>. Acesso em: 02 mai 2017,p.7.
14
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. 2 ed.
Coimbra: Coimbra Editora, 2001.p.11.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 89
a normatividade e a efetividade, contribuindo, assim, para a máxima eficácia
dos direitos fundamentais, segundo determinado pela Constituição15.
Diante disso, é importante que o legislador brasileiro tenha o cuidado de
observar que o propósito de prevenir o fortalecimento de grupos paraestatais
terroristas em território nacional, por si só, não pode justificar o desenvolvi-
mento de legislações que vão de encontro às garantias processuais presentes na
Constituição Federal de 1988, o que de fato se entende ter ocorrido no caso
do art. 12 da Lei n. 13.260/2016.
Convém observar que a Carta da República de 1988, elaborada em um
período pós-ditadura, tratou de fazer previsões expressas de institutos jurídico
processuais claramente garantistas, que podem ser compreendidos sob a ótica
da teoria do garantismo penal estudada por Luigi Ferrajoli. Esta teoria liga-
-se às garantias do sistema punitivo e está alicerçada em princípios bases, que
devem ser vistos de forma harmônica e sistemática na busca de evitar o livre
arbítrio e o erro estatal na hora de punir quem infringiu as normas de convi-
vência social passíveis da sanção penal.
Logo, um sistema penal pode ser entendido como sendo o conjunto de
instituições estatais e suas atividades, que intervêm na criação e aplicação de
normas penais, concebidas em seu sentido mais extenso, tanto as disposições
substantivas quanto procedimentais. É oportuno frisar que este não deve ser
investigado exclusivamente sob a ótica das pretensões normativas e das re-
gras programáticas, sendo necessário lançar um olhar sobre as ações institu-
cionais dos organismos que atuam na repressão criminal, de modo que suas
atuações também refletem escolhas de política criminal, em muitos casos na
contramão de normas e princípios garantidores expressos ou implícitos na
normatização constitucional 16.
Não é tarefa das mais simples considerar a existência de dois sistemas pro-
cessuais puros, quais sejam, inquisitório e acusatório, uma vez que, muito em-
bora cada um deles assumam suas feições preponderantes, é possível observar
que um traz em si elementos do sistema oposto. Inobstante tal consideração,
a construção dos sistemas processuais se deu claramente por opção política,
conquanto possam existir outros motivos que culminaram em sua criação17.
A literatura processualista apresenta o sistema inquisitório como sendo
dotado de concentração das funções processuais penais nas mãos de um único
sujeito, desaguando em “um processo unilateral de um juiz com atividade

15
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 4 ed. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2014.p. 35.
16
PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 3
Ed, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 178.
17
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema Acusatório: Cada Parte no seu Lugar Constitucional-
mente Demarcado. Revista de Informação Legislativa, v. 46, n. 183, p. 103-115, jul./set. 2009, p. 106.
90 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

multiforme, relegando ao acusador privado uma posição secundária e propor-


cionando o princípio do processo [...] independentemente da manifestação da
pessoa distinta da do juiz18”. Assim, “a ideia de justiça é substituída por uma
concepção autoritária e despótica do Estado de polícia19”.
Por sua vez, o sistema acusatório, que cronologicamente perdurou até
por volta do século XII, sendo posteriormente substituído de forma gradual
pelo inquisitório, que sobreviveu até o final do século XVIII, sendo que em
alguns países perdurou até o século XIX, quando a pressão encabeçada por
movimentos sociais e políticos, na busca de assegurar direitos fundamentais
inerentes ao processo, contribuíram para mudanças de rumo. No Brasil, parte
considerável dos processualistas penais considera que vigora um sistema misto
(inquisitório na fase pré-processual e o acusatório na processual)20.
Assim, a classificação de dois sistemas distintos se prende a um reducio-
nismo ilusório, de modo que não há mais sistemas puros, tratando-se de classi-
ficações históricas. A questão central é a necessidade de identificar o princípio
geral formador de cada sistema para, em seguida, classifica-lo, de modo que a
definição do seu núcleo duro é de grande relevância, uma vez que passa a deter-
minar o papel de cada sujeito processual, impedindo o abuso do poder estatal
e assegurando direitos fundamentais dos acusados de afrontar bens jurídicos
tutelados pelo direito penal em vigor. Isto posto, filia-se aqui à corrente que re-
conhece, por parte do Brasil, a adoção do modelo acusatório, já que, ao se fazer
uma interpretação conforme à Constituição, esta apresenta princípios gerais que
asseguram a adoção do referido sistema por parte da ordem jurídica local.
A opção política brasileira por um sistema processual acusatório foi feita
pela atual Constituição Federal 21, contudo, passados mais de 25 anos de sua
promulgação, o Estado brasileiro ainda encontra resistência para lograr êxito
em sua efetivação. Parte das dificuldades reside no fato de ainda vigorar no
país um Código Processual de caráter autoritário e inquisitório, inspirado no
código italiano criado no regime fascista, que, dentre outras características,
privilegia a legislação infraconstitucional em detrimento da Constituição.
É necessário observar que o núcleo fundante do sistema não pode se res-
tringir apenas à separação inicial das atividades de acusar e julgar. Assim, não

18
PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 3
Ed, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 149.
19
BARROS, Ivone da Silva. A Identidade Física do Juiz no Processo Penal Brasileiro. 2008.183f. Disser-
tação. (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP, p. 32.
20
LOPES JR., Fundamentos do Processo Penal: Introdução Crítica. 2 Ed. São Paulo: Saraiva, 2016,
p.143-144.
21
LUZ, Denize. A Opção Constitucional por um Sistema Acusatório: Algumas Breves Reflexões sobre
o Inquérito Policial na Reforma do Código de Processo Penal. Congresso Internacional de Ciências
Criminais, II Edição, 2011, p. 49
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 91
é possível deixar de levar em conta a complexa fenomenologia do processo,
de modo que a divisão das funções processuais também implica na gestão e
iniciativa das provas, o que deve ser atribuído às partes. Assim, a falta dessa
separação aproxima o órgão julgador do embate das partes e cria sérios em-
pecilhos à ‘atuação imparcial’ do magistrado. Logo, se estaria aderindo a um
pensamento reducionista ao se ponderar que basta a existência de um órgão
acusador distinto do julgador para a formação de um processo acusatório22.
Outra questão permeada de divergência é a possibilidade de iniciativa
probatória do julgador e sua relação com o modelo acusatório assumido pelo
Brasil. Neste caso, os poderes instrutórios clássicos conferidos ao juiz se re-
lacionariam com o caráter público e a função social do processo, de modo
que a busca por uma suposta verdade real possibilitaria uma postura ativa do
julgador, não violando a imparcialidade decisória23.
No entanto, considera-se que o caráter público do processo não pode legi-
timar a participação instrutória do juiz. Essa justificativa só poderia ser aceita
se a regra geral fosse da acusação proveniente da iniciativa privada; no entanto,
a regra é que as ações penais são de iniciativa pública, existindo, inclusive, ór-
gão oficial para realizar a persecução penal e resguardar os interesses públicos.
Em se tratando da previsão trazida pela Lei n. 13.260/2016, que autoriza a
atuação do magistrado como um juiz de instrução, podendo decretar de ofício
medidas cautelares, tanto na fase de investigação criminal quanto no curso do
processo, observa-se que o legislador seguiu uma tendência assumida por vários
Estados de combater o terrorismo indo de encontro a várias garantias antes con-
quistadas, como as alterações incorporadas pelos Estados Unidos e pelo Reino
Unido destacando, respectivamente, a USA Patriot Act e o Terrorism Act 2000 e 2006.
Todavia, atribuir poderes instrutórios/investigatórios de ofício ao magistra-
do em qualquer fase é acarretar a destruição completa do processo penal democrá-
tico. Neste sentido, dar ao juiz a prerrogativa para a colheita de provas é antecipar
a formação do juízo, pois este ao ter essa iniciativa estará ciente do que pretende
encontrar e de que consequências essa prova trará ao seu julgamento, de modo que
“nessa matéria, não existe investigador parcial, seja ele juiz ou promotor24”.
O Supremo Tribunal Federal (STF) também tem se inclinado neste sentido.
Na relatoria do HC n. 105.01525, o Ministro Teori Zavascki observou claramente

22
LOPES JR., Fundamentos do Processo Penal: Introdução Crítica. 2 Ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p.145.
23
VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. O “Sistema Acusatório” do Processo Penal Brasileiro: Apon-
tamentos Acerca do Conteúdo da Acusatoriedade a partir de Decisões do Supremo Tribunal Federal.
Direito, Estado e Sociedade, n. 47, p. 181-204, jul./dez. 2015, p. 190.
24
LOPES JR., Fundamentos do Processo Penal: Introdução Crítica. 2 Ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 172-173.
25
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 115.015. Relator: Min. Teori Zavascki . Dispo-
nível em:<https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/24150845/habeas-corpus-hc-115015-sp-stf/intei-
ro-teor-111888258>. Acesso em: 05 abr. 2017.
92 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

a adoção do sistema acusatório, sendo a característica mais marcante deste modelo


a “separação orgânica das funções concernentes à persecução penal, de modo a
impedir que o juiz adote qualquer postura tipicamente inerente à função investi-
gatória”. Para o Ministro, não há dúvida de que a Constituição brasileira adotou a
acusatoriedade como princípio a nortear o processo penal, cabendo ser observado
irrestritamente pelas legislações infraconstitucionais.
Desse modo, o entendimento adotado no julgado acima exposto vai to-
talmente de encontro à previsão de atuação jurisdicional de ofício na fase de
investigação trazida pelo art. 12 da Lei Antiterrismo brasileira. O posiciona-
mento do Ministro Roberto Barroso, ao relatar a Ação Direta de Inconstitu-
cionalidade (ADI) n. 510426, também foi no sentido de que a Constituição de
1988 não deixa dúvidas acerca da opção pelo sistema penal acusatório, com o
objetivo principal de assegurar a imparcialidade do Judiciário.
Assim, fica evidente que há uma imposição normativa prevista na Cons-
tituição brasileira que adere a um sistema acusatório, como também tem se
posicionado reiteradamente o STF.
Destarte, considera-se que o exercício do poder de punir deve observar
o poder/dever de apuração, mas sem perder de vista a posição de um órgão
julgador não participante diretamente da gestão das provas, pois quando o
magistrado é visto como o “senhor plenipotenciário do processo – ou quase –
e pode buscar e produzir a prova que quiser a qualquer momento [...] não só
tende sobremaneira para a acusação como, em alguns aspectos, faz pensar ser
despiciendo o órgão acusatório27”.

4. A LEI ANTITERRORISMO BRASILEIRA (N. 13.260/2016) E AS


SUAS IMPLICAÇÕES NO SISTEMA PENAL ACUSATÓRIO

A Constituição Federal de 1988 trouxe expressamente alguns mandados de


criminalização, dentre eles a determinação para que o legislador infraconstitucional
editasse norma prevendo o crime de terrorismo28. Antes cabia a Lei n. 7.170/1973,
que trata dos crimes contra a segurança nacional, tipificar a citada conduta.
No dia 17 de março de 2016, foi sancionada a Lei n. 13.260/2016, que pas-
sou a tratar sobre a matéria. Sua elaboração pelo Congresso Nacional deu-se em

26
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 5.104/DF. Relator: Min Roberto Barroso. Disponível em:<
https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/25342451/medida-cautelar-na-acao-direta-de-inconstitucio-
nalidade-adi-5104-df-stf >. Acesso em: 06 abr. 2017.
27
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema Acusatório: Cada Parte no seu Lugar Constitucional-
mente Demarcado. Revista de Informação Legislativa, v. 46, n. 183, p. 103-115, jul./set. 2009, p. 111.
28
Art. 5º […] XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da
tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hedion-
dos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 93
caráter de urgência por força da proximidade das Olimpíadas e Paraolimpíadas
Rio 2016. Entretanto, tal instrumento normativo vem sofrendo críticas da aca-
demia por trazer uma conceituação ampla para o terrorismo e por ferir garantias
constitucionais do ordenamento pátrio, além de acompanhar uma tendência
mundial de restringir direitos humanos na justificativa do “combate ao terror”.
É nesta medida que o terrorismo acaba demonstrando um problema
para os Estados democráticos, de modo que, por medo de suas consequências
nefastas, o cidadão, em certa medida, mesmo diante de todas as críticas, acaba
por aceitar a restrição a seus próprios direitos fundamentais.
Contudo, a falta de um instrumento legal específico também poderia
trazer sérios problemas, muito embora qualquer conduta terrorista pudesse ser
subsumida perante outros tipos penais, demonstrando verdadeiro desafio para
as normas penais até então existentes Neste aspecto, embora passível de muitas
considerações, a referida lei se demonstra necessária, sem, no entanto, perder
de vista que devem ser observadas as garantias fundamentais e processuais
presentes na Constituição Federal de 1988.
Partindo disso, no que tange ao aspecto da justiça criminal, pode-se des-
tacar três importantes pilares para análise da Lei Antiterrorismo brasileira: o
bem jurídico tutelado, a teoria da pena e o sistema acusatório. O foco aqui
tratado se deu sobre este último.
O art. 12 da Lei n. 13.26029 traz a autorização para a atuação do magis-
trado como um juiz de instrução, podendo decretar de ofício medidas assecu-
ratórias de bens, direitos ou valores do investigado ou acusado, tanto na fase
de investigação criminal quanto no curso do processo, indo diretamente de
encontro ao sistema acusatório. O referido artigo trata de maneira confusa
um elemento básico do sistema acusatório, qual seja: a separação da atuação
dos agentes que formam a tríade processual, e dá plenos poderes para órgão
julgador atuar sem provocação na fase de inquérito policial.
Ora, não há dúvida que o juiz é o destinatário da prova no processo, no
entanto, dotá-lo de poder para atuar de ofício numa fase em que ainda não
existe contraditório e ampla defesa é desequilibrar demais a relação processual
e principalmente a gestão das provas, que, nesta fase pré-processual, compete
ao Ministério Público e às polícias judiciárias. Esta possibilidade descaracte-
riza demasiadamente o que se considera como o mais importante elemento
constitutivo do modelo teórico acusatório: a separação entre juiz e acusação.
O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou acerca dessa impossibili-
dade quando julgou a ADI n. 157030, ao apreciar a constitucionalidade do art.

29

30
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 1570. Relator: Min. Maurício Correia. Disponível em: <http://
www.stf.jus.br/portal/pesquisa/listarPesquisa.asp?termo=adi%201570>. Acesso em: 22 mar. 2017.
94 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

3º da já revogada Lei nº 9.034/199531, que trazia expressa previsão da atuação


de ofício do magistrado na investigação criminal. Nesta senda, o Plenário da
Corte, por maioria, declarou a inconstitucionalidade do dispositivo, especial-
mente na parte que se refere à quebra de sigilos fiscal e eleitoral.
A ADI foi ajuizada pela Procuradoria Geral da República sob o argumento
de que o dispositivo havia transformado o juiz em investigador, dando-lhe claros
poderes inquisitoriais, além de violar o princípio do devido processo legal e, prin-
cipalmente, a imparcialidade do órgão julgador, prejudicada pela atuação direta na
coleta de provas. Além disso, sustentava que o referido dispositivo criava um sis-
tema processual inquisitivo, divergindo totalmente das previsões constitucionais.
O ministro relator do processo, Maurício Correia, entendeu que o dis-
positivo conferia ao juiz competência para diligenciar pessoalmente em busca
de provas inerentes à persecução penal de atos de organizações criminosas,
com ou sem auxílio da polícia e do Ministério Público. Ainda, para o relator
da ADI, não seria possível dissociar a relação de causa e efeito entre as provas
colhidas pelo juiz e sua atuação no momento de proferir sua sentença, ocor-
rendo envolvimento psicológico, contaminando sua imparcialidade.
O dispositivo revogado havia criado o juízo de instrução nunca observa-
do na legislação brasileira, sendo a realização do inquérito reservada à polícia,
conforme previsão constitucional.
Ao se fazer uma comparação entre o dispositivo tido como inconstitu-
cional e o art. 12 da Lei n. 13.260/2016, pode-se inferir que, embora este não
traga expressa previsão de que o juiz possa diligenciar diretamente, o simples
fato de dar a ele competência para atuar sem provocação na fase pré-processual
já contamina sua atuação como julgador do processo. Isso se deve ao fato de
que, ao tomar a iniciativa de determinar alguma medida acautelatória, seja na
supressão de bens ou direitos de investigados, o julgador já estabelecerá um
juízo de valor que pode comprometer sua atuação ao proferir futuras decisões.
Além do mais, muito embora o magistrado deva ouvir o Ministério Pú-
blico no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, sua decisão de determinar medidas
assecuratórias de bens, direitos e valores do acusado não está adstrita à opinião
do órgão acusador. Poderá inclusive o Ministério Público ser contrário à me-
dida e ainda assim o juiz entender pela sua necessidade.
Neste aspecto, surge uma situação problemática tratada com naturalidade
pela legislação: o mesmo órgão jurisdicional pode atuar de ofício na fase de
investigação e na processual, produzir provas e, em seguida, julgar o processo.

31
Art. 3º Nas hipóteses do inciso III do art. 2º desta lei, ocorrendo possibilidade de violação de sigilo pre-
servado pela Constituição ou por lei, a diligência será realizada pessoalmente pelo juiz, adotado o mais
rigoroso segredo de justiça. § 1º Para realizar a diligência, o juiz poderá requisitar o auxílio de pessoas
que, pela natureza da função ou profissão, tenham ou possam ter acesso aos objetos do sigilo.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 95
Tal postura parece violar a paridade de armas necessária ao procedimento.
Dessa forma, não deveria caber ao julgador garantir efetividade à acusação
atuando de ofício em fase investigativa. Se, na fase processual, perdurar dúvi-
das sobre a autoria/materialidade, compete a este absolver o réu com fulcro no
princípio da presunção de inocência.
Ainda com relação à temática do modelo processual acusatório, o STF já
se posicionou em outras oportunidades. No Agravo Regimental referente ao
Inquérito n. 2.91332, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, em 01 de março
de 2012, foi observada a acusação do crime de peculato em sede de foro por
prerrogativa de função parlamentar. A investigação preliminar da suposta con-
duta criminosa foi trancada de ofício por membro do Poder Judiciário, sem
observância da manifestação do órgão competente.
Embora tenha havido divergência ao voto do relator, a maioria do cole-
giado entendeu que o processo acusatório, em especial na fase de investigação
preliminar, apresenta como característica a posição inerte do órgão julgador,
devendo ser respeitada a formação da opinião do Ministério Público. Ade-
mais, explicitou que, mesmo nos inquéritos concernentes a autoridades com
foro por prerrogativa de função, deve o Judiciário atuar apenas quando provo-
cado e limitando-se a coibir ilegalidades manifestas.
Nas palavras do relator, “um processo penal justo [...], instrumento garan-
tístico que é, deve promover a separação entre as funções de acusar, defender e
julgar, como forma de respeito à condição humana do sujeito passivo”. Logo,
o trancamento do inquérito policial só se justifica em situações excepcionais
em que não esteja presente a existência de um crime nos fatos apresentados;
caso contrário, deve prosseguir a investigação preliminar33.
Por seu turno, no Habeas Corpus n. 115.015, apreciado pela Segunda Turma
do STF em 27 de agosto de 2013, cuja relatoria pertenceu ao Ministro Teori Zavasc-
ki, analisou-se o caso em que supostamente teria ocorrido crime contra a ordem
tributária, de modo que ocorreu requisição de indiciamento pelo magistrado já na
fase processual, após o recebimento da denúncia oferecida pelo Ministério Público.
Como o indiciamento policial tem o fito de fazer com que o delegado for-
malize sua convicção de que um agente investigado em sede de inquérito policial
é suspeito de ser autor de determinado delito, o juiz não pode determinar, após
aberta a ação penal, o indiciamento formal de um dos réus. De acordo com o

32
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental Inquérito nº 2.913. Relator: Min. Dias Toffoli.
Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/Ementa.asp?s1=000189346&base=baseA-
cordaos. Acesso em: 05 abr. 2017.
33
Precedentes: RHC n.º 96.713, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em
07/12/2010; HC n.º 103.725, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma, julgado em 14/12/2010;
HC n.º 106.314, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 21/06/2011; RHC n.º
100.961, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 06/04/2010.
96 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

entendimento da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, ao determinar


o indiciamento, o juiz passa a assumir a função que pertence a quem investiga,
ou seja, a autoridade policial.
Ainda de acordo com o entendimento, a ordem de indiciamento realiza-
da pelo juiz afronta diretamente o sistema acusatório, pois impor à autoridade
responsável pelas investigações quem ela deve considerar como autor de crime,
o órgão judiciário se sobrepõe, em tese, as suas conclusões sendo essa atribui-
ção estranha à atividade jurisdicional.
Por último apresenta-se o entendimento da maioria do Pleno da Suprema
Corte no julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstituciona-
lidade n. 5.104/DF, sob relatoria do Ministro Roberto Barroso, que deferiu
a suspensão do art. 8º da Resolução n. 23.396, de 2013, do Tribunal Superior
Eleitoral, que estabelecia que o inquérito policial eleitoral somente poderia ser
instaurado por meio de determinação da Justiça Eleitoral, com exceção das
hipóteses de prisão em flagrante.
A ação foi proposta pelo Procurador-Geral da República, fundamentada
na incompatibilidade com os princípios da legalidade, do sistema acusatório
e da inércia jurisdicional. O ministro relator da ação fundamentou seu voto
explicando que o sistema acusatório no Brasil permite que exista a necessária
preservação do Estado-juiz, buscando evitar o risco de pré-compreensões acer-
ca da matéria que futuramente virá a ser julgada. Além disso, é exigida a cha-
mada paridade das armas, também chamado de equilíbrio de forças na relação
entre acusação e defesa, devendo o julgador quedar-se equidistante.
Portanto, no entendimento da Corte Constitucional, até mesmo no que
tange à Justiça Eleitoral, permeada de peculiaridades, deve o juiz manter-se
distante dos procedimentos investigatórios.
Assim, ficou demonstrado que o STF tem estabelecido largo entendimen-
to no sentido de que o órgão jurisdicional não deve atuar na fase pré-proces-
sual, sob o risco de se contaminar com as provas desencadeadas ao longo da
fase investigatória e comprometer suas decisões ao longo do processo. Neste
sentido, entende-se que o art. 12 da Lei Antiterrorismo brasileira se apresenta
com os mesmos vícios encontrados nas normas julgadas pela Corte Constitu-
cional brasileira demonstrados anteriormente.
Todavia, tendo em vista se tratar de um diploma normativo muito re-
cente, a Suprema Corte ainda não foi instada a se manifestar acerca da cons-
titucionalidade da Lei nº 13.260/2016. Ademais, observou-se que há apenas a
tramitação de um processo nos tribunais federais brasileiros com fulcro na lei
em estudo, tratando-se da Ação Penal n. 504686367.2016.4.04.7000/PR34.

34
PARANÁ. 14ª Vara Federal de Curitiba. Sentença Ação Penal nº 504686367.2016.4.04.7000. Juiz:
Marcos Josegrei da Silva. Disponível em: file:///C:/Users/pc/Downloads/347373614-Operacao-Hash-
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 97
No dia 04 de maio de 2017, o juiz federal Marcos Josegrei da Silva, titular
da 14ª Vara Federal de Curitiba, Seção Judiciária do Paraná, usou pela pri-
meira vez a Lei Antiterrorismo para condenar oito acusados de praticar atos
preparatórios de terrorismo.
Os condenados em primeira instância foram presos temporariamente
pela Polícia Federal no dia 21 de julho de 2017, no âmbito da denominada
Operação Hashtag. De acordo com as apurações realizadas, os envolvidos, su-
postamente, planejavam adquirir armamentos para o cometimento de crimes
no Brasil e no exterior.
Nas pesquisas realizadas do sítio eletrônico do Tribunal Regional Federal
da Quarta Região, bem como em veículos de comunicação, o único docu-
mento que se teve acesso foi a sentença condenatória dos oito réus. A decisão
proferida nos autos do processo n. 504686367.2016.4.04.7000/PR em nenhum
momento faz menção à autorização conferida aos magistrados para decretar,
de ofício, medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores dos investigados
e acusados, conforme previsão do art. 12 da Lei n. 13.260/2016.
Neste aspecto, ainda será necessário aguardar a aplicação da norma em
outros processos judiciais para que se permita desenvolver análises mais con-
cretas acerca da utilização do supracitado artigo, tanto no âmbito dos inqué-
ritos policiais quanto nas instruções processuais dos crimes enquadrados na
lei em questão. Ainda se espera que o STF seja provocado a se manifestar pela
incongruência que o art. 12 apresenta com relação ao sistema acusatório ado-
tado pela Constituição Federal.
No entanto, é possível esperar que o diploma legal em estudo venha
a sofrer a cada dia mais críticas da comunidade acadêmica, sobretudo por-
que traz em seu bojo a previsão de políticas preventivas e repressivas muito
sensíveis no plano nacional e internacional. Trata-se de um desafio enfren-
tado por todos os Estados Democráticos de Direito, qual seja, prevenir
ou punir os que cometem atos terroristas sem perder de vista as garantias
processuais constitucionais.

CONCLUSÃO

Pelo estudo da presente pesquisa se pôde vislumbrar que as políticas de


prevenção e combate ao terrorismo são desafios inerentes a todos os Estados
que integram os órgãos internacionais e diversos fatores justificam essa afir-
mação. Inicialmente, pode-se apontar como um dos elementos a inexistência
de um conceito que possa ser aceito internacionalmente, pois os Estados dão

tag-Sentenca-do-Juiz-Federal-Marcos-Josegrei-da-Silva-da-14%C2%AA-Vara-Federal-de-Curitiba.
pdf. Acesso em: 08 mai 2017.
98 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

dimensões diferentes a tal fenômeno, de acordo com suas concepções ideoló-


gicas e interesses políticos.
Outro aspecto observado é que a ausência de uma definição também se
deve ao fato de que o terrorismo, ao longo da história, assumiu formas de atua-
ção diferentes, tornando-se um fenômeno permeado de complexidades. Mas foi
no século XXI, sobretudo com os atentados ocorridos nos Estados Unidos em
11 de setembro de 2001, que o terror passa a ser encarado como um fenômeno
globalizado e transnacional, muito influenciado pela velocidade dos meios de
transporte e fluxo de informações. Neste sentido, esses acontecimentos promo-
veram preocupação e amplo debate na comunidade internacional, influencian-
do a criação de diversas convenções tratando da problemática, muito embora as
primeiras preocupações neste sentido datem da década de 1960.
No plano interno dos Estados, diversas foram as legislações de cunho
administrativo, penal e processual penal no sentido de prevenir, processar e
punir ações praticadas por grupos terroristas. Neste sentido, o Brasil editou a
Lei n. 13.260/2016, que disciplina a matéria tratando das disposições investi-
gatórias e processuais penais.
Muito embora o Brasil não esteja diretamente na rota dos países mais
ameaçados de ataques terroristas, considera-se positiva a existência de um ins-
trumento normativo específico acerca do tema, já que seria um desafio para
as normas de direito penal anteriormente existentes conseguir enquadrar tais
condutas em seus tipos penais. Entretanto, não se pode deixar de observar que
a referida lei vai de encontro à escolha constitucional pelo modelo garantista
do sistema acusatório.
É que o referido diploma normativo fere a separação entre os órgãos que
integram a relação processual (acusador, defesa e julgador) e a gestão e inicia-
tiva das provas. Assim, o dispositivo cria uma espécie de juízo de instrução,
nunca observado na legislação brasileira, uma vez que a atividade do inquérito
cabe às polícias judiciárias, diretamente ou com auxílio do órgão competente
para oferecer denúncia.
No mesmo direcionamento vem sendo observado o entendimento do
Supremo Tribunal Federal em diversos julgados discutidos nesta pesquisa, nos
quais preponderou o entendimento de ser estranha à atuação jurisdicional a
participação ativa na fase pré-processual, sob o risco de contaminar a convic-
ção do juiz no momento de proferir suas decisões, desequilibrando a paridade
de armas e atentando contra a acusatoriedade, regra do processo penal brasi-
leiro à luz das normas constitucionais.
Portanto, considera-se que, muito embora o fenômeno do terrorismo re-
queira uma posição efetiva dos Estados, seu combate não pode atentar contra
os princípios do Estado Democrático de Direito, sob pena de infringir direitos
fundamentais conquistados a duras penas ao longo da evolução da humanidade.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 99
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Capítulo 7
A Possível Responsabilidade do
Ex-Presidente da Costa do Marfim à
Luz do Tribunal Penal Internacional
Anna Virginia Pereira Lemos de Freitas

INTRODUÇÃO

O presente trabalho acadêmico, aborda três momentos, a saber, aspectos


sobre o Tribunal Penal Internacional (TPI), as investigações deste tribunal
sobre as supostas práticas criminosas do ex-presidente da Costa do Marfim,
Laurent Gbagbo, bem como, a sua possível responsabilidade perante a já men-
cionada corte internacional.
Em primeiro momento, argumenta-se os principais aspectos do TPI, anali-
sando sua competência material, requisitos de admissibilidade, a composição dos
seus órgãos e as fases processuais de investigação, pré-julgamento, julgamento, e fi-
nalmente, de apelação, que envolvem a construção da responsabilidade do acusado.
Posteriormente, em segundo tópico, analisou-se informações pessoais so-
bre o ex-presidente da Costa do Marfim, as acusações criminosas a ele impu-
tadas, bem como, as ligações dos crimes com o Sr. Gbagbo consideradas pela
câmara de pré-julgamento desta Corte.
Em último tópico, defendeu-se as conceituações sobre a teoria do crime, o
crime contra a humanidade, de acordo com o Estatuto de Roma, e os requisitos
inerentes a responsabilização do superior hierárquico. Assim, a partir das eviden-
cias construídas pelo TPI, estudou-se o processamento atual deste caso, juntamente
com as decisões da câmara de pré-julgamento, e as discussões que estão sendo tra-
vadas pela Procuradoria, a Defesa do acusado, e o Governo da Costa do Marfim.

2. TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

O Tribunal Penal Internacional, é um tribunal internacional permanente,


criado para investigar, processar e julgar os indivíduos acusados de cometer crime
de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra ou crime de agressão1.

1
NETHERLANDS, International Criminal Court. Understanding the international criminal court.
The Hague, Netherlands. 2015. p. 3.
102 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Em razão da conferencia de Roma, em junho de 1998, emergiram três


grupos básicos de estados, com o Canadá e a Noruega, defendendo um tribu-
nal criminal internacional poderoso e robusto. Neste caso, o grupo em ques-
tão apoiava um modelo de promotor proprio motu, ou seja, um promotor que
tem o poder de iniciar o próprio processo2.
A partir disso, sabe-se que o princípio da complementariedade está presente
no Estatuto de Roma de maneira implícita ao retratar que o TPI será comple-
mentar às jurisdições penais nacionais3. Isto porque, o termo “complemen-
taridade” significa que os sistemas nacionais têm prioridade em termos de
resolução de seus próprios problemas de direitos humanos, e somente quando
eles não conseguem fazê-lo, os órgãos internacionais podem prosseguir4.
Sabendo disso, a admissibilidade do TPI está condicionada à falha dos
sistemas de justiça nacionais, intervindo na situação como último recurso.
Ademais, o Estatuto de Roma aborda está questão determinando que seria
necessário a falta de disposição do Estado, ou sua incapacidade de prosseguir
em determinada situação5.
Ainda, o TPI pode decidir examinar a admissibilidade de um caso por
sua própria iniciativa, mesmo que a questão não seja levantada por uma das
partes. Assim, a linha entre jurisdição e admissibilidade nem sempre é fácil de
discernir, e as disposições do Estatuto que parecem abordar um ou o outro
conceito, parecem se sobrepor.6
Sobre isso, Schabas exemplifica que, em uma disposição claramente juris-
dicional, o Estatuto declara que o tribunal tem jurisdição sobre os crimes de
guerra, em particular quando cometidos como parte de um plano ou política
ou como parte de uma conduta em grande escala de tais crimes7.
Sabendo disso, entende-se que o TPI é composto por quatro órgãos: a Pre-
sidência, as Câmaras de Julgamento, o Gabinete do Procurador e o Registro.
Cada um desses órgãos tem um papel e mandato específicos8.
A Presidência é composta por três juízes (o Presidente e dois Vice-Pre-
sidentes) eleitos pela maioria absoluta dos 18 juízes do Tribunal, e sendo
responsável pela administração do Tribunal, com exceção do Gabinete do

2
BARNETT, Laura. The international criminal court: history and role. Library of Parliament. Ottawa,
Canada, 2013. p. 5.
3
SCHABAS, William A. An Introduction to the International Criminal Court. Third Edition. Cam-
bridge University. New York. 2007. p. 174.
4
NETHERLANDS. International Criminal Court. Understanding the International Criminal Court.
op.cit., p. 176.
5
Ibid., p. 171.
6
SCHABAS, William A. An Introduction to the International Criminal Court. op.cit., p. 173.
7
Ibid., p. 173.
8
NETHERLANDS. International Criminal Court. Understanding the International Criminal Court.
op.cit., p. 9.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 103
Procurador. Além da função administrativa, a Presidência é responsável por
uma variedade de funções especializadas estabelecidas no Estatuto.
Neste sentido, entre suas atribuições, a presidência decide sobre a carga de
trabalho adequada dos outros quinze juízes, e pode propor que o número de juí-
zes seja aumentado, quando isso for considerado necessário e apropriado, embo-
ra qualquer aumento tenha de ser autorizado pela Assembleia de Estados Partes9.
Por outro lado, as Câmaras de Julgamento, são atribuídos às três divisões
judiciais do Tribunal: a divisão de Pré-julgamento, a divisão de Julgamento e
a divisão de Recursos10.
Neste sentido, a fase de julgamento e a fase de pré-julgamento são
compostas por no mínimo seis juízes que devem servir por pelo menos três
anos dentro de sua câmara. Sobre isso, os juízes são atribuídos às várias
divisões de processamento com base em suas qualificações e experiência,
e para garantir uma combinação adequada de conhecimentos em direito
penal internacional11.
As câmaras de pré-julgamento, resolvem todas as questões que surjam
antes da fase de julgamento começar. Neste ponto, o seu papel é essencial-
mente supervisionar a forma como o Gabinete do Procurador realiza as suas
atividades de investigação e fiscalização, para garantir os direitos dos acusados,
vítimas e testemunhas durante a fase de investigação e a integridade dos pro-
cedimentos. Ainda, as câmaras de pré-julgamento decidem se devem ou não
emitir mandados de prisão ou convocação para comparecer na audiência e
confirmar ou não as acusações contra uma pessoa suspeita do crime12.
Neste caso, após o exame do pedido e do material de apoio feito pela câmara
de pré-julgamento, os juízes decidirão pela competência do TPI no caso especifico
e pela existência de uma base razoável para proceder à fase de julgamento13.
Em relação as câmaras de julgamento, uma vez emitido um mandado de
prisão, o suposto agressor preso e os autos confirmados por uma câmara de
primeira instância, a Presidência constitui uma câmara de julgamento compos-
ta por três juízes para julgar o caso. Sobre isso, a principal função da câmara
de primeira instância é garantir que os julgamentos sejam justos e conduzidos
com pleno respeito pelos direitos do acusado, das vítimas e das testemunhas14.

9
SCHABAS, William A. An Introduction to the International Criminal Court. op.cit., p. 345.
10
NETHERLANDS. International Criminal Court. Understanding the International Criminal Court.
op.cit., p. 9.
11
SCHABAS, William A. An Introduction to the International Criminal Court. op.cit., p. 346.
12
NETHERLANDS. International Criminal Court. Understanding the International Criminal Court.
op.cit., p. 10.
13
SHAW, Malcolm N. International Law. op.cit., p. 413.
14
NETHERLANDS. International Criminal Court. Understanding the International Criminal Court.
op.cit., p. 10.
104 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Após isso, a câmara de julgamento determina se o acusado é inocente ou


culpado das acusações e, se ele for declarado culpado, pode impor uma pena
de prisão por um determinado número de anos que não exceda um máximo
de trinta anos ou prisão perpétua15. Ademais, a câmara pode impor sanções
financeiras, visando a reparação do prejuízo sofrido pelas vítimas, incluindo
compensação, restituição ou reabilitação16.
E finalmente, a câmara de recurso é composta pelo Presidente da corte e
por outros quatro juízes. Neste ponto, todas as partes no julgamento podem
recorrer ou solicitar autorização para apelar as decisões das câmaras de Pré-
-julgamento e de julgamento. Ademais, a câmara de Recurso pode defender,
reverter ou alterar a decisão apelada, incluindo julgamentos e decisões de sen-
tença, e pode até mesmo solicitar um novo julgamento perante uma outra
câmara de julgamento17.

3. A PROCURADORIA V. LAURENT GBAGBO

3.1. Laurent Gbagbo

Laurent Gbagbo, nasceu em 31 de maio de 1945, na aldeia ‘Mama’ no


município de Ouragahio, departamento de Gagnoa na Costa do Marfim18.
Neste caso, o Sr. Gbagbo, ex-presidente da Costa do Marfim, é acusa-
do de ter responsabilidade criminal individual por quatro crimes contra
a humanidade, sendo estes, em conjunto com membros de seu círculo
interno e através das forças armadas pró-Gbagbo, solicitando e induzindo
a comissão ou, a título subsidiário, contribuindo de qualquer outra forma
para a comissão dos crimes de homicídio, violência sexual, atos desuma-
nos, e perseguição19.
Sobre isso, o TPI entende que estes crimes foram cometidos entre 16 e
19 de dezembro de 2010 durante e após uma marcha pró-Ouattara na sede da
Televisão Nacional da Costa do Marfim (TNC), em 3 de março de 2011, bem
como, em uma manifestação feminina em Abobo, em 17 de março de 2011,
bombardeando uma área densamente povoada20.

15
SHAW, Malcolm N. International Law. op.cit., p. 417.
16
NETHERLANDS, International Criminal Court. Understanding the International Criminal Court.
op.cit., p. 10.
17
Ibid., p. 10.
18
NETHERLANDS. International Criminal Court. The Prosecutor v. Laurent Gbagbo and Charles Blé
Goudé. Case Information Sheet. The Hague, Netherlands. 2015. p. 1.
19
Ibid.
20
Ibid.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 105
3.2. As acusações imputadas ao ex-presidente da Costa do Marfim

Em exame preliminar da situação, em 3 de outubro de 2011, a câmara de


pré-julgamento autorizou o início de uma investigação na Costa do Marfim,
em relação a crimes da jurisdição deste tribunal internacional supostamente
cometidos pelo seu ex-presidente desde 28 de novembro de 201021.
Neste sentido, a Costa do Marfim, que não era parte no Estatuto, aceitou a
jurisdição do TPI em 18 de abril de 2003, mediante declaração feita em confor-
midade com o artigo 12 do mesmo diploma. Posteriormente, em 14 de dezem-
bro de 2010 e em 3 de maio de 2011, a Presidência da Costa do Marfim recon-
firmou a aceitação do país por esta jurisdição. Ademais, a Procuradoria do TPI,
após examinar a situação do referido país, concluiu que os critérios para abrir
uma investigação estavam atendidos, submetendo, em 23 de junho de 2011, um
pedido de autorização para abrir investigações por sua própria iniciativa22.
Prosseguindo, a Procuradoria do TPI esclareceu que as competências ratio-
ne materiae, loci e temporis foram respeitadas, já que a prática de crimes contra a
humanidade está expressa nos termos do artigo 7º do Estatuto de Roma, estes
crimes ocorreram no território da Costa do Marfim, bem como, liga-se ao pe-
ríodo entre 16 de dezembro de 2010 e 12 de abril de 2011. Além disso, analisa-se
a fundamentação da base razoável de evidências abordadas na confirmação das
acusações contra o Sr. Gbagbo, fato este ocorrido em 12 de junho de 201423.
Em primeiro momento, defende-se que atos de violência foram praticados
pelas forças pró-Gbagbo em quatro situações, a saber, ataques relacionados às
manifestações no edifício da Televisão Nacional da Costa do Marfim, ataque
em uma manifestação feminina em Abobo, bombardeamento do mercado de
Abobo, e o ataque a Yopougon24.
Neste sentido, sobre a primeira situação, a Procuradoria do TPI alega que,
entre 16 e 19 de dezembro de 2010, em Abidjan, durante e após uma marcha
pró-Ouattara na sede da TNC, as forças pró-Gbagbo mataram pelo menos 45
pessoas, praticaram violência sexual em pelo menos 16 mulheres e meninas,
bem como, feriram pelo menos 54 pessoas25.
Sobre isso, a evidência perante a câmara mostra que uma manifestação
levada ao prédio de televisão em questão, foi planejada pelos líderes da

21
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision no.: ICC-02/11-01/11. Decision on the con-
firmation of charges against Laurent Gbagbo. The Hague, Netherlands, June 12, 2014. p. 6.
22
NETHERLANDS. International Criminal Court. The Prosecutor v. Laurent Gbagbo and Charles Blé
Goudé. Case Information Sheet. op.cit., p. 2.
23
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision no.: ICC-02/11-01/11. Decision on the con-
firmation of charges against Laurent Gbagbo. op.cit., p. 10.
24
Ibid., p. 13.
25
Ibid.
106 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

aliança política Union of Houphouetists for Democracy and Peace com vários
dias de antecedência, sendo anunciada atráves de vários canais da mídia.
Ainda, sabe-se que o objetivo da manifestação feita evidenciou-se na esco-
lha de um novo diretor para a TNC, acabando com o controle de Laurent
Gbagbo sobre ela26.
Além disso, de acordo com a evidência, a intenção de realizar tal manifes-
tação era conhecida pelos altos comandantes das forças de segurança e defesa.
Em complemento, concluiu-se que uma reunião ocorreu na noite de 14 de
dezembro de 2010 na residência presidencial, durante a qual Laurent Gbagbo
proibiu a manifestação e instruiu os altos comandantes das forças armadas a
tomarem medidas necessárias para preveni-la27.
Em detalhe, a operação das forças armadas estava sob o controle do Chefe
do Estado-Maior, que delegou o comando das unidades no terreno ao Diretor-
-Geral da Polícia Nacional. Assim, entende-se que a ordem geral atribuída às
unidades de polícia era impedir todo acesso à TNC28.
Dessa forma, a câmara concluiu que a repressão violenta da manifesta-
ção de partidários do Union of Houphouetists for Democracy and Peace em 16 de
dezembro de 2010 e a violência nos dias que se seguiram resultaram no assas-
sinato de pelo menos 45 pessoas, a violação sexual de pelo menos 16 mulheres
e meninas e a lesão de pelo menos 54 pessoas29.
Ademais, a câmara observou que a repressão à manifestação foi planejada
e coordenada, demonstrando que:

1. Laurent Gbagbo deu instruções para impedir a manifestação;


2. A violência contra os manifestantes foi utilizada de forma planejada
em todas as rotas que levaram ao prédio da televisão;
3. No início da manifestação algumas unidades das forças armadas aler-
taram os manifestantes para que não continuassem, pois seriam mortos
se o fizessem;
4. A violência aumentou de intensidade, à medida que alguns manifestan-
tes se aproximaram do edifício de televisão, sendo alvos de armas de fogo
e granadas de fragmentação30.

Neste caso, a câmara entendeu que Laurent Gbagbo foi mantido infor-
mado sobre os acontecimentos por meio de chamadas telefônicas do Chefe de
Gabinete, havendo no final da tarde ou à noite de 16 de dezembro de 2010,
26
Ibid.
27
Ibid., p. 14.
28
Ibid.
29
Ibid., p. 19.
30
Ibid., p. 20.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 107
uma reunião no edifício do Estado-Maior para discutirem as mortes de civis
durante a operação31.
Em segundo momento, a Procuradoria do TPI alegou que, em 3 de março
de 2011, as forças pró-Gbagbo mataram sete mulheres e feriram pelo menos três
pessoas que participaram de uma manifestação feminina pró-Ouattara na comuna
de Abobo em Abidjan. Sobre isso, as provas apresentadas à câmara indicam que,
na manhã de 3 de março de 2011, um grande número de mulheres se reuniram
para uma manifestação em Abobo para exigir a renúncia de Laurent Gbagbo32.
Prosseguindo, a evidência demonstra que, enquanto a manifestação ocor-
ria, um comboio das forças armadas, incluindo um veículo blindado montado
com uma metralhadora, abriu fogo na multidão, dirigindo tiros contra mani-
festantes desarmados. Sobre isso, várias testemunhas, que assistiram à marcha
ou estavam presentes nas proximidades, relatam que ouviram tiros de armas
depois que o comboio passou pelos manifestantes33.
A partir disso, levando em consideração a totalidade das evidências co-
lhidas pelo TPI em relação ao evento, a câmara considera que existem provas
suficientes para concluir que esse ataque é atribuível as forças armadas34.
Em terceiro momento, a Procuradoria do TPI alegou que, em 17 de mar-
ço de 2011, as forças pró-Gbagbo mataram pelo menos 40 pessoas e feriram
pelo menos 60 pessoas no mercado de Abobo, bombardeando uma área den-
samente povoada35.
Neste caso, a evidência demonstra que, em 17 de março de 2011, uma sé-
rie de bombas foram despejadas em Abobo, resultando em várias mortes, bem
como, que tais bombardeios foram ordenados pela presidência36.
E finalmente, em quarto momento, a Procuradoria do TPI alegou que,
em torno de 12 de abril de 2011, em Yopougon, as forças pró-Gbagbo mata-
ram pelo menos 75 pessoas provenientes, principalmente, do norte da Costa
do Marfim e países vizinhos da África Ocidental, e praticaram violência sexual
em pelo menos 22 mulheres37.
Sobre isso, a análise das evidências indica que, em 12 de abril de 2011,
as forças pró-Gbagbo atacaram os bairros de Yopougon de Doukouré e Mami
Faitai. Neste ponto, os acusados, armados, atacaram pessoas na rua e invadi-
ram casas, matando, praticando estupros e ferindo pessoas38.

31
Ibid., p. 21.
32
Ibid.
33
Ibid., p. 22.
34
Ibid., p. 25.
35
Ibid.
36
Ibid.
37
Ibid., p. 31.
38
Ibid.
108 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Ainda, embora existam informações que sugerem que a violência em Yo-


pougon foi motivada pela raiva e um desejo de vingança em razão da prisão de
Laurent Gbagbo, a evidência indica que os adeptos de Gbagbo em Yopougon
abrigaram aversão àqueles que eles consideravam “inimigos” em momento
anterior e independente da prisão do ex-presidente39.

3.3. A ligação de Laurent Gbagbo com as práticas criminosas

Neste ponto, a câmara de pré-julgamento do TPI analisou as ligações dos


fatos criminosos com o ex-presidente da Costa do Marfim, a partir do seu
círculo interno e as forças pró-Gbagbo, expressões de intenção de permanecer
no poder a qualquer custo, atividades preparatórias para o uso da violência,
coordenação e planejamento do uso da violência, e a falta de sanção ou pre-
venção da violência40.
Em relação ao primeiro fator de ligação, de acordo com a Procurado-
ria, Laurent Gbagbo cometeu os crimes acusados em conjunto com várias
outras pessoas pertencentes a um círculo íntimo restrito. Sobre isso, a câ-
mara alegou que as provas mostram o esforço para manter o ex-presidente
no poder, a qualquer custo, inclusive pelo uso da força contra civis. Assim,
de acordo com as evidências, foi compartilhado com seus associados seu
objetivo de permanecer no poder, solicitando o auxílio de todos para atin-
gir esta finalidade41.
Ademais, as evidências demonstram que Laurent Gbagbo e seu círculo
interno controlavam uma organização composta por vários componentes
identificáveis, a saber, forças armadas, milícias, mercenários e organizações
juvenis42.
Sobre as forças armadas, especificamente, a câmara entendeu que estas
forças eram o principal poder do Estado, sob comando da presidência, bem
como, desprovida de qualquer desobediência pelas ordens de seu superior. As-
sim, a câmara entende haver provas suficientes para demonstrar que Laurent
Gbagbo e seus subordinados exerciam o controle sobre as forças de segurança
através da hierarquia oficial do Estado43.
Em complemento, a câmara afirmou possuir evidencias suficientes para
demonstrar que existe intenção por parte de Laurent Gbagbo e o círculo inter-
no em manter o poder a qualquer custo, inclusive se utilizando da força con-

39
Ibid., p. 34.
40
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision no.: ICC-02/11-01/11. Decision on the con-
firmation of charges against Laurent Gbagbo. op.cit.
41
Ibid., p. 46.
42
Ibid., p. 49.
43
Ibid., p. 52.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 109
tra civis. Além disso, as evidências estabelecem certos eventos antes ou durante
os estágios iniciais da crise pós-eleitoral44.
Por outro lado, a câmara também entende que o ex-presidente da Costa
do Marfim tomou medidas específicas para assegurar a fidelidade dos mem-
bros das forças armadas, antes do início da violência pós-eleitoral. Prosseguin-
do, as evidências demonstram que, em julho e agosto de 2010, vários oficiais
das forças armadas foram promovidos para cargos mais altos através de decre-
tos presidenciais emitidos por Laurent Gbagbo45.
Ademais, entendeu-se que, além do recrutamento oficial nas forças arma-
das, outros esforços concentraram-se na construção e manutenção de grupos
de milícias leais. Isto porque, a evidência mostra que diferentes grupos re-
crutaram e treinaram jovens em vários bairros de Abidjan, em particular em
Yopougon, a partir de 2004 e continuando durante a crise pós-eleitoral46.
Em seguida, a câmara entendeu que o Sr. Gbagbo foi regularmente in-
formado e participou ativamente dos desenvolvimentos nos ataques através
de seus contatos, inclusive em reuniões, com os altos comandantes das forças
armadas, bem como, outros membros do círculo interno47.
Ainda, as informações disponíveis para a câmara indicam que não foram
realizadas consultas sérias em relação a alegações de possíveis mortes de civis
no contexto da crise pós-eleitoral48. Sobre isso, a câmara observou que a co-
missão de inquérito criada pelo Sr. Gbagbo não abordou alegações específicas
relativas, por exemplo, aos acontecimentos no contexto das manifestações no
edifício de televisão, bem como, não abordou nenhuma investigação séria e
aprofundada sobre as denúncias de violações de direitos humanos49.
Prosseguindo, em 12 de junho de 2014, a câmara concluiu, na confir-
mação das acusações, que existem provas suficientes para acreditar que Lau-
rent Gbagbo, nascido em 31 de maio de 1945 em Mama, Costa do Marfim,
é criminalmente responsável pelos crimes contra a humanidade de assassi-
nato, violência sexual, atos desumanos e perseguição, em Abidjan, Costa do
Marfim. Ademais, alega-se que as acusações foram cometidas entre 16 e 19
de dezembro de 2010 durante e após uma marcha pró-Ouattara na sede da
televisão nacional; em 3 de março de 2011, em uma manifestação feminina
em Abobo; e em 17 de março de 2011, ao bombardear uma área densamente
povoada em Abobo.

44
Ibid., p. 58.
45
Ibid., p. 63.
46
Ibid., p. 69.
47
Ibid., p. 75.
48
Ibid., p. 87.
49
Ibid., p. 90.
110 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Em 11 de setembro de 2014, a câmara decidiu sobre a recusa da peça


de apelação da defesa do Sr. Gbagbo. Sobre isso, a câmara reforçou as
alegações da defesa de que a câmara se recusou a examinar a falta de inves-
tigação da Procuradoria em relação a outras circunstancias50. No entanto,
a defesa não identificou uma questão concreta decorrente da decisão que
poderia ter tido um impacto essencial sobre a determinação da câmara. Em
vez disso, o argumento parece refletir um amplo desacordo com a maneira
como a Procuradoria conduziu a investigação e o exercício da função de
supervisão da câmara51.
Prosseguindo, em 17 de setembro de 2014, decidiu-se pela constituição
da câmara de julgamento nos termos do artigo 61 do Estatuto de Roma52,
bem como, foram praticados diversos atos e decisões comuns ao longo do
processo até os dias atuais. Neste sentido, observe-se, por exemplo, que
foi negada, pela sétima decisão, a revisão de detenção do Sr. Gbagbo53, as
comunicações de evidências foram divulgadas54, houve apresentação das
listas de testemunhas e de evidências55, ocorreram solicitações de reclassifi-
cação de documentos56, e foram propostas as modalidades de participação
das vítimas no julgamento57.
Assim, em 5 de julho de 2017, o último documento publicado pelo TPI
descreve uma ordem de reclassificação de documentos58. Em complemento,
enfatiza-se que o caso de Laurent Gbagbo permanece em fase de julgamento
levando em consideração todas as provas para a emissão de um veredito e,
quando há um veredicto de culpa, emitir uma sentença.

50
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision no.: ICC-02/11-01/11-680. Decision on the
Defence request for leave to appeal the “Decision on the Confirmation of Charges against Laurent
Gbagbo”. Haia, September 11, 2014. p. 6.
51
Ibid., p. 7.
52
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision no.: ICC-02/11-01/11-682. Decision re-
constituting Trial Chamber I and referring to it the case of The Prosecutor v. Laurent Gbagbo.
Haia, September 17, 2014. p. 3.
53
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision no.: ICC-02/11-01/11-718. Seventh deci-
sion on the review of Mr. Laurent Gbagbo’s detention pursuant to Article 60(3) of the Statute.
Haia, November 11, 2014.
54
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision no.: ICC-02/11-01/11-735. Prosecu-
tion’s Communication of Evidence Disclosed to the Defence on 3 December 2014. Haia. De-
cember 4, 2014.
55
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision no.: ICC-02/11-01/11-759. Prosecution’s
submission of its List of Witnesses and List of Evidence. Haia, February 6, 2015.
56
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision no.: ICC-02/11-01/11-245. Order reclas-
sifying documents. Haia, June 11, 2015.
57
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision no.: ICC-02/11-01/11-75. Further Submis-
sions on the Modalities of Victims’ Participation at Trial. Haia, May 21, 2015.
58
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision no.: ICC-02/11-01/11-806. Order reclas-
sifying documents. op.cit.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 111
4. ANÁLISE DA POSSÍVEL RESPONSABILIDADE DE LAURENT
COMO SUPERIOR HIERÁRQUICO

4.1. A Teoria do Crime

A partir dos conhecimentos de Wezel, a tipicidade, a antijuridicidade e a


culpabilidade são três elementos que convertem uma ação em um delito. Ade-
mais, a culpabilidade, pressupõe a antijuridicidade do fato, do mesmo modo
que a antijuridicidade, por sua vez, tem de estar concretizada em tipos legais.
Assim, a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade estão relacionadas
logicamente de tal modo que cada elemento posterior do delito pressupõe o
anterior59.
Além disso, Zaffaroni conceitua delito como uma conduta humana in-
dividualizada mediante um dispositivo legal (tipo) que revela sua proibição
(típica), que por não estar permitida por nenhum preceito jurídico (causa de
justificação) é contrária ao ordenamento jurídico (antijurídica), e que, por
ser exigível do autor que atuasse de outra maneira nessa circunstância, lhe é
reprovável (culpável)60.
Neste sentido, estas noções da formação do crime aplicadas em âmbito
nacional, também refletem existência no direito penal internacional, tendo em
vista que o âmbito internacional adota o binômio delito/pena, bem como,
fundamenta-se na culpabilidade do sujeito61. Sobre isso, o Estatuto de Roma
não definiu o que é crime in genere, porém, definiu cada figura em specifico (ge-
nocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão).
Em complemento, da mesma maneira que o crime de âmbito nacional,
o previsto no estatuto, está composto pela ação, tipicidade, antijuridicidade, a
culpabilidade e a punibilidade. Assim, somente quando todos esses elementos
estão presentes ao mesmo tempo, estamos diante de um crime62.

4.2. Crime contra a humanidade

Em relação ao crime contra a humanidade, Schabas entende que esta con-


duta criminosa significa, qualquer dos atos previstos no estatuto, quando co-
metidos como parte de um ataque generalizado ou sistemático dirigido contra
qualquer população civil, com conhecimento do ataque63. Em complemento,
a definição de ataque é entendida como um curso de conduta que envolve a

59
WELZEL, Hans. Derecho Penal: Parte General. Buenos Aires: Roque Depalma, 1956. p. 57.
60
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Derecho Penal: Pane General. Buenos Aires: Ediar, 2005. p. 324.
61
SHAW, Malcolm N. International Law. op.cit., p. 437.
62
Ibid., p. 439.
63
SCHABAS, William A. An Introduction to the International Criminal Court. op.cit., p. 101.
112 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

comissão múltipla dos atos contra qualquer população civil, de acordo ou em


favor de um Estado ou de uma política organizacional para cometer tal ataque64.
Sabendo disso, as condutas de assassinato, violência sexual, atos desuma-
nos, e perseguição, compõem o crime contra a humanidade e foram aferidas
pela câmara de pré-julgamento como atos praticados pelas forças pró-Gbagbo.
Neste caso, acredita-se que as forças pró-Gbagbo mataram pelo menos
160 pessoas, praticaram violência sexual em pelo menos 38 pessoas, feriram
pelo menos 118 pessoas, e pelo menos 316 vítimas dos assassinatos, estupros e
lesões cometidos pelas forças pró-Gbagbo foram perseguidos65.
Sobre isso, analisou-se os elementos presentes na definição de crime con-
tra a humanidade, e entendeu-se que o ataque dirigido a população civil segue
um curso de condutas múltiplas, incorporando um aspecto sistêmico. Isto
porque, descreve uma série ou fluxo global de eventos como oposição a um
mero conjunto de atos aleatórios. Portanto, enquanto um curso de conduta
deve envolver múltiplos atos, a ocorrência desses atos não é a única prova que
pode ser relevante66.
Ainda, uma vez que o curso de conduta exige um certo “padrão” de com-
portamento, a evidência relevante para provar o grau de planejamento, direção
ou organização por um grupo ou organização também é relevante para avaliar
as conexões e as características comuns entre os atos individuais que demons-
tram a existência de um “curso de conduta”67.
Por estas razões, a câmara concluiu que existem motivos substanciais
para acreditar que, entre 27 de novembro de 2010 e em torno de 12 de abril
de 2011, uma série de atos de violência (incluindo assassinatos, tentativas de
homicídios, estupros, ferimentos graves e prisões arbitrárias) foram realizados
pelas forças pró-Gbagbo e dirigidas contra civis que se consideram os apoian-
tes de uma oposição política pró-Ouattara68.
Além disso, a execução do ataque de acordo com uma política de Es-
tado ou organizacional está relacionada ao entendimento que “política”,
para os fins do Estatuto, deve ser entendida como a promoção ou incentivo
ativo de um ataque contra uma população civil. Sobre isso, a câmara observa
que não se exige prova de que o perpetrador tenha conhecimento de todas
as características do ataque ou os detalhes precisos do plano ou política do
Estado ou organização69.

64
Ibid., p. 102.
65
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision no.: ICC-02/11-01/11. Decision on the con-
firmation of charges against Laurent Gbagbo. op.cit., p. 90.
66
Ibid., p. 94.
67
Ibid., p. 95.
68
Ibid.
69
Ibid., p. 97.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 113
Ainda, a natureza sistemática do ataque relaciona-se ao nível de planeja-
mento. Nesse sentido, a evidência de planejamento ou organização, por um Es-
tado pode ser relevante para provar a política e a natureza sistemática do ataque,
embora os dois conceitos não sejam confundidos. Ademais, a câmara conside-
rou consistentemente que a política pode estar ligada a grupos que governam
um território específico ou a uma organização que tem capacidade para cometer
um ataque generalizado ou sistemático contra a população civil70.
Por conseguinte, a câmara considera que existem motivos substanciais
para acreditar que o ataque, tal como definido acima, foi realizado de acordo
com uma política estatal ou organizativa71.
Em continuidade, a câmara entende que o termo “generalizado” conhece
a natureza em larga escala do ataque e o número de pessoas visadas. No caso
em apreço, a câmara adotou anteriormente a abordagem que a larga escala
do ataque, tem sentido de que “deve ser massivo, frequente, realizado coleti-
vamente com considerável seriedade e dirigido contra uma multiplicidade de
vítimas” e que esta avaliação não é exclusivamente quantitativa ou geográfica,
mas deve ser realizada com base em fatos individuais72.
Por outro lado, o caráter sistemático relaciona-se a natureza organizada dos atos
de violência e à improbabilidade de sua ocorrência aleatória. Assim, a câmara enten-
deu pela existência dos elementos que compõem o crime contra a humanidade73.

4.3. A Responsabilidade do Superior Hierárquico

A responsabilidade do superior hierárquico, é uma forma de responsa-


bilidade indireta, uma vez que o superior não é responsabilizado penalmente
pelos atos criminosos em que participou, mas em conexão com os atos crimi-
nosos cometidos por seus subordinados.
No entanto, a responsabilidade deriva da incapacidade do superior hie-
rárquico de prevenir e punir tais atos e exercer a supervisão e o controle
adequados sobre seus subordinados. Isto porque, os crimes internacionais são
muitas vezes cometidos no âmbito de organizações hierárquicas, forças arma-
das ou movimentos rebeldes, onde alguns indivíduos perpetuam fisicamente
os crimes (subordinados) e certos indivíduos geralmente não são diretamente
envolvidos, mas indiretamente permitem a comissão de tais crimes ou criam
condições favoráveis por
​​ inatividade, no caso, os superiores hierárquicos74.

70
Ibid., p. 98.
71
Ibid., p. 100.
72
Ibid.
73
Ibid. p. 102.
74
VÄRK, René. Superior Responsibility. Estonian National Defence College Proceedings. Vol. 15.
2012. Estonian. p. 143.
114 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Neste sentido, o tipo de responsabilidade superior é a omissão puní-


vel, tendo em vista que o superior não tomou qualquer ação contra, ou, em
qualquer caso não tomou as medidas necessárias e razoáveis para impedir o
crime75. No que diz respeito ao artigo 28 do Estatuto de Roma, o superior é
responsável principalmente pela ausência de controle adequado de seus subor-
dinados através da implementação das ações previstas no referido artigo, mas
não o impedimento do resultado direto76.
No entanto, com base no conhecimento que esta câmara tem na fase atual
do processo, os acontecimentos indicam uma falha por parte de Laurent Gbag-
bo para prevenir a violência ou para tomar medidas adequadas para investigar e
punir os autores dos crimes77. Neste ponto, atente-se ainda para os requisitos ob-
jetivos e subjetivos que determinam a responsabilidade do superior hierárquico
e estão implicados na conduta praticada pelo ex-presidente da Costa do Marfim.
Em primeiro momento, sabe-se que Laurent Gbagbo foi presidente da
Costa do Marfim no período de 26 de outubro de 2000 a 4 de dezembro de
2010, tendo a posição formal de superior hierárquico constante do título ter-
ceiro, a partir do artigo 34 e seguintes da Constituição da Costa do Marfim.
Posteriormente, em relação ao dever de controle efetivo por parte do su-
perior, entende-se que o Presidente, em razão de seu cargo, deve controlar de
modo efetivo os subordinados em razão do poder de comando ou da autorida-
de. Sobre isso, especialmente a capacidade de emitir e impor ordens representa
indício importante da existência de tal comando e autoridade.
Assim, é entendimento pacífico que as condutas ativas praticadas pelo
superior hierárquico que constituam crimes, resultam em sua responsabilidade
penal. Entretanto, em casos que esta conduta não acontece, mas em que seu
dever de vigilância e intervenção não é cumprido, existirá responsabilidade do
superior por omissão.
Para além do exercício de um controle efetivo sobre subordinados, enten-
de-se também que o presidente, ao participar do planejamento das operações
militares e tendo o poder de emitir ordens aos seus subordinados, possui a
capacidade de produzir controle fático, e não simplesmente formal.
Neste caso, as evidências relacionadas ao ex-presidente demonstram que o
Sr. Gbagbo e seu círculo interno controlavam uma organização composta por
vários componentes identificáveis, a saber, forças armadas, milícias, mercená-
rios e organizações juvenis78.

75
AMBOS, Kai. La parte general del Derecho Penal Internacional: bases para uma elaboración
dogmática. Trad.: Ezequiel Malarino. Uruguay: Fundación Konrad-Adenauer, 2008. p. 296.
76
Ibid., p. 298.
77
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision no.: ICC-02/11-01/11. Decision on the con-
firmation of charges against Laurent Gbagbo. op.cit., p. 124.
78
Ibid., p. 49.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 115
Sobre as forças armadas, especificamente, sabe-se que as mesmas eram co-
mandadas pela presidência, bem como, desprovidas de qualquer desobediência
pelas ordens de seu superior. Assim, existem provas suficientes para demons-
trar que Laurent Gbagbo e seus subordinados exerciam o controle sobre as
forças de segurança através da hierarquia oficial do Estado79.
Em complemento, existem evidências suficientes para demonstrar que há
intenção por parte de Laurent Gbagbo e seu círculo interno em manter o po-
der a qualquer custo, inclusive se utilizando da força contra civis80. Além disso,
entende-se também que o ex-presidente da Costa do Marfim tomou medidas
específicas para assegurar a fidelidade dos membros das forças armadas, antes
do início da violência pós-eleitoral. Sabendo disso, as evidências demonstram
que, em julho e agosto de 2010, vários oficiais das forças armadas foram pro-
movidos para cargos mais altos através de decretos presidenciais emitidos por
Laurent Gbagbo81.
Ademais, de maneira a enfatizar o controle material do ex-presidente, en-
tendeu-se que, além do recrutamento oficial nas forças armadas, outros esfor-
ços concentraram-se na construção e manutenção de grupos de milícias leais.
Isto porque, a evidência mostra que diferentes grupos recrutaram e treinaram
jovens em vários bairros de Abidjan, em particular em Yopougon, a partir de
2004 e continuando durante a crise pós-eleitoral82.
Ainda, a câmara entendeu que o Sr. Gbagbo foi regularmente informado
e participou ativamente dos desenvolvimentos nos ataques através de seus con-
tatos, inclusive em reuniões, com os altos comandantes das forças armadas,
bem como, outros membros do círculo interno83.
Dessa forma, não existem dúvidas sobre o controle efetivos e a capaci-
dade de emitir e impor ordens aos seus subordinados, bem como, o conheci-
mento e planejamento do Sr. Gbagbo com os demais comandantes das forças
armadas para que os eventos criminosos ocorressem.
Nesse diapasão, o artigo 28, do Estatuto de Roma, acrescenta, em seu pará-
grafo primeiro, a hipótese de responsabilidade do superior quando o mesmo não
adota as medidas necessárias e razoáveis ao seu alcance para prevenir ou reprimir
a ocorrência do ilícito, alertando as autoridades competentes sobre os incidentes.
Sobre isso, as informações disponíveis para a câmara indicam que não
foram realizadas consultas sérias em relação a alegações de possíveis mortes de
civis no contexto da crise pós-eleitoral84.

79
Ibid., p. 52.
80
Ibid., p. 58.
81
Ibid., p. 63.
82
Ibid., p. 69.
83
Ibid., p. 75.
84
Ibid., p. 87.
116 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Assim, a câmara observou que a comissão de inquérito criada pelo Sr.


Gbagbo não abordou alegações específicas relativas, por exemplo, aos aconte-
cimentos no contexto das manifestações no edifício de televisão, bem como,
não abordou nenhuma investigação séria e aprofundada sobre as denúncias
de violações de direitos humanos85. Dessa forma, resta claro a inexistência de
medidas necessárias e razoáveis prevenir ou, após realizadas as violações, repri-
mir a ocorrência do ilícito.
E finalmente, em relação ao elemento mental, é relevante o entendimento
que, além do superior hierárquico “saber” ou “ter razão de saber”, o doutrina-
dor Kai Ambos86 afirma existir a hipótese de o superior hierárquico delibera-
damente omitir informação que indicasse a ocorrência de crimes.
Portanto, sobre o elemento mental aplicável ao estatuto, Cassese87 afirma que
neste elemento subjetivo, o superior sabe ou deveria saber, que os crimes estão pres-
tes a ser ou estão sendo cometidos por seus subordinados e, no entanto, não toma
nenhuma ação. Neste ponto, observe que em razão da sua superioridade formal e
material, ao não prevenir ou reprimir o ilícito ocorrido, agiu com negligencia em
seu controle efetivo, já que, pelo menos, deveria saber da ocorrência destes crimes.
Sabendo disso, a câmara de pré-julgamento considerou que Laurent Gbag-
bo é responsável por crime contra a humanidade nos termos do artigo 28 do Es-
tatuto. Isto porque, um superior pode ser responsabilizado pela conduta crimi-
nosa praticada por seus subordinados, não cumprindo seu dever de impedir ou
reprimir a conduta ilegal ou submeter o assunto às autoridades competentes88.

CONCLUSÃO

Portanto, acompanhou-se as decisões do processo de Gbagbo frente ao


TPI, com a confirmação das acusações até a fase atual de julgamento. Neste
momento, através das informações contidas e apuradas pelo TPI, este segue
colhendo evidências para fundamentar o juízo de valor da câmara de jul-
gamento, e posteriormente, decidir sobre a responsabilidade criminal do ex-
-presidente da Costa do Marfim.
Assim, de acordo com as evidencias até então coletadas, a câmara de
julgamento vem entendendo pela existência de ligações criminosas com o Sr.
Gbagbo pela caracterização de um círculo íntimo composto por altos coman-

85
Ibid., p. 90.
86
AMBOS, Kai. La parte general del Derecho Penal Internacional: bases para uma elaboración
dogmática. op.cit., p. 332.
87
CASSESE, Antonio. International Criminal Law. Oxford University. New York. 2003. Tradução
nossa. p. 208.
88
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision no.: ICC-02/11-01/11. Decision on the con-
firmation of charges against Laurent Gbagbo. op.cit., p. 124.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 117
dantes, a intenção de manter o poder a qualquer curso, a ausência de investi-
gações sérias e especificas sobre as violações ocorridas, e finalmente, o enten-
dimento da câmara pela possível responsabilidade de Gbagbo perante o artigo
28 do Estatuto de Roma, tendo em vista a o não cumprimento do seu dever
de impedir ou reprimir a conduta ilegal dos seus subordinados ou submeter o
assunto às autoridades competentes.
Dessa forma, a partir da anterior exposição de conhecimentos ligados ao
caso Laurent Gbagbo, acredita-se fielmente que existem indícios de práticas
criminosas relacionadas a crimes contra a humanidade de assassinato, violên-
cia sexual, atos desumanos e perseguição possivelmente praticados pelo Sr.
Gbagbo, e que estão sendo investigados pelo TPI.

REFERÊNCIAS

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Trad.: Ezequiel Malarino. Uruguay: Fundación Konrad-Adenauer, 2008.
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the Defence on 3 December 2014. Haia. December 4, 2014.
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detention pursuant to Article 60(3) of the Statute. Haia, November 11, 2014.
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it the case of The Prosecutor v. Laurent Gbagbo. Haia, September 17, 2014.
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“Decision on the Confirmation of Charges against Laurent Gbagbo”. Haia, September 11, 2014.
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118 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)
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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Derecho Penal: Pane General. Buenos Aires: Ediar, 2005.
Capítulo 8
As Regras de Bangkok e o Tratamento Mínimo
da Mulher-Mãe Encarcerada no Brasil

Nikaelly Lopes de Freitas


Jéssica Ferreira Araújo
Bruna Souza Paula

INTRODUÇÃO

O grande aumento do índice de mulheres encarceradas, já é um fenômeno


sentido mundialmente e ainda que o número de homens presos se mantenha
superior, nas últimas décadas, o crescimento das taxas de aprisionamento de
mulheres é expressivo, e em muito supera o aumento da população carcerária
masculina na mesma época. Com isso, surge a preocupação com a forma que
o cárcere atinge as mulheres, o tratamento recebido por elas e o atendimento
de suas necessidades, principalmente, quando somadas à monoparentalidade e
responsabilização solo de seus filhos.
Buscando um tratamento isonômico e humanizado, além de abordar
questões concernentes ao incentivo da atenção e cuidado com as necessidades
que permeiam a maternidade no cárcere, surgem as Regras de Bangkok, que
estabeleceram internacionalmente o mínimo a ser oferecido às mulheres encar-
ceradas e, consequentemente, aos seus filhos e dependentes.
Diante disso, o presente trabalho, buscou tratar das relações das mulheres
com as práticas criminosas e com o sistema penitenciário, demonstrando a
importância das Regras de Bangkok no contexto do cárcere feminino e os seus
reflexos no ordenamento jurídico e adequação do sistema penitenciário brasi-
leiro. Buscando-se também investigar, de que forma se pode notar a aplicação
das regras mínimas no tratamento destinado às mulheres-mãe presas através
do Estatuto da Primeira Infância.

2. MULHERES E CÁRCERE

A história da criminalidade feminina indica que sua origem estava prin-


cipalmente atrelada às práticas de bruxaria e prostituição, por serem contrárias
120 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

ao papel social estabelecido para as mulheres da época, atividades que ultra-


passam os limites do lar1. De forma que, historicamente, muitos dos presídios
femininos eram administrados por freiras e localizados no interior de conven-
tos, revelando a conotação moral que tem a pena imposta às mulheres.
Dessa forma, para tratarmos da temática que envolve a mulher e a pena
de prisão, é importante analisar todos os elementos que rodeiam o universo
da maioria das mulheres aprisionadas, que envolve desde a privação socioeco-
nômica e desincentivo educacional e profissional, até as questões relacionadas
à violência doméstica, saúde mental, física, uso de drogas e responsabilização
monoparental pelos filhos gerados. Diante do que, é difícil determinar quais
as principais motivações das mulheres ao cometer um crime, mas é a partir do
entendimento destes fatores que se pode direcionar os recursos que produzirão
mudanças duradouras na vida das mulheres presas2.
De acordo com a World Female Imprisionment List3, estudo realizado
pelo Institute for Criminal Policy Research da Birkbeck, University of Lon-
don, elaborado a partir de 219 sistemas penitenciários de diversos Estados
do globo, existiam até o ano de 2015, 700 mil mulheres no sistema prisio-
nal ao redor do mundo, indicando a existência de um fenômeno global
de crescimento do número de mulheres presas, visto que no mundo esse
crescimento foi de 50% entre 2000 e 2014, possuindo o Brasil a quinta
maior população carcerária feminina do mundo, com quase 38 mil mulheres
aprisionadas, o que representa 34,6 mulheres presas a cada 100 mil mulheres
que habitam o país.
No ano de 2014, com o intuito de contribuir com a garantia dos direitos
das mulheres encarceradas no Brasil, foi realizado o Levantamento Nacional
de Informações Penitenciárias Femininas (Infopen Mulheres)4 que apontou,
além das inúmeras violações dos direitos das mulheres, o exorbitante aumen-
to na população carcerária feminina brasileira, que embora ainda represente
6,7% da população prisional total, o número absoluto de mulheres presas no
Brasil aumentou 567% entre os anos de 2000 e 2014, enquanto que o cresci-
mento da população carcerária masculina no mesmo período foi de 220%.

1
FRANÇA, M. H. O. Vigiadas e punidas: como vivem as mulheres criminosas? In: XVI Encontro Lati-
no Americano de Iniciação Científica, XII Encontro Latino Americano de Pós-Graduação e VI Encontro
Latino Americano de Iniciação Científica Júnior. 2012.
2
MOLONEY, K. P.; VAN DEN BERGH, B. J.; MOLLER, L. F. Women in prison: The central issues of
gender characteristics and trauma history. Public Health, v. 123, p. 426–430, 2009.
3
Organizado por Roy Walmsley, Diretor do World Prison Brief. Disponível em: <http://www.prisons-
tudies.org/sites/default/files/resources/downloads/world_female_imprisonment_list_third_edition_0.
pdf>. Acesso em: 16. out. 2017
4
Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Femininas − Infopen Mulheres. 2014. Dispo-
nível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-
no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf >. Acesso em: 14 set. 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 121
O referido estudo além de demonstrar o fenômeno crescente do encarce-
5

ramento em massa de mulheres, também indicou que a maioria das mulheres


submetidas ao cárcere são mulheres negras, jovens e mães, com baixa escola-
ridade, responsáveis pelo sustento familiar e que não possuíam trabalho for-
mal anterior ao cárcere, advindo de classes economicamente vulneráveis. Além
disso, a maioria delas encontra-se presa em razão de tráfico de drogas, não
relacionado a grandes organizações criminosas e mais de 60% das aprisionadas
foram condenadas a penas de até 08 anos. Em alguns estados, a maioria das
presas cumpriam penas de 06 meses a 01 ano e grande parte, ainda aguardam
condenação, o que reflete a ideia de prevalência do uso de pena privativa de
liberdade, até para os crimes considerados menos gravosos.
De todo modo, essa não é uma realidade exclusivamente brasileira. Nos
Estados Unidos houve um aumento de 14 vezes no número de mulheres en-
carceradas entre os anos de 1970 e 2014, indo de menos de 8 mil para 110
mil mulheres presas, das quais 80% são mães e 86% relatam ter sofrido algum
tipo de violência sexual durante a vida e sua maioria está presa por crimes não
violentos6. Em Portugal7, a população prisional feminina cresceu 37,4% entre
os anos de 2010, quando eram 627 presas, e 2015 quando já somavam 862 e
muito embora o número seja ainda pequeno quando comparado ao número
de presos ou ainda com a população carcerária feminina de outros países e
territórios, o fenômeno é o mesmo, a rapidez com que cresce o número de
mulheres aprisionadas mundialmente chama atenção e exige a elaboração de
políticas públicas.
Nesse sentido, vale destacar, que o sistema prisional no mundo foi esta-
belecido a partir de uma ótica masculina, motivado, principalmente, pelo alto
índice de homens presos desde os primórdios do poder punitivo aliado as
outras formas de controle exercidas sobre as mulheres, como a família, escola,
religião e sociedade8, o que faz com que os presídios femininos reproduzam
os serviços direcionados para os homens, não atendendo as necessidade das
mulheres atrás das grades, que têm suas especificidades ignoradas durante o
período de segregação de sua liberdade.
Ocorre que, para além das diversas justificativas apresentadas para o esque-
cimento da mulher e não reconhecimento de suas particularidades, o sistema

5
Ibid.
6
SWAVOLA, E.; RILEY, K.; SUBRAMANIAN, R. Overlooked: Women and Jails in an Era of Reform.
New York: Vera Institute of Justice, 2016. Disponível em: <https://www.vera.org/publications/over-
looked-women-and-jails-report>. Acesso em: 16. jan. 2018.
7
COELHO, R. Mulheres presas. Aumentam as criminosas da pobreza. Diário de notícias, 2016. Dispo-
nível em: <https://www.dn.pt/sociedade/interior/mulheres-presas-aumentam-as-criminosas-da-pobre-
za-5343703.html>. Acesso em: 16. jan. 2018.
8
ESPINOZA, O. A mulher encarcerada em face do poder punitivo. IBCCRIM: São Paulo, 2004.
122 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

penitenciário deve estar preparado não só para puni-las, mas também para
oferecer o necessário para sua reintegração social, respeitando todos os direitos
inerentes a sua dignidade tutelados em âmbito nacional e internacional.

3. REGRAS DE BANGKOK

Buscando-se a efetivação do princípio da não discriminação contido na


regra 6 das Regras Mínimas de Tratamento dos Reclusos ou Regras de Tóquio,
a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) publicou em
2010 as Regras Mínimas de Tratamento da Mulher Presa e Medidas Privativas
de Liberdade para Mulheres Infratoras, também denominadas Regras de Ban-
gkok, em razão do reconhecimento do papel que teve o governo da Tailândia
para a elaboração e aprovação das regras9.
Para a construção das referidas Regras, levou-se em consideração a im-
prescindibilidade do respeito às necessidades específicas das mulheres para
o alcance de uma igualdade material entre os gêneros, esclarecendo que essa
atenção não deveria ser considerada discriminatória10, vez que entendeu-se que
o cárcere feminino há de ser observado a partir de todos aqueles fatores que
permeiam a realidade das mulheres inseridas no sistema penitenciário e à luz
dos princípios de isonomia entre os gêneros, o que não havia sido observado
quando da publicação das Regras de Tóquio em 1957 .
Com isso, as Regras de Bangkok estabeleceram as regras mínimas para
organização penitenciária e tratamento das mulheres aprisionadas, apresen-
tando diretrizes a serem seguidas pelos Estados-membros da ONU, entre os
quais estão o Brasil, para que internacionalmente fossem criadas políticas de
incentivo ao tratamento igualitário entre os gêneros, mas que aliado a isso,
respeitassem as diferenças existentes entre ambos.
Nesse cenário, é importante entender que a prisão, por si só, “é uma ins-
tituição totalizante e despersonalizadora, na qual predomina a desconfiança
e onde a violência se converte em instrumento de troca”11, sendo urgente a
humanização das penitenciárias com a devida atenção às questões concernen-
tes às necessidades particulares de cada indivíduo, respeitando os direitos das
pessoas encarceradas em sua integralidade, visto que não há como ressocializar

9
CERNEKA, H. A. Regras de Bangkok – está na hora de fazê-las valer! Boletim IBCCRIM, v. 20, n.
232, p. 18−19, 2012. Disponível em: <http://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2012/09/As-Regras-
de-Bangkok-ibccrim.pdf>. Acesso em: 11 out. 2017.
10
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Regras de Bangkok: regras das Nações Unidas para o trata-
mento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras. Brasília, 2016.
Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/03/a858777191da58180724ad-
5caafa6086.pdf>. Acesso em: 20 set. 2017.
11
ESPINOZA, O. A mulher encarcerada em face do poder punitivo. IBCCRIM: São Paulo, 2004.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 123
seres humanos desconsiderando o fato de que permanecem sendo seres huma-
nos quando adentram o sistema penitenciário.
Diante disso, é imperioso analisar a forma que a mulher se relaciona
com seus vínculos familiares e sua forma de envolvimento com as práticas
criminosas, entendendo como o cárcere as atinge de forma peculiar quando
comparado à forma com que atinge os presos do sexo masculino, visto que,
as mulheres envolvidas com práticas criminosas, ainda aquelas não envolvidas
em crimes de grande reprovabilidade, são culpabilizadas tanto pelo sistema
judiciário em razão do crime cometido, como pela sociedade que enxerga com
espanto a mulher que comete um crime e que, consequentemente, não cum-
priu os papéis sociais pré-estabelecidos.
Além disso, a aprisionada ainda é colocada em um sistema penitenciário
predominantemente masculino. Fatores que aliados a inobservância discrimi-
natória das necessidades da mulher contribuem para a sua ruptura, não só
com mundo exterior, mas com a ideia de quem era antes do cárcere.
É possível enxergar esse esquecimento das especificidades femininas, inclu-
sive, ao observar os serviços oferecidos dentro das penitenciárias, como pela falta
de médicos ginecologistas12 ou pela escassez de absorventes para uso durante o
período menstrual e produtos de higiene, ou ainda, na falta de locais adequados
ao acolhimento de mães presas e seus filhos e a não-sensibilização do poder pú-
blico para adequação das unidades prisionais para sanar esses problemas.
Dessa forma, as Regras tem especial importância diante do cenário atual,
onde se destaca a crise dos direitos humanos dentro das instituições peniten-
ciárias e tendo em vista os benefícios que a efetiva aplicação das Regras de
Bangkok podem trazer ao modo de tratamento das mulheres encarceradas,
assim como ao seu processo de ressocialização e manutenção dos seus laços
familiares, busca-se no presente trabalho analisar o reflexo das Regras de Bang-
kok no sistema penitenciário feminino brasileiro, assim como no ordenamen-
to jurídico interno.

4. AMPARO LEGAL DA MÃE PRESA NO CÁRCERE

As consequências trazidas pelo cárcere transcendem à própria mulher en-


carcerada, atingindo também os seu familiares e filhos, por vezes, nascidos no
interior das penitenciárias, sendo o afastamento de seus laços afetivos um dos
aspectos mais adversos do aprisionamento, de forma que o cárcere feminino
está estreitamente ligado às questões relacionadas à gravidez, amamentação e a
permanência de seus filhos em sua companhia.

12
O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (2014) apontou que haviam 37 médicos gine-
cologistas em atividade no sistema penitenciário nacional, dos quais 23 eram funcionários efetivos.
124 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Dentre outras diretrizes, as Regras de Bangkok trazem orientações que


observam especificamente a situação da mulher-mãe presa e o amparo de seus
filhos, com isso, busca-se principalmente a sensibilização e preparação dos
profissionais em exercício laboral nas penitenciárias para um adequado rece-
bimento e tratamento dos filhos das mulheres encarceradas para o seu desen-
volvimento saudável.
Isto porque o aumento no índice de criminalidade feminina aliado ao
fato de a maioria das detentas brasileiras possuírem filhos que são criados sem
relacionamento com o pai13 ou ainda que este pai também esteja em situação
de aprisionamento, faz com que seja necessário dar especial atenção à situação
da mulher-mãe presa e o respeito aos seus direitos, assim como os da criança
que ao ser isolada de sua genitora, na maioria das vezes, é alocada em abrigos
ou permanecem com os familiares maternos14,15.
Dessa forma, as Regras trouxeram direcionamentos relacionados aos
cuidados e serviços a serem oferecidos às mulheres-mães presas, assim como
ao registro e tratamento da criança e questões concernentes à sua permanên-
cia dentro do presídio em local adequado ou a possibilidade de indicação
da mãe de pessoa com quem o filho deve permanecer, contanto que todas as
decisões sejam tomadas sempre baseadas no melhor interesse da criança, de-
vendo o estado incentivar e oferecer condições adequadas à visitação quando
da separação16.

4.1. O ordenamento jurídico brasileiro.

No Brasil, algumas providências de âmbito jurídico foram adotadas no


sentido de atender às necessidades de mães e filhos que convivem com a rea-
lidade carcerária, sendo acrescentado disposições na Lei de Execução Penal e

13
BRASIL. Relatório Sobre Mulheres Encarceradas no Brasil. Org: Centro pela Justiça e pelo Direito
Internacional, CEJIL; Associação Juízes para a Democracia, AJD; Instituto Terra, Trabalho e Cidadania,
ITCC et. al. Brasília, DF, 2007.
14
Estima-se de 5,5 milhões de crianças não tenham o nome do pai sem seu registro. Disponível em:
https://exame.abril.com.br/brasil/brasil-tem-5-5-milhoes-de-criancas-sem-pai-no-registro/. Acesso
em: 14 out. 2017.
15
O INFOPEN (2014), cita em seu relatório um estudo sobre o impacto do aprisionamento parental reali-
zado pela Bendheim-Thoman Center for Research on Child Wellbeing, da Universidade de Princeton em
que se demonstrou que entre outras consequências, crianças que têm o pai privado de liberdade têm 44%
mais chances de apresentar comportamento agressivo. Disponível em: <https://fragilefamilies.princeton.
edu/briefs/ResearchBrief42.pdf>.
16
Muito embora determine as Regras de Bangkok que momento do ingresso da apenada na penitenciária
devem ser registrados os dados pessoais não só da mulher, mas também de seus filhos, assim como suas
idades e quando não acompanharem a mãe, sua localização e situação de custódia ou guarda, quando
da realização do INFOPEN em 2014, 88% dos estabelecimentos prisionais não souberam informar a
quantidade de filhos que teriam os detentos.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 125
elaboradas legislações tendentes a regulamentar a situação da mãe-presa, bus-
cando garantir o respeito aos direitos não atingidos pela sentença ou lei17.
À Lei de Execução Penal (LEP) foi acrescentado pela Lei 11.942/2009 que
nos estabelecimentos penais destinados a mulheres, deverão haver berçários,
onde possam cuidar dos seus filhos e inclusive amamentá-los por no mínimo 06
(seis) meses, respeitando o direito à convivência familiar e criação de vínculos
maternos. Porém, somente 32% dos poucos presídios femininos existentes e 3%
dos presídios mistos, onde há uma ala ou cela dentro de um presídio masculino,
possuem berçários18. Além disso, faltam locais adequados à visitação de crianças,
sendo mais um fator contributivo do afastamento da mulher de seus filhos
e consequentemente, da não efetivação dos direitos estabelecidos. Ainda que,
vários autores acreditem “que as visitas das crianças ajudam na manutenção do
vínculo entre pais e filhos, de modo a diminuir o impacto nocivo da separação
e ajudar as mães a ajustar-se melhor ao ambiente prisional”19.
Nesse sentido, também foi elaborada a Resolução do Conselho Nacional
de Política Criminal e Penitenciária - CNPCP20, que disciplinou prioridades
com relação a amamentação e continuidade do vínculo materno em espaço
adequado ao desenvolvimento humano, além de orientar a garantia da perma-
nência mínima de crianças de até 01 (um) ano e 06 (seis) seguida de separação
gradual, considerando o saudável desenvolvimento da criança utilizando-se de
fases que não comprometam o seu crescimento e minimizem os danos à saúde
psicológica de mãe e filho.
A referida resolução ainda trata da possibilidade de permanência de crian-
ças de até sete anos junto das mães na unidade prisional quando equipadas
com dormitórios, banheiros, espaço de lazer e alimentação adequados, assim
como garantidos o direito à educação. No mesmo sentindo, a LEP estabelece
em seu artigo 89, que além dos requisitos básicos de salubridade e espaço
mínimo, as penitenciárias femininas devem ser dotadas de seção para gestante
e parturiente, assim como a implementação de creches destinadas as crianças
com idades entre seis meses e sete anos, cuja responsável esteja presa.
De outro modo, das 103 unidades penitenciárias que custodiam mulhe-
res, apenas 34% possuem dormitório para gestantes e somente 6% das 238

17
Artigo 3º da Lei de Execuções Penais, ipsis litteris: “Ao condenado e ao internado serão assegurados
todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.”.
18
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Femininas − In-
fopen Mulheres. 2014. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-da-popu-
lacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf >. Acesso em: 14 set. 2017.
19
GUIMARÃES, A. C. R. S. Reclusão feminina: maternidade e nacionalidade. 2015. 100 f. Dissertação
(Mestrado em Psicologia)–Universidade Católica Portuguesa, Porto, 2015.
20
Disponível em: <https://www.ibccrim.org.br/noticia/13345-Resolucao-do-CNPCP-disciplina-situacao-
de-filhos-de-mulheres-encarceradas>. Acesso em: 16 out. 2017.
126 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

unidades mistas possuem a mesma estrutura. Já com relação a implementação


das creches dentro das unidades prisionais, apenas 5% das unidades femininas
dispunha desse serviço, o que significa dizer que existem, aproximadamente,
05 unidades em todo território nacional equipadas dessa forma, não havendo
nenhum registro de creches em estabelecimentos penais mistos21,22.
Deste modo, é possível perceber que a infraestrutura das unidades pri-
sionais não reflete o disposto nas Regras de Bangkok, em detrimento de seu
próprio ordenamento jurídico, não garantindo o direito à convivência fami-
liar saudável de mães e filhos e seu pleno desenvolvimento, muito embora o
reconhecimento deste direito faça surgir para o Estado o dever de materializar
formas para sua efetivação.
Diante de todo o exposto, cabe dizer que, embora seja extremamente
urgente e necessário a elaboração de políticas públicas para atender as ne-
cessidades das mulheres encarceradas e consequente adequação das unidades
penitenciárias para recebimento de mães e crianças, oferecendo um tratamento
digno e igualitário com o devido respeito as especificidades femininas e saudá-
vel desenvolvimento infantil. Igualmente, valorizam as Regras de Bangkok, o
incentivo da aplicação de medidas despenalizadoras e sua utilização como ins-
trumento de desencarceramento das mulheres, principalmente, daquelas que
ainda aguardam julgamento, se opondo assim a realidade atual de crescimento
desenfreado da população carcerária feminina ao redor do mundo.
Isso porque quando da elaboração das regras internacionais foi levado
em consideração que, tendo em vista os prejuízos causados às mulheres e aos
seus filhos pela privação de sua liberdade e afastamento da mulher de seus
familiares e comunidade, isso só deveria acontecer em casos de excepcional
necessidade, priorizando-se a utilização de medidas alternativas à prisão por
serem menos danosas e eficazes em determinados contextos.

5. MÃES ALGEMADAS

Refletindo o incentivo a humanização das prisões, orienta as Regras de


Bangkok que jamais deverão ser utilizadas algemas em mulheres em trabalho
de parto, nem durante ou imediatamente após23, isto porque além de ferir
a dignidade da mulher e trazer riscos à saúde da mãe e nascituro, tamanho

21
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Femininas − In-
fopen Mulheres. 2014. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-da-popu-
lacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf >. Acesso em: 14 set. 2017.
22
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Infopen. 2014.
Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-ter-
ca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf>. Acesso em: 18 set. 2017.
23
Regra 24 das Regras de Bangkok.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 127
constrangimento e violência ferem os direitos humanos mais básicos de res-
peito à integridade física, psicológica e moral da parturiente.
De forma que, em 2017 foi regulamentado por meio da Lei 13.434/201724, a
vedação do emprego de algemas em mulheres durante o atendimento médico prepa-
ratório para a realização do parto, assim como durante e imediatamente após. A lei
veio para reforçar o já tratado pelo Supremo Tribunal Federal por meio da súmula
vinculante n.1125 que determinou que é ilícita a utilização de algemas sem fundada
situação que a justifique, sob pena de responsabilização disciplinar, civil e penal do
agente ou autoridade, sem prejuízo ainda da responsabilização civil do Estado.
Tais providências, corroboram com o que determina também o Conse-
lho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, e todos esses dispositivos
resultam de pensamentos que refletem os ideais de humanização do processo
de penalização, pressuposto básico que em verdade, acaba não sendo respeita-
do sob a justificação de um suposto risco de fuga e insegurança.
A referida lei também provocou mudanças no Código de Processo Penal26
Brasileiro, positivando, por meio parágrafo único do artigo 292, a vedação do
uso de algemas em mulheres grávidas desde o início do trabalho de parto até
o período de puerpério imediato. 

5.1. Caso Bárbara Oliveira de Souza

Dessa maneira, a dignidade da mulher presa parturiente é atingida de


diversas formas por meio de tratamentos degradantes e desumanos, a exemplo
do que ocorreu em novembro de 2015.
Nesse período, foi divulgado por diversos veículos midiáticos o caso de
Bárbara Oliveira de Souza, mulher presa preventivamente em abril do mesmo
ano e que deu à luz sozinha dentro de uma solitária da penitenciária Talavera
Bruce, no Complexo Penitenciário de Bangu. A família de Bárbara afirma que
ela sofre de esquizofrenia e foi privada da medicação que utilizava para contro-
le dos distúrbios mentais, sendo colocada na solitária após um surto psicótico
e saiu de lá com o bebê no colo ainda preso ao cordão umbilical ligado à mãe
e que só tomaram conhecimento do ocorrido por meio do Centro de Atenção
Psicossocial, depois de 15 dias do nascimento da criança27.

24
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13434.htm>. Acesso
em: 17 out. 2017.
25
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=1220>. Acesso
em: 17 out. 2017.
26
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso
em: 17 out. 2017.
27
RICARDO, I. Família de presa que deu à luz na solitária só soube do parto 15 dias depois. Jornal Extra,
28 out. 2015. Disponível em: <https://extra.globo.com/casos-de-policia/familia-de-presa-que-deu-luz-
na-solitaria-so-soube-do-parto-15-dias-depois-17899691.html>. Acesso em: 10 out. 2017.
128 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Após a publicização dada ao escandaloso caso de flagrante desrespeito


aos direitos humanos, diretora e vice-diretora do presídio foram afastadas de
seus cargos, vindo a informar a Secretaria de Estado de Administração Peni-
tenciária (SEAP)28 que Bárbara foi isolada para sua própria segurança, por ex-
cesso de agressividade e por não estar consciente de que estava em trabalho de
parto, tendo sido afastada de seu bebê após o parto por ter tentado agredi-lo.
Após o ocorrido, foi realizado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro
inspeção da unidade prisional Talavera Bruce, que em relatório29 registrou que
dentro do estabelecimento era comum a utilização de isolamento e restrições
de comida e água como forma de sanção disciplinar. Não bastasse tamanha
arbitrariedade, as presas relataram que, por vezes, isso acontecia por motivos
banais e que frequentemente eram chamadas pelos mais diversos palavrões, o
que também ocorria no alojamento destinado às mulheres grávidas, que além
de agressões verbais, recebiam insultos, inclusive, direcionado aos seus filhos
ainda não nascidos. Além disso, ainda foi percebido que a assistência médica
era limitada as detentas que estivessem “à beira da morte”, visto que o direito
ao atendimento passava pelo crivo da administração.
Segundo o mesmo relatório, as presas foram unanimes ao afirmar que Bárba-
ra era uma pessoa prestativa e companheira e que no dia do parto, ouviram os gri-
tos vindos da cela, de forma que outras presas passaram a bater nas chapas de ferro
e avisar que a mesma estava em trabalho de parto, mas que lhe foi negado o socorro
e mandado que imediatamente as demais presas parassem “com a palhaçada”.
O caso de Bárbara não é um fato isolado no contexto do sistema peniten-
ciário brasileiro, visto que ainda em uma unidade com dormitório para gestan-
tes, não foi dado a menor atenção à gestante na hora de seu parto, momento
em que lhe foi negada qualquer assistência médica, apesar de todas as garantias
legislativas que tutelam os direitos das mulheres presas, visto que à mulher, por-
tadora ou não de transtornos psicológicos, deve-se garantir o direito a um parto
digno, assim como o direito do nascituro a um nascimento saudável.

6. A APLICAÇÃO DAS REGRAS INTERNACIONAIS MÍNIMAS


ATRAVÉS DO ESTATUTO DA PRIMEIRA INFÂNCIA

Desse modo, tendo em vista o caráter angustiante que tem o cárcere, que
expropria não só a liberdade da mãe, mas também a infância de crianças e
adolescentes que aguardam a concessão da liberdade de suas mães e que tem

28
MAYOR, F. B. S.; GONÇALVES, H. S. Mulheres e prisão. Sociologia, São Paulo, n. 70, p. 20−27, 2017.
29
Relatório de Visita à Unidade Prisional Talavera Bruce, Defensoria Pública do RJ, 2015, p 37. Disponí-
vel em: <http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/39207a2ac9c947a58abc753edec0b3b3.pdf>.
Acesso em: 10 out. 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 129
“seus sonhos e planos interrompidos por uma sentença condenatória e toda
sua vida negligenciada e violentada pela perversidade que ultrapassa os muros
da prisão”30 o Estatuto da Primeira Infância traz disposições para atender
àqueles que nem sempre estão intramuros das penitenciárias, mas sofrem os
seus efeitos de modo muito contundente.
O Estatuto da Primeira Infância é o nome de batismo da Lei 13.257/16
que em conformidade com a doutrina da proteção integral que preza pelo me-
lhor interesse da criança, trouxe diretrizes especificas e significativas mudanças
no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na Consolidação das Leis
Trabalhistas (CLT) e no Código de Processo Penal.
O Estatuto prioriza a faixa etária de até 6 anos de idade, chamada legisla-
tivamente de primeira infância, e já no artigo quarto31 estipula que as políticas
públicas voltadas a este público deverão atender o interesse superior da criança
e no artigo seguinte32 constitui como área prioritária para tais políticas a con-
vivência familiar, ao lado da saúde, alimentação e educação infantil.
Dentro das relações familiares, o princípio do melhor interesse a criança
assume estreita relação com o princípio da convivência familiar, uma vez que
este direito é assegurado à criança e ao adolescente como prioridade absoluta,
reflexo do abrigo constitucional do princípio da afetividade.
A convivência familiar reflete o direito dos membros do agregado fa-
miliar a viverem juntos33. Os elementos do princípio irão assegurar direitos
e deveres envolvidos na relação entre as pessoas do grupo familiar, como a
inviolabilidade da casa.
Diferente do princípio da afetividade, o princípio da convivência fami-
liar encontra-se expresso da Constituição Brasileira34, que o estabelece como

30
SILVA, A. D. Encarceramento e monoparentalidade feminina: as reclusas e suas famílias. In: Mãe/
mulher atrás das grades: a realidade imposta pelo cárcere à família monoparental feminina. São Paulo:
Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015, p. 153-209.
31
Art. 4o As políticas públicas voltadas ao atendimento dos direitos da criança na primeira infância serão
elaboradas e executadas de forma a: I - atender ao interesse superior da criança e à sua condição de
sujeito de direitos e de cidadã. BRASIL. Lei 13.257, 8 de março de 2016. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm>. Acesso em: 18 de maio de 2017.
32
Art. 5o Constituem áreas prioritárias para as políticas públicas para a primeira infância a saúde, a alimentação
e a nutrição, a educação infantil, a convivência familiar e comunitária, a assistência social à família da criança,
a cultura, o brincar e o lazer, o espaço e o meio ambiente, bem como a proteção contra toda forma de violência
e de pressão consumista, a prevenção de acidentes e a adoção de medidas que evitem a exposição precoce
à comunicação mercadológica. BRASIL. Lei 13.257, 8 de março de 2016. Disponível em: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm>. Acesso em: 18 de maio de 2017.
33
CANOTILHO, J. G.; MOREIRA, V. Constituição da República Portuguesa anotada - vol. I, p.198.
Nesse sentido, PAULO LÔBO, Direito Civil: Família, p. 74 afirma que a convivência familiar “é a re-
lação afetiva diuturna e duradoura entretecida pelas pessoas que compõem o grupo familiar, em virtude
de laços de parentesco ou não, no ambiente comum”.
34
Artigo 227 da Constituição da República Federativa do Brasil.
130 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

direito fundamental da criança e do adolescente. Também se encontra na


Convenção dos Direitos da Criança35, quando prevê que a criança que possua
pais separados tenha o direito de manter relações pessoais e contato direto
com ambos, desde que seja em conformidade ao melhor interesse dela, pois de
nada adiantaria a criança manter contato com um genitor abusivo.
Diante do exposto, o princípio da afetividade e o princípio da convivência
familiar refletem a repersonalização que as relações familiares passaram com a
introdução do valor jurídico do afeto não podendo tais princípios serem esque-
cidos, pois podem deles decorrer a relevância do desenvolvimento da persona-
lidade do filho menor e consequentemente a consideração da opinião destes.
O cuidado parental visível no estatuto através das modificações legisla-
tivas operadas, e adiante ventiladas, advém da revisão conceitual que o termo
poder parental ou pátrio poder sofreu com a nova configuração e exigências
da relação parental. Ao lado dele, ainda encontramos termos como autoridade
parental e reponsabilidade parental, todavia, tendo em vista o nosso objeto
legislativo de estudo, cuidado parental nos parece apropriado.
De certo que a autoridade parental é um exercício da autoridade tempo-
rária dos pais sobre os filhos e está condicionada a realização dessa pessoa em
desenvolvimento36, podemos destacar que no estágio inicial da vida da pessoa,
está presente uma vulnerabilidade que demanda cuidados materiais, morais,
psíquicos, decorrentes dessa dependência existencial37.
O Estatuto trouxe modificação ao Estatuto da Criança e do Adolescente
que firmou de maneira decisiva a preferência legislativa da criança ao con-
vívio com os pais, in verbis38: “Art. 19. É direito da criança e do adolescente
ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família
substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que
garanta seu desenvolvimento integral».
Quanto a este direito-dever que gera o cuidado parental, o recente estatu-
to trouxe também modificações a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT),
pois ao modificar o artigo 473 da referida legislação trabalhista, permitiu ao
empregado a ausência do serviço quando para acompanhar consulta médica
de filho de até 6 anos.
No que concerne ao pai preso, as mudanças ocorreram no Código de
Processo Penal, que prevê, no artigo 318 do diploma, não somente uma pri-
são domiciliar quando o agente for mulher com filho até 12 anos de idade

35
Artigo 9º, item 3 da Convenção dos Direitos da Criança.
36
LÔBO, P. Direito Civil: Família. 4. ed. Saraiva: São Paulo, 2011, p. 295.
37
MARTINS, R. Menoridade, (IN) Capacidade e Cuidado Parental. Coimbra Editora: Coimbra,
2008, p. 178.
38
BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
LEIS/L8069.htm>. Acesso em: 18 de maio de 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 131
incompletos, mas também o pai quando único responsável pelos cuidados dos
filhos até 12 anos incompletos, mas também uma busca para colher informa-
ções sobre a existência de filhos, até mesmo na lavratura do auto de prisão em
flagrante deverá constar a presença de eventual filho sob a reponsabilidade da
pessoa presa. Conforme se verifica em alguns dos artigos do diploma proces-
sual39 modificados pelo citado Estatuto:

Art. 6o (...) X - colher informações sobre a existência de filhos, respectivas idades e


se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável
pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa.
Art. 304.  (...) § 4o  Da lavratura do auto de prisão em flagrante deverá constar
a informação sobre a existência de filhos, respectivas idades e se possuem al-
guma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados
dos filhos, indicado pela pessoa presa.
Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando
o agente for:  (...) V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incom-
pletos;
VI - homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12
(doze) anos de idade incompletos.

A Constituição da República Portuguesa, no decorrer de seus dispositivos


que tratam da família, da criança e dos jovens, estabelece uma série de prin-
cípios que irão disciplinar as relações familiares. Entre aqueles que regem as
relações pais-filhos, pode-se destacar aqueles presentes no artigo trinta e seis
do Texto Constitucional, quais sejam: o princípio da igualdade dos cônjuges
quanto à manutenção e educação dos filhos40; o princípio da atribuição aos
pais do direito-dever de educação e manutenção dos filhos41 e o princípio da
inseparabilidade dos filhos de seus pais42,43.
A Constituição Portuguesa concede a função educativa ao poder pater-
nal, concluindo a autoria que os princípios destacados em tais dispositivos
constitucionais português, asseveram que “o aspecto relacional do poder pater-
nal e, em especial, como seu centro privilegiado, o cuidado da pessoa do filho
através da manutenção e educação”44.
A Constituição da República Federativa do Brasil trata da família no ar-
tigo 227, como já aqui relatado, e nele o poder familiar assume características

39
BRASIL. Decreto Lei 3689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm>. Acesso em 18 de maio de 2017.
40
Artigo 36, item 3, da Constituição da República Portuguesa.
41
Artigo 36, item 5, da Constituição da República Portuguesa.
42
Artigo 36, item 6, da Constituição da República Portuguesa.
43
MARTINS, R. Menoridade, (IN) Capacidade e Cuidado Parental. Coimbra Editora: Coimbra,
2008, p. 170.
44
Ibid., p. 173-174.
132 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

de direito protetivo, em que delega uma carga de direitos da criança e do ado-


lescente a serem respeitados e desenvolvidos pela família. Assim, o cuidado
parental constitui, já em âmbito constitucional brasileiro e português, os pais
como “defensores legais e protetores naturais dos filhos”45
De certo que a relação familiar entre pai ou mãe e filho persiste por toda
a vida e não se exaure na relação daqueles com filhos menores, contudo, essas
relações se intensificam quando se está tratando dos filhos menores, como
durante a chamada primeira infância, alvo do nosso estudo. De acordo com
esse raciocínio acerca do cuidado parental, advieram dois princípios bases do
instituto46: “necessidade natural de proteção do filho nos primeiros tempos da
sua vida” e a “vocação natural dos pais para assumir tarefas de proteção e de
educação do filho”.
E neste primeiro princípio que baseia todo raciocínio do Estatuto em
questão, já que é na terna idade que o filho necessita da natural proteção dos
pais, do qual não pode ser substituída por terceiros ou até mesmo pelo Estado
e baseado nisso estão as alterações trazidas ao já citado art. 318 do Código de
Processo Penal.
É de se notar que o Superior Tribunal de Justiça já analisou pedidos de
prisão domiciliar baseados nos incisos em questão do CPP. No HC 36292247,
em que possibilitou a conversão de preventiva para domiciliar de mãe presa,
por suposto envolvimento de tráfico de drogas, de dois filhos, com dois e seis
anos de idade, por entender que para tal não se exigiria a comprovação da
condição de necessidade de cuidados maternos, nas palavras do Ministro Nefi
Cordeiro: “condição que é legalmente presumida”.
Nesse sentido, podemos ver a prevalência do interesse do menor a jus pu-
niendi estatal, de forma que se sobrepõe a necessidade do filho em ser cuidado
com a mãe, não se exigindo, no entendimento do tribunal superior, prova
dessa citada necessidade, ficando esta presumida dada a condição de vulnera-
bilidade da criança de mãe presa.
Tal hipótese ganhou especial destaque com o caso de Adriana Ancelmo,
acusada de corrupção e lavagem de dinheiro, que por ser mãe de dois filhos de
11 e 14 anos de idade foi beneficiada pela conversão de sua prisão provisória
em domiciliar, gerando debate, tendo em vista que, ainda que seja um direito
previsto pelo Código de Processo Penal é raramente aplicado aos mais de 30%
de presas que aguardam julgamento, o que acabou fazendo com que mais tarde

45
LÔBO, P. Direito Civil: Família. 4. ed. Saraiva: São Paulo, 2011, p. 298.
46
De acordo com os enunciados de MARTINS, R. Menoridade, (IN) Capacidade e Cuidado Parental.
Coimbra Editora: Coimbra, 2008, p. 177.
47
HC 362922. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipo-
Pesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=HC%20362922>. Acesso em: 18 maio 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 133
voltasse ao regime anterior sob a justificativa de quebra da isonomia, em razão
de outras mães que não possuíam tal benefício.
Não podemos deixar de destacar que as citadas modificações no caderno
processual penal, ora citado, apesar de serem frutos das Regras de Bangkok,
regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas, tais diretrizes
reconheceram o papel de ambos os pais na vida da criança e tiveram foco no
impacto do encarceramento dos pais e de crianças. Contudo, independente
das regras focarem em ações voltadas as necessidades especiais de mulheres
presas, o Estatuto focaliza na criança.

CONCLUSÃO

O presente trabalho teve como intuito demonstrar a importância das


Regras de Bangkok para a observância das necessidades especificas das mulhe-
res no sistema penitenciário brasileiro, pois como observado, essas diferenças,
por muitas vezes, não são levadas em consideração na realização de políticas
públicas ou oferecimento de serviços, o que fere os princípios de igualdade e
a dignidade da mulher aprisionada.
Neste cenário, há que se reconhecer os avanços trazidos pelas Regras de
Bangkok ao ordenamento jurídico brasileiro, pois a positivação dos direitos
das mães presas e de seus filhos, é um grande passo rumo à sua efetivação e
aplicação de seus valores pelo poder judiciário, o que também é sentido quan-
do de seu emprego aliado ao Estatuto da Primeira Infância que reconhece a
importância da temática também no contexto do cárcere.
De outra forma, como vimos, muito embora o Brasil tenha participado
ativamente do processo de negociação da elaboração das Regras, internamente
o governo ainda não trouxe políticas públicas realmente tendentes a efetivar o
compromisso firmado internacionalmente, visto que, dentre outras problemá-
ticas, a infraestrutura das penitenciárias continua precária e sem condições de
concretizar os direitos das mulheres aprisionadas e de seus filhos e dependen-
tes à uma convivência familiar saudável.
Ressalte-se ainda que, o fenômeno do encarceramento em massa de mu-
lheres, contraria ao firmado internacionalmente por meio das Regras, que vi-
sam a sua aplicação não só no âmbito do cárcere, mas como forma de evitá-lo,
incentivando a solução judicial que priorize o uso de medidas alternativas à
prisão, levando-se em consideração o contexto que envolve as mulheres crimi-
nosas e as suas responsabilidades de cuidado.
Percebe-se, portanto, que muito falta para o alcance de um tratamento
minimamente digno, que preserve tanto os direitos da mãe-presa como se
respeite o melhor interesse da criança, mas as primeiras mudanças tendentes a
efetivar esses direitos já podem ser sentidas, cabendo ao poder público a intro-
134 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

dução de políticas públicas que tragam a concretização dos valores amplamen-


te disseminados por meio das normas assentidas em âmbito internacional.

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Capítulo 9
A Invisibilidade do Tráfico de Pessoas nas
Missões de Paz da ONU: O Conflito Em Kosovo
Ananda Pórpora Fernandes
Raquel de Santana Iraha
Verônica Maria Teresi

1. INTRODUÇÃO

O texto pretende fazer uma aproximação entre dois temas importantes, re-
levantes e difíceis de abordar no âmbito internacional: as intervenções humani-
tárias, por meio das missões de paz da ONU e as violações dos direitos humanos
por parte das tropas da ONU, principalmente com exploração sexual e abusos
de mulheres e meninas, estimulando, em alguns casos, o tráfico de pessoas.
A pesquisa para a realização do artigo foi feita principalmente com rela-
tórios de organizações não governamentais de garantia de direitos humanos,
relatórios da ONU, tratados internacionais e doutrinas de direito internacio-
nal e específicos.
O estudo pretende trazer uma análise sobre situações identificadas com
sérias violações de direitos humanos cometidas por integrantes das tropas de
missões de paz. É claro que essas formas de violações são profundamente con-
traditórias, uma vez que são cometidas por indivíduos que estão participando
de operações que deveriam zelar pelos direitos humanos dos civis em situações
de conflitos. Por outro lado, contribuem para o crescimento de abusos sexuais,
tráfico de drogas e pessoas. Ainda mais quando estes agentes dificilmente serão
responsabilizados individualmente por deterem imunidade diplomática.

2. INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS

A internacionalização dos direitos humanos e a elevação da categoria


do indivíduo enquanto sujeito do direito internacional1 permitiram que os

1
As graves violações de direitos humanos ocorridas na Segunda Guerra Mundial intensificaram a in-
ternacionalização do indivíduo como sujeito de direito internacional – antes centrado em Estados e
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 137
direitos humanos não fossem somente considerados matéria exclusiva da ju-
risdição dos estados soberanos, sendo incorporados como prerrogativas da
sociedade internacional. Como tal, pode-se interpretar que a defesa dos direi-
tos humanos pode ser feita independente das limitações territoriais estatais.
Entrementes, nota-se que os conflitos intraestatais passaram a ser considerados
como ameaça à paz e segurança coletiva desde o pós-Guerra Fria, permitindo
a realização das intervenções com objetivos humanitários, baseadas nos Capí-
tulo VI, VII e VIII2 da Carta das Nações Unidas3.
O Conselho de Segurança (CS), principal órgão responsável pela seguran-
ça coletiva pós-Segunda Guerra Mundial, é a concretização da preocupação da
ONU de criar uma nova ordem internacional de segurança4. Contudo, com
o início da Guerra Fria e o acirramento das tensões entre os Estados Unidos
e a União Soviética (URSS), o órgão ficou paralisado por falta do consenso
entre os Membros Permanentes. O término da Guerra Fria permitiu um “des-
congelamento” do CS, e dada a maior aplicação de normas internacionais, da
preocupação com a proteção do homem, da fluidez no CS e da securitização
internacional de conflitos intraestatais relacionados às violações de direitos
humanos, o número de intervenções de cunho humanitário aumentou, tendo
na primeira década após a Guerra Fria cinco grandes operações: Iraque, Somá-
lia, Ruanda, Haiti e Bósnia Herzegovina.5
Segundo Krieg6, intervenção humanitária é um oximoro que combina
benevolência com um termo ligado relacionado à força. Ainda na mesma
obra, define-se como “[…] ação coercitiva de Estados que envolve o uso de
forças armadas em outro Estado […] com o objetivo de prevenir ou inter-
romper violações graves e massivas de direitos humanos ou do direito inter-
nacional humanitários […]”7.
Na Agenda for Peace, o então secretário geral Boutros-Ghali definiu fun-
ções as quais o CS deveria desempenhar no que condiz às missões de paz: di-

organizações internacionais – tendo sua consagração na Declaração Universal dos Direitos Humanos,
em 1948, da Organização das Nações Unidas. (RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos
Humanos na Ordem Internacional. São Paulo: Saraiva, 2015.)
2
Os Capítulos VI, VII e VIII contém artigos referentes a Solução Pacífica de Controvérsias, Ação Re-
lativa a Ameaças à Paz, Ruptura da Paz e Atos de Agressão, e Acordos Regionais, respectivamente. A
Carta, em sua integralidade, pode ser consultada em: <https://nacoesunidas.org/carta/>.
3
JUBILUT, Liliana. Não Intervenção e Legitimidade Internacional. São Paulo: Saraiva, 2010; RO-
DRIGUES, Simone Martins. Segurança Internacional e Direitos Humanos: a prática da intervenção
humanitária no Pós-Guerra Fria. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 33.
4
RODRIGUES, op. cit., p. 11.
5
A recorrência das intervenções humanitárias denota um novo paradigma na solução de conflitos interna-
cionais, apesar de suas inequações iniciais (RODRIGUES, 2000, op. cit., p. 12).
6
KRIEG, Andreas. Motivations for Humanitarian Intervention: Theoretical and Empirical Consider-
ations. Heidelberg: Springer, 2013, p.7
7
Ibidem
138 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

plomacia preventiva, para antecipar disputas e prevenir a erupção de violência;


peacemaking, para assistir às partes em disputa a fim de chegarem a um acordo
sobre as provisões do capítulo VI da Carta; peacekeeping, para deter a violência
com o consentimento das partes envolvidas; e peacebuilding, para criar as fun-
dações para o desenvolvimento econômico e social após a resolução do confli-
to8. Foi adicionado também o peace-enforcement, que prevê a utilização da força
perante ao insucesso de negociações de cessar-fogo9. As operações de paz são
regulamentadas por documentos, como o Acordo do Status de Força, com as
diretrizes, direitos e deveres entre a ONU e o país anfitrião; e o Memorando de
Entendimento, firmado entre a ONU e os países fornecedores de tropas, abor-
dando os aspectos financeiros, logísticos e administrativos das operações10.
As intervenções humanitárias são controversas em diversos campos,
como nas questões de legalidade, legitimidade e denúncias de violações de di-
reitos humanos pelas próprias tropas11. A legitimidade das operações abrange
o âmbito interno e externo do sistema internacional, sendo que no primeiro,
as intervenções humanitárias detêm de legitimidade equilibrando-se soberania
e direitos humanos; e o segundo, a legitimidade será determinada após ques-
tionamentos quanto à existência de motivos escusos na intervenção; a inação
em face de violações de direitos humanos e de possível grave perda de vidas
pode legitimar uma intervenção ilegal; a verificação da legitimidade da ação
ou inação perante grave e generalizada violação de direitos humanos e da nor-
ma de não intervenção, entre outros12.
Questão relevante acontece quando se identificam sérias violações de di-
reitos humanos por integrantes das tropas de missões de paz. Essa forma de
violação é profundamente contraditória, uma vez que são cometidas por indi-
víduos que estão participando de operações que deveriam zelar pelos direitos
humanos dos civis em situações de conflitos. Entretanto, contribuem para o
crescimento de abusos sexuais, tráfico de drogas, armas e pessoas, crimes os
quais são reconhecidos em documentos do direito internacional. Ademais,

8
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. An agenda for Peace. 1992. Disponível em: <http://
www.un-documents.net/a47-277.htm>. Acesso em: 03 fev 2017.
9
RODRIGUES, op. cit., p. 38-39.
10
GRASSI, Pietro. A Responsabilidade dos Estados por Crimes Sexuais Cometidos por Agentes de
Paz da ONU. 2011. Disponível em: <https://www2.direito.ufmg.br/revistadocaap/index.php/revista/ar-
ticle/download/.../28>. Acesso em: 24 jul. 2017.
11
Primeiro, essa prática opõe-se aos princípios de soberania estatal, positivado na Carta da ONU, no Arti-
go II, inciso 7 (PATRIOTA, Antônio de Aguiar. O Conselho de Segurança após a Guerra do Golfo: a
articulação de um novo paradigma de segurança coletiva. Brasília: Instituto Rio Branco, 1998). Em
segundo lugar, a força armada é vedada no mesmo Artigo, inciso 4. Entretanto, o Capítulo VII da Carta
das Nações Unidas apresenta as condições as quais seu emprego seria autorizado (RODRIGUES, op. cit,
p. 49).
12
JUBILUT, op. cit., p. 155-156.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 139
a dificuldade de responsabilização individual na relação entre a ONU, que
detém de imunidade diplomática, Estados Membros fornecedores de tropas e
o próprio soldado, é mais um obstáculo no enfrentamento das violações por
peacekeepers (integrantes das missões de paz).
Este assunto será melhor estudado nas seções seguintes, com a apresen-
tação de conceitos importantes, visto que é fundamental a compreensão do
que engloba o fenômeno do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual,
assim como um estudo de caso, em Kosovo.

3. ABORDAGEM AO TRÁFICO DE PESSOAS E A


EXPLORAÇÃO SEXUAL

O Tráfico de Pessoas é considerado uma das grandes violações modernas


dos Direitos Humanos, ao infringir, entre outros direitos, a dignidade huma-
na, direito de ir e vir, a privacidade e a liberdade individual, levando a pessoa
a ser tratada como uma mercadoria. Este crime caracteriza a escravidão mo-
derna. Nos esforços pela afirmação e proteção desses direitos fundamentais,
constantemente violados pelo Tráfico de Pessoas, a Declaração Universal dos
Direitos Humanos apresenta-se como um dos meios normativos mais utiliza-
dos para o enfrentamento deste crime13.
No contexto mundial, ao mesmo tempo em que a globalização oferece
uma série de benefícios para a sociedade, ela também pode facilitar a criminali-
dade transnacional ao possibilitar que barreiras nacionais sejam ultrapassadas,
permitindo uma atuação de forma mais organizada e em diferentes locais do
mundo, exigindo outros mecanismos estatais de combate a esta criminalidade.
Assim, essa percepção de globalidade insere a responsabilidade pela proteção
desses direitos para além dos Estados nacionais, pertencendo à comunidade
internacional como um todo.
Dessa forma, o tráfico de pessoas passa a ser considerado um crime or-
ganizado transnacional por meio da Convenção contra o Crime Organizado
Transnacional, em 2000, juntamente com seu Protocolo para Prevenir, Repri-
mir e Punir o Tráfico de Pessoas, especialmente Mulheres e Crianças, também
chamado de Protocolo de Palermo.
O Protocolo de Palermo, além de trazer uma definição do conceito so-
bre o tráfico de pessoas, busca medidas internacionais para prevenir o crime,
punir os traficantes e proteger as vítimas, procurando também condicionar os

13
Os artigos I (liberdade, igualdade e dignidade), II (não discriminação), III (vida, liberdade e segurança
pessoal), IV (não ser mantido em escravatura ou servidão), XII (não sofrer intromissões arbitrárias em
suas vidas privadas, XVI (direito de asilo) e XXIII (direito ao trabalho e à livre escolha do trabalho)
desta declaração estão diretamente ligados ao Tráfico Humano.
140 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

países a internalizar esse conceito e as medidas determinadas para sua repres-


são, tanto na esfera nacional de cada Estado Parte, quanto internacional.
De acordo com o Protocolo de Palermo, a definição do Tráfico de Pes-
soas se da14:

a) O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento


de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação,
ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulne-
rabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o
consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de explo-
ração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de
outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a
escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos;
b) O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista
qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente artigo, deverá ser
considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referi-
dos na alínea a)15

Importante ressaltar que o tráfico de pessoas16 pode ocorrer tanto no


âmbito interno como no internacional. Não é necessário ultrapassar as fron-
teiras territoriais de um Estado Nação para que o crime seja identificado como
tráfico; o deslocamento pode ocorrer internamente, de uma região para outra,
o que traz uma preocupação não apenas da comunidade internacional, mas
também de cada Estado subnacional, procurando aplicar medidas internas
para combater e prevenir o crime.
Dentro dos tipos de exploração citados pelo Protocolo de Palermo está a
exploração sexual, que inclui os atos de turismo sexual, prostituição forçada,

14
O crime caracteriza-se por meio de três elementos: um “ato” (recrutamento, um transporte, uma trans-
ferência, um alojamento ou um acolhimento), um “meio” (uso da força, ameaça, raptos, abuso de auto-
ridade, abuso de uma situação de vulnerabilidade, e outros), e uma “finalidade” (a exploração laboral,
sexual, infantil, como também serviços forçados e extração de órgãos, etc). (MINISTÉRIO DA JUSTI-
ÇA. Guia de Referência Para a Rede de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil. Secretaria
Nacional da Justiça, 2012, p. 50. Disponível em: http://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pes-
soas/publicacoes/anexos/cartilhaguiareferencia.pdf. Acesso em: 05 set. 2015.)
15
PROTOCOLO DE PALERMO. Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Cri-
minalidade Organizada Transnacional relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico
de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças, 2000. Disponível em: <http://sinus.org.br/2014/wp-
content/uploads/2013/11/OIT-Protocolo-de-Palermo.pdf>. Acessado em 06 out. de 2016
16
É essencial para o entendimento da constituição do Tráfico de Pessoas a sua diferenciação frente ao Con-
trabando de Migrantes. O primeiro sempre terá um ato de exploração da vítima, em âmbito doméstico
ou internacional, enquanto o último se dá somente por deslocamento internacional, com fins de facilitar
a migração irregular (cruzar a fronteira de forma clandestina) de uma pessoa ou grupo, por meio de ali-
ciamento de um terceiro, que visa apenas os benefícios financeiros pagos por aqueles que buscam seus
serviços. O migrante, neste caso, não será explorado em seu destino final. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA,
2012, op. cit., p. 50.)
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 141
escravidão sexual e até mesmo casamento forçado. Aqui se faz necessário reali-
zar uma diferenciação entre a “exploração sexual” e “abuso sexual”. O “abuso
sexual” está associado a atos de violências sexuais através de coerções, como o
estupro, não apresentando um caráter comercial17. Já na “exploração sexual”,
há um tipo de intermediação (aliciador) e lucro (monetário, social ou políti-
co), com base na oferta e demanda de serviços sexuais, podendo esta trazer, em
alguns casos, o abuso sexual junto18.
Aqui a ideia de obter um lucro através de serviços sexuais na maioria das
vezes é priorizada pela representação da prostituição, que por sua vez leva a
uma visão de consentimento da vítima, mesmo apresentando um caráter ex-
plorativo19. Além disso, por mais que a vítima tenha consentido na realização
das atividades sexuais20, a escolha de ser explorada ou escravizada não é volun-
tária, a mesma não opta por abrir mão de seus direitos fundamentais, a razão
pelo qual o consentimento não deve ser levado em consideração21.

4. VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NAS


INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS

Como dito anteriormente, as missões de paz tem a função de diplomacia


preventiva, de antecipar disputas e prevenir a erupção de violência. Nesse sentido,
seria impensável que tropas com essas funções possam cometer crimes de violação
de direitos humanos contra as populações às quais foram enviadas para defender.
Porém, segundo Forte22, as primeiras denúncias contra as tropas de mis-
são de paz se deram por meio da Human Rights Watch em 1999, na Guiné, e
17
BOCHI, Shirley; FIGUEIREDO, Karina. Violência Sexual - Um fenômeno complexo. Centro de
Referência Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (CECRIA), Brasília, 2006, p.57. Disponível
em: <https://www.unicef.org/brazil/pt/Cap_03.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2017
18
Nesta modalidade o ato pode também ter um caráter coercitivo (ocorrentes principalmente no tráfico de
pessoas e escravidão sexual).
19
FONTOURA, Natalia. Heróis ou Vilões? O abuso e a exploração sexual por militares em missões de
paz da ONU. Dissertação de Mestrado do programa da Pós-Graduação em Relações Internacionais da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009, p.21. Disponível em: <http://
www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/biblioteca/php/mostrateses.php?open=1&arqtese=0710402_09_Indi-
ce.html. Acesso em: 25 jul. 2017.
20
É considerado como exploração sexual tanto as situações em que a vítima é enganada para o ingresso
no mercado sexual, como também aquelas que aceitam se prostituir. Considera-se que as condições do
exercício da prostituição geram exploração. Por isso, o consentimento dado pela vítima para o exercício
da prostituição é irrelevante para a caracterização do crime de tráfico de pessoas.
21
RAMINA, Larissa. A exploração sexual da mulher no século XXI. Carta Maior, 2013. Disponível
em: <http://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/A-exploracao-sexual-da-mulher-no-seculo-XXI/27541>.
Acesso em: 24 jul. 2017.
22
FORTE, Clarissa. Consequências Indesejadas das Missões de Paz: Violações dos Direitos das Mu-
lheres nos casos da Bósnia e do Kosovo. 2014. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/bitstream/
handle/123456789/128076/Monografia%20da%20Clarissa%20Forte.pdf>. Acesso em 12 jul 2017.
142 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Grassi destaca que violações nas missões na Bósnia Herzegovina e Kosovo


23

foram documentadas no início da década de 1990. Nos anos subsequentes, no-


vas acusações surgiram a respeito de violações na Libéria, Serra Leoa, Camboja,
Timor Leste e Congo.
Desde então, a ONU busca lidar com as acusações e dirimir a má condu-
ta das tropas. A grande repercussão dos abusos ocorridos no Congo fez com
que o então Secretário Geral Annan requisitasse um relatório, publicado em
março de 2005, chamado Estratégia geral para eliminar futura exploração e abuso
sexual nas operações de manutenção de paz (tradução nossa), conhecido como
Relatório Zeid, que apresentava os graves abusos cometidos pela Missão das
Nações Unidas no Congo, a MONUC24. Allred25 afirma que há um longo his-
tórico de má conduta sexual por parte dos peacekeepers, incluindo o comércio
de mulheres traficadas na Bósnia-Herzegoniva praticamente nos portões do
recinto da ONU.
Em 2004, o Departamento de Operações de Manutenção de Paz recebeu
16 denúncias contra civis, 9 contra a polícia civil e 80 contra militares, totali-
zando 105 acusações de abuso sexual – sendo 45% de sexo com menores de 18
anos, 31% com prostitutas adultas, 13% de estupro e 5% de assédio sexual26.
Já em 2012, o Escritório de Serviços de Supervisão Interna das Nações Uni-
das contabilizou 42 casos em aberto sobre o tema, sendo 41% relacionados a
casos em missões de paz27. No relatório disponibilizado em junho de 2017,
pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos sobre Tráfico de Pessoas, a
quantidade de acusações do ano anterior foi de 168, sendo 68 contra civis, 93
contra militares e 7 contra a polícia.28
É importante compreender o contexto o qual essas violações de direitos
humanos ocorrem. Dentre os fatores que contribuem para a exploração sexual
e abuso29, estão a erosão do tecido social devido ao conflito, resultando em

23
GRASSI, op. cit., p. 203.
24
FAGANELLO, Priscilla Liane Fett. Operações de Paz da ONU: De que forma os Direitos Humanos
Revolucionaram a principal ferramenta internacional da paz. 2013, p. 48. Disponível em <http://funag.
gov.br/loja/download/1078-operacoes-de-manutencao-de-paz.pdf>. Acesso em 27 jul. 2017.
25
ALLRED, Keith. Peacekeepers and Prostitutes: How Deployed Forces Fuel the Demand for Traf-
ficked Women and New Hope for Stopping It. 2006, p. 6-7. Disponível em: <journals.sagepub.com/doi/
abs/10.1177/0095327X06288803>.Acesso em: 4 ago. 2017.
26
ASSEMBLÉIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório Zeid: A Comprehensive Strategy to
Eliminate Future Sexual Exploitation and Abuse in United Nations. 2005. Disponível em: <http://
reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/421DA870DF78A2BCC1256FDA0041E979-Zeid%20
report%20_A-59-710_%20English.pdf>. Acesso em 4 ago. 2017.
27
FAGANELLO, op. cit., p. 190
28
DEPARTAMENTO DE ESTADO DOS ESTADOS UNIDOS. Trafficking in Persons Report. 2017, p. 439.
Disponível em < https://www.state.gov/documents/organization/271339.pdf >. Acesso em 4 ago. 2017.
29
As violações não se limitam ao âmbito sexual, incluindo tortura e violência contra locais, inclusive em
campos de refugiados. A prática é transcultural, dada as variadas nacionalidades dos perpetradores.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 143
um número elevado de mulheres e crianças sem suporte familiar; o alto nível
de extrema pobreza; a falta de oportunidades de emprego; más condições de
saúde e alimentação; a falta de segurança pela inexistência do rule of law (Esta-
do de direito); a criação de um ambiente de impunidade pela falta de um bom
funcionamento do sistema legal e judicial. Em relação às violações cometidas
pelas tropas, pode-se ainda destacar a imunidade dos soldados, o poderio eco-
nômico dos agentes, a ideia machista de “natureza masculina”30, treinamento
falho31 das tropas quanto essa temática, e dificuldades para realizar denúncias,
investigação e identificação dos acusados32. O pessoal das Nações Unidas não
pode sofrer processos criminais por parte dos países anfitriões, somente pelo
seu país de origem, segundo a Convenção sobre Privilégios e Imunidades33.
Como consequência das violações, o aumento da prostituição, do tráfico
de pessoas, dos índices de contaminação de HIV, entre outros, foi impactan-
te nas comunidades locais. O abuso sexual também acirrou a discriminação
contra mulheres e crianças, que passam a ser segregadas em suas comunidades.
Muitos soldados “presentearam” suas vítimas com o intuito de parecer caso de
prostituição quando não o foi, e outros chegaram a administrar os bordeis34.
Ademais, muitas dessas vítimas engravidaram, e os chamados peacekeeping ba-
bies (filhos de soldados das missões de paz), foram abandonados por seus
“pais”, deixando a mãe ainda mais vulnerável35.
Duas regiões são muito importantes para a análise de tráfico de pessoas
durante as missões de paz, a Bósnia e o Kosovo, devido ao grande número
de casos. O artigo analisará aqueles ocorridos em Kosovo, por terem uma
visibilidade menor comparado aos da Bósnia, e uma vez que a região já apre-
sentava grandes violações de direitos humanos, principalmente o tráfico de
órgãos, anterior a chegada das tropas internacionais, demonstrando a grande

Contrabando e tráfico de armas também foram realizados pelos peacekeepers. (FONTOURA, op. cit., p.
31; GRASSI, op. cit., 290)
30
Allred aponta que os soldados contribuem muitas vezes para o aumento da demanda de prostitutas,
aumentando consequentemente a demanda por mulheres e crianças traficadas (ALLRED, op. cit., p. 7).
Grassi (op. cit., p. 207) destaca a declaração de Yasushi Akashi, maior oficial da ONU na operação em
Camboja, em resposta às críticas de abuso sexual: “boys will be boys”, e nada poderia ser feito.
31
Allred afirma que atualmente os treinamentos são mais incisivos, contudo, em 1998, um manual de trei-
namento da ONU continha as informações da possibilidade de pessoas que poderiam ter sido forçadas à
prostituição, e que o soldado “deveria considerar cuidadosamente” se deveria “apoiar e realizar” este tipo
de circunstância ao “utilizar seus serviços”. Quanto ao estupro e violência sexual, o manual instruía que o
soldado “deveria considerar se eles poderiam ser capazes de evitar tais situações infelizes”. (ibidem)
32
Zeid relata a dificuldade das vítimas na identificação dos acusados por estarem assustadas e terem um nível
baixo de educação para identificar os soldados estrangeiros, e adiciona que, em casos envolvendo prostitui-
ção, não há incentivo econômico. (ASSEMBLÉIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS, op. cit., p. 9)
33
FORTE, op. cit., p. 60
34
ASSEMBLÉIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS, op. cit, p. 8; GRASSI, op. cit. p.204.
35
FONTOURA, op. cit., p. 34.
144 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

vulnerabilidade apresentada pelo território graças ao seu contexto de viola-


ções passadas.

5. CASO DO TRÁFICO DE PESSOAS EM KOSOVO

5.1 Breve menção do conflito em Kosovo e algumas violações dos


direitos humanos

Antes de iniciar a análise das violações como o tráfico de pessoas para


fins de exploração sexual, é necessário um conhecimento prévio da conjuntura
da região. Portanto, alguns pontos serão pautados para um melhor desdobra-
mento dos casos de exploração em Kosovo36.
O conflito ocorreu em território iugoslavo, onde de um lado encontra-
vam-se o Kosovo em busca de sua independência, e a Sérvia de outro, que não
tinha a pretensão de perder sua província. Com o acirramento das tensões nos
anos 1990, em 24 de março de 1999, iniciaram-se os bombardeios aéreos da
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), na chamada Operação
Força Aliada 37, e tropas da Kosovo Protection Force (KFOR) foram implemen-
tadas posteriormente à Operação38. Em 10 de junho de 1999, após o término
da intervenção da OTAN, foi autorizada a Missão das Nações Unidas para a
Administração Interina do Kosovo (UNMIK)39, através da Resolução 124440,

36
A questão de Kosovo engloba um aspecto territorial, histórico, étnico, religioso e demográfico. Sérvios
e albaneses raramente se viam como vizinhos, amigos e parceiros de casamento. Com o um cenário cul-
tural-religioso diverso, o conflito pode agravar da situação da mulher, uma vez que se encontravam em
uma posição inferior em próprias culturas, ficando mais vulneráveis a situações de estupros e exploração
sexual. (CALIC, Marie-Janine. Kosovo in twentieth century: a historical account. In: SCHNABEL, A.;
THAKUR, R. (Org.). Kosovo and the Challenge of Humanitarian Intervention: selective indigna-
tion, collective action, and international citizenship. Estados Unidos: United Nations, 2000).
37
Tudo se intensifica em 1990, quando o governo sérvio cria medidas de segurança para Kosovo que beneficia-
vam somente os sérvios, incentivando a saída dos albaneses da região. Agravada a situação, surge o Exército
de Libertação do Kosovo (KLA), formado por albaneses nacionalistas visando unir o Kosovo à Albânia,
levando ao ápice do conflito, chamando a atenção da comunidade internacional. Tendo a Sérvia discordado
do acordo de cessar-fogo da ONU, a OTAN inicia Operação Força Aliada em 1999. A Operação não obteve
aval do Conselho de Segurança, sendo uma intervenção humanitária controversa até hoje. (Ibidem)
38
VARELA, Águeda. A acção da ONU na prevenção e no combate aos crimes contra a Humanidade
em territórios de conflito: O caso do tráfico humano no Kosovo. 2012, p. 38. Dissertação de Mestra-
do em Ciência Política e Relações Internacionais, Universidade Nova de Lisboa. Disponível em: <ht-
tps://run.unl.pt/bitstream/10362/9240/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20Mestrado%202012%20-%20
%C3%81gueda%20Varela%20n%C2%BA%2031862.pdf>. Acesso em 04 ago. 2017.
39
“UNMIK foi investida de autoridade sobre todo o território e população do Kosovo, incluindo o poder
legislativo, executivo e administração da justiça”. (ESTADO-MAIOR-GENERAL DAS FORÇAR AR-
MADAS. ONU - UNMIK, 2012. Disponível em: <www.emgfa.pt/pt/operacoes/missoes/kosovounmik>.
Acesso em: 08 jul 2017.)
40
A Resolução pode ser acessada em: https://unmik.unmissions.org/united-nations-resolution-1244
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 145
com a finalidade de inserir um processo de construção de paz, democracia,
estabilidade e autogovernação para a região, em busca de uma vida normal
para a população local. Em 2008, Kosovo declarou sua independência unilate-
ralmente, por meio do primeiro-ministro kosovar Hashim Thaci. Contudo, o
ex-presidente da Sérvia, Boris Tadic, não a reconheceu.41
Durante o conflito, diversas violações dos Direitos Humanos42 foram
identificadas, cometidas por militares e políticos, como o tráfico de pessoas
para fins de extração de órgãos no território kosovar, além do tráfico para ex-
ploração sexual abordado mais afrente, levando ao desaparecimento de vários
civis. As primeiras suspeitas de tráfico de pessoas, durante e após o conflito43,
se deram com a publicação do livro “A caça: Eu e os Criminosos de Guerra”44,
escrito por Carla Del Ponte, ex-procuradora do Tribunal Penal Internacional
para a ex-Iugoslávia. A obra chamou a atenção da comunidade internacional
e de organizações internacionais protetoras dos direitos humanos, que busca-
ram comprovar tais alegações.
Assim, é possível perceber que a região já apresentava fatores de vulnerabili-
dade, principalmente no campo do tráfico de pessoas, demonstrando a importân-
cia da compreensão contexto o qual as violações de direitos humanos ocorrem.

5.1. Os casos de Tráfico de Pessoas para fins de exploração sexual


em Kosovo

A partir dessa prévia análise de Kosovo, de determinadas violações de


direitos humanos durante e após o período do conflito, e do início da atua-
ção da comunidade internacional na região, é possível iniciar a abordagem
do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual em Kosovo, uma vez
que essa prática apresenta um grande aumento em 1999. Nesse ano, o local
se tornou um dos maiores destinos de meninas e mulheres traficadas para
fins de exploração sexual, mesmo ano da chegada das tropas internacionais,
KFOR e UNMIK, no território45, o que levou a uma preocupação e atuação

41
ESTADO-MAIOR-GENERAL DAS FORÇAR ARMADAS, 2012, op. cit., loc. cit.
42
“Entre eles encontram-se as violações dos direitos humanos da população civil que envolveram torturas
e maus-tratos; prisões e julgamentos ilegais; destruição de propriedade privada; ameaças físicas e psico-
lógicas; e assassínios”. (VARELA, 2012, op. cit., p. 66)
43
Durante o período de tempo que demorou a transição do poder dos militares sérvios para a UNMIK
44
De acordo com Varela (2012, op. cit, p. 67), o livro apresentava: Em causa estavam alegações do de-
saparecimento de cerca de 300 indivíduos, sendo que estes seriam raptados, presos e transferidos para
uma clínica na Albânia, onde lhes eram retirados os órgãos e vendidos a pacientes ricos. Havia ainda a
suspeita de elementos dos cargos mais altos do KLA poderem estar envolvidos no negócio do tráfico
humano, sendo que as vítimas seriam maioritariamente sérvias ou com origem das minorias étnicas.
45
ANISTIA INTERNACIONAL. So does that mean I have rights? Protecting the human rights of
women and girls trafficked for forced prostitution in Kosovo. 2004, p.1. Disponível em: <http://www.
146 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

de organizações internacionais, como a Anistia Internacional e a Human


Rights Watch (HRW), em relação aos crimes de violência sexual.
Em um relatório da Anistia Internacional46, publicado em 2004, foi apre-
sentado este intenso crescimento do crime na região, junto às violações come-
tidas contra as mulheres e crianças, como abusos sexuais, estupros, torturas,
maus-tratos, espancamentos, ameaças físicas e psicológicas, além da perda de
liberdade por meio da retenção de documentos de identidade e passaportes.
O documento também aponta que a comunidade internacional é responsável
pelo crescimento elevado da indústria do sexo, e consequentemente das viola-
ções cometidas às mulheres traficadas.47

Mulheres e garotas são vendidas para a escravidão. Elas são ameaçadas, espan-
cadas, estupradas e efetivamente presas por seus donos. Com uma clientela que
inclui tropas e a polícia internacional, as garotas e mulheres muitas vezes têm
muito medo de escapar, e as autoridades não realizam o seu devido trabalho
em ajudá-las48. - Tradução Nossa

Além do fator do medo frequente que as vítimas sentem das autorida-


des, uma vez que a clientela é composta, em parte, por elas, o documento
também apresenta a preocupação da localização de muitas redes de pros-
tituição. Um número significante dessas redes é identificado próximo às
tropas KFOR, onde os militares representam a maior parte da clientela.
Algumas alegações apresentam também o envolvimento de alguns no pro-
cesso do tráfico.
Para um melhor entendimento do crescimento mencionado acima, relató-
rios apontam que, de 1999 até 2003, o número de casos de casos de exploração
sexual elevou de 18 para 200, em um ano (entre 2000 e 2001), pelo menos 160
vítimas foram identificadas e acompanhadas pela Organização Internacional de
Migração (IOM) e em 2005 foi publicado um relatório baseado no atendimento
de 474 vítimas exploradas sexualmente em Kosovo. Para a Anistia Internacional,
a chegada das tropas internacionais tem uma relação direta com esse aumento,
uma vez que levou à uma intensificação da demanda do mercado sexual. Um
ano após o estabelecimento das tropas na região, 80% da clientela deste mercado
era internacional.49

amnesty.eu/en/news/press-releases/eu/violence-against-women/gender-based-violence/fgm/kosovo-so-
does-that-mean-i-have-rights-0197/#.WYnJ4YTyvIU>. Acesso em: 08 ago. 2017.
46
Ibidem
47
Ibidem
48
Ibidem
49
CUESTA, Brandon; SMITH, Charles. Human Trafficking in Conflict Zones: The Role of Peace-
keepers in the Formation of Networks. 2010, p. 292. Disponível em: <https://link.springer.com/arti-
cle/10.1007/s12142-010-0181-8>. Acesso em: 09 ago. 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 147
No fim das contas, cheguei em um bar em Kosovo, e fui presa e forçada a me
prostituir. Pegaram meu passaporte bem antes disso, e os traficantes o passa-
vam de um a outro conforme eu ia sendo vendida. No bar, nunca me paga-
ram, eu não podia sair sozinha, e o proprietário ficava cada vez mais violento
conforme as semanas passavam. Ele me batia e me estuprava, assim como as
outras garotas. Nós éramos sua “propriedade”, ele dizia; por nos comprar, ele
comprou o direito de nos bater, nos estuprar, nos deixar passando fome, nos
forçar a fazer sexo com clientes […]50 – Tradução Nossa

A organização não-governamental “Medica Mondiale” apresenta relatos de


garotas atendidas em clínicas ginecológicas e psicológicas que confirmam as acu-
sações feitas contra soldados alemães, que as tropas frequentavam os locais com
práticas de prostituição forçada e de exploração sexual com menores de idade. A
ONG alega que a clientela, incluindo as tropas alemãs, são cúmplices dos abu-
sos realizados com as garotas, já que estão cientes do quão novas as vítimas são,
desconsiderando a condição de prisioneiras que essas se encontravam. Contudo,
a administração da ONU em Kosovo apresentou um depoimento declarando
que os casos de visitas de soldados internacionais a bordéis são raros, e medidas
rigorosas são aplicadas àqueles que frequentavam esses locais, porém, não foram
informados os cargos nem a nacionalidade dos infratores51.
Além disso, afirma-se a falta de esforços para a proteção dos Direitos Hu-
manos de meninas e mulheres traficadas em Kosovo perante a sociedade in-
ternacional, como forças da KFOR, UNMIK e do “Provisional Institutions of
Self-Government in Kosovo (PISG)”, as quais deveriam criar medidas eficazes para
combate ao crime, além da implementação de uma proteção e repatriação das
vítimas. Também deveriam garantir que tanto as forças militares, quanto os
peacekeepers que são suspeitos em manter relações com as vítimas, sejam devida-
mente julgados e penalizados. Em relação as penalizações, essas acabam sendo
impedidas por meio da Resolução nº 2000/47 da UNMIK, que estipula o Status,
Privilégios e Imunidades das tropas KFOR e UNMIK, levando à imunidade a
frente da jurisdição local, e a inserção de uma legislação própria para as tropas.52
Contudo, não se pode afirmar que nada foi feito pela comunidade interna-
cional para o enfrentamento ao tráfico e as violações mencionas acima. Foi criado,
em 2000 e 2001, uma unidade especializada de combate ao tráfico humano – a

50
OFFICE OF THE SPECIAL ADVISER ON GENDER ISSUES AND ADVANCEMENT OF WOM-
EN. Faces: Women as Partners in Peace and Security. New York, 2004. Disponível em: <http://www.
un.org/womenwatch/osagi/resources/faces/index-en.htm>. Acesso em 09 ago. 2017.
51
SLAVKOVIC, Filip. German Soldiers Spurring Sex Trade?. Deutsche Welle (DW), 2004. Disponível
em: <http://www.dw.com/en/german-soldiers-spurring-sex-trade/a-1365134>. Acesso em: 09 ago. 2017.
52
THE ADVOCATES FOR HUMAN RIGHTS. UN Peacekeeping Missions and Trafficking in Wom-
en. Stop Violence Against Women, 2005. Disponível em: <http://www.stopvaw.org/un_peacekeep-
ing_missions>. Acesso em: 09 ago. 2017.
148 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Unidade de Investigação do Tráfico e da Prostituição (TPIU), juntamente com


um regulamento especial para os infratores e para as vítimas, procurando atribuir
mais proteção e assistência, sendo o último, uma criação da UNMIK53. Quanto ao
governo do Kosovo, o mesmo não parece apresentar muitos esforços para cumprir
os padrões mínimos para o devido enfrentamento ao crime. Porém, tem mudado
um pouco de posicionamento ao abrir um abrigo para as vítimas e ao estabelecer
uma nova legislação e outras inovações para a proteção das vítimas.54
Já a Anistia Internacional declara que mulheres e meninas têm a disponi-
bilidade de receber assistência de Organizações Não-Governamentais, mantendo
também uma preocupação com a UNMIK, alegando a falha nas implementações
de suas ações. A Anistia também procura chamar atenção da própria UNMIK,
das autoridades do Kosovo, PISG, ONU, OTAN e também União Europeia, para
determinados pontos como a utilização de esforços máximos para implementar
todas as medidas necessária de combater o crime; garantir que todas as medidas de
proteção e assistência às vítimas sejam colocadas em efetiva prática; garantir que
os suspeitos das forças da KFOR e UNMIK que cometam violações de direitos,
incluindo o tráfico, sejam devidamente penalizados, levando justiça à região55.

6. AÇÕES CONTRA O TRÁFICO DE PESSOAS, ABUSO E


EXPLORAÇÃO SEXUAL EM INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS

Inicialmente, a atitude das Nações Unidas foi de demitir funcionários que


denunciam e expõem os crimes no lugar dos perpetradores. Em 1998, foi esta-
belecido um código de conduta dos peacekeepers, sem efeito jurídico, chamado
Dez Regras: Código de Conduta Pessoal para os ‘Capacetes Azuis’. Nele, há disposições
sobre respeito à lei, costumes e tradições locais; respeito à população local; au-
sência de prática de atos imorais sexuais, físicos ou psicológicos, abuso ou ex-
ploração, contra a população local ou pessoal das Nações Unidas, entre outros.56
No ano seguinte, uma diretiva do Secretário-Geral declara que as missões
de paz estão sujeitas ao Direito Internacional Humanitário, o que consequen-
temente daria proteção e preveniria aquelas que se tornaram vítimas de abuso,
fossem mulheres ou crianças.5758.
53
VARELA, 2012, op. cit., p. 72.
54
US DEPARTAMENT OF STATE. Kosovo - 2014 Trafficking in Persons Report, 2014. Disponível
em: <https://www.state.gov/j/tip/rls/tiprpt/countries/2014/226755.htm>. Acesso em: 09 ago. 2017.
55
ANISTIA INTERNACIONAL, 2004, op. cit., p 2.
56
FONTOURA, 2009, op. cit, p. 60; GRASSI, Pietro, 2011, op. cit. p. 206; ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS. Ten Rules Code of Personal Conduct for Blue Helmets. 1998. Disponível em: <http://www.
un.org/en/peacekeeping/documents/ten_in.pdf>. Acesso em: 03 fev 2017.; FORTE, 2014, op. cit. p. 59
57
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1998, op. cit., loc. cit.
58
A ST/SGB/1999/13 encontra-se em <https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N99/230/42/
PDF/N9923042.pdf?OpenElement>.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 149
Em 2000, o CS declarou que o Direito dos Refugiados e o Direito Interna-
cional dos Direitos Humanos deveriam ser observados pelas tropas, entretanto,
abrangia a equipe civil da ONU, não militar, com caráter de soft law59. Consti-
tuindo o Memorando mencionado anteriormente, há, juntamente com o Dez
Regras, o Nós somos Agentes de Paz das Nações Unidas, o qual proíbe os agentes de
cometerem qualquer ato que envolva atividade sexual, abuso ou exploração com
crianças menores de dezoito anos60. Como punição pela exploração e/o abuso
sexual, considerados pelo Secretário Geral como más condutas sérias, medidas
disciplinares devem ser aplicadas, inclusive a demissão dos agentes61.
Em 2007, a ONU declarou tolerância zero para com abuso sexual por
peacekeepers, principalmente após o Relatório Zeid62. A Organização aplica pro-
cessos administrativos contra os violadores após investigação, que igualmente
passa por obstáculos por falta de evidências, denúncias e depoimentos das
vítimas, por conta de sua estigmatização em suas comunidades, como men-
cionado anteriormente. Contudo, a responsabilização e punição aplicada não
é suficiente para inibir as violações, conforme os números apresentados pelo
Relatório do Departamento de Estado dos EUA de 2017.
Pela Convenção sobre Privilégios e Imunidades, os agentes podem ser pe-
nalizados somente pelo seu país de origem. Em Estados nos quais a prostitui-
ção não se constitui como crime, nada recairá sobre eles. Ademais, a instrução
contida no Dez Regras sobre “atos imorais” permite uma relativização passível
de acarretar impunidade, caso o perpetrador e/ou seu país o qual é nacional
afirme não considerar a ação como imoral. Os países fornecedores de tropas
evitarão, muitas vezes, processar seus agentes por conta da “vergonha” perante
a comunidade internacional, abafando casos e denúncias, descartando evidên-
cias para investigações, entre outros. À ONU, cabe somente, no momento, a
demissão e repatriamento do militar acusado63.
Para combater a mentalidade “boys will be boys” e de que, uma vez não
usando a farda, os agentes podem fazer o que bem querem, ações como aplicar
a obrigatoriedade de se usar os uniformes durante todo o tempo para facilitar
a identificação dos agentes da ONU e a proibição dos militares de andarem
por certas áreas (off-limit areas) ajudariam na prevenção64. No que se refere à
59
Ver parágrafos 9 e 12 da Resolução 1325(2000), em <https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/
GEN/N00/720/18/PDF/N0072018.pdf?OpenElement>
60
GRASSI, 2011, op. cit., p. 206.
61
Ibidem
62
A ST/SGB/2003/13, que proíbe qualquer tipo de exploração e abuso sexual por parte de qualquer fun-
cionário da ONU, incluindo órgãos e programas da ONU administrados separadamente, é relembrada no
relatório. (ASSEMBLÉIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS, 2005, op. cit.. p.34)
63
ALLRED, 2006, op. cit., p.11; FONTOURA, 2009, op. cit., p. 42; GRASSI, Pietro, 2011, op.cit., p. 208.
64
Recomenda-se momentos de lazer aos agentes de paz, consultas com psicólogos; melhor treinamento
antes e ao chegar ao país anfitrião; reportar as más condutas à ONU; criação de tribunais marciais no país
150 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

responsabilização, que a imunidade atribuída por meio do Acordo do Status


da Força seja suspendida pelo Secretário Geral da ONU, para que o indivíduo
possa ser processado criminalmente65.
Em 2016, com o intuito de cobrar mais ação de investigação por parte
dos países fornecedores de tropas, a Resolução 227266 do CS, em seu parágrafo
2, solicita ao Secretário Geral a substituição de todas as unidades militares e/
ou unidades policiais da tropa/polícia do país fornecedor de tropas, caso este
país, cujas tropas estão sob investigação, não tome providências necessárias para
investigar, ou quando uma tropa/unidade de polícia em particular não respon-
sabilizou o perpetrador, nem informou o Secretário Geral do andamento das
investigações e/ou ações tomadas. Esta decisão de substituição revela a naciona-
lidade dos perpetradores, informação essa anteriormente tratada como extrema-
mente confidencial dado o receio da ONU de desencorajar países a fornecerem
tropas. Considerando, entretanto, o quanto essas violações mancham e deslegiti-
mizam a Organização e suas missões, a ONU mudou sua visão.
O atual Secretário-Geral, Antônio Guterres, nomeou em agosto deste ano
uma oficial como defensora para as vítimas de exploração e abuso em opera-
ções de paz. A nomeação de Jane Connors para o cargo veio juntamente com
a ameaça de cessar pagamentos aos países fornecedores de tropas que não estão
investigando adequadamente as acusações de abuso67.
Ainda que mudanças estejam sendo realizadas para inibir as violações aos
direitos humanos de pessoas vulneráveis pelas equipes das intervenções huma-
nitárias, verifica-se que há mais ações a serem tomadas para que os obstáculos
postos entre a ONU, o país fornecedor de tropas e o indivíduo que atua nessas
missões não perpetuem a cultura de impunidade vigente atualmente.

CONCLUSÃO

O presente artigo procurou discutir dois temas importantes para a agen-


da internacional: as intervenções humanitárias da ONU e o tráfico de pessoas.
Tal discussão se mostra relevante por apresentar a discordância entre o escopo
das missões de paz, que têm como função resguardar pela paz e segurança e

anfitrião, e não sendo possível, tentar viabilizá-los para facilitar o acesso a testemunhas e evidências;
métodos mais modernos na obtenção de provas; entre outros. (ALLRED, 2006, op. cit., p. 14)
65
ALLRED, 2006, op. cit., p. 9; FONTOURA, 2009, op. cit., p. 50; ORGANIZAÇÃO INTERNACIO-
NAL DE MIGRAÇÃO (IOM). Return and Reintegration Project. Situation Report, 2002. Disponível
em: <http://www.childtrafficking.org/pdf/user/iom_return_and_reintegration_counter_trafficking_situ-
ation_report_in_kosovo.pdf>. Acesso em: 09 ago. 2017.
66
A Resolução 2272 está disponível em: http://www.refworld.org/docid/56e915484.html.
67
DW. UN names first victims’ rights official to combat sexual abuse by soldiers. 2017. Disponível
em: <http://www.dw.com/en/un-names-first-victims-rights-official-to-combat-sexual-abuse-by-soldier-
s/a-40212377>. Acesso em 23 ago. 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 151
são atualmente implementadas em casos graves de violações de direitos huma-
nos, e as violações perpetradas pelos próprios peacekeepers, que, no caso estuda-
do, intensificaram o tráfico e exploração de mulheres em Kosovo.
O descumprimento dos valores das Nações Unidas, como o respeito à
dignidade humana e direitos humanos, pelos chamados capacetes azuis, levanta
dúvidas quanto à credibilidade dessas operações e da própria ONU. Com isso
em mente, a Organização tem tomado medidas para reverter este quadro atual-
mente. No estudo de caso apresentado, no entanto, foram identificadas dificul-
dades de responsabilização dos violadores, seja por conta de atitudes da ONU e
dos próprios Estados Membros fornecedores de tropas para abafar o caso, pro-
blemas para o recolhimento de evidências, e a questão da imunidade concedida
àqueles que compõem o contingente das tropas. Ainda que o Estado Membro da
nacionalidade do perpetrador seja o responsável pela investigação e condenação
do acusado, é inegável os danos causados à imagem e legitimidade da ONU.
O texto aponta que muitas das falhas ao combate do tráfico, violações
de direitos humanos e exploração de pessoas ocorridas em Kosovo permane-
cem em demais operações atualmente, justificando a importância deste estudo.
Nota-se que as táticas recentes ao combate à exploração de pessoas pelas tropas
têm sido voltadas aos Estados fornecedores de tropas, encarregados da inves-
tigação e punição do acusado. A nomeação de uma defensora dos direitos das
vítimas de abuso representa um grande avanço na questão de comunicação de
denúncias e investigação, contudo, desafios culturais tanto locais quanto dos
nacionais das tropas são impedimentos para cessar tais violações.
Verifica-se que há mais ações a serem tomadas para que os obstáculos
postos entre a ONU, o país fornecedor de tropas e o indivíduo que atua nessas
missões, não perpetuem a cultura de impunidade vigente atualmente, pon-
do em cheque os valores da Organização como um todo. Ademais, reflexões
acerca do machismo, patriarcado e até mesmo racismo na seara militar devem
ser feitas, uma vez que podem também constituir as razões as quais os capace-
tes azuis cometem tais violações, explorando a vulnerabilidade de mulheres e
crianças e abusando de sua posição de poder. O tráfico de pessoas, o abuso e
exploração sexual e demais descumprimentos dos direitos humanos não são
limitados às operações de paz, e assim como ocorrem na sociedade em que
vivemos, também são reproduzidos nas missões. Ao delimitar seu combate
somente em termos de treinamento e punições e não em um diálogo mais
abrangente de direitos humanos, há o risco de essas violações nunca cessarem.

REFERÊNCIAS

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Capítulo 10
Líbia: Análise do Caso Procuradoria
v. Saif Al-Islam Gaddafi à Luz do
Tribunal Penal Internacional
Anna Virginia Pereira Lemos de Freitas
Laryssa Figueiredo de Azevedo

INTRODUÇÃO

O presente trabalho acadêmico, aborda três momentos, a saber, a crise


política na Líbia, os aspectos gerais do Tribunal Penal Internacional (TPI),
bem como, a possível responsabilidade do ex-primeiro-ministro Líbio, Saif Al-
-Islam Gaddafi, perante a já mencionada corte internacional.
Em primeiro momento, aborda-se o histórico ditatorial do governo Gad-
dafi, e sua queda a partir de intensos conflitos armados ocorridos a partir de
fevereiro de 2011, em decorrência de manifestações. Neste ponto, os conflitos
desencadearam diversas propagações de crimes internacionais, compostos por
homicídios, atos de tortura, violência sexual e entre outros.
Em detalhe, apesar do auxílio da Organização do Tratado do Atlântico Nor-
te (OTAN) na proteção de civis, estas violações de direitos foram ocasionadas por
conflitos de domínio à territórios, tendo os combatentes de Thuwar e as forças de
Gaddafi, responsabilidade pelos incidentes horrendos a serem detalhados adiante.
Posteriormente, em segundo tópico, argumenta-se os principais aspectos
do TPI, analisando sua competência material, requisitos de admissibilidade,
a composição dos seus órgãos e as fases processuais de investigação, pré-julga-
mento, julgamento, e finalmente, de apelação, que envolvem a construção da
responsabilidade do acusado.
Em último tópico, analisa-se os procedimentos de formação do caso con-
tra Saif Al-Islam Gaddafi. Neste momento, demonstrou-se as informações de
investigação colhidas pelas Nações Unidas que evidenciam as práticas de cri-
mes, e seus detalhes, durante o conflito em fevereiro de 2011. Assim, a partir
das evidencias construídas pela Comissão Internacional de Inquérito sobre a
Líbia, estudou-se o processamento atual deste caso perante o TPI, juntamente
com as decisões da câmara de pré-julgamento, e as discussões que estão sendo
travadas pela Procuradoria, a Defesa do acusado, e o Governo Líbio.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 155
2. A CRISE POLÍTICA NA LÍBIA E SUAS VIOLAÇÕES DE
DIREITOS

A Líbia, nos últimos 40 anos, foi profundamente danificada. Em sua his-


tória, analisa-se casos de corrupção, nepotismo generalizado, forma de governo
e os graves abusos dos direitos humanos ao longo de décadas. As preocupações
dos direitos humanos em relação ao governo de Gaddafi, foram repetidamente
levantadas em fóruns internacionais, em particular, por órgãos de tratados de di-
reitos humanos das Nações Unidas e mecanismos de procedimentos especiais1.
Além disso, um grande número de desaparecimentos forçados documen-
tados e casos de execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias foram ob-
servados em 2007 pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas
(CDH), juntamente com a falta de informações sobre a efetiva investigação e
reparação das violações2.
Ademais, vivendo sob o governo de Muammar Gaddafi por mais de 40
anos, a Líbia enfrentou diversas mudanças econômicas e sociais. Com o poder
centralizado nas mãos do ditador, a discricionariedade com a qual eram trata-
das os assuntos relacionados à política interna e externa inclusive sustentando-
-se em ameaças aos que ousassem publicizar dados prejudiciais à imagem de
Gaddafi e seus aliados chocaram a comunidade internacional.3
A história da nação Líbia é de fato marcada por grandes supressões aos
direitos humanos. Já em 1973 sob o regime ditatorial de Muammar Gaddafi,
a dissidência política era considerada crime e um ano após essa medida, o
chefe de estado decretou que a criação de qualquer partido político deveria ser
punida com pena de morte4.
Assim, durante a Revisão Periódica Universal da Líbia feita pela Organi-
zação das Nações Unidas (ONU), em novembro de 2010, a CDH preocupou-se
quanto a violações graves de direitos humanos, incluindo a detenção arbitrá-
ria, tortura, restrições à liberdade de expressão, e a impunidade por violações,
incluindo desaparecimentos forçados e assassinatos de mais de 1.200 (Mil e
duzentos) prisioneiros na prisão de Abu Salim na Líbia em 19965.
Diante de tais acontecimentos, o governo da Líbia rejeitou as críticas e to-
das as recomendações relativas às violações específicas e medidas para abordá-las.

1
SWITZERLAND. United Nations. Human Rights Council. Report of the International Commission
of Inquiry on Libya. Geneva, Switzerland. 2012. p. 36.
2
Ibid., p. 36.
3
ELJAHMI, Mohamed. Libya and The US: Qadhafi Unrepetant. Review: Middle East Quaterly. Win-
ter, 2006. p.2
4
Ibid., p.4
5
SWITZERLAND. United Nations. Human Rights Council. Report of the International Commission
of Inquiry on Libya. op.cit., p. 36.
156 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Sobre isso, acredita-se que esta rejeição esteja relacionada com as quatro décadas
de severa repressão de todas as dissidências e abusos generalizados à direitos
humanos de Muammar Gaddafi6.
Em continuidade, as manifestações contra o governo Gaddafi, objeto de
análise pelo TPI, tiveram início na primeira quinzena de fevereiro de 2011. So-
bre isso, até 16 de fevereiro de 2011, os protestos se intensificaram em Benghazi
e começaram a se espalhar para as cidades da Líbia, incluindo al-Bayda, Darnah,
Tobruq no leste, Zintan no oeste, e os subúrbios de Tripoli de Fashloum e Souq
al-Jum’a. Em consequência às manifestações, as forças de Gaddafi responderam
com força letal, disparando munições em manifestantes sem aviso prévio7.
A partir de informações da ONU, entre 16 e 21 de fevereiro de 2011,
alguns manifestantes e espectadores foram mortos em Benghazi e al-Bayda e
mais de 200 foram mortos em Tripoli. Ainda, no final de fevereiro de 2011,
pessoas tomaram armas confiscadas dos depósitos abandonados do governo
e entraram em confronto com as forças de segurança. Em 22 de fevereiro
de 2011, Muammar Gaddafi, em seu primeiro discurso público na Televisão
Nacional da Líbia, desde o início dos protestos, culpou os estrangeiros pelos
problemas e disse que o país precisava ser “purificado” dos manifestantes, a
quem ele chamava de “ratos”8.
Em seguida, no final de fevereiro de 2011, um conflito armado se de-
senvolveu entre as forças de Gaddafi e Thuwar. Em 26 de fevereiro de 2011,
visando resposta à escalada de violência e relatos de graves violações de direitos
humanos, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) aprovou a
resolução 1970 que impõe um embargo de armas e remete a situação na Líbia
para o TPI. Após tais incidentes, em 2 de março de 2011, o ex-ministro de
Justiça da Líbia, Mustafa Abdul Jalil, declarou ser o único representante de
toda a Líbia, prometendo respeitar os direitos humanos, o Estado de direito e
defender as obrigações internacionais da Líbia9.
No início de março de 2011, em um esforço para recuperar o território
perdido, as forças de Gaddafi lançaram uma campanha militar. Neste ponto, os
confrontos foram realizados em várias frentes, incluindo Al Zawiyah, Zintan,
Misrata e Ben Jawad. Posteriormente, em 10 de março de 2011, as forças de Gad-
dafi recuperaram o território controlado pela oposição nas montanhas de Nafu-
sa e Misrata e avançaram para o leste. Neste sentido, à medida que as forças de
Gaddafi recapturaram cidades, surgiram ataques indiscriminados, assassinatos,
prisões arbitrárias, desaparecimentos e maus tratos de prisioneiros10.
6
Ibid.
7
Ibid., p. 46.
8
Ibid., p. 47.
9
Ibid.
10
Ibid.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 157
Em seguida, o CSNU aprovou a resolução 1973 em 17 de março de 2011,
autorizando uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia e a tomada de medidas
necessárias para proteger civis contra as forças de Gaddafi. A partir disso,
os ataques aéreos começaram em 19 de março de 2011, evitando a potencial
recaptura da cidade de Benghazi. Finalmente, em março de 2011, a OTAN
assumiu o controle das operações militares, inicialmente coordenada por uma
aliança internacional liderada pelos Estados Unidos, Reino Unido e França11.
Apesar disso, o conflito armado prosseguiu em Misrata e na montanha de
Nafusa, havendo meses de uma paralisação militar do governo Gaddafi. Neste
sentido, em agosto de 2011 os combatentes de Thuwar, em Misrata confrontaram
as forças de Gaddafi e passaram a controlar Al Zawiyah e Tripoli. Em relação ao
conflito em questão, os combatentes de Thuwar assumiram o controle da grande
maioria do território da Líbia, com as notáveis exceções da cidade natal de Sirle,
Bani Walid e Sabha. A partir disso, Muammar Gaddafi se escondeu enquanto
vários de seus parentes fugiram da Líbia para a Argélia, Tunísia e Nígeria12.
Em 20 de outubro de 2011, Gaddafi e seu filho Mutassim, foram cap-
turados depois que os jatos da OTAN bombardearam seu comboio blindado
enquanto tentavam escapar de Sirte. Nestas circunstâncias, ambos foram mor-
tos em circunstâncias pouco claras após a captura, mas é evidente que ambos
foram inicialmente capturados vivos13.
Após isso, Mustafa Abdel Jalil declarou formalmente a libertação da Lí-
bia com a “Declaração de Libertação” desencadeadora de um processo de tran-
sição. Dessa forma, a mencionada declaração marcou o fim oficial das hostili-
dades na Líbia, levando o CSNU a aprovar a resolução 2016 em 27 de outubro
de 2011, levantando a zona de exclusão, bem como, a OTAN interrompendo
suas operações na Líbia em 31 de outubro de 201114.

3. ASPECTOS GERAIS DO TRIBUNAL PENAL


INTERNACIONAL

O Tribunal Penal Internacional, é um tribunal internacional permanente


criado para investigar, processar e julgar os indivíduos acusados de cometer
os crimes mais sérios de interesse para a comunidade internacional como um
todo, a saber, o crime de genocídio, Crimes contra a humanidade, crimes de
guerra e o crime de agressão15.

11
Ibid.
12
Ibid., p. 48.
13
Ibid., p. 49.
14
Ibid., p. 49.
15
NETHERLANDS. International Criminal Court. Understanding the International Criminal Court.
The Hague, Netherlands. 2015. p. 3.
158 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Ademais, com base no critério ratione personae, o Tribunal Penal Interna-


cional processa e julga pessoas, e não Estados, que tenham acima de 18 anos
de idade e tenham cometido os mais graves crimes internacionais16. Nestes
critérios, o Tribunal Penal Internacional diferencia-se da Corte Internacional
de Justiça, tendo em questão que esta, além de ser um órgão judiciário perten-
cente às Nações Unidas, restringe sua competência a apreciação de desentendi-
mentos entre um Estado e outro.
Sabendo disso, entende-se que o TPI é composto por quatro órgãos: a Pre-
sidência, as Câmaras de Julgamento, o Gabinete do Procurador e o Registro.
Cada um desses órgãos tem um papel e mandato específicos17.
A Presidência é composta por três juízes (o Presidente e dois Vice-Presidentes)
eleitos pela maioria absoluta dos 18 juízes do Tribunal, e é responsável pela admi-
nistração do Tribunal, com exceção do Gabinete do Procurador. Por outro lado,
as Câmaras de Julgamento, são atribuídos às três divisões judiciais do Tribunal:
a divisão de Pré-julgamento (composta por sete juízes), a divisão de Julgamento
(composta por seis juízes) e a divisão de Recursos (composta por cinco juízes)18.
As câmaras de pré-julgamento, resolvem todas as questões que surjam
antes da fase de julgamento começar. Neste ponto, o seu papel é essencial-
mente supervisionar a forma como o Gabinete do Procurador realiza as suas
atividades de investigação e fiscalização, para garantir os direitos dos acusados,
vítimas e testemunhas durante a fase de investigação e a integridade dos pro-
cedimentos. Ainda, as câmaras de pré-julgamento decidem se devem ou não
emitir mandados de prisão ou convocação para comparecer na audiência e
confirmar ou não as acusações contra uma pessoa suspeita do crime19.
Neste caso, após o exame do pedido e do material de apoio feito pela câ-
mara de pré-julgamento, os juízes decidirão pela competência do TPI no caso
especifico e pela existência de uma base razoável para proceder à investigação20.
Em relação as câmaras de julgamento, uma vez emitido um mandado de
prisão, o suposto agressor preso e os autos confirmados por uma Câmara de Pri-
meira Instância, a Presidência constitui uma Câmara de Julgamento composta
por três juízes para julgar o caso. Sobre isso, a principal função da Câmara de
Primeira Instância é garantir que os julgamentos sejam justos e conduzidos com
pleno respeito pelos direitos do acusado, das vítimas e das testemunhas21.

16
Artigo 25 do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.
17
NETHERLANDS. International Criminal Court. Understanding the International Criminal Court.
op.cit. p. 9.
18
Ibid.
19
Ibid., p. 10.
20
SHAW, Malcolm N. International Law. Sixth edition. Cambridge University. New York. 2008. p. 413.
21
NETHERLANDS. International Criminal Court. Understanding the International Criminal Court.
op.cit., p. 10.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 159
Após isso, a Câmara de Primeira Instância determina se o acusado é ino-
cente ou culpado das acusações e, se ele for declarado culpado, pode impor
uma pena de prisão por um determinado número de anos que não exceda um
máximo de trinta anos ou prisão perpétua22. Ademais, a câmara pode impor
sanções financeiras, visando a reparação do prejuízo sofrido pelas vítimas,
incluindo compensação, restituição ou reabilitação23.
E finalmente, a Câmara de Recurso é composta pelo Presidente da Corte
e por outros quatro juízes. Neste ponto, todas as partes no julgamento podem
recorrer ou solicitar autorização para apelar as decisões das Câmaras de Pré-
-julgamento e de julgamento. Ademais, a Câmara de Recurso pode defender,
reverter ou alterar a decisão apelada, incluindo julgamentos e decisões de sen-
tença, e pode até mesmo solicitar um novo julgamento perante uma outra
Câmara de julgamento24.

4. A POSSÍVEL RESPONSABILIDADE DE GADDAFI FRENTE


AO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

4.1. Saif Al-Islam Gaddafi

Saif Al-Islam Gaddafi, nasceu em 25 de junho de 1972, em Tripoli, Líbia, e


exerceu os títulos de presidente honorário da Fundação Internacional de Carida-
de e Desenvolvimento Gaddafi e atuou como primeiro-ministro líbio de fato25.
A câmara de pré-julgamento do TPI entendeu pela relação do ex-primei-
ro-ministro com os supostos crimes contra a humanidade praticados duran-
te as manifestações na Líbia em fevereiro de 2011. Em relação a estes fatos,
Muammar Gaddafi, em coordenação com seu círculo interno, incluindo Saif
Al-Islam Gaddafi, concebeu um plano para deter e reprimir, por qualquer
meio, as manifestações civis contra seu regime ditatorial e ambos tiveram con-
tribuição essencial para implementar esse plano26.
Sobre isso, entendeu-se que embora não tenha uma posição oficial, Saif Al-
-Islam Gaddafi é o sucessor tácito de Muammar Gaddafi e a pessoa mais influen-
te dentro de seu círculo íntimo. Dessa forma, Gaddafi teria exercido controle
sobre partes cruciais do funcionamento estatal, incluindo finanças e logística27.

22
SHAW, Malcolm N. International Law. op.cit., p. 417.
23
NETHERLANDS. International Criminal Court. Understanding the International Criminal Court.
op.cit., p. 10.
24
Ibid., p. 10.
25
NETHERLANDS. International Criminal Court. The Prosecutor v. Saif Al-Islam Gaddafi. Case In-
formation Sheet. The Hague, Netherlands. June 13, 2016. p. 1.
26
Ibid., p. 1.
27
Ibid.
160 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

A partir disso, a câmara de pré-julgamento do TPI considerou que exis-


tem motivos razoáveis para acreditar que, nos termos do artigo 25, parágrafo
3º, alínea ‘a’ do Estatuto de Roma, Saif Al-Islam Gaddafi seria criminalmente
responsável como co-perpetrador indireto por duas acusações de crimes contra
a humanidade, a saber, assassinato, na acepção do artigo 7º, parágrafo 1º, alí-
nea ‘a’ do Estatuto, bem como, perseguição, na acepção do artigo 7º parágrafo
1º, alínea ‘h’ do Estatuto28.

4.2. Conselho de Segurança das Nações Unidas

O Conselho de Segurança das Nações Unidas, pretende operar como


um órgão executivo, possuindo a responsabilidade primária de manter a paz
e segurança internacionais29. Sabendo disso, o Estatuto de Roma prevê em seu
artigo 13, alínea ‘b’, que Corte Penal Internacional pode ter jurisdição sob
determinado caso quando uma situação foi encaminhada ao Procurador pelo
Conselho de Segurança30.
Neste ponto, entende-se que é desnecessário que um Estado seja parte no
referido Estatuto. Sobre isso, destaca-se à situação da Líbia no presente caso,
havendo em 15 de fevereiro de 2011, o encaminhamento do caso Gaddafi para
o TPI por unanimidade31.
O Conselho de Direitos Humanos de 25 de fevereiro de 2011 criou a
Comissão Internacional de Inquérito sobre a Líbia (CIL) e deu-lhe o man-
dato de “investigar todas as alegadas violações do direito internacional dos
direitos humanos na Líbia. Em seu primeiro relatório, a Comissão concluiu
que as forças de Gaddafi usaram força excessiva contra manifestantes em fe-
vereiro de 2011. A Comissão realizou posteriormente mais de 60 entrevistas
sobre esta questão32.
Em continuidade, sobre as descobertas feitas CIL, demonstrou-se que
houve excessivo uso da força nos ataques de Gaddafi. Isto porque, abordou-se
que um ex-oficial de inteligência sênior confirmou que a resposta inicial do
governo de Gaddafi quando as manifestações começaram foi para assumir o
controle no terreno. Sobre isso, a comissão recebeu uma fita de vídeo, encon-
trada em Thuwar, tendo como conteúdo as ordens de execuções dos manifes-
tantes por Gaddafi. Ainda, de acordo com um ex-comandante militar de alto

28
Ibid.
29
SHAW, Malcolm N. International Law. op.cit., p. 1206.
30
Ibid., p. 412.
31
NETHERLANDS. International Criminal Court. The Prosecutor v. Saif Al-Islam Gaddafi. Case In-
formation Sheet. op.cit.
32
SWITZERLAND. United Nations. Human Rights Council. Report no.: A/HRC/19/68. Report of the
International Commission of Inquiry on Libya. Geneva, Switzerland. March 8, 2012. p. 51.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 161
nível, este teria dito à comissão Muammar Gaddafi havia dado ordens para
suprimir manifestações “com todos os meios necessários”33.
Sobre isso, observe-se que segundo René Värk34 um comandante militar
deve ser criminalmente responsável por crimes cometidos por forças sob o seu
comando e controle efetivo como resultado de sua incapacidade de exercer
controle corretamente sobre essas forças.
A partir de informações que abrangiam diversas cidades, a comissão con-
firmou muitas das suas conclusões anteriores. Neste caso, há evidências sufi-
cientes para sugerir que as forças de Gaddafi se dedicaram ao uso excessivo da
força contra manifestantes nos primeiros dias dos protestos, levando a mortes
e mortes significativas35.
Em continuidade, o inquérito da comissão estabeleceu que, além de tiro-
teios de manifestantes e grande número de assassinatos individuais durante o
conflito armado, a escala de execuções das forças de segurança de Gaddafi aumen-
tou à medida que sua derrota se aproximava. Ademais, a comissão preocupou-se
com o fato de que nenhuma investigação ou perseguição completa, imparcial e
independente parece ter sido instigada em quaisquer execuções e mortes36.
Em relação as detenções arbitrárias, a comissão concluiu que as forças de
Gaddafi detiveram pessoas que fossem contrárias ao seu governo. Além disso,
a comissão observou uma ampla variação no tratamento dos detidos pelo go-
verno. Sobre isso, algumas instalações, incluindo as não oficiais, pareciam es-
tar cumprindo alguns padrões internacionais, enquanto outras instalações de
detenção, mesmo aquelas sob controle do governo interino, pouco atendiam
às condições básicas37.
Neste ponto, de acordo com as informações recebidas em fevereiro de
2012, cerca de oito centros de detenção em toda a Líbia agora estão sob o
controle do governo interino. Assim, este governo parece estar avançando
para ampliar seu controle sobre os centros de detenção conhecidos, declaran-
do à comissão o compromisso de encerrar o mais rápido possível todos os
centros de detenção não oficiais e não reconhecidos e tomar medidas para
conter os maus tratos38.
Por outro lado, a comissão também confirmou que houve tortura e
outras formas de tratamento cruel, desumano ou degradante cometidas pelo

33
Ibid. p. 52.
34
VÄRK, René. Superior Responsibility. Estonian National Defence College Proceedings. Vol. 15. Es-
tonian, 2012. p. 143-161.
35
Ibid. p. 56.
36
SWITZERLAND. United Nations. Human Rights Council. Report no.: A/HRC/19/68. Report of the
International Commission of Inquiry on Libya. op.cit., p. 87.
37
Ibid., p. 101.
38
Ibid.
162 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Governo de Gaddafi em violação das obrigações da Líbia no âmbito do di-


reito internacional dos direitos humanos e do direito humanitário39.
Neste caso, a comissão reuniu-se com 35 pessoas que haviam sofrido
pessoalmente tortura e maus tratos pelas forças de Gaddafi, bem como, ca-
sos alegados de pessoas que morreram por tortura, verificadas com registros
médicos. Ademais, um médico em Trípoli estimou que havia visto 90 mortes
que ocorreram como resultado da tortura cometida pelas forças de Gaddafi
durante o conflito40.
Sobre isso, a comissão determinou que a tortura foi infligida para punir,
humilhar ou extrair informações das vítimas, ocorrendo antes do início do
conflito armado e posteriormente, durante o conflito armado. Além disso,
entendeu-se que a Agência de Segurança Interna e a Inteligência Militar, eram
os principais responsáveis por estes crimes41.
Ademais, a comissão entendeu que os responsáveis pelos atos criminosos,
não foram acusados ​​ou processados pelo Governo Líbio ​​por crimes relaciona-
dos aos maus tratos e à morte dos detidos. Ainda, não está claro que qualquer
sistema de verificação tenha sido implementado para garantir que os membros
do governo ou outros que desertaram não recebem posições na polícia ou no
exército onde possam repetir as violações42.
Em relação ao crime de estupro, a comissão afirmou em seu primeiro
relatório, conseguindo comunicação com uma vítima de estupro diretamente,
apesar do número substancial de alegações que circulam na mídia. Entretanto,
na segunda fase do trabalho da comissão, mais de 50 entrevistas foram realiza-
das com vítimas e testemunhas masculinas e femininas em relação à violação
ou violência sexual, principalmente em Trípoli, Benghazi, Misrata, Al Zawi-
yah, Zowara e as montanhas Nafusa43.
Sobre isso, em Al Zawiyah, um médico disse que conseguiu confirmar 29
casos de estupro com base em exames médicos. Por outro lado, um médico em
Misrata, que tratou várias vítimas de estupro, estimou 200 casos de violência
sexual, incluindo mulheres e homens em detenção. Em complemento, a co-
missão entrevistou cinco pessoas acusadas ​de cometer crime ​de estupro contra
homens e mulheres durante o conflito armado44.
Além disso, a comissão recebeu uma entrevista de um acusado que de-
talhou cinco violações diferentes durante cinco noites cometidas por ele e
outros oficiais militares. Neste caso, o autor descreveu detalhadamente como

39
Ibid., p. 116.
40
Ibid., p. 104.
41
Ibid., p. 116.
42
Ibid., p. 117.
43
Ibid., p. 139.
44
Ibid., p. 143.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 163
os membros da sua unidade, incluindo o comandante, entraram em casas no
meio da noite usando uma artimanha e estupraram todas as meninas e mulhe-
res, com os familiares presentes45.
Ainda, houve 15 alegações de violência sexual dentro de centros de de-
tenção mantidos por forças de Gaddafi e duas cometidas pelo Thuwar. Neste
caso, acredita-se que a violência sexual ocorria durante os interrogatórios nos
escritórios de agências locais de segurança, bases militares, acampamentos não
oficiais e em outros locais que a vítima não conseguiu reconhecer46.
Ademais, a comissão encontrou-se com uma testemunha que disse ter desco-
berto um centro de detenção não oficial com homens, mulheres e crianças encon-
tradas detidas no porão. Neste porão, afirmaram haver uma sala com barras de
ferro, mangueiras de borracha, fios elétricos, cabos e sangue. Sobre isso, alegaram
que 6 mulheres e 16 a 18 meninos foram abusados sexualmente, e que, ainda, a
testemunha afirmou que 260 pessoas foram detidas neste centro de detenção47.
A partir dos crimes apresentados anteriormente, bem como, outros cons-
tantes do inquérito feito pela CIL, recolheu-se informações que ligam vítimas
à crimes cometidos diretamente ou por meio da responsabilidade do superior
hierárquico, ou seja, pessoas que sabiam ou deveriam ter conhecimento de
violações ou crimes de direitos humanos, e não conseguiram tomar medidas
para preveni-las, não investigaram ou não puniam os responsáveis48.
Neste sentido, atente-se que o atual processamento desempenhado pelo
Tribunal Penal Internacional em relação a Gaddafi, considera estes questiona-
mentos de responsabilidade do superior hierárquico a partir do que expressa
o artigo 28 do Estatuto de Roma. Assim, tal responsabilidade será discutida e
aferida ou não, de acordo com os critérios objetivos e subjetivos seguidos pelo
TPI em fase de julgamento.
Além disso, a comissão considera imperativo que sejam estabelecidos me-
canismos adequados para garantir a responsabilidade por violações de direitos
humanos e crimes a longo prazo de acordo com os padrões internacionais de
julgamento justo e impondo sentenças que cumpram as normas internacio-
nais. Neste contexto, a comissão congratula-se com declarações consistentes
das autoridades da Líbia sobre a sua intenção de estabelecer um sistema jurídi-
co que assegure a responsabilização por violações durante a era de Gaddafi e
durante os recentes acontecimentos49.
Em continuidade, entendeu-se que a legislação existente na Líbia não pre-
vê adequadamente o julgamento de crimes internacionais, incluindo crimes de

45
Ibid., p. 145.
46
Ibid., p. 146.
47
Ibid., p. 147.
48
Ibid. p. 195.
49
Ibid.
164 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

guerra e crimes contra a humanidade, o que poderia levar a que os perpetrado-


res fossem processados por
​​ crimes de menor ofensividade ou que não fossem
denunciados por nenhum crime50.

4.3. Investigações do Tribunal Penal Internacional

Em exame preliminar da situação, o Procurador do TPI concluiu, em 3


de março de 2011, que há uma base razoável para acreditar que crimes sob a
jurisdição do TPI foram cometidos na Líbia, desde 15 de fevereiro de 2011, e
decidiram abrir uma investigação nesta situação51.
Ademais, em 16 de março de 2011, a Procuradoria do TPI demonstrou
a possível existência de responsabilidade de Gaddafi em relação a crime de
competência do TPI. Em específico, analisou-se as condutas de homicídio e
perseguição que integram o crime contra a humanidade previsto no Estatuto
de Roma. A partir de 15 de fevereiro de 2011, entendeu-se que Saif Al-Islam
Gaddafi, como co-perpetrador indireto, cometeu crimes contra a humanidade
sob a forma de assassinato e perseguição em toda a Líbia, através das Forças de
Segurança Estatais, violando o artigo 7º, parágrafo 1º, alínea ‘a’ e ‘h’, e o artigo
25, parágrafo 3º, alínea ‘a’, do Estatuto de Roma52.
Posteriormente, em 16 de maio de 2011, a Procuradoria do TPI solicitou
a emissão de três mandados de detenção contra Muammar Gaddafi, Saif Al-Is-
lam Gaddafi e Abdullah Al-Senussi por sua alegada responsabilidade criminal
pela comissão de assassinato e perseguição como crimes contra a humanida-
de53. Em 27 de junho de 2011, a câmara concedeu o pedido da Procuradoria e
emitiu os três mandados de prisão citados anteriormente54. Contudo, comple-
menta-se que o mandado de prisão contra Muammar Gaddafi foi retirado em
22 de novembro de 2011, devido à sua morte55.
Prosseguindo, em 1 de maio de 2012, a admissibilidade do TPI foi contes-
tada pelo governo da Líbia ao reivindicar uma suposta violação ao princípio

50
Ibid.
51
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision no.: ICC-01/11-1. Decision Assigning the Situa-
tion in the Libyan Arab Jamahiriya to Pre-Trial Chamber I. The Hague, Netherlands, March 4, 2011.
52
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision no.: ICC-01/11-01/11-1. Prosecutor’s Ap-
plication Pursuant to Article 58 as to Muammar Mohammed Abu Minyar Gaddafi, Saif Al-Islam
Gaddafi and Abdullah Al-Senussi. The Hague, Netherlands, June 27, 2011.
53
HAIA. Tribunal Penal Internacional. Decisão no.: ICC-01/11-14-Tpor. Mandado de detenção contra
Saif al-Islam Qadhafi. Haia, 26 de julho de 2011.
54
HAIA. Tribunal Penal Internacional. Decisão no.: ICC-01/11-01/11. Pedido de detenção e entrega
de Muammar Mohammed Abu Minyar Qadhafi, Saif al-Islam Qadhafi e Abdullah Al-Senussi,
dirigido ao conjunto dos Estados Partes do Estatuto de Roma. Haia, 4 de julho de 2011.
55
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision no.: ICC-01/11-01/11-28. Decision to Ter-
minate the Case Against Muammar Mohammed Abu Minyar Gaddafi. The Hague, Netherlands,
November 22, 2011.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 165
da complementariedade. Em detalhe, o governo Líbio alegou que todo Estado
soberano, incluindo a Líbia, tem o dever de exercer a sua jurisdição criminal
sobre os responsáveis por crimes internacionais. Dessa forma, a Líbia solici-
tou a declaração de inadmissibilidade do caso, em razão de estar buscando o
cumprimento desse dever e enviando todos os esforços para tomar medidas a
nível nacional56.
Em 31 de maio de 2013, apesar de reconhecerem os esforços da Líbia para
restaurar o estado de direito, rejeitou-se os pedidos do governo Líbio. Sobre
esta decisão, os juízes da câmara de pré-julgamento analisaram pontos sobre
a admissibilidade, evidências, e a capacidade de investigação do atual governo
sobre este determinado caso.
Sobre esta decisão, a câmara apontou que a Líbia desafia a admissibilida-
de do caso com base no fato de seu sistema judicial nacional estar investigando
ativamente o Sr. Gaddafi por sua alegada responsabilidade penal em múltiplos
atos de assassinato e perseguição57.
Em 8 de janeiro de 2012, o Procurador-Geral Líbio iniciou uma investiga-
ção contra o Sr. Gaddafi por crimes graves (incluindo assassinatos e estupros)
alegadamente cometidos durante o período compreendido entre 15 de feverei-
ro e 28 de fevereiro de 2011. Neste sentido, a Líbia sustentou que foram utili-
zados recursos muito substanciais para entrevistar testemunhas, reunir provas
e descrever os novos passos de investigação que pretende levar no futuro. Além
disso, alegou-se que, nos termos do artigo 59 do Código de Processo Penal da
Líbia, durante a fase de inquérito dos processos, as investigações feitas seriam
confidenciais e os serviços de acusação da Líbia só poderiam divulgar relató-
rios resumidos58.
No entanto, a Líbia alegou que, apesar do atraso ocasionado pela ex-
tradição de Abdullah Al-Senussi da Mauritânia, a investigação em relação a
Gaddafi progrediu, confirmando que cerca de cinquenta testemunhas foram
entrevistadas no total. Ademais, o país enfatizou que sua investigação abrange
os mesmos fatos criminosos analisados pelo TPI, e está buscando lidar com os
inúmeros desafios que enfrenta como um país em transição59.
Em relação às provas, a Líbia argumentou que a imposição de um exame
legal ou padrão de prova muito oneroso e exigente seria incompatível com

56
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision no.: ICC-01/11-01/11-130-Red. Applica-
tion on behalf of the Government of Libya pursuant to Article 19 of the ICC Statute. The Hague,
Netherlands, May 3, 2012.
57
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision no.: ICC-01/11-01/11-344-Red. Deci-
sion on the admissibility of the case against Saif Al-Islam Gaddafi. The Hague, Netherlands,
May 31, 2013.
58
Ibid., p. 12.
59
Ibid., p. 15.
166 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

a presunção a favor dos processos nacionais60. No entanto, a câmara de pré-


-julgamento é orientada pela jurisprudência que, “um Estado que impugna a
admissibilidade de um caso tem o ónus da prova para demonstrar que o caso é
inadmissível”. Em complemento, a câmara afirmou que o princípio da comple-
mentaridade expressa uma preferência por investigações e processos nacionais,
mas não dispensa um Estado, em geral, de fundamentar todos os requisitos esta-
belecidos pela lei ao tentar contestar com sucesso a admissibilidade de um caso61.
Neste sentido, a câmara observou que pode solicitar provas adicionais
para se certificar de que são realizadas investigações genuínas ou processos
judiciais. No caso em apreço, com base nas alegações feitas e nas provas dispo-
níveis, a câmara considerou que a capacidade da Líbia de investigar e processar
exigia uma análise mais aprofundada62.
Além disso, a câmara examinou que o Estatuto de Roma não estabelece
um padrão de prova para efeitos da determinação da admissibilidade de um
caso. Na verdade, diferentes padrões de prova são explicitamente estabelecidos
no Estatuto para diferentes etapas do processo desde a emissão de um manda-
do de prisão, até a confirmação de acusações e o julgamento final63.
Sobre isso, essas normas de prova, no entanto, não se aplicam a deter-
minação da admissibilidade, que trata da questão de saber se as autoridades
nacionais estão tomando medidas concretas e progressivas para investigar ou
processar o mesmo caso que está perante a corte. Assim, a câmara é orientada
pela jurisprudência do TPI que o Estado deve fornecer a este tribunal interna-
cional uma prova de um grau suficiente de especificidade e valor probatório
que demonstre que está realmente investigando o caso64.
Em continuidade, a câmara argumentou que a contestação da admissibi-
lidade do TPI deve abordar duas questões65:

1. Se, no momento do processo em relação a uma contestação de admis-


sibilidade, há uma investigação ou processo em curso sobre o caso a nível
nacional, e, no caso de a resposta à primeira questão for afirmativa;
2. Se, o Estado não está disposto ou não pode realmente proceder a tais
investigações ou processos.

Sabendo destas questões, a câmara argumentou que em relação aos elemen-


tos de “conduta” e “pessoa” que devem estar presentes na fase de inquérito, a

60
Ibid., p. 18.
61
Ibid., p. 22.
62
Ibid., p. 23.
63
Ibid.
64
Ibid.
65
Ibid., p. 25.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 167
Líbia alega que a sua investigação nacional deve abranger «substancialmente a
mesma conduta», mas não precisa “espelhar” o caso abordado no TPI peran-
te seu tribunal. Sobre isso, argumentou-se que a imposição de um padrão tão
oneroso não seria razoável porque os Estados normalmente não têm acesso ao
material investigativo da Procuradoria66.
Além disso, o representante da Líbia alegou que não pode ser compe-
lido a acusar internamente o Sr. Gaddafi das mesmas qualificações legais
que as aplicáveis ​​no caso perante o TPI. Por outro lado, a Procuradoria do
TPI argumentou que, os atos e incidentes devem ser os mesmos do caso
perante este tribunal em relação ao processo nacional, salvo a caracteriza-
ção legal dos atos67.
Neste sentido, no caso Lubanga, a câmara de pré-julgamento decidiu pela
primeira vez que, para que um caso seja inadmissível perante o TPI, os proces-
sos nacionais devem “englobar a pessoa e o comportamento que é objeto do
caso nesta Corte”68.
Portanto, nas circunstâncias do caso em apreço e tendo em conta o pro-
pósito do princípio da complementaridade, a câmara considera que não seria
apropriado esperar que a investigação da Líbia cubra exatamente os mesmos
atos de assassinato e perseguição mencionados no artigo 58 do Estatuto. Em
vez disso, a câmara avaliará, com base nas provas fornecidas pela Líbia, se a
alegada investigação interna aborda o mesmo comportamento subjacente ao
mandado de detenção e à decisão do artigo 58 do Estatuto, a saber: a conduta
do Sr. Gaddafi ao usar seu controle sobre partes relevantes da Líbia se utili-
zando das forças de segurança para dissuadir e reprimir, por qualquer meio,
inclusive pelo uso da força letal, as manifestações de civis, que começaram em
fevereiro de 2011 contra o regime de Muammar Gaddafi69.
Em seguida, a câmara, avaliando os fatos e os elementos de prova apre-
sentados pela Líbia, com o objetivo de concluir se, no momento do processo,
há uma investigação ou processo em curso sobre o caso a nível nacional, en-
tende que a Líbia não conseguiu realmente levar a cabo a acusação de Gaddafi
e considerou que as provas apresentadas não eram suficientes para considerar
que as investigações nacionais analisem o mesmo caso em curso no TPI70.

66
Ibid., p. 26.
67
Ibid.
68
NETHERLANDS. International Criminal Court. Prosecutor v. Thomas Lubanga Dyilo. Decision
no.: ICC-01/04-01/06-8-Corr. Decision conceming Pre-Trial Chamber I’s Decision of 10 Febru-
ary 2006 and the Incorporation of Documents into the Record of the Case against Mr Thomas
Lubanga Dyilo. The Hague, Netherlands, February 24, 2006. para. 31.
69
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision no.: ICC-01/11-01/11-344-Red. Decision
on the admissibility of the case against Saif Al-Islam Gaddafi. op.cit., p. 34.
70
Ibid., p. 36.
168 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

É bem verdade, que a Líbia forneceu vários documentos para fundamen-


tar seu pedido contra a admissibilidade do TPI, e que muitos desses docu-
mentos não contêm informações relevantes para determinar se as autoridades
nacionais estão investigando o mesmo comportamento analisado pelo TPI71.
A partir disso, a câmara apresentou uma análise das provas e do material apre-
sentado com o objetivo de determinar, por sua vez72:

1. Se a legislação da Líbia capta suficientemente o mesmo comportamen-


to para o qual o suspeito é encarregado perante este Tribunal e;
2. Se uma investigação contra o Sr. Gaddafi para o mesmo comporta-
mento que o alegado no processo perante o Tribunal está em curso em
nível nacional.

A este respeito, a câmara observou, em particular, que vários dos crimes


potencialmente aplicáveis à Gaddafi aparecem, nos termos da legislação Líbia,
apenas para «oficiais públicos», o que pode suscitar problemas, já que o Sr.
Gaddafi não ocupou um cargo formal73.
Ademais, a câmara considerou que as provas apresentadas demonstram
de forma satisfatória que foram cometidas várias medidas progressivas para
verificar a responsabilidade criminal de Gaddafi pelas autoridades da Líbia e
que uma “investigação” está atualmente em curso no nível nacional. Apesar
disso, a Câmara não está convencida de que a prova apresentada demonstre
que a Líbia está investigando o mesmo caso que o este tribunal74.
Ao contrário, a câmara está convencida de que alguns elementos de pro-
vas demonstram que a Líbia tomou várias medidas de investigação em rela-
ção a certos aspectos discretos que, indiscutivelmente, se relacionam com a
conduta de Gaddafi, e que incluem as instâncias de mobilização de milícias,
equipamentos por via aérea, montagem e mobilização de forças militares no
aeroporto de Abraq, bem como, a prisão de jornalistas e ativistas contra o
regime de Gaddafi75.
Em relação à questão da “incapacidade”, à luz dos levantamentos iniciais
e das provas recebidas, a câmara levantou uma série de questões específicas
adicionais para verificar a capacidade da Líbia de investigar e processar o caso
em questão76. Neste sentido, tendo analisado as respostas e provas recebidas,
a câmara toma nota dos esforços desenvolvidos pela Líbia em circunstâncias

71
Ibid., p. 44.
72
Ibid., p. 45.
73
Ibid.
74
Ibid., p. 57.
75
Ibid.
76
Ibid., p. 58.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 169
extremamente difíceis para melhorar as condições de segurança, reconstruir
instituições e restaurar o Estado de Direito77.
Apesar disso, a Líbia continua enfrentando dificuldades substanciais no
exercício de seus poderes judiciais em todo o território. Por isso, devido a estas
dificuldades, a câmara considera que o seu sistema nacional ainda não pode ser
aplicado integralmente em áreas ou aspectos relevantes para o caso. Em con-
sequência, a Líbia é “incapaz de obter o acusado” e o testemunho necessário e
também “não é possível realizar os” processos no caso contra o Sr. Gaddafi em
conformidade com as suas leis nacionais, de acordo com a mesma disposição78.
Ainda, complemente-se que a câmara não recebeu provas suficientes com
um grau próprio de especificidade e valor probatório para demonstrar que
as investigações da Líbia e do TPI cobrem a mesma conduta e que a Líbia
pode efetivamente realizar uma investigação contra Sr. Gaddafi. A câmara
considerou que o presente caso é admissível perante esta Corte Internacional
e lembrou a obrigação da Líbia de entregar o suspeito79.
Assim, em 21 de maio de 2014, a câmara de recurso do TPI confirmou a
decisão da câmara de pré-julgamento, declarando admissível o caso contra Saif
Al-Islam Gaddafi80.
Em 10 de dezembro de 2014, a câmara emitiu uma declaração de não
cumprimento pelo Governo da Líbia no que diz respeito à não execução dos
pedidos de cooperação transmitidos pelo TPI em relação a entrega de Gaddafi
e a apresentação dos documentos originais do acusado, apreendidos pelas au-
toridades da Líbia em junho de 201281.
Diante das informações expostas anteriormente, sabe-se que, atualmente,
o processo contra Gaddafi está na fase de pré-julgamento, aguardando a con-
firmação das acusações, e que, posteriormente, será decidido pelos juízes, se
existem evidencias suficientes para o início da fase de julgamento82.

CONCLUSÃO

Portanto, a partir da anterior exposição de conhecimentos ligados ao caso


Gaddafi, constatamos situações que foram recomendadas pelas Nações Unidas

77
Ibid., p. 84.
78
Ibid.
79
Ibid., p. 90.
80
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision.: ICC-01/11-01/11-547-Red. Judgment on the
appeal of Libya against the decision of Pre-Trial Chamber I of 31 May 2013 entitled Decision on the
admissibility of the case against Saif Al-Islam Gaddafi. The Hague, Netherlands, May 21, 2014.
81
NETHERLANDS. International Criminal Court. Decision.: ICC-01/11-01/11-577. Decision on the
non-compliance by Libya with requests for cooperation by the Court and referring the matter to
the United Nations Security Council. The Hague, Netherlands, December 11, 2014.
82
NETHERLANDS. International Criminal Court. Understanding the International Criminal Court.
op.cit., p. 25.
170 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

e que devem ser aplicadas no território Líbio, bem como, a implementação de


ações de cooperação para melhor prosseguimento deste caso perante o TPI.
Em complemento, acompanhou-se as acusações ao governo Gaddafi fren-
te ao TPI, sobre a prática de crime contra a humanidade, em especifico, con-
dutas de homicídio e perseguição expressas no artigo 7º, parágrafo 1º, alínea
‘a’ do Estatuto, bem como, no artigo 7º parágrafo 1º, alínea ‘h’ do Estatuto.
Neste momento, através das informações contidas e apuradas pela Comis-
são Internacional de Inquérito na Líbia, o TPI prossegue colhendo evidências
para fundamentar o juízo de valor da câmara de pré-julgamento, e posterior-
mente, decidir a confirmação ou não das acusações de crimes internacionais
imputadas ao referido acusado na fase de julgamento. Apesar disso, observa-se
a ausência de cooperação entre o governo Líbio e esta corte internacional.
Sobre isso, sabe-se que, a partir do momento em que um tribunal interna-
cional tem jurisdição sobre o processamento de um crime de sua competência
material, é relevante que o TPI desempenhe um papel de assistência aos tribunais
nacionais contribuindo para a efetiva justiça local, bem como, que o Estado da
ocorrência dos fatos criminosos, também coopere com a jurisdição internacional.
Assim, espera-se que o governo Líbio mude sua postura atual, visando um
maior exercício da capacidade do TPI como veículo de justiça. Dessa forma,
este tribunal internacional manterá seu bom funcionamento, se utilizando de
uma maior clareza, visibilidade e cooperação.

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med Abu Minyar Gaddafi. The Hague, Netherlands, November 22, 2011.
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mar Mohammed Abu Minyar Gaddafi, Saif Al‐Islam Gaddafi and Abdullah Al‐Senussi. The Hague,
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Pre-Trial Chamber I. The Hague, Netherlands, March 4, 2011.
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Estatuto de Roma. Haia, 4 de julho de 2011.
SWITZERLAND. United Nations. Human Rights Council. Report of the International Commission of In-
quiry on Libya. Geneva, Switzerland. 2012.
VÄRK, René. Superior Responsibility. Estonian National Defence College Proceedings. Vol. 15. Estonian,
2012. p. 143-161.
Capítulo 11
O Acordo de Paz na Colômbia à Luz do
Tribunal Penal Internacional
Matheus Quezado de Sousa
Diego Jeferson Fernandes Marques

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objeto de análise o recente acordo de paz que
está sendo proposto e aplicado pelo governo do Estado da Colômbia e as forças
guerrilheiras em seu território, mais especificamente, as Forças Armadas Revolu-
cionarias da Colômbia (as FARC), mas também outros grupos armados, cujo a
violência desencadeada pela guerra entre a busca pelo poder, idealismo, influência
por territórios, tráfico de armas e drogas levaram à maior guerra civil da história.
Autoridades colombianas violaram diversas leis de direito internacional
na prática de suas ações para o combate dos grupos guerrilheiros e estes come-
teram diversos crimes contra a humanidade no manuseio de suas atribuições
para conseguir seus objetivos.
Importante destacar que o teor deste trabalho não é proteger ou deixar
de citar qualquer lado do conflito, e sim demonstrar na base do direito penal
internacional os respectivos crimes cometidos por ambos os lados, de compe-
tência do direito internacional, mais especificamente do Tribunal Penal Inter-
nacional, ressalvados os crimes de âmbito interno da qual seja competência da
justiça colombiana julgar.

2. CONTEXTO HISTÓRICO E POLÍTICO DO CONFLITO

O contexto da história da política colombiana está cheio de conflitos


com embasamento político, territorial, luta por direito à terra, à justiça social.
Tudo isso está vinculado à intensa desigualdade social, concentração de rique-
zas, terras, sobre o domínio de uma elite que corresponde a menor parcela da
população colombiana. De acordo com Álvaro Villarraga, do Centro Nacional
de Memória Histórica da Colômbia, há três elementos que estão na raiz do con-
flito: a tendência a usar a violência no poder e na política, a falta de resolução
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 173
sobre a questão da propriedade da terra no campo e a falta de garantias para a
pluralidade e exercício da política1.
As disputas políticas que marcaram a história do país vêm desde o perío-
do colonial e se intensificaram após a independência, com as sucessivas dispu-
tas de poder entre grupos que dominavam o país, centrada entre liberais e con-
servadores no poder, alcançando tais disputas a uma dimensão de violência
urbana, no qual iria disseminar-se pelas principais cidades do país além da a
capital Bogotá, e outros polos urbanos como Medellín e Cartagena das Índias.
Em 1948, durante as eleições gerais da Colômbia, ocorreu o assassinato
do candidato liberal Jorge Eliecer Gaitan, o que viria desencadear uma violên-
cia desenfreada entre os diversos grupos políticos, começando nos centros ur-
banos e se espalhando para o interior do país, este período ficou denominado
de a “Violência”. Este duraria até o fim dos anos 50, quando surgiriam grupos
paramilitares armados de diferentes facções políticas e ideológicas da qual al-
gumas iriam se organizar para tentar tomar o poder por meio da luta armada.

2.1. Crimes praticados pelas partes do conflito

A situação na Colômbia passou a ganhar a atenção do Tribunal Penal


Internacional a partir de junho de 2004. Em 2005 a Procuradoria do tribunal
informou ao governo colombiano ter recebido informações sobre os crimes
cometidos no Estado da qual o TPI possui competência de análise.
No relatório de 2015, a Procuradoria2 publicou um relatório intercalar
sobre a situação na Colômbia, no qual resumiu a análise efetuada no decurso
do exame preliminar, incluindo as conclusões do Escritório relativas à jurisdi-
ção e admissibilidade, identificando cinco áreas de foco contínuo:

I) Acompanhamento sobre o quadro jurídico para a Paz e outros desen-


volvimentos legislativos pertinentes, bem como aspectos jurisdicio-
nais relativas ao surgimento de novos grupos armados ilegais;
II) Procedimentos relacionados com a promoção e expansão de grupos
paramilitares;
III) Processos relativos a deslocamentos forçados;
IV) Processos relativos a crimes sexuais;
V) Casos de extermínio conhecido como os “falsos positivos”.

1
COSOY, Natalio. Como a guerra entre o governo da Colômbia e as Farc começou e por que ela durou
mais de 50 anos. BBC Brasil, 2016, disponível em < http://www.bbc.com/portuguese/brasil-37181620>,
Acesso em 07 de outubro de 2017.
2
Report on Preliminary Examination Activities 2015: Disponível em <https://www.icccpi.int//Pages/
item.aspx?name=otp-rep-pe-activities-2015>. Acesso em 07 de outubro de 2017.
174 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Essas ações estão previstas no Estatuto de Roma como assassinato sob o


artigo 7 (1), letra a, que prevê homicídio, 7 (1), letra d; que prevê transferência
forçada da população, 7 (1), letra e; que prevê prisão e outra forma de privação
de liberdade física grave, 7 (1), letra f; a prática de tortura, 7 (1), letra g: estupro
e outras formas de violência sexual.
É verificado também, com base nos relatórios de 2009, que crimes de guer-
ra no qual se encontram regidos pelo o artigo 8º do Estatuto de Roma também
foram cometidos, tais como assassinato nos termos do artigo 8 (2), letra c, inciso
i; entende-se como crimes de guerra em caso de conflito armado, atos de violên-
cia, artigo 8 (2), letra e, inciso i; ataques contra civis, artigo 8 (2), letra c, inciso
i: tortura e tratamento cruel, artigo 8 (2), letra c, inciso ii: ultraja a dignidade
pessoal por meio de tratamentos degradantes, artigo 8 (2), letra c, inciso iii: a
tomada de reféns, artigo 8 (2), letra e, inciso vi: estupro e outras formas de vio-
lência sexual, e artigo 8 (2), letra e, inciso vii: recrutar, alistar e uso de crianças
para participar ativamente nas hostilidades, nos termos do Estatuto..

2.2. Vítimas do conflito

Devido ao conteúdo da violência relatada, sua maior atividade ocorreu


no interior do país, em zonas rurais e até inóspitas da selva colombiana, na
qual a maior parte das vítimas foram camponeses. Não que isso demonstre
que as grandes metrópoles estejam longe da violência perpetrada do conflito,
tanto que, ataques considerados atos de terrorismo efetuados por grupos pa-
ramilitares e da guerrilha ocorreram em grandes centros urbanos, inclusive da
capital Bogotá.
É a população civil a principal vítima do sofrimento do conflito em
particular mulheres e crianças, em número superior ao das autoridades gover-
namentais e dos guerrilheiros e demais grupos armados. De acordo com o co-
mité internacional da Cruz Vermelha (CICV)3, mais de um terço dos casos de
supostas violações ao DIH e outras formas básicas documentadas pelo CICV
em 2014 vitimaram mulheres (322 de 875 casos).
Com relação a crianças e adolescentes vítimas do conflito, uma de cada
quatro supostas violações às normas humanitárias vitimou um menor (231 de
875 casos). O ambiente escolar, que deveria proteger os seus direitos, é um dos
espaços menos respeitados pelas partes em conflito e outros atores armados.
Estas vítimas também são as mais frequentes dos crimes de violações se-
xuais, de acordo com uma agência da ONU: apesar de não haver dados oficiais

3
Cruz Vermelha, Comitê Internacional. Colômbia: o impacto do conflito e da violência armada sobre as
mulheres e a infância. 2015. Disponível em < https://www.icrc.org/pt/document/colombia-o-impacto-
do-conflito-e-da-violencia-armada-sobre-mulheres-e-infancia>. Acesso em 07 de outubro de 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 175
precisos, estima-se que durante a primeira década do século 21 cerca de 500
mil moradores de regiões com a presença de atores armados foram vítimas de
violência sexual na Colômbia4.
As violações do deslocamento de diversas vítimas de suas casas, também tem
sido relatadas. Colombianos deslocados internamente são mortos e enfrentam
ameaças de morte por tentarem recuperar suas terras, afirmou a ONG Human
Rights Watch. Em um relatório, a ONG narra que os abusos sofridos por famílias
deslocadas por tentarem retornar para casa, quase sempre ficam impunes, assim
como os crimes originais que resultaram na sua expulsão e tomada de suas terras5.
Desde 1985, abusos e violência associados ao conflito armado interno da
Colômbia retiraram mais de 4,8 milhões de colombianos de suas casas, geran-
do a maior população mundial de pessoas deslocadas internamente, até então.
Estima-se que os colombianos deslocados tenham deixado para trás 6 milhões
de hectares de terras, muitas das quais foram tomadas e ainda estão na posse
de grupos armados, seus aliados e outros.

2.3. Os militares

Relatórios divulgados pela organização humanitária internacional Hu-


man Rights Watch6 relatam um informe que vincula a alta cúpula militar
colombiana a execuções extrajudiciais, ou seja, extermínio de civis, ocorridos
“sistematicamente” entre 2002 a 2008. As brigadas do exército em toda a Co-
lômbia rotineiramente executavam civis, para dar ao governo resultados po-
sitivos do conflito armado, surgindo a partir daí o caso que ficou conhecido
na Colômbia como “os falsos positivos”, civis mortos pelas forças do governo
como se fossem guerrilheiros.
O relatório da ONG traz personalidades da alta cúpula militar das Forças
Armadas da Colômbia que estariam envolvidos em crimes e violações aos di-
reitos humanos. A Procuradoria do TPI convocou um total de nove generais,
incluindo o ex-comandante do exército Mario Montoya7, o relatório sugere

4
Brasil, Nações Unidas. Agência da ONU apoia vítimas de violência sexual no conflito colombiano.
2016. Disponível em < https://nacoesunidas.org/agencia-da-onu-apoia-vitimas-de-violencia-sexual-no-
conflito-colombiano/>. Acesso em 07 de outubro de 2017.
5
Watch, Human Rights. Colômbia: Vítimas do conflito enfrentam represálias por tentarem voltar para casa.2013.
Disponível em< https://www.hrw.org/pt/news/2013/09/17/251147> Acesso em 07 de outubro de 2017.
6
SILVIA, Vanessa Martina. Relatório mostra envolvimento da alta cúpula do Exército colombiano
em assassinatos de civis. 2015.Disponível em < http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/40822/
relatorio+mostra+envolvimento+da+alta+cupula+do+exercito+colombiano+em+assassinatos+de+ci-
vis.shtml>. Acesso em 07 de outubro de 2017.
7
Judicial, Redaccíon. Fiscal debe avanzar contra general (r) Mario Montoya: Human Rights Watch.
2016. Disponível em < https://www.elespectador.com/noticias/judicial/nuevos-testimonios-contra-el-
general-r-mario-montoya-articulo-671281>. Acesso em 07 de outubro de 2017.
176 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

que o general teria conhecimento sobre as execuções extrajudiciais. O Gene-


ral Lasprilla Villamizar8 também convocado, comandou uma brigada da qual
alega-se ser responsável por 48 assassinatos extrajudiciais.
A partir de 20149, a Unidade de Direitos Humanos do Gabinete do Procura-
dor Geral da Colômbia estava investigando mais de 3.500 mortes ilegais suposta-
mente cometidos por agentes do Estado, entre 2002 a 2008, e tinham sido obtidas
condenações para 402 dos 785 membros investigados, mas os que foram condena-
dos ou são soldados rasos de baixa patente, ou oficiais não comissionados. Enquan-
to que o alto escalão dos militares nem sequer foram mencionados nos processos e
estes possuem privilégios concedidos pelo governo em centros de detenção.

2.4. Dos guerrilheiros e forças paramilitares do conflito

Entre as diversas guerrilhas que atuam na Colômbia, as FARC é a mais


antiga, maior e mais resistente. Esse grupo armado também é considerado um
dos mais ricos exércitos do mundo. Sua formação ocorreu em 196410, quando
o Exército da Colômbia atacou a província de Marquetália, no oeste do país.
A região era ocupada por agricultores ligados ao Partido Comunista.
Liderados pelo sitiante Manuel Marulanda este que viria a ser o primeiro
líder das FARC, cerca de 48 camponeses reagiram aos soldados, na luta que
deu início a um grupo organizado de resistência. Foi assim que surgiu a enti-
dade de guerrilha mais antiga em ação na América Latina, as FARC, ou Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia.
As FARC são um grupo idelogicamente de orientação marxista-leninista,
tendo como intuito derrubar o governo. Sua luta inicial era a posse da terra
pelos camponeses, mas com o passar dos anos suas ideias e táticas mudaram.
Em 1990, a guerrilha se envolveu com o tráfico de drogas para arrecadar
dinheiro para sua causa, levando a serem enquadrados pelo governo com o
envolvimento dos carteis dominantes no país na década de 90.
As FARC também sequestravam civis e exigiam grandes fortunas pelo resga-
te, e apesar de ter o governo colombiano como alvo, os ataques a civis faziam parte
de suas ações. Estas condutas da guerrilha geraram diversas violações ao direito
internacional, que incluem assassinatos, deslocamentos forçados e ameaças contra
civis, tortura, violência sexual, além de recrutamento de crianças.
8
Watch, Human Rights. Colombia: Top Brass Linked to Extrajudicial Executions. 2015. Disponível em
< https://www.hrw.org/news/2015/06/24/colombia-top-brass-linked-extrajudicial-executions>. Acesso
em 07 de outubro de 2017.
9
Watch, Human Rights. World Report 2015: Colombia. 2014. Disponível em < https://www.hrw.org/
world-report/2015/country-chapters/colombia>. Acesso em 07 de outubro de 2017.
10
RICCIARDI, Alex. FARC na Colômbia: Duzentos anos de violência. 2008. Disponível em < http://
aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/guerras/farc-na-colombia-duzentos-anos-de-violencia.phtml#.
WdlDOGhSzIU>. Acesso em 07 de outubro de 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 177
Outra guerrilha forte da Colômbia é o ELN (Exército de Libertação Na-
cional), também criado em 1964, este grupo guerrilheiro de inspiração na revo-
lução cubana e de ideologia de esquerda e sobre forte influência religiosa, fora
fundado por sacerdotes ligados a Teologia da Libertação, do qual demonstra a
religiosidade do grupo. Atualmente é a segunda maior guerrilha da Colômbia
e possui em seus membros históricos além de sacerdotes, universitários e ou-
tras personalidades que abraçaram a causa do grupo.
O ELN também é acusado de cometer diversas violações contra civis,
como sequestros, assassinatos, deslocamentos forçados e o recrutamento de
crianças. E além disso tudo, tanto as FARC quanto a ELN usam artefatos
explosivos e minas terrestres que causam diversas vítimas em todo o território
de sua atuação na Colômbia.
Há exércitos particulares na Colômbia, grupos paramilitares de direita e
também de esquerda, no qual alguns são até financiados pelo governo e rece-
bem apoio na luta contra as principais guerrilhas e no caso as FARC e ELN.
Esses grupos são acusados também de cometerem diversas violações como o
deslocamento forçados, assassinatos, tortura e violência sexual.

2.5. Influência e suporte americano ao governo colombiano

O apoio norte americano11 ao governo da Colômbia não se resume ape-


nas ao combate as guerrilhas, mas também a combate ao tráfico interno e
internacional de drogas e outras substancias ilícitas. Esse apoio segue firme-
mente como a maior ajuda estrangeira ao governo colombiano. Em 2014, o
aporte foi de cerca de US$ 225 milhões em assistência militar e policial, e US$
165 milhões em assistência humanitária e desenvolvimento.
Parte do apoio militar está baseado no comprometimento do governo
colombiano ao respeito aos direitos humanos, o que vincula essa ajuda ao
cumprimento por parte das autoridades nas investigações e punições dos res-
ponsáveis nas respectivas violações.

2.6. O acordo de paz na Colômbia

Em 201612, o início de um acordo considerado histórico foi feito. As For-


ças Armadas Revolucionarias da Colômbia (FARC) e o Governo da Colômbia
referendaram um acordo de cessar fogo bilateral e definitivo.
11
Watch, Human Rights. World Report 2015: Colombia. 2014.Disponível em < https://www.hrw.org/
world-report/2015/country-chapters/colombia>. Acesso em 07 de outubro de 2017.
12
COSOY, Natalio: Por que o acordo de paz entre Colômbia e Farc é histórico. 2016. Disponível em
< http://www.bbc.com/portuguese/internacional-36601490>. Acesso em 07 de outubro de 2017.
178 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

O acordo fora oficializado em Havana, Cuba. Este, representou um mar-


co histórico para o povo colombiano e uma aurora de uma nova esperança.
Apesar do marco, não fora a primeira vez que o governo e as FARC iniciaram
conversações para tentar amenizar ou por um fim no conflito.
Durante anos o governo da Colômbia realizou várias negociações de
paz com diversos grupos armados, teve diferentes graus de sucesso, uma delas
talvez apesar das críticas fora a aprovação da Lei Justiça e Paz (JPL), aprovada
em 2005, seu teor incentivava forças paramilitares a confessar seus crimes em
troca de penas reduzidas. Além disso, projetos de ressocialização de guerrilhei-
ros, armistícios, troca de prisioneiros, foram feitos.
No entanto, as definições e termos estabelecidos no acordo são muito
imprecisas e essas possíveis anistias podem ocasionar que nem todos os res-
ponsáveis pelas violações aos direitos humanos sejam levados à Justiça.
Apesar disso o governo de Juan Manuel Santos, que teve início em
2011 oficialmente, após os turbulentos anos do governo de Álvaro Uribe,
de 2002 a 2010 - este que é até acusado de violação aos direitos humanos
e também o que mais combateu as guerrilhas e realizou investimento nas
forças de segurança, reorganizou a economia colombiana - foi o que mais
promoveu conversações de paz entre o governo e as lideranças das guer-
rilhas, e incentivou ações voltadas a preservação dos direitos humanos,
chegando até entre os anos antes do início das conversações de paz ter re-
sultados positivos como a soltura de prisioneiros e até entrega de algumas
armas por parte dos guerrilheiros.
As negociações de paz tiveram início em 18 de outubro de 2012 em
Oslo, Noruega, e depois tiveram uma nova etapa em Havana, Cuba. A
agenda das discussões envolvia: (I) o desenvolvimento rural e reforma agrá-
ria; (II) a participação política; (III) o desarmamento e desmobilização;
(IV) o tráfico de drogas; (V) as vítimas; (VI) implementação de mecanismo
de investigação.
O acordo oficializado em Cuba13 possui quatro pontos principais para o
tratado de paz ter êxito:

1) Cessar fogo bilateral entre as partes de forma definitiva;


2) Desarmamento das FARC e outras guerrilhas que fazem parte do acor-
do de paz;
3) Garantias de segurança e luta contra organizações criminosas respon-
sáveis por homicídios e massacres ou que ameaçam defensores dos
direitos humanos e movimentos sociais e políticos;
4) Combate a condutas criminais que ameacem a construção da paz.

13
Idem.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 179
Apesar desses compromissos, o cessar ainda foi violado com alguma fre-
quência por parte de ambos os lados após essas conversações, mas as lideranças
permaneceram com o acordo. Em 2016 foi feito um plebiscito sobre o tratado
no qual o povo colombiano se manifestou pela não aprovação deste, devido a
certos pontos de discordância por parte de lideranças da sociedade colombiana.
O principal argumento dos críticos ao acordo era a ausência de punição
aos culpados de crimes, pois tanto os integrantes das forças oficiais quanto
os da FARC acabariam anistiados caso o acordo de paz fosse confirmado nas
urnas, exceto para crimes como torturas, chacinas e estupros14.
Apesar da vitória do NÃO, as autoridades do governo tais como o pró-
prio presidente Juan Manuel Santos e o principal líder das FARC, Rodrigo
Londoño se posicionaram para o reinício das conversações e assim tentar
chegar a um acordo que satisfizesse a todas as partes. Em 2016 o próprio pre-
sidente Juan Manuel Santos foi agraciado com o prêmio Nobel da Paz pelos
esforços de seu governo para pôr fim ao conflito.
Em primeiro de dezembro de 201615, o Governo da Colômbia e as FARC
assinam o acordo de Paz pondo fim a até então 52 anos de hostilidades. Os
rebeldes das Forças Armadas Revolucionarias da Colômbia recebem 150 dias
para entregar todas as suas armas a ONU. Após o fracasso do primeiro acordo
as negociações levaram a uma nova proposta que resultou numa segunda ver-
são, menos tolerante com os rebeldes – como pediam os que votaram contra
na consulta popular.
Fora mantido a promessa feita aos guerrilheiros, de que poderiam for-
mar um partido político, disputar eleições e ocupar cargos públicos. A opo-
sição, liderada pelo ex-presidente e atual senador Álvaro Uribe, queria que o
documento fosse submetido a um novo plebiscito. Santos decidiu submetê-
-lo à aprovação do Congresso, onde o governo possui maioria e conseguiu
ratificar o acordo.
Além do desarmamento das FARC, o acordo prevê a erradicação dos
cultivos de drogas ilegais (que financiavam as atividades guerrilheiras, depois
da queda do comunismo no Leste Europeu) e programas sociais para integrar
mais de 6 mil rebeldes à sociedade civil. Opositores ao acordo argumentavam
que a Colômbia iria gastar uma fortuna em um momento de desaquecimento
da economia. O tema fará parte dos debates nas eleições presidenciais colom-
bianas previstas para 2018.

14
BRASIL, BBC: Em votação apertada, colombianos rejeitam acordo de paz com as Farc. 2016.
Disponível em < http://www.bbc.com/portuguese/internacional-37532788>. Acesso em 07 de outu-
bro de 2017.
15
YANAKIEW, Monica: Acordo de paz entre governo colombiano e as Farc entra em vigor hoje.
2016. Disponível em < http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2016-12/acordo-de-paz-en-
tre-governo-colombiano-e-farc-entra-em-vigor-hoje>. Acesso em 07 de outubro de 2017.
180 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

O acordo de paz colombiano foi mediado pelo governo cubano desde o


início das conversações em 2012.

3. O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

3.1. Histórico

A formação do Tribunal Penal Internacional fora o resultado de diversos


acordos históricos de se criar um órgão de competência internacional para jul-
gar responsáveis por crimes contra a humanidade, tendo sua base histórica com
Nuremberg, um tribunal internacional militar que tinha o objetivo de julgar os
crimes cometidos por autoridades do alto escalão e militares da Alemanha Nazista
no pós-guerra por violações aos direitos humanos e crimes contra a humanidade.
Outro tribunal precursor fora o Tribunal para o Extremo Oriente, que
foi sediado em Tóquio, tendo os mesmos poderes que os de Nuremberg, mas
ao contrário deste, julgou os crimes cometidos por autoridades japonesas du-
rante o conflito no pacífico da Segunda Guerra Mundial. O modelo que criou
o Tribunal Penal Internacional existente hoje, teve sua criação através da apro-
vação do Estatuto de Roma em 1998, e posteriormente o tribunal veio a iniciar
seus trabalhos no ano de 2002.
Em 1991, com o fim da União Soviética, o Conselho de Segurança criou
os dois primeiros tribunais ad hoc internacionais temporários, e a resolução
nº 827 de 1993, no qual fora criado o Tribunal Penal Internacional para os
crimes cometidos contra o Direito Humanitário na antiga Iugoslávia, com o
objetivo de processar as responsáveis pelas sérias violações cometidas em seu
território desde 1991.
Em 1994 era criado outro tribunal ad hoc, com a Resolução nº 995. O
Conselho de Segurança criava mais um tribunal para dessa vez investigar os
crimes cometidos em Ruanda, onde a luta pelo poder entre as etnias levou a
um verdadeiro genocídio, sendo a sede do tribunal em Arusha, Tanzânia.
Foram estes dois tribunais que desempenharam a codificação desses cri-
mes internacionais, (genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guer-
ra), todos levando em conta o devido processo legal e o direito de ampla defesa
por parte de seus réus. Mas um dos fatores mais importantes talvez tenha sido
a primazia da jurisdição internacional frente a legislação nacional de cada país.
A constituição desses dois tribunais acelerou a constituição de um Tribu-
nal Internacional Penal permanente, o qual teria o poder para julgar os indi-
víduos acusados de cometer crimes previstos nas normas jus cogens, posteriores
a data de instalação do tribunal.
Em 1998, em Roma, durante uma conferência intergovernamental, fora
adotado o texto do tratado internacional que criou o Tribunal Penal Interna-
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 181
cional (TPI), também chamado de Estatuto de Roma. Em 2002 o tribunal en-
trou em funcionamento, tendo 122 Estados parte, sendo que a ausência de paí-
ses expressivos é sentida, tais como a China, Estados Unidos, Israel e Rússia.
O Tribunal é sujeito de personalidade jurídica internacional, com sede
em Haia na Holanda e possui independência da ONU o que lhe difere dos
tribunais ad hoc criados pelo Conselho de Segurança, contudo possui uma
relação de cooperação para com as Nações Unidas.
O principal dispositivo do Estatuto, entabulado no art. 1º, é o princípio
da Complementariedade, nos termos do qual a jurisdição do TPI terá caráter
excepcional e complementar, isto é, a jurisdição que rege o tribunal é adicio-
nal e complementar à do Estado, ficando condicionado a incapacidade ou à
omissão do sistema judicial interno.
Por esse princípio, o TPI não exercerá sua jurisdição caso o Estado com
jurisdição já houver iniciado ou terminado investigação ou processo penal, salvo
se este não tiver capacidade ou vontade de realizar justiça. Nesse ponto, o pró-
prio Estado Parte pode solicitar intervenção do TPI ou ainda o próprio TPI pode
iniciar as investigações e persecuções criminais. Assim, a jurisdição internacional
penal é complementar à jurisdição nacional e só poderá ser acionada se o Estado
não possuir vontade ou capacidade para realizar justiça e impedir a impunidade.

3.2. Organização e funcionamento

O Tribunal Penal Internacional é composto por quatro órgãos, sendo


elas a Presidência, Divisão Judicial, Procuradoria que equivaleria ao Ministério
Público e o Secretariado.
Existem três câmaras dividindo o tribunal: a primeira é de competência
da instrução, também chamada de questões preliminares, a competência vai
desde a decisão de permitir uma investigação até a decisão do recebimento da
denúncia; a segunda câmara é a de julgamento, com competência para o julga-
mento da causa e dos incidentes processuais ainda não preclusos, devendo ao
fim do julgamento decretar a absolvição ou condenação do acusado; a terceira
e última câmara, refere-se à câmara de revisão que fica responsável a apreciar
um recurso ou uma decisão anterior16.
O Tribunal é composto por 18 juízes da qual são eleitos pelos Estados
Partes para um mandato de nove anos, sem direito a reeleição. Para ser um
dos magistrados é preciso ter elevada idoneidade moral, imparcialidade e in-
tegralidade, que reúnam os requisitos para o exercício das mais altas funções
judiciais nos seus respectivos países.

16
GOUVEIA, Jorge Bacelar. Manual de Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Ed. Renovar,
2005. Pág. 641.
182 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Os juízes são divididos em três grandes Seções: o Juízo de instrução, o


Juízo de julgamento em 1º instancia e ainda o Juízo de Apelação.
A procuradoria do TPI é administrada pelo Procurador, que atua com
independência funcional, como órgão autônomo do Tribunal. Cabe ao Pro-
curador receber comunicações e qualquer informação sobre os crimes de com-
petência do Tribunal.

3.3. Competência

A jurisdição do TPI, de acordo com a matéria (ratione materiae), restringe-


-se as normas estabelecidas no jus cogens, que consistem em crimes que ofendem
valores da comunidade internacional.
Os crimes da qual competem ao TPI julgar são:

• O genocídio;
• Os crimes contra a humanidade;
• Os crimes de guerra;
• Os crimes de agressão, cujo tipo penal só foi acordado em 2010, na
Conferência de Kampala, Uganda.

Já no âmbito espacial, a jurisdição do TPI só pode ser exercida em qua-


tro hipóteses, ou seja, quando o crime de jus cogens sujeito à jurisdição do
Tribunal for:

• Cometido no território de um Estado parte;


• Ou por nacional do Estado Parte;
• Ou por meio de declaração específica do Estado não contratante (caso
o crime tenha ocorrido no território do Estado ou for cometido por
seu cidadão);
• Ou nas ausências dessas situações, pode o Conselho de Segurança ado-
tar resolução vinculante adjudicando o caso ao Tribunal Penal Interna-
cional, como aconteceu com o caso do Sudão que mesmo sem ratificar
do Estatuto de Roma. Em 2011 houve uma resolução vinculante do
Conselho de Segurança.

3.4 A competência para o tribunal penal internacional julgar a


situação Colômbia

A Colômbia é um dos Estados Parte que são signatários do Estatuto de


Roma, que criou o TPI em 1998, o reconhecimento do Estado por si só já é
um critério de jurisdição que o país tem em relação ao tribunal. Preenche o
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 183
requisito do princípio espacial da competência do TPI, já que as violações dos
direitos humanos ocorreram no território do Estado creditam-te.
A situação da Colômbia começou a ser analisada logo após o Estado da
Colômbia ratificar17 o Estatuto de Roma, em 05 de agosto de 200218. No en-
tanto o TPI só possui jurisdição sobre os crimes de guerra cometidos desde 01
de novembro de 2009, de acordo com a aceitação por parte da Colômbia, nos
termos do artigo 12 do Estatuto.

4. RESPOSTA DAS PARTES

4.1. Investigação e punição dos responsáveis

O acordo de paz estabelecido entre o governo da Colômbia e as FARC,


ficou estabelecido que será criado a Jurisdição Especial para a Paz, que terá o
dever de julgar e sentenciar indivíduos que cometeram crimes de guerra duran-
te o conflito. Essa medida foi dada como garantia as diversas perguntas que a
Procuradoria do TPI relatou ao acordo de paz, e sua estrutura e competência
ainda estão sendo preparadas e não demonstra sua viabilidade tenha efeitos
a curto prazo, conforme já fora sinalizado pelo TPI, estará no aguardo desses
procedimentos e analisando os crimes do conflito.
No entanto, o presidente colombiano já assinou decretos de anistia a
guerrilheiros das FARC que abandonaram as armas, de acordo com os da-
dos19: já são 6.005 os membros da guerrilha anistiados pela via administrativa,
enquanto 1.400 resolveram sua situação jurídica nos tribunais e já saíram da
prisão beneficiados por indulto ou liberdade condicional.
Esse tramite está previsto na lei da anistia assinada no acordo de paz
entre ambos os lados, apesar da lei priorizar os crimes políticos cometidos
pelos guerrilheiros, sua abrangência torna perigosa os demais crimes de teor
internacional, que parece também ser alvo da lei. O que viola o que já foi des-
tacado neste trabalho, os crimes do qual o Tribunal Penal Internacional tem
competência para julgar e do qual os tratados do qual a Colômbia ratificou e
se comprometeu.

17
DERECHO INTERNACIONAL: LOS DD.HH Y LA JUSTICIA TRANSICIONAL FRENTE AL
ACTUAL PROCESO DE PAZ EN COLOMBIA. 2013. Disponível em < http://www.iccnow.org/?mo-
d=country&iduct=37&lang=es> Acesso em 07 de outubro de 2017.
18
CANEDO, Eloisa: Os Direitos Humanos e o Tribunal Penal Internacional. 2017. Disponível em
< http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/tpi-estatutoro-roma.
html> .Acesso em 07 de outubro de 2017.
19
MANETTO, Francesco: Colômbia já anistiou mais de 7.000 membros das FARC. 2017. Disponível
em < https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/10/internacional/1499710434_528714.html> acesso em
11 de outubro de 2017.
184 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Quanto às políticas públicas, o governo reforçou no acordo de paz que


haverá incentivos a certas reinvindicações das FARC, como a reforma agrária,
a melhora da cultura do campo, participação política, os direitos dos trabalha-
dores agrários e suas reinvindicações, tendo em vista que a Colômbia ainda é
um país onde boa parte de sua população é predominantemente do campo e
fora a principal área onde ocorreu o conflito, sendo a população camponesa
sua principal vítima.

4.2. A criação de uma Comissão da Verdade

Durante as fases do acordo de paz, ficou estabelecido por ambos os lados


a criação de um órgão para esclarecer os fatos ocasionados durante os anos de
guerra civil vivido. Com a ideia parecida do que fora criado na África do Sul
pôs apartheid, a criação de uma Comissão para o Esclarecimento da Verdade,
a Convivência e a Não Repetição, que será independente, imparcial e de cará-
ter extrajudicial e de suma importância para esclarecer certos fatos.
A criação desse mecanismo fora ratificada pelo senado colombiano20 no
qual terá um sistema dividido em três eixos: uma comissão da verdade, uma
unidade de busca de desaparecidos e a Jurisdição Especial para a Paz (JEP).
A JEP administrará o sistema de maneira “transitória e autônoma” sobre
as condutas cometidas antes de 1º de dezembro de 2016 “por causa, com oca-
sião ou relação direta ou indireta com o conflito armado”. Guerrilheiros que
assinaram o acordo de paz e tenham baixado as armas, agentes estatais e civis
são contemplados pelo novo mecanismo.

CONCLUSÃO

O contexto geral do conflito que assolou a Colômbia leva a discutir o


que foi demonstrado neste trabalho. A falta de cumprimento por parte do
Estado da lei internacional do qual este se comprometeu para alcançar um
bem maior se faz discutir até onde isso é viável, qual a segurança que essa ação
almeja implementar para todo um país que sofreu por mais de meio século e
que está enraizado na sua história o conflito por parte de grupos que domi-
nam sua política.
Esse tipo de atitude desempenhado pelas autoridades da Colômbia de es-
tabelecer a paz, tentar alcançar a paz a qualquer preço, ou conforme fora men-
cionado por essas mesmas autoridades a uma justiça mais aceitável possível para
20
São Paulo, Estado: Senado da Colômbia aprova criação de comissão da verdade para guerrilha.
2017. Disponível em < http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,senado-da-colombia-aprova-
criacao-de-comissao-da-verdade-para-guerrilha,70001698383> acesso em 11 de outubro de 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 185
que possa ocorrer a paz leva em consideração a violação de leis e de direitos de
valor inimaginável da qual ela não poderá ser deixada de lado e inviabiliza a
uma paz duradoura e concreta na qual deveria respeitar a todos, mas conforme
se demonstra, viola a parte mais frágil e mais uma vez é vítima do contexto his-
tórico de sua nação que é o povo.
Conforme um teor moral, de se conseguir o acordo a um preço aceitável
de no caso anistia os crimes cometidos por ambos os protagonistas do conflito
e pôr um ponto final as atrocidades e violações cometidas pelas principais es-
feras de poder e tentar esquecer o que aconteceu provocara efeitos gravíssimos
a sociedade colombiana. Sacrificar a lei em detrimento de algo palatável, algo
que pode ser o que a maioria almeja, conforme o caso, vem a ser o mais moral
de todas as atitudes.
É preciso que o Tribunal Penal Internacional, por meio de seus órgãos
de investigação, no caso a Procuradoria, realize o seu dever de investigar, cum-
prindo o seu papel para o qual fora criado e assim garantir que o direito penal
internacional seja aplicado independentemente de qualquer acordo ou anistia
que tente absolver crimes e violações internacionais.

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Capítulo 12
O TPI e os Tribunais Penais Internacionais
Ad Hoc: Uma Análise das Evoluções
e das Deficiências

Beatriz Nogueira Caldas


Pedro Roney Dias Ribeiro

INTRODUÇÃO

Conforme narra a história, de 1º de setembro de 1939 a 2 de setembro de


1945, ocorreu um conflito armado de proporção global entre dois blocos de
nações: os Aliados, encabeçados pelos Estados Unidos da América (EUA), pela
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), pelo Reino Unido da Grã-
-Bretenha e da Irlanda do Norte (RU) e pela China, e o Eixo, encabeçado pela
Alemanha, pela Itália e pelo Japão. Após a tomada do Reichstag e o suicídio de
Adolf Hitler, em 30 de abril de 1945, as forças alemãs assinaram sua rendição,
em 7 de maio, com ratificação no dia seguinte, em Berlim1.
Em 8 de agosto de 1945, foi firmado um acordo entre os representantes
dos EUA, da República Francesa em Governo Provisório, do RU e da URSS, na
cidade de Londres, para que houvesse o julgamento e a condenação dos deno-
minados “criminosos de guerra”, pertencentes ao Eixo Europeu, no contexto da
Segunda Guera Mundial. Através desse ato, denominado Acordo de Londres, foi
constituído o Tribunal Militar Internacional (TMI), com sede em Berlim2, com-
posto por quatro juízes e responsável por essa realizar o julgamento e pronun-
ciar as condenações3. Conforme nossas buscas bibliográficas, este foi o primeiro
tribunal penal internacional, ou seja, foi a primeira vez que Estados diferentes se
reuniram para o exercício conjunto do poder de julgar pessoas e aplicar penas4.

1
GILBERT, Martin. A Segunda Guerra Mundial: os 2.174 dias que mudaram o mundo. Tradução de
Ana Luísa Faria, Miguel Serras Pereira. 1. ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014.
2
Apesar da sede permanente do TMI ser em Berlim, na forma do artigo 22 do seu Estatuto, este mesmo
artigo prevê que o primeiro julgamento aconteceria em Nuremberg, razão pela qual o TMI ficou conhe-
cido como Tribunal de Nuremberg e seus julgamentos como Julgamentos de Nuremberg.
3
UN. Charter of the International Military Tribunal, 1945. Disponível em: <http://www.un.org/en/genocide-
prevention/documents/atrocity-crimes/Doc.2_Charter%20of%20IMT%201945.pdf>. Acesso em: 21 out. 2017.
4
Não desconhecemos a concepção de um tribunal para julgar Peter Von Hagenbach, 1474, na Alemanha,
por haver consentido com saques, estupros e mortes de civis, executados por seus soldados, nem a
188 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Em 6 e 9 de agosto de 1945 são lançadas bombas atômicas no território


japonês. Em 15 de agosto de 1945, as forças japonesas anunciam sua rendi-
ção, que é assinada em 2 de setembro de 1945, dando fim à Segunda Guerra
Mundial5. Em 19 de janeiro de 1946, por proclamação do Comandante Su-
premo das Forças Aliadas, General Douglas MacArthur, é constituído, com
sede em Tóquio, o Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente
(TMIEO), para julgamento e condenação dos “criminosos de guerra” do Extre-
mo Oriente6. Apesar da sua constituição em documento assinado por apenas
uma pessoa, os julgamentos ocorridos em Tóquio também caracterizam o
funcionamento de um tribunal penal internacional, tendo a reunião de juízes
pertencentes aos diversos países que compuseram as Forças Aliadas.
Passados mais de 45 anos, em 26 de junho de 1991, iniciaram-se novos
conflitos em território europeu, notadamente na República Socialista Federa-
tiva da Iugoslávia, com a Guerra pela Independência da Eslovênia, conhecida
como Guerra dos Dez Dias, que foi seguida pela Guerra da Independência da
Croácia, pela Guerra da Bósnia e pela Guerra do Kosovo. Diante da duração
e a gravidade desse conjunto de conflitos, denominado de Guerras Iugoslavas,
o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (CSONU) –
constituído pelos EUA, pela Rússia (sucessora da URSS), pela China, pelo
RU e pela França – tomou uma série de medidas militares e diplomáticas, que
culminaram na edição da Resolução CSONU nº 808, de 3 de maio de 1993.
Tal instrumento normativo estabelece a criação de um tribunal internacional,
com sede em Haia, para julgamento de pessoas responsáveis por graves viola-
ções das regras de Direito Internacional Humanitário (DIH), no território da
antiga Iugoslávia, a partir de 1º de junho de 1991.
Em abril de 1994, logo após a morte do presidente Juvenal Habyarimana,
da etnia hutu, inicia-se em Ruanda assassinatos numerosos e sistemáticos de
membros da etnia tutsi, em processo característica do genocídio. Mais uma vez
o CSONU decide intervir com a criação de um tribunal penal internacional.
Desta feita, através da Resolução CSONU nº 955, de 8 de novembro de 1994,

proposta de Gustav Moynier, de um tribunal internacional contra os crimes de guerra, para julgar vio-
lações das convenções de Viena de 1864, tampouco as pretensões do Tratado de Versalhes de julgar o
ex-Kaiser Guilherme II e do Tratado de Sévres de julgar o governo otomano pelo massacre de armênios
(todos citados por REIS JÚNIOR, Sebastião. Algumas notas sobre o Estatuto de Roma e o Tribunal
Penal Internacional. In: STJ – Doutrina: edição comemorativa 25 anos, abr. 2014). No entanto, no nosso
entender, em nenhum desses casos houve a efetiva criação de um tribunal, de caráter internacional, para
julgar indivíduos.
5
GILBERT, Martin. A Segunda Guerra Mundial: os 2.174 dias que mudaram o mundo. Tradução de
Ana Luísa Faria, Miguel Serras Pereira. 1. ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014.
6
UN. Charter of the International Military Tribunal for the Far East, 1946. Disponível em: <http://
www.un.org/en/genocideprevention/documents/atrocity-crimes/Doc.3_1946%20Tokyo%20Charter.
pdf>. Acesso em: 21 out. 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 189
é criado um tribunal internacional para processar as pessoas responsáveis pelo
genocídio e por outras violações do DIH ocorridas em Ruanda e em territó-
rios de Estados vizinhos.
Por fim, sem relação com um conflito específico, em 17 de julho de 1998,
é aprovado em conferência diplomática o Estatuto de Roma, que cria um
tribunal permanente, o Tribunal Penal Internacional (TPI), com competência
para julgar crimes cometidos após a entrada em vigor do Estatuto, que ocorreu
em 1º de julho de 2002.
Toda essa introdução histórica, contextualizando a criação de cada tri-
bunal penal internacional, foi feita para que possamos melhor compreender
nossos problemas de pesquisa. Indagamos: quais características dos tribunais
anteriores ao TPI não estão de acordo com os princípios do processo penal ga-
rantista? Como e em que medida a criação do TPI contemplou tais princípios,
superando as eventuais deficiências dos tribunais anteriores? Que deficiências
do TPI ainda precisam ser superadas para prestigiar o processo penal garantis-
ta. Entenderemos por processo penal garantista aquele praticado por um tri-
bunal justo (independente e imparcial), que respeita os direitos fundamentais
do acusado, consagrados em tratados e convenções internacionais.
Para tentar solucionar os problemas trazidos usaremos o método tipoló-
gico. Inicialmente, buscaremos fazer uma descrição do tipo ideal de tribunal e
de processo penal, que denominaremos no trabalho de tribunal justo e processo
penal garantista, através de pesquisa documental em declarações e convenções
internacionais sobre direitos humanos. Após, levantaremos os princípios aplicá-
veis e as características dos tribunais penais internacionais anteriores ao TPI, em
duas fases – uma acerca dos tribunais criados para julgar crimes cometidos pelo
Eixo na Segunda Guerra Mundial e outra acerca dos tribunais criados pelo CSO-
NU. Será realizada, então, a comparação entre os princípios e as características
dos tribunais penais internacionais anteriores ao TPI e os princípios do processo
penal garantista, para determinar quais seriam as deficiências destas Cortes, de
acordo com as diferenças encontradas. Seguindo esses passos metodológicos,
serão levantados os princípios aplicáveis ao processo no TPI e suas característi-
cas evidenciadas pelo Estatuto de Roma. Logo em seguida, será realizada nova
comparação, desta feita entre as deficiências deduzidas no primeiro passo e o
resultado encontrado em relação ao TPI, para, enfim, definir como e em que me-
dida o TPI conseguiu superá-las e quais problemas ainda persistem para alcançar
o tipo ideal de tribunal e de processo penal.

2. O TIPO IDEAL DE TRIBUNAL E DE PROCESSO PENAL

Em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas


adotou e proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH),
190 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

trazendo diversos princípios que podem ser interpretados para idealização do


tribunal e do processo penal que guardem maior correlação com a defesa dos
direitos fundamentais do homem.
Nos artigos I e II, a Declaração afirma que “todos os homens nascem li-
vres e iguais em dignidade e direitos” e tem capacidade para gozar os direitos e
as liberdades sem distinção de qualquer espécie, inclusive de origem nacional.
Não permite igualmente “nenhuma distinção fundada na condição política,
jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa”.
Esses dispositivos, trazidos para o processo penal, trazem um princípio, que
denominamos de não diferenciação do acusado em razão da origem nacional.
O artigo IX pontifica que “ninguém será arbitrariamente preso, detido ou
exilado”, do que se extrai o princípio da necessidade de fundamentação das
decisões condenatórias ou de prisão.
O artigo X dispõe que “todo ser humano tem direito, em plena igualda-
de, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e
imparcial”. Podemos reescrever tal disposição para elencar quatro direitos do
acusado: audiência pública, audiência justa, tribunal independente e tribunal
imparcial. O artigo XI, por seu turno, pontifica que:

1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumi-
do inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com
a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as
garantias necessárias à sua defesa.
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no mo-
mento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional.
Também não será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento
da prática, era aplicável ao ato delituoso.

Esse dispositivo traz quatro princípios clássicos do processo penal: pre-


sunção de inocência, ampla defesa, ausência de culpa sem lei prévia (nullum
crimen sine praevia lege) e irretroatividade da lei penal mais gravosa.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) traz outros
direitos e garantias fundamentais que nos ajudarão a compor o tipo ideal de
tribunal e de processo penal. Conforme artigo 5, §3, “a pena não pode passar
da pessoa do delinquente”, o que remete ao princípio da responsabilidade
penal individual. O artigo 7, §5, traz ainda o “direito a ser julgada dentro
de um prazo razoável”, conhecido como princípio da duração razoável do
processo penal.
Ampliando a noção do tribunal ideal trazido pela DUDH, a CADH con-
fere o direito a “um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial,
estabelecido anteriormente por lei”. Surge, então, o princípio da vedação do
tribunal de exceção, estabelecido após os fatos que julga, associado às questões
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 191
da definição da competência de cada tribunal, que não poderão julgar fatos
que refogem à sua alçada.
No campo processual, a CADH traz grande evolução, traçando oito ga-
rantias que servem para caracterização do processo penal garantista. São as
seguintes:

Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes


garantias mínimas:
a. direito do acusado de ser assistido gratuitamente por tradutor ou intérprete,
se não compreender ou não falar o idioma do juízo ou tribunal;
b. comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;
c. concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação
de sua defesa;
d. direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um
defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com
seu defensor;
e. direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo
Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não
se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido
pela lei;
f. direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter
o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que pos-
sam lançar luz sobre os fatos;
g. direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se
culpada; e h. direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.

Com as informações trazidas, podemos então delinear as características


ideais do tribunal justo, que deve ser competente, independente, imparcial,
estabelecido por lei e anterior aos fatos, que fundamenta adequadamente todas
as suas decisões. Além disso, só julga crimes que estavam tipificados em lei
antes dos fatos, bem como só aplica as penas dentro dos limites estabelecidos
também em lei anterior aos fatos, tudo em processo com duração razoável.
Esse processo penal, garantista, por sua vez, não faz diferenciações em
razão da origem nacional e garante ao acusado tradutor, comunicação prévia
da acusação, tempo e meios para defesa, assistência de defensor de sua escolha
(ou nomeado pelo Estado, caso não seja escolhido no prazo), inquirição de
testemunhas, não incriminação e duplo grau de jurisdição.

3. OS TRIBUNAIS PENAIS INTERNACIONAIS AD HOC

Como narrado, para julgar crimes cometidos por integrantes do Eixo na


Segunda Guerra Mundial foram constituídos o TMI, com sede em Berlim, e
o TMIEO, com sede em Tóquio. Mais de 45 anos após esses julgamentos, o
192 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

CSONU instituiu outros dois tribunais penais internacionais para processar


casos envolvendo conflitos armados específicos. Verificaremos em que medida
tais órgãos colegiados de julgamento se enquadram nos parâmetros do tipo
ideal de tribunal descrito, iniciando pelos primeiros.

3.1. Tribunais Militares Internacionais de Berlim (Nuremberg) e de


Tóquio

De acordo com os artigos 1 e 2 do seu Estatuto, o TMI foi criado para


processar e condenar os principais criminosos de guerra do Eixo Europeu,
tendo em sua composição quatro juízes nomeados cada um por um dos signa-
tários do Acordo de Londres.
Conforme artigo 6, a competência do TMI abrange o julgamento de crimes
contra a paz (iniciar guerra de agressão ou com violação de tratados internacio-
nais), crimes de guerra (violar a lei ou os costumes de guerra) e crimes contra
a humanidade (assinatura, extermínio, escravidão ou perseguição da população
civil). É prevista, ainda, a possibilidade de julgamento sem a presença do acusado,
se não for encontrado ou se o Tribunal entender necessário por qualquer motivo.
O artigo 16 do Estatuto do TMI traz as garantias de um “julgamento justo”
para os acusados. Prevê a comunicação prévia e detalhada da acusação, em idioma
compreensível ao acusado. Além disso, o acusado tem direito a autodefesa ou de
defesa por um advogado, bem como a apresentar provas e interrogar testemunhas.
O TMIEO, por seu turno, foi criado para processar e condenar os maio-
res criminosos de guerra do Extremo Oriente, tendo em sua composição onze
juízes, um para cada país das Forças Aliadas (EUA, China, URSS, RU, Países
Baixos, Governo Provisório da República Francesa, Austrália, Nova Zelândia,
Canadá, Índia e Filipinas). Sua competência, prevista no artigo 5, também era
para crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Para
o “julgamento justo”, foram previstos no artigo 9 os direitos a conhecer da
acusação de forma clara, a ser ouvido, à tradução, à escolha de um advogado
e à produção de provas em sua defesa.
Fazendo a comparação destes tribunais com o tipo ideal, notamos que
foram tribunais dependentes, uma vez que criados pelos países componentes
das Forças Aliadas e formados com juízes por eles indicados, estando, as-
sim, subordinados aos interesses desses países em alguma medida. No caso do
TMIEO essa dependência é ainda mais clara, haja vista que o Comandante Su-
premo das Forças Aliadas exerce a função estatutária de presidente do Tribu-
nal, na forma do artigo 37. Podemos afirmar igualmente que foram tribunais

7
No caso concreto, a função de presidência do TMIEO foi delegada para o austrialiano Sir William Webb,
no entanto, conforme relatos históricos, a influência política de Douglas MacArthur se fez presente no
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 193
parciais, pois destinados a julgar apenas pessoas que estiveram no combate
ao lado das Forças do Eixo, deixando impunes as pessoas que cometeram os
mesmos atos criminosos enquanto lutavam a favor das Forças Aliadas. Por
fim, destacamos que foram tribunais de exceção, estabelecido após os fatos e
especificamente para o julgamento de determinados fatos.
Ainda assim, eram garantidos aos acusados, ao menos em tese, os direitos
de conhecer da acusação, de compreender o julgamento mediante tradução
para idioma de sua compreensão, de se defender com a ajuda de advogado
e de produzir provas em sua defesa. No entanto, não havia possibilidade de
recurso e era nítida a diferenciação pela origem nacional, considerando que
esses tribunais julgavam apenas os criminosos de guerra pertencentes ao Eixo.

3.2. Tribunais Penais Internacionais para a Ex-Iugoslávia e para


Ruanda

O Tribunal Penal Internacional para a Ex-Iugoslávia (TPII) foi criado pela


Resolução CSONU nº 808, de 3 de maio de 1993 para julgar as pessoas responsá-
veis por violações graves ao DIH cometidas no território da Ex-Iugoslávia desde
1991. Tais violações foram divididas em quatro tipos: violações às Convenções
de Genebra de 1949, violações das leis ou dos costumes de guerra, genocídio e
crimes contra a humanidade. Conforme o artigo 9 do seu Estatuto, o TPII e os
tribunais nacionais possuem jurisdição concorrente, sendo que o TIR possui pri-
mazia para o julgamento, com vedação ao bis in idem. A eleição dos onze juízes
(duas câmaras de primeira instância com três juízes e uma câmara re recursos
com cinco juízes) se deu por votos da Assembleia Geral da ONU, a partir de
lista de indicação do CSONU. O artigo 21 traz os seguintes direitos do acusado:

1 - Todas as pessoas serão consideradas iguais perante o Tribunal Internacional;


2 - Qualquer pessoa contra quem seja formulada uma acusação terá direito a
um julgamento eqüitativo e público, sem prejuízo do disposto no artigo 22.°
do Estatuto.
3 - Qualquer pessoa acusada será presumida inocente até determinação da sua
culpabilidade, em conformidade com o disposto no presente Estatuto.
4 - Qualquer pessoa contra a qual seja formulada uma acusação em conformi-
dade com o presente Estatuto terá direito, em plena igualdade, pelo menos, às
seguintes garantias:
a) A ser informada, no mais curto lapso de tempo e de forma detalhada, da
natureza e dos fundamentos da acusação deduzida contra si, numa língua que
compreenda;

Tribunal, notadamente quanto ao julgamento do Imperador Hirohito, que seria usado para legitimar as
mudanças efetivadas pela ocupação das Forças Aliadas. Cf. BIX, Herbert P. Hirohito and the Making
of Modern Japan. Haper Collins, 2000.
194 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

b) A dispor do tempo e dos meios necessários à preparação da sua defesa e a


contatar com o defensor de sua escolha;
c) A ser julgada sem atrasos excessivos;
d) A estar presente no seu julgamento e a defender-se, ela mesma ou através
de um defensor de sua escolha; caso não tenha defensor, a ser informada do
seu direito de lhe ser designado um e, sempre que o interesse da justiça assim
o exigir, a ser-lhe designado um defensor oficioso, gratuitamente, se não tiver
meios suficientes para o remunerar;
e) A interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e a obter a com-
parência e a audição das testemunhas de defesa, nas mesmas condições que as
testemunhas da acusação;
f) A fazer-se assistir gratuitamente por um intérprete, se não compreender ou
não falar a língua em uso no Tribunal Internacional;
g) A não ser forçada a fazer declarações que a possam prejudicar ou a declarar-
-se culpada.

O Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR) foi criado pela Re-
solução CSONU nº 955, de 8 de novembro de 1994 para julgar genocídios e
outras práticas que violam o DIH, cometidas em Ruanda ou por ruandenses
nos territórios vizinhos, e ocorridas durante o ano de 1994. Também foram
foi utilizada a jurisdição concorrente, com vedação ao bis in idem. A compo-
sição do tribunal e a eleição dos juízes se deu de forma semelhante, a exceção
do Procurador e dos juízes da Câmara de Recursos, que foram aproveitados do
TPII. Os direitos dos acusados são exatamente os que foram acima transcritos.
Fazendo agora comparação destes tribunais ad hoc com os tribunais mi-
litares, percebemos que ganharam maior independência, apesar dos juízes se-
rem indicados pelo CSONU, que é ainda formado por cinco potências das
Forças Aliadas na Segunda Guerra Mundial. No entanto, nesse novo contexto,
a priori, os acusados não são inimigos, em um sentido estrito, dos países com-
ponentes do CSONU. Podemos afirmar também que esses tribunais ganha-
ram imparcialidade, ao menos em tese, pois julgam pessoas em determinado
contexto de conflito, independentemente do lado que apoiam. Uma ressalva
se deve fazer, no entanto, quanto à previsão do TPIR de julgar, nos territó-
rios vizinhos, apenas cidadãos de Ruanda, em uma demonstração de diferen-
ciação conforme origem nacional. Por fim, destacamos que também houve
temperamento quanto ao fato de serem tribunais de exceção, pois, apesar da
competência para julgar fatos pretéritos e de terem sido constituídos para um
contexto específico, já possuem competência de julgar fatos após sua consti-
tuição. Quanto às garantias aos acusados, surge a possibilidade de recurso, em
respeito ao duplo grau de jurisdição
Apesar desses avanços, é possível notar uma série de deficiências em rela-
ção ao processo penal garantista, tomado como tipo ideal, que será tratada em
uma visão comparativa com o TPI.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 195
4. O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL

Tendo em vista a necessidade de uma corte penal internacional de cará-


ter permanente, universal e, principalmente, imparcial, que pudesse suprimir
os defeitos dos tribunais penais internacionais ad hoc, surgiu a proposta de
criação de um Tribunal Penal Internacional permanente. Apesar de já ter sido
proposto em outras ocasiões, apenas com o fim da Guerra Fria e da polariza-
ção Leste-Oeste é que a ideia pode ser efetivamente acatada8. A proposta foi
primeiramente analisada por um comitê ad hoc instituído pela Assembleia
Geral das Nações Unidas, e este comitê solicitou a instituição de um Comitê
Preparatório, conhecido como PrepCom9. O PrepCom desenvolveu a estrutu-
ra do que viria a ser denominado de Estatuto de Roma.
O PrepCom debateu três temas principais: a tipificação dos crimes basilares
de competência material Tribunal Penal Internacional, a aplicação do princípio
da complementaridade e a forma de atuação do Tribunal, seu procedimento10.
Em 17 de julho de 1998, durante a Conferência Diplomática de Plenipo-
tenciários, o Estatuto de Roma foi aprovado com 120 votos a favor, dentre os
148 países presentes11. Essa Conferência foi convocada pela Assembleia Geral
das Nações Unidas e foi criada somente para analisar o projeto do Estatuto
de Roma12. Assim, foi instituído o Tribunal Penal Internacional (TPI, ou ICC,
para International Criminal Court). Sua sede é em Haia, na Holanda, e sua en-
trada em vigor aconteceu no dia 1 de julho de 2002, após sua ratificação por
60 países, sendo atualmente composto por 124 países13.

4.1. Competência do Tribunal Penal Internacional

O TPI é competente para julgar quatro tipos penais, sendo eles crimes de
genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes de agressão.
Em seu artigo 6°, o Estatuto de Roma define o tipo penal do crime
de genocídio como atos que tenham a intenção de destruir, no todo ou em
parte, um grupo nacional, racial, étnico ou religioso, das seguintes formas:
prática de homicídio a membros do grupo, ofensas graves à integridade fí-
sica e psicológica do grupo, sujeitar o grupo à condições de vida que visem

8
CARDOSO, Elio. Tribunal Penal Internacional: Conceitos, Realidades e Implicações para o Brasil.
1. Ed. Brasília: FUNAG, 2012, p. 26
9
CRETELLA NETO, José. Curso de direito internacional penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.187
10
TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Os Tribunais Internacionais Contemporâneos. 1. Ed. Bra-
sília: FUNAG, 2013, p. 32
11
CRETELLA NETO, José. Curso de direito internacional penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p.189
12
Ibidem, p. 187
13
ICC. About the ICC. 2017. Disponivel em:<https://www.icc-cpi.int/> Acesso em: 27 out. 2017
196 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

sua destruição total ou parcial, impor medidas que busquem impedir o


nascimento de membros do grupo, transferência forçada de crianças de um
grupo para outro grupo14. Vale ressaltar que, para ser caracterizado crime
de genocídio, a ofensa deve ser voltada a uma característica particular do
grupo, sendo ela étnica, religiosa, racial ou nacional.
Os crimes contra a humanidade estão enumerados no artigo 7° do Esta-
tuto. São eles os crimes de homicídio, de tortura, de extermínio, de escravidão,
de deportação ou transferência forçada de uma população, de violência sexual,
de perseguição de um grupo por motivos religiosos, políticos, culturais, na-
cionais, raciais, étnicos ou de gênero, de desaparecimento forçado de pessoas,
de apartheid e outros atos de caráter semelhante. A diferença reside no fato de
que, para ser caracterizado como crime de genocídio, a ofensa deve ser voltada
a questões discriminatórias relativas a um grupo, e para ser considerado crime
contra a humanidade, não é necessário esse preceito.
Outro tipo de crime que pode ser julgado pelo Tribunal Penal Interna-
cional são os crimes de guerra. Eles estão previstos no artigo 8° do Estatuto
de Roma e sua tipificação está presente também nas Convenções de Genebra
(1949) e de Haia, as quais delimitam os limites dos ataques durante um confli-
to armado. Dentre os exemplos desses crimes estão a tortura de prisioneiros,
ataques à civis, tomada de reféns, atacar alvos que estejam protegidos pelo
símbolo da Cruz Vermelha e usar armas que causem dano além do necessário,
desproporcionais. Também existem elementos dos crimes de guerra que são
semelhantes aos crimes contra a humanidade e crime de genocídio. Entretan-
to, para ser enquadrada como crime de guerra, a violação deve ocorrer durante
um conflito armado.
O Estatuto de Roma foi lacunoso ao prever os tipos que qualificavam os
crimes de agressão. Pela primeira definição do Estatuto, esses crimes estariam
relacionados à norma da ilegalidade da guerra como meio de solução de con-
flitos, exceto se esta for autorizada pelo Conselho de Segurança das Nações
Unidas. Posteriormente, uma emenda ao artigo 8° do Estatuto definiu o que
seria considerado crime de agressão. Essa emenda é chamada de Emenda de
Campala, elaborada em 11 de julho de 2010. Ela enuncia que crime de agres-
são significa planejar, preparar, iniciar ou executar um ato de agressão o qual,
pelas suas características, gravidade e escala, constitui uma clara violação à
Carta das Nações Unidas. De acordo com a Carta da ONU, guerras são proi-
bidas, assim como a invasão de outro Estado, exceto se foram autorizadas pelo
Conselho de Segurança.
14
ICC. Rome Statute of the International Criminal Court. 1998. Disponível em: <https://www.icc-
cpi.int/NR/rdonlyres/ADD16852-AEE9-4757-ABE7-9CDC7CF02886/283503/RomeStatutEng1.pdf>
Acesso em: 27 out. 2017
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 197
4.2. Princípios do Tribunal Penal Internacional

Os princípios norteadores do Estatuto de Roma estão presentes em seu


Capítulo III. O primeiro princípio é nullum crimen sine leqe, significando que
nenhuma pessoa será considerada criminalmente responsável, nos termos do
Estatuto de Roma, a não ser que tenha cometido crime de competência do
Estatuto, e, em caso de ambiguidade, o caso será julgado em favor do acusado.
Esse princípio está tipificado no artigo 22 do Estatuto de Roma.
O artigo 23 do Estatuto de Roma prevê o princípio nulla poena sine lege.
De acordo com esse princípio, qualquer pessoa condenada pelo Tribunal Pe-
nal Internacional só poderá ser punida nos termos do próprio Tribunal. Há
também o princípio da não retroatividade ratione personae, uma vez que ne-
nhuma pessoa pode ser condenada por um crime que cometeu antes da entra-
da em vigor do Estatuto de Roma, como traz o artigo 24.
Um dos princípios elementares do Tribunal Penal Internacional é o da
responsabilidade criminal individual. Esse é o princípio que estabelece que
o Tribunal julga indivíduos, não Estados. Além isso, o artigo 26 prevê que o
Tribunal não julgará crimes cometidos por menores de dezoito anos.
O Estatuto segue explicitando o princípio da irrelevância da qualidade
oficial. Segundo essa previsão, a lei se aplica a todos os indivíduos de forma
igualitária, sem distinção baseada em cargo político ou hierarquicamente su-
perior. Dessa forma, o Estatuto garante que haja isonomia no julgamento dos
casos, além de impedir a impunidade.
Um princípio especialmente importante e para a atuação do TPI é o prin-
cípio da responsabilidade dos chefes militares e outros superiores hierárqui-
cos. De acordo com essa premissa, os chefes militares e superiores hierárquicos
devem ser criminalmente responsabilizados pelos crimes cometidos por seus
subordinados. A responsabilidade ocorre no caso do superior hierárquico ter
ou dever ter conhecimento dos crimes cometidos e restar inerte ou no caso do
superior não ter adotado medidas necessárias para prevenir o acontecimento
de tais violações. O superior hierárquico, desse modo, tem responsabilidade
indireta pelos crimes cometidos por seus subordinados, seja por omissão ou
negligência.
Sobre o tempo de prescrição dos crimes tipificados pelo Estatuto de Roma,
o artigo 29 prevê que eles são imprescritíveis. No entanto, só são imprescritíveis
os crimes cometidos após a vigência do TPI, uma vez que o Tribunal só é com-
petente para julgar os crimes ocorridos depois de sua entrada em vigor.
O princípio elementar do TPI é a complementariedade. O preâmbulo
do Estatuto de Roma, além de seu artigo 1°, determina que o TPI será com-
plementar às jurisdições penais nacionais, ou seja, a norma internacional será
complementar à norma de direito interno. A complementariedade é uma das
198 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

bases em que se funda o TPI. O artigo 17 do Estatuto de Roma estabelece


maior especificação sobre como a complementariedade funciona no contexto
do TPI. De acordo com esse artigo, um caso só será admitido pelo TPI se o
país que tiver jurisdição sobre ele não tiver vontade de levar adiante o inquéri-
to ou não tenha capacidade para prosseguir na persecução criminal.

4.3. Características do Tribunal Penal Internacional

O Tribunal Penal Internacional possui algumas características particu-


lares em seu modo de funcionamento e em sua estrutura operacional. O Es-
tatuto de Roma, em seu artigo 34, determina que o TPI será composto pelos
seguintes órgãos: Presidência, Seção de Recursos, Seção de Julgamento em Pri-
meira Instância, Seção de Instrução, Procuradoria e Secretaria. Os órgãos res-
ponsáveis pelas etapas de julgamento dos casos são as Seções. A Procuradoria
é responsável por iniciar a investigação de um caso e funciona como órgão
acusador, semelhante à função da Promotoria no Direito brasileiro.
O processo típico do TPI se inicia com a referência de uma questão de
interesse do Tribunal à Procuradoria. Essa referência pode ser feita tanto pelo
país que tem a jurisdição sobre o caso, quanto pelo CSONU, ou ainda pela
própria Procuradoria, se achar o caso relevante, e o país referido tiver ratifica-
do o Estatuto de Roma. Após o início da investigação, a Procuradoria, se achar
o caso pertinente, instaura um inquérito sobre ele.
Em seguida, o caso prossegue para ser analisado por uma das Seções de
Instrução. A Seção de Instrução será o órgão responsável por determinar se
existem provas suficientes para que o acusado seja levado a julgamento, e, caso
haja, emite decisão condenando provisoriamente o acusado. O artigo 61 do
Estatuto de Roma prevê a possibilidade de haver audiência para apreciar os
fatos constantes da acusação mesmo na ausência do condenado. A ocorrência
dessa audiência se verifica quando o acusado renuncia seu direito de estar pre-
sente, quando está foragido ou quando não consegue ser encontrado. A Seção
de Instrução também é encarregada de expedir mandados de prisão para que
os acusados sejam julgados perante o TPI.
Encerrado o procedimento de Instrução, o processo é remetido para a
Seção de Julgamento em Primeira Instância. Essa Seção poderá emitir sentença
condenatória, condenando o réu ao cumprimento de pena. O processo só
pode ir para a fase de Julgamento se o acusado estiver presente na Corte. É im-
portante destacar que, como institui o artigo 77 do Estatuto de Roma, as penas
cabíveis no TPI são penas de prisão, até no máximo 30 anos, ou perpétua, em
casos de elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condena-
do o justificarem. Até a presente data, entretanto, nenhum réu foi condenado
ao cumprimento de pena perpétua, ou ao cumprimento de pena máxima.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 199
Terminada a fase de Julgamento, cabem recursos à sentença condenatória
ou absolutória. Os recursos podem ser feitos pelo condenado ou pelo Procura-
dor, conforme a previsão do artigo 81 do Estatuto de Roma, com base em vício
processual, erro de fato, erro de direito ou algum motivo suscetível de afetar a
equidade ou a regularidade do processo ou da sentença. Há também a previsão
de recurso contra a pena decretada, alegando desproporção entre ela e o crime
praticado. O juízo responsável por julgar os recursos é a Seção de Recursos. Ela
é formada por cinco juízes que não tiveram contato com o caso previamente.
O TPI é composto por 18 juízes, de acordo com o Estatuto de Roma, em
seu artigo 36. Os juízes devem ser eleitos levando em consideração sua idoneida-
de moral, imparcialidade e integridade, além da necessidade dos candidatos de
reunirem os requisitos para o exercício das mais altas funções judiciais nos seus
respectivos países. Para garantir a imparcialidade nos julgamentos, o TPI não
pode ter mais de um juiz nacional do mesmo Estado e deve ter uma representa-
ção geográfica equitativa entre os países, além de uma representação justa de juí-
zes do sexo masculino e feminino. Até a presente data, existem 6 juízas mulheres
e 12 juízes homens, uma proporção de 1/3 de mulheres para 2/3 de homens,
nacionais de: Argentina, Quênia, Japão, Botsuana, Bélgica, Itália, Reino Unido,
República Dominicana, República Tcheca, Nigéria, Trindade e Tobago, França,
Polônia, Congo, Alemanha, Hungria, Coreia do Sul e Filipinas15. Os juízes são
eleitos por um mandato de nove anos e não podem ser reeleitos.

5. AS SOLUÇÕES E OS DESAFIOS DO TRIBUNAL PENAL


INTERNACIONAL

5.1. O TPI e os Tribunais Penais ad hoc para Ex-Iugoslávia e Ruanda

O Tribunal Penal Internacional teve como base alguns princípios que


já tinha sido consagrados no Estatuto dos Tribunais Penais ad hoc para Ex-
-Iugoslávia e para Ruanda, como o princípio da responsabilidade criminal
individual, citado no Capítulo anterior, além de ter sofrido influência das
definições já existentes de crime de genocídio, crimes contra a humanidade e
crimes de guerra.
Apesar das semelhanças, o TPI foi criado, como já citado, com o intuito
de solucionar alguns problemas que existiam nos Tribunais Penais ad hoc.
No critério estrutural, o TPI teve muitas influências nos Estatutos dos Tribu-
nais Penais ad hoc para Ex-Iugoslávia e Ruanda, como no procedimento para
eleição de juízes e na distribuição das Seções de Julgamento e suas funções.

15
ICC. Judicial Divisions: Who’s Who. 2017. Disponivel em:< https://www.icc-cpi.int/about/judicial-
divisions/biographies/Pages/default.aspx> Acesso em: 28 out. 2017
200 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Assim como no TPI, os juízes dos Tribunais Penais ad hoc deviam ser de países
diferentes, buscando distribuição igualitária entre homens e mulheres16. Não
havia, contudo, uma previsão de distribuição geográfica igualitária, ou limi-
tação do tempo de mandato, algo que foi acrescentado ao Estatuto de Roma.
Ademais, o Estatuto do Tribunal Penal para Ex-Iugoslávia previa divisão
em Seção de Julgamento e Seção de Recurso. Inexistia uma fase instrutória,
como há no TPI, e a fase recursal era mais limitada, havendo apenas a previsão
de recurso em caso de erro de direito que invalide a decisão ou erro de fato que
gere injustiça no julgamento. Sobre as penas, os Tribunais Penais ad hoc não
possuíam previsão de penas de morte, como existia nos Tribunais de Berlim e
Tóquio, mas não existia um limite de tempo para as penas de prisão.
O maior problema é a crítica sobre o fato dos tribunais ad hoc serem post
facto, ou seja, são tribunais criados após a ocorrência dos fatos. Isso gerou um
debate acerca da legitimidade dos julgamentos, uma vez que os crimes sobre o
qual os indivíduos foram acusados não existiam na época que os fatos ocorre-
ram17. A reflexão acerca desse problema foi um dos fatores que mais motiva-
ram o surgimento do TPI. É possível observar que a instituição de uma Corte
penal permanente soluciona o problema dos tribunais ad hoc no sentido se ha-
ver prévia delimitação dos crimes, das penas e de toda a estrutura do tribunal.
Outro problema que também envolve a questão da legitimidade é o fato
dos Tribunais Penais ad hoc para Ex-Iugoslávia e Ruanda terem sido criados
pelo Conselho de Segurança. Essa questão trouxe muitas preocupações para a
comunidade internacional, como menciona Elio Cardoso18:
Se os temores de que o Conselho pudesse exercer influência sobre os
tribunais acabaram se desvanecendo, causavam desconforto a muitos países
as características básicas das instituições: o caráter ad hoc dos tribunais estava
associado à sua condição de órgãos criados pelo CSNU. Essas preocupações
decorriam, naturalmente, do poder de veto dos membros permanentes, pois a
criação de tribunais “sob medida” pelo CSNU excluía, desde logo, a possibili-
dade de que tais órgãos viessem a atuar sobre situações relativas aos membros
permanentes ou a seus aliados.
Para solucionar essa questão, o TPI foi elaborado nos moldes citados
no Capítulo anterior, de forma que pudesse ser votado por todos os países-
-membros da ONU, além de que todos esses países tiveram a oportunidade

16
ICTY. Updated Statute for the International Criminal Tribunal for the Former Yugoslavia. 2009.
Disponível em: < http://www.icty.org/x/file/Legal%20Library/Statute/statute_sept09_en.pdf> Acesso
em: 29 out. 2017.
17
CARDOSO, Elio. Tribunal Penal Internacional: Conceitos, Realidades e Implicações para o Brasil.
1. Ed. Brasília: FUNAG, 2012, p. 32.
18
CARDOSO, Elio. Tribunal Penal Internacional: Conceitos, Realidades e Implicações para o Brasil.
1. Ed. Brasília: FUNAG, 2012, p. 32
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 201
de expressar suas opiniões acerca de sua criação, além de haver a opção por
ratificar o Estatuto de Roma, aceitando a jurisdição do TPI, ou não fazê-lo,
opção essa que não existiu para os países da Iugoslávia e Ruanda, que foram
obrigados a aceitar a jurisdição dos Tribunais Penais ad hoc em seus países.
Assim, pode-se observar que o TPI solucionou os maiores problemas que
existiam nos tribunais ad hoc, e aperfeiçoou alguns dispositivos elaborados por
esses tribunais, de forma a deixá-los mais claros e mais específicos. Entretanto,
o TPI não é isento de críticas, e seu funcionamento deu ensejo a diversos ques-
tionamentos relativos a sua eficácia e sua legitimidade.

5.2. Os problemas do TPI

Um dos maiores problemas enfrentados pelo TPI atualmente é a questão


da cooperação. O TPI é um órgão que se sustenta na cooperação dos países-
-membros para que possa funcionar devidamente. Como outros organismos
internacionais, o TPI necessita da cooperação de países para ter uma força
policial, executar mandados de prisão, conduzir investigações, interrogar teste-
munhas e proceder com as persecuções criminais19. Quando os países decidem
não cooperar, a atuação do TPI fica comprometida.
A ausência de cooperação já ocorreu no caso do presidente do Sudão,
Omar Al Bashir. Ele foi condenado por crimes contra a humanidade e crimes
de guerra, e um mandado de prisão foi expedido em seu nome. Apesar de o Su-
dão não ter obrigação de cooperar, por não ter ratificado o Estatuto de Roma,
outros países africanos, membros do TPI, poderiam ter executado o mandado
de prisão, quando Omar Al Bashir estava visitando esses países, mas não o fi-
zeram20. Isso ocorreu, principalmente, porque a União Africana se manifestou
contra a abertura do caso contra o presidente do Sudão no TPI, pois alegava
ser competente para resolver a questão de maneira diplomática, por meio de
mecanismos de seu órgão. Ademais, a União Africana, em resolução elaborada
em 2009, decidiu que todos os países africanos deveriam se recusar a cooperar
com os procedimentos do TPI acerca do caso do Sudão21.
O problema da cooperação se torna ainda mais preocupante pelo fato
de, apesar de haver a previsão do dever dos Estados-partes do cooperarem com

19
ICC. Rome Statute of the International Criminal Court. 1998. Disponível em: <https://www.icc-
cpi.int/NR/rdonlyres/ADD16852-AEE9-4757-ABE7-9CDC7CF02886/283503/RomeStatutEng1.pdf>
Acesso em: 27 out. 2017
20
ICC, Case Information Sheet: Prosecutor v. Omar Hassan Ahmad Al Bashir. 2015. Disponível em:
<https://www.icc-cpi.int/iccdocs/PIDS/publications/AlBashirEng.pdf> Acesso em: 26 out. 2017.
21
African Union. Assembly of the African Union: Thirteenth Ordinary Session. 2009. Disponível em: <
https://au.int/sites/default/files/decisions/9560-assembly_en_1_3_july_2009_auc_thirteenth_ordinary_ses-
sion_decisions_declarations_message_congratulations_motion_0.pdf> Acesso em: 29 out. 2017.
202 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

o TPI, no artigo 86 do Estatuto de Roma, não existe previsão de sanção para


casos de descumprimento desse dever. Dessa forma, a decisão de cooperar ou
não fica inteiramente ao critério do país, e isso pode afetar o funcionamento
do TPI. A não cooperação não ocorreu apenas no caso do Sudão, também
verificou-se no caso da Líbia, sobre Saif Gaddafi, e da Costa do Marfim, em
relação a entrega de Simone Gbagbo ao TPI22.
Outro problema recorrente está relacionado com o princípio da comple-
mentariedade do TPI. De acordo com esse princípio, o TPI só poderá atuar
num caso se o país que tem a jurisdição dele não estiver disposto ou não
estiver apto a agir. A decisão sobre a não disposição ou não aptidão do país,
contudo, fica a cargo do próprio TPI, o que dá margem para um grau de sub-
jetividade na interpretação de quando o país não está apto a agir23. A Líbia já
entrou com um questionamento sobre admissibilidade do caso pelo TPI, le-
vando em consideração o princípio da complementariedade. No caso, a Líbia
alegou ter condições para julgar o acusado, Saif Gaddafi. O TPI, entretanto,
rejeitou a alegação da Líbia e disse que o caso ficaria sob a jurisdição do TPI24.
A definição do crime de agressão é outro quesito que gera problemas
ao TPI. Na versão original do Estatuto de Roma, não há uma definição clara
sobre o que caracterizaria um crime de agressão. Para solucionar esse proble-
ma, foi elaborada uma emenda ao Estatuto de Roma, chamada emenda de
Campala. Essa emenda, todavia, foi ratificada, até a presente data, apenas por
27 países, e o Brasil não está entre esses países25. A não ratificação da emenda
limita a abrangência do crime de agressão.
É importante mencionar o fato de que 3 membros permanentes do Con-
selho de Segurança não ratificaram o Estatuto de Roma. São eles: Estados
Unidos, China e Rússia. Essa questão se torna problemática levando em con-
sideração que o TPI possui certo grau de subordinação ao Conselho de Segu-
rança. O artigo 16 do Estatuto de Roma determina que nenhum inquérito
ou persecução criminal pode iniciar ou prosseguir se assim ficar determinado
por resolução elaborada pelo CS. Essa determinação pode limitar o campo de
atuação do TPI, como já ocorreu com a Resolução 1422.
A resolução 1422 do Conselho de Segurança afirmou que se surgir um
caso envolvendo militares atuais ou aposentados de um Estado não-membro

22
ICC. Situations and cases. 2017. Disponível em: <https://www.icc-cpi.int/Pages/cases.aspx> Acesso
em: 27 out. 2017.
23
RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. 5. Ed. São Paulo: Sa-
raiva, 2016, p. 306.
24
ICC. Case Information Sheet: The Prosecutor vs. Saif Al-Islam Gaddafi. 2016. Disponível em: <
https://www.icc-cpi.int/libya/gaddafi/Documents/GaddafiEng.pdf> Acesso em: 29 out. 2017.
25
UN. United Nations Treaty Collection. 2017. Disponível em: < https://treaties.un.org/Pages/ViewDe-
tails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=XVIII-10-b&chapter=18&lang=en> Acesso em: 29 out. 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 203
do Estatuto de Roma, ocorrido durante uma operação estabelecida ou au-
torizada pelas Nações Unidas, fica vedada, por um período de doze meses,
a começar do dia 1 de julho de 2002, a possibilidade de iniciar ou proceder
uma investigação ou persecução de qualquer tipo, a menos que o Conselho de
Segurança decida o contrário26. Vale destacar que essa Resolução foi proposta
pelos Estados Unidos, um dos opositores ao TPI e membro permanente do
Conselho de Segurança.
Por mais que o TPI tenha obtido um aparente sucesso na tentativa de
corrigir os erros e aperfeiçoar os procedimentos dos Tribunais Penais ad hoc
para Ex-Iugoslávia e Ruanda, ele possui suas próprias falhas estruturais, que
comprometem seu funcionamento e levantam questionamentos acerca da legi-
timidade e eficácia do Tribunal.

CONCLUSÃO

Pelo que foi exposto, conseguimos traçar as características ideais do tribu-


nal justo (competente, independente, imparcial, estabelecido por lei e anterior
aos fatos), bem como do processo penal garantista, que não faz diferenciações
em razão da origem nacional e garante ao acusado tradutor, comunicação pré-
via da acusação, tempo e meios para defesa, assistência de defensor de sua esco-
lha, inquirição de testemunhas, não incriminação e duplo grau de jurisdição.
Vimos os tribunais instituídos pelo CSONU para os contextos de Ruan-
da e da Ex-Iugoslávia conseguiram avançar na independência e na imparciali-
dade, sem, no entanto, conseguir alcançar o nível ideal nesses quesitos.
Percebemos que o TPI conseguiu solucionar alguns problemas dos
Tribunais ad hoc, trazendo a prévia tipificação crimes e um direcionamen-
to geral, sem se voltar para um conflito específico nem escolher lados a
acusar, o que se coaduna com a esperada imparcialidade de um tribunal
justo. No entanto, ainda vemos a dependência do TPI em relação aos paí-
ses do CSONU em diversos casos, inclusive para exercer sua jurisdição em
países não signatários do Estatuto de Roma. Nesse ponto, ganha impor-
tância o fato de que, apesar sua influência, três membros do CSONU não
são signatários do Estatuto de Roma. Isso também pode trazer fortes con-
sequências ao princípio da não diferenciação em razão da origem nacional,
uma vez que combatentes das Forças Armadas de países do CSONU não
signatários do Estatuto de Roma muito dificilmente serão alcançados pelo
TPI, ao contrário de países não signatários que não possuem assento no
Conselho de Segurança.

26
UNSC. Resolution 1422. 2002. Disponivel em: < http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?sym-
bol=S/RES/1422(2002)> Acesso em: 29 out. 2017.
204 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

É preciso dizer também que os avanços do TPI trouxeram consigo novos


problemas. O TPI vivencia questões em relação à cooperação e ao princípio da
complementaridade, que surgem pela escolha política de valorização das sobe-
ranias nacionais, o que não se via nos tribunais anteriores, os quais gozavam
de primazia para o julgamento.

REFERÊNCIAS

African Union. Assembly of the African Union: Thirteenth Ordinary Session. 2009.
BIX, Herbert P. Hirohito and the Making of Modern Japan. Haper Collins, 2000.
CARDOSO, Elio. Tribunal Penal Internacional: Conceitos, Realidades e Implicações para o Brasil. 1. Ed.
Brasília: FUNAG, 2012.
CRETELLA NETO, José. Curso de direito internacional penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
GILBERT, Martin. A Segunda Guerra Mundial: os 2.174 dias que mudaram o mundo. Tradução de Ana Luísa
Faria, Miguel Serras Pereira. 1. ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014.
ICC. About the ICC. 2017
___. Case Information Sheet: The Prosecutor vs. Saif Al-Islam Gaddafi. 2016.
___, Case Information Sheet: Prosecutor v. Omar Hassan Ahmad Al Bashir. 2015.
___. Judicial Divisions: Who’s Who. 2017.
___. Rome Statute of the International Criminal Court. 1998.
ICTY. Updated Statute for the International Criminal Tribunal for the Former Yugoslavia. 2009.
RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2016
REIS JÚNIOR, Sebastião. Algumas notas sobre o Estatuto de Roma e o Tribunal Penal Internacional. In:
STJ – Doutrina: edição comemorativa 25 anos, abr. 2014
TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Os Tribunais Internacionais Contemporâneos. 1. Ed. Brasília: FU-
NAG, 2013, p. 32
UN. Charter of the International Military Tribunal, 1945.
___. Charter of the International Military Tribunal for the Far East, 1946.
___. United Nations Treaty Collection. 2017.
UNSC. Resolution 1422. 2002.
Capítulo 13
A Proteção Internacional da Criança-Soldado:
Direito Internacional Fragmentado?
Cintia Campos da Silva
Cássia Fernanda Cardoso Campos

INTRODUÇÃO

As crianças são um dos grupos mais afetados pelas consequências ne-


gativas da guerra. Além daquelas que são prejudicadas indiretamente pelas
hostilidades, em suas condições de civis, dezenas de milhares são também
recrutadas para servirem diretamente nos conflitos, desempenhando os mais
diversos papéis dentro dos grupos armados em que ingressam e ficando ex-
postas à brutalidades extremas e à possibilidade de ficarem incapacitadas ou
gravemente feridas.
Sem terem suas capacidades e faculdades completamente desenvolvidas,
a falta de discernimento para calcular os riscos e a vulnerabilidade das crian-
ças são aspectos que contribuem para o desenvolvimento do fenômeno das
crianças-soldado. As crianças precisam de proteção, principalmente estando
em um processo de construção de suas identidades, ao invés de terem sua
vulnerabilidade explorada para fins perigosos e para o cometimento e teste-
munho de atrocidades.
As discussões acerca do tema iniciaram-se partir da segunda metade do século
20, com a consequente publicação de diversos documentos jurídicos internacio-
nais que tratam sobre a problemática com amplitude, complexidade e óticas varia-
das, a depender do sujeito internacional no âmbito do qual foram aprovados, do
ano em que foram redigidos e da disciplina do Direito que os orienta.
O objeto deste artigo foi escolhido com base na sua importância para
a compreensão e estruturação do tema “crianças-soldado”, que apresenta va-
riadas peculiaridades e grandes implicações práticas em contextos de confli-
tos armados. O estudo foi desenvolvido com base em pesquisa bibliográfica,
incluindo-se, no material de apoio, livros, artigos, monografias, dissertações
de mestrado, teses de doutorado e consultas a sítios eletrônicos e relatórios de
organizações internacionais.
206 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Este artigo se divide em duas partes. O primeiro tópico se destina a ofere-


cer uma ampla visão sobre o tema que baseia o desenvolvimento da pesquisa,
qual seja, a utilização de crianças em conflitos armados. Além de discorrer
sobre o conceito, este tópico também busca discutir a participação das crianças
nos combates e analisar sua situação no contexto das hostilidades. O segundo
tópico, por sua vez, discorre sobre o tratamento que cada ramo do Direito In-
ternacional oferece à matéria, tecendo observações críticas sobre as vantagens
e desvantagens que o tratamento isolado do tema por cada disciplina pode
oferecer à efetivação da proteção internacional desses sujeitos tão vulneráveis
tanto no âmbito interno de cada país como no contexto supranacional.

2. AS CRIANÇAS-SOLDADO E SUA VULNERABILIDADE

Apesar de se saber que o uso de crianças em combates não é recente,


historicamente, as crianças eram protegidas nas guerras e a não utilização
de crianças-soldado nos conflitos armados foi um princípio respeitado pelas
culturas tradicionais1.
Acontece que, ao longo dos anos, o que se entende por conflito armado
foi sendo modificado e, ao invés de exércitos definidos pelo governo, com
uma organização específica e princípios a serem seguidos, novos grupos
foram surgindo como guerrilhas, milícias, grupos terroristas, que contribuí-
ram para que alguns princípios que protegiam as crianças nos conflitos não
fossem mais respeitados. 2
Desde as Cruzadas e os exércitos de Napoleão, crianças estavam envol-
vidas em combates. Ainda lutaram a favor e contra os nazistas durante a
Segunda Guerra Mundial.3 No pós Guerra Fria, com a proliferação de armas
baratas, de pequeno porte e acessíveis ao uso de crianças, esse fenômeno se
intensificou.
Não é simples definir quem são as crianças-soldado porque o conceito
de criança é culturalmente formado, variando entre as sociedades. Em umas
sociedades se define criança por idade, em outras por rituais de iniciação ou
passagem para a vida adulta e pela real capacidade de compreensão.4

1
SINGER, Peter. Crianças em Armas. Colares: Pedra da Lua, 2009.
2
PEREIRA, Maria Assunção do Vale. As Crianças em Situação de Conflito Armado, em Particular
as Crianças-Soldado?, in Luís Couto Gonçalves et al. (orgs.), Estudos em Homenagem ao Professor
Doutor Heinrich Ewald Hörster. Coimbra: Almedina, 2012.
3
PARK, A. S. J. Other Inhumane Acts: Forced Marriage, Girl Soldiers and Special Court for Sierra
Leone. Social Legal Studies – an International Journal. Australia, The Australian National University,
set. 2006, 315-337.
4
WESSELLS, Michael. Child Soldiers: From Violence to Protection. Cambridge, MA: Harvard: Uni-
versity Press, 2006.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 207
A Convenção sobre os Direitos das Crianças, criada em 1989 pelas Nações
Unidas, que constitui a base da proteção internacional dos direitos humanos
das crianças, considera que criança é “todo ser humano com menos de dezoito
anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a
maioridade seja alcançada antes” (art.1°) e determina em seu artigo 38 que os
Estados Parte deveriam adotar todas as medidas possíveis para que os menores
de quinze anos de idade não participem diretamente de hostilidades.
Os Princípios de Cabo Verde (1997) definem criança-soldado como qual-
quer pessoa que seja menor de dezoito anos e que esteja envolvida em qualquer
grupo armado, desempenhando uma função, incluindo, mas não limitada a:
carregadores, mensageiros, cozinheiros, acompanhantes de grupo, familiares,
funções sexuais. Entendendo assim que uma criança-soldado não necessaria-
mente precisa carregar uma arma ou estar em uma frente de batalha.
Em 2000, a Assembleia Geral das Nações Unidas, frente ao número cada
vez maior de crianças-soldado, adotou um Protocolo Facultativo para a Con-
venção sobre os Direitos das Crianças, com mais de 120 países signatários,
que prevê que os Estados Parte “elevarão a idade mínima para o recrutamento
voluntário de pessoas em suas forças armadas nacionais acima daquela fixada
no Artigo 38, parágrafo 3, da convenção sobre os Direitos das Crianças” e
condena o recrutamento, formação e utilização de crianças em hostilidades
por grupos armados distintos das forças armadas de um Estado.5
Mesmo com todas as iniciativas e o processo de fortalecimento dos
instrumentos de direitos humanos e do direito internacional humanitá-
rio, pós Segunda Guerra Mundial e Guerra Fria, estima-se que, segundo o
Child Soldiers global Report (2001), existam 300 mil crianças em situação de
combate no mundo. Esses números são difíceis de conter porque muitos
grupos e pessoas encontram diversos benefícios na exploração de crianças
como soldados, seja pela conveniência ou pelo baixo custo, uma vez que a
manutenção e sobrevivência de crianças em região de conflito custe menos
do que a de adultos.6
É preciso frisar que, além da vulnerabilidade física das crianças em con-
flitos armados, há a exposição destas à exploração e violência sexual, principal-
mente as meninas, sendo abusadas sexualmente e possuindo um grande risco
de contrair doenças sexualmente transmissíveis, como HIV e AIDS. As me-
ninas que sofrem violência sexual se sujeitam ao risco de contrair gravidezes
indesejadas, que são naturalmente prejudiciais a corpos ainda tão imaturos, e

5
UNICEF, Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo ao envolvimen-
to de crianças em conflitos armados, 2000.
6
WESSELLS, Michael. Child Soldiers: From Violence to Protection. Cambridge, MA: Harvard: Uni-
versity Press, 2006.
208 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

que podem ser ainda mais prejudiciais àquelas que são desnutridas e que vivem
em condições insalubres.7
O relatório de 2004 da ONG internacional Coalition to Stop the Use of
Child Soldiers afirma que crianças podem ser encontradas lutando em quase
todos os conflitos de grande porte, seja em forças de governo ou nas forças
de oposição. Dentre esta grande diversidade de grupos armados, alguns con-
tam com orientações políticas, como grupos paramilitares apoiados pelos
governos e milícias; grupos de oposição ao governo e grupos compostos por
minorias étnicas, religiosas, dentre outras, e facções ou clãs que lutam contra
o governo ou entre com o fim de defender territórios ou recursos também
se encontram nesse meio. 8
Ademais, as tarefas designadas a estas em conflitos armados são geral-
mente as que as expõem aos maiores riscos porque são atividades relacionadas
à espionagem, busca por minas terrestres e a posição de linha de frente no
combate. As crianças são fisicamente suscetíveis a ferimentos e à exposição de
riscos não calculados, o que as leva a terem uma taxa de mortalidade mais alta
se comparada aos adultos nas mesmas situações de conflitos.9
Mesmo sujeitas à situações de risco e à explorações, muitas crianças que
crescem em no contexto de guerras civis encontram na violência um instru-
mento de mudança social, abrindo espaço para o aliciamento e para a inserção
voluntária aos grupos armados. Nestes grupos, as crianças se sentem respei-
tadas e pertencentes a uma família, obtém privilégios que não tinham antes,
como proteção, comida e assistência médica. 10
O período que a criança se dedica ao serviço em combate é crucial para a
formação do seu ser social e de seus valores, que são distorcidos pela falta de
estudos e pelo testemunho ou participação em repetitivas ações violentas. Elas
obtêm um referencial em seus líderes e se transformam em agentes geradores
de violência, ao invés de paz.11
Em contrapartida à noção de que as crianças são atraídas voluntariamen-
te ao combate, a moçambicana Graça Machel em seu Relatório Machel (1996),
publicado no âmbito da ONU, trouxe a noção de que as escolhas de uma
criança não são voluntárias, mesmo que seja possível assim considerá-las, as

7
Ibid.
8
COALITION to stop the use of child soldier, Child Soldier 2004 Global Report. Disponível em:
<http://www.child-soldiers.org/home>. Acesso em: 10 out. 2017.
9
LOREY, Mark. Child Soldiers: Care & Protection of Children in Emergencies, A Field Guide, Save
the Children Foundation. 2001. Disponível em:< http://resourcecentre.savethechildren.se/>. Acesso
em: 08 dez. 2017.
10
WESSELLS, op. cit.
11
WESSELLS, Michael. Child Soldiers: From Violence to Protection. Cambridge, MA: Harvard: Uni-
versity Press, 2006.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 209
crianças podem ser impelidas por “qualquer uma das várias forças de pressão,
designadamente culturais, sociais, econômicas e políticas”. Mostrando que as
decisões das crianças, mesmo que aparentemente voluntárias, não devem ser
consideradas como livres.
As crianças precisam de proteção e de métodos eficazes para a diminui-
ção do recrutamento infantil em conflitos. Houveram poucos avanços no que
diz respeito aos programas que lidam diretamente com as crianças-soldado,
muito por causa da falta de respostas coordenadas entre os diferentes atores
envolvidos, como o Estado, organizações não governamentais, organizações
intergovernamentais e sociedade civil, além de haver a necessidade de reco-
nhecimento do problema dentro das agências que lidam com a prevenção de
conflitos e a reconstrução das sociedades pós-conflito.12 São muitos os aspectos
que são consideráveis para que as práticas convirjam em uma modificação
eficaz do panorama atual.
Em termos positivos, não há uma única fonte que trata do direito inter-
nacional da criança, como se passa a analisar no próximo capítulo, há quatro
áreas do direito que se ocupam da mesma temática e que se relacionam entre
si, fragmentando o direito internacional ora homogêneo e unificado.

3. OS DESAFIOS DA PROTEÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL


DAS CRIANÇAS-SOLDADO.

Não existe uma única fonte para o direito internacional da criança, tal
matéria encontra-se espalhada em tratados específicos e gerais tanto a nível
mundial como regional, em normas do direito internacional humanitário, no
direito internacional consuetudinário e na legislação dos Estados.
Como aponta Gabriela Riva13, o uso e o recrutamento de crianças-solda-
dos é um assunto tratado por quatro áreas do direito que estão relacionadas
entre si. São elas o Direito Internacional Humanitário, o Direito Internacio-
nal dos Direitos Humanos, o Direito Internacional do Trabalho e o Direito
Internacional Penal.
Essa dispersão do tratamento da matéria em diversos ramos e regras es-
pecializados e relativamente autônomos do Direito Internacional reflete a ten-
dência da fragmentação da comunidade internacional, especificamente no que
diz respeito à seara jurídica. 14

12
COALITION to stop the use of child soldier, Child Soldier 2008 Global Report. Disponível em:
<http://www.child-soldiers.org/home>. Acesso em: 11 out. 2017.
13
RIVA, Gabriela Rodrigues Saab. Criança ou Soldado? O Direito Internacional e o Recrutamento de
Crianças por Grupos Armados. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012.
14
KOSKENNIEMI, Martti. Fragmentation of International Law: Difficulties Arising from the Di-
versification and Expansion of International Law. Report of the Study Group of the International
210 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

O fenômeno da fragmentação jurídica, que contrapõe-se à ideia de um Di-


reito Internacional unificado e homogêneo, reflete a influência que o processo
de globalização exerce na dinamicidade das relações jurídicas internacionais
e a necessidade de produzir, interpretar e de adjudicar normas aptas a tutelar
relações internacionais de elevadas complexidade e delineamento técnico.15
A seguir passa-se a analisar o tratamento dispensado por cada um dos ra-
mos do Direito Internacional à matéria, a fim de possibilitar o alcance de uma
conclusão quanto aos efeitos que a fragmentação, em oposição ao unitarismo
do Direito Internacional, influencia na efetivação da proteção internacional
das crianças envolvidas em conflitos armados.
Primeiramente faz-se importante diferenciar os ramos do Direito Interna-
cional Humanitário do Direito Internacional dos Direitos Humanos a fim de
evitar a frequente confusão que se estabelece entre essas subdivisões do Direito
Internacional Público que se encontram estreitamente interligados.
Segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha16:

O Direito Internacional Humanitário é um conjunto de normas que, procura


limitar os efeitos de conflitos armados. Protege as pessoas que não participam
ou que deixaram de participar nas hostilidades, e restringe os meios e métodos
de combate. O Direito Internacional Humanitário (DIH) é também designado
por Direito da Guerra e por Direito dos Conflitos Armados.

Logo, entende-se o Direito Internacional Humanitário como uma sub-


divisão do Direito Internacional Público destinada a regular as práticas de
guerra e a limitar o sofrimento humano que delas advém.17
Por sua vez, o Direito Internacional dos Direitos Humanos objetiva ga-
rantir o exercício dos direitos da pessoa humana18 e estabelece as obrigações
dos governos de agirem de determinadas maneiras ou de se absterem de certos
atos, a fim de promover e proteger os direitos humanos e as liberdades de gru-
pos ou indivíduos tanto em tempos de paz como de guerra. 19

Law Commission. Assembleia Geral das Nações Unidas. 2006. Disponível em:<http://legal.un.org/ilc/
documentation/english/a_cn4_l682.pdf>. Acesso em: 08 dez. 2016.
15
AFONSO, Henrique Weil. Unidade e Fragmentação do Direito Internacional: O Papel dos Direitos
Humanos como Elemento Unificador. CEDIN. Revista Eletrônica de Direito Internacional, v. 4, p.
53-90. 2009.
16
COMITÊ Internacional da Cruz Vermelha. O que é o direito internacional humanitário? 1998. Dispo-
nível em: <https://www.icrc.org/por/resources/documents/misc/5tndf7.htm>. Acesso em: 09 dez. 2016.
17
RIVA, Gabriela Rodrigues Saab. Criança ou Soldado? O Direito Internacional e o Recrutamento de
Crianças por Grupos Armados. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012.
18
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14ª edição. São Pau-
lo, Saraiva, 2013.
19
DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos. O que são os direitos humanos? 2016. Disponível
em:<http://www.dudh.org.br/definicao/>. Acesso em: 08 dez. 2016.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 211
Diante da distinção apresentada, resta claro que “merece destaque o tra-
tamento dado pelo Direito Internacional Humanitário ao recrutamento e uti-
lização de crianças-soldado, uma vez que esses fenômenos ocorrem de forma
mais acentuada em tempos de guerra.”20
Apesar da proeminência do Direito Humanitário no tratamento da pre-
sente problemática, todos os ramos do Direito Internacional Público mencio-
nados anteriormente apresentam uma grande pertinência para a compreensão
do assunto em estudo, de forma que um número impressionante e sem prece-
dentes de instrumentos internacionais de diversos âmbitos de aplicação está
em vigor para apoiar os esforços para impedir o uso de crianças-soldados,
testemunhando o consenso global emergente sobre esta prática prejudicial.

3.1. Proteção das crianças-soldado segundo o Direito Internacional


Humanitário

As leis humanitárias internacionais protegem as crianças de três manei-


ras. Em primeiro lugar, reconhecem a necessidade de proteção especial devido
ao fato de que as crianças são pessoas de vulnerabilidade particular em situa-
ções de conflitos armados. Em segundo lugar, questionam o uso de crianças
em operações militares e, em terceiro, ressaltam a imaturidade das crianças que
cometerem delitos durante os conflitos armados.21
Os principais documentos que fundamentam o Direito Internacional
Humanitário são as quatro Convenções de Genebra de 1949, que já foram
ratificadas por todos os países22 e seus dois protocolos adicionais de 1977.
Antes de 1977, o Direito Internacional Humanitário não tratava direta-
mente da questão das crianças que participavam em conflitos armados, visto
que as quatro Convenções de Genebra de 1949 protegem apenas as crianças
civis em situação de guerra.
Os dois Protocolos Adicionais às Convenções de Genebra foram os dois
primeiros documentos a tratar da participação de crianças em conflitos23 e
objetivam proporcionar a mesma proteção especial e tratamento preferencial
durante a guerra.

20
RIVA, Gabriela Rodrigues Saab. Criança ou Soldado? O Direito Internacional e o Recrutamento de
Crianças por Grupos Armados. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012.
21
TIEFENBRUN, Susan. Child Soldiers, Slavery and the Trafficking of Children. Fordham Internatio-
nal Law Journal, v. 31, n. 2, 2007.
22
COMITÊ Internacional da Cruz Vermelha. Aos 60 anos, Convenções de Genebra continuam fortes.
2009. Disponível em: <https://www.icrc.org/por/resources/documents/interview/geneva-convention-in-
terview-120809. htm>. Acesso em: 08 dez. 2016.
23
RIVA, Gabriela Rodrigues Saab. Criança ou Soldado? O Direito Internacional e o Recrutamento de
Crianças por Grupos Armados. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012.
212 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

O Protocolo Adicional relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Ar-


mados Internacionais de 1977 (I Protocolo Adicional) obriga os Estados a im-
pedir que crianças menores de 15 anos participem diretamente nos conflitos
armados internacionais, estabelecendo que todas as medidas possíveis sejam
tomadas a fim de evitar recrutamento destas. Exige também que os Estados,
em caso de incorporação de pessoas entre 15 e 18 anos, priorizem a utilização
dos mais velhos.24
O Protocolo Adicional às Convenções de Genebra relativo à Proteção
das Vítimas dos Conflitos Armados Não Internacionais (II Protocolo Adi-
cional) confirma todas as proibições presentes no I Protocolo Adicional,
vetando especificamente a participação direta e indireta de crianças com
menos de 15 anos em conflitos não internacionais que ocorram no território
de um Estado Parte.
Críticas feitas aos instrumentos legais apresentados dizem respeito à uti-
lização do termo “medidas possíveis” para referir-se às atitudes que devem ser
tomadas pelos Estados na busca pela implementação das regras trazidas pelos
mesmos. Esta expressão abre espaço para subjetivismos e para a possibilidade
destes Estados tentarem eximir-se das responsabilidades impostas através da
alegação de que foi feito o possível, apesar de que as medidas não tenham sido
suficientes para erradicar o problema.25
Mais um ponto presente nas normas do Direito Humanitário que se
encontra superado pelas negociações atuais é a proibição do recrutamento
apenas para as crianças menores de 15 anos. Documentos jurídicos internacio-
nais posteriores tendem a estabelecer o limite de 18 anos para o recrutamento.
Outra problemática apresentada durante a aplicação das normas do Di-
reito Humanitário às crianças diz respeito ao status apresentados pelas mesmas
em situações de conflitos, em especial quanto à diferenciação entre civis e
combatentes. O I Protocolo Adicional estabelece como civis todos aqueles que
não são membros de grupos armados, e que, portanto, não participam direta-
mente das hostilidades.
Desta forma, antes do recrutamento, as crianças gozam de todas as pro-
teções oferecidas aos civis pelas normas do Direito Humanitário e, após a
incorporação aos grupos armados, a criança fica sujeita às regras aplicadas aos
combatentes segundo as Convenções de Genebra e seus Protocolos Adicionais.
A verdadeira dificuldade reside na situação em que estas crianças sejam
recrutadas por grupos armados que desrespeitem as normas estabelecidas pelas
Convenções de Genebra relativas à regulamentação dos grupos armados.
24
TIEFENBRUN, Susan. Child Soldiers, Slavery and the Trafficking of Children. Fordham Interna-
tional Law Journal, v. 31, n. 2, 2007.
25
RIVA, op. cit.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 213
Neste caso, as crianças perdem tanto os direitos destinados à população
civil como os estabelecidos em favor dos combatentes regulares, em especial a
proteção concedida aos prisioneiros de guerra, o que as deixa em uma conjun-
tura ainda maior de vulnerabilidade.

3.2. Proteção do Direito Internacional dos Direitos Humanos

A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (CDC) é


o principal instrumento para a proteção das crianças e para a promoção dos
seus direitos. Tendo sido assinada por todos os países membros da Organi-
zação das Nações Unidas e ratificado por quase todos eles, com exceção dos
Estados Unidos, tornando-se, desta forma, o tratado internacional de direitos
humanos mais amplamente ratificado na história. 26
A CDC inclui direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais,
adaptados às necessidades específicas das crianças, e embora todos os artigos
desta Convenção sejam relevantes para todas as crianças do mundo, os artigos
mais pertinentes para o tema das crianças-soldados são: o artigo 34, o qual
trata sobre proteção contra a exploração e o abuso sexual; o artigo 35, que traz
obrigação do Estado de impedir a venda, o tráfico e o sequestro de crianças; o
artigo 36, prevendo a proteção contra todas as formas de exploração; o artigo
37, que proíbe a tortura e a privação de liberdade; o artigo 38, determinando a
proteção das crianças em conflitos armados e respeito do direito humanitário
e estabelecendo 15 anos como idade mínima para o recrutamento; o artigo 39,
o qual estabelece o direito à recuperação e reintegração; o artigo 40, referindo-
-se ao tratamento no sistema de justiça juvenil; e o artigo 20, que aborda a
proteção das crianças sem família.27
O artigo 38 trata especialmente do recrutamento e uso de crianças para
fins militares, estipulando a obrigação dos Estados respeitarem e assegurarem
a aplicação das normas do Direito Humanitário às crianças, confirmando que
nenhuma criança com menos de 15 anos de idade pode participar diretamente
nas hostilidades ou ser recrutada para as forças armadas.28
Os Estados são também obrigados a assegurar que as crianças vítimas
de conflitos armados, tortura, negligência, maus tratos ou exploração rece-
bam tratamento adequado para a sua recuperação e reintegração social. São
proibidas a tortura, o tratamento cruel, a pena de morte, a prisão perpétua, a

26
UNICEF. Convention on the Rights of the Child. 2014. Disponível em:<https://www.unicef.org/crc/
index_30160. html>. Acesso em: 08 dez. 2016.
27
ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Convention on the Rights of the Child. 1989. Disponível em:
<http://www. ohchr .org/ Documents/Professional Interest/ crc.pdf>. Acesso em: 10 out. 2017.
28
PETERS, Lilian. War is no Child’s Play: Child Soldiers from Battlefield to Playground. Occasional
Paper 08, Geneva Centre for the Democratic Control of Armed Forces (DCAF), 2005.
214 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

detenção ilegal e a privação de liberdade em todos os momentos e sob todas


as circunstâncias.29
A CDC confirma os princípios do tratamento apropriado das crianças
prisioneiras de guerra, incluindo o direito à separação dos adultos detidos, o
direito de ter contato com a família e acesso a assistência legal e de qualquer
outra natureza. Os direitos humanos das crianças suspeitas de terem cometido
infrações devem ser sempre respeitados e os menores de 18 anos têm o direito
de se beneficiar de todos os aspectos do devido processo legal, incluindo assis-
tência jurídica e de outra natureza na preparação e apresentação do seu caso.
Como princípio, os procedimentos judiciais e o encarceramento devem ser
evitados, sempre que for possível e apropriado.30
O Estado é obrigado a proporcionar uma proteção especial às crianças
privadas do seu ambiente familiar e assegurar que todos os cuidados apro-
priados estejam disponíveis. Esta é uma medida preventiva importante, uma
vez que as crianças desacompanhadas são mais vulneráveis ao recrutamento
forçado ou voluntário.31
Em 2000, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou o Protocolo
Facultativo sobre o Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados (Pro-
tocolo Facultativo de 2000), que eleva a idade mínima para o recrutamento
obrigatório de 15 para 18 anos.
Os Estados parte também são obrigados a elevar a idade mínima para o
recrutamento voluntário nas forças armadas do Estado, reconhecendo que as
pessoas com menos de 18 anos têm direito a proteção especial, além de que
devem assegurar garantias relativas à prova da idade a fim de que o jovem pos-
sa alistar-se voluntariamente, bem como prova de consentimento parental ou
outro consentimento legal, de forma a comprovar a natureza verdadeiramente
voluntária do compromisso e compreensão clara por menores de 18 anos das
funções envolvidas no serviço militar. Após a ratificação, cada parte é obrigada
a declarar a idade mínima em que o recrutamento voluntário em suas forças
armadas nacionais é permitido. 32
Os atores não estatais são explicitamente proibidos de recrutar qualquer
pessoa com menos de 18 anos ou envolvê-las em hostilidades. O Protocolo
Facultativo de 2000 enfatiza em seu preâmbulo que recrutar ou alistar crianças

29
ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Convention on the Rights of the Child. 1989. Disponível em:
<http://www. ohchr .org/ Documents/Professional Interest/ crc.pdf>. Acesso em: 10 out. 2017.
30
PETERS, op. cit.
31
COHN, Ilene. Progress and Hurdles on the Road to Preventing the Use of Children as Soldiers
and Ensuring Their Rehabilitation and Reintegration. Cornell International Law Journal, v. 32, n. 3,
artigo 16, 2004.
32
PETERS, Lilian. War is no Child’s Play: Child Soldiers from Battlefield to Playground. Occasional
Paper 08, Geneva Centre for the Democratic Control of Armed Forces (DCAF), 2005.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 215
com menos de 15 anos, ou usá-las ativamente nas hostilidades, tanto em con-
flitos armados internacionais como não internacionais, configura crime de
guerra segundo o Estatuto de Roma, que rege o Tribunal Penal Internacional.33
Paralelamente à atuação da Organização das Nações Unidas, a antiga
Organização da Unidade Africana, atualmente União Africana, buscou
implementar medidas visando a proteção de crianças nas situações de con-
flitos armados. 34
Esta organização adotou, em 1990, a Carta Africana sobre o Direito e
Bem-Estar da Criança. Este documento entrou em vigor em 29 de novembro
de 1999 e é o único instrumento regional no mundo que aborda diretamente
a questão das crianças soldados, contando hoje com a adesão da maioria dos
Estados membros da União Africana. 35
A Carta Africana está de acordo com a CDC, na medida em que define
criança como todos aqueles que não atingiram os 18 anos de idade, além de
especificar em seu artigo 22.2, que os Estados partes devem tomar todas as me-
didas necessárias para assegurar que nenhuma criança participe diretamente
nas hostilidades. A utilização do termo “todas as medidas necessárias” inten-
ciona reduzir o espaço para o surgimento de subjetividade na aplicação desta
norma, problema presente em outros documentos sobre a matéria onde consta
a expressão “todas as medidas possíveis”.36
Outra característica da Carta Africana que a transforma no documento
mais rígido sobre a dispensar tratamento ao fenômeno das crianças-soldados
é o estabelecimento da idade de 18 anos como mínima para o recrutamento,
não havendo abertura de exceções a essa regra.
Apesar de a Carta Africana sobre o Direito e Bem-Estar da Criança esta-
belecer padrões louváveis na abordagem da problemática em estudo, a trágica
realidade é que estes ​​altos parâmetros não estão sendo cumpridos por vários
Estados africanos signatários do documento.37
Outro problema diz respeito inclusive ao âmbito de influência desse re-
ferido documento. Apesar de que uma grande parte das crianças afetadas por
conflitos armados encontrarem-se no continente africano, as crianças preju-
dicadas em nas demais regiões do globo não podem contar com a mesma

33
ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Statute of the Special Court for Sierra Leone. 2000. Disponí-
vel em: <https://www.hrw.org/news/2012/03/12/child-soldiers-worldwide>. Acesso em: 08 ou. 2017.
34
RIVA, Gabriela Rodrigues Saab. Criança ou Soldado? O Direito Internacional e o Recrutamento de
Crianças por Grupos Armados. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012.
35
FREELAND, Steven. Mere Children or Weapons of War – Child Soldier and International. Uni-
versity of La Verne Law Review, v. 29, p. 19-55, 2008
36
RIVA, op. cit.
37
FREELAND, Steven. Mere Children or Weapons of War – Child Soldier and International. Uni-
versity of La Verne Law Review, v. 29, p. 19-55, 2008.
216 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

proteção, que apesar de ampla é oferecida na esfera de uma organização inter-


nacional regional.

3.3. Contribuição do Direito Internacional do Trabalho

Outra abordagem importante ao tema das crianças-soldado é a elaborada


pelo Direito Internacional do Trabalho, mas especificamente pela Organiza-
ção Internacional do Trabalho (OIT).
A Convenção da OIT sobre a Proibição das Piores Formas de Trabalho
Infantil e a Ação Imediata para a sua Eliminação de 1999 (C182), que entrou
em vigor em novembro de 2000, condena o recrutamento forçado ou obriga-
tório de menores de 18 anos para uso em conflitos armados como uma das
piores formas de trabalho infantil e como uma prática análoga à escravidão.
Este documento, que foi ratificado por 175 Estados, também considera
como criança a pessoa menor de 18 anos e estabelece essa idade como a mí-
nima para o recrutamento compulsório, seja por forças armadas ou grupos
armados não governamentais, dentro ou fora do período de guerra.38
Uma das críticas elaboradas a este dispositivo legal é a proibição expressa
apenas quanto ao recrutamento forçado, de forma que o recrutamento volun-
tário não foi abordado por este documento.39
A grande contribuição da C182 foi transformar a temática das crianças-
-soldados em uma preocupação para a OIT, e a implementação de ações de
combate a esta violação aos direitos fundamentais das crianças em uma obri-
gação para esta organização. 40
Tendo em vista este objetivo, a OIT considera a C182 como uma de suas
oito Convenções Fundamentais, o que, em termos práticos, implica a obriga-
ção dos Estados partes na organização de enviar relatórios periódicos abordan-
do sobre os progressos quanto a aplicação destas convenções.41
Além de cooperar com os esforços no monitoramento da situação das
crianças-soldado pelo mundo, a OIT, através de seu Programa Internacional
para a Eliminação do Trabalho Infantil (IPEC), realiza um importante traba-
lho relacionado à reintegração na sociedade e à prevenção do recrutamento
destes indivíduos.42

38
RIVA, Gabriela Rodrigues Saab. Criança ou Soldado? O Direito Internacional e o Recrutamento de
Crianças por Grupos Armados. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012.
39
Ibdem.
40
ORGANIZAÇÃO Internacional do Trabalho. Child labour and armed conflict. 2016. Disponível em:
<http://ilo.org/ipec/areas/Armedconflict/lang--en/index.htm>. Acesso em: 10 out. 2017.
41
RIVA, Gabriela Rodrigues Saab. Criança ou Soldado? O Direito Internacional e o Recrutamento de
Crianças por Grupos Armados. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012.
42
ORGANIZAÇÃO Internacional do Trabalho. Child labour and armed conflict. 2016. Disponível em:
<http://ilo.org/ipec/areas/Armedconflict/lang--en/index.htm>. Acesso em: 10 out. 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 217
3.4. Direito Internacional Penal e a criminalização do recrutamento
e do uso de crianças-soldado

As normas do direito penal internacional incorporam um regime jurídi-


co que define certos “crimes internacionais” e prevê a responsabilidade penal
individual dos autores desses crimes. Um crime internacional difere do que
pode ser considerado um crime “ordinário” nos termos do direito nacional,
pois para que um crime atinja o status de um crime internacional, ele deve ser
considerado uma afronta a todos os seres humanos, ou seja, literalmente um
crime contra a humanidade.43
Os órgãos jurisdicionais penais internacionais recebem uma jurisdição es-
pecífica sobre determinados crimes internacionais, de acordo com os termos de
seus respectivos documentos constitutivos. A principal corte internacional cria-
da para lidar com este tipo de crime é o Tribunal Penal Internacional (TPI), esta-
belecido pelo Estatuto de Roma, que entrou em vigor em 1º de julho de 2002.44
A criação do TPI reflete o desejo da comunidade internacional de que os
crimes mais graves que preocupam a humanidade como um todo não devem
ficar impunes. O mandato do TPI é complementar ao dos Estados, o que
significa que o Tribunal deve ser utilizado como o último recurso, após a im-
possibilidade de julgamento do indivíduo na esfera nacional.45
O artigo 1 do Estatuto de Roma indica que o TPI tem competência para jul-
gar os crimes listados em seu artigo 5º, que tenham sido cometidos após sua entra-
da em vigor, quais sejam os crimes genocídio, crimes contra a humanidade, crimes
de guerra e crime de agressão, sendo que este último ainda carece de definição.
O Estatuto de Roma46 define Crime Contra a Humanidade em seu artigo
7º como “qualquer dos seguintes atos cometidos como parte de um ataque
generalizado ou sistemático dirigido contra qualquer população civil, com
conhecimento do ataque:” oferecendo a seguir uma lista com todos os atos a
que se refere o artigo transcrito.
A definição de Crime de Guerra é trazida pelo artigo 8º do Estatuto47:

1. O Tribunal é competente em matéria de crimes de guerra, em especial quan-


do cometido como parte de um plano ou política ou como parte de uma
comissão em grande escala de tais crimes

43
FREELAND, Steven. Mere Children or Weapons of War – Child Soldier and International. Uni-
versity of La Verne Law Review, v. 29, p. 19-55, 2008.
44
RIVA, op. cit.
45
FREELAND, op. cit.
46
ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Statute of the Special Court for Sierra Leone. 2000. Disponí-
vel em:<https://www.hrw.org/news/2012/03/12/child-soldiers-worldwide>. Acesso em: 08 ou. 2017.
47
Ibidem.
218 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

2. Para efeitos do presente Estatuto, entende-se por “crimes de guerra”:


b) Outras violações graves das leis e costumes aplicáveis em
​​ conflitos armados
internacionais, dentre o quadro estabelecido pelo direito internacional [...]
(xxvi) Recrutar ou alistar crianças menores de 15 anos nas forças armadas
nacionais ou usá-las para participar ativamente de hostilidades.
e) Outras violações graves das leis e costumes aplicáveis ​​em conflitos armados
que não tenham caráter internacional, dentro do marco estabelecido pelo di-
reito internacional [...]
vii) Recrutar ou alistar crianças menores de quinze anos em forças ou grupos
armados ou usá-las para participar ativamente de hostilidades;

Segundo leciona Gabriela Riva48, a leitura dos dispositivos pode-se con-


cluir que em caso de conflitos não internacionais, o Estatuto proíbe a utili-
zação de crianças menores de 15 anos tanto pelas forças armadas como pelos
grupos armados. No caso de conflitos internacionais o dispositivo que proíbe
o recrutamento de crianças menciona apenas as forças armadas nacionais. Tal
omissão parece proceder da assunção de que grupos armados não oficiais não
tomam partes em conflitos armados internacionais, entendimento que com-
provadamente não condiz com a realidade.
Nos termos do Estatuto de Roma, a escravização de crianças é um crime
contra a humanidade, enquanto que o recrutamento e o uso de crianças-solda-
dos em conflitos armados nacionais e internacionais é um crime de guerra.49
É importante ressaltar que o limite de idade adotado pelo Estatuto de
Roma foi o de 15 anos, e tal fato é considerado por muitos como um retroces-
so por não seguir a tendência adotada por outros documentos internacionais
sobre o assunto, qual seja, o limite de 18 anos de idade.50
Faz-se necessário notar ainda que o Estatuto não fez diferença entre as
diversas formas de recrutamento compulsório, bem como não diferenciou o
recrutamento compulsório do voluntário, além de pouco importar para seus
fins se a utilização de menores de 15 anos é uma prática permitida pelo orde-
namento do Estado Parte.51
O Estatuto de Roma foi o primeiro documento jurídico a criminalizar
expressamente o recrutamento de crianças, sendo esta a sua mais importante
inovação quanto ao tema da criança-soldado.
48
RIVA, Gabriela Rodrigues Saab. Criança ou Soldado? O Direito Internacional e o Recrutamento de
Crianças por Grupos Armados. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012.
49
PETERS, Lilian. War is no Child’s Play: Child Soldiers from Battlefield to Playground. Occasional
Paper 08, Geneva Centre for the Democratic Control of Armed Forces (DCAF), 2005.
50
TOCK, Shawn. Recruiting and Using Children as Soldiers: The Case for Defining the Offence as a
Crime Against Humanity. Dalhousie Journal of Legal Studies, v. 13, p. 157-185, 2004.
51
ACTION for Rights of Children. Critical issue module 7: Children associated with armed forces or
armed groups. ACR Resource Pack, 2009. Disponível em:<http://www.arc­online.org>. Acesso em: 10
out. 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 219
Outro tribunal internacional que merece menção é a Corte Especial para
Serra Leoa (CESL), que tem como mandato trazer a justiça aos responsáveis
pelas atrocidades cometidas em Serra Leoa durante a guerra civil que ocorreu
neste país a partir de 30 de novembro de 1996.52
O uso de crianças soldado era extremamente comum durante o conflito
no país. Nos termos do Estatuto da Corte Especial para a Serra Leoa (2000), a
Corte tem a competência para julgar pessoas que alegadamente tenham come-
tido um ou mais dos vários crimes contra a humanidade, outras violações gra-
ves do direito internacional humanitário, bem como determinadas infrações
penais nos termos das leis nacionais da Serra Leoa.53 Refletindo os termos do
Estatuto de Roma no contexto de conflitos armados de caráter não interna-
cional, o artigo 4(c) do Estatuto da Corte Especial para a Serra Leoa (Estatuto
de Serra Leoa, 2000) criminaliza o “recrutamento ou alistamento de crianças
menores de 15 anos em forças ou grupos armados ou usá-los para participar
ativamente de hostilidades”. Podendo-se notar que, mais uma vez, o limite
mínimo de idade foi estabelecido abaixo dos 18 anos.
Além disso, segundo leciona Steven Freeland54 (2008, p. 47):

A CESL tem jurisdição em relação às seguintes supostas violações da Lei de


1926 sobre a Prevenção da Crueldade contra Crianças da Serra Leoa:
i. Abusar de uma menina com menos de 13 anos de idade, contrariamente à
seção 6;
ii.Abusar de uma menina entre 13 e 14 anos de idade, contrariamente ao artigo 7;
iii. Abdução de uma menina para fins imorais, contrariamente à seção 12.137

Tais dispositivos evidenciam também uma preocupação com a temática


das garotas envolvidas em conflitos armados, seja na posição de combatentes
ou de civis.
As primeiras medidas importantes para estabelecer a responsabilidade
penal individual das pessoas que utilizam crianças menores de 15 anos nas
hostilidades já foram tomadas. Julgamentos destes crimes de guerra foram
emitidos pelo Tribunal Penal Internacional contra membros de grupos arma-
dos da República Democrática do Congo e da Uganda.55
Outro importante marco para a justiça internacional foi fundado pela
condenação em 2007, pelo Tribunal Especial para a Serra Leoa, de quatro

52
RIVA, Gabriela Rodrigues Saab. Criança ou Soldado? O Direito Internacional e o Recrutamento de
Crianças por Grupos Armados. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012.
53
FREELAND, Steven. Mere Children or Weapons of War – Child Soldier and International. Uni-
versity of La Verne Law Review, v. 29, p. 19-55, 2008.
54
Ibdem. p. 47
55
RIVA, Gabriela Rodrigues Saab. Criança ou Soldado? O Direito Internacional e o Recrutamento de
Crianças por Grupos Armados. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012.
220 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

pessoas sob acusações que incluíram o recrutamento e uso de crianças durante


a guerra civil.56
Globalmente, a comunidade internacional reconheceu a necessidade de
criminalizar atos que equivalem ao recrutamento e participação ativa de crian-
ças em conflitos armados. Trata-se de um passo importante, embora as normas
relativas ao limite mínimo de idade devam ser reavaliadas e melhoradas. Com
a pressão contínua da sociedade civil e dos grupos de direitos humanos, é
grande a esperança de que este será um objetivo realizável.

3.5. As Dificuldades na Implementação das Ações de Proteção da


Criança-Soldado

É possível observar a evolução do tratamento em cada ramo do direito


no que concerne à proteção das crianças-soldado, com inovações em leis e
resoluções. A inclusão da questão na agenda das Nações Unidas e o entendi-
mento de que esta problemática se tornou uma ameaça à paz internacional
mostram o quão forte é a compreensão de que há de se buscar uma solução
para o problema57.
Os Estados em conflito, que devem promover medidas adequadas para
sanar o problema do recrutamento de crianças em exércitos, precisam de-
monstrar o seu comprometimento com a tomada das ações. Acontece que,
pressupor que estes Estados são a única parte efetivamente responsável nesse
contexto enfraquece a implementação das ações e obscurece uma questão que
deve ser compreendida como internacional, uma vez que os conflitos armados
internacionais alimentam-se do envolvimento de diversos atores que os finan-
ciam e fortalecem58.
Assim, uma lacuna é formada entre as medidas que devem ser tomadas e
a efetiva implementação destas quando se deveria focar no esforço conjunto
da comunidade internacional. Os países que enviam ajuda humanitária são os
mesmos países que muitas vezes sustentam paralelamente os conflitos e não
enxergar o paradoxo que circunda essa questão só impede que se chegue à
uma maneira correta de implementar as leis e resoluções internacionais. Uma
solução única e que depende dos países em conflito só retarda a eficácia da
proteção internacional da criança-soldado.

56
COALITION to stop the use of child soldier, Child Soldier 2008 Global Report. Disponível em:
<http://www.child-soldiers.org/home>. Acesso em: 11 out. 2017.
57
GALESI, Rafaella Homsi. A Atuação das Nações Unidas Frente ao Contexto das Novas Guerras:
Uma Análise sobre a Questão das Crianças-Soldado. Disponível em: <periodicos.ufpb.br/index.php/
ricri/article/ download/32871/18114> Acesso em: 10 jan. 2018.
58
Ibdem.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 221
CONCLUSÃO

Através da análise da legislação existente sobre o assunto das crianças-solda-


do, fica evidente que houve um enorme progresso quanto à proteção legal desse
grupo tão vulnerável no panorama global, mas que, apesar de todo o desenvol-
vimento positivo, dezenas de crianças ainda são recrutadas e usadas para fins
militares, e os perpetradores dessas violações atrozes não são responsabilizados.
A conclusão que pode ser extraída da referida análise é de que o maior de-
safio para a implantação de uma proteção mais eficiente das crianças-soldado
não é a fragmentação do Direito Internacional, e sim a falta de implementação
das suas normas.
A fragmentação do Direito Internacional é uma consequência da evolução
e expansão desse ramo, devendo ser enxergada mais como um ponto necessário
para o seu desenvolvimento do que com uma conotação negativa decorrente de
uma visão normativa de que o direito deve ser sistemático e unitário59.
Em suma, existe um rico conjunto de instrumentos internacionais que
regulam a matéria da criança-soldado. Como indica o Relatório Global da
ONG International Coalition to Stop the use of Child Soldiers60, o desafio é
garantir que estes instrumentos sejam utilizados com eficácia. Logo, há clara-
mente uma necessidade de passar da criação legislativa para a aplicação destes
dispositivos legais e para a implementação de medidas concretas.
Isso envolverá a atuação coordenada de diversos atores e, em última aná-
lise, o sucesso da proteção efetiva dessas crianças dependerá da construção de
sociedades onde os direitos e a dignidade de todas as crianças sejam mantidos.
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59
RAPOSO, Rodrigo Bastos. Quem tem medo da fragmentação do direito internacional?
Textos&Debates, n.23, Boa Vista: 2013.
60
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<http://www.child-soldiers.org/home>. Acesso em: 11 out. 2017.
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TOCK, Shawn. Recruiting and Using Children as Soldiers: The Case for Defining the Offence as a Crime
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dex_30160.html>. Acesso em: 08 dez. 2016
WESSELLS, Michael. Child Soldiers: From Violence to Protection. Cambridge, MA: Harvard: University
Press, 2006.
PARTE III

A IMPLEMENTAÇÃO DOS
COMPROMISSOS INTERNACIONAIS
PELO BRASIL:
AVANÇOS OU RETROCESSOS?
Capítulo 14
A Adoção da Internação Compulsória de
Viciados em Drogas pelo Estado Brasileiro e o
Ferimento das Recomendações Internacionais para
Tratamentos Baseados em Direitos Fundamentais
Cristina de Fátima Alves de Oliveira
Arielly Handhel Cavalcante de Araújo
Zairo José de Albuquerque e Silva

1. INTRODUÇÃO

Hoje, o Brasil vive o período da efetivação dos direitos consagrados pela


vigente Constituição, que representa os anseios de um povo que nunca de fato
experimentou um modelo humanista de sistema jurídico-político. Essa nova
ordem exprime a atribuição de valor às normas de direito comunitário, ou
seja, o direito que não se limita por fronteiras geográficas, culturais ou idio-
máticas e que visa trazer unanimidade global na concretização dos requisitos
que compõe a dignidade da pessoa humana, o princípio balizador das novas
relações entre Estado e povo.
Nesse aspecto, a saúde mental passou ser objeto de estudos mais especia-
lizados e suas implicações no panorama geral da saúde são agora amplamen-
te difundidos. Assim, as drogas foram percebidas como fonte originária de
diversas formas de sofrimento mental, que podem chegar a ser irreversíveis.
Esses casos de doenças ocasionadas por uso de psicoativos têm causado um
fenômeno contemporâneo que incide em áreas da saúde e segurança pública,
bem como de uma cultura arraigada na exclusão, maus-tratos e perseguição de
usuários de drogas, vistos como páreas à sociedade e que formam sociedades
paralelas nas ruas do País.
Tendo em vista este contexto, o presente estudo visa analisar uma
controversa medida utilizada pelo Estado para abordar os problemas cau-
sados por toxicômanos, que desenvolveram quadros de doenças mentais e
necessitam de cuidados médicos. A internação compulsória é prevista na lei
10.216/2001 e sintetiza o dever Constitucional do Estado de proteger a vida,
já que dá a este a prerrogativa de interferir no direito de autodeterminação
do indivíduo e impor um regime de tratamento de saúde. Porém, inúmeros
questionamentos sobre a legitimidade e as formas como esta medida tem sido
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 225
aplicada às vistas de direitos humanitários e os quais o Brasil solenemente
comprometeu-se a concretizar em âmbito internacional, são levantados por
diversos órgãos especializados, entre eles, a Organização Mundial de Saúde
(OMS) por meio de recomendações e declarações expressas de contrariedade
ao método compulsório.
Para desenvolver o estudo, foi necessária a realização de vasta revisão
literária sobre o tema sobre os eixos da saúde pública, direito internacional pú-
blico e direito constitucional. Bem como uma ampla análise documental dos
órgãos especializados em saúde mental e dos institutos jurídicos que preveem
o tema em jurisdição interna e externa para que fosse elaborada uma análise
jurídica, que traz uma nova concepção sobre a forma como o direito inter-
nacional pode regular com maior rigor as ações do Estado Brasileiro no con-
fronto entre os direitos de autonomia e direito à vida. E para isso, é necessário
que o direito à saúde, contemplado na Carta Magna, seja entendido como um
comando para uma ação positiva do Estado diante das mazelas sociais, a nível
individual, mas para além, a nível familiar e comunitário.

2. A RELEVÂNCIA DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE

Em 24 de Outubro de 1945, o Brasil juntamente de outras 49 nações,


ratificou a Carta das Nações Unidas e criou o órgão que hoje conhecemos
como Organização das Nações Unidas (ONU). Tudo isso se deu num contex-
to mundial do pós-guerra uma segunda vez num curto espaço de tempo, que
destruiu novamente a sociedade que havia, a pouco, se restabelecido de uma
guerra e tentava viver sob novos parâmetros sócio-políticos. No artigo primei-
ro do tratado, os Estados-membros se comprometem a:

Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas in-


ternacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para
promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades funda-
mentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e ser um
centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses
objetivos comuns.1

Isso significa, em última instância, que aspectos de manutenção pública


que estão sob a órbita dos direitos fundamentais, tais como a saúde, já eram
objetivos almejados na Carta, tão logo tivessem superado os momentos de
concentração no reparo dos danos causados pela Grande Guerra.

1
DECRETO Nº 19.841, DE 22 DE OUTUBRO DE 1945. Promulga a Carta das Nações Unidas, da qual
faz parte integrante o anexo Estatuto da Corte Internacional de Justiça, assinada em São Francisco, a 26
de junho de 1945, por ocasião da Conferência de Organização Internacional das Nações Unidas.
226 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Dessa forma, em sete de abril de 1948, foi fundada uma das mais im-
portantes agências da ONU, a Organização Mundial de Saúde (OMS), que
visava à manutenção da saúde dos povos, mesmo daqueles países que não
são signatários da Carta da ONU. Esta agência entende a saúde como um
status de bem estar que vai além da ausência de doença, é uma junção de
bem-estar físico, mental e social. Hoje, a OMS é o órgão que possui os dados
mais completos e atualizados sobre a saúde mundial, além de terem um acer-
vo científico profundo e renovado constantemente, que são usados como
parâmetros globais de revitalização, tratamento e prevenção de epidemias de
doenças fisiológicas, acometimentos de doenças virais e bacterianas, enfer-
midades psiquiátricas e danos causados por abuso de substâncias psicoativas
lícitas e ilícitas, que comumente acabam entrando nas estatísticas de desor-
dens mentais e criminalidade.2
Segundo dados da própria OMS, pelo menos 15,3 milhões3 de pessoas
no mundo sofrem de desordens provocadas pelo vício em drogas psicoativas.
Tendo esse cenário em vista, a agência desenvolve planos de abordagem ao
problema de forma multidisciplinar e sempre buscando preservar o direito da
autonomia da vontade e autodeterminação.
A constância em pesquisa científica e apuração de dados sobre as dro-
gas no âmbito da saúde a nível global do Órgão, bem como, o caráter de
parâmetro para Países se organizarem internamente em seus programas de
saúde, reforçam a relevância da OMS no desenvolvimento de intervenções e
tratamentos, que em decorrência da sua natureza de agência do principal or-
ganismo de proteção de direitos humanos, são comprovadamente ideais para
a revitalização dos indivíduos que precisam de atenção não só fisiológica, mas
em todos os demais campos que compõe a dignidade e bem-estar humano.

3. CONCEITOS E CONCEPÇÕES DE AUTONOMIA E


AUTODETERMINAÇÃO.

A internação compulsória é uma faculdade dada ao Estado que dire-


tamente subjuga o que foi consagrado na primeira geração dos direitos, a
liberdade. Autodeterminar-se implica um exercício de poderes inerentes à pes-
soa humana pela sua própria natureza autossuficiente e, ao mesmo tempo,
gregária. O termo “autodeterminação” é muito comumente utilizado no seu
sentido político, que foi uma das condições para a formação de acordos de
união de Estados Soberanos, tais como a Carta das Nações Unidas, a União
Europeia (EU) etc. “A autodeterminação encontraria um campo específico no

2
World Health Organization (WHO). The Global Guardian of Public Health, 2016.
3
United Nations Office On Drugs and Crime (UNODC). World Drug Report - 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 227
Direito Internacional Público para justificar o direito dos povos de constituí-
rem estados em face de suas peculiaridades gentílicas.”4
Atualmente o termo ganhou um sentido social, que trata agora não de
uma imposição de Estados, e sim, de seus concidadãos diante de seus gover-
nos. O movimento neoconstitucionalista foi o respaldo jurídico para essa
nova concepção. As liberdades individuais agora se encontram protegidas em
Constituições humanistas e progressistas. Rodrigues Júnior compartilha o
pensamento de Ripert:

A autonomia da vontade elevou-se à categoria de princípio do Direito e de


fonte das relações jurídicas. Essa concepção, como visto, é o resultado de um
constante evoluir do pensamento jusfilosófico, em que ocupam posições des-
tacadas a doutrina da Igreja, o Direito Natural e o individualismo decorrente
das ideias liberais da Ilustração.5

O processo de aceitação e imposição do respeito às liberdades individuais


deu-se através do desenvolvimento dos novos hábitos urbanos sociais, o avan-
ço da tecnologia da informação que destilou novos estilos das tribos sociais
que se desprendem da divisão tradicional de estratificação social. Um dos
modos mais eloquentes desse desenvolvimento foram as drogas. Em pouco
tempo, as drogas assumiram um novo papel dentro das sociedades modernas.

Em tempos mais recentes, após a redemocratização do país, os padrões exclu-


dentes da economia brasileira vêm levando a juventude pobre a conceber o
ingresso no narcotráfico como uma das suas únicas possibilidades de conquis-
ta de status. A natureza ilícita dessa atividade instaura entre eles um clima de
desonestidade e violência. O clima de insegurança que passa a reinar na socie-
dade costuma ser, no entanto, atribuído simplesmente às “guerras de trafican-
tes”, quando seria, de fato, decorrência do modelo socioeconômico vigente e
de uma série de falhas nos sistemas públicos de segurança, saúde e educação.
Já os jovens usuários de classe média não são mais vistos como ameaça ao
sistema, mesmo que cresça entre eles o consumo de drogas.6

As drogas agora se tornam uma insígnia da liberdade, e como tudo, passou


sob o crivo do poder estatal por todo o mundo e despertou debates de várias
vertentes, desde a psicologia até a religião. Mas o que se destacou foi o confron-

4
RODRIGUES JÚNIOR, Otaviano Luís. Autonomia da vontade, autonomia privada e autodetermi-
nação Notas sobre a evolução de um conceito na Modernidade e na Pós-modernidade. Brasília a.
41 n. 163 jul./set. 2004
5
Opus citaum. RODRIGUES JÚNIOR, 2004, p. 114. APUD Ripert, 2000, p. 52.
6
Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas Prevenção dos problemas relacionados ao uso de
drogas capacitação para conselheiros e lideranças comunitárias / Ministério da Justiça, Secretaria
Nacional de Políticas sobre Drogas. – 6. ed. – Brasília, DF : SENAD-MJ/NUTE-UFSC, 2014.
228 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

to entre autodeterminação, que Ribeiro elucida da seguinte forma: “o plano


da autodeterminação estaria no poder de cada indivíduo gerir livremente a sua
esfera de interesses, orientando a sua vida de acordo com as suas preferências.”7
E o dever do Estado de proteção à vida. E na condição do problema das drogas,
o Estado brasileiro, inspirado pela experiência Norte Americana, optou pela
abordagem proibicionista. Entretanto, isso é o reflexo de uma dualidade his-
tórica, visto que chegamos ao modelo atual depois de uma vivência de Estado
liberal ou abstencionista. Este que fracassou quando a Primeira Guerra Mundial
deflagrou-se. Logo, o Estado moderno estende-se numa berlinda onde teme agir
de forma não-intervencionista e provocar colapsos de revoltas sociais e políticas,
que ameaçariam seu pilar de legitimidade democrática, e, ao mesmo tempo,
teme sua própria força ao não medir seus atos tirânicos.
Quando parcelas significativas da sociedade passam a invocar o direito
de autonomia da vontade, que Henri de Page define como sendo: “o po-
der reconhecido às vontades particulares de regularem, elas próprias, todas as
condições e modalidades de seus vínculos, de decidir, por si só, a matéria e
a extensão de suas convenções”8 os órgãos de proteção de direitos humanos
passam a desenvolver estudos e elaborar pareceres sobre o caso. E aqui, a ONU
possui um posicionamento de apoio às liberdades individuais onde defende
que os Estados busquem cumprir seu dever de proteção à vida sem ferir as
prerrogativas jurídicas da esfera individual de seus concidadãos, de maneira
que o problema social causado pelo vício e dependência em drogas seja sana-
do ao oferecer tratamentos preventivos e restaurativos da saúde, ao invés da
intervenção involuntária.
Essas orientações foram condensadas num documento de 2008, que traz
nove princípios para abordagem de tratamento do vício em drogas, que será
objeto de análise sobre o que visam proteger esses princípios e o que eles sig-
nificam no contexto jurídico brasileiro na esfera externa do Direito Interna-
cional Público e internamente, na forma de suas políticas públicas aplicadas à
restauração do status quo diante do problema social da internação compulsória.

4. INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA: DEFINIÇÕES E


APLICAÇÕES

Para situar a internação compulsória e suas controvérsias sociais e jurídi-


cas, faz-se indispensável que seu conceito e formas de aplicação nos tribunais
brasileiros sejam explanados. Essa modalidade de tratamento consiste numa
forma de internação expedida judicialmente que independe da vontade do in-

7
Opus citaum. RODRIGUES JÚNIOR, 2004, p. 114. APUD Ribeiro, 1999, p. 22.
8
Opus citaum. RODRIGUES JÚNIOR, 2004, p. 114. APUD Henri de Page, 1948, p. 15, t. 2
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 229
dividuo e, em regra, costuma apresentar a resposta de um juiz, acompanhada
de uma solicitação médica podendo ou não ter o consentimento dos familia-
res do interno.
Para os casos onde não há o consentimento da família ou a ausência das
mesmas, o Estado poderá autorizar essa internação em conformidade com a
Lei 10.216/2001 e na Portaria Federal nº 2.391/2002/GM, que regulamenta o
controle de quatro modalidades de internações. As voluntárias que contam
com o elemento da vontade o paciente, as voluntárias que no seu decorrer
perdem esse caráter, as involuntárias que cabem ser pedidas por terceiros como
familiares ou o Ministério Público e as compulsórias que são expedidas me-
diante ordem judicial quando provocado. O Ministério da Saúde através desta
Portaria prenuncia a responsabilidade da gestão dos estados-membros do SUS
em estabelecer uma Comissão Revisora das Internações Involuntárias (IPI e
IPVI), que dará respaldo no acompanhamento dessas internações, no prazo de
sete dias depois de feita a comunicação pertinente – devendo emitir laudo que
confirme ou suspenda a medida em caráter imediato.
Dentre todas as formas de internações, o modelo compulsório é o mais
questionado em termos de aplicação e eficácia. Sua finalidade está baseada na
retirada de forma forçada dos usuários de substâncias tóxicas de seus lares ou
das ruas, para que sejam submetidos a um tratamento que visa restabelecer a
saúde e ressocializá-los, já que muitos já apresentam comportamento agressivo
e danoso a si próprio ou terceiros. No entanto, ela só deverá acontecer nos
termos previstos na Lei nº 10.216 de 06 de Abril de 2001. A compulsoriedade,
em qualquer de suas modalidades, só será aplicada quando os recursos extra-
-hospitalares se mostrarem insuficientes.
Todavia, existem algumas contradições acerca da eficácia desta modalida-
de de intervenção, que vem sendo decisão característica do Poder Judiciário.
Mesmo sendo condenada pela Conferência Nacional de Saúde, a internação
compulsória consta no Plano Nacional de Combate ao Crack do Governo Fe-
deral o que sustenta a tese de muitos especialistas que acreditam que a medida
tem sido usada primordialmente quando deveria ser aplicada em ultima ratio.
Segundo dados colhidos pelo Conselho Federal de Psicologia em rela-
tório de inspeção nacional de locais de internação para usuários de drogas,
a maior parte das clínicas usam de métodos de cunho religioso para o tra-
tamento, que baseados em princípios moralistas, impõem constrangimentos
a pacientes que são homoafetivos ou possuem identidade de gênero diversa.
Somado a isto, em todas as instituições inspecionadas foram detectados sinais
e denúncias de maus-tratos aos internos. Lê-se no documento:

O capítulo maus-tratos, violência física e humilhações não é pequeno. Neste


encontra-se registrada a adoção de métodos de tortura, como, por exemplo:
230 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

internos enterrados até o pescoço (recurso terapêutico?); o castigo de ter de


beber água de vaso sanitário por haver desobedecido a uma regra ou, ainda,
receber refeições preparadas com alimentos estragados, além do registro de
internos que apresentavam, no momento da inspeção, ferimentos e sinais de
violência física.9

O que se constata é que todo o campo da internação compulsória tem


sido minado por evidências e levantamentos que constatam sua aplicação de
modo ilegal e desumano, bem como sua não-eficácia, visto que não cumpre os
requisitos de saúde e ressocialização impostos.

4.1. Como Ocorre A Internação Compulsória

As internações que ocorrem no Brasil estão sob o regime da Lei nº


10.216/2001, por não dispor de lei própria e por ser uma medida excepcional,
já que a mesma é decorrente do tratamento de exclusão destinado aos doen-
tes mentais, que antes da reforma manicomial eram recolhidos das ruas por
consequência dos problemas de ordem criminal ofensiva que causavam à so-
ciedade. Essa medida drástica era tomada sem aplicar tratamentos adequados
de acordo com o princípio da individualização nos atendimentos de saúde.

Com o relevante crescimento da população, a cidade passou a se deparar com


alguns problemas, e dentre eles, a presença dos loucos pelas ruas, o destino de-
les era a prisão, ou a Santa Casa de Misericórdia que era um local de amparo,
de caridade, não um local de cura. Lá os alienados recebiam um “tratamento”
diferenciado dos outros internos. Os insanos ficavam amontoados em porões,
sofrendo repressões físicas quando agitados, sem contar com assistência médi-
ca, expostos ao contágio por doenças infecciosas e subnutridos. Interessante
observar que naquele momento, o recolhimento do louco, não possuía uma
atitude de tratamento terapêutico, mas, sim de salvaguardar a ordem pública.10

5. ANÁLISE JURÍDICA DA INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA


QUANTO AOS TRATADOS INTERNACIONAIS

A internação compulsória representa o enfrentamento direto entre dois


princípios fundamentais: liberdade de autodeterminação e direito à vida, e

9
Conselho Federal de Psicologia. Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos: locais de
internação para usuários de drogas / Conselho Federal de Psicologia. - Brasília: Conselho Federal de
Psicologia, 2011. 200 p.
10
MESQUITA, J. F. de. Quem Disse Que Lugar de Louco É no Hospício? Um estudo sobre os Servi-
ços Residenciais Terapêuticos, Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Popula-
cionais, ABEP, realizado em Caxambu- MG – Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 231
seguindo as informações acima dispostas, sobre como os órgãos que vociferam
as bases principiológicas da ONU, tais como a OMS, aqui traremos uma nova
acepção acerca do valor jurídico-normativo da legislação internacional à luz
do ferimento de documentos recomendatórios para efetivação e proteção de
direitos humanos.
Documentos que abrigam meras recomendações sobre como Estados so-
beranos devem tratar de questões da alçada dos direitos humanos, por si só,
não apresentam nenhuma prerrogativa de exigência que possa ser cobrada de
forma que possa impor sanção. Porém, é possível entender que, recomenda-
ções de órgãos como a Organização Mundial de Saúde, que estiliza os valores
da Carta da Organização das Nações Unidas, documento que foi ratificado
pelo Estado Brasileiro e hoje possui status jurídico de norma supralegal e
infraconstitucional, transmitem as acepções dos princípios defendidos nessa
legislação, logo, possuem força normativa que faça julgar o Estado na ausência
de honraria a estes mandamentos jurídicos banhados pelo Direito Internacio-
nal Público. Maués leciona:

Apesar disso, a tendência contemporânea do constitucionalismo mundial de


prestigiar as normas internacionais destinadas à proteção dos direitos huma-
nos, a evolução do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e
os princípios do direito internacional sobre o cumprimento de obrigações in-
ternacionais não permitiam mais a manutenção da tese da legalidade, servindo
a supralegalidade como uma solução que viria compatibilizar a jurisprudência
do STF com essas mudanças, sem os problemas que seriam decorrentes da
tese da constitucionalidade. Assim, os tratados de direitos humanos passam a
paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infracons-
titucional com eles conflitante.11

Esta tese se sustenta na técnica do controle de convencionalidade e nas


discussões da posição dos tratados internacionais sobre direitos humanos
como norma supralegal. Esse debate tem sido elucidado mundialmente e so-
bre isso, Brasil12 aponta que é preciso “respeitar e promover a efetivação dos
direitos garantidos pelas Constituições dos Estados nacionais e assegurados
pelas declarações internacionais, em ordem a permitir a prática de um consti-
tucionalismo aberto ao processo de crescente internacionalização dos direitos
básicos da pessoa humana.” Tudo isso é proveniente de uma própria evolução
histórica do modelo de constitucionalismo no que tange à função da Cons-
tituição sob a perspectiva do movimento de superação do antagonismo entre

11
MAUÉS, Antônio Moreira. Supralegalidade Dos Tratados Internacionais De Direitos Humanos E
Interpretação Constitucional. SUR - Revista Internacional de Direitos Humanos 215-235 (2013)
12
Brasil (2008) apud Maués, 2013, p. 218
232 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

jusnaturalismo e positivismo. “A Constituição passa a ser encarada como um


sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapo-
sitivos, no qual as ideias de justiça e de realização dos direitos fundamentais
desempenham um papel central.”13
Assim, como descrito na Declaração de Caracas, documento que data 14
de novembro de 1990 e foi o marco latino-americano no comprometimento
na reforma nos cuidados de saúde mental na América firmado em ocasião
de evento convocado pela OPAS/OMS na Conferência Regional para a Rees-
truturação da Assistência Psiquiátrica dentro dos Sistemas Locais de Saúde,
pede-se que os Estados fixem um eixo assistencial de respeito e dignidade ao
usuário do sistema de saúde homologados em legislação que honre os com-
promissos internos e internacionais.14 Estes termos aduzem princípios e aqui é
válido frisar o que significa princípios e a fonte de sua normatividade. Barroso
nos ilumina no assunto da seguinte forma:

Quanto ao conteúdo, destacam-se os princípios como normas que identifi-


cam valores a serem preservados ou fins a serem alcançados. Trazem em si,
normalmente, um conteúdo axiológico ou uma decisão política. Isonomia,
moralidade, eficiência são valores. Justiça social, desenvolvimento nacional,
redução das desigualdades regionais são fins públicos.15

Logo, no que concerne ao dilema da internação compulsória, é preciso


reunir algumas informações relevantes sobre sua adoção no Brasil e as críticas
à ela feita:

I. A Lei da Reforma Psiquiátrica (lei 10.216/2001) é a culminação do movi-


mento anti-manicomial, e em seu texto ela trás expressamente que seu obje-
tivo é a implantação do sistema assistencialista de cuidados à saúde mental,
e nos incisos VII e IX determina que o tratamento deve ser feito pelas for-
mas menos invasivas possíveis, priorizando sempre o modelo comunitário.
II. Em 2012, doze agências da ONU, incluindo a OMS, emitiram um co-
municado conjunto pedindo que todos os Estados-membros fechassem ime-
diatamente todos os centros de detenção e reabilitação compulsórios, e na
impossibilidade da execução imediata dessa medida, os países priorizassem

13
BARROSO, Luís Roberto. BARCELLOS, Ana Paula. O COMEÇO DA HISTÓRIA: A NOVA IN-
TERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E O PAPEL DOS PRINCÍPIOS NO DIREITO BRASI-
LEIRO. Revista da EMERJ, v. 6, n. 23, 2003.
14
6. “Que as organizações, associações e demais participantes desta Conferência se comprometam so-
lidariamente a advogar e desenvolver, em seus países, programas que promovam a Reestruturação da
Assistência Psiquiátrica e a vigilância e defesa dos direitos humanos dos doentes mentais, de acordo com
as legislações nacionais e respectivos compromissos internacionais.” Declaração de Caracas (1990).
15
BARROSO, op. cit., 2003., p. 35.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 233
os serviços comunitários de saúde e incentivassem a voluntariedade, e que a
utilização da internação compulsória deve ser excepcional, em casos plena-
mente justificados e temporários, resguardando sempre os direitos humanos
previstos em legislação internacional.16
III. Dignidade da pessoa humana é a fundamentação jurídica das recomen-
dações de órgãos internacionais especializados em saúde, bem como a da
própria lei interna, 10.216/2001. Sob o enfoque constitucional, o principal
princípio normativo da Carta Maior do Estado Brasileiro é precisamente
esta dignidade humana, que nas suas muitas formas, se traduz no seu Art.
196 que trata da saúde como um “direito de todos e dever do Estado”17

A entidade jurídica que permite a internação compulsória não só tem sido


uma violação do Estado contra suas próprias instituições jurídicas, como sua
construção legislativa para fortalecimento de redes de saúde assistenciais, mas
também um deliberado descumprimento diante dos seus compromissos firma-
dos em encontros internacionais, mas que tratam de temas que pertencem à
comunidade global. O próprio fato de o Brasil não ter feito uso de sua emenda
constitucional nº 45, que permite que convenções internacionais possam ter
valor de emenda desde que transpassada pelo mesmo rito a esta cabível, com a
única excepcionalidade do Estatuto do Deficiente, em contrapartida a todos os
demais países anuentes da América Latina, comprova o desapreço do País pelo
fluxo jurídico supranacional, causando danos diretos e certos ao indivíduo que
ser ver derrotado no defronte com a tão pesada mão do Estado.
Quando o Estado descaracteriza seu caráter democrático com a justifica-
tiva de proteção da vida, sem mais informações além do critério subjetivo, está
fomentando a ferveção do despotismo social, uma vez que o contrato social
no qual se sustenta a própria existência do ente estatal se ver ameaçado. O
fato é que, o uso de drogas se reflete em criminalidade e insegurança, materia-
lizando uma erosão na confiança do povo nas instituições do Estado, mas as
estatísticas e levantamentos científicos que se tem registrados hoje são provas
de que esses são alguns dos sintomas de um Estado enfraquecido, e que, em
mesma medida, as intervenções compulsórias são atitudes endossadas quando
a linha entre o caos e a ordem estão borradas.

CONCLUSÃO

Aduz-se com o visto, que o Brasil tem sido agente ativo na regressão dos
direitos humanos consagrados internacionalmente fazendo uso abusivo de sua

16
JOINT STATEMENT. Compulsory Drug Detention and Rehabilitation Centers. Março 2012.
17
Constituição da República Federativa do Brasil (1988).
234 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

legitimidade interventora na órbita da liberdade de seus cidadãos. A previsão


legal da intervenção compulsória a classifica como método excepcional, visto
que a lei existe como ferramenta de transição e adequação aos novos parâme-
tros da assistência de saúde mental.
Diversos outros tratamentos que visam reinserir os dependentes quími-
cos na sociedade e que não necessitam de judicialização para serem aplicados,
são utilizados com maiores registros de eficácia a despeito da internação com-
pulsória, mencionaremos alguns deles abaixo.
O Centro de Assistência Psicossocial (Caps ad) é uma modalidade de
serviços criada para atender de forma intensiva as pessoas com um sofrimento
psíquico considerado intenso e, em geral, persistente.18 O programa é regula-
do pela Portaria 336 do Ministério da Saúde e é bastante inovadora na suas
abordagens que transcendem os tratamentos e saúde e investem em programas
culturais para seus usuários.
Constelação Familiar que consiste em uma técnica terapêutica, desenvol-
vida pelo terapeuta e filósofo alemão Bert Hellinger, que visa usar de pessoas
ou bonecos que criem uma encenação diante dos sujeitos que são objetos da
terapia para que sintam compelidos a observar sua própria história com o
ponto de vista de um expectador e, dessa forma, despertando para as feridas
psicológicas familiares.
Outra modalidade de tratamento que não necessitam de intervenção ju-
dicial acontece nos Grupos de Autoajuda. No País, temos os Alcoólicos Anô-
nimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA), reúnem pessoas que sofrem dos
mesmos problemas para compartilhar experiências e procurar apoio umas nas
outras. Elas fazem círculos onde discutem sobre suas experiências e anseios,
buscando ajudas mútuas. O grupo se mantém em sigilo, pois a sociedade
ainda tem mantêm uma visão estigmatizada em relação aos doentes crônicos.
A psicoterapia também é um método extrajudicial de tratamento aos to-
xicômanos e visa a ressocialização dos mesmos. Essa terapia tem o objetivo de
resolver as questões vinculadas a comportamentos que se originam em traços
emocionais e sociais do dependente. Dessa forma, inclui os relacionamentos
familiares, os amigos e pessoas próximas.
Seguindo o movimento inaugurado pelo Novo Código de Processo Ci-
vil, a Justiça brasileira tenta acompanhar o movimento mundial para que se
instaure uma nova cultura de resolução de conflitos nas esferas extrajudiciais,
deixando esta reservada para os casos onde seja efetivamente necessária a apli-
cação da jurisdição Estatal e sua prerrogativa de “dizer o direito”. No âmbito
da internação compulsória, que se observa como uma medida contundente

18
GIOVANELLA, Ligia (org). Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil./ et al . – Rio de Janeiro: Editora
FIOCRUZ, 2008. p. 749.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 235
do poder investido na figura paternal do Estado, entre críticas que desafiam o
caráter legítimo da medida, sua eficácia no plano social e sua bandeira diante
dos compromissos internacionais do Brasil, há uma última que se refere ao
desenvolvimento deste estudo por si, já que os entes estatais não possuem
dados oficiais, apurados e atualizados do quantitativo dos indivíduos que pas-
saram, ou estão passando, por uma internação em caráter compulsório. Isso
é uma demonstração latente da desorganização administrativa e da falta de
consonância entre os Poderes, visto que bastaria um projeto de colaboração
entre os tribunais que dão procedência a este tipo de demanda e os órgãos de
fiscalização administrativa da saúde para que fosse feito o levantamento desses
preciosos dados.
A internação compulsória possui limbos que tomam uma face dolorosa
quando vivenciados na prática desde os operadores do direito que se defron-
tam com famílias desesperadas e que estão igualmente sem apoio estatal, para
que resolvam a situação degradante de seus entes. O que traduz na realidade o
que aqui se apresentou em teoria. É necessário que o Estado encoraje-se e abra
o debate a cerca do que tem sido feito e o que é necessário fazer para que os
dependentes químicos não necessitem de uma intervenção compulsória e que
para isso, se considere em mais alto grau os compromissos de ordem interna-
cional que foram firmados em vista de proteger valores humanos.

REFERÊNCIAS

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5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas emendas constitucionais nº 1/92 a 672010 e pelas emendas
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parte integrante o anexo Estatuto da Corte Internacional de Justiça, assinada em São Francisco, a 26 de junho de
1945, por ocasião da Conferência de Organização Internacional das Nações Unidas.
GIOVANELLA, Lígia. Políticas E Sistemas De Saúde No Brasil./ Organizado por Lígia Giovanella, Sarah
Escorel, Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato, et al. – Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2008.
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e os procedimentos de notificação da Comunicação das IPI e IPV ao Ministério Público pelos estabelecimentos
de saúde, integrantes ou não do SUS.
Portaria n.º 2391/GM Em 26 de dezembro de 2002. Regulamenta o controle das internações psiquiátricas
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Capítulo 15
A Liberdade Religiosa dos
Refugiados e o Multiculturalismo
Fabiana Costa Lima de Sá
Rogério da Silva e Souza
Sarah Dayanna Lacerda Martins Lima

1. INTRODUÇÃO

Atualmente, grande parte dos países do mundo árabe, assim como do


continente africano, encontra-se imersa em conflitos internos1, os quais en-
volvem massacres, sequestros, destruição e limpeza étnica. Em busca de condi-
ções de sobrevivência em outros países, principalmente da Europa, milhões de
indivíduos cruzam fronteiras em fuga, arriscando suas vidas, tal como Aylan
Kurdi, menino sírio-curdo de 3 anos que morreu afogado na costa da Turquia,
enquanto utilizava a rota Bodrum-Kos2, assim como fazem milhares de outras
pessoas. A imagem de seu corpo, deitado de bruços na areia da praia, comoveu
o mundo e se transformou em símbolo da crise dos refugiados3.

1
E.g: Na Síria, a guerra civil teve início em 2011 e os conflitos entre o Exército Nacional e diversos gru-
pos rebeldes ainda persistem, deixando o país em situação catastrófica. Em junho de 2015, a Comissão
de Investigação Independente para a Síria denunciou ataques indiscriminados contra a população civil,
tanto por forças do governo quanto dos grupos rebeldes. (NAÇÕES UNIDAS. Centro de Notícias. Síria:
Comisión Investigadora denuncia ataques contra civiles por fuerzas del gobierno y la oposición.
2015. Disponível em: << http://www.un.org/spanish/News/story.asp?NewsID=32676#.V1M6upEr-
LIU>> Acesso em: 4 jun. 2016) No Afeganistão, os combates entre grupos rebeldes e o Exército têm
se intensificado desde que as forças da OTAN deixaram o país (em 2013, as forças francesas e, no fim
de 2014, as forças britânicas e norte-americanas), provocando um aumento no número de vítimas civis
no decorrer do último semestre de 2015. Assim como no Afeganistão, a saída das forças norte-ameri-
canas não colaborou para melhorar a situação do Iraque. Este país está entregue a uma sangrenta guerra
civil entre sunitas e xiitas que já dura mais de dois anos, e a população enfrenta desafios humanitários,
como deslocamentos forçados, destruição de casas e dificuldade de acesso a assistência humanitária.
(ONU. Centro de Notícias. Oficial da ONU alerta para a necessidade de financiamento a resposta
humanitária no Iraque. 2016. Disponível em: << https://nacoesunidas.org/oficial-da-onu-alerta-para-
necessidade-de-financiamento-a-resposta-humanitaria-no-iraque/>> Acesso em: 4 jun 2016.)
2
A rota Bodrum (Turquia) – Kos (Grécia) é a mais curta – mas não menos perigosa – utilizada pelos
emigrantes da Ásia Ocidental para atingir a Europa a partir das ilhas gregas.
3
Diversos jornais e sites de notícias de todo o mundo publicaram matérias sobre a morte do menino
sírio, Aylan Kurdi. Vide: HURTADO, Luís Miguel. Cinco sueños infantiles varados en la playa. In:
238 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Não é a primeira vez que o mundo presencia a magnitude dos efeitos de


uma crise migratória. Apesar de alguns indicarem a existência de refugiados
no Egito Antigo, a problemática que envolve seres humanos que buscam pro-
teção em outro território, em função de sofrerem perseguições, teve seu apa-
recimento, de forma mais sistemática, no século XV.4 No que toca à contem-
poraneidade, pode-se afirmar que Ásia, África, América Latina e Europa têm
experimentado este problema há décadas. No início do século XX, a guerra dos
Balcãs obrigou milhares de refugiados da Bósnia e Herzegovina a se distribuí-
rem por diferentes países europeus. Com o fim da Segunda Guerra Mundial,
milhões de pessoas vagavam entre os países devastados. Durante a guerra de
Bangladesh, em 1971, a Índia também vivenciou uma crise de refugiados.
Na década de 1980, houve a intensificação da crise migratória na América
Central: o número de refugiados guatemaltecos no México aumentou conside-
ravelmente, e países como Honduras e Costa Rica aumentaram a recepção de
refugiados vindos, principalmente, de El Salvador, Guatemala e Nicarágua.5
Estas graves perturbações internacionais deram lugar ao surgimento de um
conjunto de normas de proteção aos refugiados.
Como agravante, os atentados terroristas efetuados, desde 2001, em diver-
sas metrópoles, como Nova York, Madri, Londres, Paris e Bruxelas, influen-
ciaram na mudança de posicionamento de alguns países acerca da entrada e
permanência de estrangeiros em seus territórios, surgindo daí uma tendência
ao fechamento de fronteiras como meio de garantir a segurança nacional e
combater o terrorismo, em nome da ordem pública e da soberania estatal.6

El Mundo, 3 set. 2015. Disponível em: << http://www.elmundo.es/internacional/2015/09/02/55e6e-


14022601d69368b458e.html>> Acesso em: 4 jun. 2016; HOMANS, Charles. The Boy on the bea-
ch. In: The New York Times, 3 set. 2015. Disponível em: << http://www.nytimes.com/2015/09/03/
magazine/the-boy-on-the-beach.html?_r=0>> Acesso em: 4 jun. 2016; COLON, Leandro. Foto de
menino refugiado morto na praia atrai atenção para crise. In: Folha de São Paulo, 3 set. 2015. Dis-
ponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/09/1677028-foto-de-menino-refugiado-mor-
to-na-praia-atrai-atencao-para-crise.shtml> Acesso em: 5 jun. 2016; LE MONDE. “Mes enfants m’ont
glissé des mains”, raconte le père du garçon noyé. 3 set. 2016. Disponível em: <http://www.lemon-
de.fr/europe/article/2015/09/03/la-photographe-de-l-enfant-syrien-noye-temoigne_4745032_3214.ht-
ml?xtmc=aylan_kurdi&xtcr=69> Acesso em: 5 jun. 2016.)
4
Em 1492, a política de europeização do reino unificado de Castela e Aragão levou a expulsão da popu-
lação apátrida, que contabilizava 2% da população total. Vide: JUBILUT, Liliana Lyra. O Direito In-
ternacional dos Refugiados e sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro. São Paulo: Método,
2007, p. 23.
5
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado; PEYTRIGNET, Gérard; RUIZ DE SANTIAGO, Jaime. As
três vertentes da proteção internacional dos direitos da pessoa humana: Direitos Humanos, Direito
Humanitário e Direito dos Refugiados. San José; Brasília: ACNUR, 1996, p. 279.
6
BALBINO, Michelle Lucas Cardoso; LIMA, Sarah Dayanna Lacerda Martins; LIMONGE, Katherine.
Crônicas da atualidade do direito internacional. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 13, n. 3,
2016 p. 8.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 239
De acordo com do Relatório sobre Liberdade Religiosa no Mundo da 7

Fundação AIS, apresentado em Lisboa no ano de 2016, o hiper-extremismo


tem sido um fator-chave para a explosão de refugiados em países como Síria,
Afeganistão e Somália. Ademais, tal relatório afirma que, no Ocidente, a en-
trada maciça de refugiados, majoritariamente de uma fé diferente das comu-
nidades nativas, teria como consequência a diminuição da liberdade religiosa
neste continente, a partir do aumento de grupos populistas e da discriminação
de violência contra religiões minoritárias. Os ataques antissemitas também já
teriam aumentado nos países europeus.8
Neste contexto, o intenso fenômeno migratório e, principalmente, a crise
de refugiados enfrentada pela sociedade internacional desde 2016, impulsiona
a reflexão sobre um possível diálogo entre diferentes religiões visando uma
convivência pacífica pautada na tolerância recíproca, no respeito à diversi-
dade. A presente pesquisa propõe, assim, uma discussão acerca de como se
chegar a um consenso sobre o respeito mínimo à dignidade humana, como
concepção universal, considerando as diferentes opções religiosas existentes. O
objetivo é propor uma reflexão sobre a liberdade religiosa, enquanto direito
humano, dos que migram em função de perseguições em seu próprio país.
Para tanto, desenvolveu-se pesquisa bibliográfica em livros e artigos cien-
tíficos publicados em torno da matéria. O estudo foi desenvolvido tendo por
base a doutrina do Direito Internacional e dos Direitos Humanos.
A fim de alcançar o objetivo proposto, primeiramente, precisa-se compreen-
der a atual concepção de direitos humanos, bem como o conceito de refugiado e o
aparato jurídico responsável por sua proteção internacional; em seguida, abordar
os conceitos de universalismo e de relativismo cultural; para, depois, verificar a
possibilidade de se universalizar a liberdade religiosa, enquanto direito humano.

2. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO ACERCA DO DIREITO


INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

Os direitos humanos são, no decorrer dos fatos históricos, produto de


um momento amplo de reflexão sobre os valores essenciais humanos, sobre
os valores e os princípios fundamentais e inerentes a todos os homens por tão
somente serem seres humanos.9
7
O relatório, elaborado pela Fundação Pontifícia ACN (Ajuda à Igreja que Sofre) a cada dois anos, avalia
questões relacionadas com a liberdade religiosa de todos os grupos religiosos em 196 países. É publicado
em inglês, holandês, francês, alemão, italiano, português e espanhol.
8
ACN BRASIL. Liberdade Religiosa no Mundo: Sumário Executivo 2016. ACN: 2016. Disponível em: <<
http://www.acn.org.br/images/stories/RLRM2016/pDFs/SumarioExecutivo.pdf>> Acesso em: 20 out. 2017.
9
TEÓFILO, Anna Mayra Araújo e BRAGA, Romulo Rhemo. In: XXIII Congresso Nacional do CONPE-
DI. Direitos Humanos e Multiculturalismo como horizontalização da Justiça Internacional no Sé-
culo XXI. João Pessoa: CONPEDI/UFPB, 2014, p. 226.
240 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

O conceito de direitos humanos é uma criação da cultura ocidental, é um


conceito criado; portanto, é um produto da cultura ocidental. Então, como
entender a universalização dos direitos humanos, já que são apenas declarados
considerando o ponto de vista ocidental? Como falar na universalização dos
direitos humanos? Considerando apenas o ponto vista ocidental? E a liber-
dade religiosa, enquanto direito humano do ponto de vista ocidental, como
garantir a sua universalização e a sua implementação?
O Direito Internacional dos Direitos Humanos surge depois da Segun-
da Guerra Mundial, no século XX; os Estados Soberanos passaram a refletir
acerca das atrocidades praticadas pelo nazismo e celebraram acordos com o
propósito de assegurar os direitos do homem e consequentemente punir os
países violadores desses direitos. Assim, surgiu a ONU (Organização das Na-
ções Unidas), a ONU é uma instituição criada para garantir a paz mundial,
para assegurar a proteção aos direitos humanos.
Flávia Piosevan10 ressalta que ao “[...] cristalizar a lógica da barbárie, da
destruição e da descartabilidade da pessoa humana, a Segunda Guerra Mun-
dial simbolizou a ruptura com relação aos direitos humanos, significando o
pós-guerra a esperança de reconstrução destes mesmos direitos”.
A ideia de proteção dos direitos humanos passa a ser vista como de in-
teresse internacional e não como meramente de interesse interno dos Estados
Soberanos. “Prenuncia-se, deste modo, o fim da era em que a forma pela qual
o Estado tratava seus nacionais era concebida como um problema de jurisdi-
ção doméstica, decorrência de sua soberania”.11
A conscientização da capacidade de destruição do homem verificada nas
grandes tragédias que assolaram a humanidade, em pleno Século XX, impul-
sionou o surgimento de um sistema internacional que vise à proteção dos
direitos humanos.
Em 10 de dezembro de 1948, com a Declaração dos Direitos Humanos,
proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, esses direitos passam a
ser vistos como universais e indivisíveis. Universais porque são direitos ine-
rentes a pessoa humana; todos os seres os humanos são sujeitos desses direitos,
todos os seres humanos são portadores de dignidade humana.
Indivisíveis porque formam uma unidade, “[...] interdependente e inter-
-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos ao ca-
tálogo de direitos sociais, econômicos e culturais”12. O rol de direitos civis

10
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. Caderno de Direito
ConstitucionalEMAGIS, 2006, p. 7. Disponívelem<http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/flavia-
piovesan/piovesan_dh_direito_constitucional.pdf>. Acesso em: 14 de mai. 2017
11
PIOVESAN Idem, p.8.
12
PIOVESAN Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. Caderno de Direito
ConstitucionalEMAGIS, 2006, p. 7. Disponívelem<http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/flavia-
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 241
e políticos está unido ao rol de direitos sociais, econômicos e culturais. Em
1993, com a Declaração dos Direitos Humanos de Viena a concepção contem-
porânea dos direitos humanos, como universais e indivisíveis, foi reforçada.
A partir da globalização foi viável a “[...] organização e concretização dos
diversos organismos de defesa e proteção internacional dos direitos humanos
[...]” e diante da verificação de que os direitos do homem diferenciavam-se de
país para país “[...] inicia-se a cobrança de um padrão universal dos direitos
humanos, a partir de uma espécie de núcleo duro, ou padrão mínimo, possui-
dor dos direitos tidos como essenciais a todos os seres humanos, apenas por
serem humanos”.13

3. A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DOS


REFUGIADOS EM ÂMBITO INTERNACIONAL

A proteção dos refugiados foi estabelecida como missão primordial do


Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, o qual foi constituído
para assistir, entre outros indivíduos, aqueles que esperavam para retornar aos
seus países após a Segunda Guerra. Foi justamente no seio das ações do AC-
NUR que o texto da Convenção das Nações Unidas Relativa ao Estatuto14 dos
Refugiados - CRER começou a ser elaborada.15
A CRER, também conhecida como Convenção sobre Refugiados, foi
adotada em 1951, entrando em vigor em 22 de abril de 1954, apresentando-se
como a Carta Magna do Direito Internacional dos Refugiados. Ela está emba-
sada no artigo 14 da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, o
qual estabelece que “toda pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procu-
rar e de beneficiar-se de asilo em outros países.”16
O artigo 1º, A, 2 da Convenção dos Refugiados estabelece que o termo
refugiado se aplicará a qualquer pessoa:

Que, em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de


1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade,

piovesan/piovesan_dh_direito_constitucional.pdf>. Acesso em: 14 de mai. 2017


13
TEÓFILO, Anna Mayra Araújo e BRAGA, Romulo Rhemo . In: XXIII Congresso Nacional do CONPE-
DI. Direitos Humanos e Multiculturalismo como horizontalização da Justiça Internacional no Sé-
culo XXI. João Pessoa: CONPEDI/UFPB, 2014, p. 229.
14
Na tradução de tal nomenclatura da língua inglesa, qual seja Convention on the Status of Refugees, para o
português, altera-se o vocábulo status (atribuição de uma qualificação jurídica) por estatuto. No entanto, cabe
ressaltar, que o refúgio é um instituto jurídico, não se confundindo, em momento algum, com um estatuto.
15
BALBINO, Michelle Lucas Cardoso; LIMA, Sarah Dayanna Lacerda Martins; LIMONGE, Katherine.
Crônicas da atualidade do direito internacional. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 13, n. 3,
2016, p. 9.
16
ONU. Assembleia Geral das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948.
242 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionali-


dade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção
desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual
tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não
pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.17

De acordo com a Convenção, o estatuto jurídico de refugiado deve


ser aplicado sem qualquer tipo de discriminação e não deve haver nenhu-
ma diferenciação no tratamento dos indivíduos em função de pertença
cultural ou étnica. No entanto, a CRER apresentava, de início, duas limi-
tações: uma temporal, visto que seu texto previa que a aplicação de seus
dispositivos dar-se-ia apenas às pessoas cujos acontecimentos catalisadores
da necessidade de proteção houvessem ocorrido antes de 1º de janeiro de
1951; e outra geográfica, fazendo menção aos locais de ocorrência dos
acontecimentos que ocasionaram a necessidade do refúgio (somente na
Europa, ou na Europa e em outros locais). Para contornar tais deficiên-
cias, em 31 de janeiro de 1967, foi aprovado em Nova York, o Protocolo
Relativo ao Estatuto de Refugiados - PRER. Este documento, que somado
à CRER constitui o núcleo normativo central da proteção universal dos
refugiados, eliminou tais limitações.
A CRER proíbe a expulsão e o regresso forçado das pessoas que be-
neficiam do estatuto de refugiado. Nos termos do artigo 33º, “nenhum
dos Estados Contratantes expulsará ou repelirá um refugiado, seja de que
maneira for, para as fronteiras dos territórios onde a sua vida ou a sua
liberdade sejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade,
filiação em certo grupo social ou opiniões políticas”, configurando o cha-
mado princípio do non refoulement. Outras disposições referem-se a deter-
minados direitos dos refugiados a serem garantidos pelos Estados, como
o acesso aos tribunais, educação, segurança social, habitação e, também, a
liberdade religiosa.
No que toca à religião, o artigo 4º da CRER deixa claro que “os Estados
Contratantes proporcionarão aos refugiados em seu território um tratamento
ao menos tão favorável quanto o que é proporcionado aos nacionais no que
concerne à liberdade de praticar a sua religião e no que concerne à liberdade
de instrução religiosa dos seus filhos.” Isso significa que a liberdade religiosa
do indivíduo classificado como refugiado deve ser garantido pelo Estado que
o recepcionar.
A Convenção também estabelece que, em regra, os refugiados não podem
ser penalizados por imigração ilegal ou por violação à lei de nações anfitriãs.
17
ONU. Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Convenção das Nações Unidas Relati-
va ao Estatuto dos Refugiados. 1951.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 243
4. OS DIREITOS HUMANOS ENTRE O UNIVERSALISMO E O
RELATIVISMO

A internacionalização dos direitos humanos abriu espaço para o surgi-


mento de duas posições: o universalismo e o relativismo. O universalismo
estabelece um padrão de direitos humanos universais; todos os seres humanos
são portadores dos direitos humanos independentemente dos costumes, cul-
tura, tradições, crença.
Todas as pessoas, por tão somente serem seres humanos, são portadores
de direitos humanos. A dignidade humana é indissociável do ser humano e
dela decorrem os direitos humanos como valores universais; os direitos hu-
manos são reconhecidos como direitos universais. São direitos de todos inde-
pendentemente de sua nacionalidade e de sua cultura. “Toda construção de
direitos humanos vivenciada na atualidade é fundamentada na lógica euro-
peia, ocidental, oriunda da Revolução Francesa que foi sendo reconstruída e
retrabalhada até 1948, quando é declarada a Declaração Universal dos Direitos
do Homem”.18
Assim, a crítica mais contundente ao universalismo cultural é a de que
a cultura ocidental termina por se impor às demais culturas. E a liberdade
religiosa, considerada como direito humano, é direito da cultura ocidental
que se impõe às demais culturas? Sim, para os críticos do universalismo seria
uma imposição ocidental, pois os direitos humanos são considerados impos-
tos pelo ocidente ao resto do mundo.
O relativismo se apoia na ideia da manutenção das identidades culturais;
os seus adeptos defendem que as diferentes culturas devem ser respeitadas e
que não é possível estabelecer direitos humanos universais. O relativismo se
contrapõe à universalidade dos direitos humanos.
A concepção universal dos direitos humanos é um padrão ocidental im-
posto para as demais culturas, um modelo imposto para todos os locais do
mundo. O relativismo não aceita a ideia da titularidade dos direitos humanos
pelo fato tão somente de ser humano.“E eis que surge o grande problema
enfrentado pelos relativistas: é que não há como existir direitos humanos uni-
versais se as diferentes culturas apresentam práticas e costumes que lhes são
particulares, peculiares”.19
Para os relativistas não há um padrão a ser estabelecido sobre o que é cer-
to e sobre o que é errado, o que existem são posicionamentos diferentes sobre

18
TEÓFILO, Anna Mayra Araújo e BRAGA, Romulo Rhemo . In: XXIII Congresso Nacional do CONPE-
DI. Direitos Humanos e Multiculturalismo como horizontalização da Justiça Internacional no Sé-
culo XXI. João Pessoa: CONPEDI/UFPB, 2014, p. 230 .
19
TEÓFILO e BRAGA, Idem.
244 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

a mesma realidade. A noção do que é correto e do que é errado é relativa, pois


depende da visão de vida de cada comunidade.20
No relativismo todas as culturas são aceitas, tudo é aceito, tudo pode. As
várias culturas são aceitas e cada uma impõe seus valores, suas regras de vida
ainda que uma vise acabar com a outra, vise exterminar a outra. “Os relativistas
não acreditam na possibilidade da existência desse mínimo ético de dignidade,
isso porque, obviamente, para eles, o conceito de dignidade é relativo [...]”.21
Para Anna Mayra Araújo Teófilo e Romulo Rhemo Braga22 a proble-
mática do universalismo diz respeito a não utilização do diálogo entre di-
ferentes culturas “[...] impedindo, portanto, de se levar em consideração,
na estrutura e organização dos direitos humanos, valores verdadeiramente
universais como os orientais, teleológicos, com influência de outras religiões
que não apenas o cristianismo [...]”.
E do relativismo exagerado faz-se nascer o fundamentalismo que não
aceita o diálogo intercultural. Portanto, deve-se buscar um equilíbrio entre
as duas concepções que se contrapõem; deve-se buscar uma nova concepção
baseada no diálogo intercultural.
Nem o direito deve estar acima da cultura (visão abstrata dos direitos hu-
manos); nem a cultura deve estar acima do direito (visão localista dos direitos
humanos). O dilema entre o “universalismo dos direitos” e a “aparente parti-
cularidade das culturas” deve ser superado; estas visões levam ao reducionismo
da realidade, delas “deriva um mundo desintegrado”.23
Assim, Joaquin Herrera Flores24 propõe uma visão complexa dos direitos
humanos, com “[...] a presença de múltiplas vozes, todas com o mesmo direito
a expressar-se, a denunciar, a exigir e a lutar [...]”; propõe “[...] uma concepção
democrática que prima pela participação e pelas decisões coletivas”.
A visão localista dos direitos humanos termina por gerar a mesma con-
sequência da visão abstrata, gera o universalismo, mas como ponto de desen-
contros, gera “[...] a separação entre nós e eles, o desapreço pelo outro [...]”.25
Joaquin Herrera Flores26 propõe “a racionalidade de resistência” com a
defesa do “universalismo de chegada ou de confluência”, para isso, rebate o
universal como ponto de partida (visão abstrata) e rebate o universal como

20
TEÓFILO e BRAGA, Idem.
21
TEÓFILO e BRAGA, Idem, p. 236.
22
TEÓFILO e BRAGA, Idem, p. 237.
23
FLORES, Joaquin Herrera. Direitos humanos, interculturalidade e racionalidade de resistência. Sequên-
cia –UFSC. Florianópolis, v.23, n.44, 2002. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/se-
quencia/article/view/15330>. Acesso em: 14 de mai. 2017, p.14.
24
FLORES, Idem, p.16.
25
FLORES, Idem, p. 20.
26
FLORES, Idem, p. 21.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 245
ponto de desencontros (visão localista). Deve-se se chegar a uma concepção
universal dos direitos humanos depois de um processo envolvido em con-
flitos, de um processo envolvido em discussões pautadas pelo diálogo, onde
haverá o entrelaçamento de propostas e não a superposição.
O autor propõe um diálogo intercultural, um universalismo de chegada
em que corresponderia ao entrelaçamento de diferentes culturas e não a super-
posição de uma cultura sobre outras, propõe a chegada ao universalismo pela
convivência dialógica entre diferentes culturas.

5. O UNIVERSALISMO DA LIBERDADE RELIGIOSA COMO


DIREITO HUMANO

A universalização e a implementação da liberdade religiosa, enquanto


direito humano, pode se dar através do que defende Flores. Pode se chegar a
um consenso sobre o respeito à dignidade humana, como concepção universal
(considerando, realmente, os valores universais e não apenas os impostos pelo
Ocidente e Cristianismo), em respeito as diferentes opções religiosas existentes
com a utilização do pensamento do autor.
O universalismo que se deve buscar não pode ser o de partida (defendido
pelos universalistas), não pode ser através da sobreposição de uma cultura,
sobreposição da concepção da liberdade religiosa. E nem pode ser o universa-
lismo como ponto de desencontros (defendido pelos relativistas), pois gera o
desprezo pelo outro, gera a separação entre o nós e eles. O relativismo exage-
rado gera o fundamentalismo, gera a aceitação de que tudo pode em nome de
uma religião, de uma cultura. Tudo pode ainda que uma religião vise acabar
com a outra, ainda que uma cultura vise acabar com a outra. O fundamenta-
lismo contraria o diálogo intercultural.
O universalismo da liberdade religiosa, enquanto direito humano, deve
ser de chegada, deve ser produto de um diálogo intercultural. Deve-se se
chegar ao universalismo e implementação da liberdade religiosa através
do entrelaçamento das diferentes culturas, através da convivência dialógica,
através de um processo envolvido em discussões dialógicas religiosas em que
não há a superposição, mas sim o entrelaçamento de diferentes culturas, de
diferentes religiões.
Boaventura de Sousa Santos27 ao tratar da globalização diferencia a “globali-
zação-de-cima-para-baixo da globalização de-baixo-para-cima” ou “globalização he-
gemónica da globalização contra-hegemônica”. Para o autor os direitos humanos

27
SANTOS, Boaventura de Sousa.Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica
de Ciências Sociais, n. 48, jun., 1997. Disponível em:<http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/
pdfs/Concepcao_multicultural_direitos_humanos_RCCS48.PDF>. Acesso em: 14 de mai. 2017, p 18.
246 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

podem ser concebidos como globalização hegemónica (localismo globalizado) ou


como globalização contra-hegemônica (cosmopolitismo).
Boaventura de Sousa Santos entende que a concepção dos direitos hu-
manos, enquanto direitos universais, leva ao localismo globalizado, ou seja,
à “globalização de-cima-para-baixo”. Propõe que os direitos humanos fun-
cionem como “globalização de-baixo-para-cima”, como cosmopolitismo ou
globalização “contra-hegemônica”. O autor propõe uma nova concepção dos
direitos humanos, uma visão multicultural dos direitos humanos .28
O autor mostra que existem diferentes concepções de dignidade humana
em culturas distintas e que ao longo do tempo “[...] foram sendo propostas
concepções não ocidentais dos direitos humanos, foram-se organizando diálo-
gos interculturais de direitos humanos [...]” e, assim, propõe uma concepção
cosmopolita, concepção emancipatória dos direitos humanos.29
Boaventura de Sousa Santos30 entende que o debate entre universalismo
e relativismo cultural deve ser superado, o autor propõe diálogos intercultu-
rais, diálogos sobre as concepções de dignidade humana. Entende que: “[,,,] as
pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os in-
ferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza [...]”.
No multiculturalismo diferentes tradições culturais e costumes convivem
em um mesmo espaço; no multiculturalismo prevalece o pluralismo ideológico,
ou seja, coexistem diferentes ideologias sobre o mesmo assunto. Possibilitando-
-se o diálogo entre diferentes culturas em busca de uma convivência pacífica.
No multiculturalismo coexistem culturas diversas no seio da mesma so-
ciedade. Há a aceitação de diversos pensamentos, há o convívio de diferentes
culturas, mas é estabelecido um critério mínimo para o diálogo entre as várias
tradições culturais em busca de uma convivência pacífica.
Quando o país receptor de imigrantes adota o multiculturalismo permi-
te-se que os imigrantes possam manter sua cultura, suas tradições, seus valores,
visões de vida e sua religião. No multiculturalismo há a aceitação de diversas
religiões, o convívio pacífico entre as várias religiões, portanto o respeito à
liberdade religiosa. Mas é estabelecido um critério mínimo para o diálogo ser
viável entre as várias religiões em busca da convivência pacífica.

6. E OS QUE TÊM FÉ SE REFUGIAM MULTICULTURALMENTE


PELO MUNDO

Uma das estações de metrô da cosmopolita capital paulista chama-se Armê-


nia, isso porque a comunidade asiática fragmentou-se pelo mundo, sobretudo

28
SANTOS, Idem, p. 18 e 19.
29
SANTOS, Idem, p. 19 e 20.
30
SANTOS, Idem, p. 30.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 247
em razão da intolerância turco-otomana, o que antecede ao contexto da Primeira
Guerra Mundial. Uma breve pesquisa no sítio eletrônico do Museu da Imigração,
a antiga hospedaria localizada no bairro da Lapa em São Paulo, registra uma cen-
tena de armênios que aportaram em terras brasileiras, a princípio por motivação
econômica ou mesmo social, e a despeito de número diminuto formaram uma
comunidade emergente, sobremaneira em Osasco, mas não há que se negar um
fundamento latente pela qual os armênios se dissiparam pelo mundo, vale dizer,
o caráter religioso.31
É de se destacar que os armênios se declararam cristãos enquanto na
compreensão que se tem hoje de Estado confessional e, por essa conversão
soberana, pagaram o preço da intolerância emergente, a qual historiadores
afirmam tratar-se do primeiro genocídio do século XX, e, por consequência,
uma manifesta dimensão multicultural étnico-linguística e religiosa se propa-
gara pelo mundo sob o segmento classificatório de refugiados.32
A questão, porém, é remota, basta compreender a matriz histórico-judai-
ca em que a diáspora do povo hebreu se dá à luz do Velho Testamento, e en-
quanto não se firmasse uma Israel perene e segura, o povo apátrida peregrinou
com sua cultura atávico-confessional, e prevalentemente econômica, a viver
pelos confins do mundo. 33 34
Mas sob o advento do Estado de Israel e a questão sionista surgem confli-
tos cíclicos, agora com o povo da Palestina35, dá-se o que a boa doutrina chama

31
É fato que as datas ali expressas no Museu da Imigração do Estado de São Paul (MI) o demandam o pe-
ríodo entre guerras, sobretudo a II Grande Guerra, em que, embora o manifesto genocídio tenha ocorrido
no primeiro quartel do século XX, o êxodo armênio se caracteriza como forma de organização crescente
neste período sobremaneira para a América. Afora os dados do MI, não é difícil empreender a chegada
de armênios informalmente pelo mundo. Veja-se os registros do MUSEU DA IMIGRAÇÃO. inci.org.
br. Disponível em: <http://inci.org.br/acervodigital/livros.php?pesq=1&nome=&sobrenome =&nacio-
nalidade=arm&chegada=& vapor-=&Reset2=Pesquisar>. Acesso em: 12/10/2017.
32
Vale ainda a leitura a respeito da organização armênia na capital paulista, sob o advento político e comu-
nicativo que se dera por meio da imprensa local conforme LOUREIRO, Heitor de Andrade Carvalho. “A
voz do povo armênio”: imprensa armênia em São Paulo (1940-1970). Escritos IX. P.183-219. Disponí-
vel em: “<http://www.casaruibarbosa.gov.br/escritos/numero09/cap_07.pdf>”. Acesso em 12/10/2017.
33
SOMBART, Werner. Os judeus e a vida econômica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: UNESP, 2014.
34
Curiosamente mesmo após a criação do Estado de Israel a tensão ainda continua ali mesmo é o que ex-
plica Claude Geffré: “Devo somente observar que, no caso do judaísmo, seu pecado de intolerância não
é tanto por invocar uma verdade revelada por Deus, mas por se ter a consciência de ser um Povo eleito,
com exclusão dos outros. E ainda hoje, desde a criação do Estado de Israel, as autoridades religiosas
do judaísmo têm muita dificuldade para gerir a tensão entre a justiça inerente à mensagem da Torá e o
direito ao uso da violência que todo Estado se dá para a sua própria defesa.” GREFFRÉ, Claude. De Ba-
bel a Petencostes: ensaios de teologia inter-religiosa. Trad. Margarida Maria Cichelli Oliva. São Paulo:
Paulus, 2013. (Coleção Dialogar). p.387.
35
Neste contexto, vale a pena fazer menção ao reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, em
dezembro de 2017, pelo Presidente norte-americano Donald Trump, o que colocou os Estados Unidos
em desacordo com o restante da sociedade internacional e acentuou os conflitos no Oriente Médio. Vide
248 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

de transplante do pecado do Ocidente para o Oriente. Por isso Boaventura


de Sousa Santos vai proferir: “Da Declaração de Balfour em 1917 à fundação
do Estado de Israel, da Guerra de 1967 ao subsequente desenrolar do conflito
israelense-palestino, muito sofrimento e humilhação injustos foram impostos
ao povo palestino com a cumplicidade ocidental”.36
Caso emblemático é o que se passa com os monges tibetanos e a persegui-
ção contumaz do governo chinês. O próprio Dalai Lama passa a ser um líder
espiritual do povo tibetano mesmo exilado na Índia por razões de segurança,
daí os conflitos de soberania e legitimidade do Tibete em face do governo
comunista da China, que a pretexto de escolher um Lama conveniente para o
governo intervencionista, acaba conduzindo ao espaço de indiferença a auto-
determinação tibetana e apropriação de seus mosteiros, e de seu espaço natural
e abundante de riquezas minerais.37
Por outro lado, o liberalismo enfrenta a crise da subjetividade humana,
a exemplo de um franco atirador em Las Vegas, que sem nenhum proposito
aparente, afronta toda a população a esmo. Por isso, é possível encontrar nas
democracias liberais, o espaço das liberdades, pela qual se envereda Charles
Taylor, em sua ética da autenticidade, assinalando que o mundo histórico
em que se vive está repleto de um individualismo radical, que é um autocen-
tramento, pela qual o conceito de bem comum parece desaparecer e então
fracassa o ideal crítico da modernidade, ao que acentua o filósofo canadense
Charles Taylor: “A liberdade moderna e a autonomia nos centram em nós
mesmos, e o ideal de autenticidade requer que descubramos e articulemos
nossa própria identidade”. 38
Por isso, o problema atual depara-se com a política do reconhecimento
em face do multiculturalismo, cuja questão fundamental é o respeito e o reco-
nhecimento às diferenças, vale dizer, a pertença a uma tradição cultural é tida
como um bem público primário, nesse sentido a base cultural é fundamental
na formação das identidades dos indivíduos.39 Não obstante, as duas éticas on-
tológicas, predicativas do bem por assim dizer, como a empática de Lévinas e
a do reconhecimento de Taylor, levam em consideração o grau de responsabili-
dade, que sob uma perspectiva estatal é possível conferi-las, mas, infelizmente,

LIMA, Sarah. A (im)parcialidade dos EUA no reconhecimento de Jerusalém como capital. O Povo,
Fortaleza, 16 dez. 2017. Disponível em: <https://www.opovo.com.br/jornal/opiniao/2017/12/sarah-lima
-a-im-parcialidade-dos-eua-no-reconhecimento-de-jerusalem.html> Acesso em: 25 jan. 2018.
36
SANTOS Boaventura de Sousa. Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. 2a.ed. São Paulo:
Cortez, 2014. p.121.
37
OSNOS, Evan. A era da ambição: em busca da riqueza, da verdade e da fé na nova China. Trad. Berilo
Vargas, Christina Baum. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
38
TAYLOR, Charles. A ética da autenticidade. Trad. Talyta Carvalho. São Paulo: É realizações, 2011.
p.85.
39
TAYLOR, Idem.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 249
o mesmo não se na ordem mundial, a exemplo do governo turco que nunca
admitiu o genocídio de armênios, como se disse alhures.
Um exemplo comum enfrentado pelos doutrinadores multiculturalistas
diz respeito ao Pacto Internacional dos Direitos Culturais, Econômicos e Sociais
contemplado em 16 de dezembro de 1966 pela Assembleia Geral das Organiza-
ções das Nações Unidas, e não raro, assinalam, de logo, o artigo 1º. da referida
Convenção pela qual os países podem expressar reservas. Com efeito, assinala
o primeiro dispositivo do Pacto: “Todos os povos têm direito à autodetermi-
nação. Em virtude deste direito estabelecem livremente sua condição política e
perseguem livremente o próprio desenvolvimento econômico, social e cultural”.
Ocorre que o certame da liberdade religiosa das minorias não se faz men-
ção nas políticas governamentais, e assim cria-se a tensão entre as liberdades
femininas, como o uso ou não do véu islâmico em espaços públicos ociden-
talizados, ou mesmo as mutilações genitais em países que não participam de
prática semelhante. É o caso mundialmente conhecido pela ativista e modelo
somali Waris Dirie, que levou sua voz ao mundo revelando as sujeições pela
qual as mulheres somalis sofrem em detrimento de suas vontades.40
Se por um lado as religiões e sectários argumentam pela liberdade reli-
giosa além de suas territorialidades originais, é de se ouvir, também, a voz
desses mesmos sectários no que se refere a (des)filiação dessas mesmas matrizes
religiosas, e, sobretudo a não-ingerência pelo Estado receptivo de estrangeiros
confessionais seja ou não pela condição de refugiados em suas manifestações
litúrgicas que não ofensivas, ou não desproporcionais às culturas do povo que
alberga. Assim é Lucetta Scaraffia coloca em questão o segmento da Santa Sé
no que se refere à condição de refugiados migrantes:

O Pontifício Conselho Pastoral para os Migrantes e os Itinerantes expressou-


-se com uma nota contra a difusão entre refugiados – por parte do Alto Co-
missariado das Nações Unidas para os Refugiados – de um manual de ‘saúde
reprodutiva’ que ‘transmite antivalores que ofendem a dignidade das popula-
ções mais pobres e vulneráveis com propostas que concernem à limitação dos
nascimentos, ao conceito não responsável das relações sexuais e, inclusive, ao
aborto’. Além disso, acusa sempre que ‘falta uma adequada atenção ao conhe-
cimento da cultura e da religião dos refugiados’. 41

Questões como essa levam em consideração a problemática existente en-


tre o exclusivismo secular e o que Peter L. Berger vai denominar de múltiplos
40
Vide: SANTOS, Camilla Guedes Pereira Pitanga, PIMENTEL FILHO, José Ernesto. Universalismo
e o relativismo: a mutilação genital feminina e o diálogo intercultural dos direitos humanos. Pensar.
Fortaleza, v. 20, n. 1, p. 31-60, jan./abr. 2015.
41
SCARAFFIA, Lucetta, ROCCELLA, Eugenia. Contra o Cristianismo: a ONU e a União Europeia
como nova ideologia. Trad. Rudy Albino de Assunção. Campinas: Ecclesiae, 2014. p.185.
250 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

altares da modernidade. Quer com isso dizer que mesmo em assentamentos


religiosos fragmentados pelo mundo a religião se pluraliza em variados espec-
tros, vale dizer, é a missa por videoconferência, liturgias em tempos distintos
das estações do ano dos países de origem, ou mesmo o sincretismo religioso
muito bem conhecido em plagas brasileiras, como a umbanda. Por isso nem
tanto a era secular como quer Charles Taylor, tampouco as religiões ortodoxas
e seus monismos em vias de pluralismo religioso. 42
Não obstante, enquanto a teoria tenta compreender os problemas hu-
manos, a paz humanitária vê-se ameaçada, posto que agora o paradoxo avan-
ça, verbi gratia, Myanmar que é a sede da solidariedade mundial segundo o
relatório da Charities Aid Foundation 201743, é intransigente com o povo
muçulmano que ali vive, expulsando-os em massa e estes por sua vez passam a
refugiar-se pelo mundo com seus multiculturalismos em tempos de intolerân-
cia fundamentalista.44

42
BERGER, Peter L. Os múltiplos altares da modernidade: rumo a um paradigma da religião numa época
pluralista. Trad. Noéli Correia de Melo Sobrinho. Petrópolis: Vozes, 2017.
43
É que se pode abstrair de CAF World Giving Indez 2107: a global view of giving trends (2017, p.6):
“For the fourth year running Myanmar tops the CAF World Giving Index The high proportion of
people donating money in Myanmar once again ensures its place at the top of the rankings. This is
likely due to the prevalence of small, frequent acts of giving in support of those living a monastic life-
style. However, Myanmar’s score is five percentage points lower than last year, when we reported its
highest ever score. We hypothesised that this high score may have been driven by a sense of optimism
ahead of the country’s first openly contested election for 25 years3 . In late 2015, the National League
for Democracy swept to power with Aung San Suu Kyi sworn in as the country’s de facto leader after
two decades of house arrest. However, transition from military dictatorship to civilian government is
proving extremely difficult. Conflict escalated in Myanmar during 2016, with allegations of serious
human rights abuses against the country’s displaced Rohingya Muslims being levelled by the United
Nations and other agencies”.
44
Vide em: MYANMAR: Solidariedade com a insurreição dos muçulmanos Rohingya! – Não ao Chauvi-
nismo Budista do Regime! Pelo Direito de autodeterminação nacional do povo Rohingya!. Disponível
em: <https://www.thecommunists.net/home/portugu%C3%AAs/solidariedade-com-rohingya/>. Acesso
em: 14/10/2017.: “1. Mais de 1.000 combatentes armados da minoria perseguida muçulmana Rohingya
de Myanmar lançaram uma onda de ataques contrapostos militares e policiais em mais de 25 locais
diferentes. O denominado Exército de Salvação Arakan Rohingya reivindicou a responsabilidade pelos
ataques. Afirmou que esses ataques reagiram a “um bloqueio [do município de Rathetaung no norte de
Rakhine, Ed.] Por mais de duas semanas, que está fazendo morrer de fome o povo de Rohingya. [...]. À
medida que se preparam para fazer o mesmo em Maungdaw[...] devemos eventualmente intensificar-nos
para afastar as forças colonizadoras birmanes “. (Al Jazeera, 26.8.2017). No mínimo menos 77 muçul-
manos Rohingya e 12 membros das forças de segurança foram mortos durante esses ataques, de acordo
com o regime.
2. Essas ações de guerrilha são o resultado do horrível tratamento dado aos muçulmanos Rohingya que
foram descritos pelas Nações Unidas “como a minoria mais perseguida do mundo”. Os muçulmanos
Rohingya são uma minoria étnica de cerca de 2 milhões de pessoas que sofreram perseguição sistemática
pelo regime de Myanmar desde muitas décadas. Principalmente localizado em Arakan (agora chamado
estado de Rakhine pelo regime) no noroeste do país, eles têm exigido independência ou pelo menos
autonomia desde o início de Myanmar (Birmânia) como um estado independente em 1948.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 251
CONCLUSÃO

O surgimento de um sistema internacional que vise à proteção dos direi-


tos humanos foi decorrência da conscientização da capacidade de destruição
do homem verificada nas grandes tragédias que assolaram a humanidade, em
pleno Século XX.
Com a Declaração dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia
Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, os direitos humanos
passam a ser vistos como universais e indivisíveis. Concepção essa que foi re-
forçada, em 1993, com a Declaração dos Direitos Humanos de Viena.
Da internacionalização dos direitos humanos surgem duas posições: o
universalismo e o relativismo. Um padrão de direitos humanos universais é
estabelecido pelo universalismo; segundo o universalismo todos os seres hu-
manos, por tão somente serem seres humanos, são portadores dos direitos
humanos independentemente dos costumes, cultura, tradições, crença.
Para o relativismo as diferentes culturas devem ser respeitadas e, portan-
to, não é possível ser estabelecido direitos humanos universais. O relativismo
se contrapõe à universalidade dos direitos humanos.
O universalismo é criticado porque termina por aceitar a imposição da cul-
tura ocidental às demais culturas, A concepção universal dos direitos humanos
é vista como um padrão ocidental imposto para as demais culturas, um padrão
imposto para todos os locais do mundo. A ideia da titularidade dos direitos
humanos pelo fato tão somente de ser humano não é aceita pelo relativismo.
No entanto, do relativismo exagerado faz-se nascer o fundamentalismo
que não aceita o diálogo intercultural. O relativismo exagerado gera a aceita-
ção de que tudo pode em nome de uma religião, de uma cultura. Tudo pode
ainda que uma religião vise acabar com a outra, ainda que uma cultura vise

3. Myanmar é um estado altamente multinacional com 135 grupos étnicos diferentes reconhecidos ofi-
cialmente pelo governo (e muitos mais que não são reconhecidos). Juntas, essas minorias constituem
pelo menos 32% da população (as maiores minorias são os muçulmanos Shan, Karen, Mon e Rohingya).
No entanto, o regime - que sempre foi capitalista, independentemente da sua ideologia pseudo-socialista
no passado – tem praticado uma política de opressão chauvinista contra as minorias nacionais e étnicas
(“Burmanização”) que se baseia na ideologia ultranacionalista da “ pureza” racial.
4. Em outubro de 1982, a ditadura militar introduziu a Lei de Cidadania da Birmânia que negou oficial-
mente a cidadania birmanesa aos muçulmanos Rohingya. É negado a eles o acesso à educação universi-
tária e aos empregos no setor público. Os Rohingya vivem em condições extremamente empobrecidas e
60% não possuem terra. Eles têm uma taxa de mortalidade infantil de até 224 óbitos por 1.000 nascidos
vivos, mais de 4 vezes a taxa para o resto de Myanmar! O regime nega a sua existência como uma mino-
ria étnica e alega que os muçulmanos Rohingya são imigrantes ilegais do Bangladesh. Como resultado,
o exército implementa uma política de limpeza étnica sistemática, resultando na expulsão de centenas
de milhares de muçulmanos Rohingya que atualmente vivem como refugiados em Bangladesh e em
outros países. Hoje, apenas 1,1 a 1,3 milhões de muçulmanos Rohingya ainda vivem em Mianmar. Eles
constituem cerca de 90% da população no norte do estado de Rakhine.”
252 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

acabar com a outra. Conclui-se que o fundamentalismo contraria o diálogo


intercultural.
Conclui-se que se pode chegar a um consenso sobre o respeito à dignida-
de humana, como concepção universal (considerando, realmente, os valores
universais e não apenas os impostos pelo Ocidente e Cristianismo), em respei-
to as diferentes opções religiosas existentes através de um diálogo intercultural.
Deve-se se chegar ao universalismo e implementação da liberdade reli-
giosa através de um processo envolvido em discussões dialógicas religiosas em
que não há a superposição, mas sim o entrelaçamento de diferentes culturas,
de diferentes religiões.
Com a concepção multicultural dos direitos humanos são aceitas as dife-
rentes religiões; o convívio pacífico entre as várias religiões é possível e, assim,
o respeito à liberdade religiosa. Mas é necessário o estabelecimento de um
critério mínimo para o diálogo ser viável entre as várias religiões em busca da
convivência pacífica através de um diálogo intercultural.

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Capítulo 16
A Reforma Psiquiátrica Brasileira à Luz do
Direito Internacional dos Direitos Humanos:
Reflexos do Caso Ximenes Lopes vs. Brasil
Antônio de Freitas Freire Júnior
Adson de Souza Queiroz
Zairo José De Albuquerque e Silva

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo terá como objeto o estudo do caso Ximenes Lopes vs.
Brasil, como a primeira condenação de mérito desse país frente a uma Corte
Internacional de Direitos Humanos, tendo como objetivo identificar quais os
reflexos do caso para a Reforma Psiquiátrica Brasileira a partir da criação de
políticas públicas voltadas à assistência da saúde mental no período de 1999,
ano de recebimento, em âmbito internacional, da carta-denúncia da morte de
Damião Ximenes Lopes e 2010, última supervisão de cumprimento de senten-
ça. Durante esse período, diversas políticas foram adotadas tendo como ob-
jetivo atender ao cumprimento total da sentença internacional, o que ajudou
consideravelmente para que a discussão da Reforma Psiquiátrica, movimento
este também conhecido como Luta Antimanicomial, começasse a dar frutos
práticos no Brasil.
O conceito moderno de Reforma Psiquiátrica começou a ser colocado
como pauta com a atuação de movimentos reformistas a partir dos anos 60,
que buscavam a substituição dos antigos manicômios por centros de integra-
ção, onde a pessoa que sofre com algum transtorno mental, ao ser internada,
pudesse ter a chance de usufruir de um tratamento humanizado, integrado
com a comunidade, ao contrário do que era posto em prática homogeneamen-
te, em que a pessoa era internada em leitos hospitalares à par da sociedade,
geralmente sendo submetido a violências físicas e verbais por profissionais
totalmente despreparados.
Até começarem a exigir novas práticas dentro do campo da assistência
à saúde mental, o sistema manicomial proliferou-se por diversos países do
ocidente, incluindo a Casa de Repouso Guararapes, em Sobral/CE, hospital
onde Damião Ximenes Lopes morreu e que, depois de uma autópsia onde
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 255
constatou-se as diversas lesões corporais que o mesmo sofreu e com a ajuda
das investigações feitas no caso na Corte Interamericana de Direitos Huma-
nos (CtIDH), foi permitido quantificar suas outras vítimas e como o Estado
brasileiro teve responsabilidade ao não gerir políticas públicas eficientes para
evitar as violações ocorridas.
O grau de importância desse estudo permeia a condenação em órbita
internacional de um país, por violação de uma gama de direitos garantidos
normativamente e qual sua influência para alterar o modo como tal Estado
até então tratava determinado problema. Fazendo o estudo de quais pautas
sobre direito à saúde mental eram importantes para a proteção pelo Sistema
Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) é que se pôde constatar a preo-
cupação em garantir os princípios básicos inerentes a todas as pessoas, incluin-
do aquelas acometidas de transtornos mentais, que veio a se construir desde
meados das décadas de 80 e 90, principalmente a partir de 1990 com a realiza-
ção da “Conferência Regional para a Reestruturação da Atenção Psiquiátrica
na América Latina” e a instituição da “Declaração de Caracas”, que tiveram
forte atuação dos órgãos componentes do Sistema Regional de Proteção dos
Direitos Humanos.
Para a realização da pesquisa, adotou-se o método dedutivo via revisão
literária no que concerne à legislação doméstica produzida antes e após a
sentença da CtIDH no caso Ximenes Lopes vs. Brasil, bem como, através do
estudo de caso, investigou-se intrinsecamente o trâmite processual do citado
caso na Corte. Por fim, foi realizada uma pesquisa qualitativa para identificar
a realidade da reforma psiquiátrica antes e após o caso Damião Ximenes.
A divisão metodológica dos tópicos se dará de modo a compreender a
importância do SIDH na efetivação dos direitos humanos e os princípios liga-
dos à saúde mental, tendo a atuação dos seus principais órgãos, investigando
o trâmite processual internacional do caso Ximenes Lopes vs. Brasil e o estudo
do lastro histórico da Reforma Psiquiátrica Brasileira para identificarmos os
reflexos do caso supracitado em suas mudanças, o que nos levou a quantificar
as políticas públicas adotadas pelo Estado brasileiro que ajudaram para desen-
volver a Reforma Psiquiátrica no país.

2. SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, as questões relativas a direi-


tos humanos em um plano internacional têm sido pautas de discussões entre
diversos Estados na concepção das novas demandas emergentes do contexto
pós-guerra. A Carta das Nações Unidas (1945) fez surgir uma consolidação do
compromisso que os Estados teriam em assumir um papel cooperativo na bus-
ca de se promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades
256 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

fundamentais para todos, sem quaisquer distinções1. Tal compromisso com a


universalidade dos direitos humanos foi reafirmado pela Declaração de Direitos
Humanos de Viena (1993)2 quando diz em seu inciso I, item 8, que “a comu-
nidade internacional deverá apoiar o reforço e a promoção da democracia, do
desenvolvimento e do respeito pelos Direitos Humanos e pelas liberdades fun-
damentais no mundo inteiro”.
Para a concepção de um direito internacional dos direitos humanos, foi
essencial a expansão de fenômenos como a mundialização, que auxiliou no
desenvolvimento dos direitos humanos dentro dos sistemas jurídicos domés-
ticos e internacionais a partir das novas formas de atuação dos Estados ao se
comprometerem em integrar suas normatizações nacionais com os tratados
internacionais que protegem direitos humanos3, e a ascensão de novos atores
jurídicos no plano internacional, como é o caso dos tribunais internacionais
e suas respectivas competências e regimes de atuação4.
A importância dos tribunais internacionais foi crescendo nas últimas
décadas. A Constitucionalização do direito internacional mostrou-se como
uma forma de garantir a unidade do direito internacional, sendo necessário
um processo de estruturação entre as normas que organizam as relações sociais
e a atividade política exercida pelos Estados. Sendo assim, no que concerne aos
direitos humanos, os tribunais internacionais tornaram-se sujeitos importan-
tes para a formação destas relações constitucionais no âmbito internacional a
partir dos resultados dos seus trâmites processuais5.
A partir desse contexto de expansão dos tribunais internacionais, foram
organizados Sistemas Globais e Regionais de Proteção de Direitos Humanos.

1
Artigo 1, item 3 da Carta das Nações Unidas (1945).
2
Sobre o tema, Cristina Figueiredo ressalta: “A declaração Universal dos Direitos Humanos apresenta-se
como um marco legal na fase de internacionalização dos Direitos Humanos, tornando-se um instrumento
universal, não apenas por reproduzir direitos que advém da própria natureza humana, com características
de abstração e de universalidade, por referir-se a homens e a mulheres, como fazia a Declaração Fran-
cesa e Inglesa e como constitucionalismo incipiente do Ocidente, mas assim, determina que incumbe
ao Estado colocar à disposição os meios materiais e implementar as condições fáticas que possibilitem
o efetivo exercício das liberdades fundamentais, exigindo-se uma postura positiva em prol dos direitos
ali consagrados” (TEREZO, Cristina Figueiredo. A atuação do Sistema Interamericano de Proteção
dos Direitos Humanos na defesa dos direitos econômicos, sociais e culturais. Tese (Doutorado) –
Universidade Federal do Pará, Belém, 2011, p. 32-33).
3
No caso do Brasil, tem-se como um exemplo de adoção de medidas incorporativas dos tratados interna-
cionais que versem sobre direitos humanos o Art. 109, § 5º da Constituição Federal de 1988.
4
GONTIJO, André Pires. Constitucionalismo compensatório como discurso em matéria de direitos
humanos: limites e possibilidades da interação dos julgamentos da Corte Interamericana de Direitos
Humanos com os Estados da América Latina. Brasília: UniCEUB, 2016, pág. 71.
5
GONTIJO, André Pires. Constitucionalismo compensatório como discurso em matéria de direitos
humanos: limites e possibilidades da interação dos julgamentos da Corte Interamericana de Direitos
Humanos com os Estados da América Latina. Brasília: UniCEUB, 2016, pág. 73-75.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 257
No caso das Américas, pôde-se vislumbrar a construção de um sistema regio-
nal a partir da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), assina-
da pelos países-membros6 da Organização dos Estados Americanos (OEA) em
22 de novembro de 1969 na cidade de San José da Costa Rica e entrou em
vigor no dia 18 de julho de 1978.
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), que teve suas
atribuições previstas pela Parte II da CADH, encontra-se situado, se tratando
de competência jurisdicional, em uma região marcada por democracias frágeis,
desigualdades sociais e um processo de justiça doméstica que desenvolve-se de
forma lenta no que diz respeito à garantia dos direitos humanos, por isso foi
de suma importância a atuação do SIDH e seus respectivos órgãos: a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de
Direitos Humanos (CtIDH).
A CIDH, de acordo com os artigos 41-51 da CADH, tem como principal
objetivo a observância e a defesa dos direitos humanos, recebendo as petições
encaminhadas a ela7 quando os recursos da jurisdição interna dos países se
mostrarem insuficientes; formulando recomendações aos governos dos Esta-
dos membros para adotarem medidas em suas normatizações internas em prol
dos direitos humanos; tendo um caráter investigativo dos casos, recebendo as
necessárias facilidades dos Estados para a realização das possíveis investiga-
ções; e, esgotando-se todos os meios pacíficos de resolução do que foi denun-
ciado previstos nos artigos 48 a 50, submetendo casos à CtIDH.
Segundo o que se pode aferir do artigo 63 da CADH, há um caráter de di-
reito privado da CtIDH, já que, na averiguação de violação de direitos humanos,
é determinado que sejam reparadas as consequências da situação fática violadora
de direitos através do pagamento de justa indenização aos prejudicados. No en-
tanto, há, ainda, um caráter de direito público nessa reparação de consequências
dos fatos que causaram a violação, já que, na sentença prolatada pela CtIDH,
também existem recomendações proferidas aos Estados, devendo segui-las, o que
causa uma verdadeira modificação das práticas normativas e institucionais com

6
Entre os países que assinaram a CADH em 1969 estão Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador,
Equador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Uruguai e Venezuela. O Brasil ra-
tificou a CADH em 07 de setembro de 1992. Estas informações e a lista completa dos signatários
e do estado atual das ratificações podem ser conferidas em ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS
AMERICANOS. B-32: Convenção Americana de Direitos Humanos (“Pacto de San José da Costa
Rica”). Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica,
1969. Disponível em: <http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/d.Convencao_Americana_Ratif..
htm>. Acesso em: 24.10.2017.
7
No Artigo 44 da Convenção Americana de Direitos Humanos, está disposto que: “Qualquer pessoa ou
grupo de pessoas, ou entidade não-governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados membros
da Organização, pode apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de violação desta
Convenção por um Estado Parte.”
258 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

a adoção de políticas públicas a fim de evitar que novas violações parecidas com
a do caso analisado aconteçam8 (garantias de não repetição).
De acordo com o artigo 68 da CADH, os Estados-partes da Convenção
obrigam-se a cumprir a decisão da CtIDH em todos os casos em que forem
partes. Desta forma, percebe-se que as decisões da Corte fazem coisa julgada
formal e material desde a data da sua publicação, tratando-se, ainda, de julga-
mento definitivo e irrecorrível9.
Em caso de descumprimento, por parte de um país condenado, das
decisões (que incluem as indenizações e recomendações) feitas pela CtIDH
no momento da prolatação da sentença gerar um comportamento rechaçado
pelo plano internacional10 graças ao comprometimento do Estado-membro
na construção do SIDH, estudos apontam que o grau efetivo do cumpri-
mento das decisões pelos países sul-americanos ainda é baixo, chegando a
1/3, segundo parâmetros de casos julgados pela CtIDH até 23 de março de
200911. Nesse sentido, mesmo que não exista uma força coercitiva na obriga-
ção de cumprimento dessas sentenças, outras sanções políticas e vantagens
diante dos outros Estados que compõem o sistema regional de proteção dos
direitos humanos, visto o respeito às regras do Direito Internacional, podem
ser empregadas12.

8
Sobre esse tema, Evorah Lusci Costa diz: “O Estado tem a obrigação de organizar todo o aparato go-
vernamental e as estruturas do poder público para o respeitos aos direitos contidos na Convenção Ame-
ricana. A sentença da CrIDH conclui que o Estado tem a obrigação de prevenir, investigar e julgar as
violações de direitos humanos. O entrevistado 4 entende que ‘organizar o aparato governamental’ pode
também ser interpretado como ‘modificar’, o que traria para o Estado a obrigação de elaborar políticas
públicas em direitos humanos. A CrIDH, por conseguinte, tem a possibilidade de positivamente exigir
a modificação de práticas institucionais do Estado.” (CARDOSO, Evorah Lusci Costa. Litígio estra-
tégico e sistema interamericano de direitos humanos. Belo Horizonte: Fórum, 2012. 220 p. ISBN
978-85-7700-535-2. (Coleção Fórum Direitos Humanos, 4), p. 69).
9
JAYME, Fernando G. Direitos Humanos e sua Efetivação pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Belo Horizonte: Livraria Del Rey Editora, 2005, p. 95.
10
Nesse sentido, Marcelo Varella emprega que: “Os Estados vinculam-se aos tribunais internacionais, de
acordo com regras de direito internacional público. Em caso de descumprimento pode haver responsabi-
lidade internacional do Estado. O descumprimento de uma decisão internacional, contudo, é uma opção
política do Estado, do chefe do Poder Executivo.” (VARELLA, Marcelo D. Internacionalização do
direito: Direito internacional, globalização e complexidade. Tese (Livre-Docência) – Universidade de
São Paulo: São Paulo, 2012, p. 237)
11
GARBIN, Isabelli Gerbelli. Inter-American Court rulings in South-America: compliance crisis as
the result of a local human rights reality. World International Studies Committee, Third Global Stud-
ies Conference, Porto, Brasil, 2011, p. 10-11. In: NEVES, R. T. S.; FRANCO, L. D. N. Dez Anos da
Primeira Condenação Internacional do Brasil: Sistema Interamericano e o problema da compliance.
Direito internacional dos direitos humanos I [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/UNI-
CURITIBA, Florianópolis, 2016, p. 76-81.
12
NEVES, R. T. S.; FRANCO, L. D. N. Dez Anos da Primeira Condenação Internacional do Brasil:
Sistema Interamericano e o problema da compliance. Direito internacional dos direitos humanos I [Re-
curso eletrônico on-line] organização CONPEDI/UNICURITIBA, Florianópolis, 2016.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 259
No entanto, uma forma de garantir esse cumprimento está nas super-
visões de cumprimento de sentenças, realizadas através de atividades como
relatórios por parte do Estado, mostrando o que foi feito em relação ao dever
de cumprir, perícias e audiência com a CIDH e as partes do caso. Essas su-
pervisões de cumprimento de sentença foram essenciais para a efetivação das
recomendações feitas ao Estado brasileiro no Caso Ximenes Lopes vs. Brasil,
como poderá ser visto no tópico 4 do presente trabalho.

3. CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL

Damião Ximenes Lopes, objeto de nosso estudo, nasceu em 25 de Junho


de 1969 no município Santa Quitéria/CE, a partir dos seus 17 anos, em de-
corrência de um conjunto de fatores, seus familiares percebem as primeiras
alterações no seu comportamento mental.13 Em 1995 decidem realizar sua pri-
meira internação psiquiátrica no Hospital “Casa de Repouso dos Guararapes”
no município de Sobral/CE, hospital de iniciativa privada, mas conveniada
com o SUS (Sistema Único de Saúde). No dia 04 de Outubro de 1999, sua
mãe, Albertina Viana Lopes, foi testemunha de sua violenta morte naquele
mesmo hospital, Damião encontrava-se com sintomas visíveis de sofrimento,
ensanguentado, mãos amarradas e coberto de fezes14.
Irene Ximenes Lopes, irmã de Damião, foi peça fundamental pela busca
da justiça e condenação dos responsáveis, realizou algumas interferências ju-
diciais em âmbito municipal, regional, nacional e internacional, alcançando,
no dia 22 de Novembro de 1999, o protocolo da Carta-Denúncia na CIDH.
O trâmite processual do caso na CIDH15 correspondeu ao período de 22
de novembro de 1999, data do protocolo da petição, até 30 de setembro de
2004, data de submissão do caso para a CtIDH diante da falta de cumprimento
satisfatório por parte do Brasil frente às recomendações da Comissão. Nesse
período, vale salientar, foi aprovado o relatório de admissibilidade nº 38/0216
que reconheceu a competência da CIDH para conhecimento desse caso e que
a petição cumpre os requisitos de admissibilidade de acordo com os arts. 46
e 47 da Convenção Americana17, isso tudo frente à inércia do Brasil diante
das solicitações de informações para o caso. Em 08 de Outubro de 2003, a

13
Relatos da vida de Damião Ximenes Lopes podem serem encontrados em: MONTEIRO, Rita Paiva,
Dizem que sou louco: o caso Damião Ximenes e a Reforma Psiquiátrica em Sobral-Ce. 2015. Tese
(Doutorado em Sociologia).
14
O momento final da vida de Damião Ximenes Lopes foi escrito pela sua irmã, Irene Ximenes, em carta-
denúncia enviada ao sistema virtual da CIDH em 22 de novembro de 1999.
15
Para ver as fases procedimentais em CIDH, Demanda en el caso Damião Ximenes Lopes (Caso
12.237) contra la República Federativa de Brasil, 1º de octubre de 2004.
16
CIDH, Relatório Anual 2002, Relatório No. 38/02 – Damião Ximenes Lopes, Caso 12.237 (Brasil).
17
CIDH, Relatório Anual 2002, Relatório No. 38/02 – Damião Ximenes Lopes, Caso 12.237 (Brasil), par. 28.
260 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Comissão aprovou o Relatório nº 43/03 e concluiu que o Estado Brasileiro é


responsável pela violação de diversos direitos de Damião Ximenes Lopes e de
sua família. Diante disso, foi recomendado que o Brasil realizasse uma investi-
gação imparcial e séria para condenar os responsáveis pela morte de Damião,
indenizar a sua família pela violação de direitos humanos, bem como adotar
medidas necessárias para evitar que fatos similares ocorram no futuro.
O caso Ximenes Lopes foi encaminhado à CtIDH em 30 de setembro de
2004 pela CIDH, quando se recomendava a condenação do Brasil por ferir
direitos expressamente previstos na Convenção Americana de Direitos Huma-
nos.18 A CtIDH realizou todas as providências necessárias durante o trâmite
processual, como a produção de provas, intimação das testemunhas arroladas
pelas partes no processo, alegações finais, entre outras.19
Após toda a fase procedimental, a Corte produziu a primeira sentença
de mérito do Brasil no dia 04 de Julho de 2006, decidindo, por unanimidade,
admitir o reconhecimento parcial de responsabilidade internacional do Esta-
do Brasileiro por violar direitos à vida, integridade pessoal, garantias judiciais
e proteção judicial previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos
tendo o Brasil como um de seus signatários. Diante da decisão, dispôs, tam-
bém por unanimidade, que o Estado deve publicar, no Diário Oficial e Jornal
de ampla circulação nacional, os fatos provados na sentença de mérito, além
de indenizar a família de Damião Ximenes Lopes.

A Corte Interamericana também dispôs que é dever do Estado continuar a


desenvolver programas de formação e capacitação para o pessoal médico, de
psiquiatria e psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem e para to-
das as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em especial sobre
os princípios que devem reger o trato das pessoas com deficiência mental.

4. REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL

Os anos 70 foram fundamentais para a mudança no quadro da atenção


médica à saúde mental brasileira, pois de um lado inicia-se a crise do sistema
asilar-manicomial, enquanto eclodem movimentos defensores do modelo hu-
manitário de assistência psiquiátrica do outro.20 O movimento da Reforma

18
Argumentou-se a violação dos direitos previstos nos arts. 4º (Direito à Vida), 5º (Direito à Integridade
Pessoal), 8º (Garantias Judiciais) e 25 (Proteção Judicial) da Convenção Americana.
19
Análise geral e completa de todo trâmite do caso na CtIDH, Caso Ximenes Lopes vs. Brasil, sentença
de 04 de junho de 2006. Mérito, Reparação e Custas. Brasília, 2006. Disponível em: < http://www.cor-
teidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf.>
20
O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) foi o precursor em 1978 quando reuniu
pessoas envolvidas no movimento sanitário, familiares de deficientes mentais, sindicalistas e todos
aqueles que de alguma maneira estavam aliados à política de reversão da realidade manicomial à
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 261
Psiquiátrica já vinha se desenvolvendo em diferentes partes do mundo desde o
início dos anos 6021 levantando questionamentos acerca da demonização das
pessoas que sofrem com transtornos mentais, da eficácia do supracitado siste-
ma asilar-manicomial e das repetidas práticas de maus-tratos que se averigua-
vam nos manicômios. Desde então, o caminho para a desinstitucionalização
de tal sistema começou a ser trilhado e importantes avanços foram conquista-
dos pela busca da Reforma Psiquiátrica no Brasil.
A Reforma Psiquiátrica passou a ser discutida no âmbito do sistema re-
gional da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1990, quando enti-
dades governamentais, organizações, legisladores e juristas foram convidados
para participar da Conferência Regional para a Reestruturação da Atenção
Psiquiátrica na América Latina, promovida pela Organização Pan-americana
de Saúde (OPAS) em Caracas, na Venezuela. A Conferência elaborou como
documento final a Declaração de Caracas que teve como copeticionária a
CIDH e foi proclamada em 14 de novembro de 1990. A Declaração teve sua
importância dentro do sistema regional por estabelecer padrões, normas téc-
nicas22 e cuidados referentes à atenção psiquiátrica, notando que o modelo
convencional do hospital psiquiátrico, ao provocar o isolamento do paciente
e condições desfavoráveis violadoras dos direitos humanos e civis daqueles
que atendem, dificulta o alcance dos objetivos de uma atenção comunitária,
integral, descentralizada, contínua, participativa e preventiva23.
Ainda em um contexto regional, a Assembleia Geral da Organização
das Nações Unidas (ONU), na data de 17 de dezembro de 1991, aprova os

época, denunciando as mazelas e violências ocorridas nos hospitais psiquiátricos, mercantilização da


loucura bem como a construção de uma consciência coletiva do ultrapassado modelo hospitalocêntri-
co. (BRASIL, 2005).
21
Dentre as primeiras experiências de Reforma Psiquiátrica em um contexto global, destaca-se a da Refor-
ma Psiquiátrica Italiana que começou através da influência do psiquiatra veneziano Franco Basaglia, que
passou a adotar práticas humanizadas no tratamento dos pacientes do Hospital Psiquiátrico de Gorizia.
As propostas do médico foram divulgadas pela Itália mudando as vidas de diversas pessoas com defi-
ciência mental até que em 1978 o Parlamento Italiano aprovou a Lei da Reforma Psiquiátrica (também
conhecida como Lei 180 ou Lei Basaglia). Para um breve histórico da Reforma Psiquiátrica no mundo
ver VALVERDE, Dayana Lima Dantas. Reforma Psiquiátrica: panorama sócio-histórico, político e
assistencial. Rede Psi, 2010. Disponível em: <http://www.redepsi.com.br/2010/11/21/reforma-psiqui-
trica-panorama-s-cio-hist-rico-pol-tico-e-assistencial/>. Acesso em: 24.10.2017.
22
A Declaração de Caracas por diversas vezes foi citada para a análise de mérito e a fundamentação da
tomada de decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos na sentença do caso Ximenes Lopes
VS Brasil, ressaltando a importância desse documento dentro do contexto regional de proteção aos direi-
tos humanos. Ver CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes
versus Brasil. Sentença de 4 de julho de 2006, p. 17, 19, 30 e 53.
23
ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DE SAÚDE. Declaração de Caracas (Adotada pela Orga-
nização Mundial de Saúde em Caracas, Venezuela, em 14 de novembro de 1990). Disponível em:
<http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/saude-mental/declaracao_caracas/
view>. Acesso em: 09.10.2017.
262 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Princípios para a Proteção das Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e


para a Melhoria da Assistência à Saúde Mental, que apresenta “as normas
mais abrangentes de direitos humanos com relação à assistência para o trata-
mento de doenças mentais”24, como o dever do Estado em oferecer serviços
médicos eficazes às pessoas que sofrem com deficiências mentais; o direito
do paciente em consentir com o tratamento a ser aplicado ou, na impossibi-
lidade de tal ato, cabendo aos familiares ou representante legal a feitura do
consentimento; e os limites do uso da sujeição25
No Brasil, podemos pinçar os avanços provenientes das discussões em
Reforma Psiquiátrica a partir do ano de 1987 com a criação do primeiro
CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) na cidade de São Paulo26, onde, através
de uma política humanitária e assistencial, desenvolve uma intensa atuação
comunitária na busca de atendimento extra-hospitalar das pessoas com defi-
ciências mentais. O surgimento do Núcleo de Apoio Psicossocial (NAPS) em
Santos/SP, nos anos 8027, também representa um marco na história da Refor-
ma Psiquiátrica brasileira.
Outro imprescindível avanço da Reforma foi a primeira regulamen-
tação legislativa do assunto, pelo Projeto de Lei nº 3.657/89 de autoria do
deputado federal Paulo Delgado (PT/MG), que dispõe sobre a extinção pro-
gressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais
e regulamenta a internação psiquiátrica compulsória. Esse Projeto de Lei
foi alterado pelo substitutivo do Senado Federal em 2001 e transformou-se
na lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira nº 10.216/01, que versa sobre a
proteção e os direitos das pessoas com deficiências mentais e redireciona o
modelo assistencial em saúde mental. Tal marco normativo federal ensejou
regulamentações em nível estadual, como a lei nº 12.515/93 do Ceará, lei nº
975/95 do Distrito Federal, lei nº 5.267/96 do Espírito Santo, entre outros.28

24
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso
Ximenes Lopes vs. Brasil. Sentença de mérito, reparações e custas, de 4 de julho de 2006, p. 12.
25
Segundo o que consta na sentença do caso Ximenes Lopes vs. Brasil prolatada pela CtIDH (2006, p. 53),
“entende-se sujeição como qualquer ação que interfira na capacidade do paciente de tomar decisões ou
que restrinja sua liberdade de movimento”.
26
PONTES, Maria Vânia Abreu. Damião Ximenes Lopes: a “condenação da saúde mental” brasileira
na Corte Interamericana de Direitos Humanos e sua relação com os rumos da reforma psiquiátrica.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Departamento de
Psicologia. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Fortaleza, 299 f., 2015, p. 86.
27
PONTES, Maria Vânia Abreu. Damião Ximenes Lopes: a “condenação da saúde mental” brasileira
na Corte Interamericana de Direitos Humanos e sua relação com os rumos da reforma psiquiátrica.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Departamento de
Psicologia. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Fortaleza, 299 f., 2015, p. 86-87.
28
Para acompanhar a legislação em saúde mental entre 1990 e 2004, ver Legislação em saúde mental:
1990-2004 / Ministério da Saúde, Secretaria-Executiva, Secretaria de Atenção à Saúde. – 5. Ed. ampl. –
Brasília: Ministério da Saúde, 2004.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 263
Todas regulamentavam sobre um novo redirecionamento desse modelo e
uma inversão na política de saúde mental.

Em âmbito de políticas públicas sobre reforma psiquiátrica e adoção do novo


modelo assistencial, destacam-se o Programa de Volta para Casa29, os Serviços
Residenciais Terapêuticos (SRT)30, bem como o incentivo governamental em
busca da redução dos leitos psiquiátricos, fiscalização dos hospitais psiquiá-
tricos para averiguação da garantia de direitos às pessoas com deficiências
mentais internadas e redirecionamento dos recursos do SUS (Sistema Único
de Saúde) para serviços extra-hospitalares frente aos gastos em Hospitais Psi-
quiátricos31. Tais políticas foram reconhecidas pela CtIDH como formas do
Estado brasileiro modificar a dinâmica do tratamento de saúde mental no
parágrafo 261 da sentença de mérito do caso Ximenes Lopes vs. Brasil.

5. OS REFLEXOS DO CASO XIMENES LOPES VS. BRASIL PARA


A REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA

Encaminhado à CtIDH em 2004, o caso teve sua sentença prolatada no


dia 06 de Julho de 2006. A CtIDH, entendendo que é dever dos Estados-mem-
bros do Sistema Regional “adotar as medidas necessárias para criar um marco
normativo adequado que dissuada qualquer ameaça ao direito à vida; estabe-
lecer um sistema de justiça efetivo, capaz de investigar, castigar e reparar toda
privação da vida por parte de agentes estatais ou particulares”32, condenou o
Estado brasileiro em danos materiais destinados à vítima e aos seus familiares
(parágrafos 220 ao 226 da sentença de mérito), danos imateriais (parágrafos
227 ao 239 da sentença de mérito), que se recai sobre os sofrimentos e aflições
das vítimas (que incluem os próprios familiares de Damião Ximenes Lopes, as
outras pessoas que sofrem de transtornos mentais e tiveram direitos violados
em hospitais psiquiátricos, bem como toda a sociedade brasileira), devendo

29
Criado pela lei federal nº 10.708/03, trata-se de inserção social das pessoas com deficiência mental
egressas dos hospitais psiquiátricos através de um auxílio-reabilitação no valor de R$ 240,00 (duzentos
e quarenta reais).
30
Trata-se do sistema de reabilitação através de moradias ou casas, preferencialmente na comunidade, para
egressos de hospitais psiquiátricos com longo histórico de internação e que não possuam laços familiares
nem um devido suporte para inserção social. Criado pela Portaria GM nº106 de Fevereiro de 2000 do
Ministério da Saúde.
31
Pode-se perceber que a partir do ano de 2001 obtêm-se mudanças nesses recursos em relação ao ano
de 1997, aumentando ainda mais em 2004. Ver BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à
Saúde. DAPE. Coordenação Geral de Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental
no Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental:
15 anos depois de Caracas. OPAS. Brasília, novembro de 2005, p. 9.
32
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. Sentença de mérito, reparações e custas, de 4 de julho de 2006,
parágrafo 125.
264 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

serem compensados através de pagamento de quantia em dinheiro e realização


de atos ou obras de modo a alcançar e repercutir em toda a sociedade, reconhe-
cendo, assim, a dignidade da vítima e a garantia de não repetição das violações.
Para entender os reflexos do caso Ximenes Lopes vs. Brasil no tocante à
reforma psiquiátrica brasileira, é necessário que se estenda um olhar a partir
da apresentação da carta-denúncia feita à CIDH em novembro de 1999 e os
fatos supervenientes desta data. Nas declarações testemunhais propostas pelo
Estado brasileiro, que serviram como prova documental para a fundamenta-
ção da sentença, destaca-se afirmações de que “a influência do caso Ximenes
Lopes na reorganização da atenção da saúde mental no município de Sobral
é um fato inegável”33 e que “a atenção de saúde mental mudou muito depois
que a Casa de Repouso Guararapes foi fechada em julho de 2001. Essa data
marca o processo de transição de um modelo de assistência enfocado na aten-
ção médico-hospitalar e de manicômios, para uma abordagem descentralizada,
regionalizada, com novos equipamentos e que propunha a reabilitação e rein-
tegração social das pessoas com doenças mentais”34.
Dentre as medidas adotadas pelo Estado brasileiro, reconhecidas pela
CtIDH no parágrafo 261 da sentença de mérito, que buscaram mudar a dinâ-
mica da assistência à saúde mental no Brasil, destacam-se a expansão dos Cen-
tros de Atenção Psicossocial (CAPS) no estado do Ceará; a aprovação da Lei nº
10.216, de 06 de abril de 2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica e
que, apesar de ser fruto de política legislativa antiga, sofreu influência do caso
Ximenes Lopes vs. Brasil quando modificou o antigo sistema de internação
psiquiátrica (adotado pela Casa de Repouso Guararapes) para o modelo de
assistência mental; a criação do Programa Nacional de Avaliação dos Serviços
Hospitalares Psiquiátricos a partir de 2002; a implementação do Programa de
Reestruturação Hospitalar do Sistema Único de Saúde no ano de 2004; além
da implementação do Programa de Volta para Casa através da Lei nº 10.708,
de 31 de julho de 2003. Sendo assim, percebeu-se uma maior preocupação do
Ministério da Saúde ao tratamento humanizado no âmbito da saúde mental
no Brasil, fazendo perceber uma progressão da Reforma Psiquiátrica no país.
No entanto, à época da publicação da sentença em julho de 2006, apesar
da expansão dos CAPS, que serviram como modelo de substituição do modelo

33
Depoimento testemunhal do médico psiquiatra Luís Fernando Farah de Tofóli, que trabalhou na Secre-
taria de Desenvolvimento Social de Saúde do Município de Sobral à época das investigações internacio-
nais sobre o caso. O depoimento completo encontra-se em ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AME-
RICANOS, Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. Sentença de
mérito, reparações e custas, de 4 de julho de 2006, p. 10.
34
Parte do depoimento testemunhal do médico psiquiatra José Jackson Coelho Sampaio, que pode ser encontrado
na íntegra em ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, Corte Interamericana de Direitos Huma-
nos. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. Sentença de mérito, reparações e custas, de 04 de julho de 2006, p. 9.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 265
manicomial, percebe-se, ainda, uma hegemonia de tal modelo, como destaca
Milton Freire Pereira no seu depoimento testemunhal perante a CtIDH. Além
disso, o Tribunal Internacional reconheceu que, estando o tratamento médi-
co cruel e violento dado a Damião Ximenes Lopes como uma das formas de
violações de seus direitos, as práticas induzidas pelos profissionais ligados à
saúde mental ainda estavam em desacordo com os princípios protetores da
vida e dignidade da pessoa humana constantes na CADH, com a Conven-
ção de Caracas, bem com os Princípios para a Proteção das Pessoas Acometi-
das de Transtorno Mental e para a Melhoria da Assistência à Saúde Mental.
Nesse sentido, compreendeu “que o Estado deve continuar a desenvolver um
programa de formação e capacitação para o pessoal médico, de psiquiatria e
psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem, bem como para todas
as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em especial sobre os
princípios que devem reger o tratamento a ser oferecido às pessoas com de-
ficiência mental, de acordo com as normas internacionais sobre a matéria e
as dispostas nesta Sentença”35. Esse último ponto, em específico, foi debatido
constantemente entre o Estado brasileiro e a CtIDH durante as supervisões de
cumprimento de sentença em 2008, 2009 e 2010.
Durante os relatórios feitos pelo Brasil em resposta às supervisões de
cumprimento de sentença, o país informou que tem tomado providências
concernentes às melhorias no âmbito da saúde mental. Dentre tais melhorias
citadas, destacam-se o contínuo desenvolvimento, desde 2002, do Programa
Permanente de Formação de Recursos Humanos para a Reforma Psiquiátrica,
cursos de especialização em diversos estados brasileiros, a criação do Programa
de Qualificação dos CAPS em 2005 e a instauração do Programa Emergencial
de Ampliação do Acesso para a Atenção de Problemas relacionados ao Álcool
e outras Drogas.
Na resolução de 2010 da CtIDH na fase de supervisão de cumprimento
de sentença, porém, o Tribunal, apesar de reconhecer as iniciativas de caráter
geral direcionadas às melhorias na assistência no campo da saúde mental,
declarou que o Estado brasileiro se esquivou da sua obrigação de cumprir a
obrigação, pois “apesar de ter mencionado de modo geral a realização de di-
versos cursos de especialização em saúde mental, que teriam beneficiado mais
de 800 profissionais, o Brasil não especificou o conteúdo nem o período no
qual tais cursos foram empreendidos; não precisou a quantidade de cursos de
aperfeiçoamento e de atualização realizados com posterioridade da Sentença,
nem o conteúdo e o número de profissionais beneficiados com os mesmos; e

35
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. Sentença de mérito, reparações e custas, de 4 de julho de 2006,
parágrafo 250.
266 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

tampouco especificou quantos destes trabalham em instituições psiquiátricas


com características similares às da Casa de Repouso Guararapes”36. Sendo as-
sim, declarou que iria continuar a supervisionar as obrigações pendentes.
Até o presente momento, segundo a CtIDH na última supervisão de
cumprimento de sentença de 2010, as políticas públicas adotadas pelo Brasil
não foram suficientes para esgotar as obrigações declaradas pela sentença e
obter o cumprimento total da sentença, porém, a preocupação estatal em ga-
rantir práticas humanizadas na assistência médica psiquiátrica concernentes
à saúde mental, mesmo que tenha sido fruto de uma atenção em atender ao
cumprimento de uma sentença internacional, reflete no desenvolvimento da
Reforma Psiquiátrica brasileira, pois a contínua substituição do modelo ma-
nicomial por uma integração do indivíduo à comunidade a fim de melhorar
o seu tratamento e as mudanças de comportamentos profissionais daqueles
que estão ligados à saúde mental de acordo com normas internacionais são
benefícios do caso Ximenes Lopes vs. Brasil na CtIDH que levantou tais ques-
tionamentos esquecidos diante de lacunas legislativas e omissão estatal que
perduraram durante décadas. Além disso, um investimento mais focado na
expansão o número de CAPS, substituindo gradativamente os manicômios,
infere em uma maior alocação da verba pública a fim de atingir um tratamen-
to digno para aqueles que necessitam.

CONCLUSÃO

O presente trabalho teve como objetivo principal analisar os reflexos do


caso Ximenes Lopes vs. Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos
para a Reforma Psiquiátrica brasileira a fim de identificar as mais relevantes
políticas públicas adotadas pelo Estado brasileiro concernentes à assistência da
saúde mental de forma humanizada desde o recebimento da carta-denúncia da
morte de Damião Ximenes Lopes em 1999 até a última supervisão de cumpri-
mento de sentença feita em 2010.
Dividindo metodologicamente o trabalho em tópicos que relatam a im-
portância do SIDH na proteção de direitos humanos no Sistema Regional
de Proteção dos Direitos Humanos e a atuação dos seus principais órgãos
durante o trâmite processual internacional do caso Ximenes Lopes vs. Brasil,
fazendo uma análise da busca pela Reforma Psiquiátrica no ambiente regional
e os principais documentos que fundamentaram a sentença prolatada pela
CtIDH para, assim, identificar os reflexos do caso supracitado para a Reforma

36
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. Supervisão de cumprimento de sentença, de 17 de maio de 2010,
parágrafo 19.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 267
Psiquiátrica no Brasil, levando a concluir que, apesar de ter sido necessária
a intervenção de um tribunal internacional para se discutir práticas huma-
nizadas no âmbito da assistência à saúde mental no Brasil, o Estado adotou
medidas em forma de políticas públicas que fizeram desenvolver, mesmo que
de forma lenta, a Reforma Psiquiátrica brasileira. No entanto, para se chegar
ao cumprimento total da sentença, o Brasil falta mostrar à CtIDH se adotou
medidas satisfatórias no tocante aos cursos de formação e capacitação dos
profissionais ligados à assistência da saúde mental e, para se provar isso ao
tribunal, é necessário que o país se manifeste acerca do conteúdo, período e
quantidade de cursos de capacitação, bem como o número de profissionais
beneficiados com os mesmos, devendo especificar quantos destes profissionais
trabalham em instituições psiquiátricas similares à Casa de Repouso Guara-
rapes de Sobral/CE, local em que Damião Ximenes foi violentado e morto.
A importância deste trabalho se debruça no sentido de incentivar o con-
tínuo avanço da Reforma Psiquiátrica revelando os impactos das políticas
públicas adotadas pelo Brasil a fim de cumprir as obrigações declaradas na
sentença que mostram resultados até a atualidade, já que a expansão dos CAPS
(que hoje servem como modelo de substituição do sistema manicomial), pro-
gramas como o Programa de Volta para Minha Casa, Programa Permanente
de Formação de Recursos Humanos para a Reforma Psiquiátrica, Programa de
Qualificação dos CAPS e o Programa Emergencial de Ampliação do Acesso
para a Atenção de Problemas relacionados ao Álcool e outras Drogas, além
dos cursos de capacitação e formação dos profissionais que atuam no âmbito
da saúde mental, modificaram as práticas de cuidado para com as pessoas
que sofrem com transtornos mentais e o olhar da própria sociedade para os
doentes mentais.
Portanto, conclui-se que houve um significativo avanço para a Reforma
Psiquiátrica brasileira fruto do caso Ximenes Lopes vs. Brasil, tendo uma gran-
de influência das normas internacionais sobre o tratamento humanizado de
doentes mentais e dos princípios protegidos por documentos importantes no
Sistema Regional como a Declaração de Caracas e os Princípios para a Prote-
ção das Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e para a Melhoria da As-
sistência à Saúde Mental. Porém, o Estado deve continuar em busca de adotar
medidas que garantam a não repetição das violações aos direitos humanos das
pessoas com deficiência mental, como um maior investimento na formação
dos profissionais responsáveis pelo tratamento destas pessoas, criando novas
práticas dentro do campo da saúde mental que respeitem os direitos básicos
de todo paciente.
A realização dos cursos de formação e capacitação para o pessoal médico,
de psiquiatria e psicologia, e todas as pessoas vinculadas ao atendimento da
saúde mental, ponto resolutivo importante da sentença proferida pela CtIDH,
268 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

deve ser objeto de preocupação do Estado brasileiro para evitar a diminuição


do grau efetivo do cumprimento das decisões pelos países sul-americanos,
que já é baixo, segundo estudos apontados no tópico 1 deste trabalho. O não
cumprimento das sentenças internacionais pode gerar sanções políticas e des-
vantagens diante dos Estados-membros do Sistema Regional de Proteção dos
Direitos Humanos, visto a importância das regras de Direito Internacional.
A primeira condenação internacional do Brasil na Corte Interamericana
de Direitos Humanos possui reflexos até a atualidade, desenvolvendo impor-
tantes reflexões acerca das novas práticas de tratamento humanizado das pes-
soas que sofrem com transtornos mentais e, apesar de ainda restar um longo
caminho para a total efetivação da Reforma Psiquiátrica brasileira, pode-se
aferir que o caso Ximenes Lopes vs. Brasil foi um relevante percussor das dis-
cussões que há tanto tempo eram silenciadas dentro do país, colocando em
prática as ideias da Luta Manicomial que vinham se desenvolvendo durante as
décadas de 80 e 90 dentro do país.

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Capítulo 17
Controle de Convencionalidade no Supremo
Tribunal Federal: Uma Análise da ADPF 153
Nael Neri de Souza Júnior

1. INTRODUÇÃO

O controle de convencionalidade, conceito relativamente novo para o


sistema jurídico brasileiro, tem ganhado mais notoriedade à medida em que
esse tipo de controle passa a ser exercido com mais frequência não só no pe-
los órgãos jurisdicionais do âmbito internacional, mas também na jurisdição
interna dos Estados.
Controle de convencionalidade, assim como o controle de constitucio-
nalidade, é o meio pelo qual se busca adequar normas jurídicas de hierarquia
inferior às disposições emanadas pelas convenções das quais o Estado é sig-
natário. Da perspectiva do direito interno, a jurisdição, além de observar a
constitucionalidade das leis, é responsável por garantir a idoneidade das leis
domésticas em relação às normas internacionais.
Diante disso, o Supremo Tribunal Federal tem, além da função de ser o
maior protetor da Constituição, a obrigação de observar os tratados em seus
julgados, sobretudo os que se relacionam diretamente a direitos humanos, a
fim de garantir a efetiva adequação do Poder Judiciário brasileiro às dispo-
sições internacionais das quais Estado é parte. Em outras palavras, exercer o
controle de convencionalidade é imprescindível para a prática correta da fun-
ção jurisdicional brasileira. Por isso, é importante olhar criticamente a atuação
jurisdicional do STF e observar como é sua postura diante da normativa inter-
nacional, a qual pode ser extraída de sua jurisprudência.
Especialmente, a ADPF 153, julgada pelo STF em 2010, popularmente
conhecida como o julgado que dispôs sobre a lei da anistia, trata de um assun-
to que interessa diretamente aos direitos humanos e, portanto, às convenções
que possuem o Estado brasileiro como parte signatária. Portanto, se mostra
relevante estudar especialmente esse precedente e identificar se o STF exerceu
de forma satisfatória o controle de convencionalidade nessa oportunidade,
bem como se o mesmo tribunal se manteve coerente com sua jurisprudência.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 271
Dessa forma, este trabalho se dividirá em três partes. Inicialmente, a par-
tir de precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos e da orien-
tação doutrinária afim, investiga-se como deve ser a postura jurisdicional dos
Estado, isto é, como devem se comportar os magistrados em relação aos julga-
dos que demandem a incidência de convenções e da jurisprudência das cortes
internacionais. Posteriormente, será observada a jurisprudência do Supremo
que antecede a ADPF 153 e identificar se foi realizado o controle de conven-
cionalidade em outros precedentes a fim de avaliar a coerência dos ministros
em seus respectivos votos. Por fim, remeteremos o olhar crítico sobre a ADPF
153 sempre buscando investigar a postura do STF em relação ao controle de
convencionalidade da lei 6.683/79 (lei de anistia brasileira).
Para isso, é preciso recorrer, rapidamente, ao método de pesquisa biblio-
gráfico a fim de que, a partir do posicionamento de autores que dissertam
sobre o controle de convencionalidade, possamos compreender como deve
ser, especificamente, a atuação jurisdicional interna nesse sentido. Além disso,
faz-se necessário também recorrer, predominantemente, à pesquisa documen-
tal, que se dará no momento da análise jurisprudencial, tanto do STF quanto
da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Os precedentes deste tribunal
também funcionarão para conceber a deontologia da atuação judicial domés-
tica acerca do controle de convencionalidade.

2. O CONTROLE JURISDICIONAL DE CONVENCIONALIDADE


INTERNO

O controle de convencionalidade pode ser exercido tanto no âmbito da


jurisdição externa, internacional, a qual se encontra representada em tribunais
internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CTIDH).
As cortes internacionais são responsáveis pelo controle jurisdicional definiti-
vo, ou seja, elas são responsáveis, por interpretar “por último” as convenções
e exercer, portanto, o controle convencional.1
Todavia, justamente por essa qualidade de último intérprete atribuída
aos tribunais internacionais, podemos entender que o Poder Judiciário dos
Estados signatários também é responsável pelo controle de convencionalidade,
como salienta Sidney Guerra: “não somente os tribunais internacionais devem
realizar esse tipo de controle, mas também os tribunais internos”2 e devem
fazê-lo antes mesmo da submissão das demandas aos juízes internacionais. É
1
Cf. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“guerrilha
do Araguaia”) Vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Julgamento de 24 de
novembro de 2010, p. 65, §176.
2
GUERRA, Sidney. O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o controle de
convencionalidade. São Paulo: Atlas, 2013. p. 192
272 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

nesse sentido o pensamento de Mazzuoli: “cabe, em primeiro lugar ao Estado


controlar a convencionalidade (interna) das leis”3.
A Convenção Americana de Direitos Humanos também é expressa nes-
se mesmo sentido. Em seu artigo 61, que trata das competências da Corte
Interamericana, ela prescreve o caráter complementar da Corte Interameri-
cana de Direitos Humanos, ao exigir que sejam exauridas as tentativas de
solução interna da situação, por intermédio da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos.4
Aqui, neste trabalho, nos limitaremos a esse tipo de controle: o interno,
nacional, e buscaremos compreender como deverá ser a ideal postura da ju-
risdição dos Estados no processo de adequação das normas domésticas aos
postulados internacionais.
O controle de convencionalidade, a exemplo do controle de constitucio-
nalidade em relação aos preceitos constitucionais, é a “compatibilização verti-
cal das normas domésticas com os tratados internacionais de direitos huma-
nos (mais benéficos) em vigor no Estado”.5 Ou, ainda, “diz respeito a um novo
dispositivo jurídico fiscalizador das leis infraconstitucionais que possibilita o
duplo controle de verticalidade”6. Diante disso, devido à obrigação contraída
pelos Estados nas convenções vigentes internacionalmente, a jurisdição fica
obrigada a observar tanto a Constituição quanto as convenções.
Porém, não é só aos tratados que fica vinculada a jurisdição, mas ela
deve também incorporar aos casos concretos o entendimento dos tribunais
e dos órgãos externos sobre a matéria em questão. Sobre isso, André de Car-
valho Ramos7 entende, ao se ater ao Estado brasileiro, que a nossa jurisdição
deverá exercer o “controle de convencionalidade aplicado”, que é justamente
a invocação da interpretação definitiva de convenções, a qual é exercida, por
exemplo, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em relação ao Pacto
de San José da Costa Rica.
A atuação do magistrado, portanto, dadas as obrigações assumidas pelo
Estado perante as disposições internacionais, adquire uma responsabilidade
ainda maior, como destaca Mazzuoli, ao citar o entendimento da Corte Inte-
ramericana de Direitos Humanos (CTIDH):

3
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 4. ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 211.
4
Cf. CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (Pacto de San José da Costa Rica),
artigo 61. Assinada em 22 de novembro de 1969.
5
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p. 39.
6
GUERRA, Sidney, op. cit., p. 179.
7
RAMOS, A. de Carvalho. Supremo tribunal federal brasileiro e o controle de convencionalidade: levan-
do a sério os tratados de direitos humanos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, v. 104, p. 241-246jan./dez. 2009.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 273
Para a Corte Interamericana, o juiz nacional, como longa manus do Estado,
tem o dever de compatibilizar a normativa doméstica com os ditames dos tra-
tados de direitos humanos ratificados e em vigor no país, devendo proceder ex
officio (para além, evidentemente, de quando há iniciativa da parte.8

Nos termos da própria Corte Interamericana, os juízes e tribunais internos


são obrigados a seguir as seguintes diretrizes postas pelo Direito Internacional:

Quando um Estado ratifica um tratado internacional como a Convenção


Americana, seus juízes, como parte do aparato estatal, também estão submeti-
dos a ela, o que os obriga a velar para que os efeitos das disposições da Con-
venção não se vejam diminuídos pela aplicação de leis contrárias a seu objeto
e a seu fim e que, desde o início, carecem de efeitos jurídicos.9

Para não restarem dúvidas acerca da atuação jurisdicional perante con-


venções internacionais, a Corte categoriza o seguinte:

O Poder Judiciário deve exercer uma espécie de “controle de convencionalida-


de” entre as normas jurídicas internas aplicadas a casos concretos e a Conven-
ção Americana sobre Direitos Humanos. Nesta tarefa, o Poder Judiciário deve
levar em conta não apenas o tratado, mas também a interpretação que a Corte
Interamericana, intérprete última da Convenção Americana, fez do mesmo.10

Em outro precedente, a Corte Interamericana reforça a comparação


entre as Convenções e as constituições internas, a fim de demonstrar, aos
Estados, a vinculação que estes assumem no momento da ratificação de de-
terminado tratado:

Para todos os Estados do continente americano que livremente a adotaram,


a Convenção equivale a uma Constituição supranacional atinente a Direitos
Humanos. Todos os poderes públicos e esferas nacionais, bem como as respec-
tivas legislações federais, estaduais e municipais de todos os Estados aderentes
estão obrigados a respeitá-la e a ela se adequar.11

Dentre os poderes públicos dos Estados, a CTIDH vai conferir desta-


que ao Poder Judiciário interno, reiterando a posição que assumiu no outro
precedente aqui apresentado: “No entanto, quando um Estado é Parte de um

8
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p.40.
9
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Almonacid Arellano e outros Vs. Chile.
Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Julgamento de 26 de setembro de 2006, p. 52.
10
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, ibidem.
11
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“guerrilha do
Araguaia”) vs. Brasil. Voto do juiz ad hoc Roberto de Figueiredo Caldas, p. 3.
274 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

tratado internacional, como a Convenção Americana, todos os seus órgãos,


inclusive seus juízes, também estão submetidos àquele”12.
Dessa forma, é bastante claro que os mandamentos internacionais dos
quais o Brasil é signatário exige uma efetiva atuação do Poder Judiciário do
nosso Estado no sentido de exercer, satisfatoriamente, o controle de conven-
cionalidade das nossas leis.
Diante desse posicionamento, podemos inferir que a adequação das
normas domésticas às normas internacionais exige do julgador o necessário
conhecimento dos postulados externos que vinculam o Estado, sendo inad-
missível, desse modo, o magistrado deixar de aplicar as normas internacionais
de proteção sob alegação de desconhecimento13. Com isso, ele deve necessaria-
mente aplicar ao caso concreto que demande a incidência das convenções, a
normativa internacional, como as que remetem atenção aos direitos humanos,
sobretudo, como destaca Guerra:

Na esfera nacional, este controle se dará por intermédio da atuação dos tri-
bunais e juízes internos, que terão a competência de aplicar a Convenção em
detrimento da legislação interna, em um caso concreto, a fim de proteger
direitos mais benéficos à pessoa humana. 14

Em relação ao mérito da técnica do controle de convencionalidade inter-


no, podemos seguir o entendimento de Mazzuoli, que destaca que esse tipo de
controle não se faz de forma indistinta, apenas afastando a norma doméstica
em função da norma internacional, ou seja, é preciso que o juiz, ao analisar o
caso concreto, observe a materialidade das normas e pondere sobre qual deve
prevalecer. Além disso, ele também destaca que o magistrado deverá levar em
consideração o entendimento da corte internacional:

O exercício do controle de convencionalidade, porém, não é mecânico; não há


de ser efetivado pelo simples cotejo, pela simplória sobreposição de uma norma
(internacional) a outra (interna). Além do cotejo analítico, se requer do magis-
trado conhecimento do conteúdo eficacial da norma-paradigma (a norma inter-
nacional mais benéfica) e da interpretação que dela faz a Corte Interamericana.15

Sobre isso, Sidney Guerra entende que o operador do direito, no caso


do conflito de normas, não deverá se limitar a uma única, mas, por meio da

12
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“guerrilha
do Araguaia”) Vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Julgamento de 24 de
novembro de 2010, p. 65.
13
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira, op.cit., p. 41.
14
GUERRA, Sidney, op. cit., p. 182 e 183.
15
MAZZOLI, Valerio de Oliveira, op. cit., p.40.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 275
promoção do “diálogo das fontes”, ele deve, ao observar as diferentes disposi-
ções, visar o fim de encontrar a solução mais benéfica à pessoa humana16. Esse
é o mesmo posicionamento Ramos, ao proferir que a solução de um conflito
entre normas interna e externa pode ser resolvido pela primazia da norma que
mais favorece ao indivíduo, seja ela nacional ou internacional.17
Feitas essas considerações genéricas sobre o controle jurisdicional interno
de convencionalidade, pode-se dar sequência à investigação e remeter atenção
à jurisdição brasileira, mais especificamente ao STF e a sua interação com es-
sas exigências internacionais, já que, somente levando a sério18 o controle de
convencionalidade e adequando sua jurisprudência em relação aos tratados e
ao entendimento internacional, esse Tribunal poderá se adequar às obrigações
assumidas pelo Estado brasileiro nas convenções de que é parte.

3. O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE NO STF ANTES


DO JULGAMENTO DA ADPF 153

As disposições emanadas internacionalmente são claras no sentido de


como deve atuar a jurisdição dos Estados perante as normativas presentes nos
tratados: os magistrados devem exercer o controle de convencionalidade de
forma primária, de ofício e sempre buscando atingir a situação jurídica mais
favorável à pessoa humana.
Desse modo, se mostra razoável estudar como atua a nossa jurisdição pe-
rante essas exigências. O Supremo Tribunal Federal, por ser o órgão de cúpula
do Poder Judiciário do Estado brasileiro, se destaca como objeto relevante
para esse tipo de investigação.
Estudar outros precedentes do STF antes do julgamento da ADPF 153
se mostra importante na medida em que é possível fazer uma comparação da
atuação dos ministros, com o propósito observar a coerência nos posiciona-
mentos dos magistrados em relação ao controle de convencionalidade.
A ADPF 153 não inova nos julgados do Supremo quando o assunto é
convenções internacionais. Outras demandas de direitos humanos já foram
postas à apreciação dos ministros e, assim, podemos observar na prática o
controle de convencionalidade interno. Aqui, disponibilizaremos de algumas
a fim de observar como se deu a atuação de magistrados do STF.
No Habeas Corpus 88.420, é possível identificar um exemplo genuíno de
controle de convencionalidade exercido pelo ministro Ricardo Lewandowski,
ao consignar o seguinte entendimento:
16
GUERRA, Sidney, op. cit., p. 190.
17
RAMOS, A. de Carvalho, op. cit.
18
Ibidem.
276 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Nesse sentido, compartilho da lição de Ada Pellegrini Grinover, segundo a qual


‘um sistema de juízo único fere o devido processo legal, que é garantia inerente às
instituições político-constitucionais de qualquer regime democrático. Mesmo que
se lhe negue envergadura constitucional, o direito ao duplo grau de jurisdição esta-
belecido no Pacto de San José, a meu ver, deve prevalecer sobre o art. 594 do CPP.19

Ao realizar a sobreposição do direito ao duplo grau de jurisdição, de-


fendido pelo Pacto de San José da Costa Rica ou Convenção Americana de
Direitos Humanos sobre o art. 594 Código de Processo Penal (CPP) brasileiro,
o ministro exerce adequadamente o controle de convencionalidade e adequa a
sua decisão à disposição internacional, que, no caso, se mostra mais benéfica
à pessoa humana.
Ele destaca, também o fato de o CPP ter sido editado antes de o Brasil se
declarar signatário da Convenção20, fato que legitimou o exercício do controle
convencional.
Em outro julgado, no RE 511.961, o Supremo Tribunal Federal também
se deparou com uma controvérsia que envolvia o interesse das normas inter-
nacionais de proteção dos direitos humanos.
Na ocasião, o ministro Gilmar Mendes exerceu, expressamente, o contro-
le difuso de constitucionalidade e, embora de forma implícita, é possível per-
ceber que também foi realizado, em seu voto, o devido controle de convencio-
nalidade. Isso pode ser inferido da seguinte passagem, ao citar um precedente
da Corte Interamericana:

A Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu decisão no dia 13 de


novembro de 1985, declarando que a obrigatoriedade do diploma universi-
tário e da inscrição em ordem profissional para o exercício da profissão de
jornalista viola o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos,
que protege a liberdade de expressão em sentido amplo (grifo do autor).21

Ele prossegue em seu voto, e observa também o entendimento da Comis-


são Interamericana de Direitos Humanos:

Também a Organização dos Estados Americanos (OEA), por meio da Comis-


são Interamericana de Direitos Humanos, tem defendido que a exigência do
diploma universitário em jornalismo como condição obrigatória para o exer-
cício dessa profissão viola o direito à liberdade de expressão.22

19
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 88.420/PR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Pri-
meira Turma, julgado em 17/04/2007. Voto do Min. Ricardo Lewandowski, p. 11.
20
LEWANDOWSKI, Ricardo, ibidem.
21
BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário 511.961/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes,
Tribunal Pleno, julgado em 17/06/2009. Voto do Min. Gilmar Mendes, p. 79.
22
MENDES, Gilmar, ibidem.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 277
A ministra Cármen Lúcia, no mesmo julgado, também exerce, a exemplo
do ministro Ricardo Lewandowski no HC supracitado, além do controle de
constitucionalidade, o expresso controle de convencionalidade, ao proferir
este posicionamento:

Não há critério de proporcionalidade possível de ser acolhido, eu acho, em


face do sistema constitucional brasileiro, a fixação do artigo 4°, no seu inciso
V, do decreto-lei, e não há também possibilidade de compatibilizá-lo com o
artigo 13 da Convenção do Tratado de São José da Costa Rica.23

O ministro Ricardo Lewandowski, ainda nesse Recurso Extraordinário,


mantendo a coerência com relação à observação dos tratados em seus julgados,
observa tanto as disposições constitucionais quanto a normativa presente no
Pacto de San José da Costa Rica:

A plena liberdade de expressão do pensamento, isenta de quaisquer restrições


ou empecilhos de caráter legal ou burocrático, que encontra abrigo na nova
ordem constitucional, mostra-se, ademais, inteiramente consentânea com os
tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, em especial com o
Pacto de San José da Costa Rica24.

Em outro precedente, no RE 466.343, temos, talvez, o julgado mais


expressivo do Supremo Tribunal Federal no âmbito do controle de con-
vencionalidade, como atesta o ministro Ricardo Lewandowski ao proferir
as seguintes palavras em seu voto: “Por essas razões, acompanho a guinada
histórica que este Plenário dá, nos termos dos votos dos Ministros que me
precederem”25. Certamente, a “guinada histórica” a que o ministro se referiu
é relativa à densa observação das disposições internacionais por parte dos
ministros a fim de modificar o entendimento jurisprudencial do STF acerca
da matéria em questão.
O voto mais expressivo nesse sentido é o do ministro Gilmar Mendes,
que apresenta, inclusive, um debate teórico acerca da posição hierárquica dos
tratados internacionais. Ele traz o questionamento em relação à jurisprudência
do Supremo estar “defasada” tendo em vista o desacordo com as normativas
externas da qual o Estado brasileiro é parte:

É preciso ponderar, no entanto, se, no contexto atual, em que se pode


observar a abertura cada vez maior do Estado constitucional a ordens jurí-

23
LÚCIA, Cármen, op. cit., p. 96.
24
LEWANDOWSKI, Ricardo, op. cit., p. 99.
25
BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário 466.343/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Tri-
bunal Pleno, julgado em 03/12/2008. Voto do Min. Ricardo Lewandowski, p. 93.
278 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

dicas supranacionais de proteção de direitos humanos, essa jurisprudência


não teria se tornado completamente defasada (grifo do autor).26

E, posteriormente, ele vai lançar uma resposta a essa reflexão por ele es-
timulada, tecendo considerações a respeito da inadequação da jurisprudência
aos ditames contemporâneos: “Tudo indica, portanto, que a jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal, sem sombra de dúvidas, tem de ser revisitada
criticamente”27. O ministro utiliza a palavra “criticamente” com a finalidade
de alertar ao fato de que a atualização jurisprudencial deve observar os precei-
tos internacionais de Direitos Humanos e não só aos precedentes do Tribunal.
Gilmar Mendes ainda vai consignar, de forma categórica, o seguinte:

Assim, a premente necessidade de se dar efetividade à proteção dos direitos


humanos nos planos interno e internacional torna imperiosa uma mudan-
ça de posição quanto ao papel dos tratados internacionais sobre direitos
na ordem jurídica nacional.
É necessário assumir uma postura jurisdicional mais adequada às realida-
des emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmente à
proteção do ser humano. (grifos do autor).28

Com essa argumentação, ele vai reforçar a necessidade de uma maior


proatividade por parte do Poder Judiciário interno em relação às normativas
internacionais, a fim de garantir a maior proteção possível ao ser humano.
E, mais do que essas considerações, ele vai realizar, no seu voto, o genuí-
no controle de convencionalidade interno:

Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre


os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do
depositário infiel (art. 5o, inciso LXVII) não foi revogada pelo ato de adesão do
Brasil ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção
Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7o, 7),
mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados
em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, incluídos
o art. 1.2 87 do Código Civil de 1916 e o Decreto-Lei n° 911, de 1o de outubro de
1969 [...] Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao Pacto Internacional
dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos
Humanos - Pacto de San José da Costa Rica (art. 7o, 7), não há base legal para
aplicação da parte final do art. 5o, inciso LXVII, da Constituição, ou seja, para
a prisão civil do depositário infiel (grifos do autor).29

26
MENDES, Gilmar, op. cit., p. 42.
27
Ibidem, p. 47.
28
Ibidem, p. 55.
29
Ibidem, págs. 55 e 56.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 279
Diante desses termos, o ministro exerceu o controle de convencionalida-
de interno pela via difusa, adequando a norma jurídica brasileira à Convenção
Americana de Direitos Humanos, ao afastar os efeitos da incidência de regra
constitucional em questão.
O ministro Celso de Mello, neste mesmo precedente, também, como
o ministro Gilmar Mendes, vai fazer importantes considerações acerca dos
tratados internacionais de Direitos Humanos e de sua posição hierárquica no
sistema jurídico brasileiro:

Como precedentemente salientei neste voto, e após detida reflexão em tomo


dos fundamentos e critérios que me orientaram em julgamentos anteriores
(RTJ 179/493-496, v.g.), evoluo, Senhora Presidente, no sentido de atribuir,
aos tratados internacionais em matéria de direitos humanos, superioridade
jurídica em face da generalidade das leis internas brasileiras, reconhecendo,
a referidas convenções internacionais, nos termos que venho de expor, quali-
ficação constitucional (grifos do autor).30

E também efetuará, ao citar o próprio voto do ministro Gilmar Mendes,


o controle de convencionalidade interno, assim como o fez este ministro. Para
tal, ele se expressa assim:

O fato é que - consoante assinalou em seu douto voto ‘A prisão civil do


depositário infiel não mais se compatibiliza com os valores supremos asse-
gurados pelo Estado Constitucional, que não está mais voltado apenas para
si mesmo, mas compartilha com as demais entidades soberanas, em contextos
internacionais e supranacionais, o dever de efetiva proteção dos direitos hu-
manos’31 (grifos do autor).

Dado o exposto, podemos perceber que o controle de convencionalidade


não é novidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Portanto,
ao analisarmos a ADPF 153, que é superveniente aos precedentes aqui apre-
sentados, a expectativa é a de que os ministros tenham mantido a coerência e
atendido os preceitos internacionais de direitos humanos, já que a demanda
em questão exige essa devida observação.

4. O CONTROLE JURISDICIONAL INTERNO DE


CONVENCIONALIDADE NA ADPF 153

Inicialmente, é importante frisar que a Arguição de Descumprimento de


Preceito Fundamental (ADPF) 153, que trata sobre a recepção constitucional
30
MELLO, Celso de., op. cit., p. 150.
31
Ibidem, apud MENDES, págs. 148 e 149.
280 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

do parágrafo 1° do art. 1° da lei de n° 6.683/79 (lei da anistia), foi julgada na


data de 29 de abril de 2010.
Como visto anteriormente, até essa data, já vinha sendo construída uma
jurisprudência nova no Supremo Tribunal Federal, no sentido de atribuir cada
vez mais importância aos tratados internacionais de direitos humanos, obser-
vando suas normativas, bem como ao entendimento da Corte Interamericana
de Direitos Humanos. O controle de convencionalidade, portanto, até o julga-
mento desta ADPF em questão, não é novidade para o STF.
No entanto, o resultado do julgamento do Supremo, por 7 votos a 2,
curiosamente, foi o de declarar como recepcionado constitucionalmente o
referido objeto da demanda, o que, aparentemente, a uma primeira leitura, vai
de encontro aos preceitos internacionais de proteção dos direitos humanos,
internalizados pelo Estado brasileiro e reiterados em outras diversas oportuni-
dades pelo STF, como nos precedentes que foram expostos acima.
Iniciemos, portanto, a análise a partir das considerações do relator, o mi-
nistro Eros Grau, que optou por destacar que a lei 6.693/79 foi uma espécie de
conquista de um processo bilateral e dialético. Isto é, para ele, que comprova essa
situação com fatos históricos, como os movimentos sociais, a anistia brasileira é
legítima e as consequências da perda de seus efeitos poderiam ser “nefastos”. Ele
destaca, ao apresentar uma teoria específica, a peculiaridade da lei de anistia bra-
sileira, que gozaria da qualidade de lei-medida, que a diferencia das leis comuns,
que podem ser extintas da maneira regular, prevista pela Teoria do Direito.
O ministro Grau, desse modo, julgou pela improcedência da ação, que
pedia a não recepção constitucional de parte da lei 6.683/79, e, não bastasse isso,
ele sequer observa as disposições internacionais, podendo ser, seu voto, caracte-
rizado como um voto omisso em relação ao controle de convencionalidade32.
Prosseguimos com o voto da ministra Cármen Lúcia, que faz importan-
tes observações acerca da incidência do direito à verdade, consagrado interna-
cionalmente:

Inicialmente, atento para o que foi observado pela Senhora Advogada repre-
sentante do amicus curiae Cejil, Dra. Helena de Souza Rocha, no sentido de
que a postulação encampada pela entidade por ela representada fundamenta-
-se no direito à verdade, hoje reconhecido pela legislação internacional como
inerente a todos os povos.33

A ministra se posiciona no sentido de que o objeto do julgamento não


demanda a incidência do direito à verdade, e nem mesmo a responsabilidade

32
BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153/DF,
Rel. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, julgado em 24/04/2010. Voto do Min. Eros Grau.
33
LÚCIA, Cármen, op. cit., p. 78.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 281
estatal de investigar as violações aos direitos humanos cometidas no período
em questão:

Assim, o direito à verdade, o direito à história, o dever do Estado brasileiro


de investigar, encontrar respostas, divulgar e adotar as providências sobre os
desmandos cometidos no período ditatorial não estão em questão, e, se estives-
sem, pelo menos eu, com certeza, daria resposta exatamente no sentido enalte-
cido pela advogada. Apenas, deve ser enfatizado que não é essa a questão, nem
ao menos como objeto de exame ou argumentação para a resposta judicial a
ser dada na presente arguição, simplesmente não é este o tema posto.34

Desse modo, podemos compreender que a ministra, dada a provocação,


não se omite em relação às exigências internacionais. No entanto, ela afasta
a aplicação das normativas a pretexto de a controvérsia não requerer esse
tipo de abordagem. E, ao se ater a outro tipo de argumentação, acompanha
o voto do relator.
Em seguida, podemos adentrar à analise o voto do ministro Ricardo Le-
wandowski, que é um dos dois votos divergentes. O ministro, em seu voto, vai
fazer a seguinte observação, ao se ater à conduta dos perpetradores de direitos
humanos no período do regime militar:

Ainda que se admita, apenas para argumentar, que o País estivesse em uma
situação de beligerância interna ou, na dicção do Ato Institucional 14/1969
– incorporado à Carta de 1967, por força da EC 1/1969 – enfrentando uma
“guerra psicológica adversa”, “guerra revolucionária” ou “guerra subversiva”,
mesmo assim os agentes estatais estariam obrigados a respeitar os compromis-
sos internacionais concernentes ao direito humanitário, assumidos pelo Brasil
desde o início do século passado.35

Diante disso, temos que o ministro entende que os “agentes estatais”


não poderiam atuar como quisessem sob o pretexto de uma suposta ameaça à
ordem, mas deveriam respeitar os limites dos direitos humanos, previstos em
“compromissos internacionais” já ratificados pelo Brasil até então.
Posteriormente, ele vai argumentar no sentido da obrigação assumida
pelo Brasil perante a Organização das Nações Unidas (ONU), mediante um
tratado ratificado pelo Estado brasileiro:

Nesse passo, convém lembrar, também, que o Comitê de Direitos Humanos


da Organização das Nações Unidas já assentou que os Estados Partes do Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos – ratificado pelo Brasil – têm o

34
Ibidem, p. 79.
35
LEWANDOWSKI, Ricardo, op. cit., p. 118.
282 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

dever de investigar, ajuizar e punir os responsáveis por violações de direitos


nele protegidos.36

Nesse trecho, ele vai lembrar a obrigação do Estado de investigar, pro-


cessar e punir os violadores dos direitos contidos na convenção em questão.
Novamente, o ministro demonstra conhecimento e afinidade às disposições
internacionais.
Ademais, Lewandowski, para reforçar ainda mais o conteúdo do seu voto,
vai rememorar aos seus pares o entendimento da Corte Interamericana acerca
da atuação judicial:

Na mesma linha, a Corte Interamericana de Direitos Humanos afirmou que os


Estados Partes da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – também
internalizada pelo Brasil – têm o dever de investigar, ajuizar e punir as violações
graves aos direitos humanos, obrigação que nasce a partir do momento da rati-
ficação de seu texto, conforme estabelece o seu art. 1.1. A Corte Interamericana
acrescentou, ainda, que o descumprimento dessa obrigação configura uma viola-
ção à Convenção, gerando a responsabilidade internacional do Estado, em face
da ação ou omissão de quaisquer de seus poderes ou órgãos.37

Com isso, o ministro adequa seu voto às recomendações internacio-


nais, observando os preceitos de direitos humanos, bem como os aplican-
do ao caso concreto em questão. Com esse posicionamento, ele mantém
a coerência em relação aos seus votos anteriores, como o seu julgamento
diante do HC de n° 88.420/PR e do RE de n° 511.961/SP nos quais, como
visto anteriormente, também faz referência a convenções e tratados. Assim,
ele julgou parcialmente procedente a ação, admitindo, em algumas hipó-
teses, a persecução penal a violadores dos direitos humanos, do período
histórico em questão, decisão essa que aparentemente foi motivada pela
observação dos tratados de direitos humanos, o que caracterizaria o con-
trole de convencionalidade, embora esse não tenha sido expresso como em
outras oportunidades.
Em seguida, passemos a nos ater ao voto do ministro Ayres Britto, que,
bem como Ricardo Lewandowski, apresenta voto divergente, declarando par-
cialmente a procedência da ADPF impetrada.
Em julgamento bastante emotivo, o magistrado, com adjetivação con-
tundente, constrói a sua argumentação. Ele prefere, para tal, observar a litera-
lidade do objeto. A partir de uma simples leitura, ele interpreta que a lei de
n° 6.683/79 não estende a anistia a crimes hediondos, que estão previstos no

36
Ibidem, p. 128.
37
Ibidem, p. 129.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 283
inciso XLIII do art. 5° da Constituição Federal. Admitindo, assim como o
ministro Lewandowski, a responsabilização dos infratores.38
No entanto, em relação às disposições internacionais, o ministro, a exem-
plo do relator, demonstrou omissão. Não se referiu a convenções de direitos
humanos e tampouco ao entendimento jurisprudencial da CTIDH. Por isso,
ao se limitar ao ordenamento jurídico interno e ignorar as disposições inter-
nacionais, é possível inferir que seu posicionamento careceu de maior funda-
mentação jurídica sedimentada em matéria de direitos humanos.
Dando continuidade à análise, remeteremos atenção ao voto da ministra
Ellen Gracie, que apresenta um voto bastante curto, pouco fundamentado,
que acompanha inteiramente o relator do caso.
O entendimento da ministra, talvez, seja o que mais se opõe aos precei-
tos de direitos humanos internacionais. Não somente pelo fato de ela não
observar os tratados e muito menos a jurisprudência das cortes externas,
mas também por demonstrar posicionamento que contraria todo o espírito
de proteção dos direitos humanos que se desenvolveu internacionalmente,
como nos reiterados julgamentos da CTIDH, o qual foi rapidamente expla-
nado no tópico anterior, no sentido de identificar e responsabilizar quem
venha a transgredi-los.
Ela, ao admitir o sentido grego de anistia, consigna os seguintes termos:

Anistia é, em sua acepção grega, esquecimento, oblívio, desconsideração in-


tencional ou perdão de ofensas passadas. É superação do passado com vistas
à reconciliação de uma sociedade. E é, por isso mesmo, necessariamente
mútua. É o objetivo de pacificação social e política que confere à anistia seu
caráter bilateral.39

E, ao finalizar o seu voto, ela ainda faz outras considerações no mesmo


sentido, argumentando que não podemos retroagir, apenas nos limitar cons-
truir um futuro diferente:

Não é possível viver retroativamente a história, nem se deve desvirtuá-la para


que assuma contornos que nos pareçam mais palatáveis. Uma nação tem sua
dimensão definida pela coragem com que encara seu passado, para dele tirar as
lições que lhe permitam nunca mais repetir os erros cometidos.40

Em suma, em relação ao controle de convencionalidade, é possível per-


ceber, claramente, que a ministra não o exerceu e ignorou completamente os

38
BRITTO, Ayres, op. cit.
39
GRACIE, Ellen., op. cit., p. 152.
40
Ibidem.
284 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

mandamentos internacionais de direitos humanos que, dada a natureza do


objeto da ADPF, deveriam ter sido observados.
Em relação ao voto do ministro Marco Aurélio, este, assim como a mi-
nistra Ellen Gracie, apresentou um voto bastante breve e desprovido de densa
fundamentação. Limitou-se, ao acompanhar o entendimento do relator, a des-
tacar seu posicionamento expresso em outro precedente acerca da lei 6.683/79
e também não observou os compromissos internacionais assumidos pelo Bra-
sil em matéria de direitos humanos, caracterizando a sua omissão.41
Passemos, agora, a analisar o voto do ministro Celso de Mello, que, ape-
sar de acompanhar o voto do relator, que declara a improcedência da ação,
remete sua argumentação aos tratados internacionais e ao entendimento da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, a exemplo do ministro Ricardo
Lewandowski. Em seus termos, ele destaca primeiramente a diversidade de
obrigações assumidas pelo Estado brasileiro para combater as injustiças pro-
vocadas pelos regimes autoritários:

O Brasil, consciente da necessidade de prevenir e de reprimir os atos caracteri-


zadores da tortura, subscreveu, no plano externo, importantes documentos in-
ternacionais, de que destaco, por sua inquestionável importância, a Convenção
Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degra-
dantes, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1984; a Convenção
Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, concluída em Cartagena em
1985, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da
Costa Rica), adotada no âmbito da OEA em 1969, atos internacionais estes que
já se acham incorporados ao plano do direitos positivo interno (grifos do autor).42

Essa constatação, por parte do ministro, já é o suficiente para demonstrar


que ele, diferentemente de alguns de seus pares, não se mostrou omisso em
relação às obrigações internacionais assumidas pelo Estado.
Ele ainda vai além, observando, inclusive, o controle de convencionalida-
de exercido pela CTIDH em alguns precedentes:

Reconheço que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em diversos


julgamentos – como aqueles proferidos, p. ex., nos casos contra o Peru (“Bar-
rios Altos”, em 2001, e “Loayza Tamayo”, em 1998) e contra o Chile (“Almo-
nacid Arellano e outros”, em 2006) -, proclamou a absoluta incompatibili-
dade, com os princípios consagrados na Convenção Americana de Direitos
Humanos, das leis nacionais que concederam anistia, unicamente, a agentes
estatais, as denominadas “leis de auto-anistia” (grifos do autor).43

41
Cf. AURÉLIO, Marco, op. cit.
42
MELLO, Celso de., op. cit., p. 162.
43
Ibidem, p. 183.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 285
Além desse reconhecimento, ele ainda expôs quais os fundamentos ju-
rídicos convencionais que embasam as decisões internacionais a respeito das
violações de Direitos Humanos:

A razão dos diversos precedentes firmados pela Corte Interamericana de


Direitos Humanos apóia-se no reconhecimento de que o Pacto de São José
da Costa Rica não tolera o esquecimento penal de violações aos direitos
fundamentais da pessoa humana nem legitima leis nacionais que amparam
e protegem criminosos que ultrajaram, de modo sistemático, valores essen-
ciais protegidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos e que
perpetraram, covardemente, à sombra do Poder e nos porões da ditadura
a que serviram, os mais ominosos e cruéis delitos, como o homicídio, o
sequestro, o desaparecimento forçado das vítimas, o estupro, a tortura e ou-
tros atentados às pessoas daqueles que se opuseram aos regimes de exceção
que vigoraram, em determinado momento histórico, em inúmeros países
da América Latina (grifos do autor).44

Desse modo, o magistrado se adequa às exigências internacionais, ao ob-


servar tanto as convenções de Direitos Humanas ratificadas pelo Brasil quan-
to a jurisprudência da Corte Interamericana, o que não é novidade em seus
posicionamentos no STF, como pudemos perceber no RE de n° 466.343/SP.
No entanto, mesmo diante dessa postura proativa, ele decide por afastar
o entendimento da CTIDH neste caso concreto, argumentando dessa forma:

É preciso ressaltar, no entanto, como já referido, que a lei de anistia brasileira,


exatamente por seu caráter bilateral, não pode ser qualificada como uma lei
de auto-anistia, o que torna inconsistente, para os fins deste julgamento, a
invocação dos mencionados precedentes da Corte Interamericana de Direi-
tos Humanos (grifos do autor).45

Dando sequência à análise dos votos, observemos o voto do ministro Cezar


Peluso, no qual é possível perceber que ele não se omite em relação aos preceitos
internacionais, apesar de fundamentar seu voto predominantemente no estudo
do ordenamento interno e na interpretação histórica. Ao observar a convencio-
nalidade, com argumentação quase idêntica à do ministro Celso de Mello, ele
afasta o entendimento das cortes internacionais nos seguintes termos:

E quinto lugar, o caso não é de autoanistia, censurada pelos tribunais inter-


nacionais. Seria de autoanistia, se tivesse provindo de ato institucional ou de
unilateral ato normativo equivalente. Ela proveio de um acordo, como tantos
outros celebrados no mundo, e dos quais, só pra relembrar caso que me parece

44
Ibidem, p. 183 e 184.
45
Ibidem, p. 184.
286 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

mais exemplar, o consumado na África do Sul, que concedeu anistia ainda


mais ampla do que a nossa.46

Diante disso, o magistrado entende que a jurisprudência dos tribunais in-


ternacionais de direitos humanos não se aplica ao caso concreto, justamente por
a lei da anistia brasileira ser fruto de um “acordo”, dotado de bilateralidade.
Por fim, temos o voto do ministro Gilmar Mendes47, que, apesar de sua
extensão, em momento algum observa as normativas internacionais e muito
menos exerce o controle de convencionalidade. Mendes se mostra totalmen-
te omisso em relação à convencionalidade da lei da anistia48. Isso, portanto,
evidencia uma incoerência em sua postura, já que, no RE de n° 511.961/SP e
no RE de n° 466.343/SP, apresentados e rapidamente analisados aqui anterior-
mente, ele exerce o controle de convencionalidade, e, neste último precedente,
inclusive, o magistrado faz importantes considerações acerca do protagonismo
dos tratados internacionais de direitos humanos e da necessidade de adequa-
ção das leis domésticas a suas exigências, bem como defende uma atualização
na atuação jurisdicional no mesmo sentido, de maior diálogo e afinidade com
os preceitos humanitários emanados internacionalmente, o que, evidentemen-
te, ele não reiterou neste julgado em análise.
Diante dessa análise, é evidente que o Supremo Tribunal Federal não exer-
ceu satisfatoriamente o controle de convencionalidade da lei de n° 6.683/79,
adotando uma postura predominantemente omissa, salvo as exceções aqui
observadas, nos votos dos ministros Celso de Mello e Ricardo Lewandowski,
que tiveram uma postura judicial bastante proativa nesse sentido.

CONCLUSÃO

Diante do exposto, foi possível compreender, de início, que o controle de


convencionalidade não é responsabilidade somente das cortes internacionais. Pelo
contrário, a jurisdição dos Estados também deve exercê-lo, de ofício, no plano
interno, sempre objetivando a situação jurídica mais favorável à pessoa humana.
Pudemos perceber, também, que o Supremo Tribunal Federal, em sua
jurisprudência, antes do julgamento da ADPF 153, já lidava com questões
de direitos humanos consagradas internacionalmente e exercia o controle de
convencionalidade em algumas oportunidades, sedimentando uma jurispru-
dência mais próxima da normativa internacional, postura que rompia com

46
PELUSO, Cezar, op. cit., p. 210.
47
O voto do ministro Gilmar Mendes, apesar de ser expressado anteriormente, é reiterado com uma fun-
damentação mais consistente por meio de um voto-vogal, que se encontra, no documento em análise,
posterior a todos os outros votos de seus pares.
48
Cf. MENDES, Gilmar, op. cit.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 287
os precedentes mais antigos, que dedicavam maior atenção aos postulados do
ordenamento jurídico interno.
No entanto, no precedente ora investigado, curiosamente, a postura do
STF relativa às disposições internacionais foi outra, predominantemente omis-
sa e contraposta ao entendimento internacional de direitos humanos. Seria
essa postura do Pretório Excelso incoerente em relação à própria jurisprudên-
cia? Essa suposta incoerência teria força suficiente para ensejar uma revisão
da decisão pelo mesmo Supremo? Uma eventual revisão da decisão poderia
produzir efeitos reais na atualidade? Essas reflexões, algumas das possíveis em
torno da investigação sobre o julgamento da ADPF 153, demonstram que o
interesse crítico acerca desse precedente não se esgotou e este ainda se mostra
um bom objeto de debate.
Em suma, sob uma perspectiva geral, é possível compreender que a ju-
risdição brasileira necessita de uma maior proximidade e afinidade com os
preceitos internacionais de direitos humanos com o objetivo de que o Estado
brasileiro cumpra de forma eficiente suas obrigações, assumidas mediante a
ratificação perante os tratados internacionais, a fim de que se garanta cada vez
mais proteção à pessoa humana. E que as instituições dos Estados jamais sejam
coniventes novamente com as violações de direitos humanos características
dos períodos de governos autoritários.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153/DF, Rel.
Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, julgado em 24/04/2010.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 88. 420/PR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira
Turma, julgado em 17/04/2007.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário 466.343/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, Tribunal
Pleno, julgado em 03/12/2008.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário 511.961/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal
Pleno, julgado em 17/06/2009.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Almonacid Arellano e outros Vs. Chile.
Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Julgamento de 26 de setembro de 2006.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gomes Lund e outros (“guerrilha do Ara-
guaia”) Vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Julgamento de 24 de novembro de 2010.
OEA. Convenção Americana de Direitos Humanos (pacto de San José da Costa Rica), 1969.
GUERRA, Sidney. O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o controle de convencio-
nalidade. São Paulo: Atlas, 2013.
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 4. ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2016.
RAMOS, A. de Carvalho. Supremo tribunal federal brasileiro e o controle de convencionalidade: levando a sério
os tratados de direitos humanos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 104, p.
241-246jan./dez. 2009.
Capítulo 18
Convenção Internacional Sobre os Direitos
das Pessoas Com Deficiência e seus Impactos no
Ordenamento Jurídico Brasileiro
Thiago Fernando de Queiroz
Sônia Alves Bezerra Lins

1. INTRODUÇÃO

Na atualidade a soberania dos Estados-Nação vem sendo fonte de ques-


tionamentos em relação à complexidade das questões econômicas e da vida
em sociedade. Deste modo, observa-se que ao longo da história foi necessário
um meio que delineasse uma forma que trouxesse um equilíbrio, um modo
de pacificar os conflitos e que permitisse a sociedade viver harmoniosamen-
te. Ressaltar ainda mais a importância de tratados, convenções e declarações
que tenham como objetivo a garantia dos Direitos Humanos. Sendo assim, o
presente artigo objetiva discorrer uma breve análise dos documentos que sus-
citaram as garantias dos direitos das pessoas com deficiência.
A Constituição de 1988 da República Federativa do Brasil, traz a possi-
bilidade de que os documentos internacionais que versam sobre os direitos
humanos façam parte do seu ordenamento jurídico, quando esses são pactua-
dos por seus representantes legais1; assim, o Brasil, sendo signatário, ver-se no
dever do cumprimento de acordos internacionais a fim de promover políticas
que atendam aos direitos humanos. Esse fenômeno exprime uma forma de
um novo modelo de constitucionalismo2, ao qual os Estados-Nação buscam
de algum modo hierárquico de normas, resguardarem os direitos de seu povo.
A Carta Magna brasileira emana de diversos dispositivos que abordam as
garantias dos direitos fundamentais e sociais para as pessoas com deficiência
(PCD). Isso constituiu avanços, dos quais, resultantes dos tratados e conven-
ções internacionais que o Brasil teve que investir esforços para cumprir as me-

1
Artigo 5º, § 3º os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em
cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros,
serão equivalentes às emendas constitucionais
2
Mazzuoli elucida que essa “tendência do constitucionalismo contemporâneo de se igualar hierarquica-
mente os tratados de proteção dos direitos humanos às normas constitucionais.” (2002, pág. 121)
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 289
tas pactuadas nos referidos documentos. Um dos tratados internacionais que
trouxe significantes avanços nas garantias e direitos das PCD’s foi a Conven-
ção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CIDPCD);
esse documento foi elaborado por uma comissão da Organização das Nações
Unidas (ONU), à qual a República Federativa do Brasil pactuou em uma reu-
nião em Nova York no dia 30 de março de 2007.
A conquista do reconhecimento dos direitos das PCD’s asseveradas pela
Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi
resultante de movimentos organizados com muitas lutas em protestos e reivin-
dicações de medidas que visassem a superação dos diversos males sofridos por
essas pessoas, na prática de sua cidadania e protagonismo que reivindicavam
igualdade de oportunidades à semelhança dos demais cidadãos. Diante disso,
a internacionalização da Convenção pela nação brasileira ratificou os direitos
assegurados e reconheceu muitas outras necessidades, dando maior consistên-
cia à política de Direitos Humanos e à vida em sociedade, à medida que trouxe
mais dignidade e valoração a esse público que, no Brasil, somaram cerca de 45
milhões3 de pessoas nessa condição de algum tipo de deficiência.
Outro avanço significante ocorreu quando, por influência da referida
Convenção, o Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência
(CCONADE), que está vinculado à Secretaria de Direitos Humanos, lança
uma portaria exprimindo o conceito da terminologia4 que deve ser utilizada
para as PCD’s, pois, anteriormente, as mesmas eram denominadas como pes-
soas portadoras de deficiência. Contudo, existe uma dúvida no tocante ao ter-
mo necessidades especiais, o Artigo 3º5 do Decreto nº 914, de 06 de setembro
de 1993, abrangia pessoas com necessidades especiais às pessoas com deficiên-
cia, porém, tal decreto foi revogado pelo Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro
de 1999. Pessoas com necessidades especiais pode ser pessoas com deficiência
ou não, pois, como o próprio nome elucida, pessoa com necessidade especial é
aquela que necessita de algum apoio diferenciado para cumprir com algum as-
pecto laboral, como por exemplo, um idoso que utiliza a bengala para andar,
uma criança com dificuldade na aprendizagem que tem aulas de reforço para
melhorar seu índice de aprendizagem, ou até mesmo uma pessoa obesa que
necessita de assentos especiais para se acomodar em transportes.
Essa mudança na terminologia reflete um processo de quebra de paradig-
ma, o qual, historicamente, esse grupo de pessoas que eram relegadas à própria

3
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE de 2010.
4
Portaria SEDH Nº 2.344, de 3 de novembro de 2010, sancionada em 05.11.2010 – Art. 2º - I: “Onde se
lê “Pessoas Portadoras de Deficiência”, leia-se “Pessoas com Deficiência””
5
Art. 3º Considera-se pessoa portadora de deficiência aquela que apresenta, em caráter permanente, per-
das ou anormalidades de sua estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, que gerem inca-
pacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano.
290 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

sorte, sem a valoração devida, enquanto ser humano, nem pelo Estado e nem
pela sociedade e tratados como coisa qualquer, passam a serem vistos como
pessoas que, independentemente de suas limitações, têm potencialidades e di-
reitos inalienáveis; isto significa que os direitos fundamentais não podem ser
legitimamente negados a nenhuma pessoa; por outro lado, são irrenunciáveis,
visto que uma pessoa não pode renunciar o seu direito fundamental e sub-
meter-se de forma voluntária às ordens de terceiros, ainda que seja do Estado.
A organização do documento legal da Convenção delineia-se em seu
preâmbulo, nos 40 artigos temáticos onde abrange sobre os direitos funda-
mentais e sociais, 10 artigos administrativos e o Protocolo Facultativo para
monitoramento. Há de se salutar que a Convenção abrange em seu documen-
to princípios basilares que traz a lume garantias que primam por uma maior
dignidade a pessoa com deficiência, dentre os tais princípios, pode-se citar o da
autonomia das vontades, da igualdade e da não discriminação. Os princípios
supramencionados ganharam um forte peso no Ordenamento Jurídico bra-
sileiro, bem como os Estados-partes6 que consignaram com esse documento.
No Brasil, a Convenção tem caráter de emenda à Constituição, isso porque tal
documento foi aprovado pelo Congresso nacional por três quintos dos votos.
A CIDPCD influenciou fortemente no processo de elaboração da Lei Bra-
sileira de inclusão e em demais parâmetros. Neste exposto, este artigo acadêmico
abrangerá algumas dessas influências ao Ordenamento Jurídico brasileiro, para
tanto, foi realizada uma pesquisa documental7, ao qual são fontes primárias
do estudo em análise, foi também explorado brevemente uma contextualização
histórica das pessoas com deficiência, com a finalidade de compreender qualita-
tivamente a importância de tal documento ao Ordenamento Jurídico brasileiro.

2. BREVE MARCO HISTÓRICO ATÉ A ELABORAÇÃO DA


CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DAS
PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Não se pode ignorar a segregação histórica que as pessoas com deficiência


vivenciaram ao longo do tempo e, o quanto esses marcos históricos foram
sendo transformados a cada ano. Os povos antigos entendiam que as crianças
que nasciam com algum tipo deficiência eram seres amaldiçoados e, por isso,
eram sacrificadas logo ao nascer; isso era fomentado por paradigmas que tinha
o cunho de que seus povos deveriam ser uma raça perfeita.

6
De acordo com o Decreto nº 3.045/99, item 1, a) Estado Parte significa cada um dos países signatários
do presente acordo e aqueles que a ele aderirem posteriormente.
7
Conforme Severino (2007), a pesquisa documental “tem-se como fonte documento amplo [...]. Nestes ca-
sos, os conteúdos dos textos ainda não tiveram nenhum tratamento analítico, são ainda matéria-prima [...]”;
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 291
Alguns povos também entediam que a pessoa que nascia com deficiência
era mediante à um fato errôneo da natureza ou pecado de seus genitores, ou
mesmo pelo próprio ser que teria cometido um erro grave. Observa-se esse
fato em um texto bíblico , ao qual João narra a história de uma pessoa com
cegueira total e que, Jesus, ao passar por ela, a mesma lhe pediu que a curasse
e, atendendo ao pedido, essa pessoa voltou a ver; daí Jesus foi questionado por
seus discípulos quem tinha pecado para que a pessoa com deficiência nascesse
cega; o Líder cristão respondeu-lhes que a deficiência era para ser manifestada
a glória de Deus, modificando assim o entendimento de seus discípulos ao
que tangia ao paradigma da época que associava a deficiência ao pecado e a
transgressão de um princípio divino. Passando por essa contextualização his-
tórica citado no texto bíblico, desse momento até o período onde começou-se
a falar de direitos humanos e direitos fundamentais, pouca coisa avançou no
que tange aos direitos das PCD’s.
Adentrando sobre a perspectiva dos direitos humanos e direitos funda-
mentais, pode-se ressaltar o marco do documento da Declaração Universal do
Direito do Homem e do Cidadão de 1789, tal documento fora fomentado no
período da Revolução Francesa, e, a partir dele começou-se a falar em dimen-
sões ou também chamada gerações de direitos humanos.
Passados esses períodos, outro fato iria advir para a promoção e para
o desenvolvimento das garantias e direitos das pessoas com deficiência. No
início do Século XX houveram duas grandes guerras mundiais, das quais, em
função das mazelas delas advindas, muitos outros direitos foram conquista-
dos, como a igualdade de oportunidades, visto que muitos dos homens que
voltaram dessas guerras estavam mutilados, alguns ficaram cegos, surdos, com
deficiência física e até com deficiência intelectual/mental. Para tanto, muitas
nações buscaram reabilitar esses homens que lutaram por sua pátria, buscando
diminuir os impactos que as deficiências lhes trouxeram. Esse período his-
tórico foi conhecido como da integração, pois, de algum modo buscou-se a
participação da pessoa com deficiência na sociedade, porém, na realidade de
fato elas não eram incluídas.
Após esse período de guerras, os Estados começaram a criar parcerias,
atuarem de forma regionalizada, para que assim fosse garantido a efetividade
dos direitos humanos. Na América, no ano de 1948 foi fundado a Organiza-
ção dos Estados Americanos (OEA); tendo como objetivo fundante resguardar
os direitos humanos aos Estados-membros que compusessem a esse bloco.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também conhecida
como o Pacto de São José da Costa Rica, foi adotada no âmbito da Organiza-
ção dos Estados Americanos, em São José da Costa Rica, em 22 de novembro
de 1969. Tal documento foi assinado pela República Federativa do Brasil e
promulgada através do Decreto Nº 678, em 6 de novembro de 1992. O arti-
292 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

go 1º da Convenção Americana de Direitos Humanos estabelece a liberdade


como direito para o pleno exercício de toda pessoa e todo tipo de combate à
discriminação.
Com isso, os Estados-Partes, a fim de cumprir acordos internacionais,
passaram a impulsionar a criação de outros dispositivos legais e de políticas,
conforme as demandas locais para a promoção humana, desencadeando mu-
dança de paradigmas, dos quais exigem atualização histórica, respeito às sin-
gularidades dos sujeitos e, o entendimento de que a pessoa para além de uma
deficiência é um ser com limites e potencialidades e, como tais, têm o direito
de igualdade de oportunidades indistintamente.
Outro marco relevante é a Declaração de Salamanca, pois, consolidou a
concepção da inclusão das pessoas com deficiência, tendo sido elaborada na
“Conferência Mundial sobre Educação Especial”, que ocorreu na cidade de Sa-
lamanca, na Espanha, em 1994. Essa declaração exprime a necessidade de que
todas as crianças com deficiência ou com algum tipo de necessidade especial
devam estudar em salas regulares, juntas com as demais crianças, permitindo,
deste modo, uma construção de crescimento mútuo de aprendizagens. Sen-
do assim, a Declaração de Salamanca impulsionou a educação na perspectiva
inclusiva e inspirou a atualização da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(LDB), Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
É reluzente dizer que a concepção de inclusão está relacionada no ato de
permitir que os sujeitos, mesmo com suas diferenças e especificidades, devam
estar em uma construção trilateral de desenvolvimento social; entre a família,
sociedade e os sujeitos que estão as margens da exclusão. É pertinente afirmar
que para que haja realmente a inclusão das pessoas com deficiência, esses su-
jeitos precisam estar em todos os espaços, atuando de forma participativa na
luta por tal inserção. Porém, pode-se entender que a inclusão advém de uma
bilateralidade8, entre sociedade e os sujeitos que estão às margens da inclusão.
Contudo, muitos dos direitos das pessoas com deficiência começam a ser
negados no próprio contexto familiar, assim há de se salientar a importância
desse aspecto trilateral para que haja a inclusão, é necessário então a participa-
ção da família, da sociedade e das pessoas com deficiência.

3. ELABORAÇÃO DA CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE


OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Mediante a todos esses documentos internacionais supracitados, dentre


outros que aqui não foram mencionados, aos quais também versam sobre os

8
Sassaki (1997) aborda que a inclusão somente ocorre quando existe a bilateralidade entre a sociedade e
a pessoas com deficiência.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 293
Direitos humanos no que abrange aos direitos das pessoas com deficiência;
é importante compreender que todos esses documentos foram importantes
para auxiliar na elaboração da Convenção Internacional sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência
No ano de 2002 uma Comissão da ONU começa os trabalhos na cons-
trução no documento ao qual conhecemos hoje como a “Convenção Inter-
nacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência”. O diferencial da
elaboração da Convenção foi a participação das entidades de pessoas com
deficiência, tendo esses sujeitos na discussão das matérias abrangidas na cons-
trução do documento.9
Como abordado, a CIDPCD teve uma participação ativa das pessoas com
deficiência, tanto nas discussões nas comissões, como na construção do docu-
mento final. Isso viabilizou veementemente nas garantias e direitos que estão
contidos no documento. Pela participação ativa das pessoas com deficiência
na elaboração da Convenção, os membros das Comissões utilizaram o seguin-
te tema “Nada Sobre Nós, Sem Nós”10, pois, é de se convir que as pessoas com
deficiência sabem e sentem realmente os fatores que implicam em sua vida co-
tidiana. Por este viés que a CIDPCD trouxe um caráter que realmente atendeu
as necessidades das pessoas com deficiência, norteando outros Estados no que
abrange aos direitos mínimos para as PCD’s.
Tendo levado em média quatro anos de elaboração do documento, no
dia 13 de dezembro de 2006, em uma reunião da Assembleia Geral da Organi-
zação das Nações Unidas (ONU) em Nova York o texto final foi aprovado. A
Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência detém
de 50 artigos, sendo o documento dividido, tendo o preâmbulo, 40 artigos
temáticos e 10 artigos administrativos; além de conter o Protocolo Facultativo
para monitoramento, os quais condensam e asseguram, na forma do direito,
os anseios desse grupo de pessoas.
Ao ter sido apresentado o texto final, somente em 30 de março de 2007
foi exposto aos Estados-Partes para assinarem e pactuarem com o tratado, ao
qual o Brasil foi um desses Estados partes que consignaram com a Convenção.
Após a assinatura da Convenção, houve a tramitação e aprovação do Decreto
legislativo nº 168 do dia 09 de julho de 2008. Por fim, ao ter sido aprovado o

9
ATALIA, Regina. Entrevista com Luis Gallegos Chiriboga, presidente (2002-2005) do comitê Ad Hoc
que elaborou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. 2011.
10
Nesse ponto, Soares (2010) diz que a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com De-
ficiência foi: construída a partir da ótica de que as próprias pessoas com deficiência são as que sabem o
que é melhor para elas e por isso devem ser ouvidas em todas as ações que as envolvam. O lema NADA
SOBRE NOS SEM NOS concede a essa obra, desde a sua concepção até seu desfecho final, a exata di-
mensão do que as pessoas com deficiência são capazes de fato (SOARES, 2010, pág. 63 apud BRASIL,
2008, p. 15)
294 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Decreto Legislativo, o mesmo foi encaminhado pelo Presidente da República


para seguir os trâmites eminentes que está na Carta Magna, e, deste modo, o
documento foi encaminhado ao Congresso Nacional para que houvesse as
duas votações, assim como emana os termos do § 3º do art. 5º11 da Constitui-
ção Federal. No tocante aos ritos da aprovação da Convenção Internacional
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a mesma foi aprovada nas duas
Casas legislativas federais por três quintos dos votos12.
No dia 25 de agosto de 2009, o Presidente da República em exercício pro-
mulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Defi-
ciência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março
de 2007. Esse documento trouxe enormes mudanças positivas ao ordenamento
jurídico brasileiro nas garantias dos direitos das pessoas com deficiência, in-
fluenciando diretamente na construção do que se tornaria a Lei Brasileira de
Inclusão, Lei nº 13.146 do dia 06 de julho de 2015.

4. AVANÇOS NAS GARANTIAS DE DIREITOS

Uma das principais mudanças que a Convenção Internacional sobre os


Direitos das Pessoa com Deficiência trouxe ao ordenamento jurídico brasilei-
ro foi a mudança da terminologia de como deve ser chamado as pessoas com
deficiência, no conceito de pessoa com deficiência e nos princípios basilares
como o da autonomia e da não-discriminação. Anteriormente, utilizava-se o
termo “pessoa portadora de deficiência”; porém, a Convenção traz a termino-
logia “pessoa com deficiência”.
Sobre a terminologia, o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com
Deficiência – CONADE, influenciada pela CIDPCD, emitiu a Portaria nº 2.344,
de 201013, que elucida onde se ler “pessoa portadora de deficiência” venha a ser
lido “pessoa com deficiência”. Deste modo, tal parâmetro teve caráter ex nunc,
tendo sua influência não de forma cogente, mas, em caráter norteador em nos
documentos que viesse a ser elaborado a partir daquele momento, até porque tal
11
Constituição Federal 1988 Artigo 5º, § 3º “aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em
dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais”.
12
Fernandes (2017) expõe que a aprovação em cada Casa legislativa, começando pela Câmara teve: na
primeira sessão, em 13 de maio de 2008, a aprovação com status constitucional obteve 418 votos fa-
voráveis, 11 abstenções e nenhum voto contrário à proposta. Na segunda sessão. dia 28 de maio de
2008. a aprovação se repetiu com 356 votos favoráveis, seis abstenções e nenhum voto contrário. Após
a aprovação em dois turnos na Câmara, o texto convencional, já com status de Proposta de Emenda à
Constituição (PEC), seguiu para o Senado Federal. A Casa Superior do Congresso aprovou, dia 2 de
julho de 2008, em duas sessões realizadas em ato continuo, com 56 votos favoráveis e nenhum contrário.
(FERNANDES, 2017, pág. 67)
13
Art. 2º, Inciso I, que “onde se lê “Pessoas Portadoras de Deficiência”, leia-se “Pessoas com Deficiência”.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 295
inciso não muda a terminologia, apenas a forma como se deve ler. Entretanto,
tal parâmetro tem sido utilizado como orientador nas elaborações dos docu-
mentos ao que concerne às pessoas com deficiência.
A CIDPCD traz em seu texto basilar no Artigo 1º14 a conceituação de pes-
soa com deficiência. Antes da Convenção, o Brasil utilizava-se da conceituação
que a Lei nº 5.296, de 2 dezembro de 200415. Observa-se que a conceituação
de pessoa com deficiência elencada pela referida lei que tal sujeitos são aqueles
que têm uma limitação ou incapacidade; e, essa terminologia incapacidade afere
de modo contundente ao modo em que a sociedade entende ser a pessoa com
deficiência. No entanto, o texto da Convenção Internacional sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência é aquela que tem impedimento a longo prazo.
Há de se salientar que a conceituação da Convenção traz um caráter de maior
dignidade à pessoa com deficiência, pois, extingue o termo “incapacidade” e utiliza
“impedimentos de longo prazo”. Esse termo que até então era utilizado, externava
de algum modo o paradigma arraigado ao qual a sociedade entendia ser a pessoa
com deficiência, um ser incapaz. Trazendo a lume a tal entendimento, o Código
Civil brasileiro trazia em seus Artigos 3º e 4º que as pessoas com deficiência eram
relativamente incapazes, porém, por meio da Lei 13.146/15 que foi influenciada
pela Convenção, os incisos que traziam essa concepção, foram revogados.
A CIDPCD estarrece praticamente em todo seu documento os princípios
da autonomia, da igualdade de oportunidades e da não-discriminação. Enfa-
tiza em diversas vertentes o dever de os Estados-Partes procurarem fomentar
a utilização de tecnologias assistivas como ferramenta que proporcione e pro-
mova ap máximo da autonomia, bem como a capacidades das pessoas com
deficiência. No que coaduna sobre a perspectiva da autonomia, o Artigo 26º16
da CIDPCD ao abordar sobre a habilitação e reabilitação expõe essa vertente
na promoção da autonomia das PCD’s.
No emanado em tal exposto, os Estados partes firmam compromissos de
promover ao máximo a autonomia das pessoas com deficiência, bem como
promover ao máximo suas capacidades na vida cotidiana. Para tanto, na busca
14
Artigo 1º. Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física,
mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua parti-
cipação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. 
15
Artigo 5º, § 1º, inciso I: “§ 1o Considera-se, para os efeitos deste Decreto: I - pessoa portadora de de-
ficiência, além daquelas previstas na Lei no 10.690, de 16 de junho de 2003, a que possui limitação ou
incapacidade para o desempenho de atividades (...)”.
16
Artigo 26. Os Estados Partes tomarão medidas efetivas e apropriadas, inclusive mediante apoio dos pa-
res, para possibilitar que as pessoas com deficiência conquistem e conservem o máximo de autonomia e
plena capacidade física, mental, social e profissional, bem como plena inclusão e participação em todos
os aspectos da vida. Para tanto, os Estados Partes organizarão, fortalecerão e ampliarão serviços e pro-
gramas completos de habilitação e reabilitação, particularmente nas áreas de saúde, emprego, educação
e serviços sociais. (...).
296 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

dessa autonomia, tal artigo ainda admoesta a importância do uso das tecnolo-
gias assistivas ao expor no Artigo 26º Item 317. De igual modo no que concerne
a autonomia das pessoas com deficiência, as tecnologias assistivas possibilitam
essa quebra de barreiras da informação. Neste ponto, o Artigo 4º Item 1, alí-
neas g e h18 da CIDPCD elenca que é dever dos Estados partes promoverem
essas tecnologias para a diminuição das barreiras concernentes a informação.
Na promoção da igualdade de oportunidades, as tecnologias assistivas
é uma das formas pela qual isso realmente pode ocorrer, porém, realmente
é necessário que haja a aplicabilidade de tais recursos para essa efetivação. A
CIDPCD em seu Artigo 5º aborda sobre a “igualdade e não-discriminação”,
o Brasil tem até expresso em sua Carta Magna no Artigo 5º o princípio da
igualdade, conhecido também como Princípio da Isonomia.
A CIDPCD estarrece a questão do princípio da não-discriminação, pois,
a discriminação é algo vivenciado recorrentemente pelas pessoas com deficiên-
cia. É importante até se atentar no que consta no Artigo 5º Itens do 1 ao 419
que todas as pessoas com deficiência são iguais perante a lei e que o Estados
Partes deve diminuir os fatores que fomentem a discriminação. O princípio da
não-discriminação também é apontado na Lei Brasileira de Inclusão, ao ponto
em que tal lei dispõe de uma norma penal em que torna crime a discriminação
contra as pessoas com deficiência. Assim, deste modo, buscar-se-á ao máximo
diminuir os fatores que envolve a discriminação às pessoas com deficiência.

5. A INFLUÊNCIA DA CONVENÇÃO E A LEI BRASILEIRA DE


INCLUSÃO

A Lei Brasileira de Inclusão, também conhecida como Estatuto da Pes-


soa com Deficiência, teve como autor o então Senador Paulo Paim, ao qual
17
Artigo 26º Item 3.“os Estados Partes promoverão a disponibilidade, o conhecimento e o uso de disposi-
tivos e tecnologias assistivas, projetados para pessoas com deficiência e relacionados com a habilitação
e a reabilitação”.
18
g) Realizar ou promover a pesquisa e o desenvolvimento, bem como a disponibilidade e o emprego de
novas tecnologias, inclusive as tecnologias da informação e comunicação, ajudas técnicas para locomo-
ção, dispositivos e tecnologias assistivas, adequados a pessoas com deficiência, dando prioridade a tec-
nologias de custo acessível; h) Propiciar informação acessível para as pessoas com deficiência a respeito
de ajudas técnicas para locomoção, dispositivos e tecnologias assistivas, incluindo novas tecnologias
bem como outras formas de assistência, serviços de apoio e instalações;
19
1.Os Estados Partes reconhecem que todas as pessoas são iguais perante e sob a lei e que fazem jus, sem
qualquer discriminação, a igual proteção e igual benefício da lei. 2.Os Estados Partes proibirão qualquer
discriminação baseada na deficiência e garantirão às pessoas com deficiência igual e efetiva proteção legal
contra a discriminação por qualquer motivo. 3.A fim de promover a igualdade e eliminar a discriminação,
os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas para garantir que a adaptação razoável seja ofere-
cida. 4.Nos termos da presente Convenção, as medidas específicas que forem necessárias para acelerar ou
alcançar a efetiva igualdade das pessoas com deficiência não serão consideradas discriminatórias. 
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 297
discutiu a proposta do projeto de lei com diversos segmentos de pessoas com
deficiência. Deste modo, por meio dos trâmites legislativos, o projeto de lei
foi encaminhado ao Senado por meio do Projeto de Lei nº 6/2003. Após as
discussões no Senado, o projeto foi encaminhado a Câmara dos Deputados
por meio do Projeto de Lei 7.699/2006. Ao ser encaminhado o projeto à Câ-
mara Legislativa, os trabalhos tiveram algumas discussões, porém, por meio da
assinatura do Protocolo Facultativo da Convenção Internacional sobre os Di-
reitos das Pessoas com Deficiência em 2007, os “olhares” das discussões foram
voltados na tramitação da aprovação da Convenção, tendo ela sido aprovada
com caráter de emenda, delineou a elaboração da lei que viria trazer um novo
marco nas garantias das PCD’s.
No tocante ao princípio da não-discriminação, a Lei Brasileira de In-
clusão conceitua a discriminação20 como fatores impeditivos à autonomia
das pessoas com deficiência, bem como enfatiza a utilização de tecnologias
assistivas para a quebra das barreiras que elevam a discriminação. Além da
Lei Brasileira de Inclusão definir o que é discriminação contra as pessoas
com deficiência, ela torna crime21 tal ato que por ventura venha a ser prati-
cado. O intuito desta norma é de algum modo coibi que tais atos ocorram
contra as PCD’s.
No que tange a questão da capacidade e na autonomia das pessoas com
deficiência, a Lei Brasileira de Inclusão tendo sido influenciada pela Conven-
ção, traz em seu Artigo 6º22 que a deficiência não afeta a plena capacidade
civil da pessoa”. Neste contexto, tal parâmetro promoveu uma autonomia
esplendorosa às PCD’s, pois, permitiu que as mesmas tenham sua capacidade
civil plena no exercício do direito de escolher o que é melhor a elas, podendo
casar, celebrar contratos, constituir uma família, sem ter a obrigatoriedade de
ter alguém respondendo por si.
Outro fator primordial é a utilização das tecnologias assistivas como
fonte na promoção da autonomia das pessoas com deficiência. A CCIDPPCD
elenca em diversos de seus parâmetros a importância das tecnologias assisti-
vas23, pois, ela permite que a pessoa com deficiência desenvolva suas capacida-
des em seu cotidiano.
20
Lei nº 13.146/15 Artigo 4º, § 1º que:Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de
distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar,
impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa
com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas.
21
Lei nº 13.146/15 Artigo 88º vem dirimir tal norma cogente ao elencar que “praticar, induzir ou incitar
discriminação de pessoa em razão de sua deficiência: Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e mul-
ta”.
22
Artigo nº 13.146/15 Artigo 6o  A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusiva(...).
23
Lei nº 13.146/15 Artigo 3º, Inciso III a define como: tecnologia assistiva ou ajuda técnica: produtos,
equipamentos, dispositivos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivem pro-
298 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Assim, deste modo, a Lei nº 13.146/15 trouxe enormes avanços nas ga-
rantias e direitos das pessoas com deficiência; não somente no aspecto do que
fora mencionado neste artigo, mas, a LBI traz vários artigos e incisos no que
concerne o direito a educação, a saúde, ao trabalho, ao lazer; sintetizando, a
Lei Brasileira de Inclusão, que foi influenciada pela Convenção Internacional
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência é realmente um estatuto que
elenca os direitos principais para o mínimo de uma vida digna para as pessoas
com deficiência.

CONCLUSÃO

Este artigo buscou elucida a influência da Convenção Internacional sobre


os Direitos das Pessoas com Deficiência no ordenamento jurídico brasileiro,
bem como a sua importância nas conquistas que tal documento trouxe para
as pessoas com deficiência. Foi abordado brevemente que durante a história
da sociedade, as pessoas com deficiência foram segregadas, porém, mediante a
lutas por conquistas por espaços, as PCD’s foram conquistando seus direitos
pouco a pouco.
Alguns documentos internacionais que versam sobre os direitos das pes-
soas com deficiência serviram de base para a elaboração da CIDPCD, e, para
que a Convenção realmente pudesse exprimir os anseios das PCD’s, a partici-
pação delas foi extremamente importante.
Como foi visto neste artigo, a CIDPCD traz em seu texto a terminologia
“pessoa com deficiência”, essa terminologia aponta que a pessoa tem uma defi-
ciência, e, não a porta, pois, a terminologia utilizada até então pelo Brasil, era
“pessoa portadora de deficiência”. Deste modo, buscou-se demonstrar que a
pessoa que tem uma deficiência é uma pessoa que possui um fator impeditivo
à longo prazo, e, que a deficiência não é um fator excludente, ao contrário,
permite um novo vislumbrar no viver em sociedade.
A CIDPCD ainda abrange em seu documento princípios norteadores em
que os Estados-Partes devem seguir e que permitem uma maior dignidade às
pessoas com deficiência. O princípio da autonomia das vontades, da capacida-
de, da igualdade de oportunidades e o da não-discriminação, foram recepcio-
nados pela Lei Brasileira de Inclusão, pois, na época em que o Brasil pactuou
com a Convenção, a LBI estava em processo de elaboração.
Fica constatado a influência da CIDPCD na Lei Brasileira de inclusão,
e, o quanto esses documentos são importantes para garantir os direitos das
pessoas com deficiência. Por meio deles, hoje as pessoas com deficiência têm a

mover a funcionalidade, relacionada à atividade e à participação da pessoa com deficiência ou com


mobilidade reduzida, visando à sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social;
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 299
capacidade civil plena, podendo exprimir suas vontades. É importante enfati-
zar que ambos documentos apontam para a questão da diminuição da discri-
minação, ao ponto que a LBI traz em um de seus artigos uma sanção punitiva
aos que agirem com algum tipo de discriminação às pessoas com deficiência.
Tem-se o entendimento que muitas coisas precisam melhorar no que se
abrange às garantias de direitos para as pessoas com deficiência, entretanto,
observamos que a Convenção Internacional Sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência foi realmente um marco na garantias desses direitos no começo
do Século XXI. Desse modo, tal documento vem permitindo uma nova escrita
na história das PCD’s, permitindo que tais sujeitos possam ter seus direitos
mínimos garantidos e fortalecendo a sociedade que a inserção das pessoas
com deficiência em todos os ambientes, até porque, elas são na atualidade um
quarto da população brasileira.

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Capítulo 19
Trabalho Escravo Contemporâneo:
Uma Análise sobre as Políticas Públicas Brasileiras
Danielle Carvalho Rebouças
Liziane Paixão Silva Oliveira

1. INTRODUÇÃO

A escravidão esteve presente em diversos momentos da história, quando


submetia homens, mulheres, crianças e idosos, por serem de um determinado
povo, quando perdiam uma batalha ou guerra, por sua cor, etnia, nacionalida-
de ou condição social, sendo subjugados inferiores. Representou um ato con-
tra a própria humanidade, quando destituiu seres humanos de sua condição,
submetendo-os como mercadoria ou propriedade.
A escravidão contemporânea refere-se à adaptação do trabalho escravo
aos novos tempos, apresentando-se sob novas formas, que ao mesmo passo do
passado, afetam a dignidade humana por meio, principalmente, do trabalho
forçado, da servidão por dívidas e tráfico humano.
A discussão sobre o tema faz-se necessário visto que em pleno século XXI,
cerca de 45 milhões de pessoas, encontram-se sob alguma forma de escravidão
moderna, em diversos países, desenvolvidos e em desenvolvimento1. Discu-
tir e levantar o conceito de escravidão contemporânea não significa somente
compará-lo historicamente, trazendo todo um aporte histórico e científico,
mas expor sua existência atual sob outras formas, tão dissimuladas que passam
despercebidas pelas próprias vítimas.
Foi dada uma atenção especial ao Brasil, país signatário de várias conven-
ções, que envolvem trabalho escravo, trabalho decente, dignidade humana e
direitos humanos, e que adota em sua legislação muitos parâmetros interna-
cionais de combate e erradicação do trabalho escravo contemporâneo. O país
já foi considerado um caso de sucesso no cenário internacional no combate ao
trabalho escravo, enfrente atualmente duras críticas por mudanças na legislação

1
WALK FREE FOUDATION. The Global Slavery Index. 2016. Disponível em: <https://www.global-
sla veryindex.org/findings/>. Acesso em: 11 jun. 2017.
302 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

sobre o assunto, além de mudanças em políticas publicas como a “lista suja”,


considerada extremamente relevante e eficaz.
Busca-se apresentar os avanços e possíveis retrocessos sobre o tema, en-
volvendo a legislação e politicas públicas brasileiras, procurando identificar
se ainda existem lacunas que dificultam o combate e erradicação do trabalho
escravo em território brasileiro.

A partir do tema proposto a pesquisa será realizada por uma abordagem quali-
tativa, caracterizada principalmente pelo levantamento de dados por meio do
órgão das Nações Unidas responsável pelo assunto em questão, a Organização
Internacional do Trabalho (OIT), além de importantes veículos de comunica-
ção e Organizações Internacionais Não-Governamentais. Utiliza-se o método
descritivo-analítico que, segundo Martins2, seria capaz de descrever um deter-
minado fenômeno, estabelecendo as relações entre as variáveis e os fatos.

Para isso, o artigo se divide em três etapas. A primeira trata da compreen-


são da escravidão contemporânea e as formas como se apresenta. A segunda
aborda os principais tratados e convenções sobre o assunto e as quais o Brasil é
signatário. A terceira por fim, traz um panorama das principais ações públicas
desenvolvidas para o combate e erradicação da temática pelo Brasil, destacando
a importância da cooperação do cenário internacional por meio da principal
organização à frente do tema, a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

2. ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEO: A PERSISTÊNCIA DA


EXPLORAÇÃO DO TRABALHO HUMANO SOB NOVAS FORMAS

As percepções acerca do trabalho, mudou diversas vezes e em diferentes


momentos da história, porém, a ideia de castigo, sofrimento e pecado acom-
panham sua construção. Evidente na própria raiz etimológica da palavra em
português, que deriva do latim tripalium, um instrumento composto por três
pedaços de maneira utilizado primeiramente na agricultura, e depois sendo
apropriado pela inquisição como instrumento de tortura3.
Assim, o ato de trabalhar, portador de um juízo negativo, atribuído prin-
cipalmente ao sofrimento e a tortura, tem relação direta com a existência da
escravidão, em que o trabalho ficava atribuído aos escravos.
No entanto, Hannah Arendt4, em seu livro A Condição Humana, fala que
na era moderna construiu-se um novo entendimento sobre o trabalho, passando

2
MARTINS, Gilberto de Andrade. Manual para Elaboração de Monografias e Dissertações. Editora
Atlas S.A., 3 ed. 2002.
3
ALBORNOZ, S. O que é trabalho. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1994.
4
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 12. Ed. rev. – Rio de Janeiro: Editora Forense, 2015. p. 9-22.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 303
de uma ideia de sofrimento e falta de liberdade, ligado, principalmente, ao su-
primento das necessidades biológicas e sobrevivência do ser humano, para um
papel central na efetividade da dignidade do Homem, enquanto ser político.
O trabalho, passa a ter, então, uma posição central no espaço político en-
quanto papel social, onde a vida e a busca pela felicidade só são possíveis atra-
vés dele, e que sua perda ou possível falta apagaria o sentido da própria vida5.
Em sua obra, a autora estabelece primeiramente uma crítica ao papel cen-
tral que o trabalho assumiu na esfera política, onde observa que houve uma
inversão da política para a economia, por meio de uma inversão de valores, em
que o centro agora está em uma produção interminável de bens e da “vitória”
do animal laborans6. Assim, a modernidade transformou o trabalho em algo
essencial, como própria atividade do viver.
Deste modo, o trabalho, estando no centro da Vita activa7 humana, as
condições de trabalho também precisam ser delimitadas para sua efetiva reali-
zação social e assegurem a dignidade humana.

2.1. O conceito

A escravidão, historicamente, consistia na privação da liberdade de um


indivíduo sob um outro, onde o escravo, era considerado uma propriedade,
podendo ser comprado ou vendido, principalmente para a exploração de sua
força de trabalho. Apesar da abolição da escravidão, há ainda nos tempos
atuais relações de trabalho entre patrão e empregado, antes dono e escravo,
que constituem relações abusivas onde novamente se observa a destituição do
direito como ser humano e de sua dignidade.
A escravidão moderna, ou contemporânea, podendo ser chamada tam-
bém de trabalho análogo ao de escravo, identifica-se principalmente pela falta
de liberdade, apesar de não se limitar apenas a este ponto. Diferentemente dos
escravos de antigamente, as pessoas hoje em condições de trabalho escravo não
pertencem aos seus empregadores, porém, em muitas situações são controla-
dos e tem sua liberdade de ir e vir limitada.
A necessidade da formulação do novo conceito sobre escravidão está no
sentido de que atualmente vivemos em um novo contexto social e econômico,
que interferem diretamente na constituição de relações análogas a escravidão
em outros tempos. Antigamente, a ideia de escravidão subjugou principalmen-
te negros vindos de países da África, atualmente é mais abrangente, podendo

5
Idem, Ibidem.
6
Idem, Ibidem.
7
Conceito presente no livro A Condição Humana, de Hannah Arendt, onde a autora realiza uma reflexão
filosófica sobre o que chama de Vita activa (vida ativa) do homem moderno, dividindo-o em três pontos:
ação, trabalho e labor.
304 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

afetar qualquer indivíduo em situação vulnerável. Vulnerabilidade esta que


atribuímos a questões principais como pobreza extrema, falta de oportunida-
des, baixa escolaridade e desemprego.
Antes remetia essencialmente ao ambiente rural, fato que ainda é predo-
minante. Mas é crescente o número de pessoas que são submetidas a condições
análogas a escravidão nas grandes cidades, que ilusoriamente garantiriam mais
e melhores oportunidades.
É importante destacar que o trabalho escravo moderno não deve ser
confundido apenas com a exploração do trabalho. Apesar da exploração ge-
ralmente estar presente nas formas de escravidão moderna, o inverso não é
recíproco. É preciso a formulação de conceitos sólidos para que sejam devida-
mente identificados e especificamente combatidos.
A complexidade dessa “nova forma de escravidão”, como salienta Kevin
Bales8 é imensa, inclusive para ser identificada como tal pelas autoridades e até
mesmo pelas próprias vítimas.
Em 2014, a Organização não-governamental Walk Free Foundation, lan-
çou o relatório The Global Slavery Index9 que aborda as cadeias de fornecimento
da escravidão moderna, e estipulou que cerca de 30 milhões de pessoas viviam
na condição de escravos no mundo. Constata-se ainda que a escravidão está
presente em quase todos os continentes do globo, em diversos países, desenvol-
vidos e não desenvolvidos, com destaque especial para Índia, China, Paquistão,
Nigéria, Etiópia, Rússia, Tailândia, República Democrática do Congo, Myan-
mar, Bangladesh, além do Haiti e Mauritânia, por proporção de população.
As principais áreas onde foram detectadas mão-de-obra escrava são de
vestuário e calçados, fábricas, agricultura, construção, mineração, produtos
eletrônicos, processamento de alimentos e serviços de trabalho10.
Em 2016, o Global Slavery Index registra que os dados aumentaram para
45,8 milhões de pessoas sob a condição de escravidão moderna, e os países com
maior proporção são Coréia do Norte, Uzbequistão, Camboja, Índia e Qatar,
e, em números absolutos, Índia, China, Paquistão, Bangladesh e Uzbequistão11.
Mesmo envolvendo diversos países, os mais desenvolvidos economica-
mente são menos afetados pela escravidão moderna. No entanto, grande parte

8
BALES, Kevin. Disposable People: New Slavery in the Global Economy. Berkley, EUA: University of
California Press Limited, 1999.
9
WALK FREE FOUNDATION. The Global Slavery Index. 2016. Disponível em: <https://www.glo-
balsl averyindex.org/findings/>. Acesso em: 11 jun. 2017.
10
WALK FREE FOUNDATION. Tackling Modern Slavery In Supply Chains. 2014. Disponível em: <http://
s3-ap-southeast-2.amazonaws.com/business.walkfreefoundation.org-assets/content/uploads/2016/09/081
01240/TacklingModernSlaveryInSupplyChains20141-1.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2017.
11
Idem. The Global Slavery Index. 2016. Disponível em: <https://www.globalslaveryindex.org/findin-
gs/>. Acesso em: 11 jun. 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 305
dos produtos fabricados por mão de obra escrava é consumido principalmente
por estes países de menor índice em seus territórios.
Uma das principais formas assumidas pelo que se compreende por
escravidão moderna é o trabalho forçado, ou seja, quando se é coerciti-
vamente obrigado a trabalhar. Na maior parte dos casos o trabalhador
também não tem jornada máxima definida, horas para descanso, ambiente
ou estrutura inadequados ou insalubres além de não receber pelos serviços
prestados, e em algumas situações o confisco de documentos. A Organi-
zação Internacional do Trabalho refere-se sobre o trabalho forçado como
“situações em que pessoas são forçadas a trabalhar através do uso de vio-
lência ou intimidação, ou por meios mais sutis, como dívida acumulada
ou retenção de identidade”12.
Além desta, as maneiras mais comuns de escravidão moderna encontra-
das são: a) a servidão por dívidas, quando o trabalhador tem que pagar por
instrumentos do seu trabalho ou acumula dívidas com o empregador, o que
o obriga a trabalhar para pagar algo que nunca poderá realmente ser sanado;
b) o tráfico humano, por aliciamento ou transferência de pessoas para explo-
ração, comerciais ou pessoais, incluindo-se, nessa parte, também a exploração
sexual e; c) a venda e exploração de crianças13.
A tabela 0114 abaixo apresenta o caminho normalmente percorrido nessas
situações, onde o trabalhador primeiramente é aliciado por uma pessoa paga
especificamente para identificar e recrutar pessoas vulneráveis ou desemprega-
das, que estejam a busca ou necessitando alguma oportunidade. Em todas as
situações a lógica da escravidão está ligada à ideia de lucro, pagar por mão-de-
-obra barata e “descartável”.

Tabela 01

Recrutamento Emprego Saída


Trabalhadores levados ilegal- Pagamentos incompleto, atra- Visto de trabalhador e licença
mente ou com excessivas taxas so ou retidão dos salários, ou ligados a um único emprega-
de recrutamento excessivas e ilegais taxas de “de- dor
dução salarial”
Trabalhadores desinformados Documentos de identidade Penalidades monetárias ou re-
ou mal informados sobre os ou passaporte confiscados ou tenção de salários por termino
termos do trabalho retidos de “contrato” antecipado

12
Idem. Tackling Modern Slavery In Supply Chains. 2014. Disponível em: <http://s3-ap-southeast-2.
amazona ws.com/business.walkfreefoundation.org-assets/content/uploads/2016/09/08101240/Tack-
lingModernSlaveryIn SupplyChains20141-1.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2017.
13
Idem, Ibidem.
14
Tradução livre da tabela que se encontra no documento The Global Slavery Index 2014, p. 17.
306 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Trabalhadores não conseguem Trabalhador obrigado a morar Ameaças a trabalhadores que


um contrato escrito, com- no local de trabalho ou em local sejam imigrantes ilegais, de en-
preensível e legal controlado e monitorado (não trega-los para as autoridades em
pode entrar ou sair livremente) caso de saírem do “emprego”
Numerosos corretores de tra- Sofrimento de abusos psicoló- Trabalhadores obrigados a pa-
balho e agentes para recruta- gicos e físicos, disciplinamento gar por segurança e “seguro
mento para emprego humilhante fugitivo”
Cobranças falsas ou fraudulen- Trabalho excessivo, por tempo
tas de taxas pela viagem, por acima do estipulado legalmen-
inspeção de saúde e documen- te ou por conduta limitada
tação de trabalho

Para dirimir dúvidas quanto a complexa comparação entre as clássicas


situações de escravidão e as contemporâneas, o sociólogo Kevin Bales15 faz
uma importante distinção. Afirma que na escravidão antiga era garantida a
posse sobre o indivíduo, então escravo, de forma legal, permitida, onde tinha-
-se um alto custo de compra, que por fim geravam baixos lucros. Havia muitas
vezes escassez no mercado de escravos, que consistia numa aquisição cara e
assim gerava uma relação de longa duração entre propriedade e dono, que era
obrigado a manter o escravo, no sentido de alimentá-lo e preservar sua vida, já
que ele era tido como um bem. Além disso, as diferenças étnicas e raciais eram
importantes nessa relação entre dominante e dominado.
Na escravidão moderna, caracterizada por Bales16, a posse sobre um indi-
víduo é revogada, ilegal, porém há um baixo custo na compra ou pagamento
da força de trabalho desse sujeito, que por não consistir um bem adquirido
torna-se descartável, gerando altos lucros para o empregador. Há nesse sentido
um grande interesse de cooptação de pessoas, que potencialmente podem se
submeter a tal situação, gerando por sua vez uma relação de curta duração,
pois depois de explorado ao máximo é substituído.
Constitui-se, portanto, um sujeito tido como “descartável”, a partir do
momento em que é explorado até o limite e deixa de ser lucrativo é descar-
tado por outro. Neste contexto da escravidão moderna, Bales17 constata que
as diferenças étnicas não são consideradas importantes, pois não constituem
requisito para a escolha.
De acordo com Bales18, apesar da abolição, a escravidão nunca deixou real-
mente de existir. Mudou-se a forma como acontece. As consequências dessa

15
BALES, Kevin. Disposable People: New Slavery in the Global Economy. Berkley, EUA: University of
California Press Limited, 1999.
16
Idem, Ibidem.
17
BALES, Kevin. Disposable People: New Slavery in the Global Economy. Berkley, EUA: University of
California Press Limited, 1999.
18
Idem, Ibidem.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 307
nova conjuntura ou forma em que se apresenta ainda são inimagináveis em sua
potencialidade, uma vez que, por meio do processo de “descartabilidade do ho-
mem”, este se torna algo supérfluo. E afirma que mesmo que o viés econômico
e o lucro sejam os principais pilares para a existência e persistência da escravidão
moderna, outro fator importante que encoraja sua existência é o desconheci-
mento sobre o assunto, por parte dos governos e da opinião pública.

3. O TRABALHO COMO UM DIREITO HUMANO E


FUNDAMENTAL

O oposto da escravidão moderna é a ideia trabalho decente, ou seja, con-


dições de trabalho que assegurem a dignidade da pessoa humana. O trabalho
como um direito humano está diretamente expresso na Declaração de Direitos
Humanos de 1948, que em seu artigo nº 4, diz que “ninguém será mantido em
escravidão ou servidão e a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos
em todas as suas formas”19.
Mais a frente, o artigo nº 23 enuncia que “todo ser humano tem direito
ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de
trabalho e à proteção contra o desemprego”, e no artigo seguinte, nº 24, ainda
acrescenta que “todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a
limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas”20.
O conceito de trabalho decente surgiu no ano de 1999, proposto durante
a Conferência Internacional do Trabalho, por Juan Somavía, na época Diretor
Geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Somavía referiu-se a
trabalho decente como condições que permitissem uma remuneração justa e
adequada ao trabalhador, sem distinção de gênero, em circunstâncias adequa-
das e de maneira produtiva, com liberdade, equidade, segurança e dignida-
de21. Essas condições são propostas que vão além do trabalhador, elas corres-
pondem também a sua família, considerando assim, que tanto o trabalhador
quanto sua família necessitam de uma vida digna assegurada por condições de
trabalho decentes.
A busca pelo trabalho considerado decente é, atualmente, uma das prin-
cipais missões da Organização Internacional do Trabalho (OIT), agência in-
ternacional ligada à ONU, que atua no cenário internacional de cooperação e
nacional, promovendo ações conjuntas com os governos dos Estados. A OIT

19
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris,
1948. Disponível em: <http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf>. Acesso em: 05 jun. 2017.
20
Idem, Ibidem.
21
OIT. Report of the Director-General: decent work, 87th Session, Geneva, 1999. Disponível em: <http://
www.ilo.org/public/english/standards/relm/ilc/ilc87/rep-i.htm>. Acesso em: 19 jun. 2017.
308 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

se estabeleceu, enquanto órgão responsável, essencial para compreender como


trabalho decente e principalmente suas violações em nossa sociedade atual, a
exemplo da persistência da escravidão moderna.
O trabalho decente também está previsto nos dezessete Objetivos do De-
senvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU). Lança-
dos em 2015 pela ONU, após um período de negociações com seus Estados-
-parte, consistem em 169 metas a serem alcançadas nos próximos 15 anos.
Consistem em metas pensadas para direcionar os países e suas políticas sobre
pontos considerados relevantes tanto em nosso momento presente, quando
para o futuro, na garantia de direitos das gerações futuras. Especificamente
sobre o trabalho decente, merece destaque o oitavo objetivo que propõe:

Tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar


com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, e assegurar a proibição e
eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e
utilização de crianças-soldado, e até 2025 acabar com o trabalho infantil em
todas as suas formas22.

Apesar de apenas alguns artigos tratarem sobre o trabalho escravo e o


trabalho decente, a falta de condições trabalhistas dignas fere todos os outros
direitos humanos assegurados na Declaração de 1948, visto que direitos que
envolvam o direito, a liberdade, a propriedade e a igualdade são diretamente
ameaçados ou expropriados.
A OIT estima que existam 40,3 milhões de pessoas submetidas a al-
gum tipo de escravidão moderna, parte desse número, 15,4 milhões, inclui
casamentos forçados, principalmente de mulheres. Inclusive, as vítimas do
gênero feminino representam 99% da indústria sexual comercial, e 58%
em outros setores. As estimativas trazem ainda que a cada 1000 pessoas,
5,4 são submetidas a alguma forma de escravidão moderna. Grande parte
desse número são crianças, 1 a cada 4 vitimas. O setor privado é responsá-
vel pelo trabalho forçado de 16 milhões de pessoas e gera 150.000 milhões
de dólares por ano23.
Por esses dados, é possível observar que as novas formas de trabalho es-
cravo moderno englobam muitos outros setores e atividades diferentes das que
foi representada em outro contexto, disso se deriva sua grande complexidade.
Por isso se faz necessário um maior conhecimento e definição do fenômeno,
além do apoio dos países na luta para o combate e erradicação.

22
ONU. Objetivo 8: Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego
pleno e produtivo e trabalho decente para todas e todos. Brasília, 2015. Disponível em: <https://nacoe-
sunidas.org/pos201 5/ods8/>. Acesso em: 09 jun. 2017.
23
OIT. Global estimatives of modern slavery: forced labour and forced marriage. Geneva, 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 309
3.1. Organização Internacional Do Trabalho (OIT)

A OIT surgiu em um momento histórico onde se havia necessidade de


estabelecer um mínimo de proteção nas relações empregatícias, pois não exis-
tiam ao certo regras e condições que assegurassem a dignidade da classe traba-
lhadora e operária. Suas premissas partem da “convicção de que a justiça social
é essencial para garantir uma paz universal e permanente”24.
Buscando fortalecer o trabalho digno como peça fundamental à socieda-
de pós-guerra, a carta da OIT aborda em seus princípios e objetivos a reafir-
mação do:

Princípio de que a paz permanente só pode estar baseada na justiça social e


estabelecia quatro ideias fundamentais, que constituem valores e princípios
básicos da OIT até hoje: que o trabalho deve ser fonte de dignidade, que o
trabalho não é uma mercadoria, que a pobreza, em qualquer lugar, é uma
ameaça à prosperidade de todos e que todos os seres humanos tem o direito
de perseguir o seu bem estar material em condições de liberdade e dignidade,
segurança econômica e igualdade de oportunidades25.

No que concerne à Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamen-


tais no Trabalho (1998), a organização considera que “o crescimento econômi-
co é essencial, mas insuficiente, para assegurar a equidade, o progresso social
e a erradicação da pobreza”, e a necessidade da atuação da OIT vem principal-
mente da busca por manter a proporcionalidade entre progresso social e cres-
cimento econômico”26, ambos presentes nas transformações das relações de
trabalho proporcionados pela globalização, como está presente na Declaração
sobre a Justiça Social para uma Globalização Equitativa27.
É importante destacar a participação dos Estados nessas convenções in-
ternacionais, ratificando e seguindo as recomendações presentes, para assim
construir avanços universais, visando sempre o bem estar comum dos povos,
uma vez que pela globalização todos se encontram interligados, e avanços e
retrocessos podem ser sentidos, independentemente de serem em seu próprio

24
OIT. Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho. Genebra, 1998.
Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/oit/doc/declaracao_oit_547.pdf >.
Acesso em: 09 jun. 2017.
25
OIT. História da OIT. Brasília, S/A. Disponível em: <http://www.ilo.org/brasilia/conheca-a-oit/his-
t%C3% B3ria/lang--pt/index.htm >. Acesso em: 16 Jun. 2017.
26
OIT. Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho. Genebra, 1998.
Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/oit/doc/declaracao_oit_547.pdf >.
Acesso em: 09 jun. 2017
27
OIT. Declaração da OIT sobre a Justiça social para uma Globalização Equitativa. Genebra, 2008.
Disponível em: <http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo-brasilia/docu-
ments/genericdocument/wcms_336918.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2017.
310 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

território ou não, ressaltando dois de seus princípios fundamentais, presente


na Constituição da OIT de 1948, que diz que a “penúria, seja onde for, cons-
titui um perigo para a prosperidade geral”28.
É nesse sentido que as definições da OIT sobre trabalho escravo con-
temporâneo são equiparadas ao sentido de trabalho forçado, que se difere do
conceito de exploração. O primeiro conceito envolve como questão principal
a liberdade, no caso, a falta dela, como acontecia com a escravidão em sua
forma tradicional. O termo contemporâneo se faz necessária para estabelecer
as novas forças surgidas nas últimas décadas que também se assemelham a
condições análogas à escravidão29.
Segundo a OIT, “o trabalho forçado é um fenômeno global e dinâmi-
co”, global pois não se restringe a apenas uma parte ou região no mundo,
independe inclusive da ideia que se tem sobre países desenvolvidos ou em de-
senvolvimento, estando “presente em todos os tipos de economia, até mesmo
em cadeias produtivas de grandes e modernas empresas atuantes no mercado
internacional”30, e dinâmico por se apresentar contemporaneamente de diver-
sas formas, como a servidão por dívidas e o tráfico de pessoas.
Uma das duas principais convenções norteadoras da OIT que tratam so-
bre o trabalho forçado ou obrigatório é a Convenção número 29, adotada em
1930. A convenção adota como conceito de trabalho forçado “todo trabalho
ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para
o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade”31. Neste documento cons-
tam normas para a regulamentação sobre o trabalho forçado, como exemplo
em caso de cumprimento de lei ou fins públicos, mas estabelece uma série de
limites que precisam ser respeitados e que concedam ao indivíduo que está
sendo submetido a este tipo de trabalho a apresentar possíveis reclamações as
autoridades e garantias de que sejam devidamente ouvidas.
A outra, é a Convenção sobre a “Abolição do Trabalho Forçado”, nº 105
da OIT, realizada em 1957. De uma maneira complementar a primeira tem o
seu objetivo mais enfático em evitar que o trabalho forçado venha a se gerar
práticas análogas à escravidão32.

28
OIT. Constituição da Organização Internacional Do Trabalho (OIT) e seu anexo (Declaração de
Filadélfia). Genebra, 1948, p. 19. Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/t opic/
decent_work/doc/constituicao_oit_538.pdf>. Acesso em: 07 jun. 2017.
29
Idem. Campanha 50th For Freedom. Genebra, 2017. Disponível em: <http://50forfreedom.org/pt/
protocol o/>. Acesso em: 23 out. 2017.
30
Idem. Trabalho Forçado. Brasília, S/A. Disponível em: <http://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho
-escravo/lang--pt/index.htm>. Acesso em: 10 jun. 2017.
31
Idem. Convenção nº 29 sobre Trabalho Forçado ou Obrigatório. Genebra, 1930. Disponível em: <http://
www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235021/lang--pt/index.htm>. Acesso em: 09 jun. 2017.
32
OIT. Convenção nº 105 sobre a Abolição do Trabalho Forçado. Genebra, 1957. Disponível em: <http://
www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235195/lang--pt/index.htm>. Acesso em: 09 jun. 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 311
Devido as necessidades de um novo contexto, diferente do qual surgi-
ram as convenções que norteiam o combate ao trabalho forçado, e o grande
número de pessoas ainda submetidas ao trabalho escravo, em 2014, surge um
novo Protocolo sobre trabalho forçado, que pretende agir de maneira a com-
plementar a Convenção 29. O protocolo se propõe a agir de três maneira:
na prevenção, na proteção, dos indivíduos e trabalhadores, e na reabilitação
dessas pessoas, não só pelos danos físicos e psicológicos, mas como uma for-
ma de impedir que possam cair nas mesmas armadilhas e serem submetidos
novamente ao trabalho escravo.
Porém, um grande obstáculo ao novo protocolo sobre trabalho forçado é
que poucos países o ratificaram. Por conta disso foi criada a campanha “50 For
Freedom”, que tem a meta de conseguir que cinquenta países ratifiquem o proto-
colo até 2018. No momento apenas 2033 países se comprometeram a adotar as
novas medidas propostas e o Brasil está entre os países que ainda não o adotou34.

4. PANORAMA BRASILEIRO: ENTRE AVANÇOS E


RETROCESSOS

A escravidão contemporânea está presente em países desenvolvidos e em


desenvolvimento, constituindo um desafio global. O cenário brasileiro não
representa um dos casos mais graves, mas engloba atualmente cerca de 161,1
mil brasileiros35.
Nos últimos tempos o Brasil vem sofrendo muitas críticas nas decisões
políticas que envolvem o campo trabalhista e, especificamente, na escravidão.
Em 2016, o país foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Huma-
nos da Organização dos Estados Americanos (OEA) pelo caso dos trabalha-
dores resgatados na Fazenda Brasil Verde. E em 2017, por meio do Ministério
dos Direitos Humanos divulgou um edital para convocação de 75 pessoas, ví-
timas de trabalho escravo, que não são representadas por organizações, como
a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Centro pela Justiça e o Direito Inter-
nacional (CEJIL/Brasil).
Ao todo, foram apontadas 128 vítimas, resgatadas em fiscalizações nos
anos de 1997 e 2000. A sentença condenou o país a adoção de medidas de re-

33
Os países que já ratificaram o novo protocolo sobre o trabalho forçado criado em 2014 são: Argentina,
Panamá, Jamaica, Mauritânia, Mali, Nigéria, Espanha, França, Reino Unido, Holanda, República Che-
ca, Suécia, Finlândia, Dinamarca, Polônia, Noruega, Suíça, Estônia, Chipre e Islândia. Essa ordem não
representa uma ordem cronológica de adesão.
34
OIT. Campanha 50th For Freedom. Genebra, 2017. Disponível em: <http://50forfreedom.org/pt /
protocolo/>. Acesso em: 23 out. 2017.
35
WALK FREE FOUNDATION. The Global Slavery Index. 2016. Disponível em: <https://www.glo-
balslaveryindex.org/findings/>. Acesso em: 11 jun. 2017.
312 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

paração, entre elas o pagamento de indenizações, a retomada de investigações


e adoção de medidas de não prescrição do crime36.
Bales37 em seu livro dedica todo um capítulo para falar do caso brasilei-
ro, em que julga ser um caso especial por ser um país de grande território e
uma extensa área de fronteira. Averba o autor que nesse aspecto territorial,
um grande obstáculo é que o Estado de direito falta, ou não chega em sua
totalidade para as pessoas que ali estão, e assim os tornam consequentemente
vulneráveis. Vulnerabilidade que pode existir em diversos aspectos, como na
saúde, na educação, na segurança e principalmente na submissão desses su-
jeitos a um regime trabalhista abusivo e indigno. Em uma entrevista quando
questionado se a escravidão seria parte de um componente cultural no país,
Bales afirma:

Em muitos aspectos, não, se compararmos o Brasil com países do Velho Mundo.


A escravidão na Mauritânia, na Tailândia ou na Índia é profundamente enrai-
zada na cultura. No Brasil, há grande ênfase na liberdade individual. Não creio
que exista necessariamente um suporte cultural para a escravidão. O que existe
na verdade é uma disparidade econômica. Essa injustiça se traduz numa enorme
quantidade de pessoas que, de tão pobres, se tornam vulneráveis à escravidão38.

O Brasil desenvolveu diversas políticas no intuito da diminuição e er-


radicação do trabalho escravo na contemporaneidade, onde nos últimos 20
anos é possível notar uma diferença considerável nos números que envolvem
o assunto no país, inclusive em importantes mudanças em sua legislação. Por
ser signatário das duas principais convenções da OIT que tratam do trabalho
forçado, e de muitas outras convenções da organização, mostra clara disposi-
ção e intenção cooperativa internacional.
Em 2003, o artigo 149, do Código Penal Brasileiro, que trata sobre a
redução à condição análoga de escravo, passou por uma edição que tornou
o texto mais específico com relação as características que constituem o
crime. O texto da lei incide sobre “reduzir alguém a condição análoga à de
escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva,
quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo,

36
BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos. Cadastro de Empregadores que tenham submetido
trabalhadores a condições análogas à de escravo. Brasília, 2017. Disponível em: <http://estaticog1.
globo.com/2017/10/22/lista_suja.pdf>. Acesso em: 23 out. 2017.
37
BALES, Kevin. Disposable People: New Slavery in the Global Economy. Berkley, EUA: University of
California Press Limited, 1999.
38
MAISONNAVE, Fabiano. Fim da escravidão depende de punição a beneficiários finais: Especialista
norte-americano contabiliza 27 milhões de pessoas escravas no mundo, 200 mil no país. Folha de São
Paulo, São Paulo . 2004. ENTREVISTA DA 2ª. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/
brasil/fc0202 200428.ht m>. Acesso em: 10 jun. 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 313
por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o
empregador ou preposto”39.
Atualmente o Brasil empenha-se na busca por erradicar qualquer tipo
de trabalho forçado e formas de escravidão modernas, principalmente pela
adesão as convenções sobre o tema junto à OIT e pela formulação de políti-
cas públicas nas últimas décadas, tais como a criação dos Grupos Móveis de
Fiscalização. Estes, desde sua criação em 1995 foram responsáveis pelo resgate
de mais de 50 mil trabalhadores daquelas condições, destes, registram-se 43
mil trabalhadores do ano de 2003 a 2017, segundo o Observatório Digital de
Trabalho Escravo.40
Instrumentos como o Observatório Digital do Trabalho Escravo permi-
tem que além de estatísticas sejam traçados perfis de maior vulnerabilidade e
características que influenciam a chamada “curva de oferta do trabalho escra-
vo”, permitindo assim o desenvolvimento de ações concretas e direcionadas.

A curva de oferta do trabalho escravo é desenhada com base nos locais de natu-
ralidade de trabalhadores egressos e está relacionada ao grau de vulnerabilida-
de experimentado por segmentos populacionais específicos. A vulnerabilidade
socioeconômica facilita o aliciamento dessas pessoas por exploradores. Assim,
a curva de oferta do trabalho escravo está radicada em fatores como pobreza,
desigualdade de renda, concentração da posse da terra, violência, entre outros
(Observatório Digital de Trabalho Escravo, 2003).

Nesse sentido, observa-se que grande parte dos trabalhadores resgatados


da escravidão são oriundos de municípios com baixos índices de desenvol-
vimento humano municipal41. O perfil dos grupos considerados mais vul-
neráveis a este tipo de situação são geralmente as pessoas de origem pobre,
com pouca ou nenhuma instrução formal, onde na maioria das vezes foram
obrigadas a trabalhar desde cedo, muitos ainda na infância, movidos pelas ne-
cessidades básicas, como fugir da fome ou alimentar a família. Essas mesmas
pessoas são atraídas pelas oportunidades de emprego falsas, na ilusão de uma
vida melhor e simplesmente de terem essa como a única opção.
Um importante instrumento desenvolvido pelo governo brasileiro, o
programa de cadastro de empregadores que tenham submetido trabalhadores

39
BRASIL. Lei nº 10.803 n. 149, Código Penal. Redução a condição análoga à de escravo. Brasília,
11 de dez. 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.
htm>. Acesso em: 09 jun. 2017.
40
Importante mecanismo de monitoramento, criado em 2003, por uma parceria entre Ministério Público do
Trabalho e OIT (https://observatorioescravo.mpt.mp.br/).
41
ONU. Sistema ONU no Brasil divulga nota sobre portaria do trabalho escravo. 2017. Disponível
em: <https://nacoesunidas.org/sistema-onu-no-brasil-divulga-nota-sobre-portaria-do-trabalho-escra-
vo/>. Acesso em 23 out. 2017.
314 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

a condições análogas à de escravo, mais conhecido como “lista suja”, consiste


como parte das políticas públicas de grande visibilidade, sobretudo internacional.
Esse instrumento, foi criado em 2004 por meio de uma portaria do Mi-
nistério do Trabalho e Emprego (MTE), por meio da Lei de Acesso à Infor-
mação (Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011) e foi desenvolvido com
objetivo em inibir práticas de trabalho análogo ao de escravo, uma vez que
divulga nomes de empregadores ou empresas flagradas e autuadas por sujeita-
rem trabalhadores sob as condições previstas no artigo 149 do Código Penal.
Além da divulgação dos nomes, que se propunha a acontecer semestralmente,
o programa também proibi o financiamento público à essas pessoas ou empre-
sas que tenham o nome na lista. Uma vez na lista, é feito o monitoramento da
pessoa jurídica ou física, que pode constar na por até dois anos, ou até serem
cumprirem requisitos estabelecidos pela justiça.
Apesar do propósito na qual foi pensada, em 2014 a lista parou de ser atuali-
zada por determinação do Superior Tribunal Federal (STF), onde desde então vem
passando por divergências judiciais, sendo reativada em março de 2017. Contudo,
em outubro, antes do lançamento oficial de uma nova “lista suja” atualizada, com
o nome de 132 empresas, 49 a mais que a lista anterior. A empresa onde teve o
maior número pessoas em condições análogas a escravidão teve 173 de trabalhado-
res envolvidos, e a maioria destes trabalhadores eram imigrantes42.
A Portaria 1.129/201743, emitida pelo Ministério do Trabalho, trouxe
modificações ao que legalmente é entendido como trabalho escravo e a “lista
suja” a partir dessas mudanças sofreu novas restrições, onde somente poderá
ser emitida pelo ministro do trabalho.
A Portaria 1.129/2017 altera o conceito do que é considerado trabalho
escravo no Brasil, alega que “aprimora e dá segurança jurídica à atuação do
Estado Brasileiro”44, entendendo que o conceito atual é muito abrangente e
pouco preciso. Porém, ela retrocede no sentido de limitar ao trabalho aná-
logo ao de escravo a questões como liberdade, jornada exaustiva por coação
direta ou por meio de violência, e a ideia de consentimento do próprio tra-
balhador, retrocedendo a luta pelo reconhecimento da escravidão moderna

42

BRASIL. Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de es-
cravo. Brasília, 2017. Disponível em: < http://estaticog1.globo.com/2017/10/22/lista_suja.pdf>. Acesso
em: 23 out. 2017
43
Idem. Portaria Nº 1.129, De 13 De Outubro De 2017. São Paulo, 2017. Disponível em: < http://
sintse.tse.jus .br/documentos/2017/Out/16/portaria-no-1-129-de-13 -de-outubro-de-2017-dispoe-sobre-
-os-conceitos-de-trabalho-forcado-jornada-exaustiva-e-condicoes-analogas-a-de-escravo-para -fins-de-
concessao-de-seguro-desemprego-ao-trabalhador-que-vier-a-ser-resgatado-em-fiscalizacao-do-minis-
terio-do-trabalho-nos-termos-do-artigo-2-c-da-lei-n-7998-de-11-de-janeiro-de-1990-bem-como-altera-
dispositivos-da-pi-mtps-mmirdh-no-4-de-11-de-maio-de-2016>. Acesso em: 23 out. 2017
44
Idem. Nota Oficial Sobre A Portaria Nº 1.129/2017. Brasília, 2017. Disponível em: <http://trabalho.
gov.br /noticias/5122-nota-oficial-sobre-portaria-n-1-129-2017>. Acesso em: 23 out. 2017
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 315
ao que se entendia por escravidão nos séculos passados. A Organização das
Nações Unidas (ONU) divulgou uma nota em que critica a portaria:

O Sistema ONU no Brasil vê com profunda preocupação a recente portaria do


Ministério do Trabalho e Emprego que altera a definição conceitual de traba-
lho escravo para fins de fiscalização e resgate de trabalhadores e trabalhadoras,
que tende a dificultar as ações de combate a este mal. Para a ONU, as formas
contemporâneas de escravidão incluem trabalho forçado, servidão doméstica,
formas servis de casamento e escravidão sexual. São situações das quais as víti-
mas não são capazes de se desvencilhar da situação de forma voluntária, digna
e segura. São condições inaceitáveis, que ferem todos os princípios dos direitos
humanos e humilham milhares de vítimas em todo o mundo45.

A ONU lançou em 2016 um artigo técnico no Brasil em que relata-


va que “apesar de a escravidão ter sido expressamente abolida em diversos
países, seu uso continua sendo disseminado sob “formas contemporâneas de
escravidão”46. Neste mesmo relatório destacou os avanços do Brasil princi-
palmente pela ratificação das Convenções número 29 e 105 da Organização
Internacional do Trabalho e na institucionalização de instrumentos para o
combate e erradicação do trabalho escravo no país, além de assumir o combate
como uma política de Estado.
O relatório lançado pela ONU em 2016 sugeriu, ainda, recomendações,
como a manutenção do conceito de trabalho escravo, estabelecido no artigo
149 do Código Penal, atualizado em 2003, e a reativação da “lista suja”, que
havia sido desativada na época47.
Outro ponto importante de ser destacado é o projeto de lei nº 432, de
2013, que trata sobre a expropriação de propriedades rurais e urbanas onde
sejam flagrados exploração de trabalho escravo. O projeto estabelece um novo
entendimento, uma revisão sobre a legislação atual sobre escravidão, “redu-
zindo as hipóteses do que pode ser considerado trabalho escravo no Brasil”48.
Assim, retrocederia à atualização realizada em 2003, e o colocaria novamente
numa situação de generalidade, com maiores chances de interpretação e, con-
sequentemente, de impunidade.

45
ONU. Sistema ONU no Brasil divulga nota sobre portaria do trabalho escravo. 2017. Disponível
em: <htt ps://nacoesunidas.org/sistema-onu-no-brasil-divulga-nota-sobre-portaria-do-trabalho-escra-
vo/>. Acesso em 23 out. 2017.
46
Idem. ONU manifesta preocupação com projeto de lei que altera conceito de trabalho escravo
no Brasil. 2016. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/onu-manifesta-preocupacao-com-projeto-de
-lei-que-altera-conceito-de-trabalho-escravo-no-brasil/> Acesso em 13 jun. 2017.
47
ONU. ONU manifesta preocupação com projeto de lei que altera conceito de trabalho escravo
no Brasil. 2016. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/onu-manifesta-preocupacao-com-projeto-de
-lei-que-altera-conceito-de-trabalho-escravo-no-brasil/> Acesso em 13 jun. 2017.
48
Idem, Ibidem.
316 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

CONCLUSÃO

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil é o país que


apresenta um cenário de avanços significativos no que diz respeito ao com-
bate ao trabalho análogo à escravidão, correspondente ao que se tratou como
escravidão contemporânea ou moderna, com a implementação de diversos
mecanismos e políticas públicas. Todavia, atenta sobre alguns retrocessos em
suas políticas nos últimos anos.
A chamada “lista suja”, um importante mecanismo de combate ao tra-
balho escravo foi desativado em 2014 pela “mais alta corte brasileira” sob a
alegação de inconstitucionalidade. Apesar de no ano de 2017, após diversas
disputas judiciais, ter havido a volta da atualização e divulgação, sua continui-
dade parece cada vez mais incerta.
O enfraquecimento de Grupos Móveis de Fiscalização e a continua dimi-
nuição de auditores fiscais do trabalho, devido a uma redução de concursos
para a área é um ponto de retrocesso grave, pois mais do que uma legislação
correta há a necessidade constante de uma fiscalização eficiente. Há, portanto,
um sério descaso nos últimos anos, e decisões atuais que revelam problemas
profundos do combate as formas de escravidão moderna, mesmo que desde
1995 o número de pessoas resgatadas ultrapasse 50 mil.
O projeto de lei do senado nº 432/2013, que se propõe a regulamentação
da ementa nº 81 sobre a expropriação de terras de empregadores que sejam fla-
grados explorando mão de obra análoga à escrava apresenta-se como mais um re-
trocesso, visto que poderia ser utilizado sobretudo como instrumento inibidor.
Inibição essa cada vez menos presente nas decisões politicas brasileiras,
que culminam na ressignificação do próprio conceito do que atualmente é
considerado trabalho escravo no Brasil, conceito esse que foi uma conquista
recente e importante para o país.
Atualmente o conceito de trabalho escravo no Brasil é determinado pelo
artigo 149 do Código Penal e estabelece que há a redução análoga à escravidão
quando se observa trabalho forçado, servidão por dívidas, jornada exaustiva
e condições degradantes de trabalho. Estas duas últimas inseridas pela a Lei
Federal nº 10.803/2003, como uma maneira de modernização do conceito e
reparação de possíveis lacunas anteriores. É pela inserção desses dois pontos
que o trabalho escravo contemporâneo deixa de ser resumido apenas à questão
que envolve a liberdade locomotiva do trabalhador, tonando-se mais eficaz.
A portaria 1.129/2017 elimina esses dois pontos adotados por último e re-
colocam o conceito novamente ao que era antes de sua modernização, limitando
a ideia de escravidão apenas ao que é restringida a liberdade do trabalhador.
Está sob ameaça os avanços conquistados na área, detectados como neces-
sários para o fechamento de lacunas ainda existentes, e expondo novamente
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 317
ao perigo os trabalhadores vulneráveis. Representa um claro retrocesso, uma
involução das conquistas ao longo do tempo, ao mesmo passo que descumpre
com as obrigações assumidas pela ratificação de convenções, assumidas pelo
Brasil, que versam sobre o tema.
Ao longo das últimas décadas o Brasil demonstrou empenho na promo-
ção da dignidade humana por meio do trabalho decente, como um direito
humano e fundamental, e no combate para a erradicação de situações que
conduzam o ser humano a se submeter a circunstâncias trabalhistas degradan-
tes. Admitindo a função social importante que o trabalho configura para o in-
divíduo e a sociedade como um todo, esforço este reconhecido pela principal
organização internacional sobre o tema e que agora estão em perigo.
É preciso considerar um cenário no qual se faz necessário colocar de
maneira ampla o combate à escravidão moderna, onde tão importante quanto
os aspectos de legislação e fiscalização seja a construção de oportunidades
educacionais e de trabalho para as pessoas que se encontram vulneráveis, em
especial às que já foram resgatadas nestas condições. Necessário também a ra-
tificação do Brasil ao novo Protocolo complementar a Convenção de 1930 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Por fim, salienta-se alguns pontos a serem trabalhados de maneira mais
profunda, para que seja desenvolvido um melhor entendimento do cenário
em questão, sendo eles: a) Formas de punição mais severas e eficazes aos infra-
tores flagrados pela legislação de combate à escravidão; b) Da criação de me-
canismos de integração entre governo, empresas/empresários na luta contra a
escravidão e; c) A avaliação do impacto das propostas de reformas trabalhistas
na condição de escravidão contemporânea no Brasil, assim como a mudança
de entendimento do conceito acerca da escravidão.
Todos estes temas, juntos ou individualmente, necessitam de uma maior
atenção pois impactam de maneira decisiva no combate e manutenção dos
aspectos das formas de escravidão contemporânea no contexto atual brasileiro.

REFERÊNCIAS

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318 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)
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balho-forcado-jornada-exaustiva-e-condicoes-analogas-a-de-escravo-para-fins-de-concessao-de-seguro-desemprego-
-ao-trabalhador-que-vier-a-ser-resg atado-em-fiscalizacao-do-ministerio-do-trabalho-nos-termos-do-artigo-2-c-da-lei-
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Capítulo 20
A Proteção dos Refugiados no Brasil e a
Lei de Migrações (Lei nº 13.445/17)
Paulo Augusto Carlos Monteiro Filho
Rafael Aguiar Nogueira e Franco

1. INTRODUÇÃO

Os fluxos migratórios são tão antigos quanto o próprio gênero humano,


quando os primeiros de nossa espécie começaram a explorar o planeta. Com o
passar dos séculos, enquanto os Estados eram implantados e remodelados, gran-
des contingentes populacionais se deslocavam, fugindo de perseguições e con-
flitos. O refúgio, portanto, sempre esteve presente na história da humanidade.
A ideia de refúgio internacional, por outro lado, só começou a ser tratada
após a Primeira Guerra Mundial, quando milhares de pessoas ficaram desa-
brigadas em decorrência da destruição gerada pela mais sangrenta guerra até
aquele momento. A então entidade internacional máxima, a Liga das Nações,
começou a organizar, junto com alguns países, organismos para lidar com os
refugiados da Guerra1.
Entretanto, foi somente após a Segunda Guerra Mundial e o surgimento
da Organização das Nações Unidades (ONU), em meados do século XX, foi
criado o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR),
fortalecendo definitivamente o trato ao refúgio internacional. O comitê teve
sua origem a partir da resolução nº 429 de 1950, da Assembleia Geral das Na-
ções Unidas, a qual sentiu a necessidade de criar algo especializado na questão.
Estabelecido em 1951, o ACNUR tem como finalidade dar proteção a
nível internacional aos refugiados e de encontrar soluções permanentes para
esta problemática. Apesar de ser um órgão subsidiário da ONU e de seguir as
diretrizes da Assembleia Geral (AGNU) e do Conselho Econômico e Social
(ECOSOC), o ACNUR é um órgão independente, com caráter apolítico,

1
RODRIGUES, Gilberto Marcos Antonio. Direito Internacional dos Refugiados: uma perspectiva bra-
sileira. II Anuário Brasileiro de Direito Internacional, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p.164-178, dez. 2007.
Anual. Pág. 165-166.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 321
humanitário e social, que se relaciona com grupos de refugiados e governos
de diversos países de forma simultânea e democrática2.
Os Estados logo começaram a buscar meios internos de se adaptar a essa
nova realidade, necessitando concretizar os compromissos internacionais as-
sumidos com relação ao trato com os refugiados. Contudo, o Brasil somente
normatizou essa questão em 1997 ao criar uma lei de tutela específica aos
Refugiados, a Lei nº 9.474/97, que surge após o compromisso assumido pelo
País na Convenção de Cartagena de 1984.
Vinte anos após a edição dessa norma nacional, ainda em vigência, é
aprovada a então Lei nº 13.445/17, denominada de Nova Lei de Migrações, a
qual revogará3 o Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/80) e trará novidades
com relação ao trato com os refugiados que ainda é normatizado de forma
específica pela Lei nº 9.474/97.
Nesse sentido, visando analisar a Nova Lei de Migrações e seus dispositi-
vos concernentes à proteção dos refugiados, o presente artigo fará inicialmente
um relato de como se desenvolveu e se desenvolve a proteção internacional
dos Refugiados no cenário internacional. Em seguida, adentrará mais ao cerne
da temática, analisar alguns dos principais dispositivos da nova lei de migra-
ções brasileira e identificar quais foram os seus avanços e quais serão os seus
desafios em relação aos refugiados e sua proteção no cenário nacional.

2. A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS:


ASPECTOS JURÍDICOS E INSTITUCIONAIS

Com o surgimento de um órgão internacional específico para a questão do


refúgio (ACNUR), temos o início de uma nova era para estes migrantes. Partin-
do do princípio de que para proteger algo, primeiro devemos conhecer este algo,
a primeira grande missão do novo comitê foi definir o que seriam refugiados.
Dessa forma, em 1951, surgiu a primeira Convenção Internacional que
trata sobre o tema dos Refugiados, caracterizando-os em seu art. 1ª, A, 2 como:

[...] qualquer pessoa que em consequência dos acontecimentos ocorridos antes


de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, reli-
gião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do
país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer
valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra
fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais
acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.

2
JUBILUT, L. L. O direito Internacional dos refugiados e sua aplicação no Ordenamento Jurídico Brasi-
leiro. São Paulo: Método, 2007. Pág. 78.
3
No momento da elaboração do presente artigo, a Lei nº 13.445/17 ainda não entrou em vigor.
322 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

É preciso destacar que o dito regulamento Internacional apresentava duas


limitações: uma temporal e uma geográfica. A primeira deriva de que o texto se
refere somente aos acontecimentos “ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951” e
a segunda é devido ao fato de que a Convenção se referia somente ao território
europeu. Estas deficiências são frutos da mentalidade da época em que a carta
normativa fora escrita: o período pós-Segunda Guerra Mundial, que se findou em
1945 e deixou uma grande destruição no continente europeu, o principal afetado4.
Com o fito de sanar estas falhas, foi aprovado em Nova Iorque um Pro-
tocolo (1967) relativo ao Estatuto dos Refugiados, extinguindo as duas limita-
ções supracitadas. Com mais de 140 assinaturas, o Protocolo Adicional entrou
em vigor em outubro de 19675. Seu art. 1º, §2 e §3, afirma ao alterar a redação
original da Convenção de 1951:

§2. Para os fins do presente Protocolo, o termo «refugiado», salvo no que diz
respeito à aplicação do §3 do presente artigo, significa qualquer pessoa que
se enquadre na definição dada no artigo primeiro da Convenção, como se as
palavras «em decorrência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro
de 1951 e...» e as palavras “...como consequência de tais acontecimentos” não
figurassem do §2 da seção A do artigo primeiro.
§3. O presente Protocolo será aplicado pelos Estados Membros sem nenhuma
limitação geográfica; entretanto, as declarações já feitas em virtude da alínea “a”
do §1 da seção B do artigo1 da Convenção aplicar-se-ão, também, no regime
do presente Protocolo, a menos que as obrigações do Estado declarante tenham
sido ampliadas de conformidade com o §2 da seção B do artigo 1 da Convenção.

A redação da Convenção de 1951, portanto, passou a ser lida da seguinte


forma:

[...] qualquer pessoa que em temendo ser perseguida por motivos de raça, re-
ligião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do
país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer
valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra
fora do país no qual tinha sua residência habitual, não pode ou, devido ao
referido temor, não quer voltar a ele.

Tem-se, desta maneira, a base jurídica internacional do Direito dos Refu-


giados que vigora até os dias atuais.

4
RODRIGUES, Gilberto Marcos Antonio. Direito Internacional dos Refugiados: uma perspectiva bra-
sileira. II Anuário Brasileiro de Direito Internacional, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p.164-178, dez. 2007.
Anual. Pág. 166-167.
5
RODRIGUES, Gilberto Marcos Antonio. Direito Internacional dos Refugiados: uma perspectiva bra-
sileira. II Anuário Brasileiro de Direito Internacional, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p.164-178, dez. 2007.
Anual. Pág. 167.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 323
Em meio a tais questões conceituais, Alto Comissariado das Nações Uni-
das para os Refugiados (ACNUR), que fora criado em 1950, já atuava para
garantir a proteção dos refugiados. A Assembléia Geral das Nações Unidas
(AGNU) possuía o objetivo de que este novo organismo tutelasse aqueles que
seriam considerados como refugiados, além de buscar “soluções duradouras
para os problemas dessas pessoas [os refugiados]”6.
Ao longo dos anos, as problemáticas envolvendo os migrantes interna-
cionais se tornaram mais complexas, fazendo com que não só se alterasse o
conceito de “refugiado” como também que fosse ampliada a atuação do Alto
Comissariado. Desta forma, o mesmo passou a tutelar outras pessoas além dos
refugiados, como os apátridas, os deslocados internos e as pessoas cuja nacio-
nalidade seja controversa7.
Para implementar seus objetivos com os diversos povos que tutela, o Alto
Comissariado utiliza-se de, basicamente, três estratégias: a integração local, a
repatriação voluntária e o reassentamento8.
A integração local seria a inclusão do refugiado como membro do Estado
que lhe concedeu o refúgio. Nesse caso, haveria todo um processo complexo,
com dimensões jurídicas, sócio-econômicas e culturais, vez que muitas vezes
os refugiados passariam a viver em nações com costumes bastante diferentes
dos do seu país de origem9.
O segundo método descrito seria o considerado ideal: os refugiados pode-
riam voltar ao seu país de origem, possuindo seus direitos respeitados. É pre-
ciso ressaltar que, uma vez repatriado, o refugiado deixa de ser protegido pelo
Direito Internacional dos Refugiados, passando a ser tutelado pelo Direito do
seu Estado, uma vez que não seria mais considerado um refugiado10.
Por fim, os reassentados são aqueles que não podem permanecer no Es-
tado que lhes concedeu o refúgio – principalmente por decorrência de alguma
necessidade específica que não pode ser solucionada por este país – e que
buscam integra-se em outros territórios11. Com o fim de promover a proteção
jurídica e física dos refugiados – incluindo o acesso a direitos semelhantes
6
ACNUR. O ACNUR no Brasil. Disponível em: <http://www.acnur.org/portugues/informacao-geral/o-
-acnur-no-brasil/>. Acesso em: 01 nov. 2017.
7
ACNUR. A missão do ACNUR. Disponível em: <http://www.acnur.org/portugues/informacao-geral/a-
missao-do-acnur/>. Acesso em: 08 maio 2017.
8
JUBILUT, L. L. O direito Internacional dos refugiados e sua aplicação no Ordenamento Jurídico Brasi-
leiro. São Paulo: Método, 2007. Pág. 75.
9
ACNUR. A missão do ACNUR. Disponível em: <http://www.acnur.org/portugues/informacao-geral/a-
missao-do-acnur/>. Acesso em: 08 maio 2017.
10
JUBILUT, L. L. O direito Internacional dos refugiados e sua aplicação no Ordenamento Jurídico Brasi-
leiro. São Paulo: Método, 2007. Pág. 75.
11
De acordo com o site oficial do ACNUR, as principais zonas de reassentamentos encontram-se nos
Estados Unidos, Austrália, Canadá e países nórdicos. Além destes, os Estados europeus e da América
324 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

aos nacionais do Estado que sedia o reassentamento –, o ACNUR promove a


ajuda financeira e intermedia o contato com os Estados12.
Nesse sentido, tais migrantes buscam constantemente o amparo conferido
pelo Direito Internacional dos Refugiados, pois uma vez que a pessoa adquira o
status de refugiado pelo novo país, ele passará a receber a proteção humanitária
devida. Neste diapasão, ela terá direitos de um cidadão normal e os deveres de
um estrangeiro, cabendo-lhes a obrigação de cumprir todas as normas nacionais
destinadas a manter a segurança e a ordem pública do Estado13.
Atualmente, grandes fluxos de refugiados têm sido gerados em todo o
globo, com destaque para a região do Oriente Médio – com as guerras civis e
as ameaças terroristas14 – e, em se tratando de América Latina, para a Venezue-
la – com a sua crise política15 – e Haiti – com o terremoto de 2010 que gerou
inúmeros deslocados16.
Em face desses acontecimentos, muitos países estão alterando a sua política
de ajuda humanitária aos refugiados. Em alguns Estados europeus, por exemplo,
temos várias conversas sobre a “devolução”17 e a expulsão18 de refugiados árabes.
Já no Brasil, fez-se necessária a aprovação da Lei nº 13.445/17 (a nova Lei
de Migrações), para se adequar às crises migratórias que nem sempre se enqua-
dram nos padrões da Declaração de 1951.

3. A POLÍTICA BRASILEIRA DE ACOLHIMENTO AOS


REFUGIADOS E A NOVA LEI DE MIGRAÇÕES

O Brasil foi o primeiro país do Cone Sul a ratificar a Convenção de 1951,


fazendo-o em 1960, e também um dos primeiros países integrantes do Comitê

Latina (notadamente Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai) também têm se envolvido cada vez
mais com tais medidas (ACNUR, 2017).
12
ACNUR. A missão do ACNUR. Disponível em: <http://www.acnur.org/portugues/informacao-geral/a-
missao-do-acnur/>. Acesso em: 08 maio 2017.
13
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 8. ed. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais Ltda, 2014.Pág. 268.
14
MERELES, Carla. A CRISE HUMANITÁRIA DOS REFUGIADOS. Disponível em: < http://www.
politize.com.br/crise-dos-refugiados/>. Acesso em 29 jan. 2018.
15
CREVILARI, Vinícius. Crise na Venezuela faz crescer o número de refugiados no Brasil. 2017.
Disponível em: <http://jornal.usp.br/atualidades/crise-na-venezuela-faz-crescer-o-numero-de-refugia-
dos-no-brasil/>. Acesso em 29 jan. 2018.
16
G1.  Brasil autoriza permanência definitiva a 44 mil refugiados haitianos. 2015. Disponível em:
<http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2015/11/brasil-autoriza-permanencia-definitiva-44-mil-re-
fugiados-haitianos.html>. Acesso em: 27 maio 2017.
17
Para mais detalhes dessa situação, ver: <http://expresso.sapo.pt/internacional/2016-04-04-Grecia-come-
ca-a-devolver-refugiados-e-migrantes-a-Turquia-sob-controverso-acordo> . Acesso em 05/04/2016.
18
Para mais detalhes dessa situação, ver: <http://exame.abril.com.br/mundo/noticias/expulsao-de-refugia-
dos-e-legitima-diz-merkel-e-davutoglu>. Acesso em 05/04/2016
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 325
Executivo do ACNUR, assumindo desde logo responsabilidade internacional
pela tomada de decisões do Alto Comissariado19.
Entretanto, em que pese o vanguardismo brasileiro, somente em 1997
adotou-se no País uma lei que tutelasse especificamente os Refugiados, a Lei
nº 9.474/97. Esta norma foi resultado de uma determinação da Convenção de
Cartagena de 1984, a qual em seu 2º tópico define que os Estados-Parte que
ainda não tiverem incorporado em seu ordenamento a Convenção de 1951
deveriam fazê-lo. Além disso, estabeleceu-se, entre outras recomendações, que
os países deveriam criar os mecanismos internos necessários para se oferecer
proteção humanitária aos refugiados20.
Foi nesse ínterim que se editou o Estatuto do Refugiado, como é conhe-
cida a lei nacional responsável pela temática. Tal norma também adota uma
definição muito semelhante a da Convenção de 1951 e Protocolo de 1967,
vez que, logo em seu artigo 1º, o diploma legal trata de definir a condição de
refúgio como sendo:
Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:

I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião,


nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país
de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;
II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residên-
cia habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstân-
cias descritas no inciso anterior;
III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a
deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.

Perceba-se, entretanto, que no inciso III confere uma leve abertura à definição
nacional com relação ao documento internacional de 1951, por influência das
novas conjunturas internacionais que deram origem a Declaração de Cartagena.
Ressalte-se ainda que o art. 3º da referida lei também elenca os casos em
que não deverá ser concedida a condição de refugiado:

Art. 3º Não se beneficiarão da condição de refugiado os indivíduos que:


I - já desfrutem de proteção ou assistência por parte de organismo ou institui-
ção das Nações Unidas que não o Alto Comissariado das Nações Unidas para
os Refugiados - ACNUR;
II - sejam residentes no território nacional e tenham direitos e obrigações rela-
cionados com a condição de nacional brasileiro;

19
ACNUR. O ACNUR no Brasil. Disponível em: <http://www.acnur.org/portugues/informacao-geral/o-
-acnur-no-brasil/>. Acesso em: 01 nov. 2017.
20
Declaração de Cartagena. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES. 1984. Disponível em: <http://
www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internacionais/Declara-
cao_de_Cartagena.pdf?view=1>. Acesso em: 01 jun. 2017.
326 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

III - tenham cometido crime contra a paz, crime de guerra, crime contra a hu-
manidade, crime hediondo, participado de atos terroristas ou tráfico de drogas;
IV - sejam considerados culpados de atos contrários aos fins e princípios das
Nações Unidas.

Entre outros direitos assegurados, destaque-se que aqueles que forem


reconhecidos como refugiados não poderão ser extraditados. A expulsão
também será proibida, salvo por motivos de segurança nacional ou de or-
dem pública, não devendo o refugiado ser enviado para país onde sua vida,
liberdade ou integridade física possam estar ameaçados e somente se efetiva-
rá a expulsão quando se houver certeza de sua admissão em Estado onde não
haja risco de perseguição.
O Estatuto do Refugiado, em seu art. 11, também criou o Comitê Nacio-
nal para os Refugiados (CONARE), órgão encarregado de tomar as decisões
nacionais em matéria de refúgio. As principais competências do órgão estão
elencadas em seu art. 12, como: analisar o pedido de refúgio e declarar ou não
o seu reconhecimento; decidir sobre os casos de cessação e perda da condição
de refugiado; orientar e coordenar as ações para a proteção dos refugiados e
aprovar instruções normativas que esclareçam a execução da Lei 9.474/97.
Com a Lei 9.474/97, portanto, o ordenamento jurídico brasileiro adotou
uma definição ampliada da figura do refugiado visando eslastecer assim o
reconhecimento da grave e generalizada violação dos direitos humanos como
fator de reconhecimento do status de refugiado, visando com isso proteger as
vítimas do desrespeito aos seus direitos fundamentais.
O Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/80), dentro desse panorama nor-
mativo, encontrava-se, portanto, defasado com relação às diretivas e aos orga-
nismos nacionais e internacionais até então existentes, a exemplo do próprio
CONARE. Dessa forma, visando atualizar ainda mais a legislação até então
existente no Brasil, assim como dos demais dispositivos internacionais, com
relação a proteção dos migrantes, em 24 de maio 2017 foi aprovado o Projeto
de Lei do Senado 288/2013 – proposta pelo parlamentar Aloysio Nunes Ferr-
reira, do PSDB-SP –, o qual é a Lei nº 13.445/17, o novo diploma normativo
geral sobre migrações21.
Esta norma tratou de revogar o Estatuto do Estrangeiro que vigia no Bra-
sil desde 1980 e por conta disso ocasionou algumas alterações no tratamento
concedido no Brasil para os estrangeiros. O texto delimita os grupos que são
abarcados pela legislação – imigrantes, emigrantes, residentes fronteiriços, visi-

21
AGÊNCIA SENADO. Senado aprova projeto da nova Lei de Migração, que segue para sanção
presidencial. Congresso em Foco. Brasília. 18 abr. 2017. Disponível em < http://congressoemfoco.uol.
com.br/noticias/senado-aprova-projeto-da-nova-lei-de-migracao-quesegue-para-sancao-presidencial/>.
Acesso em: 18 jun. 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 327
tantes e apátridas – e ratifica que as normas específicas para os refugiados no
Brasil não serão prejudicadas.
Todavia, em meio aos seus artigos, faz várias alusões aos refugiados e, ora
distingue estes últimos dos demais imigrantes, prevendo condições diferentes
a cada um, ora os trata de forma igualitária, sendo possível antever que de
alguma forma eles serão afetados por suas normas.
Em seu início, no artigo 2º, a nova lei faz a ressalva de que ao entrar em
vigor, não prejudicará a aplicação de normas internas e internacionais especí-
ficas sobre refugiados. Logo, pode-se concluir que a nova norma, em que pese
ter revogado o Estatuto do Estrangeiro, não prejudicará os demais normativos
específicos existentes ou ratificados no Brasil, a exemplo da Lei 9.474/97 que
trata dos refugiados no País em consonância com os documentos internacionais
existentes, veja: “Art. 2º Esta Lei não prejudica a aplicação de normas internas e
internacionais específicas sobre refugiados, asilados, agentes e pessoal diplomá-
tico ou consular, funcionários de organização internacional e seus familiares”.
Dentre os motivos para a criação da nova lei de migrações tem-se o fato
de que o Estatuto do Estrangeiro de 1980 carecia de adequações para a reali-
dade internacional globalizada e integrada em que o país se encontra, de fato
atento aos diversos tipos de movimentos migratórios e formas de refúgio.
Podemos destacar como o principal fator dessas alterações o novo paradigma
com relação aos estrangeiros: eles não seriam mais vistos como uma ameaça a
soberania nacional, entendimento este que estava presente de forma sublimi-
nar no Estatuto do Estrangeiro.
Visando essa maior adequação aos novos movimentos migratórios, a lei
instituiu no rol de seus princípios da política migratória do país o repúdio à
xenofobia, ao racismo e qualquer outra forma de discriminação. O texto tam-
bém garante aos migrantes o direito de uma acolhida humanitária e de amplo
acesso à Justiça. Além disso, aponta para outros importantes princípios, quais
sejam: a garantia ao imigrante de condição de igualdade com os nacionais;
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à pro-
priedade; e acesso à documentação, como a carteira de trabalho, registro da
documentação que permite ingresso no mercado de trabalho formal e direito
à previdência social22.
Ocorre que, embora a nova lei tenha ampliado o rol de direitos e garan-
tias dos migrantes, algo bastante inexpressivo no anterior dispositivo legal, ela
não irá satisfatoriamente sanar as principais causas da desigualdade e xenofo-
bia pelos quais passam os migrantes. Uma dessas causas é a falta de conheci-
mento sobre o que ocorre no mundo da migração. As informações enganosas
que circulam, principalmente nas redes sociais, podem ser devastadoras em

22
(LEI Nº 13.445, 2017, art. 3º)
328 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

uma construção de políticas públicas e mudanças legislativas, a exemplo do


que ocorreu nos países do continente europeu após o aumento do contingente
de migrantes e refugiados provenientes de guerras civis no Oriente Médio23.
O migrante ainda é uma figura bastante criminalizada em virtude da
escassa noção de cidadania entre os nacionais do país de destino. Para uma
mudança efetiva desse estigma deve-se não só adequar a legislação de proteção
vigente no país como também ampliar a participação do Poder Público em
ações de conscientização e inclusão que cooperem para a formação de uma
sociedade menos preconceituosa e mais acolhedora.
Outra importante mudança que a Lei tratou de prever que beneficiou
principalmente os imigrantes em situação de refúgio relaciona-se com o Visto
Temporário de caráter humanitário, que atualmente são aplicados de forma
discricionária apenas em casos especiais, como os dos refugiados sírios e hai-
tianos em face da Resolução 97/1224.
Nesse sentido, a lei traz inovações como a desburocratização do processo
de regularização migratória e a institucionalização da política de vistos huma-
nitários. Veja:

Art. 14º.  O visto temporário poderá ser concedido ao imigrante que venha ao
Brasil com o intuito de estabelecer residência por tempo determinado e que se
enquadre em pelo menos uma das seguintes hipóteses:
I - o visto temporário tenha como finalidade:
[...]
c) acolhida humanitária;
[...]
§ 3º O visto temporário para acolhida humanitária poderá ser concedido ao
apátrida ou ao nacional de qualquer país em situação de grave ou iminente
instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande
proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos
ou de direito internacional humanitário, ou em outras hipóteses, na forma
de regulamento.
[...]

23
Podemos citar como exemplo de tais efeitos devastadores a comemoração de nacionais alemães pelo
incêndio em um centro de refugiados na cidade de Bautzen, no interior da Alemanha. MÜLLER, Enri-
que. Moradores de cidade alemã comemoram incêndio de centro de refugiados. 2016. Disponível
em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/02/21/internacional/1456068378_388905.html>. Acesso em
29 jan. 2018.
24
A Resolução Normativa do Conselho Nacional de Imigração número 97, de 2012, foi editada com o fim
de regular a entrada e estadia dos haitianos no território nacional por meio de visto de caráter humani-
tário. Tal medida foi tomada em face da crescente quantidade de haitianos que vinham buscar proteção
no Brasil após o terremoto que abalou a ilha Hispaniola em 2010. G1. Brasil autoriza permanência
definitiva a 44 mil refugiados haitianos. 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/distrito-federal/
noticia/2015/11/brasil-autoriza-permanencia-definitiva-44-mil-refugiados-haitianos.html>. Acesso em:
27 maio 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 329
A medida acima permite, dentre outras coisas, que pessoas em situação de
risco, sejam eles decorrentes de catástrofes ambientais ou mesmo decorrentes
de situação de guerra e/ou problemas econômicos, possam chegar ao Brasil
de maneira segura e humanitária, com amparo legal e instituições preparadas
para lidar com tais situações que são cada vez mais comuns perante a socieda-
de internacional.
No entanto, em que pese a visão romântica dos objetivos acima que ad-
vêm com a nova legislação, na prática o amparo ao migrante no Brasil ainda
é bastante precário e muitas vezes discriminatório.
Os migrantes que adentram no País de forma irregular e sem documen-
tação acabam sendo recepcionados pelo governo brasileiro de forma precária
e com pouco ou quase inexistente amparo institucional. Podemos citar como
exemplo o caso da acolhida concedida aos refugiados venezuelanos no ano de
2017, quando o Brasil, para conceder residência temporária, passou a cobrar
uma taxa de mais de R$ 300,00 (trezentos reais) de cada solicitante de refúgio,
cobrança esta desarrazoada diante da situação de inconsistência econômica
dessas pessoas25.
Ademais, cumpre salientar que a figura do visto humanitário ainda care-
ce de regulamentação futura, por meio de Decretos Legislativos, em aspectos
procedimentais importantes, como no estabelecimento dos requisitos neces-
sários para a concessão do visto, vez que a normatização existente ainda é a
Resolução 97/12, aplicada de forma discricionária apenas em casos especiais
de solicitação.
Em relação aos Direitos Políticos a Lei 13.445/17 trouxe inovações se
comparada com o Estatuto do Estrangeiro. Apesar de ainda não possuírem
direito ao voto, pois isto obrigatoriamente deveria decorrer de uma Proposta
de Emenda Constitucional, os imigrantes poderão, no entanto, obter filiação
sindical, bem como participar de reuniões de debates de cunho político, o que
não era permitido no Estatuto do Estrangeiro.
O fim da prisão por situação irregular foi outra relevante mudança com
relação ao antigo Estatuto. Agora, nenhum imigrante no Brasil pode ser preso
pelo fato de sua situação documental estar irregular. Os migrantes que foram
criminalizados por este tipo de situação deverão ser anistiados pelo Estado
brasileiro, de acordo com a nova regra.
Deve-se aqui salientar que a nova proibição exigirá, para que possa ser
efetivamente cumprida, de uma melhor preparação e treinamento da polícia
de fronteira, evitando-se assim a perpetuação de prisões indevidas. Ademais,

25
CREVILARI, Vinícius. Crise na Venezuela faz crescer o número de refugiados no Brasil. 2017.
Disponível em: <http://jornal.usp.br/atualidades/crise-na-venezuela-faz-crescer-o-numero-de-refugia-
dos-no-brasil/>. Acesso em 29 jan. 2018.
330 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

com respectiva iniciativa legislativa a Defensoria Pública terá um aumento


considerável da sua demanda, motivo pelo qual será necessária uma ampliação
de seu aparato institucional nas regiões sensíveis à entrada de migrantes.
Estabelecidas as inovações legislativas advindas com a Lei 13.445/17 no
amparo e proteção dos migrantes e refugiados no Brasil, deve-se destacar que
alguns importantes avanços ficaram de fora do texto normativo após terem sido
vetados pelo Presidente Michel Temer. Um deles foi o veto à anistia que seria
concedida aos imigrantes que ingressaram no Brasil sem documentação até 6
de julho de 2016 e que fizeram o pedido até um ano após o início de vigência
da lei, independente da situação migratória anterior, o que acaba por tolher a
iniciativa brasileira em regularizar a situação dos migrantes irregulares existentes
no território nacional, dentre os quais a grande maioria é de refugiados.
A justificativa feita pela presidência foi a de que mencionado dispositivo
concederia anistia discriminada aos imigrantes, tolhendo a autoridade brasi-
leira na seleção dos acolhidos26:

O dispositivo concederia “anistia indiscriminada a todos os imigrantes, reti-


rando a autoridade do Brasil de selecionar como será o acolhimento dos es-
trangeiros. Temer acrescentou que, ademais, não há como definir a data exata
da entrada do imigrante no país.

Outro veto importante do presidente impossibilitou o imigrante de exer-


cer cargo, emprego e função pública, ou entrar no país por conta de aprovação
em concurso público, o que de acordo com Temer seria uma “afronta à Cons-
tituição e ao interesse nacional”27.
Ao todo, a Lei das Migrações teve 20 trechos do seu texto vetados pelo
Presidente da República, dentre os quais se encontram alguns que caso esti-
vessem contidos na legislação de forma integral teriam ampliado ainda mais
o rol de direitos e garantias concedidos ao imigrante. Além dessa perda de
direitos e garantias, pelo fato de a nova lei ser fruto de um trabalho árduo dos
movimentos sociais e da sociedade civil – que não somente representaram os
interesses dos estrangeiros, mas também cobraram agilidade e transparência
durante todo o trâmite, acompanhando, passo a passo as votações do projeto
de lei -, os 20 vetos significaram uma perda da autonomia legislativa e do pró-
prio princípio democrático.
26
AGÊNCIA SENADO. Senado aprova projeto da nova Lei de Migração, que segue para sanção
presidencial. Congresso em Foco. Brasília. 18 abr. 2017. Disponível em < http://congressoemfoco.uol.
com.br/noticias/senado-aprova-projeto-da-nova-lei-de-migracao-quesegue-para-sancao-presidencial/>
acesso em: 18 jun. 2017.
27
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Sancionada com vetos nova Lei de Migração. 2017. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/RELACOES-EXTERIORES/535365-SANCIO-
NADA-COM-VETOS-NOVA-LEI-DE-MIGRACAO.html>. Acesso em: 18 jun. 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 331
Estes breves apontamentos sobre os aspectos materiais que a Lei das Mi-
grações traz em seu escopo nos levam a enxergá-la como um grande avanço
em relação à política brasileira para fluxos migratórios, bem como um ali-
nhamento com o que vem acontecendo de mais avançado na comunidade
internacional relativo ao acolhimento de refugiados.
Entretanto, apesar de a Lei das Migrações ser um grande avanço para o
ordenamento nacional, em virtude das inovações apresentadas ainda será ne-
cessário entender como este dispositivo irá se aplicar em situações práticas de
trânsito de estrangeiros no País. Isso porque a Lei ainda será complementada por
novos Decretos Legislativos com o intuito de se viabilizar a aplicação de alguns
de seus institutos, a exemplo da concessão do próprio visto humanitário e dos
novos direitos políticos, desafios que de nenhuma forma invalidam o avanço da
referida legislação para a proteção dos migrantes e refugiados no Brasil.

CONCLUSÃO

Desde a criação do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refu-


giados (ACNUR) em 1951, no pós-Segunda Guerra Mundial, os refugiados
adquiriram proteção especial no cenário internacional. Contando atualmente
com uma base jurídica sólida de proteção internacional, após principalmente
o estabelecimento de uma conceituação própria e de princípios especificos, a
temática apresenta relevância nacional e os Estados logo começaram a buscar
meios internos de se adaptarem a essa nova realidade de proteção, necessi-
tando concretizar os compromissos internacionais assumidos com relação ao
trato com os refugiados.
O Brasil, embora tenha sido o primeiro país da América do Sul a ratificar
a Convenção de 1951 e um dos primeiros países integrantes do Comitê Exe-
cutivo do ACNUR, só normatizou a proteção dos refugiados em 1997, com a
Lei nº 9.474/97 (Estatuto do Refugiado), resultado do compromisso assumido
pelo País na Convenção de Cartagena de 1984.
Dentre as conquistas da Lei nº 9.474/97, pode-se citar a definição da
condição de refúgio, suas exceções, seus direitos, e a criação do Comitê Nacio-
nal para os Refugiados (CONARE), órgão encarregado de tomar as decisões
nacionais em matéria de refúgio. Contudo, embora o Estatuto do Refugiado
continue vigente no País, em 24 de maio 2017 foi aprovada a Lei nº 13.445/17,
que consistirá no novo diploma normativo geral sobre migrações (07/2016 ao
PLS 288/2013) em substituição ao antigo Estatuto do Estrangeiro, normativo
que regulamentava os estrangeiros no Brasil juntamente com o normativo
específico dos refugiados (Lei nº 9.474/97).
A nova lei, que em nada prejudicará os normativos específicos existen-
tes ou ratificados no Brasil concernentes aos refugiados, a exemplo da Lei
332 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

9.474/97, ao incluir dentre os príncipios norteadores da política migratória no


Brasil o combate ao racismo e a xenofobia, tornou-se um ganho inenerrável
para o Estado brasileiro e para as suas instituições se comparado ao tratamen-
to principiológico concedido pelo antigo Estatuto do Estrangeiro.
Ao destacar aspectos como a desciminalização dos imigrantes sem docu-
mentação, a desburocratização para a regulamentação da situação dos imigran-
tes no país, bem como a garantia do acesso a políticas públicas como saúde
e educação, o Brasil passa a acolher de fato o imigrante como um cidadão e
respeitar um dos princípios básicos do direito internacional dos direitos hu-
manos, que é o do respeito ao indivíduo.
As situações de migração e refúgio ocorrem das mais diversas formas e
pelos mais diversos motivos de uma sociedade para outra. Permitir que as pes-
soas que estão em situação de migração recebam por parte de um Estado Na-
cional o acolhimento que lhes é devido é, sobretudo, garantir que os laços que
são criados com este Estado sejam de respeito e confiança mútuos, fazendo
inclusive com que o número de incidentes penais envolvendo a comudidade
estrangeira diminua drásticamente.
A nova Lei das Migrações é, portanto, um grande ganho para o Brasil
enquanto membro da comunidade internacional, por permitir um aprimora-
mento das instituições que tratam do estrangeiro, como também por abrir as
suas portas para que os imigrantes aqui se encontrem de modo a garantir sua
vida, seus direitos, seu bem estar e, sobretudo, seu efetivo exercício cidadão na
vida em sociedade.

REFERÊNCIAS
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cial. Congresso em Foco. Brasília. 18 abr. 2017. Disponível em < http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/
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Capítulo 21
Fazenda Brasil Verde vs. Brasil -
Dois Anos da Sentença da Corte
Interamericana de Direitos Humanos
Ana Paula França Rolim

1. INTRODUÇÃO

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), juntamen-


te com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), integra o
Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos. O documento
que rege a atuação desse sistema internacional se materializa no Pacto de San
José da Costa Rica. Importante instrumento, o Pacto de San José da Costa
Rica vem provocando os países signatários a se comprometerem internacional-
mente com o cumprimento de medidas que visem à salvaguarda dos direitos
mais fundamentais para a dignidade e integridade humana. O Brasil aceitou
a competência contenciosa obrigatória da Corte Interamericana de Direitos
Humanos em 1998 para fatos posteriores a essa data, no entanto é reservado
ao Estado aceitar a competência para fatos anteriores a essa data em cada caso.
O caso Fazenda Brasil Verde é uma das sentenças mais recentes para a
jurisprudência da CorteIDH no que concerne a casos brasileiros e foi inédito
nesse tribunal no que diz respeito à violação da proibição da prática de traba-
lho escravo, contida no artigo 6º do diploma que rege esse tribunal.
Tendo em vista os impactos que tais julgados provocam no contexto do
país condenado é imperativo que seja realizado o trabalho de análise e reanáli-
se continuamente dos resultados colhidos pela atuação do Sistema Interameri-
cano, o qual exerce papel singular na tutela dos direitos humanos.
Em países como o Brasil, no qual tem-se uma democracia jovem de cerca
de apenas 30 anos e que vem de um passado ditatorial e imperialista recente,
onde se perpetraram barbáries aos Direitos Humanos, é mais que dever do
Estado se manter vinculado a esses tribunais para reafirmar seu compromisso
com a preservação do Estado Democrático de Direito garantidor e cidadão.
Mesmo se mostrando um país que age no sentido de respeitar a comu-
nidade Internacional, o Brasil ainda tem um longo percurso no combate a
prática do trabalho escravo e a condenação pela CorteIDH é um sucesso que
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 335
deve ser comemorado comedidamente. Mesmo com tais repercussões, o Bra-
sil ainda registra um elevado índice de pessoas em situações degradantes de
subemprego. Dados da ONG Walk Free Foundation estimaram que em 2016
cerca de 161 mil pessoas ainda trabalhavam em condições análogas a de escra-
vo, segundo o Índice Global de Escravidão1. Um número alarmante que assola
a comunidade brasileira.
As ações afirmativas para evitar o avanço desses abusos trabalhistas no
Brasil devem ser analisadas e expostas criticamente para a avaliação popular do
comprometimento Estatal com a pasta do combate ao trabalho escravo e não
só ao trabalho escravo, mas à servidão e outras espécies de exploração laboral.

2. O CASO FAZENDA BRASIL VERDE

Data de 20 de outubro de 2016 a sentença proferida pela Corte Interame-


ricana de Direitos Humanos que condenou o Estado brasileiro por violações
às garantias de acesso à justiça, tráfico de pessoas e, pela primeira vez nesse
tribunal, por violações às proibições do trabalho escravo, inclusive infantil.
Além desse infeliz pioneirismo, o caso chama atenção por se revelar uma raiz
da erva-daninha do passado escravista colonial crescendo e sendo alimentada
por um quadro nacional de extrema desigualdade social e carência de proteção
e estímulo aos grupos socialmente vulneráveis.
O juízo da CorteIDH entendeu por bem, à luz das provas confrontadas,
computar um total de 128 vítimas de trabalho em condições análogas a escra-
vo, entretanto, as décadas que se passaram entre a primeira denúncia feita à
justiça brasileira pela Comissão Pastoral da Terra em 1988 e o caminho até a
apuração das vítimas pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos, em
2016, sem dúvidas tornou impossível de fato precisar quantos foram submeti-
dos a essa degradante situação de exploração de trabalho. Os testemunhos das
vítimas e os relatórios das visitas da Polícia Federal ao local em 1989, 1992,
1994, 1997, 1999 e 2000 revelaram mais que o suficiente para escancarar uma
situação de total desrespeito ao direito do trabalho e à dignidade humana.
Os trabalhadores eram aliciados por funcionários da fazenda os quais vi-
sitavam os recantos, principalmente, do Nordeste brasileiro com ofertas de em-
prego nas fazendas do grupo Irmãos Quagliato no sul do Pará, em Sapucaia. Me-
diante um adiantamento em pecúnia, os trabalhadores eram iludidos com uma
aparente oferta de emprego ótima na fazenda, entretanto, tal qual os testemu-
nhos das vítimas e o próprio relatório proveniente de uma das fiscalizações do
1
REIS, Thiago Quase 46 milhões vivem regime de escravidão no mundo, diz relatório. Portal G1. 2016.
Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/05/quase-46-milhoes-vivem-regime-de-escra-
vidao-no-mundo-diz-relatorio.html. Acesso em: 31 jan. 2018.
336 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Ministério do Trabalho os problemas iam da higidez dos locais de trabalho e de


descanso até o suprimento de necessidades básicas como alimentação adequada,
além disso o trabalho era vigiado por homens armados sob ameaças de morte
e punições físicas caso o rendimento não fosse satisfatório. Os trabalhadores se
encontravam sempre endividados com a fazenda pois tudo que consumiam era
descontado de seus salários irrisórios e os preços dos produtos vendidos eram
hiperinflacionados e eles eram impedidos de sair para comprar em outro local.
O relato de uma das vítimas para ONG Repórter Brasil relembra o coti-
diano dos trabalhadores

Quase quatro horas depois, chegava com as quentinhas, frias, numa mistura
de arroz e mandioca e carcaça de carne, sem tempero. Comiam “no tempo” – à
céu aberto e, quando era o caso, embaixo de chuva - no máximo em meia hora.
“Comida que nem porco no Piauí come”, diz Marcos. Para matar a sede, água
quente e suja. Às 18h, molhados - de suor, do trabalho dentro d’água ou da
chuva-, voltaram à(sic) pé e escoltados para o barraco. Um dos trabalhadores
fez a conta de quanto ganhariam por dia: R$ 0,75.2

Na sentença do caso em comento a Corte desenvolveu o seguinte raciocínio

304. Diante do exposto, é evidente para a Corte que os trabalhadores resgatados


da Fazenda Brasil Verde se encontravam em uma situação de servidão por dívida
e de submissão a trabalhos forçados. Sem prejuízo do anterior, o Tribunal consi-
dera que as características específicas a que foram submetidos os 85 trabalhadores
resgatados em 15 de março de 2000 ultrapassavam os elementos da servidão por
dívida e de trabalho forçado, para atingir e cumprir os elementos mais estritos da
definição de escravidão estabelecida pela Corte (par. 272 supra), em particular o
exercício de controle como manifestação do direito de propriedade. Nesse sentido,
a Corte constata que: i) os 80 trabalhadores se encontravam submetidos ao efetivo
controle dos gatos, gerentes, guardas armados da fazenda, e, em última análise,
também de seu proprietário; ii) de forma tal que sua autonomia e liberdade indivi-
duais estavam restringidas; iii) sem seu livre consentimento; iv) através de ameaças,
violência física e psicológica, v) para explorar seu trabalho forçado em condições
desumanas. Além disso, as circunstâncias da fuga realizada pelos senhores Antônio
Francisco da Silva e Gonçalo Luiz Furtado e os riscos enfrentados até denunciarem
o ocorrido à Polícia Federal demonstram: vi) a vulnerabilidade dos trabalhadores e
vii) o ambiente de coação existente nesta fazenda, os quais viii) não lhes permitiam
alterar sua situação e recuperar sua liberdade. Por todo o exposto, a Corte conclui
que a circunstância verificada na Fazenda Brasil Verde em março de 2000 represen-
tava uma situação de escravidão3.

2
LAZZERI, Thais. Eu fui escravo. Repórter Brasil, Piauí, 12 maio 2017. Disponível em: https://reporter-
brasil.org.br/brasilverde/reportagem.html#carousel_timeline. Acesso em: 29 jan. 2018.
3
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença de 20 de outubro de 2016.
Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Parágrafo 304.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 337
O que se constatou, portanto, é que havia um vínculo, sim, de posse estabe-
lecido entre os empregados e o empregador, mediado pelos aliciadores conhecidos
como “gatos”. Na sentença, ainda, é analisado o conceito de escravidão, servidão e
tráfico de pessoas para transpor a interpretação de forma evolutiva na atualidade.

3. NA JUSTIÇA BRASILEIRA

Será tratada a seguir a longa trajetória desse caso na justiça nacional para
que seja demonstrada a inépcia do Estado brasileiro em conseguir reprimir
a prática do trabalho escravo a contento, mesmo após denúncias reiteradas
durante cerca de uma década.
Adailton Martins dos Reis relatou as condições de cárcere na Fazenda
após fugir em 21 de dezembro de 1988. A polícia federal vinha recebendo de-
núncias de várias fazendas localizadas também no sul do Pará, todas acusadas
de manter trabalhadores em condições análogas a de escravo4.
No mesmo ano a Comissão Pastoral da Terra (CPT) junto ao pai de Iron
Canuto da Silva de 17 anos e o irmão de Luis Ferreira da Cruz de 16 anos pres-
taram denúncia formal à Polícia Federal (PF) devido as condições de trabalho
e ao desaparecimento desses dois jovens menores de 18 anos. De acordo com
os familiares, os dois rapazes foram aliciados com mais 40 pessoas na cidade
Arapoema, no estado de Tocantins, pelo “gato” para trabalhar na limpeza do
pasto na Fazenda Brasil Verde5.
Em 24 de fevereiro de 1989 a PF emite relatório de vistorias feitas em
várias fazendas do sul do Pará. Apesar de ter encontrado sérias violações aos
direitos trabalhistas, como não pagamento do salário e imposição de dívidas,
mas concluí pela não configuração de trabalho escravo.
Em 1992 a CPT apresentou nova denúncia, junto à Procuradoria-Geral
da República, pelos desaparecimentos e pela prática de trabalho escravo.
Em 1993 foram realizadas novas vistorias à Fazenda Brasil Verde pela
Delegacia Regional do Trabalho juntamente quatro policiais federais. O resul-
tado da vistoria constatou novamente inúmeras violações aos direitos traba-
lhistas, entre elas 92 empregados sem carteira de trabalho e que manifestaram
vontade de abandonar o local. Fora determinado o regresso desses trabalha-
dores aos seus locais de origem. O Ministério do Trabalho concluiu pela não
comprovação do trabalho escravo, mais uma vez6.
Em relação às fiscalizações de 1989, o Subprocurador Geral da Repú-
blica teceu severas críticas quanto a precária coleta de informações feita pela
4
De acordo com o relatório de admissibilidade do caso nº 69/11 apud DIAS, 2016.
5
Idem.
6
Idem.
338 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Polícia Federal. Faltavam importantes registros como nomes e declarações dos


trabalhadores, os preços abusivos do armazém da fazenda e os contratos de
trabalho não foram solicitados. Além disso, a Polícia Federal não investigou
o paradeiro dos menores desaparecidos – ou mesmo o motivo do desapare-
cimento, se forçado ou não - nem a fuga do “gato” durante uma das fiscali-
zações. Em 1996 o caso foi arquivado pela Procuradoria sob a argumentação
de que a maioria dos delitos já haviam prescrito em 1993 e não havia provas
suficientes coletadas na última fiscalização que pudessem sustentar a acusação
de prática de trabalho escravo.
No ano de 1995 o Brasil reconheceu perante as Nações Unidas o trabalho
escravo contemporâneo em seu território. O Ministério do Trabalho cria tam-
bém o grupo móvel de fiscalização e o grupo de repressão ao trabalho forçado7.
Em 1996 o referido grupo móvel de repressão ao trabalho forçado realiza
uma nova fiscalização, mas conclui novamente, apesar da continuidade dos
abusos aos direitos humanos, não haver trabalho escravo.
De acordo com Cristiana Rocha a fiscalização que ocorreu em 1997 se
motivou pelo esclarecimento prestado à PF por um dos peões fugidos da
Brasil Verde. Essa vítima relatou ainda que cerca de 50 trabalhadores foram
escondidos durante uma das fiscalizações precedidas nos anos anteriores afim
de evitar complicações para os administradores da fazenda. Durante a fiscali-
zação de 1997 foram encontrados 81 trabalhadores e emitidas 38 carteiras de
trabalho pelo grupo móvel de fiscalização. Todos manifestaram vontade de
deixar a fazenda e assim foi feito pelo grupo móvel.
Devido a essa fiscalização em 1997, o Ministério Público Federal entrou
com uma ação contra o aliciador – o “gato” –, contra o gerente e contra o
proprietário da Fazenda Brasil Verde. A DRT/PA informou ao MPT/PA que
não havia trabalho escravo na referida fazenda, alegando algumas melhorias
encontradas nos alojamentos e nos direitos trabalhistas, percebidos em uma
segunda fiscalização ainda em 1997. Nesse sentido Rocha critica “Diante dis-
so, o MTE diz ter aplicado apenas medidas de “incentivo” ao empregador.
Mas como explicar pareceres tão divergentes em intervalo tão curto de uma
fiscalização para outra? Sim, é possível que a fazenda tenha adotado normas
eficazes e intensivas de melhoria nos seus mais diferentes setores; no entanto,
pesavam contra ela um passado recente de crimes contra a liberdade de traba-
lho e contra a pessoa que parecem ter sido ignorados.”8.

7
LAZZERI, Thais. Eu fui escravo. Repórter Brasil, Piauí, 12 maio 2017. Disponível em: https://reporter-
brasil.org.br/brasilverde/reportagem.html#carousel_timeline. Acesso em: 29 jan. 2018.
8
ROCHA, Cristiana. O caso “Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil”: trajetórias de luta por
justiça de trabalhadores escravizados. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: n.11, p.357-374, 2016. Disponível em: http://wpro.rio.rj.gov.br/revistaagcrj/wp-content/
uploads/2016/12/Dossi%C3%AA_Artigo-3.pdf. Acesso em: 30 jan. 2018.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 339
Finalmente em 2000 a DRT reconheceu a presença de trabalho escravo
na fazenda Brasil Verde após uma fiscalização realizada dia 15 de março do
mesmo ano, realizada após Antonio Francisco da Silva e o menor Gonzalo
Luiz Furtado terem conseguido fugir e efetuar mais uma nova denúncia con-
tra a Brasil Verde9. Nesse ano pelo menos 82 trabalhadores foram resgatados e
o Ministério Público do Trabalho ajuizou uma ação civil pública que resultou
um termo de compromisso do empregador, João Luiz Quaglianato Neto.
Em 2002 há uma nova fiscalização que extingue a ação penal contra o
fazendeiro devido ao aparente cumprimento do compromisso firmado. Em
2008 a ação penal contra o “gato” é extinta devido à prescrição10 do crime.

4. O PAPEL DA CIDH NO CASO

Apesar da sentença condenatória datar de 2016, a denúncia pela prática


de trabalho escravo em fazendas no sul do Pará, em especial a Fazenda Brasil
Verde, foi emitida ainda em 199811 pela Civil – Centro de Justiça e do Direito
Internacional - em parceria com a CPT – Comissão Pastoral da Terra. Perante
a CorteIDH o caso só chegou em 2015, depois de o Brasil mostrar-se displi-
cente em cumprir as recomendações feitas pela Comissão12.
A condenação do Brasil foi decretada pelas violações

ao direito a não ser submetido a escravidão e tráfico de pessoas, estabelecido


no artigo 6.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação
aos artigos 1.1, 3, 5, 7, 11, 22 e 19 do mesmo instrumento; ii) o artigo 6.1
da Convenção Americana, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento,
ocorrida no marco de uma situação de discriminação estrutural histórica em
razão da posição econômica; iii) as garantias judiciais de devida diligência
e de prazo razoável, previstas no artigo 8.1 da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento e, iv) o
direito à proteção judicial, previsto no artigo 25 da Convenção Americana so-
bre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento13.

9
DIAS, Priscila. TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL: DO CASO JOSÉ PEREIRA AO CASO FA-
ZENDA BRASIL VERDE. CAPÍTULO 4 - O CASO FAZENDA BRASIL VERDE VS. BRASIL. In:
______. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica, p. 84-85, 2016. Disponível em: https://www.
maxwell.vrac.puc-rio.br/30340/30340.PDF. Acessado em 30 jan. 2018.
10
LAZZERI, Thais. Eu fui escravo. Repórter Brasil, Piauí, 12 maio 2017. Disponível em: https://reporter-
brasil.org.br/brasilverde/reportagem.html#carousel_timeline. Acesso em: 29 jan. 2018.
11
Ano em que o estado brasileiro aceitou a competência contenciosa da CorteIDH. Por esse motivo a
Corte só pode se pronunciar a respeito dos fatos ocorridos após essa aceitação ou em relação a violações
continuadas, como o possível desaparecimento forçado de Iron Canuto e Luis Ferreira Cruz.
12
Idem.
13
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Resumo oficial. Disponível em: http://
www.mdh.gov.br/assuntos/atuacao-internacional/sentencas-da-corte-interamericana/pdf/resumo-oficial
-emitido-pela-corte-interamericana-de-direitos-humanos. Acesso em: 30 jan. 2018.
340 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Devido a essas violações o estado brasileiro foi sentenciado a prestar me-


didas reparatórias, a saber, dar publicidade à sentença que considerou o Estado
culpado, reiniciar as investigações concernentes aos fatos controvertidos do
ano 2000 e proporcione a aplicação das possíveis penalidades, providenciar
medidas em tempo hábil as quais tornem imprescritível o delito de prática do
trabalho escravo tendo em vista sua natureza de jus cogens no Direito Interna-
cional e por fim, pagar os valores devidos a títulos indenizatórios para as víti-
mas - ou parentes vivos - e outras despesas a título de gastos dos denunciantes
com o trâmite internacional do processo.
Em virtude de ser a primeira vez que um caso de violação estrita ao tra-
balho escravo, a CorteIDH também estabeleceu na sentença interpretação va-
liosa acerca do posicionamento que esse tribunal quanto a situação de especial
vulnerabilidade de pessoas excluídas socioeconomicamente, citando Freund

Como bem salientou o Juiz Eduardo Ferrer, em seu voto fundamentado, foi
a primeira vez que o Tribunal expressamente determinou a responsabilidade
internacional de um Estado por tolerar a perpetuação dessa situação estrutural
histórica de exclusão14.

Entende-se da sentença do presente caso que um dos principais argumen-


tos da defesa brasileira seria de demonstrar que o Estado não teria contribuído
diretamente para que a situação de trabalho escravo configurasse

237. O Estado afirmou que não pode ser responsável por toda violação de di-
reitos humanos cometida por particulares em seu território; o contrário signi-
ficaria uma presunção de responsabilidade internacional do Estado. O Brasil
argumentou que não existe nenhuma prova de participação ou aquiescência de
agentes estatais no presente caso, tal como requer a jurisprudência da Corte15.

entretanto como bem apontado pelos juízes da Corte “316. Como fez em
outras oportunidades, a Corte reitera que não basta que os Estados se abste-
nham de violar os direitos, mas é imperativa a adoção de medidas positivas,
determináveis em função das particulares necessidades de proteção do sujeito
de direito, seja por sua condição pessoal ou pela situação específica em que se
encontre”16 o que foi de fato analisado foi a inércia do Estado em não prover
a defesa das vítimas dessa situação, não responder satisfatoriamente às denún-

14
FREUND, Rita Lamy. O primeiro caso de trabalho escravo decidido pela Corte Interamericana de Di-
reitos Humanos é brasileiro. Jornal da Escola Superior da Defensoria Pública da União. Brasília.
Distrito Federal: 8ª ed., p.6.
15
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Sentença de 20 de outubro de 2016.
Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil.
16
Idem.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 341
cias reiteradas junto à PF ou ao MTE, tampouco prestar assistência jurídica ou
financeira para os submetidos a essa condição humilhante – proporcionada
em grande parte pela situação de vulnerabilidade dessas comunidades onde os
“gatos” conseguiam ludibriar os trabalhadores devido à condição emergente
precária de desenvolvimento.
De fato, não por ter praticado uma ação, mas uma séria omissão é que o
Estado brasileiro, em sua posição de garantidor dos direitos humanos em sua
nação, fora submetido nesse caso contencioso. Como foi possível constatar pe-
las tentativas de denúncia, as fiscalizações feitas, os processos arquivados por
motivos pífios, os conflitos de competência negativa entre a Justiça Federal e a
Justiça Estadual no decurso do processo, a penalidade parca para o desrespeito
às leis trabalhistas ao qual fora sujeito o dono da propriedade – pagamento
de seis cestas básicas a uma instituição – a qual sequer contemplou as vítimas,
a Justiça brasileira se mostrou incompetente e ineficiente para prestar contas
aos seus cidadãos e ao sistema internacional de defesa dos direitos humanos
do qual faz parte.
Pereira ao escrever sobre o cumprimento das sentenças da CorteIDH traz
uma reflexão acerca de como é exercido a vinculação do Estado à sentença
procedido do seu respectivo cumprimento

Por enquanto, o alentador índice de cumprimento —caso por caso— de todas


as sentenças da Corte Interamericana até o presente se deve sobretudo à boa
fé e lealdade processual com que neste particular os Estados demandados têm
acatado as referidas sentenças, também contribuindo desse modo à consolida-
ção do sistema regional de proteção17.

4.1. O exequatur da sentença internacional

No que tange ao cumprimento da sentença internacional o site oficial


do governo relaciona um edital de chamamento emitido em 1 de novembro
de 201718 pela Ministra dos Direitos Humanos convocando 43 trabalhadores
referentes à fiscalização de 1997 e 32 trabalhadores referentes à fiscalização do
ano 2000. O objetivo do edital é de localizar essas 75 pessoas para prover a docu-
mentação necessária para o pagamento das indenizações devidas. Ainda segundo
o site oficial do governo o edital publicado contém vítimas que não são repre-
sentadas pela CPT e pelo CEJIL, as peticionárias do processo perante a Corte.
17
PEREIRA, Marcela Harumi Takahashi. Cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos
Humanos no âmbito interno. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XII, n. 67, ago 2009. Disponível em:
<http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6491>.
Acesso em 30 jan. 2018.
18
BRASIL. Diário Oficial da União. Edital nº 3/2017. Disponível em: http://www.mdh.gov.br/noti-
cias/2017/novembro/edital-fazenda-brasil-verde/. Acesso em 31 jan. 2018.
342 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Em relação à demanda de tornar imprescritível o crime de prática de traba-


lho escravo, é mencionado que tramita atualmente no Congresso Nacional um
projeto de lei que atende a esse propósito por meio de uma Emenda à Constitui-
ção19. Esse projeto de lei é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 14/2017.
O relator atual é o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), a PEC encontrava-se
em tramitação pronta para a pauta na comissão de Constituição, Justiça e Cida-
dania em 11/10/201720. Sem dúvidas essa é uma das medidas mais aguardadas,
tendo em vista que no caso em comento o Ministério Público retirou as denún-
cias contra o gerente da fazenda e o aliciador devido à prescrição do poder pu-
nitivo Estatal. Uma das notícias mais recentes do portal do Senado Notícias, de
18 de janeiro de 2018, que a PEC está em análise na referida comissão. Além da
proposta de autoria do senador Antonio Carlos Valadares (PSB-SE) da emenda
tornar imprescritível o crime de submissão de pessoas a condições análogas ao
trabalho escravo, o relator acrescentou à PEC a imprescritibilidade também do
delito de tráfico de pessoas. Atualmente a pena máxima do delito de trabalho
escravo é de 2 a 8 anos e multa, assim o crime prescreve em 12 anos e se reduz
para 6 anos em caso de acusados com 70 anos ou mais.
Já quanto às políticas públicas Flávia Piovesan, a ex-secretária especial de Di-
reitos Humanos cita o Pacto Federativo para a Erradicação do Trabalho Escravo
que reuniu 23 unidades federativas, o qual intensificou o trabalho e o compromisso
das Comissões Estaduais de Combate ao Trabalho Escravo (Coetraes), também a
chamada “lista suja” a qual vincula o nome de empregadores envolvidos com prá-
tica de trabalho escravo e serve como um apontador negativo para os investidores.
Em 24 de janeiro de 2018, a Procuradora-Geral da República Raquel
Dodge anunciou a criação de uma força-tarefa contra o trabalho escravo com-
posta por quatro procuradores que se responsabilizarão pela coleta de provas,
dados e testemunhos. Essa força-tarefa seria mais uma das ações tomadas pelo
Brasil, por execução do Ministério Público Federal, em resposta à condenação
pela Corte IDH. Ainda segundo a matéria de Marcella Fernandes a força-tarefa
ouvirá 50 vítimas em 11 estados diferentes que estavam sendo vítimas na fa-
zenda Brasil Verde. Nesse ínterim também foi afirmado que a Procuradoria da
República do Município de Redenção (PA) também, em resposta à decisão da
Corte, teria reaberto em 2017 o processo de investigação21.

19
BRASIL. Cumprindo sentença, MDH convoca vítimas do caso Fazenda Brasil Verde, no Pará, para
processo de indenização. Novembro, 2017. Disponível em: http://www.mdh.gov.br/noticias/2017/no-
vembro/cumprindo-sentenca-mdh-convoca-vitimas-do-caso-fazenda-brasil-verde-no-para-para-proces-
so-de-indenizacao. Acesso em 31 jan. 2018.
20
Disponível em: <http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/128622>. Acesso em:
31 jan. 2018.
21
FERNANDES, Marcella; “Ministério Público volta a investigar trabalho escravo na Fazenda Brasil
Verde”, Huffpost Brasil, 2018. Disponível em <http://www.huffpostbrasil.com/2018/01/25/ministe-
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 343
Em contrapartida 2016 também houve uma ameaça visível ao combate
ao trabalho escravo. O então Ministro do Trabalho editou uma importante
portaria que alterou as definições de trabalho escravo, tornando a legislação
mais conivente com práticas abusivas ao trabalhador. Sobre isso escreveu Fer-
nandes “Em ação de improbidade administrativa contra Nogueira, o Ministé-
rio Público Federal no Distrito Federal (MPF/DF) afirma que a finalidade da
portaria foi atender os interesses da bancada ruralista do Congresso Nacional,
de forma a influenciá-los na votação da denúncia contra o presidente Michel
Temer e os ministros Moreira Franco (Secretaria-Geral da Presidência) e Eliseu
Padilha(Casa Civil) 22.” Felizmente, a portaria está suspensa.
Nesse ínterim também temos alarmantes notícias recentes, como a de
mais de 50 deputados que teriam recebido financiamento de campanha de
empresas suspeitas de empregarem trabalho escravo. A notícia é de Piero Loca-
telli23 e data de 30 de janeiro de 2018. Segundo a matéria o partido que mais
recebera contribuição é o MDB, com 20% da bancada representada por 13
membros. O segundo partido seria o PT com 11 deputados, 16% da bancada
na Câmara. Notícias como essa nos fazem pensar na antiga política clientelista
da troca de favores. No total teriam sido repassados R$ 3,5 milhões para os
deputados. A maior preocupação consta no fato de que 21 dos 51 deputados
são da chamada “bancada ruralista”, uma porção da Câmara que defende
incondicionalmente os grandes proprietários de terra. Tais proprietários são
o principal grupo de empregadores de trabalho análogo a escravista e à servi-
dão por dívida, semelhante ao grupo dos irmãos Quagliato responsáveis pela
Fazenda Brasil Verde e muitas outras denunciadas na década de 90 no sul do
Pará. Por isso é com receio que é recebida essa notícia da proveniência dos
fundos de campanha desses deputados.

CONCLUSÃO

O caso Fazenda Brasil Verde mostrou à comunidade internacional uma


triste realidade brasileira que se perpetua culturalmente: a prática de exploração
da mão-de-obra humana em total desrespeito à dignidade e integridade em virtu-
de de interesses econômicos. Uma mácula carregada desde o nascimento de nos-
sa nação. De fato, não se pode precisar o número de trabalhadores submetidos

rio-publico-volta-a-investigar-trabalho-escravo-na-fazenda-brasil-verde_a_23343633/>. Acesso em
30/01/2018.
22
Idem.
Idem
23
LOCATELLI, Piero. Empresas flagradas com trabalho escravo financiaram 10% dos deputados
federais. Disponível em: http://reporterbrasil.org.br/2018/01/empresas-flagradas-com-trabalho-escra-
vo-financiaram-10-dos-deputados-federais/. Acesso em: 31 jan. 2018.
344 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

atualmente a essas condições, porém pelo menos 7.763 vítimas são reconhecidas
pela Procuradoria-Geral da República, isso apenas no período de 1993 a 200424.
Isto sem consideração às “cifras-negras” e o longo percurso de 14 anos desde
2004 até o presente momento.
Casos que envolvem violações e práticas tão sérias como a de trabalho es-
cravo certamente não deveriam permanecer em trâmite décadas tal qual ocor-
reu com o caso Fazenda Brasil Verde, pois a carga negativa que isso acarreta
para as vítimas e para a economia nacional é um retrocesso imenso na pasta
de Direitos Humanos e no desenvolvimento brasileiro. Uma condenação na
CorteIDH por mais que não tenha poder vinculador absoluto ainda é um
atestado de culpabilidade e ineficiência governamental, visto que um caso para
chegar a Corte antes deve passar pela Comissão e o Estado recebe prazos para
responder satisfatoriamente as recomendações da mesma. No caso, o Brasil
teve cerca de 15 anos para prestar contas com a Comissão Interamericana.
De fato, a sentença condenatória está mostrando paulatinamente resulta-
dos que dificilmente seriam colhidos sem ela, como por exemplo a retomada
das investigações e as indenizações às vítimas.
Em relação às políticas públicas, esse é o grande desafio para o país:
uma mudança de pensamento, propriamente cultural. Uma questão de ensina-
mento de valores, valorização dos Direitos Humanos, atenção a comunidades
vulneráveis e conscientização nacional acerca dos limites que devem ser respei-
tados nas relações trabalhistas.
Além do que é necessário maior comprometimento das instituições es-
tatais como a Polícia Federal e o Ministério do Trabalho para que situações
similares não cheguem a ser fiscalizadas novamente sem todas as diligências
necessárias resultando na falta de coleta de provas suficientes, atrasando as
investigações e empatando a identificação do(s) culpado(s). Nas palavras de
Conforti

Paradigmática, a sentença do caso Fazenda Brasil Verde tende a repercutir


forte e positivamente no combate institucional à escravidão contemporânea,
no Brasil e em toda a América, notadamente pela clara sistematização dos ele-
mentos caracterizadores da neoescravidão. Tais subsídios servirão para a atua-
lização da interpretação judicial nos tribunais dos diversos países que integram
a Organização dos Estados Americanos; e contribuirão, no imo da cultura
jurídica desses países, para que tais violações deixem de ser consideradas meras
infrações trabalhistas25.

24

25
FELICIANO, Guilherme Guimarães; CONFORTI, Luciana Paula. O caso dos escravizados na Fazenda
Brasil Verde, IN. Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, 2017, disponível em
<https://www.anamatra.org.br/artigos/25860-o-caso-dos-escravizados-na-fazenda-brasil-verde>. Aces-
so em 30 jan. 2018.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 345
Será que o Brasil, mesmo com tantos esforços não estaria mais compro-
metido devido a um problema generalizado no sistema e não somente nas po-
líticas públicas adotadas? A notícia exposta acerca dos fundos de campanha de
empresas empregadoras de trabalho escravo é apenas um exemplo de inúmeras
trocas de favores que sustentam a política nacional. Isso evidencia que direitos
indisponíveis podem estar sendo leiloados por grandes grupos corporativos
que financiam eleições e acordos de outra monta.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Ministério dos Direitos Humanos. Cumprindo sentença, MDH convoca vítimas do caso Fazen-
da Brasil Verde, no Pará, para processo de indenização. 2017. Disponível em http://www.mdh.gov.br/no-
ticias/2017/novembro/cumprindo-sentenca-mdh-convoca-vitimas-do-caso-fazenda-brasil-verde-no-para-para-pro-
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gov.br/assuntos/atuacao-internacional/sentencas-da-corte-interamericana/pdf/resumo-oficial-emitido-pela-corte-
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DIAS, Priscila Vazquez. TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL: DO CASO JOSÉ PEREIRA AO CASO FA-
ZENDA BRASIL VERDE, 2016, 117f., Dissertação (Bacharelado em Direito) - Universidade Católica do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. Disponível em https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/30340/30340.PDF. Acesso
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FELICIANO, Guilherme Guimarães; CONFORTI, Luciana Paula. O caso dos escravizados na Fazenda Brasil
Verde, IN. Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, 2017, disponível em <https://www.
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-investigar-trabalho-escravo-na-fazenda-brasil-verde_a_23343633/>. Acesso em 30 jan. 2018.
FRANCO, Thalita Leme. EFETIVIDADE DAS DECISÕES PROFERIDAS PELA CORTE INTERAME-
RICANA DE DIREITOS HUMANOS: IDENTIFICAÇÃO DOS MARCOS TEÓRICOS E ANÁLISE DA
CONDUTA DO ESTADO BRASILEIRO, 149f., Dissertação (Mestrado em em Ciências – Programa de Pós-
-Graduação em Relações em Internacionais), Universidade de São Paulo, 2014. Disponível em http://www.iri.
usp.br/documentos/defesa_20140924_Thalita_Leme_Franco_ME.pdf. Acesso em 30 jan. 2018.
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LAZZERI , Thaís; “O passado e o presente de trabalhadores resgatados há 17 anos, em caso que gerou con-
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LOCATELLI, Piero. Empresas flagradas com trabalho escravo financiaram 10% dos deputados federais.
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SENADO, Agência. PEC que torna trabalho escravo imprescritível será analisada na CCJ, 2018. Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/01/05/pec-que-torna-trabalho-escravo-imprescritivel-sera-
-analisada-na-ccj. Acesso em: 31 jan. 2018.
346 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)
PEREIRA, Marcela Harumi Takahashi. Cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Huma-
nos no âmbito interno. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XII, n. 67, ago 2009. Disponível em: <http://www.am-
bito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6491>. Acesso em 30 jan. 2018.
PIOVESAN, Flávia, “Direitos humanos: um balanço”, Jornal O Globo, 2017. Disponível em: <http://noblat.
oglobo.globo.com/geral/noticia/2017/11/direitos-humanos-um-balanco.html>. Acesso em 30 jan. 2018.
Capítulo 22
Transtorno do Espectro Autista e
Defensoria Pública: Análise da Experiência
no Ceará à Luz de Diretrizes Globais

Mariana Urano de Carvalho Caldas


Sara Dias Pinheiro
Theresa Rachel Couto Correia

1. INTRODUÇÃO

A identificação das síndromes englobadas pelo transtorno do espectro


autista (TEA) cresceu vertiginosamente no Brasil e no mundo. Sem se olvidar
a diversidade com que os sintomas apresentam-se nos indivíduos, percebe-se
que, na maioria dos casos, o TEA exige das suas famílias e do Estado cuidados
constantes, sobretudo em razão de sua prevalência na infância. A situação se
torna ainda mais delicada quando se trata de menores carentes, exprimindo
estes, com raríssimas exceções, evidente desvantagem em relação aos demais.
Nesse diapasão, o Estado Democrático de Direito brasileiro buscou, no
âmbito formal, oferecer à sociedade leis que atendessem aos anseios das pes-
soas com TEA, em consonância com disposições internacionais, notadamente
as formuladas pelo Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos. Em
obediência à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com De-
ficiência, de 2007, e às recomendações da Organização Mundial da Saúde
(OMS), o Poder Legislativo trouxe à baila metas propostas pela Organização
das Nações Unidas (ONU), indicando-se políticas em prol do referido público.
Contudo, como o processo de inclusão não se dá de forma automática,
a falta de implementação dessas políticas públicas por parte do Executivo
tornou grande parte da legislação pátria inaplicável, principalmente no que
concerne à proteção dos indivíduos mais necessitados. O princípio da igual-
dade material, tantas vezes posto em destaque pela doutrina hodierna, vê-se
cotidianamente privado de meios de efetivação, em clara afronta ao disposto
na Lei Berenice Piana (Lei nº 12.764/2012) e no Estatuto da Pessoa com Defi-
ciência (Lei nº 13.146/2015).
Nesse ínterim, a Defensoria Pública, função essencial à justiça voltada
à prestação de assistência jurídica integral e gratuita aos hipossuficientes,
348 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

ganhou um relevo sem precedentes. Em respeito aos objetivos da República


Federativa do Brasil, a instituição tem apresentado, não obstante a precarie-
dade de recursos, expressivos resultados aos assistidos com TEA. Por meio
da propositura de ações judiciais, como as relativas à concessão do benefício
de prestação continuada (BPC), e da materialização amigável de políticas pú-
blicas atinentes à saúde, à educação, ao transporte, dentre outras, ela confere
concretude a vários direitos amplamente reconhecidos pela Constituição
Federal de 1988 e rotineiramente negados às pessoas com deficiência.
Esta pesquisa, de viés exploratório, qualitativo e indutivo, inicia-se
com a análise do amparo jurídico oferecido aos indivíduos acometidos
pelo transtorno em questão, com ênfase à evolução conceitual e à impor-
tância da adoção de uma postura dialógica por parte dos Três Poderes e
das demais instituições. Empós, acrescentando-se ao estudo doutrinário e
documental informações obtidas em entrevistas semiestruturadas, investi-
ga-se o modo com que a Defensoria Pública tem promovido e efetivado
os direitos humanos dos cearenses com TEA, tanto no âmbito estadual
quanto no federal.
O estudo empírico restou empreendido em virtude da atenção dispen-
sada por Carolina Botelho Moreira de Deus, Liduína Gisele Timbó Aragão,
Rodrigo Schuler Honório e Weimar Salazar Montoril, nitidamente sensíveis
ao objeto deste trabalho. Os dados coletados na pesquisa de campo, somados
aos demais, permitiram a devida identificação das barreiras sociais, culturais
e econômicas impostas aos cidadãos que sofrem os reflexos das mencionadas
síndromes, apontando-se de que maneira o seu enfrentamento contribui para
a almejada equiparação de oportunidades.

2. O TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA: DIRETRIZES


GLOBAIS E NACIONAIS

O transtorno do espectro autista, que acomete cerca de 70 milhões de pes-


soas no mundo, apresenta-se entre os transtornos globais de desenvolvimento
(TGD)1. Estes figuram na Classificação Estatística Internacional de Doenças e
de Problemas Relacionados à Saúde sob o número F84. Atualmente, na condi-
ção de termo genérico, o TEA compreende quadros como o autismo infantil,
o autismo atípico e a Síndrome de Asperger.
A OMS2 informa que o transtorno abrange síndromes com gradações
concernentes a dois grupos de sintomas: alterações no comportamento social,
1
OMS. Transtornos del espectro autista. Central de imprensa da OMS, abr. 2017. Disponível em:
<http://www.who.int/mediacentre/factsheets/autism-spectrum-disorders/es/>. Acesso em: 2 out. 2017.
2
Ibid.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 349
na comunicação e na linguagem; e apresentação de um repertório de interesses
e atividades restrito, estereotipado e repetitivo. Frise-se que, não obstante a
gravidade com que ele se manifesta em alguns casos, os indivíduos acometidos
por TEA não são necessariamente incapazes de manter uma vida digna inde-
pendente, havendo, hodiernamente, claros avanços quanto à sua conceituação
e ao seu tratamento.
No Brasil, o entendimento do transtorno em estudo como deficiência
surgiu com o fito de promover a criação de políticas públicas voltadas a esses
cidadãos e de sensibilizar a sociedade para o processo de inclusão3. Tal postura
alicerça-se no previsto na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pes-
soas com Deficiência, de 2007, notadamente no seu art. 1º. Esse dispositivo,
considerado formalmente constitucional, indica o conceito moderno de pes-
soas com deficiência, in verbis:

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de
natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com di-
versas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade
em igualdade de condições com as demais pessoas.

A República Federativa do Brasil, em consonância com as aspirações


da ONU, tem se mostrado, especialmente após o advento do Decreto nº
6.949/2009, ciente da importância da superação dos obstáculos que dificultam
o gozo de uma vida digna por parte dos indivíduos com deficiência. Mere-
cedoras dos mesmos direitos prometidos aos demais membros da sociedade,
as pessoas com TEA podem contar ainda com proteção legal específica, com
vistas à minimização ou à eliminação das lacunas existentes entre as suas con-
dições e as dos outros sujeitos4.
Referidas ações legislativas foram inauguradas pelo paradigma do Estado
Democrático de Direito, em conformidade com os “sentimentos do Direito
e do justo na sociedade”5. A Constituição Federal de 1988 surgiu em meio à
constatação de que a aplicabilidade dos direitos humanos exige um aparato de
garantias e medidas concretas6, o que vindica uma atuação comprometida por
parte do poder público. Cotidianamente, as pessoas com TEA sofrem com a

3
DIAS, Eduardo Rocha; LEITÃO, André Studart; SILVA Alexandre Antonio Bruno da. O Caminho da
Inclusão de Pessoas com Deficiência no Mercado de Trabalho: onde estamos? Revista Opinião Jurídi-
ca, Fortaleza, ano 14, n. 18, jan./jul. 2016, p. 17.
4
Ibid., p. 16.
5
VERDÚ, Pablo Lucas. O Sentimento Constitucional: aproximação ao estudo do sentir constitucional
como modo de integração política. Tradução de Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2004,
p. 178.
6
BUCCI, Maria Paula Dallari. O conceito de política pública em direito. In: BUCCI, Maria Paula Dallari
(Org.). Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 4.
350 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

precariedade de acesso às prestações a que fazem jus7, restando imperioso que


o País colabore para a atenuação dessa problemática mundial.
Sobre a importância do alcance dos serviços de apoio, mencione-se a Re-
solução nº 67/82 da Assembleia Geral da ONU, intitulada “Atenção às necessi-
dades socioeconômicas das pessoas, das famílias e das sociedades afetadas pelo
transtorno do espectro autista e outros transtornos do desenvolvimento”8. No
documento, salienta-se a imprescindibilidade da promoção da igualdade de
oportunidades9, há muitos anos almejada por Canotilho10.
A Convenção de 2007, assim como seu Protocolo Facultativo, adota,
como fator limitante, o meio em que o indivíduo está inserido, e não a de-
ficiência em si11. Isso posto, para a equiparação de oportunidades, o Estado
Democrático de Direito precisa eleger políticas públicas estruturantes12. Em
relação às pessoas com TEA, deve-se atentar para as diretrizes da sua política
nacional de proteção, dispostas na Lei Berenice Piana, regulamentada pelo
Decreto nº 8.368/2014.
A Lei Berenice Piana, em seu art. 1º, § 2º, possibilitou o expresso reconhe-
cimento do indivíduo com TEA como pessoa com deficiência, para todos os
efeitos legais. Além disso, ela enfatiza a relevância da intersetorialidade tanto
no desenvolvimento das políticas públicas quanto no atendimento, o que im-
plica na oferta de atenção especializada a todos os envolvidos no tratamento13.
Como aduz Barcellos14, o mínimo existencial pressupõe a prestação de serviços
voltados à saúde, à educação, à assistência aos desamparados e ao acesso à jus-
tiça, justificando-se a exigência da integração de tais serviços.
Ensinam Figueiredo e Sarlet15 que “o caminho do desenvolvimento
humano passa pela construção de instrumentos de tutela e de implementa-
ção de todos os direitos fundamentais, com especial ênfase para os direitos

7
OMS. Transtornos del espectro autista. Central de imprensa da OMS, abr. 2017. Disponível em:
<http://www.who.int/mediacentre/factsheets/autism-spectrum-disorders/es/>. Acesso em: 2 out. 2017.
8
ONU. Resolução nº 67/82. Assembleia Geral das Nações Unidas, 19 mar. 2013. Disponível em:
<http://www.un.org/es/comun/docs/?symbol=A/RES/67/82>. Acesso em: 20 out. 2016.
9
Ibid.
10
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 7. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2003,
p. 501.
11
DIAS, Eduardo Rocha; LEITÃO, André Studart; SILVA Alexandre Antonio Bruno da, op. cit., p. 18.
12
Ibid., p. 18.
13
OMS. Medidas integrales y coordinadas para gestionar los transtornos del espectro autista. 67ª Assem-
bleia Mundial da Saúde, 21 mar. 2014. Acesso em: <http://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/WHA67/
A67_17-sp.pdf>. Acesso em: 17 out. 2016.
14
BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: o Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 247.
15
FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner; SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à proteção e pro-
moção da saúde no Brasil: principais aspectos e problemas. In: RÉ, Aluisio Iunes Monti Ruggeri (Org.).
Temas aprofundados da Defensoria Pública. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 146.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 351
sociais”. Estes, albergados pelo princípio da igualdade , encontram na Lei 16

nº 12.764/2012 o apoio de que necessitam, posto que ela exige do Estado


uma postura que vai além da mera faculdade de implementar ou não ações
em prol das pessoas com TEA.
No art. 2º, III, o diploma em comento ressalta a importância do diagnós-
tico precoce, em harmonia com o atual posicionamento da ONU, que tem se
mostrado profundamente preocupada com a elevada incidência do transtorno
do espectro autista em crianças “e com os consequentes problemas de desen-
volvimento que afetam programas de longo prazo de saúde, educação, capaci-
tação e intervenção”17 (tradução nossa). Schwartzman18 comenta, inclusive, a
respeito de uma suposta epidemia de TEA, já que uma em cada 160 crianças
apresenta alguma das síndromes englobadas por ele19.
Finalmente, em 2015, foi instituído o Estatuto da Pessoa com Deficiên-
cia, que prioriza a inclusão social e desvincula os conceitos de deficiência e de
incapacidade20. Em seu art. 8º, a lei elenca, de forma exemplificativa, vários
dos direitos fundamentais expostos, de maneira esparsa, na Carta Constitucio-
nal. Frise-se que o art. 40, assim como o art. 3º, IV, “d”, da Lei Berenice Piana,
permite a concessão do benefício de prestação continuada (BPC), correspon-
dente a um salário-mínimo, em favor da pessoa com TEA que não possua
meios para prover sua subsistência nem tê-la suprida pela própria família, nos
moldes da Lei Orgânica da Assistência Social (Lei nº 8.742/1993).
Da leitura do art. 203, V, da CRFB/1988, pode-se inferir que a assistência
social é voltada a garantir o atendimento das necessidades básicas dos cida-
dãos mais carentes, que, sem ela, restariam desassistidos21. E o BPC contribui
diretamente para a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana22,
pois, ao assegurar uma renda mínima aos indivíduos em situação de risco, ele
se revela um dos principais mecanismos de melhoria da sua qualidade de vida.

16
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 564.
17
ONU. Resolução nº 62/139. Assembleia Geral das Nações Unidas, 21 jan. 2008. Disponível em:
<http://www.un.org/es/comun/docs/?symbol=A/RES/62/139>. Acesso em: 20 out. 2016.
18
SCHWARTZMAN, José Salomão. Autismo e outros transtornos do espectro autista. Revista Autis-
mo, 15 set. 2010. Disponível em: <http://www.revistaautismo.com.br/index.php?view=article&cati-
d=35%3A00&id=70%3Aautismo-e-outros-transtornos-do-espectro-autista-jose-salomao-schwartzman
&tmpl=component&print=1&layout=default&page=&option=com_content&Itemid=53 >. Acesso em:
10 out. 2016.
19
OMS. Transtornos del espectro autista. Central de imprensa da OMS, abr. 2017. Disponível em:
<http://www.who.int/mediacentre/factsheets/autism-spectrum-disorders/es/>. Acesso em: 2 out. 2017.
20
IBDFAM. Estatuto da Pessoa com Deficiência entra em vigor em janeiro e garante mais direitos.
2016. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/noticias/5870/estatuto>. Acesso em: 25 out. 2016.
21
IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 20. ed. Rio de Janeiro: Impetus,
2015, p. 13.
22
AMADO, Frederico. Direito Previdenciário. 5. ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 42.
352 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Sem embargo dos avanços exibidos pelo Brasil na seara legislativa nos
últimos anos, as pessoas com deficiência, mais especificamente as acometidas
por TEA, “continuam a compor percentuais elevados nas estatísticas de ex-
clusão social”23. Como afirma Barroso24, instrumentos legais para a efetivação
da isonomia desses indivíduos já existem, mas falta a adoção de uma postura
mais dialógica por parte dos Três Poderes e das demais instituições para o
cumprimento desse objetivo.
Com o redescobrimento da cidadania, ocasionado pela ampliação do
conceito de acesso à justiça25, pacificou-se o entendimento de que os Poderes
da República não são suficientes para a plena concretização dos clamores
da população. Para Sadek26, percebeu-se, enfim, que a possibilidade de trans-
formação dos mandamentos igualitários em realidade acha na Defensoria
Pública o seu motor mais importante. Ao encontro dessas ilações, observe-se
o art. 79, § 3º, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que confere ao órgão
estatal o dever de tomar as medidas necessárias para a garantia dos direitos
nele referidos.
Para comprovar a imprescindibilidade da Defensoria Pública para a ma-
terialização das normas atinentes às pessoas com transtorno do espectro autis-
ta, essencial se mostra a transcrição do caput do atual art. 134 da CRFB/1988:

Art. 134 A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função


jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do
regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção
dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial-
mente, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos
necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.

A redação desse dispositivo foi ampliada pela Emenda Constitucional nº


80/2014, fazendo-se menção expressa aos direitos humanos, que, durante mui-
to tempo, restaram inacessíveis ao indivíduo com deficiência. No Brasil, este
já pertenceu ao sentido amplo de miserável, sendo considerado “o mais pobre
dos pobres”27. Hoje, a hipossuficiência compreende as searas econômica, jurí-
dica e organizacional28, competindo à Defensoria Pública o enfrentamento das

23
DIAS, Eduardo Rocha; LEITÃO, André Studart; SILVA Alexandre Antonio Bruno da, op. cit., p. 18.
24
BARROSO, Mônica. Na Trincheira da Defensoria Pública. Fortaleza: INESP, 2002, p. 90.
25
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do
direito constitucional no Brasil). Revista Direito Administrativo, Rio de Janeiro, abr./jun. 2005, p. 36.
26
SADEK, Maria Tereza Aina. Defensoria Pública: a conquista da cidadania. In: RÉ, Aluisio Iunes Monti
Ruggeri (Org.). Temas aprofundados da Defensoria Pública. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 20.
27
SILVA, Otto Marques da. A Epopeia Ignorada: A Pessoa Deficiente na História do Mundo de Ontem
e de Hoje. São Paulo: Cedas, 1987, p. 198.
28
LIMA, Frederico Rodrigues Viana de. Defensoria Pública. Salvador: Juspodivm, 2010, p. 80.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 353
desigualdades cumulativas e dos reflexos do dissenso estrutural ocasionado
29

com a formação da sociedade moderna30.


A precariedade de renda encarada pela maioria dos cidadãos assistidos
pela instituição leva a déficits em qualidade de vida, o que repercute na edu-
cação, na saúde, na habitação, no transporte, na alimentação, dentre outros
aspectos31. Por outro lado, ao prestar assistência jurídica integral e gratuita aos
necessitados, a Defensoria Pública, titular de funções clássicas, extrajudiciais e
supraindividuais32, tem garantido resultados bastante satisfatórios às pessoas
com TEA, como será explanado a seguir.

3. A EXPERIÊNCIA DA DEFENSORIA PÚBLICA NO CEARÁ

Após a análise de disposições internacionais e pátrias concernentes à pro-


teção das pessoas com transtorno do espectro autista e de breves ilações a res-
peito da Defensoria Pública, pode-se partir para a efetiva apreciação dos meios
que esta utiliza para substanciar os anseios desses cidadãos. Em complemento
à doutrina e à legislação, apresenta-se, no presente tópico, um estudo empíri-
co, desenvolvido no Ceará, em constante referência a entrevistas dirigidas a
membros da Defensoria Pública da União e da Defensoria Pública Estadual.
Primeiramente, tratando-se do desempenho da Defensoria Pública da
União, deve-se frisar que grande parte das demandas que são apresentadas
à instituição pelos indivíduos com TEA se refere ao benefício de prestação
continuada. Diante da negativa do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS)
pela via administrativa, muitos hipossuficientes solicitam o auxílio da função
essencial à justiça almejando a propositura de ação judicial perante os Juizados
Especiais Federais.
O sistema securitário social é regido por normas que estabelecem uma
rede de proteção contra contingências sociais, que, uma vez desatendidas, irão
repercutir sobre toda a sociedade33. Ele compreende dois subsistemas: o contri-
butivo, integrado pela previdência social; e o não contributivo, formado pela
saúde e pela assistência social34. O direito ao recebimento do BCP por parte
das pessoas com deficiência surge diante da observância dos critérios expostos

29
SADEK, Maria Tereza Aina, op. cit., p. 26.
30
NEVES, Marcelo. A força simbólica dos direitos humanos. Revista Eletrônica de Direito do Estado –
REDE, Salvador, n. 4, out./nov. 2005, p. 9.
31
SADEK, Maria Tereza Aina, op. cit., p. 26.
32
BESSA, Leandro Sousa. O sistema prisional brasileiro e os direitos fundamentais da mulher en-
carcerada: propostas de coexistência. 2007. 213 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional)
– Universidade de Fortaleza, Fortaleza, 2005, p. 189.
33
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da Seguridade Social. 36. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 59.
34
AMADO, Frederico, op. cit., p. 21.
354 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

na LOAS, como a existência de renda mensal per capita inferior a 1/4 (um
quarto) do salário-mínimo, nos moldes do art. 20, §§ 2º e 3º.
Em 2015, com a inclusão do § 11 ao art. 20 do diploma acima citado,
o aludido critério foi explicitamente relativizado, permitindo-se a compro-
vação da miserabilidade do requerente por outros meios. O Poder Judi-
ciário, todavia, continua impondo obstáculos infundados à concessão do
benefício. Os juízes, não raras vezes, alegam que a família da pessoa com
TEA não exibe gastos extraordinários ou, de maneira oposta, gera despesas
que vão muito além da renda declarada, sugerindo a existência de outras
fontes de custeio35.
Percebe-se que o principal entrave é a comprovação da baixa renda, e
não da deficiência36. Assim, não basta se provar o que é gasto, devendo-se
apontar também as necessidades não supridas37. Por oportuno, ressalte-se
que a justiça social exige a distribuição da riqueza nacional38, o que implica
na dissolução de barreiras indevidamente impostas pelas esferas do poder
público.
Consoante a redação do art. 20, § 6º, da LOAS, a concessão do benefício
assistencial depende ainda da análise da deficiência e do grau de impedimento
que dela decorre. Às avaliações, realizadas por médicos peritos e assistentes
sociais, os magistrados devem conferir um peso bastante relevante no processo
de tomada de decisão. Honório39, que já efetuou perícias médicas em 29 reque-
rentes com TEA na Defensoria Pública da União, aduz que sempre procura
prever os reflexos das síndromes no futuro dos indivíduos, notadamente no
que concerne ao mercado de trabalho e à vida social.
Esses 29 casos datam de 2010 a 2016, percebendo-se um aumento con-
siderável na demanda das pessoas com TEA por assistência jurídica integral
e gratuita entre 2014 e 201540. Dentre os assistidos envolvidos, encontra-se
apenas um maior de idade, e os homens constituem a maioria, em conformi-
dade com os dados fornecidos pela OMS41 e com estatísticas apontadas em
pesquisas recentes42.
A procura das crianças e dos adolescentes pela Defensoria Pública pode
ter se multiplicado em razão da melhoria da atenção básica em saúde e do
35
DEUS, Carolina Botelho Moreira de. Entrevista. Fortaleza, Defensoria Pública da União, 28 out. 2016.
36
Ibid.
37
Ibid.
38
IBRAHIM, Fábio Zambitte, op. cit., p. 6.
39
HONÓRIO, Rodrigo Schuler. Entrevista. Fortaleza, Defensoria Pública da União, 9 nov. 2016.
40
Ibid.
41
ONU. Resolução nº 62/139. Assembleia Geral das Nações Unidas, 21 jan. 2008. Disponível em:
<http://www.un.org/es/comun/docs/?symbol=A/RES/62/139>. Acesso em: 20 out. 2016.
42
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. DSM-5: manual diagnóstico e estatístico de transtornos
mentais. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014, p. 57.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 355
crescimento do número de diagnósticos precoces . Para Aragão , assistente
43 44

social da instituição em comento, isso ocorreu em virtude da abrangência


que o TEA exibe na atualidade e do aumento da divulgação sobre o assunto,
resultado de “grandes esforços envidados por pais, educadores, profissionais
da área da saúde e organizações de defesa”45.
Tratando a respeito do desempenho do Serviço Social, Aragão46 explica
que é feito um retrato das condições de vida das pessoas acometidas pelas
síndromes, analisando-se, posteriormente, a questão dos direitos violados. Ao
final, prepara-se um parecer, em resposta à pergunta central encaminhada pelo
defensor público47. Dessarte, aufere-se o valor do atendimento interdisciplinar
realizado na Defensoria Pública da União48, que segue fielmente as já anali-
sadas recomendações do Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos.
Ao investigar o grau de independência das crianças com TEA na prá-
tica de atividades do cotidiano, a assistente social entrevistada49 constatou
que, em vários casos, ele é bastante reduzido. E isso implica em limitações
na vida das suas genitoras, que, frequentemente, sofrem ainda com o aban-
dono dos seus companheiros50. “Não há como se terceirizar os cuidados”51,
mostrando-se essencial o fortalecimento tanto das pessoas com transtorno
quanto dos seus cuidadores52.
Diante dessa realidade, a Defensoria Pública da União tem oferecido, no
Ceará, acompanhamento psicológico às mães das crianças carentes com TEA,
assim como aos próprios integrantes da instituição53. Com efeito, o enfren-
tamento diário dos reclames desses assistidos causa um expressivo desgaste
emocional, cujo impacto na busca pelo pleno desenvolvimento humano rema-
nesceu, por muitos anos, desprezado pelos entes públicos. Ademais, o órgão
estatal vem direcionando essas famílias para práticas futuras, impedindo-se
que questões como incapacidade civil acarretem perda de direitos54.

43
DEUS, Carolina Botelho Moreira de. Entrevista. Fortaleza, Defensoria Pública da União, 28 out. 2016.
44
ARAGÃO, Gisele Timbó. Entrevista. Fortaleza, Defensoria Pública da União, 28 out. 2016.
45
NOTBOHM, Ellen. Dez Coisas que Toda Criança com Autismo Gostaria que Você Soubesse. Tra-
dução de Mirtes Pinheiro. Florianópolis: Inspirados pelo Autismo, 2014, p. 40.
46
ARAGÃO, Gisele Timbó. Entrevista. Fortaleza, Defensoria Pública da União, 28 out. 2016.
47
Ibid.
48
ROCHA, Amélia Soares da. Defensoria Pública: fundamentos, organização e funcionamento. São Pau-
lo: Atlas, 2013, p. 183.
49
ARAGÃO, Gisele Timbó. Entrevista. Fortaleza, Defensoria Pública da União, 28 out. 2016.
50
DEUS, Carolina Botelho Moreira de. Entrevista. Fortaleza, Defensoria Pública da União, 28 out. 2016.
51
Ibid.
52
OMS. Medidas integrales y coordinadas para gestionar los transtornos del espectro autista. 67ª Assem-
bleia Mundial da Saúde, 21 mar. 2014. Acesso em: <http://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/WHA67/
A67_17-sp.pdf>. Acesso em: 17 out. 2016.
53
DEUS, Carolina Botelho Moreira de. Entrevista. Fortaleza, Defensoria Pública da União, 28 out. 2016.
54
Ibid.
356 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Quanto à concretização do direito à saúde, cite-se a elogiável interação


existente entre as esferas federal e estadual da Defensoria Pública. Sempre que
há a possibilidade de inclusão do Sistema Único de Saúde (SUS) no polo pas-
sivo da lide, a Defensoria Pública da União pode atuar55. Contudo a Justiça
Federal tem se mostrado mais rígida, notadamente em relação à disponibiliza-
ção de leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI)56.
A Defensoria Pública do Estado do Ceará, por meio do Núcleo de Defesa
da Saúde (Nudesa), revela uma maior flexibilidade no tocante à negociação
dos interesses sociais com os Três Poderes, podendo ainda pleitear em favor
dos detentores de planos privados57. É nítido o descaso sofrido por inúmeros
indivíduos no que se refere à questão da saúde, havendo filas imensas, esperas
incessantes e esperanças mínimas de melhoria58. Por conseguinte, o auxílio da
Defensoria Pública, de forma judicial e extrajudicial, tem sido encarado por
muitas famílias de pessoas com TEA como vital.
Em obediência ao exposto no Decreto nº 8.368/2014, o tratamento cos-
tuma ser desempenhado, quando há vagas, pelos Centros de Atenção Psicos-
social (CAPS), pertencentes ao SUS. Essas instituições recebem diversos tipos
de pacientes, como os usuários de substâncias psicoativas, desrespeitando-se as
peculiaridades das pessoas com TEA. Embora essa falha exista, a Defensoria
Pública do Estado do Ceará, ciente de que os tratamentos psicossociais podem
reduzir as dificuldades de comportamento de maneira bastante expressiva59,
realiza reunião mensal com representantes dos CAPS, promovendo-se, por
meio do matriciamento, a integração de seus membros com a rede de saúde
mental da Prefeitura Municipal de Fortaleza60.
Nos dizeres de Rocha61, o amparo oferecido aos pobres por parte dos
integrantes das esferas do poder, muitas vezes, é meramente formal, sendo a
perpetuação das desigualdades sociais até conveniente a algumas delas. Mon-
toril62, defensor público estadual atuante no Núcleo de Direitos Humanos
e Ações Coletivas (NDHAC), opera de encontro a essas disparidades, desen-
volvendo, desde o início de 2016, políticas públicas voltadas à mudança da

55
Ibid.
56
Ibid.
57
Ibid.
58
SANTIN, Janaína Rigo; SANTOS, Katiane Scharlesi Gehlen dos. Precariedade na saúde pública mu-
nicipal: aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor e o respeito aos direitos fundamentais.
Revista Nomos, Fortaleza, v. 33.2, jul./dez. 2013, p. 134.
59
OMS. Transtornos del espectro autista. Central de imprensa da OMS, abr. 2017. Disponível em:
<http://www.who.int/mediacentre/factsheets/autism-spectrum-disorders/es/>. Acesso em: 2 out. 2017.
60
FEITOZA, Silvana Matos. Ação Diálogos da Defensoria com a Saúde Mental. Fortaleza, Defensoria
Pública do Estado do Ceará, 10 out. 2016.
61
ROCHA, Amélia Soares da, op. cit., p. 97.
62
MONTORIL, Weimar Salazar. Entrevista. Fortaleza, Defensoria Pública do Estado do Ceará, 21 out. 2016.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 357
qualidade de vida das pessoas com deficiência, o que engloba os indivíduos
com TEA.
Em consideração às reivindicações relativas ao transporte, o NDHAC
tem lutado pela efetivação dos seguintes direitos: veículo público escolar para
os menores de idade; passe livre aos comprovadamente carentes; e vagas espe-
ciais em estacionamentos, cogitando-se, inclusive, a propositura de ação civil
pública diante da recorrente negativa de credenciamento por parte da Autar-
quia Municipal de Trânsito e Cidadania (AMC)63. Saliente-se que as ações
coletivas “são o meio, por excelência, de solução de conflitos envolvendo os
direitos sistematizados em políticas públicas”64, pondo-se em prática a nova
legislação dedicada às pessoas com deficiência.
Já quanto ao direito à educação, sublinhe-se que a Defensoria Pú-
blica do Estado do Ceará tem se voltado para o processo de inclusão nas
escolas, com vistas a diminuir a evasão de alunos com deficiência65 e a
conferir aplicabilidade ao Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº
8.069/1990). A maioria das pessoas com TEA sequer é assistida por pro-
fissionais de apoio escolar66, o que impede o máximo desenvolvimento de
suas habilidades, em patente descumprimento do disposto nos arts. 3º,
XIII, e 27, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, e no art. 3º, parágrafo
único, da Lei Berenice Piana.
Em observância aos ensinamentos de Bucci67, pode-se afirmar que o
implemento de políticas públicas como as acima citadas permite a aferição
do lugar de um país no cenário mundial. E a República Federativa do Bra-
sil, alicerçada por objetivos como a redução das desigualdades sociais e a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, como prevê o art. 3º, I
e III, da CRFB/1988, precisa, com urgência, conferir aplicabilidade às nor-
mas relativas à inclusão, em consonância com a legislação pátria e com as
diretrizes internacionais.
Por obra dos integrantes da Defensoria Pública, que ainda apresenta gra-
ves necessidades estruturais, muitos cearenses com transtorno do espectro au-
tista puderam concretizar direitos que, não raras vezes, soaram “como pura
abstração ou como componentes de uma carta de intenções”68. Ao adotar uma
postura intersetorial, a novel função essencial à justiça pode ultrapassar barrei-
ras e oferecer à pessoa com deficiência o respeito frequentemente negado pelo
poder público.

63
Ibid.
64
Ibid.
65
Ibid.
66
Ibid.
67
BUCCI, Maria Paula Dallari, op. cit., p. 4.
68
SADEK, Maria Tereza Aina, op. cit., p. 20.
358 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

CONCLUSÃO

A fruição de uma vida digna por parte das pessoas com transtorno do es-
pectro autista demanda diversas ações estatais nesse sentido, não se mostrando
suficiente a previsão constitucional e legal dos seus direitos. A precariedade
de acesso a serviços básicos nega às crianças e adolescentes acometidas pelas
síndromes o pleno desenvolvimento de suas capacidades sociais e cognitivas,
devendo o poder público, de fato, acompanhar a tendência mundial de in-
centivo à inclusão e à oferta de atendimento especializado e multidisciplinar.
Integrando a essência do acesso à justiça em sentido lato, a Defensoria
Pública exibe um comprometimento pelas causas dos indivíduos com TEA
dificilmente constatado em outras esferas. Além de concretizar as pretensões
desse público pela via jurisdicional, a instituição prioriza uma cultura de paz,
o que viabiliza a execução de políticas públicas de forma consensual. Con-
tudo, em desrespeito aos esforços engendrados por ela, ainda se identifica,
por parte, principalmente, dos Poderes Executivo e Judiciário, a imposição de
condições extralegais à satisfação das súplicas dessas pessoas, o que contraria
todos os diplomas citados neste estudo e a própria concepção de cidadania.
O benefício de prestação continuada, por exemplo, frequentemente plei-
teado pela Defensoria Pública, ao garantir ao hipossuficiente acometido pelo
transtorno uma renda mensal, confere a ele a possibilidade de suprir necessida-
des urgentes, mesmo que de forma insuficiente. E a moderna análise do grau
de miserabilidade do impetrante, muito bem desempenhada por defensores
públicos federais, médicos peritos e assistentes sociais, resta, em várias oca-
siões, ignorada pelo Poder Judicante, que, assim como o INSS, tem apresenta-
do óbices indevidos à assistência social.
Em oposição à lógica do ensino em massa, à má prestação de tratamen-
tos de saúde, à falta de transporte, dentre outras falhas conjunturais, a Defen-
soria Pública do Estado do Ceará, ao lado da Defensoria Pública da União, de-
senvolve políticas públicas em favor da inclusão das pessoas com deficiência,
sem embargo da sua fragilidade financeira frente aos demais órgãos estatais.
Ao invés de desistirem diante das diárias negativas, as instituições analisadas se
mostram cada vez mais enérgicas e determinadas, proporcionando às pessoas
com TEA e suas famílias um tratamento verdadeiramente humano.

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Capítulo 23
Refugiados Brasileiros no Exterior:
Breve Análise Jurídica da
Proteção ao ser Humano
Letícia Marques Souza, Monaliza Lima
Jonh Lenon Pereira da Silva

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 instituiu, no sistema jurídico brasileiro,


o Estado Democrático de Direito, assegurando o exercício dos direitos sociais
e individuais, proclamando a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvol-
vimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos.
No entanto, essa proclamação de sociedade considerada fraterna e sem
preconceitos não condiz com a realidade vivenciada atualmente pelos cida-
dãos no Brasil. Tanto é, que, nos últimos anos, o número de refugiados brasi-
leiros vem crescendo de forma significativa.
Partindo do fato de que o instituto do refugio prevê a perseguição e a vio-
lação maciça de direitos humanos como requisitos para a sua solicitação, bem
como se sabe que o Brasil é um Estado que não passa por nenhum conflito
bélico, pergunta-se: o que leva tantos nacionais a solicitarem refúgio em outras
nações? O Brasil falhou na sua política de proteção dos Direitos Humanos?
Sendo o refúgio uma forma de migração resultante de fundado temor de
perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social, entre
outros fatores, marcado pela expressa violação aos direitos humanos, verifica-
-se que a busca de tal instituto por brasileiros em outros Estados é incompatí-
vel com preceitos democráticos trazidos pela Carta Magna de 1988, uma vez
que, para a busca de refúgio do exterior, pressupõe-se que o país de origem, no
caso o Brasil, não tenha condições de assegurar a proteção daquela pessoa que
está buscando o referido instituto em países estrangeiros.
Dessa forma, analisar a situação jurídica que motivou brasileiros a busca-
rem refúgio no exterior é aprofundar as discussões em torno da negação dos
direitos aos nacionais. Apesar de positivado no ordenamento jurídico pátrio, o
caminho para efetivá-lo ainda é extenso, necessitando do empenho da sociedade
362 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

civil conjuntamente com os esforços dos Poderes Públicos, a fim de assegurar


aos brasileiros a igualdade consagrada na Constituição Federal de 1988.
Salienta-se, ainda, que o estudo partiu de dados quantitativos de casos
envolvendo emigrantes brasileiros refugiados no exterior, objetivando o es-
tudo de casos concretos vivenciados por nacionais para que possa ser melhor
compreendido as motivações que levaram à solicitação de refúgio em outros
Estados, bem como para que possa haver a comparação da realidade descrita
nos relatos e os preceitos assegurados no texto constitucional.

2. DIREITO DO REFÚGIO E SUA FUNDAMENTAÇÃO


JURÍDICA

A proteção aos refugiados encontra-se positivada nos Tratados e Acordos


internacionais, facultando aos países a assinatura de tais preceitos. Nesse senti-
do, ao ratificar essas normas internacionais, os países comprometem-se a zelar
pela integridade física e social dos solicitantes do Refúgio.
É importante salientar, ainda, que o aperfeiçoamento da ordem jurídica
em torno das questões do refúgio se operacionalizou nas últimas décadas, com
a evolução jurídica da temática dos Direitos Humanos, bem como quanto
ao fenômeno do refúgio adquirir dimensões globais, direcionando a coope-
ração entre os Estados para tornar viáveis as soluções duradouras em relação
ao refúgio. Nesse sentido, ao tratar da importância da temática dos Direitos
Humanos dos Refugiados, assevera Mazzuoli: «Trata-se de uma das primeiras
preocupações do direito do pós-guerra a inspirar toda uma legislação protetiva
após esse período1.”
Pode ser apontada, dentro da regulação internacional do instituto do
Refúgio, a Convenção de 1951, o Protocolo de 1967, a Convenção Relativa
aos Aspectos Específicos dos Refugiados Africanos de 1969 e a Declaração de
Cartegena de 1984, os quais podem ser considerados relevantes documentos
internacionais responsáveis em aprofundar a proteção aos refugiados.
Nessa perspectiva, afirma Mazzuoli: “O assunto é regulado pelo direito
internacional e, bem assim, pelo direito interno de vários Estados, não sendo
diferente com o Brasil, que o disciplinou na Lei n.º 9.474, de 22 de julho de
1997”2. Dessa forma, os direitos dos refugiados inserem-se no contexto do
Direito Internacional dos Direitos Humanos, bem como do Direito Interna-
cional dos Refugiados, contribuindo para embasar juridicamente a rede de
proteção aos refugiados no âmbito internacional.
1
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Internacional privado: curso elementar. Rio de Janeiro:
Forense, 2014. p.206.
2
Ibid.,p.206.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 363
Assevera Jubilut “o Direito Internacional dos Direitos Humanos surge
após a Segunda Guerra Mundial como uma das maiores preocupações da co-
munidade internacional e, por via de consequência, da ONU, pois sua princi-
pal função é fornecer garantias mínimas de sobrevivência à espécie humana” 3.
Nesse sentido, torna-se imprescindível a construção jurídica de preceitos volta-
da a resguardar os direitos do ser humano, independentemente de se encontrar no
seu território de sua nacionalidade ou não. Acrescenta JUBIT: “esses direitos essen-
ciais, aqueles dos quais o ser humano é titular em função de uma construção his-
tórica que buscou assegurar a proteção à dignidade humana, característica inerente
aos seres humanos, e que todos possuem simplesmente por serem humanos.” 4
Pode-se afirmar, nesse sentido, que a ideia de proteção internacional ao institu-
to do Refúgio vigente na atualidade se fundamenta em considerações da análise da
temática dos Direitos Humanos, de modo que, negligenciado esse vínculo, ao me-
nos pode haver a compreensão do instituto do refúgio e suas disposições derivadas.
Destarte, buscar limitar a definição de refugiado negando a relação entre esse
conceito e os padrões internacionais de Direitos Humanos não possui nenhuma
sustentação conceitual, uma vez tal proteção constitui o próprio propósito do
instituto do refúgio. Portanto, como a garantia dos direitos humanos é o objetivo
principal desse mecanismo internacional, assim pode ser apontada a perseguição,
parte primordial da conceituação de refugiados, como uma violação de direitos
humanos. Embora, para que seja caracterizada uma perseguição, tal violação deva
conter características específicas como as estabelecidas na Convenção de 1951.
Os direitos do ser humano são da essência humana, não podendo ser dis-
postos, devendo ser pautados na construção de mecanismos de ampliação da
rede de proteção aos refugiados. Ao analisar os Tratados Internacionais, torna-
-se evidente a evolução jurídica das últimas décadas, como exemplos, tem-se a
evolução do tratamento dado pela Convenção de 1951, em que o conceito de
refúgio havia cláusula temporal e geográfica.
Conforme assevera Mazzuoli ao analisar os dispositivos da referida con-
venção, havia a limitação temporal contida na conceituação original da Con-
venção de 1951, a qual restringia a condição de refugiado aos acontecimentos
ocorridos antes de 1.º de janeiro de 1951, bem como havia a limitação da
aplicação desse instituto também a uma determinada situação geográfica para
concessão do refúgio no mesmo dispositivo, ao prever que apenas pessoas pro-
venientes da Europa poderiam solicitar refúgio em outros Estados5.

3
JABULIT, Liliana Lyra. O Direito Internacional dos refugiados e sua aplicação no orçamento jurí-
dico brasileiro. São Paulo: Método, 2007.p.51
4
Ibid., p.51
5
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Internacional privado: curso elementar. Rio de Janeiro:
Forense, 2014. p.207.
364 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Ressalta-se, portanto, que o referido Protocolo retirou os trechos que re-


duziam a conceituação do Refúgio, considerando, nesse momento, refugiado
como qualquer pessoa com fundado medo de perseguição por motivos de
raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontran-
do fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse
temor, não quer valer-se da proteção do seu país de origem.
Nesse sentido, Mazzuoli acrescenta: “Essa conceituação limitada tempo-
rária e geograficamente foi ampliada pelo Protocolo sobre o Estatuto dos Re-
fugiados” 6. Demonstrando, assim, a evolução jurídica dada ao instituto, que
ao não estabelecer qualquer limitação temporária ou geográfica, proporcionou
a ampliação dos sujeitos de direito que poderiam ter a proteção do refúgio.
De fato, a sociedade internacional vislumbrou a ampliação no conceito
de refugiado, incluindo também a pessoa vítima de violação grave e generali-
zada de direitos humanos. Foi possível verificar, analisando os dispositivos da
Convenção de 1951 da ONU, que essa ampliação do conceito de refugiados
indica relevos importantes para o trabalho de assistência ao refugiado, inclusi-
ve em relação à sua saúde mental, além da proteção jurídica e social necessárias
à integração daquele indivíduo na sociedade, uma vez que o instituto tem
como objetivo proteger o indivíduo que sofre com o temor de estar inserido
dentro do seu convívio social.
Entretanto, a Convenção Relativa aos Aspectos Específicos dos Refugia-
dos Africanos (1969) assevera em seu artigo I (2) “o termo refugiado também
deve ser aplicado a toda pessoa que devido à agressão externa, ocupação, e
dominação estrangeira ou eventos que perturbem seriamente a ordem pública,
tanto na totalidade do Estado de Nacionalidade, como em uma dada região,
é compelida a deixar seu local de residência habitual, a fim de buscar refúgio
em outro local fora de seu Estado de origem”
A relevância das normas jurídicas para a proteção aos refugiados encai-
xa-se na ótica do Direito Internacional dos Direitos Humanos, atrelado ao
direito dos refugiados. A discussão do conceito de refúgio se amplia, a fim
de abarcar outros indivíduos com fundado temor de perseguição no seu país
por motivo de raça, religião, opinião política, nacionalidade e filiação em
grupo social.
Nessa perspectiva, as normas jurídicas dos referidos Tratados e Acordos
Internacionais buscam contribuir para o processo de reintegração desses indi-
víduos em outro território, a fim de assegurar o preceito da dignidade huma-
na. O Protocolo de 1967 em seu artigo 2º ressalta a cooperação das autoridades
nacionais com as Nações Unidas na efetivação dessa rede de proteção7:

6
Ibid., p.207
7
ONU. Protocolo de 1967 sobre o Estatuto dos Refugiados.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 365
1 Os Estados membros no presente Protocolo, comprometem-se a cooperar
com o Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados ou qualquer
outra instituição das Nações Unidas que lhe suceder, no exercício de suas
funções e, especialmente, a facilitar seu trabalho de observar a aplicação das
disposições do presente Protocolo. § 2.A fim de permitir ao Alto Comissaria-
do, ou a toda outra instituição das Nações Unidas que lhe suceder, apresentar
relatórios aos órgãos competentes das Nações Unidas, os Estados membros
no presente Protocolo comprometem-se a fornece-lhe, na forma apropriada,
as informações e os dados estatísticos solicitados sobre: a) O estatuto dos
refugiados. b) A execução do presente Protocolo. C) As leis, os regulamentos
e os decretos que estão ou entrarão em vigor, no que concerne aos refugiados.

A cooperação nacional com as Nações Unidas, dessa forma, é fundamental


para direcionar as ações de proteção aos refugiados. Contudo, esses também são
responsáveis em respeitar o país que lhe deram acolhimento, ou seja, deve haver
reciprocidade de direitos e deveres conforme dispõe o artigo 2º da Convenção de
1951: “todo refugiado tem deveres para com o país em que se encontra, os quais
compreendem notadamente a obrigação de se conformar às leis e regulamentos,
assim como às medidas tomadas para a manutenção da ordem pública”.
Na contramão, os Estados, ao concederem refúgio, encontram-se proibi-
dos de estabelecerem distinções entre diversos indivíduos, conforme disciplina
o artigo 3º da mencionada Convenção: “os Estados Membros aplicarão as
disposições desta Convenção aos refugiados sem discriminação quanto à raça,
à religião ou ao país de origem”.
Dentre os direitos assegurados aos refugiados, têm-se o princípio do non-
-refoulement, disciplinado no artigo 33 da Convenção de 1951- relativa ao Esta-
tuto dos Refugiados8:

Proibição de expulsão ou repelir


§1. Nenhum dos Estados membros expulsará ou rechaçará, de maneira alguma,
um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liber-
dade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade,
do gripo social a que pertence ou das suas opiniões políticas. § O benefício da
presente disposição não poderá, todavia, ser invocado por um refugiado que,
por motivos sérios, seja considerado um perigo para a segurança do país no qual
se encontre ou que, tendo sido condenado definitivamente por crime ou delito
particularmente grave, constitui ameaça para a comunidade do referido país

Acrescenta-se, ainda, o artigo 31 da referida Convenção que os Estados


são proibidos de aplicar sanções legais aos refugiados cujo ingresso se deu de

8
ONU. Alto Comissionário das Nações Unidas para refugiados. Convenção Relativa ao Estatuto dos
Refugiados. 1951.
366 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

forma irregular. Inúmeros são os mecanismos de proteção aos refugiados con-


sagrados na Convenção de 1951.
Dentro da perspectiva interna do Brasil, a Lei 9.497/97 consagra esses
preceitos internacionais, contudo, ao analisar juridicamente os casos concretos
de emigrantes brasileiros refugiados no exterior, fica evidente uma expressi-
va dicotomia, uma vez que, enquanto o Brasil é signatário desses acordos e,
teoricamente, é reconhecido por conceder proteção para quem venha buscar
refúgio no Brasil, de outro lado, é possível constatar expressivo número de
brasileiros que buscam viver dignamente em outros países por meio do insti-
tuto do refúgio.

3. BRASILEIROS REFUGIADOS E A VIOLAÇÃO DE DIREITOS

Ao analisar o debate em relação aos refugiados, desconsidera-se, em sua


maioria, o número significativo de brasileiros solicitantes de refúgio em ou-
tros países, ficando a discussão sobre o tema, essencialmente, associada aos
refugiados que se encontram no Brasil. É notório o fato de que o tema merece
considerável destaque, mas, muitas vezes, limita a discussão aos imigrantes re-
fugiados no Brasil, ficando à margem a análise social e jurídica dos emigrantes
brasileiros que solicitaram refúgio no exterior.
De fato, o Brasil oferece ampla oportunidade para o estudo dos movi-
mentos migratórios em seu território, uma vez que a imigração é um aspecto
marcante da história brasileira, visualizado como intrínseco ao estudo da pró-
pria realidade histórica, o qual se mostra indissociável da análise dos movi-
mentos migratórios no Brasil.
Dentro do atual cenário de migrações mundiais, marcado por desloca-
mentos de significativa proporção, estrangeiros de diversas nacionalidades
vislumbram o Brasil como o destino receptivo aos estrangeiros, afirmando a
ideia proclamada de país acolhedor, muitas vezes, reforçada pela mídia, a qual
assegura o Brasil como imaginário de uma nação que abre suas portas e aceita
a diversidade.
Dessa forma, a concepção de que o Brasil é um país realmente aberto aos
imigrantes, particularmente aos refugiados, é reafirmada pelos números divul-
gados pelo ACNUR e pelo CONARE, que refletem a dimensão do refúgio no
Brasil nos últimos anos. Através de dados numéricos, as referidas instituições
fizeram estudo quantitativo no período de 5 anos compreendido entre 2010 e
2015, afirmando que receberam 28.670 pedidos de refúgio de 79 nacionalidades.
De forma pouco abordada, entretanto, vislumbra-se o fenômeno antagô-
nico, diversos pedidos de refúgio no exterior formulados por brasileiros que
afirmam estarem sofrendo fundado temor de perseguição pelos motivos pre-
viamente mencionados, de modo que precisariam sair do seu país de origem,
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 367
no caso, o Brasil, para que possam ter assegurada a proteção da sua vida e da
sua dignidade humana, ou seja, basicamente, do que se encontra positivado
como garantia fundamental na Constituição de 1988.
Obviamente, deve ser analisada a realidade do que está sendo descrito
pelo brasileiro que solicitou refúgio no exterior, para que esse instituto de
proteção aos Direitos Humanos não seja utilizado como artifício dissimulado
para encobrir situações irregulares no processo de imigração de pessoas que
não se encontram na situação de refugiado no exterior, uma vez que o institu-
to do refúgio, como analisado nos dispositivos da Convenção de 1951- relativa
ao Estatuto dos refugiados, assegura a proibição de expulsão, na qual os Esta-
dos são proibidos da aplicação de sanções legais aos refugiados cujo ingresso
se deu de forma irregular.
Partindo do pressuposto de que aquele brasileiro que solicita refúgio no
exterior se enquadre na situação de refugiado, a qual, necessariamente, deman-
da proteção jurídica distinta dentro do contexto do Direito Internacional,
pode-se aduzir que, para que haja a solicitação de refúgio em outro Estado, o
indivíduo deve se vê em uma situação de negligência pelo seu país de origem,
no caso o Brasil. Isso demonstra, dentro de cada caso concreto a ser analisado,
a ausência de meios assecuratórios governamentais para a proteção daquele
indivíduo que se encontrava no território brasileiro com fundado temor de
perseguição pelas razões caracterizadoras do refúgio.
Ocorre que, ao verificar a negligência estatal na proteção daquele indiví-
duo que precisaria demandar a proteção de outro Estado por não ter condições
de permanecer no Brasil por fundado medo de perseguição, é possível verificar
que essa negligência demonstra amplo afastamento dos preceitos constitucio-
nais, uma vez que a Constituição de 1988 elenca medidas assecuratórias dos
direitos e garantias fundamentais.
Nota-se, portanto, que não se critica aqui a ausência de previsão normati-
va que conclua pela proteção das razões de gênero, cor, raça, religião, orienta-
ção sexual, testemunhas de crimes cometidos, entre outras razões. Obviamen-
te, a Constituição retrata no seu diploma normativo a proteção jurídica das
situações motivadoras do temor de perseguição.
Como título ilustrativo, aponta-se a dignidade da pessoa humana como
fundamento da República Federativa do Brasil, assegurado no Art. 1º, III da
CF, bem como se ressalta o objetivo de promover o bem de todos, sem pre-
conceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discri-
minação, contido no Art. 3º, IV da Constituição, tem-se ainda o Art. 5º que ao
estabelecer diversos direitos fundamentais, coloca como garantia fundamental
a proteção dos direitos pelo Estado.
A partir disso, visualiza-se uma discrepância entre tais dispositivos e a rea-
lidade de busca de refúgio em outros países. Nesse sentido, questiona-se como
368 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

o Estado Democrático de Direito, embasado na construção de uma sociedade


livre e igualitária, sem discriminação de nacionalidade, raça, religião, gênero,
orientação sexual ou pertencimento a grupos sociais, tem os seus cidadãos
buscando viver em outros países, sem o temor de perseguição pelos motivos
ora mencionados.
Apesar de se encontrarem positivados os direitos inerentes aos brasileiros,
verificam-se dramas que evidenciam a violação aos direitos humanos pactua-
dos na Constituição Federal, nos Tratados e nas Convenções internacionais
em proteção aos refugiados. Nesse sentido, há uma contraposição entre a po-
sitivação de direitos e as evidentes violações aos direitos do ser humano no as-
pecto do tratamento igualitário que deve ser dado a diferentes raças, religiões,
grupos sociais, nacionalidades e gênero.
O Alto Comissionário das Nações Unidas para os Refugiados - ACNUR
- divulgou, em 2014, haver 1.207 (mil duzentos e sete) brasileiros refugiados
em diversos países mundo. Há, no contexto brasileiro, casos emblemáticos de
solicitação de refugio, especialmente, nos Estados Unidos da América. Dessa
forma, segundo os dados, os Estados Unidos ocupam a primeira posição de
refugiados brasileiros em seu país, correspondendo a 679 (seiscentos e setenta
e nove) brasileiros nessa situação. Acrescenta-se, ainda, que, na época de divul-
gação dos dados, ainda havia 110 (cento e dez) solicitantes de refúgio nos Es-
tados Unidos, seguido do Canadá com 175 (mais 73 a espera) e da Alemanha
com 163 (e três a espera).
Dados divulgados pelo Alto Comissionário das Nações Unidos para os
Refugiados – ACNUR - (Foto 01) revelaram os motivos da solicitação de re-
fúgio pelos brasileiros. Dentre eles, têm-se: vítimas de tortura e de violência,
ativistas da Amazônia ameaçados de morte, indivíduos com medo de perse-
guição de policiais corruptos, integrantes de milícias, traficantes de drogas e
testemunhas de crimes cometidos por policiais. Ressalta-se, nesse contexto,
a forte violação aos direitos de diversidade de gênero e de orientação sexual,
demonstrando como resultado números expressivos de abusos físicos, sexuais
e psicológicos sofridos pelos solicitantes de refúgio.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 369
Foto 01: Refugiados Brasileiros.

Fonte: Estatísticas do Acnur (órgão da ONU para refugiados), advogados e refugiados

Conforme ressaltado anteriormente, esses acentuados números corro-


boram na afirmação do amplo distanciamento entre a realidade fática evi-
denciada e os dispositivos constitucionais, demonstrando que o caput do
artigo 5° ao prever “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes” da Constituição Federal de 1988 não se
encontra efetivada para alguns brasileiros, ou seja, há o temor de brasileiros
em viver no país, vindo a solicitar o refúgio em outros Estados, ferindo a
dignidade da pessoa humana como fundamento da ordem constitucional.
Reconhece-se como refugiado, conforme o artigo 1° da Lei 9497/97, todo
indivíduo que, devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, reli-
370 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

gião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora de seu país
de nacionalidade e não possa ou não queira se acolher sob a proteção de tal país.
Os relatos dos brasileiros refugiados, em sua maioria, mostram o receio
de viver no Brasil por questões de diversidade de gênero, verificado por fatos
reais de desrespeito aos indivíduos pela sua orientação sexual ou à mulher que
se encontra em situação de perseguição por seus cônjuges ou companheiros.
Apesar dos depoimentos falarem de asilo, essa denominação não é apro-
priada, apesar de certa divergência doutrinária sobre a definição de asilo e a
sua confusão incorreta, por alguns autores, com o instituto do refúgio, pode-
-se destacar que o asilo se refere a fenômeno relacionado a questões políticas.
Portanto, diferentemente do refúgio, o qual é concedido ao imigrante por
fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, gru-
po social ou opiniões políticas, o asilo é concedido em casos envolvendo, por
exemplo, perseguição política individualizada ou por perseguição por crimes
políticos, estando colocado o asilo político como um dos pilares que rege as
relações internacionais, disciplinado no artigo 4º da Constituição Federal.
O conceito de asilo, conforme assevera JUBILUT: “Consiste, em linhas
gerais, no instituto pelo qual um Estado fornece imunidade a um indivíduo
em face de perseguição sofrida por esse em outro Estado” 9. Por sua vez, afirma
Mazzuoli: “Perceba-se que a concessão do status de refugiado dá-se não em vir-
tude de uma perseguição baseada em crime de natureza política ou ideológica
(como ocorre no caso do asilo)”.10
A vontade pelo respeito à diversidade de gênero encontra-se como princi-
pal alegação para a solicitação do refúgio nos outros países. O preceito cons-
titucional de igualdade consagrado no caput do artigo 5° deve assegurar os
direitos de expressar sua livre orientação sexual a todos, porém nota-se que,
ao analisar casos concretos de violação desse preceito fundamental, a realidade
distancia do que está assegurado no diploma constitucional e também nos
demais instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil.

4. ANÁLISE DE RELATOS DE SOLICITANTES DE REFÚGIO


NO EXTERIOR

Dentro desse cenário, o solicitante do refúgio André Aggi11 ressalta as


dificuldade se assumir sua orientação sexual no Brasil, sofrendo preconceito e

9
JABULIT, Liliana Lyra. O Direito Internacional dos refugiados e sua aplicação no orçamento jurí-
dico brasileiro. São Paulo: Método, 2007.p.37
10
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Internacional privado: curso elementar. Rio de Janeiro:
Forense, 2014. p.207
11
GARCIA, JANAINA. Não volto de jeito nenhum: aqui sou um ser humano, não uma condição”,
desabafa brasileiro que vive no Canadá. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 371
discriminação por ser homossexual. A situação de André revela afronta a dig-
nidade humana, preceito valorado pela ordem constitucional Brasileira. Por
haver temor de perseguição no Brasil motivado, sobretudo, pela orientação
sexual, André enquadra-se nos critério de solicitação de refúgio. Apesar da fala
de André aduzir se tratar de caso de solicitação de asilo, como dito anterior-
mente, o correto seria é o instituto de refúgio. O brasileiro desabafou “não
volto de jeito nenhum. Porque aí no Brasil eu serei pra sempre uma condição.
Aqui, sou um ser humano”

Pedi asilo ao governo canadense em novembro de 2011, em razão da minha


orientação sexual, e aguardo a minha audiência. Vim como turista. Se pedisse
asilo no Brasil, acredito que nunca conseguiria. Advoguei quatro anos e meio
no Brasil, em Pouso Alegre. Não tinha dinheiro nem para uma consulta oftal-
mológica; aqui, mesmo ainda pleiteando o asilo, tenho seguro de saúde federal
e consegui meu óculos de graça. Isso para dizer o seguinte: falam que não tem
homofobia no Brasil, mas tem, em que seja velada. E eu sentia isso mesmo
para trabalhar. (grifo nosso)

O refúgio possibilita ao solicitante retornar suas vidas pautadas na dignidade


humana, ou seja, na liberdade de expressão, de crença religiosa, de orientação po-
lítica, de gênero, entre outras. Admitir tais violações é reconhecer o cenário atual
vivenciado por muitos cidadãos brasileiros, o que demonstra um acentuado afas-
tamento dos preceitos constitucionais, evidenciando distanciamento na aplicação
prática da proteção aos direitos humanos, bem como representa, ainda, acentuado
desrespeito aos tratados e acordos internacionais cujo Brasil é signatário.
Nesse cenário, Rômulo Castro12, vítima de estupro e violência cometida
por policiais pelo fato de ser homossexual, conseguiu refúgio nos Estados
Unidos em 2000. No seu depoimento, ele comenta o abuso sexual sofrido na
infância: “Eu fui perseguido por ser afeminado, gordo bicha; sentia-me um
monstro [...] Aqui, ser homossexual foi a minha salvação. Então, soube que
tinha que realizar o melhor papel da minha vida”
Outros relatos corroboram com a sensação de perseguição enfrentada no
território brasileiro, influenciado, direta ou indiretamente, no desejo de sair do
território nacional e buscar refúgio em outras nações. Acrescenta o depoimento
do Senhor Aluizio Ribeiro de 49 anos. Em 2003, chegou ao Canadá, cruzando

noticias/2012/04/04/nao-volto-de-jeito-nenhum-aqui-sou-um-ser-humano-nao-uma-condicao-desabafa
-brasileiro-que-vive-no-canada.htm . Acesso em: 01 nov.2016.
12
FERREIRA, Leonardo. Homossexual brasileiro consegue asilo nos Estados Unidos. Data da pu-
blicação: 03/02/2011. Disponível em: http://www.brazilianvoice.com/bv_noticias/bv_comunida-
de/40855-homossexual-brasileiro-consegue-asilo-nos-estados-unido HYPERLINK “http://www.
brazilianvoice.com/bv_noticias/bv_comunidade/40855-homossexual-brasileiro-consegue-asilo-nos
-estados-unidos.html”s.html. Acesso em: 01 nov.2016.
372 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

nas fronteiras dos Estados Unidos, a fim de solicitar refugio. Dentre os motivos
alegados para conquistar o status de refugiado, tem-se o fato de sua mulher ao
testemunhar o crime cometido por um policial no Rio, tornou-se vítima de
perseguição. Mostra-se o caráter subjetivo do temor de perseguição nas palavras
de Aluizio Ribeiro: “Tínhamos medo de retaliação”. O órgão responsável em
avaliar o processo de solicitação de refúgio o deferiu, além disso, também foram
consideradas refugiadas a mulher e as duas filhas de Aluizio.
Inúmeros são os casos reais de brasileiros refugiados, especialmente, nos
Estados Unidos. Emblemático foi o pedido de refugio negado ao brasileiro
Jonathan Castilho de Oliveira13, contudo a corte de apelação de Chicago ao
conceder nova audiência verificou as condições favoráveis para conquistar o
status de refugiado.

No documento solicitando o asilo, o brasileiro alegou que seu pai participou


de um esquema, ilegal, para fornecer apoio financeiro a dois políticos no
Brasil e quando resolveu tornar o caso público, foi assassinado. “Minha mãe
entregou provas a um promotor, as quais incriminam figurões políticos que a
ameaçaram de morte ela e toda nossa família”, comenta.
Oliveira lembra que sua mãe e sua irmã conseguiram fugir para os Estados
Unidos usando visto de turista, mas ele, como não tinha documentos, teve
que atravessar a fronteira mexicana e acabou sendo preso por agentes da Imi-
gração. “O juiz não acreditou na minha história e negou o pedido”, lamenta.

A perseguição sofrida por Jonathan revela temor em viver no Brasil, sen-


do irrazoável a primeira decisão da corte. O refúgio é justificável ao possi-
bilitar a reconstrução da dignidade daquele indivíduo que não se reconhece
como parte integrante do determinado país, por questões de se encontrar em
situação de vulnerabilidade psicossocial.
A conclusão geral sobre a proteção internacional dos refugiados de n° 77
no seu item I proclama aos países signatários a participar das discussões em
torno dos direitos dos refugiados. Apesar de o Brasil ser signatário das con-
venções, torna-se evidente pelos casos concretos ora destacados em flagrante
expressiva afronta aos direitos dos brasileiros dentro no próprio território.

CONCLUSÃO

O instituto do refúgio tornou, nas últimas décadas, um importante me-


canismo para inúmeros indivíduos com fundado temor de perseguição por

13
TERRA. Brasileiro que pediu asilo nos EUA ganha nova audiência. Disponível em: https://www.
terra.com.br/noticias/brasil/brasileiro-que-pediu-asilo-nos-eua-ganha-nova-audiencia,12c94999eed4b-
310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html. Acesso em: 20 out.2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 373
questões de raça, religião, opinião política, pertencimento a grupo social ou
nacionalidade. Reportando-se ao cenário do Brasil, constatam-se os casos de
brasileiros refugiados, especialmente, nos Estados Unidos, Canadá e Alema-
nha. Esses casos revelam a fragilidade do ordenamento jurídico em efetivar os
seus preceitos constitucionais de igualdade e de dignidade da pessoa humana.
Os refugiados brasileiros são vítimas de preconceito pelo simples fato de
expressar sua orientação sexual, por serem vítimas de violência doméstica ou
por terem testemunhado algum crime envolvendo agentes da segurança públi-
ca. A positivação de direitos aos concidadãos deveria fundamentar o Estado
Democrático de Direito, contudo, ainda há óbices na concretização do con-
teúdo jurídico positivado em normas para a realidade prática, contribuindo
para o aumento de brasileiros temerosos em viver no território.
O retorno dos brasileiros é imprescindível para assegurar os seus direitos
como cidadãos nacionais. De fato, o emigrante brasileiro tem uma série de di-
reitos que possam incentivar o seu retorno ao Brasil com ânimo de residência,
uma vez que o nacional poderá ingressar com isenção de impostos de impor-
tação e taxas aduaneiras sobre os bens novos e usados destinados ao seu uso
pessoal e profissional, bem como é direito do emigrante a assistência especial
pelas repartições brasileiras em casos de ameaça à paz social e à ordem pública.
Entretanto, tais medidas de proteção ao imigrante se tornam inócuas
quando esses sujeitos não têm os motivos que os levaram a solicitar o
refúgio em outro Estado combatidos pelo Estado brasileiro, o que seria a
principal medida viável a tornar o caminho apropriado para resguardar o
temor de viver no Brasil, com o fim de promover a aproximação prática dos
preceitos constitucionais.
Nesse sentido, o Poder Público deve criar políticas públicas para refugia-
dos brasileiros, necessitando que essas políticas atrelem diretrizes e mecanis-
mos de resolução dos problemas enfrentados pelos brasileiros, especialmente,
envolvendo diversidade de gênero e agentes de segurança pública.
É inaceitável que o Brasil, como país signatário de tratados e acordos in-
ternacionais, viole os direitos dos seus cidadãos, tornando estes refugiados em
outros países. Dessa forma, o caminho para alcançar a transformação social
transpassa pela igualdade e, fundamentalmente, pela dignidade humana.
O reconhecimento e a proteção da dignidade da pessoa humana pelo Di-
reito é resultado da evolução do pensamento humano. Dentro desse contexto,
a Constituição Federal de 1988 a traz como fundamento da República Fede-
rativa do Brasil. Torna-se evidente, portanto, o papel desse relevante funda-
mento como elemento referencial para a interpretação e aplicação das normas
jurídicas, de modo que a garantia constitucional seja devidamente aplicada,
considerando a realidade social a que se insere e que, muitas vezes, motivou a
busca de refúgio em outros países.
374 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

REFERÊNCIAS

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______. Lei n° 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos
Refugiados de 1951, e determina outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
Leis/L9474.htm. HYPERLINK “http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9474.htm.%20Acesso” Acesso em:
30 nov.2016
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________. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados. Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados. 1967.
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito Internacional privado: curso elementar. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
MELLO, Patrícia Campos; DAMASCI, Fernando. Brasileiros refugiados somam mais de mil. Folha de São Pau-
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www.acnur.org/fileadmin/scripts/doc.php?file=fileadmin/Documentos/portugues/Estatisticas/Sistema_de_Re-
fugio_brasileiro_-_Refugio_em_numeros_-_05_05_2016. Acesso em 27/10/2017
TERRA. Brasileiro que pediu asilo nos EUA ganha nova audiência. Disponível em: https://www.terra.com.
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cceb0aRCRD.html. Acesso em: 20 out.2017.
Capítulo 24
A Garantia de Acesso ao SUS para o
Residente Fronteiriço: Avanços e Desafios
no Brasil com a Nova Lei de Migrações

Fabrícia Helena Linhares Coelho da Silva Pereira


Lívia Maria de Sousa

1. INTRODUÇÃO

O processo de integração regional entre países na América Latina foi pen-


sado inicialmente na dimensão econômico-comercial, visando a possibilitar
circulação de bens e capital, por meio de políticas aduaneiras e alfandegárias
comuns que trouxessem benefícios econômicos aos integrantes do bloco eco-
nômico. Dessa forma, a cooperação internacional no Tratado de Assunção que
deu lugar ao MERCOSUL teve primordial preocupação com a coordenação
de políticas macroeconômicas voltadas à circulação de bens e não de pessoas.
Contudo, a intensificação da integração econômica no Brasil a partir da
década de 90, com o consequente aumento da importação e exportação entre
países vizinhos, concorreu para aumento dos fluxos migratórios, resultando
numa maior integração política, social e cultural entre países vizinhos, am-
pliando o trânsito fronteiriço de seus residentes com fins educacionais, labo-
rais, turísticos, afetivos e ainda para tratamento de saúde.
A despeito da existência de forte integração econômica, política e cul-
tural em torno das fronteiras, a coexistência de ordenamentos jurídicos dis-
tintos de dois ou mais países, somada às assimetrias de recursos humanos,
financeiros e tecnológicos, tornam esse território área de difícil desenho de
política pública social, o que levou o Plano de Ação Social do MERCOSUL
(2011)1 a considerar a fronteira como um espaço de vida diverso e complexo
para promoção de direitos humanos na fronteira, cabendo, assim, objetivos
sociais prioritários para essas áreas.
Na linha das diretrizes do MERCOSUL, o ordenamento jurídico brasilei-
ro, ao editar a Lei 13.445, de 24 de maio de 2017, reconheceu a importância da

1
Disponível em : <http://www.mercosur.int/innovaportal/file/2810/1/DEC_67-10_PT_PEAS.pdf> Aces-
so em: 29.out.2017.
376 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

zona de fronteira e inovou ao trazer um conceito legal de residente fronteiriço


sem limitar o espaço territorial objeto de proteção. Assim, foi considerado
residente fronteiriço a pessoa que tem residência em município fronteiriço de
país vizinho, seja nacional de outro país ou apátrida.
Diante da diversidade de proteção estabelecida nos países vizinhos no
que se refere à efetiva proteção de direitos humanos, especialmente com a
inovação legislativa da Lei 13.445/2017, o corte epistemológico do presente
estudo dar-se-á na implicação do processo de integração especificamente no
que se refere à promoção e proteção do direito à saúde para os residentes fron-
teiriços. Reconhecida a assimetria dos sistemas sanitários dos diversos países
fronteiriços, no que se refere à gestão e ao financiamento, bem como ao grau
de cobertura, extensão de programas, qualidade da atenção e a própria rede
instalada, revela-se um grande desafio garantir a proteção dos habitantes da
zona de fronteira independente da sua nacionalidade.
Partindo da afetação dada pela Constituição Federal brasileira de 1988
ao sistema público de saúde no Brasil, constituindo-o como sendo um sistema
universal, integral e de acesso equitativo, indaga-se em que medida um sistema
de saúde nacional voltado para a demanda de seus próprios habitantes pode
ser utilizado para atender à população de país vizinho que busque uma aten-
ção sanitária mais eficiente?
Nesse sentido, o presente artigo busca examinar a situação específica de
pessoas que, estando do outro lado da fronteira brasileira, têm fácil acesso
ao País e ingressam no território nacional em busca de um sistema de saúde
pública mais eficiente. É evidente que uma vez transposta a fronteira, sendo
admitido no território nacional, o nosso ordenamento jurídico garante os
direitos de todos que estejam sob sua jurisdição. O problema específico que
se aborda no presente trabalho é se pessoas que residem em outros países, mas
em zona de fronteira, podem ingressar no país com o fim de utilizar o sistema
sanitário brasileiro.
Defende-se que a nova Lei das Migrações representou um importante
avanço ao garantir o acesso à saúde a pessoas que se encontrem fora do territó-
rio brasileiro, mas que são residentes de espaço em que há forte influência do
ordenamento jurídico interno e forte integração social, econômica e cultural
com o nosso país.
Desse modo, considerando essa previsão de direitos aos fronteiriços abor-
dada na nova Lei de Migrações, e diante da aplicação dos princípios da universa-
lização e da integralidade do direito à saúde no ordenamento jurídico brasileiro,
é de grande importância garantir o acesso ao sistema público de saúde a pessoas
que residam em zonas fronteiriças do Brasil independente de sua nacionalidade,
uma vez que o Sistema Único de Saúde engloba toda uma gama de ativida-
des estatais que vão desde fiscalização sanitária em alimentos, medicamentos
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 377
e insumos realizada pelas agências de fiscalização sanitária, além de serviços
públicos como vacinação, controle de endemias, que pouca eficácia teria se as
ações fossem desenvolvidas em município brasileiro limítrofe sem considerar a
situação do seu vizinho. Contudo, o presente artigo defende a necessidade de
um tratamento regional sobre o tema, com o fim de institucionalizar, por meio
da cooperação internacional, não só a universalização das ações de saúde, mas
sua gestão e seu respectivo financiamento.

2. UNIVERSALIDADE DO SUS NO BRASIL

A Constituição Federal de 1988, ao conferir o exercício de direitos so-


ciais, como o direito à saúde, estabeleceu um sistema de prestação de serviços
públicos, em regra, universal. Isso quer dizer que, tanto os brasileiros, quanto
qualquer pessoa humana que esteja no país pode ser usuária do serviço público
de saúde no Brasil. Veja-se que, ao contemplar um direito à saúde a todos garan-
tido, com medidas que promovam o acesso universal e igualitário, o constituinte
originário não fez qualquer distinção acerca dos destinatários dessas medidas.
Essa interpretação tem perfeita consonância com a previsão de direitos
universais no campo da pesquisa e doutrina sanitária, tais como os estabeleci-
dos na normativa da Organização Mundial de Saúde, segundo a qual a saúde
de todos os povos é essencial para conseguir a paz e a segurança e depende da
mais estreita cooperação dos indivíduos e dos Estados e ainda que os resulta-
dos conseguidos por cada Estado na promoção e na proteção da saúde são de
valor para todos.
Tal característica está estampada no art. 196 da Constituição de 1988
ao garantir que a saúde é direito de todos e dever do Estado, sendo marca a
universalização desse direito. A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) tem
papel relevante nessa universalização estendida do direito à saúde2. Além dessa
inovação, a CF/88 traz novas faces do acesso e do financiamento do direito à
saúde, alterando o modelo anterior, ao introduzir o acesso universal, igualitá-
rio e, especialmente, gratuito.
Desse modo, independente da renda e da inserção no mercado de tra-
balho formal, a todos é garantida uma cobertura de saúde antes dada apenas
através da seguridade social ou de um modelo privatista do regime militar3 .
Jairnilson Silva Paim4 destaca os três modelos de sistema de saúde ado-
tados pelos países: o da seguridade social, o do seguro social e o da assistência. O
sistema de seguridade se dá pela via da cidadania, em que o direito à saúde é
2
Idem, p. 217.
3
OCKÉ-REIS, Carlos Octávio. SUS: O desafio de ser único. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2012, p. 21.
4
PAIM, Jairnilson Silva. O que é o SUS? Brasília: Editora Fiocruz, 2009, p. 18-19.
378 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

financiado solidariamente por toda a sociedade. É o caso do Canadá, Ingla-


terra, Cuba e Suécia, por exemplo. O sistema pelo seguro social, a proteção
à saúde é meritocrática, sendo os serviços de saúde destinados a quem con-
tribui com a previdência social, como ocorre na Alemanha, França e Suiça.
O sistema assistencial garante proteção à saúde para aqueles que comprovem
uma situação de pobreza, ou seja, que não podem comprar serviços de saúde.
Esse modelo é o utilizado nos Estados Unidos.
Desse modo, no Brasil, desde a década de 1920 até 1988, vigorava o siste-
ma de saúde segundo o seguro social. Após a CF/88, vislumbra-se um sistema
de seguridade social, implementado pela via da cidadania em um conceito
amplo, ou seja, garantido universalmente àqueles que são sujeito de direitos
na ordem brasileira.
Célia Lessa Kerstenetzky5, ao comentar acerca do universalismo nas ações
de saúde pública, informa que, em um período de universalismo básico de
acesso às ações de saúde no Brasil, de 1967 a 1975, o apoio ao setor privado
resumiu-se ao financiamento público à provisão privada, com a compra dos
serviços por parte do governo. No período seguinte, 1974 e 1978, prevaleceu
um modelo que se assemelhou ao welfare ocupacional dos Estados Unidos
“no qual, em troca de deduções fiscais à previdência, as empresas forneciam
cobertura de saúde aos seus empregados, comprando-as do setor privado, dessa
forma indiretamente incentivado.”6
Contudo, no período pós-1988, Célia Lessa Kerstenetzky7 aponta que “A
expansão de políticas e gastos representou mudança qualitativa em relação aos regimes
de bem-estar precedentes.”. Além de uma série de novos direitos sociais, a Cons-
tituição de 1988 os previu dentro de um outro modelo de universalização, de
um estado de bem-estar social do regime socialdemocrata em substituição ao
bem-estar corporativo dos períodos anteriores.
A despeito da característica peculiar da prestação de saúde no Brasil
– cuja prestação de saúde se dá por via de cidadania e ainda executada por
ações e serviços de acesso universal, não acompanhada por todos os países
que lhe fazem fronteira, e diante do universalismo estampado na CF/88
já garantia acesso às ações e serviços de saúde públicos no Brasil, aos bra-
sileiros e estrangeiros residentes no país, a recente Lei de Migrações (Lei
13.445/2017) foi expressa ao destacar que ao estrangeiro, independente da
sua condição migratória, é garantido o acesso a serviços públicos de saúde,
sem discriminação (Art. 4º, VIII).
5
KERSTENETZKY, Célia Lessa. O estado de bem-estar social na idade da razão: A reinvenção do estado
social no mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 203.
6
Idem, p. 203-204.
7
Idem, p. 212.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 379
Como veremos a seguir, a nova lei das migrações representou um gran-
de avanço no que se refere à universalidade do acesso ao sistema de saúde
brasileiro, por abranger cobertura para pessoas residentes fora do território
brasileiro, que se encontram, portanto, sob a jurisdição do seu país de origem
ou nacionalidade, contudo vivem em área de fronteira com forte integração
econômica, cultural e social com o Brasil. Tal como acesso aos serviços pú-
blicos de saúde, é obtido por meio do reconhecimento da cidadania regional.

3. A GARANTIA DE ACESSO AO SUS PARA RESIDENTES


FRONTEIRIÇOS INDEPENDENTE DA NACIONALIDADE.

A concepção de fronteiras hoje é vista sob uma perspectiva mais dinâmi-


ca, uma vez que se visualiza não uma mera faixa territorial, mas um espaço
integrado entre elas8. Dessa forma, é imprescindível que a universalização de
direitos esteja adequada a essa perspectiva, ainda que as zonas de fronteiras,
por estarem sob a soberania de diferentes países, com ordenamentos jurídicos
distintos, apresentem diferenças que dificultam o desenho de políticas públi-
cas de forma coordenada.
No âmbito do MERCOSUL, a fronteira é compreendida como um espa-
ço de vida diverso e complexo, com características diferenciadas do resto dos
territórios dos países vizinhos9. Assim, a dimensão social do MERCOSUL
tem orientado a coordenação de políticas e intervenções em zonas de frontei-
ras buscando garantir direitos à população residente nas zonas de fronteiras,
independentemente da nacionalidade. Tratando-se de região com intenso flu-
xo migratório, onde as pessoas se deslocam do país de sua residência pelos
mais diversos motivos, como laborais, educacionais, entre outros, a política
de âmbito local de um dado país acaba impactando de forma diferenciada nas
zonas de fronteira. Além disso, em razão das proximidades dos centros popu-
lacionais de países distintos como Brasil, Paraguai e a Argentina, o intenso
movimento migratório faz surgir novas demandas que necessitam de respostas
resolutivas e inovadoras.
Essa integração fronteiriça diferenciada tem sido percebida especialmente
no Brasil, que conta 23.102 km de fronteira, sendo que 15.735 km são ter-
restre, representados por 569 municípios fronteiriços, fazendo fronteira com
quase todos os países da América do Sul, com exceção apenas do Chile e do

8
FERRARO, Daiana. Políticas e Iniciativas en Mercosur en el ámbito de la Integración Fronteriza.
IN: XXIV Reunión de Directores de Cooperación Internacional de América Latina y el Caribe. Coope-
ración Regional en el Ámbito de la Integración Fronteriza.2013, San Salvador – El Salvador. Publicado
em: SP/XXIV-RDCIALC/Di N° 14 -13. p. 01.
9
Disponível em: <http://www.sela.org/media/265470/t0236000051420politicas_e_iniciativas_en_mer-
cosur_en_integracion_fronteriza.pdf> . Acesso em 29.Out.2017.
380 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Equador. Os problemas decorrentes dessas aproximações de centros popula-


cionais com realidades locais diversas surgem quando diante da integração
entre cidades gêmeas10 nas fronteiras brasileiras, que são municípios cortados
pela linha de fronteira que apresentem grande potencial de integração eco-
nômica e cultural, com uma localidade do país vizinho11, pode-se identificar
uma assimetria na dotação de recursos públicos no que se refere às políticas
públicas diferenciadas nos países.
José Luis Rhi-Sausi e Nahuel Oddone12 destacam como exemplo dessas
assimetrias no investimento de políticas entre países que dispõem de cidades
nessas condições, que os municípios brasileiros fronteiriços dispõem de gastos
públicos de dez a quinze vezes maiores que os das cidades paraguaias, o que
não decorre do potencial econômico dos municípios, mas da presença de
políticas públicas nacionais nas áreas de fronteiras, uma vez que as cidades pa-
raguaias de Pedro Juan Caballero e de Salto del Guairá possuem produção de
riquezas e de estrutura urbana nas mesmas condições que suas cidades gêmeas
brasileiras de Ponta Porã e Mundo Novo.
Tal questão não é diferente quando se trata de investimentos em ações e
serviços da saúde, que, como vimos, o desenho do próprio sistema de saúde
pública tem diferenças essenciais de um país para o outro. Mais especificamen-
te no que se refere a essas divergências em zonas de fronteira, e considerando
que no âmbito do MERCOSUL a condição de fronteiriço é dada àqueles resi-
dentes em área de 20km de ambos os lados da fronteira, medida não acompa-
nhada da harmonização dos sistemas legais dos países envolvidos, identifica-se
grandes diversidades no direito interno de cada país, o que se reflete, assim,
nos diversos tipos de proteção do direito à saúde, diferenciados quanto ao
grau de cobertura, à extensão dos programas, à qualidade da atenção e à pró-
pria rede instalada, sendo marcante as diferenças no padrão de financiamento
da atenção à saúde em cada um dos Países do Mercosul.
Enquanto o Brasil possui sistema de saúde predominantemente pú-
blico, os Países de sua fronteira possuem sistemas nacionais caracterizados
por seguros privados e ações públicas limitadas, com “atendimento público
restrito a segmentos específicos da população, como é o caso dos indigentes

10
Muitas vezes uma rua divide duas cidades como Rivera, no Uruguai, e Santana do Livramento, no Brasil.
E ainda a cidade brasileira de Chui e a uruguaia de Chuy.
11
Conceito estabelecido na Portaria nº 125/2014, do Ministério da Integração Nacional, publicada no Diá-
rio Oficial da União, de 24/03/2014, Seção 01.
12
RHI-SAUSI, José Luis; ODDONE, Nahuel. Cooperación e integración transfronteriza en América
Latina y el MERCOSUR. [Online], 2009, p.94. Disponível em: <https://www.academia.edu/6032926/
Cooperaci%C3%B3n_e_integrac%C3%B3n_transfronteriza_en_Am%C3%A9rica_Latina_y_el_Mer-
cosur_AECID_2009_Integraci%C3%B3n_Fronteriza_en_el_Mercosur?auto=download>. Acesso em
28.jan.2018.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 381
e carentes do Uruguai, [o que] ilustra essa realidade quanto às diferenças nos
aspectos financeiros” quando comparados com as ações e serviços públicos
de saúde no Brasil13.
Diante da ausência de um órgão específico para cuidar da temática
no âmbito do MERCOSUL, o Brasil vem tentando avançar em termos de
proteção, ao estabelecer um conceito mais ampliado de residente fronteiriço
sem limite de distância do centro populacional do município limítrofe, bus-
cando garantir o regular exercício de direitos à essa população independente
de sua nacionalidade.
A Lei de Migrações, nº 13.445/2017 garantiu o acesso ao sistema sanitário
considerando a zona de fronteira na medida em que possibilitou que os resi-
dentes fronteiriços, mediante requerimento, que obtenham autorização para
a prática de atos da vida civil e assegurando-lhe o exercício de direitos sociais,
inclusive o acesso ao sistema de saúde (artigos 23 e 24), representando uma
intervenção do Brasil em zonas fronteiriças visando à garantia de direitos para
esses cidadãos independente de sua nacionalidade.
O Decreto nº 9.199, de 20 de novembro de 2017, regulamentou a nova
Lei de Migrações e estabeleceu procedimento para que o residente fronteiriço
solicite autorização para realização de atos da sua vida civil no Brasil, pelo
prazo de cinco anos, prorrogáveis por igual período, e após podendo ser con-
cedida autorização para esse mesmo fim por prazo indeterminado. (artigos 86
a 94 do Decreto 9.199/2017)
Mesmo diante da inovadora e louvável previsão de direitos aos residentes
fronteiriços pelo ordenamento brasileiro, a assimetria dos sistemas de saúde
entre países vizinhos tem trazido desafios para operacionalizar o acesso ao
sistema de saúde pública da forma como prevista na lei. Como explicado ante-
riormente, pelas diretrizes da política do sistema sanitário brasileiro, o acesso
ao sistema é universal e a assistência integral, independente de coparticipação
do usuário, e, portanto, caracterizado pela gratuidade ao usuário.
Ocorre que em países vizinhos, como Uruguai e Paraguai, o sistema sa-
nitário prevê a necessidade de coparticipação do usuário no financiamento, o
que faz com que brasileiros residentes nos países vizinhos cruzem constante-
mente a fronteira para utilizar o sistema de saúde no Brasil, o que pode alterar
os indicadores de saúde, prejudicando a confiabilidade dos dados e conse-
quentemente o planejamento operacional e orçamentário das ações e serviços
de saúde, os quais se baseiam nos dados da população residente no Brasil,
sendo exemplo a vacinação contra poliomielite nos Municípios brasileiros
13
NOGUEIRA, Vera Maria Ribeiro; DALPRÁ, Kely Regina; FERMINANO Sabrina. Mercosul: expres-
sões das desigualdades em saúde na linha da fronteira. Ser social. Brasília: UNB, v.1, p. 159-168, 2006.
p. 164-165.
382 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

fronteiriços de aglomerados urbanos contíguos com países vizinhos, onde se


observam taxas de cobertura superiores a 100%, o que repercute negativamente
no planejamento em saúde nesses Municípios14.
Tal situação pode ser verificada na fronteira do Brasil, Argentina e Paraguai,
numa região conhecida como tríplice fronteira, com aproximadamente 700 mil
habitantes. Em estudo que analisou essa demanda nos Municípios fronteiriços
do Mato Grosso do Sul com Paraguai e Argentina, identificou-se que a maior
demanda de atendimentos foi na atenção básica de pessoas não contabilizadas
nos censos brasileiros, mas atendidas pelo Sistema Único de Saúde15.
Ademais, não somente brasileiros residentes na tríplice fronteira são
atraídos pelo sistema de saúde pública garantido pela CF/88 a quem estiver
no território do Brasil, mas ainda pessoas de outras nacionalidades tem bus-
cado utilizar o sistema de saúde brasileiro, circunstância que levou o Muni-
cípio de Foz do Iguaçu, por exemplo, a implementar uma unidade de saúde
para atender partos de mulheres residentes no Paraguai, nas proximidades da
ponte internacional16. Essa demanda de estrangeiros residentes fronteiriços
por serviços de saúde no Brasil foi relatada como frequente nos mais diversos
tipos de atendimento, como a busca por medicamentos , consulta médica de
atenção básica, imunização, parto, exames de patologia clínica, emergência e
pré-natal, e em menos tamanho a procura por atendimentos especializados e
procedimentos de alta complexidade17.
Conclui-se que há a garantia de acesso às ações e serviços públicos de
saúde no Brasil a estrangeiros, notadamente para os residentes fronteiriços
que dispõem de um processo mais simples para realizar os atos da vida civil
no Brasil. Há a concessão, assim, de uma espécie de cidadania regional, em
que o estrangeiro é cidadão do seu país de origem, mas por residir muito
próximo ao Brasil, exerce alguns atos da sua vida civil em território nacio-
nal, sendo um dos atos extremamente atrativos aqueles relacionados ao uso
dos serviços públicos de saúde brasileiros, que, por serem de qualidade e
gratuitos, são utilizados não somente pelos residentes nos Municípios fron-
teiriços, mas ainda por brasileiros e estrangeiros que residem nas localidades

14
CAZOLA, Luiza Helena de Oliveira; PÍCOLI, Renata Palópoli; TAMAKI, Edson Mamoru; PONTES,
Elenir R.J.C.; AJALLA, Maria Elizabeth. Atendimentos a brasileiros residentes na fronteira Brasil-Pa-
raguai pelo Sistema Único de Saúde. Rev Panam Salud Publica. 2011:29(3):185–90.
15
Idem.
16
JIMÉNEZ, Roser Pérez;NOGUEIRA, Vera Maria Ribeiro. La Construicción de los derechos sociales
y los sistemas sanitários: Los desafios de las fronteiras. Rev.KatálFlorianópolis v. 12, n. 1, p. 50-58,
Jan/Jun 2009.
17
GIOVANELLA, Ligia; GUIMARÃES, Luisa; NOGUEIRA, Vera Maria Ribeiro; LOBATO, Lenaura
de Vasconcelos Costa; DAMACENA, Giseli Nogueira. Saúde nas fronteiras: acesso e demandas de
estrangeiros e brasileiros não residentes ao SUS nas cidades de fronteira com países do Mercosul
na perspectiva dos secretários municipais de saúde. Cad Saude Publica. 2007;23(2 suppl):251–66.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 383
contíguas à fronteira brasileira. A previsão desse direito existe, mas ao ser
recentemente regulamentado pela nova Lei de Migrações não teve contem-
plada a forma como seria executado pelos Entes sub-nacionais, notadamente
no que se refere ao financiamento dessas ações e serviços públicos, como
trataremos no tópico seguinte.

4. A COOPERAÇÃO FINANCEIRA REGIONAL COMO MEIO


DE FINANCIAR A SAÚDE DO RESIDENTE FRONTEIRIÇO

Partindo-se da ideia de que os recursos públicos são finitos e as necessida-


des sociais vêm aumentando de forma progressiva, havendo grande impacto
nas despesas públicas cada reconhecimento de novo direito, surge como tema
instigante na atualidade o controle dos gastos públicos realizados, tendo em
vista que mesmo diante da ausência de desvio, é preciso garantir a aplicação
dos recursos com da melhor forma possível, atendendo à economicidade.
Não há dúvidas de que a Constituição Brasileira de 1988 reconheceu uma
gama de direitos à pessoa humana, os quais reclamam efetivação, mesmo que
em forma progressiva. Na área da saúde, a atuação estatal se mostra peculiar
quando comparada com os países vizinhos, isso porque com a criação do
Sistema Único de Saúde não foi prevista a coparticipação do usuário, como
ocorre em outros países. Assim, institui-se um sistema único de acesso univer-
sal e gratuito, que garante o acesso aos mais diversos serviços de saúde, que
vão desde atividades preventivas, como vacinação e controle de endemias, até
recuperação da saúde, com fornecimento de medicamentos e realização de
procedimentos cirúrgicos de alta complexidade.
Horacio Corti18 defende que no momento da definição da atividade fi-
nanceira pública, é inevitável que a Constituição seja respeitada. Embora a
atividade financeira comporte explicações econômica, sociológica e política,
todas elas devem considerar em suas análises a especificação jurídico-cons-
titucional que a atividade financeira pública detém. Portanto, ao tocar em
matérias de realização de direitos assegurados constitucionalmente, como fez a
recente Lei de Migrações, ao estabelecer procedimentos que garantem o acesso
ao sistema público de saúde brasileiro ao estrangeiro residente fronteiriço, sem
qualquer distinção, a faceta do financiamento público dessas ações e serviços é
questão que deve ser levantada e estudada, sob pena de não poder ser cumpri-
do a contento o direito que o ordenamento brasileiro visa assegurar.
Para compreender a faceta do financiamento da saúde em zona de fron-
teira é importante para a concepção de gratuidade, universalidade, integra-
lidade e igualdade no acesso do sistema público de saúde, destacar que para

18
CORTI, Horacio Guillermo. Derecho Financiero. Buenos Aires: Abeledo-Perrot. 1997. p. 197.
384 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

viabilizar esse acesso foi desenvolvido pelo Ministério da Saúde o SIS FRON-
TEIRAS – Sistema Integrado de Saúde das Fronteiras, cujo objetivo é promo-
ver a integração de ações e serviços de saúde na região fronteiriça e contribuir
para a organização e o fortalecimento dos sistemas locais de saúde nos Muni-
cípios fronteiriços, os quais, por não serem sujeitos de direito internacional
e não poderem estabelecer relações com outros Países, são celebrados acordos
bilaterais/multilaterais com cláusulas que asseguram a assistência médica e
farmacêutica e tratamentos recíprocos.
A Portaria nº 622, de 23 de abril de 2014, e a Portaria nº 204/GM/MS, de
29 de janeiro de 2007, dispõem sobre o financiamento da implementação das
ações previstas no Sistema Integrado de Saúde das Fronteiras (SIS Fronteiras
- regulado pela Portaria nº 1.120/GM/MS, de 6 de julho de 2005) e sobre o
repasse de incentivo financeiro dado pelo Ministério da Saúde, na forma de
transferência dos recursos federais para as ações e os serviços de saúde, na for-
ma de blocos de financiamento, com o respectivo monitoramento e controle,
por meio do Fundo Nacional de Saúde.
Contudo, há grande diversidade nos países vizinhos no campo de prote-
ção à saúde, não só relativa ao financiamento, que, em geral, prevê a coparti-
cipação do usuário, como em relação à cobertura, extensão dos programas a
qualidade da atenção e da própria rede instalada, onde a distinta especificida-
de da política sanitária e da organização do sistema, dificultam o tratamento
da desigualdade nas formas de acesso aos sistemas de saúde.
Ademais, os entes subnacionais, como Estados e Municípios em áreas de
fronteiras, são os responsáveis pela prestação de saúde dos residentes frontei-
riços. Contudo, há limitação ao tratamento da matéria em âmbito local. Des-
tacando a necessidade de colaboração do Governo federal com os Municípios
brasileiros fronteiriços, Ventura e Fonseca19 destacam que isso não conduz a
uma atuação de política exterior aos Municípios, inclusive porque do ponto
de vista jurídico, a autonomia dos entes municipais tem limites. Entretanto,
é de se reconhecer que os Municípios, ainda que prestem assistência integral
aos residentes fronteiriços, por possuírem gestão das ações e serviços de saúde
em sua área de abrangência, não podem ver seus orçamentos comprometidos
pelo aumento na prestação de saúde de estrangeiros, em face da nova Lei de
Migrações, que garante a mesma atenção à saúde que os brasileiros possuem
aos residentes fronteiriços, mediante um procedimento simplificado de entra-
da no Brasil (regulamentado no Decreto), sem que seja estabelecido quais os
mecanismos financeiros e estruturais que permitam a ampliação da rede de
19
VENTURA, Deisy; FONSECA, Marcela Garcia. La participación de los entes subnacionales en la po-
lítica exterior de Brasil y en los procesos de integración regional. Revista CIDOB d’afers internacio-
nals, n.º 99 (septiembre 2012), p. 55-73. p. 66.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 385
atenção à saúde no Brasil. Em face desses desafios, Ventura e Fonseca chegam 20

a defender a necessidade de criação de mecanismos para alguma participação


dos entes subnacionais no MERCOSUL.
Mesmo com as limitações em termos de autonomia para firmar ações
de colaboração entre autoridades de países limítrofes, encontra-se na literatu-
ra21 relatos de iniciativas de cooperação com outros países especificadas pelos
secretários de saúde de Municípios brasileiros que recebem estrangeiros e bra-
sileiros residentes fronteiriços, tais como, atividades conjuntas para preven-
ção de dengue, AIDS e febre amarela, preparação de calendário unificado de
imunização, campanhas de vacinação, cursos de capacitação profissional em
programas de saúde pública, seminários binacionais em saúde co-financiados,
reuniões conjuntas de conselhos locais de saúde, remoção de pacientes em
urgências, permuta e cessão de material e equipamentos.
Embora essas iniciativas representem mecanismos de integração fronetiri-
ça em matéria de saúde , é de se ressaltar que tais ações não resolvem o proble-
ma gerado pela diversidade de proteção da saúde entre ordenamentos jurídicos
e verdadeira “fuga” de estrangeiros para se utilizar do sistema público de saúde
no Brasil. A solução real passa pelo financiamento viável das ações e dos ser-
viços de saúde que contemplem a população de residentes fronteiriços, uma
vez que, no campo da realidade prática, o sistema público de saúde brasileiro
é largamente utilizado por essa população; e no campo jurídico, a CF/88 já
garantiu aos brasileiros, mesmo aos que moram em países fronteiriços, acesso
universal, integral e gratuito ao sistema de saúde, e a Lei de Migrações conce-
deu tratamento idêntico ao estrangeiro residente fronteiriço ao garantir a esses
o exercício dos atos de sua vida civil no Brasil, inclusive a busca por ações para
promoção do direito à saúde.

20
Como, por exemplo, a Reunión Especializada de Municipios e Intendencias del Mercosur (REMI),
criando uma rede de “Mercocidades” que impulsiona cidades membros a terem seu próprio Conselho
Diretivo a integrar unidades temática e sessões nacionais, adotado apenas no Uruguai, onde o sistema
jurídico permite maior autonomia aos Entes municipais de indicação de componentes em uma represen-
tação regional no Bloco. No Brasil, apenas a Casa Civil indica representantes. Defendendo a atuação do
Uruguai na REMI, Deisy Ventura pontua: “La creación de la REMI significó el cumplimiento del primer
objetivo de la Red, que observa el proceso de integración de los países del Mercosur como un proceso
que debe ir más allá de los gobiernos centrales, porque son los municipios los que poseen el nivel más
descentralizado y están en contacto con la vida cotidiana de los pueblos, idea que se refleja en uno de los
lemas de la Red: «El Mercosur más cerca del ciudadano».”
VENTURA, Deisy. FONSECA, Marcela Garcia. La participación de los entes subnacionales en la políti-
ca exterior de Brasil y en los procesos de integración regional. Revista CIDOB d’afers internacionals,
n.º 99 (septiembre 2012), p. 55-73. p. 67.
21
GIOVANELLA, Ligia; GUIMARÃES, Luisa; NOGUEIRA, Vera Maria Ribeiro; LOBATO, Lenaura
de Vasconcelos Costa; DAMACENA, Giseli Nogueira. Saúde nas fronteiras: acesso e demandas de
estrangeiros e brasileiros não residentes ao SUS nas cidades de fronteira com países do Mercosul na
perspectiva dos secretários municipais de saúde. Cad Saude Publica. 2007;23(2 suppl):251–66.
386 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Se o sistema de saúde brasileiro se dá pela via da cidadania, e abriu-se,


assim, de forma louvável do ponto de vista humanitário, a possibilidade dessa
cidadania ter um conceito regional, uma vez que estrangeiros residentes fron-
teiriços poderão exercer atos de sua vida civil no Brasil, deve-se, então adequar
a estrutura do Sistema Único de Saúde ao novo panorama.
Defende-se, então, que da mesma forma que a Cooperação internacional
tem sido amplamente utilizada no MERCOSUL para ações voltadas à prevenção
e combate a doenças transmissíveis e ainda em questões sanitárias comerciais22,
há, diante da nova Lei de Migrações um largo caminho que pode ser percorrido
em termos de cooperação regional para possibilitar que a prestação de saúde ao
estrangeiro residente fronteiriço seja um ato de fortalecimento do SUS e não de
desgaste, em face do aumento da demanda sem alteração dos recursos.
A recepção dos residentes fronteiriços (brasileiros e estrangeiros não resi-
dentes) enquanto usuários do sistema público de saúde no Brasil ressalta uma
integração dos Países do MERCOSUL na construção de sistemas de saúde que
primem pela mesma universalidade no acesso.
Como o problema de saúde pública não conhece fronteiras e que o fosse
histórico entre o Estado nacional e o mundo é artificial, Dayse Ventura23 infor-
ma que “impõe-se, portanto, a construção de um modo de ver o mundo que
comporte o nacional, mas igualmente as dimensões locais, regionais e transna-
cionais, sem construir falsos antagonismos entre elas.” A relevância de ações de
integração dos sistemas de saúde no MERCOSUL decorre exatamente da cons-
ciência normativa mundial no sentido de reconhecer a necessidade de regular
conjuntamente os problemas que não podem ser resolvidos individualmente.

CONCLUSÃO

O sistema único de saúde no Brasil foi pensado pelo constituinte de


forma verdadeiramente ampla, não podendo ser limitado a realização de con-
sultas, internações e tratamento médico. Ao contrário, o sistema único envol-
ve toda uma gama de atribuições do Estado partindo desde da fiscalização
sanitária realizada nos insumos e alimentos, dentro do país e na fronteira,

22
O MERCOSUL, como bloco econômico, vem fazendo pactuações para a compra conjunta de medica-
mentos de alto custo o, como o Eculizumabe, o Trastuzumabe e o Rituximabe, indicadas para o trata-
mento de artrite reumatóide e câncer, que representa boa parcela das ações judiciais que determinam a
compra desses medicamentos a preços de venda ao particular, no varejo. Disponível em: <http://portal-
saude.saude.gov.br/index.php/cidadao/principal/agencia-saude/18047-paises-vao-criar-plataforma-para
-aquisicao-de-medicamentos)>. Acesso em 16.out.2017.
23
VENTURA, Deisy de Freitas Lima. Uma visão internacional do direito à saúde. In O Direito achado na
rua : Introdução crítica ao direito à saúde. / Alexandre Ber p.nardino Costa ... [et al.](organizadores) –
Brasília: CEAD/ UnB, 2009. p.86.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 387
bem como controle de endemias, vacinação, entre outras atividades eminen-
temente preventivas.
E numa infinidade de elementos que compõe o sistema sanitário brasilei-
ro, importa para o regular funcionamento do sistema, cuidados com a saúde
de pessoas que residem em espaço de fronteira, isso porque além da facilidade
de propagação de doença e outros agravos, já que alguns centros populacionais
contam com menos de 20 km de distância, ainda há um constante intercâm-
bio de pessoas, seja para fins laborais, educacionais, laços afetivos entre outros.
Dessa forma, o princípio da livre circulação de pessoas reafirmado atra-
vés do plano de ação do MERCOSUL tem que vir acompanhado da garantia
da efetivação e respeito aos direitos, notadamente o direito de acesso às ações
e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde.
A assimetria entre nosso sistema sanitário e dos países vizinhos tem sido
um grande desafio na garantia desse direito, notadamente quando se analisa
princípios essenciais do sistema único de saúde, como a universalidade e in-
tegralidade de cobertura e atendimento. Por outro lado, o funcionamento do
sistema sanitário ocorre a partir de responsabilidade compartilhada entre di-
versos entres públicos, embora os municípios por serem gestores imediatos do
SUS acabem por conviver com a realidade de receber uma demanda flutuante
e de difícil previsão, impossibilitando ações mais efetivas de planejamento
operacional e, notadamente, orçamentário.
A União estabeleceu uma forma especifica de financiamento para ga-
rantia do direito à saúde das pessoas que residem em zona de fronteira, o
Programa SIS Fronteiras, contudo, os recursos previstos não têm sido sufi-
ciente, o que compromete a qualidade e eficiência da rede. Outrossim a zona
de fronteira é área sob a jurisdição de mais de um Estado, de forma que o
financiamento pode e deve ser buscado a partir da cooperação internacional.
No âmbito do MERCOSUL, as iniciativas de harmonização das legis-
lações são fracas, resultando em grande diversidade dos países no campo de
proteção da saúde. O Brasil vem avançando em seu direito interno no sentido
de reconhecer a zona de fronteira como espaço para garantia de direitos, evi-
tando discriminações entre iguais mas vizinhos. O que se observa é que de um
lado da fronteira tem-se recursos suficientes para atenção de saúde e do outro
lado não se tem a mesma situação, gerando uma desigualdade territorial para
os cidadãos de um país frente ao do outro, inclusive separados por poucos
metros entre serviços fronteiriços.
Contudo, a distinta gestão das necessidades de saúde na fronteira nos
países que apresentam um sistema sanitário centralizado, no planejamento e
gestão e em outros em que descentralização da gestão e organização dos recur-
sos tem dificultado a cooperação internacional entre países vizinhos visando
objetivos similares que é a universalidade da saúde.
388 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

É desafio para dentro do MERCOSUL social pensar num financiamento


diferenciado da saúde em zona de fronteiras, criando-se um órgão específico
encarregado da temática e harmonização das legislações internas, coordenan-
do o compartilhamento da rede instalada por meio da cooperação internacio-
nal, buscando uma atenção sanitária eficiente, em busca do objetivo comum
que é a universalização do sistema.
Mudança fundamental no tratamento da temática, estabelecendo a área
de fronteira como central no desenho de políticas para consolidar uma cida-
dania regional, seja no estatuto da cidadania ou no plano estratégico de ação
social e financiamento de fundos próprios.

REFERÊNCIAS

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CEAD/ UnB, 2009.
PARTE IV

OS DESAFIOS DO DIREITO
INTERNACIONAL:
OUTROS TEMA RELEVANTES
Capítulo 25
A Atuação Chinesa na América do Sul:
Mecanismos de Inserção e Perspectivas Futuras
Arthur Gustavo Saboya de Queiroz

1. INTRODUÇÃO

Ao final do século XX, muito foi escrito sobre o impacto benéfico que
os países emergentes proporcionariam à economia mundial. Chegado o mo-
mento de consolidação desses Estados, contudo, vários ainda encontram difi-
culdades para firmar posição entre as principais potências mundiais. Não é o
caso da China. O país mais populoso do mundo firmou-se como segundo em
volume de Produto Interno Bruto (PIB), tendo não raro alcançado um cres-
cimento percentual anual de mais de 10%. Passou assim a ser uma verdadeira
potência econômica, apesar dos inegáveis problemas sociais que persistem.
Para alcançar essa posição proeminente, foi necessária a consecução de
um projeto sólido, estável, adequado a um regime de partido único que não se
dispunha a uma abertura econômica. Assim, chegou-se a um sistema generica-
mente intitulado socialismo de mercado.
O socialismo de mercado, latu sensu, consiste em um sistema formalmen-
te socialista, com controle dos meios de produção pelo Estado, ente regulador
da economia. Não obstante, atua financeiramente no comércio internacional,
buscando o lucro que sustentará a sua estrutura administrativa. A economia
mais próxima a adotar esse padrão é sem dúvida a China, país cuja atuação é
analisada nesse trabalho. Não obstante, é possível visualizar elementos de um
socialismo de mercado mesmo em Cuba e na antiga União Soviética.
Dessa forma, atuante na economia mundial, passou a China a enxergar
esse espaço como mais um campo a auxiliar na construção do seu desenvol-
vimento. Buscou, assim, a tratar com mercados estrangeiros de maneira mais
intensa, sobretudo aqueles inseridos em regiões ainda em desenvolvimento,
como é o caso da América do Sul, investindo, sobretudo, no financiamento de
grandes obras de infraestrutura por meio de instituições de fomento. Pretende,
assim, obter um retorno financeiro garantido pelo sucesso desses empreendi-
mentos, de modo a não apenas lucrar com os países dessa região, cuja ascensão
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 391
oferece uma demanda por esses investimentos e potencialidade de benefícios
aos investidores, mas também uma perspectiva de aumento de sua capacida-
de de influência, dado não somente ao reforço nas relações de amizade, mas
também nas relações de dependência que um maciço investimento estrangeiro
acaba por proporcionar.
O presente trabalho se propõe a promover uma análise da atuação da
China na América do Sul, com objetivo maior de visualizar a sua dimensão,
tanto em termos financeiros quanto políticos e sociais. Serão expostas as prin-
cipais semelhanças e diferenças que regem a atuação chinesa na região.
Inicialmente, no primeiro tópico, buscará apresentar uma síntese do sis-
tema econômico e da formação política chinesa, com o fito de embasar as
razões de sua atuação no cenário internacional. Em seguida, na segunda parte,
analisará a inserção da China no espaço já apontado, ressaltando o histórico
de relações entre ambos e em que pontos ela tem ocorrido. Finalmente, ao
final, abordará as perspectivas futuras para a parceria, sem evitar necessárias
críticas à postura chinesa em alguns contextos. Para tanto, o presente trabalho
parte de um método dedutivo, substanciado por uma pesquisa bibliográfica,
pautada na leitura de livros, artigos e dados sobre a China e a América do Sul
e suas dimensões comerciais.
O estudo dos caminhos adotados pelas nações em busca do desenvolvi-
mento consiste em importante seara de estudo de sua política interna. Con-
tudo, frisa-se aqui que a análise de suas relações exteriores não deve ficar em
segundo plano, vistos os efeitos positivos que a arrecadação por meio de inves-
timentos pode proporcionar ao somar-se com àquela decorrente da tributação
para as receitas do Poder Público.

2. A CONSTRUÇÃO DO MODELO CHINÊS

A República Popular da China é um país de destacadas particularidades.


República socialista em pleno século XXI, é regida pelo mesmo Partido Comu-
nista Chinês (PCC) em sistema unipartidário desde a Revolução de 1949. Não
obstante, os dirigentes dessa nação milenar souberam moldar a regência do go-
verno às transformações na ordem econômica mundial, em muito se adequando
aos moldes do capitalismo, apesar do distanciamento do Estado liberal.
Esse tópico tratará da construção do “modelo chinês a partir de três
pontos. Primeiramente, será analisada a construção do Estado chinês, com
enfoque na difícil estabilização de um regime pós monarquia. Entende-se
de grande importância iniciar com esse breve apanhado histórico em razão
da peculiaridade que simboliza o Estado chinês em um mundo pós embate
ideológico da Guerra Fria. É o que mais próximo experimentamos de uma
adaptação do capitalismo ao socialismo, de modo que estudar a formação
392 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

chinesa pode nos permitir compreender que razões possibilitam a sua bem-
-sucedida manutenção.
No segundo ponto, trataremos do modelo chinês de sistema econômico,
ressaltando o diálogo entre o socialismo e o mercado. Esse ponto aborda tema
crucial para essa monografia, pois permite, ainda que brevemente, expor o
funcionamento das nuances de capitalismo na China, e como possibilita uma
ostensiva atuação de intercâmbio econômico em parceria com os continentes
sobre os quais essa monografia também trata.
Finalmente, finalizando a parte, passaremos a estudar de que forma a
atuação da política externa chinesa em prol do investimento em países emer-
gentes pela China se encaixa em sua política desenvolvimentista. Busca-se as-
sim, verificar as contribuições dessa política ao país, tanto no campo econômi-
co, de geração de riquezas, quanto no político, por meio do qual se consolida
o regime no plano internacional.

2.1. A construção do Estado chinês

O século XX desponta como o marco paradigmático do modelo de Es-


tado chinês. Por quatro milênios a nação fora governada por dinastias impe-
riais. Esse sistema tão arraigado teve reforço nos valores do confucionismo.
Confúcio (ou Kong Fuzi), pensador de meados do século VI a.C., buscava a
concretização da harmonia na sociedade a partir de uma correta postura de
seus membros, pautada no altruísmo e na cortesia. Sobre a hierarquia social,
ensinava: “Conhece teu lugar”.1 Nesse contexto, o imperador, ocupante do
posto mais alto da civilização, era a autoridade máxima, não obstante tivesse
mesmo ele que cumprir com probidade os seus desígnios, sob pena de desobe-
diência aos valores locais.
A monarquia, contudo, não resistiu ao século XX. O século anterior fora
palco da dominação estrangeira, provocando conflitos como as duas Guerras
do Ópio (1839-42 e 1856-60), contra a Grã-Bretanha, a Guerra Sino-Francesa
(1883-85), Primeira Guerra Sino-Japonesa (1884-85) e a Revolta dos Boxers
(1899-1900), cujas derrotas acabaram por acentuar as humilhações e ampliar
as concessões aos neocolonialistas e ao expansionista Japão. Enfraquecida,
acabou por ser derrubada em 1912, a despeito de malsucedidas tentativas de
restauração nos anos que se seguiram.
Com a derrubada da Dinastia Qing, contudo, não se seguiu a paz, mas
a instauração de uma república extremamente conturbada. Foi o período
dos Senhores da Guerra, de 1916 a 1928, onde na república restaurada após
brevíssimo retorno monárquico vigia forte fragmentação territorial, quase

1
KISSINGER, Henry. Sobre a China. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. p. 32.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 393
feudal. O país estava agora desintegrado em literalmente centenas de estados
de vários tamanhos, cada um controlado por um Senhor da Guerra e seu
exército particular.2
Com a Expedição do Norte (1926-27) e a retomada dos feudos dos Senho-
res da Guerra, ocorreu a ascensão dos nacionalistas do Kuomintang, dirigidos
pelo general Chiang Kai-Shek. Todavia, a repúblicas dos nacionalistas ainda
não trouxe estabilidade administrativa ao país, dadas as intensas hostilidades
entre estes e o comunistas, interrompidas por alguns anos durante a Segun-
da Guerra Sino-Japonesa (1937-1945). Com a retomada do embate, o Partido
Comunista de Mao Zedong acabou por tomar o poder que mantém até hoje,
limitando a influência do rendido Kuomintang a região de Taiwan.
A proclamada República Popular da China se mantém até hoje. Ape-
sar de períodos de tensão, como o da Revolução Cultural (1966-69) e do
Massacre da Praça da Paz Celestial em 1989, o regime tem sobrevivido de
maneira estável, mesmo quando do rompimento com a União Soviética, até
a atualidade. Dessa maneira, com a estabilização governo unipartidário e do
Estado, foi possível a manutenção do intenso crescimento econômico que
lhe é marcante.
Estabilizada e crescendo ainda fortemente, não há perspectivas de alte-
ração do regime político que a dirige, nem mesmo do sistema econômico.
Não parece exagerado, portanto, apontar o momento atual, iniciado a partir
das reformas de Xiaoping, como seu momento de maior representatividade
no cenário mundial. Apesar de previsível a manutenção de menores taxas de
crescimento do PIB, esta medida faz-se necessária, dada a dificuldade de mover
tão pesadas engrenagens a garantir tão grande produtividade.
Insólito é atestar que a qualidade de gigante econômico decorre da
adoção de um sistema, pode-se dizer, misto entre socialismo e capitalismo.
Uma terceira via, pragmática, moderadamente ideológica, consolidada com
tanta força que restou impossível qualquer tentativa de triturar esse formato
por países rivais, algo recorrente na Guerra Fria, onde o intervencionismo
americano não hesitou em tentar intervir em países como Cuba e Vietnã.
Isso ocorre em razão da China representar uma força, se não equiparável,
pelo menos a mais próxima em relevância dos Estados Unidos, a ponto de
até mesmo se acreditar que a era americana está chegando ao fim, à medida
em que a ordem mundial ocidental é substituída por outra cada vez mais
dominada pelo Oriente.3 Passemos agora a um breve estudo acerca do socia-
lismo com peculiaridades chinesas.
2
LOWE, Norman. Mastering Modern World History. 5. ed. Hampshire: Palgrave MacMillan,
2013. p. 422.
3
NEDAL, Dani; SPEKTOR, Matias (Orgs.). O que a China quer? Rio de Janeiro: FGV, 2010. p. 63.
394 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

2.2. O socialismo com peculiaridades chinesas

A China é um país socialista. É, de fato, um socialismo sui generis, contro-


verso, mas conserva aquele que talvez seja o elemento crucial da definição de
um país como tal: o objetivo expresso de alcançar o estágio comunista.
O termo “socialismo” usualmente é utilizado de modo pouco preciso.
É, muitas vezes, nominado não apenas com a fase prevista como anterior ao
estágio comunista (e muitas vezes confundida com este), mas também relacio-
nado com os grupos socialdemocratas, tão somente reformistas das bases do
capitalismo, sem, contudo, buscarem a sua completa derrubada. Uma delimi-
tação torna-se ainda mais difícil ao se deparar com uma relativa falta de cri-
térios objetivos para definir uma sociedade como socialista. O entendimento
mais evidente, por exemplo, de que uma sociedade socialista é centralizadora,
profundamente intervencionista na economia e dotada de um governo sem al-
ternância de poder não lhe é exclusivo. Há, com efeito, sociedades capitalistas
com tais características, como algumas em que vigem regimes monárquicos,
teocráticos ou ditatoriais. Ademais, enquanto fase de transição, parece per-
feitamente admissível que o socialismo conserve elementos do capitalismo.
Crucial, portanto, se mostra a pretensão do Estado em alcançar o comunismo.
E tal condição a China indubitavelmente mantém, posto que o Partido Comu-
nista jamais afastou tal objetivo.
Apesar da necessária digressão sobre a representação do socialismo na
atualidade, não é somente essa condição que torna a China peculiar. É, na
verdade, o fato de aliar essa qualificação a uma atuação no capitalismo com
status de potência, qualidade em muito diversa dos clássicos Cuba e Coreia
do Norte, do quase esquecido Vietnã e do controverso Laos, todos ainda so-
cialistas de alguma forma inseridos nos moldes da delimitação oferecida no
parágrafo anterior.
A abertura econômica e comercial da China ao mundo exterior foi im-
plementada a partir de 1978, em projeto encampado pelo dirigente Deng Xiao-
ping. O dirigente comunista, perseguido durante a ditadura de Mao e agora
reabilitado, propôs seu programa de reforma com base em Quatro Moderni-
zações: agricultura, indústria, defesa e ciência/tecnologia.4 Assim, no contexto
dessas modernizações, buscou-se promover concessões ao capitalismo e suas
inovações, de modo a competir com as principais potências em termos de
qualidade e quantidade na produção.
Nesse contexto, crucial foi a instalação de Zonas Econômicas Especiais
(ZEE), no início dos anos 80.5 Essas áreas, até hoje existentes, configuram

4
SANTORO, Maurício. Ditaduras contemporâneas. Rio de Janeiro: FGV, 2013. p. 46.
5
POMAR, Wladimir. A Revolução chinesa. São Paulo: Unesp, 2003. p. 148.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 395
locais de maior abertura ao capital estrangeiro, promovida por meio de in-
centivos ao investimento, como redução de impostos, mão de obra barata e
infraestrutura de boa qualidade. Representam, assim, boa parte do Produto
Interno Bruno (PIB) do país.
Essa abertura do regime não se resumiu às ZEEs. Foram criadas também
Zonas de Desenvolvimento Econômico e Tecnológico (ZDET), Novas Áreas
(NA), Zonas de Desenvolvimento de Indústrias de Alta Tecnologia (ZDIAT),
Zonas de Livre Comércio (ZLC), Zonas de Processamento de Exportação
(ZPE), Zonas Fronteiriças de Cooperação Econômica (ZFCE), Zonas de De-
senvolvimento Taiwanês (ZDT) e Zonas de Turismo (ZT). Percebe-se assim a
sofisticação do projeto chinês, buscando alinhar as benesses da manutenção de
nichos de capitalismo em um regime socialista.
Como reflexo dessa postura, o crescimento chinês tem sido vertiginoso.
Se à época da abertura econômica o Produto Interno Bruno chinês fora cal-
culado em cerca de 149,5 bilhões de dólares, passou a 11 trilhões em 2015.6
Esse crescimento, cujo meta articulada por Xiaoping em 1978 propõe oito
duplicações até 2050, almeja atingir o nível de uma nação moderadamente
desenvolvida, com vistas a consagração do socialismo como opção superior
ao capitalismo.7 Assim, só pela prévia superação da pobreza que o caminho
socialista poderia ser implementado.
Não há perspectiva de que os incentivos estatais à dinamização da econo-
mia findem. Essa realidade permite inferir que, nesse modelo chinês, a passa-
gem ao comunismo não implicaria necessariamente em uma drástica remoção
dos mecanismos de geração de riqueza, a despeito das desigualdades econômi-
cas e sociais que estes provocam. O socialismo chinês é, portanto, pragmático.
Alinha-se a elementos capitalistas, ciente da sua condição de regime de tran-
sição, não acabado, afastando os impactos que o mero dogmatismo anticapi-
talista acabaria por ocasionar a um intento de busca pelo desenvolvimento.

2.3. A economia chinesa e a contribuição da política externa na


busca pelo desenvolvimento

É possível dizer que o socialismo com peculiaridades chinesas (traçando


como marco a abertura proposta por Xiaoping) tem sido bem-sucedido na

6
Dados do Banco Mundial. Para consulta, acessar: THE WORLD BANK. World Bank Open Data.
Disponível em <http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.CD?locations=CN&view=chart>.
Acesso em 05 fev. 2017.
7
JABBOUR, E. M. K. Projeto nacional, desenvolvimento e socialismo de mercado na China de hoje.
2010. 389 f. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu-
manas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2010. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/
disponiveis/8/8136/tde-18012011-103155/en.php>. Acesso em 05 jan. 2017. p. 67.
396 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

promoção do desenvolvimento do país. Além da colossal ampliação do Pro-


duto Interno Bruto, os dados do Banco Mundial permitem observar outros
reflexos desse projeto. Desde 78, o crescimento percentual da soma dos bens e
serviços produzidos no país jamais estiveram abaixo de 3,9% (em 1990), tendo
alcançado um pico de 15,1% em 1984, ostentando um crescimento até o pre-
sente ano maior que a média global.8
Algumas considerações são necessárias sobre o funcionamento da eco-
nomia chinesa. A China é um país recebedor de muitos investimentos es-
trangeiros. Isso ocorre por algumas razões, como a já mencionada política
de implementação de Zonas Econômicas Especiais, cujos incentivos fiscais
atraem grandes empreendimentos. Ademais, além de ter salários médios bas-
tante baixos, possui abundante mão de obra.
Tal condição em muito é responsável pela forma como a China tem se de-
senvolvido. Não obstante, apesar de ser importante para a atração dos recursos
financeiros necessários para a promoção dos objetivos do regime, poderia acabar
tornando o país extremamente dependente do capital estrangeiro. Tendo em
vista o perfil ideológico do Partido Comunista, naturalmente protecionista, e
ciente dos riscos da dependência experimentados por país em desenvolvimento
face a uma economia globalizada, onde os Estados mais vulneráveis flexibilizam
sua soberania em prol de outros mais ricos e mesmo de grupos financeiros, fez-
-se necessário buscar meios de ação na economia mundial de forma mais ativa,
como verdadeiro player, atuando na condução dos rumos da economia que lhe
arruinaria o projeto de Estado caso a ela se submetesse. Passou então a República
Popular a atuar na economia globalizada enquanto país investidor, malgrado
ainda possua características de país recebedor de recursos de investimento.
A balança comercial da China, favorável em relação ao resto do mundo,
é outro indicador que reflete a mudança de postura. Em 78, ano novamente
utilizado como marco em função da mudança de postura do regime, o supe-
rávit era relativamente baixo, calculado em 1,72 bilhões de dólares, referentes
aos apurados 5,9 bilhões de dólares em importações e 7,17 bilhões de dólares
em exportações. Em 2014 esses números cresceram de maneira colossal, sendo
2,34 trilhões de dólares em exportações e 1,96 trilhões de dólares em importa-
ções, superávit de quase 40 bilhões de dólares. Esses números fazem da China
o maior exportador mundial, e o segundo maior importador.9 Essa colocação
do país enquanto gigante econômico em boa parte é reflexo do aumento da
importância atribuída a política externa como meio de geração de riquezas.

8
Dados do Banco Mundial. Para consulta, acessar: THE WORLD BANK. World Bank Open Data.
Disponível em <http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.KD.ZG?locations=CN&view=-
chart>. Acesso em 05 fev. 2017.
9
Dados extraídos de: THE OBSERVATORY OF ECONOMIC COMPLEXITY. Trade Balance of Chi-
na (1962-2014). Disponível em: <http://atlas.media.mit.edu/39sswl>. Acesso em 23 fev. 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 397
A ideia de política externa, definida de forma geral como o instrumento
pelo qual um Estado tenta formar seu ambiente político internacional,10 permi-
te, através da atuação no exterior, obter diversos ganhos tanto políticos quanto
econômicos. Os ganhos serão políticos sobretudo quando proporcionarem um
aumento de sua influência na ordem global, seja, por exemplo, por meio da
nomeação de seus nacionais para postos estratégicos de órgãos multilaterais, ou
pela prevalência de suas posições em resoluções de mecanismos de governança
global. Os ganhos econômicos, por sua vez, decorrem sobretudo da formação
do ambiente de negócios decorrente da atuação política desse Estado.
Com efeito, desde o Governo Xiaoping a política externa chinesa tem se
subordinado à estratégia de desenvolvimento do país.11 Nesse nicho, importante
maneira de geração de riqueza utilizada pela China tem sido o investimento em
outros países. Esse investimento, direcionado a países igualmente emergentes,
possibilita a expansão dos negócios das empresas chinesas a novos mercados
consumidores, garantindo assim a manutenção do ritmo de sua atividade eco-
nômica, imprescindível para a continuidade das altas taxas de crescimento do
PIB experimentadas nas últimas décadas. Ademais, permite o retorno do inves-
timento por meio de juros dado ao sucesso dos empreendimentos. Finalmente,
garante o posicionamento estratégico em zonas de recursos naturais, produtos
dos quais a China muito demanda, sendo o país que mais os consome, segundo
o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.
De fato, o comércio exterior chinês é bastante intenso, tendo sido a sua
promoção um componente essencial do seu desenvolvimento.12 A China, por
exemplo, tem como principal produto de importação o petróleo (205 bilhões
de dólares), além de ser grande demandante no mercado internacional de mi-
nério de ferro (73,4 bilhões de dólares).13 Sem o acesso a esses produtos, seu
crescimento acabaria por frear, provocando uma danosa estagnação. Sua pauta
de exportação, a despeito da aos poucos afastada má fama acerca da qualidade,
tem comportado produtos cada vez mais sofisticados, com razoável técnica na
produção, consistindo sobretudo em componentes de eletrônicos. Funciona
na China, por exemplo, a maior fábrica da Foxconn, empresa responsável por
imensa parte da produção de produtos da gigante Apple. Passemos agora a
análise da atuação chinesa no continente africano.

10
BATTISTELA, Dario. Teoria das Relações Internacionais. São Paulo: SENAC, 2014. p. 304.
11
ALVES, A. G. M. P. Os interesses econômicos da China na África. Boletim de Economia e Política Inter-
nacional. Brasília, v. 1, pp. 25-31, 2010. Disponível em: <http://ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/
boletim_internacional/100621_boletim_internacional01_cap5.pdf >. Acesso em 21 fev. 2017. p. 25.
12
GUIMARÃES, Alexandre Queiroz. A Economia Política do Modelo Econômico Chinês: o Estado, o
mercado e os principais desafios. Revista de Sociologia e Política. Curitiba, v. 20, n. 44, p. 103-120,
2012. Disponível em: <http://bit.ly/2mdQtFJ>. Acesso em 22 fev. 2017. p. 106.
13
Dados de 2014, extraídos de: THE OBSERVATORY OF ECONOMIC COMPLEXITY. China. Dispo-
nível em: <http://atlas.media.mit.edu/pt/profile/country/chn/>. Acesso em 23 fev. 2017.
398 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

3. A ATUAÇÃO DA CHINA NA AMÉRICA DO SUL

A presença da China na América do Sul se manifesta de uma forma


distinta à maneira que ocorre em outros pontos de inserção chinesa, como
notoriamente ocorre no continente africano. Isso decorre de algumas parti-
cularidades. Primeiramente, apesar da inquestionável necessidade de maior
desenvolvimento, tema muito caro aos países sul-americanos, é senso comum
de que este continente possui desenvolvimento razoável. Possui boa tecnolo-
gia, muitas indústrias, sólidas pesquisas, aceitável nível de educação média etc.
Ademais, os Estados dessa região do globo tendem a ser mais protecionistas,
visando a evolução da indústria local em detrimento do enriquecimento de
multinacionais estrangeiras, de modo que a política de exportação não poderia
prosperar sem uma reanálise da conjuntura.
A atuação da América do Sul eem termos de política externa tende também
a ser bastante ideológica, dado ao período de dominação colonial e a influência
por vezes prejudicial que os Estados Unidos passaram a exercer no pós-indepen-
dência. Assim, o diálogo com uma potência extracontinental tende a ser mais
reticente, demandando maior equiparação, sobretudo no que diz respeito a paí-
ses representativos como Brasil e Argentina. Nesse ponto, também é importante
apontar a entrada na China em zona de influência tradicionalmente americana,
algo que por si já demanda maior cálculo, sob pena de provocar tensões.
Apesar da similaridade cultural que liga os países da América do Sul aos
situados na América Central e mesmo no Norte (caso do México), optou-se
aqui por delimitar o estudo à América do Sul em razão de a China de fato
atuar nessa região com interesse especial. Como especulação para essa posição,
parece correto apontar o reduzido mercado consumidor e a menor quantidade
de recursos naturais no Centro, além da ligação que o México já possui com
os Estados Unidos, onde um avanço ainda que amistoso com esse país poderia
ser interpretado pelos americanos de modo ameaçador dada a proximidade
territorial (como o exemplo de Cuba e União Soviética na Guerra Fria).
A despeito das ressalvas necessárias a especificidade de cada continente, as
parcerias entre China e América do Sul são bastante destacadas, igualmente ba-
seadas na ideia de win-win, e, como veremos, capazes de causar grande impacto
na ordem global. Assim, esse capítulo iniciará pelo contexto da parceria entre
ambos, seguindo também pelos ganhos efetivos e as perspectivas de ganhos
com essa coligação.

3.1. O contexto da parceria China-América do Sul

O contexto da parceria formada entre a China e os países da América La-


tina guarda diversas interpretações. Ferchen destaca as principais análises dessa
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 399
coligação: para a primeira intepretação, a relação consistiria essencialmente
como enfoque na exportação de recursos naturais abundantes da América
Latina para a China, deles um forte demandante. Assim, haveria um efeito
positivo para ambos, complementar. Para outros estudiosos, haveria, na verda-
de, uma nova dependência latino-americana face à uma potência estrangeira,
visto que reforçaria a pauta de exportações do continente como baseada em
commodities, algo que se tem buscado deixar para trás.14
Decerto, existe uma forte inserção econômica da China na América do
Sul. Contudo, o que lhe é mais peculiar é, na verdade, o seu componente ideo-
lógico, inserido na noção de parceria Sul-Sul. Notoriamente, a China posicio-
na-se enquanto principal antagonista à superioridade econômica dos Estados
Unidos. Nesse sentido, encontra forte simpatia das nações sul-americanas.
A ideia de libertação nacional e de autonomia sempre foram temas extre-
mamente caros aos países sul-americanos. Tal fato decorre de séculos de domi-
nação colonial pautada na exploração das riquezas naturais, além do genocídio
dos povos locais. Alcançada a independência dos países europeus, veio a depen-
dência e a interferência estadunidense, através da Doutrina Monroe e do Coro-
lário Roosevelt. Tais fatos, acrescentados à influência nos golpes militares do
século XX, até hoje provocam intenso ressentimento contra os Estados Unidos,
a despeito de esse ainda figurar como um parceiro comercial crucial de todos,
mesmo da polêmica Venezuela. Ao mesmo tempo, a ascensão chinesa, especial-
mente marcante nos anos 1990, tem propiciado os argumentos realistas de que
a ordem unipolar de supremacia norte-americana está levando a uma coalizão
anti-hegemônica liderada pela China e de que este país está aumentando sua ca-
pacidade econômica e militar para competir em pé de igualdade com os Estados
Unidos.15 Assim, a perspectiva do surgimento de uma nação amiga, capaz de ri-
valizar em poder com os americanos, e interessada em contribuir de fato para o
desenvolvimento da região, sem explorá-la, agrada bastante ao imaginário local.
Interessantes iniciativas inseridas nesse contexto de antagonismo foram
capitaneadas pela China e por países da América do Sul. A mais em voga
para nós é o BRICS, já mencionado em capítulo anterior. Apesar da recente
guinada conservadora na política externa brasileira, continua sendo um bloco
do qual se tem grandes perspectivas, visto que todos os seus componentes pos-
suem forte representatividade em suas regiões, do qual Brasil e China fazem
parte. Nesse sentido, o Novo Banco de Desenvolvimento (New Development

14
FERCHEN, Matt. As relações entre China e América Latina: impactos de curta ou longa duração? Re-
vista de Sociologia e Política. Curitiba, v. 19, n. suplementar, p. 105-130, 2011. Disponível em: <http://
www.scielo.br/pdf/rsocp/v19s1/08.pdf>. Acesso em 02 mar. 2017.
15
FOOT, Rosemary; HURRELL, Andrew; SOARES DE LIMA, M. R.; HIRST, Mônica; MACFARLA-
NE, Neil; NARLIKAR; Amrita. Os Brics e a Ordem Global. Rio de Janeiro: FGV, 2014. p. 125.
400 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Bank), também chamado de Banco dos BRICS se propõe, por exemplo, como
uma alternativa ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional, ins-
tituições onde os Estados Unidos possuem poder de voto bastante amplo.
A ideia de uma China forte agrada, portanto, os países da América do Sul.
Não obstante o ganho político e a relevância econômica, nesse último aspecto al-
guns desgastes passam a ser sentidos. Esses atritos decorrem da difícil concorrência
com os produtos chineses, produzidos a baixíssimo custo, prejudiciais, portanto,
para o desenvolvimento das indústrias locais. Apesar disso, e com base no intenso
aprofundamento dos laços, os acordos vem se intensificando, de modo que anali-
saremos agora os ganhos que ensejam a manutenção desses acertos.

3.2. Os ganhos da América do Sul

A China tornou-se a principal parceira comercial da grande maioria dos


países sul-americanos. No caso do Brasil, por exemplo, foram os chineses os
principais importadores (40,9 bilhões de dólares, 18% do exportado pelo Bra-
sil), e exportadores (37,2 bilhões de dólares).16 O mesmo ocorre com países
como Chile (com 18,9 bilhões de dólares exportados para a China, 25% de
todos os produtos exportados pelos chilenos, e 14,8 bilhões importados), do
qual também é o principal parceiro, e Argentina, da qual é o segundo país
em volume de importações e exportações. Como regra, a balança comercial
desloca-se favoravelmente para os americanos do sul.
Javier Vadell tece importantes críticas no sentido de o relacionamento ocor-
rer em um padrão próximo ao Norte-Sul. Denominando esse padrão de Consenso
do Pacífico, ensina que, embora no curto prazo a China estimule o crescimento
da região, esse consenso traria implicações diferenciadas para o desenvolvimento
dos países que possuem um setor industrial importante, como Brasil e Argentina,
e aqueles que não o possuem, citando Chile e Peru como exemplos.17
No campo dos investimentos, a América do Sul em muito tem se bene-
ficiado. Estima-se que a China tenha concedido empréstimos no valor aproxi-
mado de US$ 86 bilhões a países da América Latina desde 2005. Esse montante
é mais alto que o conjunto de empréstimos concedidos pelo Banco Mundial,
o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco de Exportação-
-Importação dos Estados Unidos (US Ex-Im Bank) nesse mesmo período.18

16
Dados de 2014, extraídos de: OBSERVATORY OF ECONOMIC COMPLEXITY. Brazil. Disponível
em: <http://atlas.media.mit.edu/en/profile/country/bra/>. Acesso em 02 mar. 2017.
17
VADELL, Javier Alberto. A China na América do Sul e as implicações geopolíticas do Consenso do
Pacífico. Revista de Sociologia e Política. Curitiba, v. 19, n. suplementar, p. 57-79, 2011. Disponível
em: <http://www.scielo.br/pdf/rsocp/v19s1/06.pdf>. Acesso em 02 mar. 2017.
18
GALLAGHER, Kevin P; IRWIN, Amos; KOLESKI, Katherine. Os novos bancos em cena: financia-
mentos chineses na América Latina. Informe: Diálogo interamericano. Disponível em: <http://www.
ase.tufts.edu/gdae/Pubs/rp/GallagherNewBanksPortuguese.pdf>. Acesso em 03 mar. 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 401
Bastante relevante é o investimento chinês no setor de hidrocarbonetos
da região, recurso onde Brasil e Venezuela possuem relevância. Nesse sentido,
a Corporação Nacional de Petróleo da China (CNPC), maior companhia pe-
trolífera chinesa, e a Companhia Petroquímica da China (SINOPEC), segunda
maior empresa energética do país, vem mantendo acordos de exploração e
desenvolvimento de campos de petróleo e gás natural no Brasil, na Argentina,
no Equador, na Venezuela, Colômbia e no Peru desde a década passada, apos-
tando no crescimento percentual da produção nessas regiões em comparação
com o resto do mundo.19
Muitas dessas parcerias são acertadas através de diálogos multilaterais. A
China é membro observadora da Organização dos Estados Americanos (OEA)
desde 2004. Ademais, tem buscado uma aproximação com a Comunidade dos
Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), grupo que exclui Estados
Unidos e Canadá, através de instrumentos como o foro CELAC-China.20
O Fórum CHINA-CELAC (FCC) foi estabelecido em 17 de julho de 2014,
tendo sua primeira reunião ministerial acontecido nos dias 8 e 9 de janeiro de
2015, em Pequim, tendo previsão para a sua próxima reunião em janeiro de 2018,
no Chile. Tem como objetivo promover o desenvolvimento de seus componen-
tes com base na igualdade, no benefício mútuo e no desenvolvimento comparti-
lhado.21 Em sua reunião ministerial, importante documento foi emitido: o Pla-
no de Cooperação dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos e China, com
planejamento para o quinquênio 2015-2019. Mediante o Plano de Cooperação
foram fixadas as áreas prioritárias de atuação conjunta, alcançando 13 pontos,
quais sejam: política e segurança, assuntos internacionais, comércio, inversão e
finanças, infraestrutura e transportes, energia e recursos naturais, agricultura, in-
dústrias, ciência e tecnologia, cooperação aeroespacial, educação e capacitação de
recursos humanos, cultura e esportes, imprensa, meios de comunicação e edição,
e turismo, proteção ambiental, gestão de risco de desastres naturais e mitigação de
calamidades naturais.22 São áreas estratégicas para o desenvolvimento dos países da
América do Sul, pontos nos quais a China em muito cresceu, possibilitando assim
um compartilhamento de experiências bastante promissor.

19
SOUZA, L. S. Os investimentos da China no setor de hidrocarbonetos da América do Sul. Conjuntura
Austral. Porto Alegre, v. 2, n. 3-4, p. 24-30, 2011. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/index.php/Con-
junturaAustral/article/view/18502/10933>. Acesso em 03 mar. 2017.
20
PINI, A. M. A crescente presença chinesa na América Latina: desafios ao Brasil. Boletim de Economia
e Política Internacional. Brasília, v. 21, p. 21-31. Disponível em: <http://repositorio.ipea.gov.br/bits-
tream/11058/6473/1/BEPI_n21_Crescente.pdf>. Acesso em 03 mar. 2017.
21
FÓRUM CHINA-CELAC. ABC sobre el Foro China-CELAC. Pequim, 2016. Disponível em: <http://
www.chinacelacforum.org/esp/ltjj_2/P020161207457618108481.pdf>. Acesso em 03 mar. 2017.
22
FÓRUM CHINA-CELAC. Plan de Cooperación de los Estados Latino-Americanos y Caribeños
– China (2015-2019). Pequim, 2015. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_integra-
cao/docs_CELAC/PLCOOP.2015ESP.pdf>. Acesso em 03 mar. 2017.
402 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

3.3. Os ganhos da China

A pauta de importações da China no que tange à América do Sul cons-


titui-se basicamente de recursos naturais, como o cobre chileno e paraguaio,
e insumos alimentícios, tais quais os grãos de soja brasileira e argentina. Ade-
mais, exporta, em troca, produtos de maior valor agregado, como equipamen-
tos eletrônicos.
No âmbito comercial, sem dúvidas a aproximação tem sido bastante van-
tajosa para os chineses. Em princípios de 2011, a Comissão Econômica para a
América Latina e o Caribe (CEPAL) da Organização das Nações Unidas publi-
cou um informe intitulado: China e América Latina: para uma nova fase do
vínculo econômico e comercial, no qual revelou as seguintes cifras: O volume
do comércio entre a América Latina e a China cresceu 1.119 % entre os anos
2000 e 2010, levando a China a se converter no sócio mais dinâmico da região.23
Para a China, é estratégico garantir que a América Latina possa cumprir seu
papel como provedora de commodities.24 Assim, a china vem demandante forte-
mente esse tipo de produto. Analisemos mais especificamente os valores envolvi-
dos. O Brasil, por exemplo, em 2016, exportou para a China o equivalente a 685
milhões de dólares em minérios de ferro, 672 milhões em soja e 460 milhões em
óleos brutos de petróleo.25 Por sua vez, importou 917 milhões de dólares em má-
quinas, aparelhos e materiais elétricos, e 653 milhões em instrumentos e máquinas
mecânicas.26 A China escoa, portanto, a sua produção, repleta de materiais de ra-
zoável valor agregado, e adquire matérias primas essenciais para a sua manutenção.
É, portanto, um excelente negócio para o país manter essa inserção.
Aspecto pouco explorado é a existência de investidores sul-americanos
investindo na China. Segundo o Ministério do Comércio da China, de 2000
a 2010, US$ 572,5 milhões foram investidos por empresas brasileiras no país,
representando apenas 0,04% do estoque de investimentos estrangeiros no país
asiático. Entretanto, anúncios recentes (2011- 2012) de empresas como BRF
e Marfrig, com projetos de distribuição e planos de abertura de fábricas em

23
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUISTA FILHO. Faculdade de Filosofia
e Ciências – Campus Marília. China e América Latina: encontro de interesses. Disponível em: <ht-
tps://www.marilia.unesp.br/Home/Extensao/BRICs/china.pdf>. Acesso em 03 mar. 2017.
24
TROYJO, Marcos. O que os chineses querem no Brasil e na América Latina? Instituto Brasileiro de
Executivos de Finanças de São Paulo. 26 de agosto de 2015. Disponível em: <http://www.ibefsp.com.
br/artigos/o-que-os-chineses-querem-no-brasil-e-na-america-latina/>. Acesso em 03 mar. 2017.
25
Dados extraídos de: CONSELHO EMPRESARIAL BRASIL-CHINA. Pauta de Exportações. Dispo-
nível em: <http://www.cebc.org.br/pt-br/dados-e-estatisticas/comercio-bilateral/pauta-de-exportacoes>.
Acesso em 03 mar. 2017.
26
Dados extraídos de: CONSELHO EMPRESARIAL BRASIL-CHINA. Pauta de Importações. Dis-
ponível em: <http://www.cebc.org.br/pt-br/dados-e-estatisticas/comercio-bilateral/pauta-de-importa-
coes>. Acesso em 03 mar. 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 403
território chinês, de aproximadamente US$ 250 milhões, sugerem um novo
impulso nesta relação.27 Alguns setores onde o mercado local é bastante recep-
tivo a produtos em que a América do Sul em geral possui expertise são carne
(bovina, suína e de frango), soja, café e suco de laranja.
A coligação com determinados países é bastante estratégica, e mesmo
diversificada. No caso da Argentina, por exemplo, chamou atenção o anda-
mento da construção de uma base espacial na Patagônia. A China também é
parceira do Brasil na construção de um satélite de observação.28 Com o Chile,
vigora um Tratado de Livre Comércio desde 2006.29 O mesmo acontece com
o Peru, desde 2010.30
São boas também as perspectivas de parceria no contexto das Nações
Unidas. Na medida em que os países sul-americanos foram importantes para
garantir o ingresso da China na Organização Mundial de Comércio, estes
também podem garantir importantes conquistas no Conselho de Segurança
da maior organização internacional. Tendo em vista a necessidade de aprova-
ção de resolução no Conselho de Segurança por 9 de seus 15 membros, onde
atualmente três, Uruguai, Bolívia e Venezuela, são sul-americanos, faz-se desde
já um bloco com boas perspectivas de aprovação de medidas do seu interesse
(ainda mais coligados com os quatro países africanos que o compõe).
Assim, a China muito ganhou e ainda deve muito ganhar em termos finan-
ceiros com a aproximação promovida com a América do Sul. Se ainda restam
incertezas acerca dos benefícios políticos, esses são esperados na medida em que
temas de maior impacto mundial forem à tona das discussões multilaterais, ten-
do em vista a tendência de os países desse subcontinente buscarem um parceiro
protagonista a defender seus interesses em oposição às potências do Norte.

4. PERSPECTIVAS FUTURAS SOBRE AS RELAÇÕES CHINA-


AMÉRICA DO SUL

Economicamente, os interesses da China em relação a América do Sul


estão atrelados quase que essencialmente a produtos primários, basicamente

27
AGÊNCIA BRASILEIRA DE PROMOÇÃO DE EXPORTAÇÕES E INVESTIMENTOS (APEX);
CONSELHO EMPRESARIAL BRASIL-CHINA. Oportunidades de comércio e investimento na
China para setores selecionados. 2015. Disponível em: <http://www.cebc.org.br/sites/default/files/
pesquisa_cebc_-_apex_versao_final-oficial.pdf>. Acesso em 03 mar. 2017.
28
SPUTNIK NEWS. Brasil e China retomam projeto de satélite a ser lançado em 2018. 30 de dezem-
bro de 2015. Disponível em: <https://br.sputniknews.com/brasil/201512303196978-brasil-china-reto-
mam-projeto-satelite-2018/>. Acesso em 04 mar. 2017.
29
CHINA FREE TRADE AGREEMENT NETWORK. China-Chile Free Trade Agreement Overview.
2006. Disponível em: <http://fta.mofcom.gov.cn/topic/enchile.shtml>. Acesso em 04 mar. 2017.
30
CHINA FREE TRADE AGREEMENT NETWORK. China-Peru Free Trade Agreement Overview.
2006. Disponível em: <http://fta.mofcom.gov.cn/topic/enperu.shtml>. Acesso em 04 mar. 2017.
404 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

minérios, derivados de petróleo e soja. Se por um lado a exportação desses


produtos por países sul-americanos lhes é benéfica, visto que são seus principais
produtos voltados para o mercado externo, acaba mantendo a dependência des-
ses países à produção de bens de baixo valor agregado, prejudicando o seu desen-
volvimento industrial. Nesse sentido, a China também se mostra uma parceria
importante, já que financia projetos de desenvolvimento industrial, científico
e tecnológico, conforme ponto do Plano de Cooperação dos Estados Latino-
-Americanos e Caribenhos e China. Um exemplo nesse sentido é a Ferrovia
Transoceânica, por qual se busca ligar os oceanos Atlântico e Pacífico, do Brasil
ao Peru, obra a ser financiada por meio de recursos do Banco Asiático de Inves-
timento em Infraestrutura (Asian Infrastructure Investiment Bank, AIIB).
Politicamente, a parceria também tem se mostrado válida, sobretudo no
que diz respeito a uma polarização face aos Estados Unidos. Restam, contudo,
algumas dúvidas à forma como as parcerias no âmbito dos órgãos multilaterais
avançarão, sobretudo em relação ao Brasil. O Brasil nunca reconheceu formal-
mente, como esperado, o status de economia de mercado à China, condição
que facilita a atuação do país asiático na Organização Mundial de Comércio
(OMC). Ademais, a despeito do estabelecimento do Novo Banco de Desen-
volvimento, a mudança de governo país, supostamente menos ideológica em
sua política externa, parece ter arrefecido o avanço dos BRICS, iniciativa que
se mostrava capaz de oferecer algum incômodo à ordem global estabelecida,
dado ao peso econômico e representatividade de seus membros. Será assim
necessário ainda algum tempo para acompanhar a evolução dessa parceria,
cujos liames parecem menos fortes que aqueles que unem China e África, sem
negar, contudo, que bons frutos já foram alcançados.

CONCLUSÃO

Procurou-se apresentar alguns elementos caracterizadores da ação chinesa


na América do Sul. É perceptível a especificidade de sua organização econô-
mica, o socialismo de mercado. Nesse modelo, as atividades comerciais são
amplamente reguladas pelo Estado, cujo direcionamento a elas aplicado tem
sido muito bem sucedido em prospectar recursos para o país. Esse sucesso
se materializa no constantemente alto Produto Interno Bruto do País, e no
impacto que a China representa na balança comercial de muitos países em
desenvolvimento (como o Brasil, de quem é o principal parceiro).
O ganho chinês não é somente é econômico, mas também político. Em
uma sociedade global, conectada, a influência financeira possibilita a formação
de parcerias estratégicas no plano multilateral. É um exemplo nesse sentido,
como mencionado, o Fórum China-CELAC. Tais ações possibilitam a conse-
cução de assuntos comuns a seus membros no quadro das Nações Unidas. São
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 405
claros os benefícios tanto para a China quanto para os países sul-americanos.
Persiste, contudo, o constante desafio de manter essa parceria em termos de
ganhos mútuos. O estabelecimento de esferas de influência não encontra mais
respaldo na atual conjuntura política internacional. É sempre por meio de
parcerias equânimes que os Estados devem dialogar.

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AGÊNCIA BRASILEIRA DE PROMOÇÃO DE EXPORTAÇÕES E INVESTIMENTOS (APEX); CONSELHO
EMPRESARIAL BRASIL-CHINA. Oportunidades de comércio e investimento na China para setores sele-
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Capítulo 26
Rui Barbosa e a Defesa do Princípio da
Igualdade Entre os Estados na
Conferência da Paz de 1907
Mayna Cavalcante Felix

1. INTRODUÇÃO

O pensamento vanguardista de Rui Barbosa explica porque até os dias


atuais, quase um século após sua morte, seus discursos ainda são lembrados e
citados como precursores de direitos e princípios hoje já consolidados. Nas-
cido em 1849, em Salvador, foi jurista, advogado, jornalista, político, depu-
tado provincial, deputado geral, senador, ministro, quatro vezes candidato à
presidência, diplomata, escritor, atuando, portanto, em diferentes áreas do
conhecimento.
No plano interno, foi grande apoiador da abolição da escravatura, a qual
chamava de verdadeira abominação. Também se dedicou à luta pelo voto di-
reto, pois, segundo ele, a eleição indireta teria por base o pressuposto de que o
povo é incapaz de escolher acertadamente os deputados1.
Grande defensor da igualdade não somente entre os Estados, mas tam-
bém entre os indivíduos tomou forte posicionamento, em favor de candidata
à carreira diplomática, que teve sua admissão ao concurso contestada pelas
autoridades. Com a ajuda da defesa de Rui, Maria José de Castro tornou-se a
primeira mulher diplomata do país, no ano de 1918.
Rui Barbosa também se posicionou contra a injusta condenação do mi-
litar francês de origem judaica, Alfred Dreyfus, acusado de traição e espiona-
gem em uma França militarista e antissemita. Foi o primeiro a publicamente
defender o capitão, no artigo intitulado “O Processo do Capitão Dreyfus”,
publicado no Jornal do Commercio. Neste mesmo artigo, Barbosa já critica a
justiça como espetáculo, afirmando que desonram a pátria as contorções de
um patriotismo histérico, que antepõe a popularidade à justiça2.
1
BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa. Vol. II. Tomo II. Rio de Janeiro: Ministério da
Cultura, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1987, p. 249.
2
BARBOSA, Rui. “O Processo do Capitão Dreyfus” in Cartas de Inglaterra. Rio de Janeiro: 1896.
P. 10.
408 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Sua atuação, entretanto, não se resumiu ao plano interno. Além de che-


fiar a delegação brasileira na Segunda Conferência da Paz, em Haia, sobre a
qual nos debruçaremos a seguir, Rui Barbosa atuou como Embaixador Ex-
traordinário e Plenipotenciário do Brasil em Buenos Aires, durante a celebra-
ção do primeiro centenário da independência argentina.
Nesta oportunidade, dedicou-se à defesa do direito internacional e de uma
identidade própria para a diplomacia brasileira comprometida com o princípio
da igualdade entre os Estados e a resolução pacífica dos conflitos. Em discurso
realizado na Faculdade de Direito de Buenos Aires por ocasião do recebimento
do título de Professor Honoris Causa3, o brasileiro fez duras críticas ao que deno-
minou de neutralidade inerte e surda-muda dos países subdesenvolvidos.
Para ele, com a internacionalização crescente dos interesses nacionais,
com a penetração mútua entre as nacionalidades, com a interdependência en-
tre as nações, a discussão sobre as questões de guerra não poderia cingir-se ao
redor dos Estados com maior poderio militar e econômico.
O jurista defendeu uma orientação pacificadora da justiça internacional,
na qual todos os países teriam iguais direitos a voto quanto aos rumos da guer-
ra, visto esta ser uma situação que afeta o mundo como um todo. Vislumbra-se
aí mais uma situação em que Rui se posiciona a favor da igualdade entre os
Estados, no plano internacional. Vale dizer que, quando desse discurso, em
1916, ainda estava em curso a Primeira Guerra Mundial, que se iniciou sete
anos após o término da II Conferência da Paz.
É tarefa difícil definir em qual área ele teria deixado sua maior contri-
buição, entretanto percebe-se pelo breve apanhado aqui feito de suas ideias,
que estas sempre estiveram envoltas nos conceitos de justiça e igualdade. Foi
imbuído dessas ideias que Rui Barbosa se fez presente na Segunda Conferência
da Paz, causando desconforto às grandes soberanias da época que não viam
a igualdade com bons olhos, especialmente em função do contexto histórico
vivido no momento.

2. CONTEXTO HISTÓRICO E POLÍTICO

A Segunda Conferência da Paz, em Haia, ocorre oito anos após a primei-


ra, realizada em 1899, na qual foram feitos avanços significativos no sentido
da delimitação de regras de direito internacional humanitário. Nesta Primeira
Conferência da Paz, à qual compareceram delegados de 26 países, foi aprova-
da, dentre outros documentos, a Convenção para a Solução Pacífica de Con-
flitos Internacionais.

3
VISENTINI, Paulo Fagundes. “A Águia de Haia”: Rui Barbosa Diplomata. In Rui Barbosa: uma
personalidade multifacetada. Brasília: FUNAG, 2012. P. 53.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 409
Apesar dos importantes passos no campo da solução amistosa de contro-
vérsias e limitação aos meios e métodos de combate, a Primeira Conferência não
foi bem sucedida no seu escopo inicial de frear a corrida armamentista. Com
relação a isso, a Ata Final cingiu-se a declarar que a Conferência acreditava que
a restrição dos gastos militares, os quais representavam um fardo para o mundo,
seria extremamente desejável para o bem-estar material e moral da humanidade4.
O cenário mundial passava então por um período de polarização, for-
mando-se uma divisão cada vez mais clara entre os Estados mais fortes e os
mais fracos. Nesse período, batizado por Eric Hobsbawn, como a “era dos
impérios”5, o imperialismo das grandes potências acabou por gerar conflitos
entre estas, surgindo grandes rivalidades, que culminaram posteriormente com
a Primeira Guerra Mundial.
O Brasil, apesar de convidado para comparecer à Primeira Conferência,
declinou do convite. Em nota assinada pelo representante brasileiro em São
Petersburgo, o país informou que passava por um período de instabilidade
interna, por isso sua ausência, mas reforçou seu compromisso com a reorgani-
zação das forças militares com vistas a um fim pacífico.
No contexto do continente americano, o imperialismo mudava de rou-
pagem, visto que não existiam muitas superpotências para disputar território,
como acontecia no caso europeu. Nas Américas, havia apenas uma grande
potência mundial, os Estados Unidos, que exerciam grande influência sobre
as demais nações daquele continente.
O então presidente norte-americano, Theodore Roosevelt, reavivando a
Doutrina Monroe, conhecida pela célebre frase “a América para os america-
nos”, desenvolve o chamado Corolário Roosevelt, procurando dessa forma jus-
tificar a política de coerção desenvolvida contra os Estados latino-americanos6.
O corolário representou o marco inicial de um período de controle di-
reto pelos Estados Unidos sobre as demais nações americanas. É certo que,
ao fazer uso dessa doutrina, Washington procurava assegurar sua influência
exclusiva sobre o continente.
Além disso, os Estados Unidos se firmavam como uma grande liderança
mundial, demonstrando que, através de sua supervisão, as nações americanas
conseguiam preservar a ordem pública e manter seus compromissos em dia.

4
Hague Peace Conference. The Proceedings of the Hague Peace Conferences – The Conference of
1899. Oxford University Press: New York, 1920. P. 233
5
HOBSBAWN, Eric J. A Era dos Impérios. 13ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011, p. 583.
6
“O conceito de proteção do hemisfério contra agressões extracontinentais, cerne daquela doutrina, foi retrabalhado
pelo então Presidente norte-americano, de forma que desse justificativa à política de coerção contra os Estados
latino-americanos. Como contrapartida, os Estados Unidos garantiram à Europa que as nações latinas da América,
sob sua supervisão, preservariam a ordem pública e manteriam seus compromissos em dia.”. BUENO, Clodoaldo;
CERVO, Amado Luiz. História da Política Exterior do Brasil. 3 ed. Ed. UnB: Brasília, 2008, p. p. 180 e 181.
410 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

A diplomacia brasileira, ciente do importante papel que os Estados Uni-


dos desempenhavam no cenário global, procurou estreitar seus laços com esse
país. Existia, à época, o que Bradford Burns denominou de aliança não escrita7
entre ambos os países, que se apoiavam mutuamente.
O Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores do Brasil entre
1902 e 1912, rápido percebeu que os Estados Unidos estavam destinados a ser
uma grande potência mundial e, por essa razão, buscou fazer essa aliança não
formalizada com aquela nação, num modelo de política externa que passou a
ser denominado de americanismo pragmático8.
O Brasil atravessava um momento importante para suas relações inter-
nacionais, visto que procurava definir seu lugar dentro da América Latina e
do mundo. Para isso, precisava fortalecer as instituições internas, a fim de que
pudesse buscar o estabelecimento de uma política externa própria e autônoma.
Nesse contexto, de extrema importância para o Brasil a participação em uma
conferência internacional.
Percebe-se que o momento em que foi convocada a Segunda Conferência
da Paz não era particularmente propício para a difusão de um princípio da
igualdade jurídica entre os Estados. Num mundo imperialista, em que poucos
fortes dominavam muitos mais fracos, onde havia clara predominância da for-
ça sobre o Direito, a ideia de voz equânime para todas as nações, independente
de poderio militar e econômico, parecia utópica.
Daí a importância da contribuição de Rui Barbosa, nesse contexto his-
tórico, inserindo seus ideais de igualdade e mostrando às grandes potências
que os países subdesenvolvidos não iriam se sujeitar indefinidamente a seus
desmandos. Sobre isso, se tratará a seguir.

3. A SEGUNDA CONFERÊNCIA DA PAZ DE 1907

A Primeira Conferência Internacional de Haia de 1899, e assim também


a Segunda de 1907 ficaram conhecidas, por inspiração da opinião pública,
como Conferências da Paz. Isso se deu, pois ambas as conferências tiveram
como lastro instigador a ideia de paz, defendida pelos movimentos pacifistas
do século XIX9.

7
BURNS, Bradford. A aliança não escrita: o Barão do Rio Branco e as relações Brasil - Estados
Unidos. Rio de Janeiro: EMC, 2003.
8
RICUPERO, Rubens. “O Brasil, América Latina e os EUA desde 1930: 60 Anos de uma Relação
Triangular” in Visões do Brasil: Ensaios sobre a História e a Inserção Internacional do Brasil. Ed.
Record: Rio de Janeiro, 1995.
9
LAFER, Celso. Conferências da Paz de Haia (1899 e 1907). Disponível em < http://cpdoc.fgv.br/si-
tes/default/files/verbetes/primeira-republica/CONFER%C3%8ANCIAS%20DA%20PAZ%20DE%20
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Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 411
Como visto acima, o mundo passava por um momento de intensa pola-
rização, por essa razão optou-se por não se realizar as Conferências em algu-
ma cidade das grandes potências, pois além de haver o perigo de influências
políticas, a escolha do local poderia acabar por gerar conflitos. Diante disso,
decidiu-se por realiza-las, na Holanda, que era vista como um país neutro.
Assim, em meados de 1907, o Brasil recebe o convite formal para se fazer
presente na Segunda Conferência da Paz, em Haia, convocada pelo então czar da
Rússia, Nicolau II, atendendo a proposta do presidente norte-americano Theo-
dore Roosevelt, que respondia aos anseios dos movimentos pacifistas da época.
Nesta conferência, participaram 44 (quarenta e quatro) nações. Diferen-
temente da primeira, onde compareceram apenas Estados Unidos e México
do continente americano, nesta segunda, compareceram Argentina, Bolívia,
Chile, Colômbia, República Dominicana, Cuba, Equador, Guatemala, Haiti,
Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai, Venezuela e Nicarágua10, dando grande re-
presentatividade aos países Latino-Americanos.
A delegação brasileira seria inicialmente chefiada por Joaquim Nabuco,
mas a imprensa e a opinião pública acabaram por apontar o nome de Rui Bar-
bosa, então vice-presidente do Senado. Diante disso, Joaquim Nabuco, amigo
pessoal de Rui, opta por recusar o convite em favor do colega, dispondo-se a
auxiliá-lo no que fosse preciso.
Num primeiro momento, Barbosa relutou em aceitar o encargo, mas
eventualmente concordou em chefiar a delegação brasileira11 e, em 15 de junho
de 1907, acontecia a cerimônia de abertura da Segunda Conferência de Paz em
Haia, com a presença do Brasil, um fato marcante para a história das relações
internacionais brasileiras.
Joaquim Nabuco, então embaixador nos Estados Unidos, fez intensa
campanha internacional em favor do amigo. Barbosa foi nomeado presidente
de honra da Primeira Comissão da Conferência, responsável pelas discussões
a respeito da solução pacífica de conflitos internacionais e pela organização
do Tribunal de Presas.
A aclamação inicial, entretanto, cedeu lugar a grande hostilidade com o
delegado brasileiro. O trabalho intenso de Rui, na elaboração de seus discursos
e no oferecimento de pareceres sobre as mais diversas questões, acabou por
gerar certa antipatia dos representantes das grandes potências, a quem não
interessava um país latino-americano com um representante tão participativo.

10
HAGUE PEACE CONFERENCE. The Proceedings of the Hague Peace Conferences, Volume I – Ple-
nary Meetings of the Conference. Oxford University Press: New York, 1920. P. 2-15.
11
Foram também designados Eduardo dos Santos Lisboa (2° delegado), Roberto Trompowski e Tancredo
Burlamaqui (delegados adjuntos), Artur de Carvalho Moreira e Rodrigo Otávio (1°s secretários) e Antô-
nio Batista Pereira (2° secretário, juntamente com outros).
412 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Essa falta de simpatia com o delegado brasileiro acabou se traduzindo em


um pequeno incidente ocorrido com o delegado russo, conforme narrado por Hil-
debrando Accioly em seu prefácio escrito na obra de Barbosa sobre a Conferência.
Segundo Accioly, durante seu discurso a respeito da transformação dos
navios mercantes em vasos de guerra, Rui fez algumas incursões na esfera da
alta política. Ocasião em que o presidente da comissão, Martens, observou que
a política deveria ser excluída dos debates da Conferência.
Essa fala, recebida com aplausos, conforme ata da comissão, representou
uma certa censura ao discurso do brasileiro. Diante disso, Rui Barbosa se pro-
nunciou novamente, afirmando que se proibir o contato com a política seria
o mesmo que se proibir o uso da palavra, pois a política era a atmosfera dos
Estados, a região do direito internacional12.
Esse incidente foi importante, pois tornou o delegado brasileiro mais
conhecido e respeitado pelas principais figuras da Conferência. Foi, porém,
durante as tratativas a respeito da criação de uma Corte Permanente de Justiça
Arbitral, que o delegado brasileiro fez contribuições que iriam marcar a o
direito internacional.

3.1. A Corte Permanente de Justiça Arbitral e a Igualdade entre os


Estados

O projeto de criação da corte foi apresentado pela delegação norte-ame-


ricana, sugerindo a criação de um tribunal permanente com sede em Haia,
que seria responsável pela resolução de controvérsias internacionais e a ele
estariam obrigatoriamente submetidos todos os Estados soberanos.
As discussões começaram, quando após intervenções da Alemanha e Grã-
-Bretanha, o projeto inicial foi modificado para sugerir-se a composição da
corte da seguinte forma: dezessete juízes, onde nove teriam assento perma-
nente e seriam indicados pelas grandes potências da época, Estados Unidos,
Alemanha, França, Japão, Inglaterra, Império Austro-Húngaro, Itália, Rússia
e Holanda – esta última convidada a compor esse seleto grupo, em razão de
sediar a Conferência - e os oito assentos restantes seriam rotativos e indicados
por agrupamentos de Estados.
A nova proposta foi encarada com tamanha temeridade por Rui Barbosa
que este, em telegrama enviado a Rio Branco, chegou a sugerir que não veria

12
Sobre a política, Rui Barbosa assim discursou: “Ela transformou o direito privado, ela revolucionou o
direito penal, ela fez o direito constitucional, ela criou o direito internacional. É a vida dos povos em si, é
a força ou o direito, é a civilização ou a barbárie, é guerra ou paz. Como então proibi-la em uma Assem-
bleia de homens livres, reunidos no início do século XX com o fim de atribuir uma forma convencional
para o direito das Nações?”. BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XXXIV, Tomo II.
Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1966. P. 65. Tradução livre do original em francês.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 413
mais como o Brasil poderia continuar na Conferência, diante do que caracte-
rizara como tamanha e amarga humilhação13.
Ao se pronunciar a respeito do projeto, afirmou que este seria a proclama-
ção da desigualdade entre as soberanias nacionais. Para ele, a proposta dava a
todos as nações o direito de nomear um dos membros da Corte. Porém, uma vez
nomeado, uns teriam o direito de fazer parte por um tempo mais ou menos cur-
to, enquanto outros exerceriam suas funções durante o período de duração total.
A desigualdade no exercício de um direito implicava na desigualdade no
próprio direito, segundo Rui Barbosa, porque o valor de um direito só pode-
ria ser medido pela possibilidade jurídica de o exercer. No direito de nomear,
seriam todos iguais, entretanto seriam desiguais no direito de fazer parte. Afir-
mou, por fim, que o governo brasileiro não subscreveria nenhum projeto que
ofendesse a igualdade entre os Estados.
O discurso de Barbosa chamou a atenção da imprensa internacional. Os
jornais das importantes nações criticavam sua tese, pois ainda não conseguiam
vislumbrar um princípio da igualdade entre as nações. Os países da América
Latina, entretanto, adotaram a bandeira levantada pelo brasileiro que passou a
atuar como um líder dos países subdesenvolvidos, os quais seriam diretamente
prejudicados pelo projeto.
O princípio da igualdade jurídica entre os Estados passou a ganhar nu-
merosos adeptos, o que levou o grupo de países autores do projeto a oferece-
rem um lugar permanente na Corte para o Brasil, mas o Barão do Rio Branco
recusou veementemente a proposta, afirmando que o país ficaria do lado do
Direito, e não da força.
Por iniciativa de Rui Barbosa, foi criada uma comissão para discutir a
criação dessa Corte chamada de Comissão dos Sete Sábios14, da qual além do

13
“Por amigo comum tive confidência completa tribunal terá dezessete membros base população. França
Inglaterra Alemanha Áustria Itália Rússia Estadosunidos Japão Holanda cada uma um membro. Os mais
por grupos seguinte modo: Espanha e Portugal, Bélgica Suíça e Luxemburgo, Turquia e Pérsia, China e
Sião, Suécia Noruega e Dinamarca, Bálcãs. Nosso continente: México e América Central um; América
do Sul um. Vocência verá se por meio Washington nos poupam tamanha e amarga humilhação. Verifi-
cada ela não compreendo Brasil possa dignamente continuar conferência.” Telegrama de Rui Barbosa
ao Barão do Rio Branco. BARBOSA, Rui. II Conferência da Paz Haia, 1907 - A correspondência tele-
gráfica entre o Barão do Rio Branco e Rui Barbosa. FUNAG: Rio de Janeiro, 2014 P. 87
14
Surge o grupo dos sete sábios (Comitê des Sept ou Sept Sages) formado por: Joseph Hodges Choa-
tes – embaixador plenipotenciário dos EUA; Leon Bourgeois – primeiro delegado plenipotenciário da
França; Barão Marschall von Bieberstein – primeiro delegado plenipotenciário da Alemanha; Alexandre
Ivanovitch Nélidow – delegado plenipotenciário da Rússia; Gaëtan Mérey Kapos-Mére – embaixador
extraordinário e plenipotenciário do Império Austro-Húngaro; Conde Joseph Tornielli Brusati di Verga-
no – delegado plenipotenciáro da Itália; Rui Barbosa – embaixador extraordinário e plenipotenciário e
delegado do Brasil. (Atendendo à proposta de RB, ao grupo se reuniu Sir Edward Fry, um dos delegados
plenipotenciários da Grã-Bretanha, que sugeriu uma proposta conciliatória, sem que a Junta perdesse a
denominação de Comitê des Sept).
414 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

brasileiro faziam parte os representantes dos Estados Unidos, Alemanha, Fran-


ça, Japão, Império Austro-Húngaro, Rússia e Itália.
Na Comissão, o projeto anterior foi abandonado e Rui Barbosa e o princípio
da igualdade entre os Estados consagraram-se vencedores. Começou-se a escrever
um novo projeto, tendo agora como inviolável a igualdade entre as nações.
O projeto, entretanto, acabou não se realizando, em razão do boicote rea-
lizado por alguns países. Ainda assim, foi reconhecida a vitória de Rui Barbosa
e do direito internacional. O último discurso de Rui foi no dia 9 de outubro
de 1907 e foi considerado pelo próprio seu trabalho mais importante.
O brasileiro começa seu discurso tratando a respeito da soberania e da
igualdade entre os Estados, assim defendendo:

A soberania é o direito elementar por excelência dos Estados independentes


e constituídos. Ora, soberania significa igualdade. Tanto na ideia, como na
prática a soberania é absoluta. Ela não sofre gradação. Mas a distribuição ju-
risdicional do direito é um ramo da soberania. Portanto, se parece necessário
existir entre os Estados um órgão comum de justiça, obrigatoriamente, todos
deverão ter uma representação equivalente.15

Nesse discurso, Rui cita o major-general Halleck do exército norte-ame-


ricano, que afirma que todos os Estados soberanos, qualquer que seja a sua
força relativa, são iguais aos olhos do Direito Internacional e, naturalmente,
dotados dos mesmos direitos e vinculados aos mesmos deveres, submetidos a
obrigações equivalentes. Uma inferioridade intelectual não dá uma superiori-
dade de direito ao vizinho mais forte e, se esse se apoderar de alguma vanta-
gem, será por pura usurpação. As diferenças de grandeza não deviam implicar
em nenhuma distinção jurídica16.
Segundo Rui Barbosa, a igualdade entre os Estados é a peça fundamental
para a manutenção da paz entre as nações. A desigualdade de soberanias acabava
por gerar conflitos, apenas com a igualdade se encontraria a solução pacífica.
Além disso, para o representante brasileiro, medir-se a grandeza internacio-
nal pela força das armas, dando maior prestígio e poder de voto aos países com
maior poderio militar seria subverter-se o sentido da Conferência da Paz, que
terminaria por conduzir os países para o caminho da guerra, e não o da paz.
Ao terminar seu discurso, Rui Barbosa foi ovacionado pelos demais par-
ticipantes da Conferência, consagrando-se na história como um dos principais
defensores da igualdade jurídica entre os Estados e recebendo a alcunha popu-
lar de “Águia de Haia”.

15
BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa. Vol. XXXIV, Tomo II. Rio de Janeiro: Ministé-
rio da Educação e Cultura, 1966. P. 383. Tradução livre do original em francês.
16
Apud, p. 389.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 415
Barbosa, representando um país com uma população de pouco mais de
25 milhões de pessoas enfrentou em pé de igualdade as demais delegações que
representavam 800 milhões de pessoas e todos os exércitos e armadas efetivos
do mundo. No fim, quem se sagrou vitorioso foi o princípio da igualdade
entre os Estados.

CONCLUSÃO

Em um contexto em que se vivia sob a égide do padrão civilizatório eu-


ropeu17, com a imposição do modo de vida da Europa sob as demais nações
do mundo, introduzir-se a ideia de igualdade entre os Estados, ainda mais por
um país periférico e recém-independente, como o Brasil, não era uma tarefa
simples. Além disso, importante o registro que o cenário mundial encontrava-
-se extremamente polarizado, com a dominação político-econômica de alguns
sobre os demais, não havendo o espaço que as nações em desenvolvimento
atualmente possuem.
O antigo pensamento jurídico clássico - baseado no princípio da sobera-
nia absoluta, do padrão civilizatório e positivismo jurídico - deu lugar a uma
razão jurídica moderna que criticava a soberania absoluta, enfatizava o interes-
se da comunidade internacional e apoiava doutrinas jurídicas anti-formalistas.
O novo direito internacional propiciou a aquisição de soberania pelos paí-
ses subdesenvolvidos, um movimento que começou durante o século XIX, e
trouxe essas nações para o centro das discussões a respeito dos rumos da comu-
nidade internacional. A própria participação na Conferência serviria para rea-
firmar a soberania desses países periféricos e para inseri-los internacionalmente.
Entretanto, apesar de soberanos e ocuparem um lugar, na comunidade
mundial, esses Estados permaneciam em desvantagem em relação às grandes
potências. O brilhantismo de Rui Barbosa consistiu no fato de usar conceitos
de direito internacional clássico, em favor da igualdade dos Estados, apro-
priando-se de termos como soberania, equidade e autonomia para afirmar sua
posição. Ao fazer uso do próprio direito internacional, ao invés de um dis-
curso de heroísmo ou “coitadismo”, Rui tornou seus argumentos irrefutáveis.
Ao afirmar que a soberania não pode sofrer gradação, ou seja, não po-
deriam existir Estados mais soberanos que os outros, Rui Barbosa relaciona
diretamente a soberania à igualdade e as torna interdependentes. Entre Esta-
dos soberanos, portanto, não poderiam haver diferenciações. O que Barbosa
trouxe, portanto, foi um novo espírito internacionalista, de uma “sociedade de
estados igualitários juridicamente e que se organiza sob a lei”.

17
GERRIT GONG, The Standard of ‘Civilisation’ in International Society. Oxford: Clarendon
Press, 1984.
416 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Isso representava uma mudança significativa no direito internacional


clássico, que ainda era muito centrado no sistema hierárquico e aristocrático
instituído no Congresso de Viena, no qual, as grandes potências tinham direi-
tos especiais de intervir nos assuntos de outras soberanias.
Essa ordem internacional fundamentada no princípio da soberania ab-
soluta representava um obstáculo para a criação de organizações internacio-
nais, tribunais e regras mais severas para limitar a autonomia dos Estados. O
princípio da igualdade vem, portanto, para derrubar esses dogmas, tornando a
comunidade internacional mais aberta e mais fluida, menos engessada, o que
possibilitaria a ascensão de novos atores e, com eles, novas práticas e ideias.
A partir desse princípio se pôde conceber a criação de organizações de
Estados soberanos, iguais entre si, como é o caso da Organização das Nações
Unidas. Além disso, o projeto da Corte Permanente de Arbitragem serviu
como um embrião para o desenvolvimento da atual Corte Internacional de
Justiça (CIJ), que tem sede em Haia, a qual Rui Barbosa foi eleito para inte-
grar, posteriormente, mas faleceu antes de ter participado de qualquer sessão.
O Brasil, atualmente, possui um representante seu na CIJ, o Juiz Antônio
Augusto Cançado Trindade.
Apesar de não ter sido constituída a Corte Permanente de Justiça Arbi-
tral, o impacto principal consistiu no fato de esta não ter sido constituída em
razão de representar uma violação ao princípio da igualdade. A relevância,
portanto, da Conferência não dependia de pôr fim à guerra ou de adotar uma
convenção específica, mas sim na sua contribuição para a fundação de uma
comunidade internacional organizada sob a lei.
A Conferência da Paz de 1907 representou, assim, um marco para a cons-
trução de uma sociedade internacional mais democrática e para a universali-
zação do direito internacional e teve como um de seus principais expoentes o
brasileiro Rui Barbosa.

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Capítulo 27
Análise Crítica do Fundamento
Histórico dos Direitos Humanos:
Um Resgate Da Proposta Jusnaturalista
Daniel Silva Marques

1. INTRODUÇÃO

A história mostra uma construção de valores e princípios que culminou


na formação dos Direitos Humanos, esse conjunto de direitos básicos devidos
a todo ser humano pela simples condição de sua humanidade. Entretanto,
existem diversos questionamentos ao rol de direitos humanos atualmente re-
conhecidos, às teorias de justificação mais aceitas e até mesmo ao próprio
conceito de Direitos Humanos, embora mais raro na comunidade acadêmica.
Mas esses direitos não surgiram do nada. Existiu um processo de deter-
minação — ou construção — dos Direitos Humanos cuja origem remonta às
tradições filosóficas greco-romanas, mas que repercute nos dias de hoje. Além
disso, nem todas as críticas carecem de fundamento, por vezes havendo um
descompasso entre os argumentos mais aceitos para afirmação de direitos e sua
plena funcionalidade na justificação de um sistema tão complexo, absoluto e
universal de direitos supostamente inquestionáveis.
No presente trabalho, pretende-se focar na análise da teoria da afirmação
histórica dos Direitos Humanos e a formação do seu conceito contemporâneo,
com ênfase no entendimento atual não metafísico do tema. Não se tratará de
direitos humanos específicos, individualmente considerados, mas da justificativa
abstrata de um sistema de direitos básicos universais. Em seguida, realizar-se-á uma
análise crítica dos argumentos de justificação desses direitos e da possibilidade de
transferência do referencial teórico e filosófico de alicerce dos Direitos Humanos,
inclusive com a chance de se retornar, ao menos parcialmente, a hipóteses esqueci-
das da tradição jurídico-filosófica ocidental, como o Direito Natural.
O propósito aqui não é exaurir o tema, mas perpassar ideias importantes
a esse sistema tão caro à ordem jurídica internacional e verificar possíveis
incorreções na sua interpretação hodierna. Não há pretensão de apresentar
a resposta suprema aos questionamentos apresentados ao longo do trabalho,
posto que trata-se de um tema debatido reiteradamente por séculos.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 419
2. A CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E A
CONSCIÊNCIA COLETIVA NO PENSAMENTO DE
COMPARATO E BOBBIO

A teoria que afirma a construção ou afirmação histórica dos Direitos


Humanos entende que estes não eram pré-existentes, percebidos como parte
de uma ordem da natureza, fruto de ordenamentos religiosos ou da condição
biológica ou psíquica do ser humano. Pelo contrário, segundo os adeptos des-
se pensamento, os Direitos Humanos teriam sido construídos, conjecturados,
lapidados ao longo da história, até se alcançar o rol de direitos que se têm
reconhecidos hoje.
Como grande expoente dessa linha de pensamento no Brasil tem-se Fábio
Konder Comparato, que escreveu a obra “A Afirmação Histórica dos Direitos
Humanos”. O livro estabelece um histórico da formação do conceito de dig-
nidade humana e toda a elaboração filosófica que desembocou na constituição
dos Direitos Humanos.
O autor adota o pressuposto kantiano de dignidade1, o qual desenvolveu
o conceito para além dos pensamentos originados dos debates teológicos da
Idade Média. Comparato afirma que a dignidade, além de vir da condição de
pessoa humana atribuir ao homem um fim em si mesmo, “resulta também
do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de
autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita.”2
As teorias de fundamentação dos Direitos Humanos, obviamente, não
ignoram a existência de valores, posto que estes estão presentes dentro de cada
direito essencial, cada tratado e cada constituição democrática contemporânea.
De fato, pelo contrário, cada Estado elege valores fundamentais que formam
sua axiologia constitucional. Da mesma forma, em normas internacionais e
em declarações de direitos, são reconhecidos certos valores como caros e pro-
tegidos pela ordem internacional. É nessa perspectiva que Comparato assevera:

É sobre o fundamento último da liberdade que se assenta todo o universo


axiológico, isto é, o mundo das preferências valorativas [...].
[...] se o homem não cria valores do nada, não é menos verdade que a avalia-
ção individual dos bens da vida varia enormemente. Ora, isto exige, como
condição da convivência humana harmoniosa, o consenso social sobre a força
ética de uma tábua hierárquica de valores. Os bens ou ações humanas não se
organizam, apenas, numa oposição primária de valores e contravalores. Existe
também, necessariamente, em toda sociedade organizada, uma hierarquia a

1
Cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. 1 Ed. São Paulo: Martins Claret. 2011.
2
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 7 Ed. rev. e atual. São
Paulo: Saraiva, 2010, p. 34
420 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

ser considerada, dentro de cada série positiva ou negativa: há sempre bens ou


ações humanas que, objetivamente, valem mais que outros, ou que represen-
tam contravalores mais acentuados que outros, como obstáculo ao desenvolvi-
mento da personalidade humana.

Os direitos humanos foram identificados com os valores mais impor-


tantes da convivência humana, aqueles sem os quais as sociedades acabam
perecendo, fatalmente, por um processo irreversível de desagregação.3
Mas quais preferências valorativas são realmente passíveis de adquirir
força normativa? Como concluir pela consonância dos Direitos Humanos
com os valores sociais mais caros, e destes valores com o resultado mais justo
para a humanidade?
A narrativa de Comparato é no sentido de que os Direitos Humanos foram
formados ao longo do tempo, porque se formam como se forma o homem.
Observa que “a reflexão filosófica contemporânea salientou que o ser do ho-
mem não é algo de permanente e imutável: ele é, propriamente, um vir-a-ser,
um contínuo devir”4. Entende propriamente que a personalidade humana se
desenvolve, ao mesmo tempo em que cada pessoa já nasce cercada de valores e
crenças desenvolvidos por milênios e propagados a ele indiscriminadamente.
Essa situação faz crer que muito do pensamento humano é moldado, podendo
ser, portanto, adaptado, melhorado. Afirma ainda que a individualidade genéti-
ca de cada pessoa garante esse valor representado pela sua dignidade atribuída.5
Em contrapartida, essa especificidade de cada ser humano - genética,
cultural, social etc. - traz dúvidas quanto à possibilidade de um consenso
universal último sobre os Direitos Humanos; e mais ainda, se houvesse esse
consenso, não estaria ele vinculado à influência do passado de uma civilização
comum que molda o pensamento de todos os seus membros, já nascidos no
meio de uma cultura que tem a capacidade de expor-lhe, desde cedo, todas as
conclusões necessárias para produzir as “melhores” crenças?
Não obstante, é essa afirmação, de uma consciência coletiva da humani-
dade, a justificativa final que o autor afirma para os Direitos Humanos no
mundo contemporâneo:

Por outro lado, se se admite que o Estado nacional pode criar direitos hu-
manos, e não apenas reconhecer a sua existência, é irrecusável admitir que
o mesmo Estado também pode suprimi-los, ou alterar de tal maneira o seu
conteúdo a ponto de torná-los irreconhecíveis. Ademais, a criação dos direitos

3
Ibidem, p. 38
4
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 7 Ed. rev. e atual. São
Paulo: Saraiva, 2010, p. 41
5
Ibidem, p. 42-43
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 421
humanos pelo Estado nacional conduziria à impossibilidade de se lhes atri-
buir o caráter de exigências postas por normas universais, sem as quais, como
salientou Kant, não há ética racionalmente justificável. Não se trataria, logica-
mente falando, de atributos inerentes à condição humana, mas unicamente a
determinada nacionalidade.
É irrecusável, por conseguinte, encontrar um fundamento para a vigência dos
direitos humanos além da organização estatal. Este fundamento, em última
instância, só pode ser a consciência ética coletiva, a convicção, longa e larga-
mente estabelecida na comunidade, de que a dignidade da condição humana
exige o respeito a certos bens ou valores em qualquer circunstância, ainda que
não reconhecidos no ordenamento estatal, ou em documentos normativos
internacionais. Ora essa consciência ética coletiva, como se procura mostrar
nestas páginas, vem se expandindo e aprofundando no curso da História.6

Era semelhante o pensamento de Norberto Bobbio, o qual afirmou que

não existem direitos fundamentais por natureza. O que parece fundamental


numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em
outras épocas e em outras culturas. Não se concebe como seja possível atribuir
um fundamento absoluto a direitos historicamente relativos. De resto, não há
por que ter medo do relativismo.7

Mais à frente, alega que os Direitos do Homem “são o produto não da


natureza, mas da civilização humana”8. Desse modo, nega a existência de uma
lei natural, objetiva e inerente à humanidade. Em vez disso, coaduna a tese de
que os Direitos Humanos se formaram por construção.
Bobbio adota o relativismo como ponto de partida, afirmando que é
este o fundamento da liberdade religiosa, da liberdade política, entre outros
direitos, pois pressupõe a diversidade de pensamento e a pluralidade de ideias
em convivência. Vale lembrar, no entanto, que esses institutos, historicamente,
foram propagados por pessoas com convicções específicas, mas que entendiam
como lei natural a impossibilidade de obrigar outras pessoas a partilhar dos
mesmos pensamentos. Na verdade, a extremização do relativismo leva a socie-
dade pós-moderna, por vezes, a negar padrões éticos e aceitar culturas que vão
contra os Direitos Humanos - o que não é defendido por muitos partidários
da construção histórica desses direitos, os quais pressupõem o estabelecimento
de um consenso ético humanista.
A crítica mais pertinente, no entanto, se funda na abrangência do con-
teúdo da lei natural, ou, ao menos, de seu conteúdo perceptível com suficiente
clareza e objetividade. Bobbio ataca algumas Declarações de Direitos pelas
6
Ibidem, p. 72.
7
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 7 Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 18.
8
Ibidem, p. 32.
422 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

suas incoerências mútuas, na medida em que estabelecem direitos que variam


entre uma e outra, e em que vão sendo acrescentados novos direitos, como os
sociais, nas declarações mais recentes - considerando-os tão essenciais quanto
os anteriores. Observa ainda que os valores elencados nesses direitos muitas
vezes conflitam entre si no caso concreto, como é o caso da liberdade de ex-
pressão contra o direito do público de não ser ofendido.9
Entretanto, reconhece que alguns direitos são tão evidentes que sua con-
testação é moralmente bastante improvável, não sem fazer as ressalvas necessá-
rias, de acordo com sua linha filosófica:

Inicialmente, cabe dizer que, entre os direitos humanos, como já se observou


várias vezes, há direitos com estatutos muito diversos entre si. Há alguns que
valem em qualquer situação e para todos os homens indistintamente: são os
direitos acerca dos quais há a exigência de não serem limitados nem diante de
casos excepcionais, nem com relação a esta ou àquela categoria, mesmo restri-
ta, de membros do gênero humano (é o caso, por exemplo, do direito de não
ser escravizado e de não sofrer tortura). Esses direitos são privilegiados por-
que não são postos em concorrência com outros direitos, ainda que também
fundamentais. Porém, até entre os chamados direitos fundamentais, os que
não são suspensos em nenhuma circunstância, nem negados para determinada
categoria de pessoas, são bem poucos: em outras palavras, são bem poucos os
direitos considerados fundamentais que não entram em concorrência com ou-
tros direitos também considerados fundamentais, e que, portanto, não impo-
nham, em certas situações e em relação a determinadas categorias de sujeitos,
uma opção. Não se pode afirmar um novo direito em favor de uma categoria
de pessoas sem suprimir algum velho direito, do qual se beneficiavam outras
categorias de pessoas: o reconhecimento do direito de não ser escravizado im-
plica a eliminação do direito de possuir escravos; o reconhecimento do direito
de não ser torturado implica a supressão do direito de torturar. Nesses casos,
a escolha parece fácil; e é evidente que ficaríamos maravilhados se alguém nos
pedisse para justificar tal escolha (consideramos evidente em moral o que não
necessita ser justificado).10

Portanto, é de fato um problema o rol enorme de direitos que hoje existe


em face das justificativas a eles apresentadas. Utilizar indistintamente a natu-
reza humana como motivação única para uma série de direitos abrangentes,
complexos e abstratos mitiga a força normativa dos Direitos Humanos, bem
como causa problemas interpretativos, como se vê modernamente na detur-
pação do princípio da dignidade da pessoa humana para alicerçar qualquer
decisão, devido ao nível de abstratividade do princípio, embora basilar a todo
o sistema de Direitos Humanos e Fundamentais.

9
Ibidem, p. 18-19.
10
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 7 Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 19.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 423
Bobbio parece concluir, assim como Comparato, que o problema da jus-
tificação hoje tem menos importância, por causa do alegado consenso geral a
respeito dos Direitos Humanos: “A Declaração Universal dos Direitos do Ho-
mem representa a manifestação da única prova através da qual um sistema de
valores pode ser considerado humanamente fundado e, portanto, reconheci-
do: e essa prova é o consenso geral acerca da sua validade.”11 Embora a metade
do século XX tenha experimentado uma nova ordem mundial com reconhe-
cimento global de direitos, esse consenso ainda está longe da universalidade.
Soma-se a isso o fato de que o argumento mais aceito nem sempre significa o
melhor ou mais justo, como se observa, por exemplo, na escravatura que foi
aceita normalmente por gerações.
Norberto Bobbio considera com tanta firmeza a desnecessidade do pro-
cesso de fundamentação dos Direitos Humanos que afirma: “O problema
fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de jus-
tificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas
político.”12 A afirmação, embora aponte para uma necessidade mais urgente,
de efetivação dos direitos que se sabe corretos, ainda não responde o por quê
de esses direitos serem, efetivamente, corretos e justos.
É perceptível que existem - como reconheceu o próprio Bobbio -, e precisam
existir, certos direitos incontestáveis, um conteúdo mínimo, essencial, o núcleo
dos Direitos Humanos, que proteja a dignidade humana e perpetue civilizações
que respeitem o indivíduo, limitem o poder estatal e garantam certas condições
mínimas aos homens (aqui entendidos como sinônimos de humanidade, nunca
apenas o gênero masculino), conforme se pretendia pelas Declarações de Direi-
tos. As razões para isso serão melhor apresentadas mais à frente.

3. NUREMBERG E JUÍZO DE EXCEÇÃO

A existência dos vários tribunais internacionais atuais, muitos dos quais


tratam especificamente de Direitos Humanos, é devida em grande parte à
iniciativa global de impedir a reaparecimento de crimes desumanos como os
perpetrados durante a Segunda Guerra Mundial, bem como garantir a puni-
bilidade dentro de um Direito Penal Internacional previamente estabelecido e
que condenasse claramente atos semelhantes.
No entanto, antes da criação desses tribunais, que contam com tratados
internacionais sobre sua jurisdição — formando autoridades internacionais pré-
-constituídas para decidir sobre crimes positivados —, houve uma série de jul-
gamentos num tribunal de exceção paradigmático: o Tribunal de Nuremberg.

11
Ibidem, p. 26.
12
Ibidem, p. 23.
424 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Mas o que fez com que o mundo aceitasse a realização de um juízo de exceção,
algo que costuma ser intensamente rechaçado pela doutrina e jurisprudência
internacional e dos Estados democráticos?
Diante de uma análise estritamente legalista, é perfeitamente possível que
diversos atos terríveis, atentatórios à humanidade e à dignidade de um povo,
passem impunes por conta de previsões legais específicas (ou a falta delas) em
ordenamentos jurídicos internos, ou pela falta de regulamentação internacional.
Por isso, para que um juízo de exceção internacional aconteça, é necessário
que duas coisas aconteçam: que a jurisdição ou a soberania de um Estado sejam
relevadas, o que implica a incidência de certas teorias do Direito Internacional
— algumas das quais expostas posteriormente; e que as ações praticadas pelas
pessoas ou governo daquele país justifiquem uma jurisdição supra-jurídica. Os
campos de concentração, a eugenia e o extermínio de massas pareceram motivos
suficientes para que os Estados não ficassem inertes para sempre.
A Inglaterra, a França e a Polônia queriam estabelecer uma punição para os
comandantes do regime nazista já durante o processo de expansão germânico.
Numa declaração conjunta em 1940, manifestaram o desejo “de realizar um pro-
testo formal e público para a consciência do mundo contra a ação do governo
alemão, o qual deve ser responsabilizado por esses crimes, que não podem per-
manecer impunes”13. A referência à consciência do mundo é primordial para se
entender que o que se passava não era só a quebra de tratados internacionais ou
de leis, mas uma afronta ao senso de bondade e justiça do mundo, à moralidade
e à própria humanidade. Era simplesmente um regime abominável.
Algumas nações continuaram discutindo uma forma de punir a Ale-
manha após a sua derrota. Nova declaração foi publicada, em 1943, pelos
Aliados União Soviética, Estados Unidos e Reino Unido, condenando as
atrocidades germânicas, num documento que foi chamado Declaração sobre
as Atrocidades Germânicas na Europa Ocupada, que reafirmava a intenção
de penalizar os crimes de guerra germânicos, inclusive por meio de uma
Justiça conjunta dos Aliados.14
A consciência do mundo foi realmente abalada pela inércia dos países
diante da ameaça nazista, até que ela ficou grande demais para ser detida sem
os enormes males que causou. Com o fim da guerra, o sentimento de que algo

13
Uma declaração britânica-francesa-polonesa foi emitida em abril de 1940, a partir de um pedido de apoio
do governo polonês às nações francesa e inglesa, e é referida na obra KOCHAVI, Arieh J. Prelude to
Nuremberg: allied war crimes policy and the question of punishment. Univ of North Carolina Press:
North Carolina, 1998, p. 8.
14
A Declaração sobre as Atrocidades Germânicas na Europa Ocupada foi parte das Declarações de Mos-
cou, realizadas durante a Conferência de Moscou entre os maiores países dentre os Aliados da Segunda
Guerra. Cf. HELLER, Kevin Jon. The Nuremberg Military Tribunals and the origins of interna-
tional criminal law. Oxford University Press: Oxford, 2011, p. 9.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 425
precisava ser feito permaneceu, especialmente para os milhões que sofreram
consequências diretas da ação do governo hitlerista.
Após diversas discussões e planos sem um grande avanço, a ideia de um
tribunal de exceção continuou. Conferências entre os Aliados desde anos antes
do fim da guerra resultaram no Acordo de Londres15 (originalmente “Acordo
para a acusação e punição dos principais criminosos de guerra do Eixo Euro-
peu”), que estabelecera a concordância na persecução penal dos criminosos de
guerra do Eixo através de um tribunal militar internacional.
Junto a ele foi redigida a Carta de Nuremberg ou Carta de Londres16 (ori-
ginalmente intitulada “Carta do Tribunal Militar Internacional”), um anexo
ao Acordo, que finalmente criou o Tribunal de Nuremberg.
O julgamento de diversas autoridades nazistas capturadas aconteceram,
embora vários comandantes poderosos já estivesse morta, frequentemente por
suicídio. A sede de justiça do povo foi, em grande parte, satisfeita, mas a Corte
também não ficou imune a críticas por parcialidade e supressão de regras do
direito internacional.17
Uma matéria do The Guardian de 2012 explica a importância do Tribunal
e sua polêmica:

Tudo combinava com o desejo irritado e compreensível do público de retribui-


ção contra aqueles que haviam iniciado uma guerra que causou tanta morte e
destruição, muito mais selvagem do que se havia percebido até que os destroços
do pós-guerra fossem avaliados. Nuremberg tornou-se o precedente para todos
os tipos de jurisdição internacional, até e incluindo o Tribunal Penal Internacio-
nal (TPI), a maioria bem-vinda, pouca coisa sem controvérsia.18 (tradução livre)

A mesma matéria sintetizou bem a visão de alguns que preferem seu re-
sultado do que alternativas de impunidade: “justiça imperfeita é melhor que
anarquia”19 (tradução livre).

15
NAÇÕES UNIDAS. Agreement for the prosecution and punishment of the major war criminals of the
European Axis (“London Agreement”). Disponível em: <http://www.refworld.org/docid/47fdfb34d.
html>. Acesso em 30 jan 2018.
16
NAÇÕES UNIDAS. Charter of the International Military Tribunal - Annex to the Agreement for the
prosecution and punishment of the major war criminals of the European Axis (“London Agreement”),
de 8 de Agosto de 1945, 82 U.N.T.C. 280. Disponível em: <http://www.refworld.org/docid/3ae6b39614.
html>. Acesso em 30 jan 2018.
17
WHITE, Michael. Shooting top Nazis? The Nuremberg option wasn’t apple pie either. The Guardian,
Londres, 26 outubro 2012. Disponível em: <https://www.theguardian.com/world/blog/2012/oct/26/nazi
-shooting-nuremberg-international-justice>. Acesso em: 30 jan. 2017.
18
Idem.
19
WHITE, Michael. Shooting top Nazis? The Nuremberg option wasn’t apple pie either. The Guardian,
Londres, 26 outubro 2012. Disponível em: <https://www.theguardian.com/world/blog/2012/oct/26/nazi
-shooting-nuremberg-international-justice>. Acesso em: 30 jan. 2017.
426 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

A defesa da imparcialidade e da objetividade nos julgamentos é imprescindível.


Porém, o legado de Nuremberg, mesmo diante de suas diversas falhas, é inegável,
como oportunidade de penalização de um dos maiores males da história da huma-
nidade. Mais do que a forma como foi feito, e mesmo havendo motivações escusas,
a justificativa axiológica de Nuremberg foi muito relevante, e seu legado inspirou
tribunais internacionais e a intensificação de diretrizes do Direito de Guerra.
Desde 2002, o Tribunal Penal Internacional (TPI) tem jurisdição sobre in-
divíduos que praticam crimes de guerra, de genocídio e contra a humanidade
nos países que ratificaram seu Estatuto. Como um Tribunal pré-constituído aos
crimes, o TPI é uma tentativa de prevenir e reprimir abominações semelhantes às
enfrentadas no século passado, sendo que, dessa vez, dotado de mais segurança
jurídica, imparcialidade e positivação anterior das regras que o regem.20
No entanto, problemas como lacunas normativas ou falta de ratificação
ainda podem existir em se tratando do TPI e de outros órgãos modernos —
por isso, o legado de Nuremberg permanece vivo, lembrando o mundo que
nenhuma corte é perfeita, que o Direito está em constante desenvolvimento,
mas que é preciso condenar o mal visível onde quer que seja.
Paulo Henrique Portela elenca como princípios do Direito Internacional,
entre outros, a não-intervenção, a igualdade jurídica entre os Estados, a auto-
determinação dos povos e, de forma primordial no mundo contemporâneo, a
prevalência dos Direitos Humanos.21 Esses princípios ganham coro na Decla-
ração de Princípios do Direito Internacional realizada pelas Nações Unidas.22
Assim, embora o Direito Internacional tradicionalmente preveja a au-
tonomia estatal como um grande valor, o advento dos Direitos Humanos e
Fundamentais tem fomentado a relativização de certos princípios em prol da
preservação de direitos ou comunidades. Tanto é que, por exemplo, interven-
ções militares podem ser autorizadas pelo Conselho de Segurança da ONU23,
o indivíduo é considerado sujeito de Direito Internacional24 e a Transnaciona-
lidade é elencada como característica dos Direitos Humanos25.

20
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Tribunal Penal Internacional. Brasília: MRI, 2017. Dis-
ponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/politica-externa/paz-e-seguranca-internacionais/152-
tribunal-penal-internacional>. Acesso em: 30 jan. 2017.
21
PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado — incluindo noções de
direitos humanos e de direito comunitário. 7 Ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2015,, p. 72
22
NAÇÕES UNIDAS. Declaration on Principles of International Law concerning Friendly Relations and
Co-operation among States in accordance with the Charter of the United Nations, de 24 de outubro de
1970. Disponível em: <http://www.un-documents.net/a25r2625.htm>. Acesso em: 30 jan. 2017.
23
NAÇÕES UNIDAS. Carta das Nações Unidas, de 26 de junho de 1945. Cap. VII. São Francisco. Dispo-
nível em português em: <https://nacoesunidas.org/carta/>. Acesso em: 30 jan. 2017.
24
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 5 ed. rev. atual. e ampl.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 803-805.
25
PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado — incluindo noções de
direitos humanos e de direito comunitário. 7 Ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 685.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 427
Segundo Mazzuoli, a teoria dualista do Direito Internacional afirma que
os direitos interno e internacional formam dois conjuntos independentes, ou
seja, são igualmente válidos e autônomos. Assim, a adoção de uma norma
internacional dependeria sempre da aceitação pelo Estado, cujas normas te-
riam primazia. Já a teoria monista idealiza um direito uno, em que o Direito
Internacional tem, em tese, aplicação imediata, em virtude de ser um conjunto
concêntrico ao direito estatal, gerando uma homogeneidade final.26
No entanto, no monismo, existe o problema de eventual conflito norma-
tivo entre lei interna e internacional, quando tratarem dos mesmos assuntos.
O monismo nacionalista prevê a primazia estatal; o monismo internaciona-
lista, com Hans Kelsen como grande fenômeno, entende pela supremacia do
Direito Internacional, o que encontra coro na Convenção de Viena.27
Esse pensamento tem mais afinidade com a doutrina internacional das
últimas décadas, que dá importância renovada às regras aderidas em tratados e
convenções entre países. O mundo tem questionado muito a possibilidade de
um país simplesmente ignorar o Direito Internacional e valores universais de
justiça em prol de governos opressores ou totalitários.
Mazzuoli fala ainda num monismo internacionalista dialógico, em que,
especialmente no que tange a Direitos Humanos, as normas internas e inter-
nacionais dialogariam para aplicar o Direito mais benéfico ao sujeito do caso
concreto, o que vai em consonância com o tratamento especial contemporâ-
neo a esses direitos essenciais. É uma hierarquia de valores superando a hierar-
quia formal28, o que serve de reforço ao argumento pela realização de um juízo
de exceção numa situação extrema como a de Nuremberg.

4. A UNIVERSALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS

A doutrina internacionalista aborda o caráter transnacional dos Direitos


Humanos, que é característico da globalização, da axiologia jurídica mais in-
tensa da segunda metade do século XX e do ideal contemporâneo de igualdade
e justiça mundial, expresso na formação dos órgãos internacionais relaciona-
dos às Nações Unidas, que objetiva a paz e a garantia de direitos essenciais em
todos os territórios do globo.29

26
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 5 ed. rev. atual. e ampl.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 74-82
27
Ibidem, p. 85-90
28
Ibidem, p. 90-91
29
O Preâmbulo da Carta das Nações Unidas explana muito bem as finalidades e valores da ONU enquanto
entidade em prol da paz, dos Direitos Humanos e do desenvolvimento mundial. Cf. NAÇÕES UNIDAS.
Carta das Nações Unidas, de 26 de junho de 1945. Preâmbulo. São Francisco. Disponível em português
em: <https://nacoesunidas.org/carta/>. Acesso em: 30 jan. 2017.
428 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Nessa perspectiva, Valerio Mazzuoli afirma:

Os direitos humanos, diferentemente dos direitos fundamentais, podem ser


vindicados indistintamente por todos os cidadãos do planeta e em quaisquer
condições, bastando ocorrer a violação de um direito seu reconhecido em tra-
tado internacional aceito pelo Estado em cuja jurisdição se encontre.30

O mesmo autor, mais à frente, explica, dentre as características dos Direi-


tos Humanos, a da Universalidade, que consiste na titularidade desses direitos
assegurada a toda a espécie humana, que pode reivindicar sua aplicação para
proteção individual, sem depender de qualquer outra condição.31
Paulo Henrique Portela ressalta, em relação a outro elemento, comple-
mentar à Universalidade, a Inerência dos Direitos Humanos, que estes “per-
tencem a todos os indivíduos pela simples circunstância de serem pessoas hu-
manas, não consistindo em concessões do Estado ou de quem quer que seja”.32
A Universalidade é caráter dos Direitos Humanos reconhecido indistin-
tamente no Direito Internacional. No entanto, questiona-se: se à totalidade
dos seres humanos são estendidos os Direitos Humanos, por que se espera
que cada cultura os aceite ou cada Estado os ratifique? Por que, se todos os
seres humanos têm os mesmos direitos, existem locais em que nem mesmo
os mais básicos encontram satisfação, sob a inércia de boa parte da sociedade
internacional? E por que haveriam esses direitos de ser universais, inalienáveis,
imprescritíveis, enfim, dotados de qualidades tão supremas e poderosas, se fo-
rem fruto de nada mais que uma percepção histórica que pode ser flexibilizada
e modificada em pouco tempo?
Tão importantes são os Direitos Humanos que a sua expressão constitu-
cional, os Direitos Fundamentais, além de ganhar atenção especial nos orde-
namentos jurídicos atuais, é considerada indispensável para a caracterização
do Estado Democrático de Direito, portanto, da existência de democracia.33
Não é por acaso, visto que as democracias liberais ascenderam na tentativa
de limitação do poder estatal diante dos súditos, dando origem, nessa limi-
tação, às constituições liberais, a grandes declarações de direitos e a garantias
fundamentais.
Afinal, conforme Cançado Trindade:

30
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Método, 2015, p. 24.
31
Ibidem, p. 27.
32
PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito Internacional Público e Privado — incluindo no-
ções de direitos humanos e de direito comunitário. 7 Ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm,
2015, p. 685.
33
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume 1. Tradução: Flávio
Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 127.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 429
[...] a universalidade dos direitos humanos decorre de sua própria concepção,
ou de sua captação pelo espírito humano, como direitos inerentes a todo ser
humano, e a ser protegidos em todas e quaisquer circunstâncias. Não se ques-
tiona que, para lograr a eficácia dos direitos humanos universais, há que tomar
em conta a diversidade cultural, ou seja, o substratum cultural das normas ju-
rídicas; mas isto não se identifica com o chamado relativismo cultural. Muito
ao contrário, os chamados “relativistas” se esquecem de que as culturas não são
herméticas, mas sim abertas aos valores universais, e tampouco se apercebem
de que determinados tratados de proteção dos direitos das pessoa humana já
tenham logrado aceitação universal.34

5. DA POSSIBILIDADE DE RESGATE PARCIAL DO DIREITO


NATURAL

O problema da construção histórica dos Direitos humanos é o da falta de


sentido ou confiabilidade plena em Direitos que são simplesmente construção
humana sem conformidade a um padrão de justiça observável.
Através da argumentação lógica já é possível questionar as tentativas de
dividir a raça humana em graus de superioridade. O estudo da biologia ajuda.
Nesse ponto, o avanço da ciência representou grande trunfo na demonstração
da igualdade fundamental dos homens, todos componentes de uma só espécie.
Havendo uma só humanidade, não haveria porque alguns terem de ser “mais
humanos” que outros, mais dotados de direitos que os demais. A liberdade e a
igualdade sempre foram aspectos cruciais dos Direitos Humanos.
No entanto, as diferenças sociais, culturais, “raciais”, fenotípicas, entre
outras, enfim, ainda serviram como deturpada base para condenáveis crenças
na superioridade de alguns, que levaram às violações humanitárias por regimes
totalitários e grupos genocidas, que tiveram máxima representatividade no
Nazismo, cuja lembrança deixou marcas indeléveis na sociedade internacional.
A justificativa de um tribunal de exceção polêmico como o de Nuremberg
não foi outra senão a óbvia e inegável injustiça organizadamente instaurada
pelo regime nazista na Alemanha e territórios anexados. Por mais que o sistema
democrático contemporâneo rejeite toda espécie de julgamento de exceção, pela
insegurança jurídica e violação à legalidade, não é fácil achar quem discorde da
importância de não deixar os crimes do Nazismo passarem “em branco”.
“Crimes”, diz-se, por tratarem-se de crimes naturais. Pois, como a história
do século XX mostrou, o governo alemão dos anos 30 não agiu contra o próprio

34
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Desafios e Conquistas do Direito Internacional dos Direitos
Humanos no Início do Século XXI. In: XXXIII Curso de Direito Internacional da OEA, 2006, Rio de
Janeiro. Conferências… Rio de Janeiro: Comissão Jurídica Interamericana da OEA, 2006, p. 418. Dis-
ponível em https://www.oas.org/dil/esp/407-490%20cancado%20trindade%20OEA%20CJI%20%20.
def.pdf. Acesso em dezembro de 2015.
430 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

ordenamento. Adolf Hitler estava eleito legitimamente e amparado por um Ato


que lhe permitia exercer poder total, inclusive para editar a constituição, com o
fito de restaurar a grandiosidade da nação e do povo.35 Os crimes do Nacional-
-Socialismo não foram contra a Alemanha, contra a legislação, contra o governo.
Foram crimes contra a humanidade.
Os horrores do Nazismo foram tão grandes que deram margem a dois
grandes movimentos jurídicos de reação ao Positivismo ideológico: o resgate
do Jusnaturalismo e a corrente Pós-Positivista.
Nessa primeira hipótese encontrava-se Gustav Radbruch: originalmente
Positivista, após experimentar os terríveis atos que o homem foi capaz de reali-
zar na Segunda Guerra Mundial, optou por filiar-se à corrente jusnaturalista.36
Não é surpresa, portanto, que a sociedade internacional tenha buscado
evitar o problema dos tribunais de exceção criando o já citado Tribunal Penal
Internacional (TPI) e outras cortes internacionais com poderes, por vezes, su-
pranacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). O
TPI tem competência para julgar crimes de genocídio e crimes contra a huma-
nidade, hoje tipificados, para que esses horrores não encontrem mais brechas
nas mudanças legais e desmandos de autoridades nacionais.
Isso tudo ocorreu porque o mundo percebeu que o valor da humanidade
é maior que a soberania de um país, e que esta soberania — e o próprio Estado
— existe justamente para protegê-la.
Todo ser humano possui um padrão de justiça que entende como válido.
É óbvio que matar e causar mal indiscriminado, por exemplo, são ações erra-
das. Mas existem outras questões cuja discussão não é tão simples. O aborto,
por exemplo, é extremamente polêmico e provavelmente permanecerá assim. A
ciência avança, mas não responde todas as questões. Para a falta de resposta, em
certos momentos, o debate se faz necessário para o alcance do consenso, mas,
noutros momentos, de evidente injustiça, é imperativo um referencial mínimo.
A Declaração Universal de Direitos Humanos é jusnaturalista, continuan-
do a tradição. O objetivo das grandes Declarações de Direitos era justamente
declarar, e não criar direitos. Era expressar que direitos naturais os homens
possuem e quais as limitações dadas a eles pelo Estado (bem como os limites
da atuação estatal). Conforme explica Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

O Estado de Direito significa que o Poder Político está preso e subordinado


a um Direito Objetivo, que exprime o justo. Tal Direito - na concepção ainda
prevalecente no século XVIII, cujas raízes estão na antiguidade greco-romana -
não era fruto da vontade de um legislador humano, por mais sábios que fosse,

35
LIMA, George Marmelstein. Curso de Direitos Fundamentais. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 5.
36
Para mais informações e conhecimento das teorias de Radbruch, ver RADBRUCH, Gustav. Cinco mi-
nutos de filosofia do direito. 1945 e RADBRUCH, Gustav. Introdução à Filosofia do Direito. 1947.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 431
mas sim da própria natureza das coisas. É Montesquieu quem o exprime no
primeiro capítulo de sua obra magna [Espírito das Leis]: “as leis são as relações
necessárias que derivam da natureza das coisas”.37

E mais à frente, referindo-se às concepções na declaração francesa de 1789:

Ora, declaração presume preexistência. Esses direitos declarados são os que


derivam da natureza humana, são naturais, portanto.
Ora, vinculados à natureza, necessariamente são abstratos, são do Homem, e
não apenas de franceses, de ingleses etc.
São imprescritíveis, não se perdem com o passar do tempo, pois se prendem à
natureza imutável do ser humano.
São inalienáveis, pois ninguém pode abrir mão da própria natureza.
São individuais, porque cada ser humano é ente perfeito e completo, mesmo se
considerado isoladamente, independentemente da comunidade (não é um ser
social que só se completa na vida em sociedade).
Por essas mesmas razões, são eles universais – pertencem a todos os homens,
em conseqüência estendem-se por todo o campo aberto ao ser humano, poten-
cialmente o universo.38

Mas, obviamente, não é tão fácil assim. Fábio Konder Comparato lem-
bra o perigo de um Direito Canônico abusivo que usou a justificativa da lei
natural para ignorar o direito positivo e estabelecer autoridade absoluta.39 No
entanto, os valores democráticos da liberdade e igualdade, como dito, são hoje
conteúdo indiscutível dos Direitos Humanos — e não por acaso.
Não há, necessariamente, ingenuidade na defesa do Jusnaturalismo. É
óbvio que estabelecer um padrão objetivo universal não é uma tarefa fácil,
mas as alternativas, até o momento, parecem ser insuficientes para formar um
Direito secular confiável e preciso, que não seja eivado das dúvidas esperadas
a respeito de que, porque o mundo resolveu, existe a absoluta certeza de um
conjunto tão essencial e complexo de direitos.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho aborda aspectos controversos dos Di-
reitos Humanos, incluindo o problema de sua fundamentação. Abaixo alguns
excertos importantes:

Qual é esse fundamento?


Embora não falte quem, carente de resposta sólida para a questão, tergiverse,
afirmando que o importante não é discutir esse tema, e sim concretizar tais

37
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 13 Ed. São Paulo: Saraiva,
2011, p. 20.
38
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 13 Ed. São Paulo: Saraiva,
2011, p. 40-41.
39
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 7 Ed. rev. e atual. São
Paulo: Saraiva, 2010, p. 32
432 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

direitos, o ponto é essencial. Ou este fundamento é acima do Estado - é su-


prapositivo - ou ele é a deliberação do Poder estabelecido - meramente direito
positivo, portanto, contingente como este o é. [...]
No momento em que foram promulgadas as primeiras Declarações [...] não
pairava qualquer dúvida sobre tal fundamento: era a natureza humana; eram
declarados direitos naturais de todo ser humano. [...]
Entretanto, a partir de meados do século XIX [...] desaparece dos preâmbulos
a referência a esse fundamento. Para uns, ele era óbvio, mas para muitos - os
positivistas - descabia tratar do assunto, porque recusavam o direito natural e
não tinham outro, convincente, para apresentar.40

O autor continua expondo a controvérsia e explica que até a bem mais


moderna Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, embraça
implicitamente um Direito Natural. Reconhece a dignidade humana e certos
direitos comuns a todos os homens como inerentes e inalienáveis, mas tam-
bém faz referência a uma concepção comum de direitos. Portanto, mescla
um Jusnaturalismo mais tímido com a ideia de consenso universal - a que se
chama consensus humani generis, argumento da posição sociológico-positivista
de fundamentação dos Direitos Humanos.41
Diz Gonçalves Filho que essa teoria pressupõe um consenso

que se inspira numa evidência que fala por si só à mente humana. É a posição
que tantos assumem no Brasil, confundindo suas convicções com as evidên-
cias e propondo a sua boa razão como medida de todas as coisas. Fácil, toda-
via, é refutá-la, bastando lembrar a votação da Assembleia Geral da ONU - ou
será que os marxistas ou os islamitas são desprovidos de razão, ou cegos para
as evidências?42

Depreende-se das conclusões do autor que há um pouco de desonestidade


intelectual em parte da liderança política contemporânea, acompanhada da
doutrina, que utiliza o fundamento jusnaturalista ao mesmo tempo que nega
o Direito Natural, numa esquizofrenia jurídica que teima em esquecer as raí-
zes das convicções que levaram às concepções contemporâneas de dignidade,
direitos e democracia:

[...] quem perquirir as principais Declarações editadas após 1945, vai encontrar
veladamente a velha tese jusnaturalista. Com efeito, ela se faz presente pelo viés da
invocação da dignidade da pessoa humana ou dos atributos da pessoa humana.

40
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 13 Ed. São Paulo: Saraiva,
2011, p. 216-217.
41
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 13 Ed. São Paulo: Saraiva,
2011, p. 217-218
42
Ibidem, p. 218.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 433
[...]
Veja-se que a própria Declaração Universal se refere, no primeiro item do
Prêambulo, ao “reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros
da família humana”.
E suas pegadas são seguidas por muitas outras. [...]
Sem dúvida, persiste, envergonhada, a invocação do direito natural como base
dos direitos fundamentais.43

CONCLUSÃO

Existe uma razão bastante simples para que o Direito Natural permaneça,
ainda que escondido, fazendo parte de declarações, tratados, constituições e
outras fontes formais de Direitos Humanos e Fundamentais: o estudo da base
filosófica desses direitos não encontrou outra alternativa viável para plena-
mente substituir o Jusnaturalismo.
O historicismo não permite concluir que a solução alcançada e os direitos
elencados são os melhores possíveis. A ideia do consenso universal se limita pelo
fato de haver eterno dissenso entre diferentes povos e culturas — e, sem a existên-
cia de um referencial específico, um padrão de justiça, a relativização cultural e
o multiculturalismo imperam na impossibilidade de mitigação da soberania de
uma nação, que, afinal, pode estar tão certa quanto qualquer outra.
Finalmente, nem mesmo o entendimento de Bobbio foge muito dessa
ideia de consenso histórico e, a menos que a história siga alguma espécie de
finalismo secreto, dificilmente haverá o direcionamento de todas as sociedades
em direção à mesma conclusão pró-Direitos Humanos, por vontade própria
dos governantes e do povo. Afinal, a ideia iluminista do eterno progresso ci-
vilizatório já foi derrubada, na medida em que países mais “civilizados” que
nunca perpetraram terríveis genocídios. Dessa forma, agora é compreensível
que nações e culturas podem evoluir e involuir, na garantia ou retirada de
direitos, na adoção de leis mais ou menos justas.
A determinação do que torna elas justas, portanto, não é ponto tangente,
mas crucial a toda a Teoria do Direito, ao Direito Internacional e a toda a
doutrina dos Direitos Humanos e Fundamentais. Não se pode olvidar da rele-
vância da discussão do fundamento dos Direitos Humanos, sob pena de não
haver justificativa ética contrária à ameaça de direitos básicos.
Mesmo assim, não se deve esquecer as palavras do próprio Norberto
Bobbio, quando afirmou:

Da finalidade visada pela busca do fundamento, nasce a ilusão do fundamen-


to absoluto, ou seja, a ilusão de que de tanto acumular e elaborar razões e

43
Ibidem, p. 218-219.
434 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

argumentos - terminaremos por encontrar a razão e o argumento irresistível,


ao qual ninguém poderá recusar a própria adesão. [...] Diante do fundamento
irresistível, a mente se dobra necessariamente, tal como o faz a vontade diante
do poder irresistível.44

É importante, sim, saber o fundamento desses direitos, mas é possível - e


extremamente provável - que nunca se alcance o “argumento perfeito”, a solu-
ção para todos os problemas do alicerce dos Direitos Humanos. Toda ciência,
inclusive a ciência jurídica, é passível de questionamento e lapidação. Mais
difícil ainda é determinar qual o conteúdo fundamental dentro da pluridade
de ideias a respeito da natureza humana.
Entretanto, quanto menos justificados forem os Direitos Humanos, me-
nos exigíveis parecerão ser aos olhos daqueles que os contrapõem. Existem
dificuldades teóricas e práticas em cada teoria apresentada. A melhor justifi-
cativa, assim, permanece ponto obscuro na doutrina contemporânea, sempre
alvo de discussões - e parece longe de chegar a um fim.
Por fim, vale mencionar excerto de Wolfgang Kersting que faz crítica
bastante dura aos defensores do relativismo dos direitos mais caros à humani-
dade: “Idiotas úteis dos ditadores deste mundo que, a pretexto da autodefesa
cultural, isolam seus regimes autocráticos contra a penetração de exigências de
democracia e Estado de Direito”.45
Se não é preciso chegar a tanto para criticar, não é menos verdade que o
permitiu os horrores do Século XX não foi só o comportamento ativamente
odioso de uns, mas a extrema inércia do mundo “esclarecido”. Que o homem
é capaz de grande mal é inegável. Resta saber se, agora, o mundo esperará o
amor à paz46 por toda nação ou entenderá que os Direitos Humanos perten-
cem a todos — os humanos.

REFERÊNCIAS

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em: <http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/politica-externa/paz-e-seguranca-internacionais/152-tribunal-penal-
-internacional>. Acesso em: 30 jan. 2017.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 7 Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

44
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 7 Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p.16.
45
KERSTING, Wolfgang. Em Defesa do Universalismo Sóbrio. In: Revista Veritas, v. 46, n. 4. Dez.
Porto Alegre: PUCRS, 2001.
46
O art. 4º da Carta da ONU afirma que a membresia da organização é aberta para todos os países
“amantes da paz” que aceitam e podem cumprir as obrigações da Carta — embora alguns frequente-
mente a descumpram. Cf. NAÇÕES UNIDAS. Carta das Nações Unidas, de 26 de junho de 1945. Art,
4º, Cap. II. São Francisco. Disponível em português em: <https://nacoesunidas.org/carta/>. Acesso
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Capítulo 28
Análise das Medidas da OMC para o
Combate ao Protecionismo nas
Relações de Comércio Internacional
Laís Maria Belchior Gondim

1. INTRODUÇÃO

A globalização horizontal e vertical tornou-se possível com a supremacia


do capitalismo, reorganizando as vinculações internacionais com prerrogati-
vas neoliberais, predomínio de mercados e primazia militar norte americana.
Este processo, ao mesmo tempo, permitiu aumento do fluxo de produtos
comercializados, nivelamento entre oferta e procura, formação de blocos eco-
nômicos e encarceramento da periferia frente aos países desenvolvidos1.
A repercussão fazendária dessa multinacionalização consistiu em crises
financeiras e capitais especulativos, visto que as emergências regionais foram
invadidas por livre fluxo de mercados e serviços mais competitivos. A salva-
guarda internacional apenas considerava instrutivos os efeitos predatórios e
os prejuízos1.
O mercado hodierno, frente à sustentabilidade ambiental que urge como
equilíbrio mundial em amplas vertentes, apresenta certa apreensão governa-
mental e do corpo social quanto à garantia e à natureza de produtos comercia-
lizados, desenvolvendo escalas crescentes de regulamentações nas negociações
vigentes, com focos ao fluxo de mercadorias. Tais imposições delegam antepa-
ros considerados legítimos. Entretanto, tangencia-se o equilíbrio entre tutelas
e encargos multilaterais2.
A Organização Mundial do Comércio (OMC) apresenta medidas multi-
laterais para assegurar ausência de obstáculos ao comércio internacional, apli-
cáveis unicamente aos países membros. Atores estatais e não estatais, todavia,

1
CERVO, A.L. Relações internacionais do Brasil: um balanço da era Cardoso. Rev. bras. polít. int.,
v. 45, n.1, 2002. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-7329200200010000. Acesso em
28.10.2017.
2
AMARAL, M. “Protecionismo Privado”: A Atuação da Sociedade Civil na Regulação do Comércio
Internacional. Contexto Internacional, v. 36, n.1, p. 201-228, 2014. Disponível em http://www.scielo.
br/pdf/cint/v36n1/a07v36n1.pdf. Acesso em 28.10.2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 437
configuram regras outras que estão fora do alcance desta instituição, pondo
em risco as relações da mundialização2. Isso se deve à amplitude das normas
da OMC, a qual facilita esse comportamento.
Tendo em vista a necessidade de regulação do comércio internacional
a fim de ordenar essa prática, regulamentos devem ser criados para nortear
obrigatoriamente os governos. Já as normas técnicas constam das demandas
voluntárias de mercado, podendo ser formuladas por entidades privadas ou
reconhecidas pelo governo como organismo normalizador nacional. Essa prá-
tica é utilizada por países em todo o mundo a fim de reger a economia3.
Com relação à utilização de medidas protecionistas pelos países, a OMC
procura combatê-las4. O protecionismo econômico demanda vantagens como
o aumento da empregabilidade e fomento ao desenvolvimento tecnológico.
Entretanto, essa prática também pode constituir prejuízos ao comércio in-
ternacional dada a indolência de mercado para novas criações, perdendo este
espaço no mercado de ponta e gerenciamento escasso de recursos5.
Além disso, este protecionismo comercial é criticado por frentes liberais
que usaram, inclusive, deste fim para acumular suas riquezas e atingirem os
padrões internacionais que hoje apresentam. Porém, elas negam aos países em
desenvolvimento o uso da mesma ferramenta com semelhante fim através de
pressão política ou refreamento econômico6.
Essa pesquisa tem como objetivo analisar o protecionismo na regulação
das relações de comércio internacional, descrever a trajetória do comércio in-
ternacional pautada nas relações de trabalho e com base no Direito e identifi-
car formas de combate ao protecionismo adotadas pela OMC e a sua eficácia.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1. Contexto histórico

Comércio significa troca de mercadorias por mercadorias, revelando-se im-


portante nas relações sociais em tempos remotos, para satisfazer as necessidades

3
AMARAL, M. “Protecionismo Privado”: A Atuação da Sociedade Civil na Regulação do Comércio
Internacional. Contexto Internacional, v. 36, n.1, p. 201-228, 2014. Disponível em http://www.scielo.
br/pdf/cint/v36n1/a07v36n1.pdf. Acesso em 28.10.2017.
4
CESAR, S. E. M. A Organização Mundial do Comércio e a contenção do protecionismo como reação à
crise econômica e financeira global. Bol Mer 47, v. 14, n. 140, p. 11-19, 2013. Disponível em: https://
doaj.org/article/be18d02f9b7e48258124b5caa3bf3284. Acesso em: 14.11.2017.
5
Dos SANTOS JUNIOR, A.G. Liberalismo x Protecionismo. Disponível em: http://fortium.edu.br/
blog/antonio_germano/files/2012/09/Liberalismo-x Protecionismo.pdf. Acesso em: 28.10.2017.
6
HA-JOON, C. Chutando a Escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. São
Paulo: Editora UNESP, 2004.
438 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

básicas de cada indivíduo. Essa atividade desenvolveu-se ao longo do tempo


influenciando econômica e politicamente a sociedade global 7.
A descentralização do Império Romano, na Idade Média, fomentou
a aparição de pequenos centros comerciais, que, apesar de não possuí-
rem todos os produtos necessários à subsistência, não aplicavam as trocas
cambiais, indo a acontecer apenas nos séculos XI e XII, o estabelecimento
das relações comerciais provocando êxodo rural culminando na queda do
feudalismo, suscitando dinamicidade nas trocas de mercadorias entre os
países8.
No início, o comércio era uma atividade nômade, desencadeando o de-
senvolvimento das feiras. Com o surgimento das cidades, os comerciantes se
tornaram fixos a fim de melhor se adequar à atividade mercantil9. Houve,
então, um crescimento demográfico, suscitando uma maior disponibilidade
de mão de obra, o que resultou em uma produção mais significativa, desenca-
deando o desenvolvimento do comércio internacional10.
Nos Estados Nacionais, o comércio desenvolveu-se de forma desigual,
segundo as especificações socioambientais e políticas de cada um, favorecendo
a melhor utilização de recursos econômicos e o acesso a bens e produtos a
custos melhores10.
Simultaneamente, houve o descobrimento de novas terras e a formação
de colônias, das quais era subtraída grande parte da riqueza, destinando-a as
metrópoles. Isso fomentou a amplificação dos mercados. Posteriormente, na
Revolução Industrial, tendo a Inglaterra como pioneira pelas condições ade-
quadas que possuía, foram criadas máquinas, como a máquina a vapor com
um sistema hidráulico, aumentando a produtividade11.
Com as guerras mundiais e as revoluções industriais, houve o desenvolvi-
mento de indústrias nos mais variados ramos de produção, o que gerou maior

7
TOMAZETTE, M. A necessidade de regulamentação multilateral do comércio internacional: prote-
cionismo x liberalização. Prismas: Dir., Pol. Publ. e Mundial., Brasília, v. 7, n. 2, p. 59-85, 2010.
Disponível em: https://app.vlex.com/#WW/search/content_type:4/protecionismo/WW/vid/417277522/
graphical_version. Acesso em: 28.10.2017.
8
GALGANO, F. História do direito comercial. Tradução de João Espírito Santo. Lisboa: PF, 1990.
p. 32.
9
LEWIS, S. B. A intima relação entre o direito e economia. Rev. de Dir. Merc., Ind., Econ. e Fin., n.
138, p. 231-249, 2005. Disponível em: https://app.vlex.com/#WW/search/content_type:4/protecionis-
mo/WW/vid/563510891. Acesso em: 14.11.2017.
10
TOMAZETTE, M. A necessidade de regulamentação multilateral do comércio internacional: prote-
cionismo x liberalização. Prismas: Dir., Pol. Publ. e Mundial., Brasília, v. 7, n. 2, p. 59-85, 2010.
Disponível em: https://app.vlex.com/#WW/search/content_type:4/protecionismo/WW/vid/417277522/
graphical_version. Acesso em: 28.10.2017.
11
PROSCURCIN, P. Compêndio de direito do trabalho: Introdução às relações de trabalho. 3 ed. São
Paulo: LTR, 2015. 380 p. ISBN 978-85-361-8552-1.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 439
diversidade nas trocas comerciais mundiais, favorecendo o surgimento de um
mundo globalizado12.

2.2. Direito e comércio

O modelo jurídico da Idade Média consistia no pluralismo jurídico em


que cada reino ou feudo possuía suas leis, escritas ou não, sobrepondo-se ao
Direito Canônico. A carta de João sem Terra de 1215 ilustra a evolução das
relações entre Direito e Economia na Inglaterra, limitando o poder do rei13.
Outro exemplo de destaque configura-se no livro de Jonh Locke “Segun-
do Tratado de Governo”, em que o poder do soberano deveria seria limitado
tendo em vista as liberdades individuais, como o direito à propriedade13.
Com a derrubada do poder monárquico e a ascensão da burguesia, na
Revolução Francesa, surge a primeira geração dos direitos de igualdade e liber-
dade, que, no âmbito econômico, esta última configura-se como liberdade de
mercado. Houve, com essa conjuntura, mudanças no meio jurídico, a saber: a
tomada de confiança do posicionamento hermenêutico. Com os conflitos so-
ciais advindos das transformações socioeconômicas suscitadas pela revolução,
o Direito questiona as conquistas trazidas por essa13.
Surge, então, a distinção entre direito público e privado. Os grandes gru-
pos industriais solicitavam uma perspectiva neoliberal, como a diminuição
das barreiras alfandegárias. Já a população procurava o respaldo do Estado
para atingir o bem estar social e melhorar condições de vida13.
Dados da Organização Mundial do Comércio (OMC) mostram que os
países desenvolvidos, em geral, adotam medidas de proteção ao mercado na-
cional. Subsídio governamental e impedir a importação são exemplos de me-
didas protecionistas adotadas pelos governos14.

2.3. Protecionismo

A defesa da concepção protecionista surge na Alemanha, a partir da obra


de Johann Gottlieb Fichte, “O Estado Comercial Fechado”, a qual versa acerca

12
De OLIVEIRA, O. M. Relações comerciais globais e o império dos mercados mundiais. In: OLIVEIRA,
Odete Maria de; DAL RI JÚNIOR, Arno (Org.). Direito internacional econômico em expansão: desaios
e dilemas. Ijuí: Unijuí, 2003. p. 843-951.
13
LEWIS, S. B. A intima relação entre o direito e economia. Rev. de Dir. Merc., Ind., Econ. e Fin., n.
138, p. 231-249, 2005. Disponível em: https://app.vlex.com/#WW/search/content_type:4/protecionis-
mo/WW/vid/563510891. Acesso em: 28.10.2017.
14 14
CESAR, S. E. M. A Organização Mundial do Comércio e a contenção do protecionismo como reação
à crise econômica e financeira global. Bol Mer 47, v. 14, n. 140, p. 11-19, 2013. Disponível em: https://
doaj.org/article/be18d02f9b7e48258124b5caa3bf3284. Acesso em: 28.10.2017.
440 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

da necessidade de independência econômica do Estado, incluindo, por exem-


plo, uma proibição aduaneira. No entanto, essa prática não proporcionaria
vantagens à Nação. Já Georg Friedrich List considerava o protecionismo como
forma de construir uma nação forte que pudesse, posteriormente, manter re-
lações comerciais com outros Estados de modo adequado e que trouxesse
benefícios para essa15.
No Brasil, para o economista Simonsen, tal desenvolvimento se daria
com a intervenção do Estado a partir de intervenção nos setores em que a atua-
ção privada era ineficaz, sugerindo tarifação alta sobre produtos importados
para favorecer a mercadoria nacional. Já para Gudin, o Estado deveria intervir
no âmbito econômico em crises regulando as relações de comércio, todavia o
próprio mercado se ordenaria16.
Ademais, é possível que haja participação conjunta do setor público e
privado dependendo da natureza da norma16. Essas funções se dividem entre
tais setores, entretanto essa diferença não é concisa, uma vez que há interde-
pendência entre eles17. O Estado influencia no setor privado quando busca
interferir na formação de políticas privadas de modo a dificultar as relações
de comércio internacional18. Isso caracteriza o protecionismo.
Iniciativas privadas, geralmente, determinam medidas que regulam a ad-
ministração das próprias empresas. Tal sistema rege as transações dessas entre
si e com os consumidores, configurando o protecionismo privado, e atinge as
relações de comércio mundiais. Isso pode prejudicar a liberalização comercial.
Essa conjuntura de participação privada no âmbito econômico estatal tornou-
-se cada vez mais frequente, por falta ou inadequação de normas referentes ao
assunto. Dessa forma, as instituições privadas propagam-se quando há pouca
participação estatal19.

15
OLIVEIRA, I. T. M. Livre Comércio versus Protecionismo: uma análise das principais teorias do comér-
cio internacional. Rev. Urutágua - revista acadêmica multidisciplinar, n. 11, p. 7-8, 2007. Disponível
em: www.urutagua.uem.br/011/11oliveira.htm. Acesso em: 28.10.2017.
16
ABBOTT, K.W. e SNIDAL, D. Strengthening international regulation through “transnational
new governance”, 2008. Disponível em: http://works.bepress.com/kenneth_abbott/1/. Acesso em:
28.10.2017.
17
AMARAL, M. O desafio do “protecionismo privado” e as regras multilaterais de comércio da OMC.
Rev. Bra. Com. Ext. – RBCE, Ano XXVII, 2013. Disponível em: http://www.funcex.org.br/publica-
coes/rbce/material/rbce/115_MKA.pdf.pdf. Acesso em 28.10.2017.
18
CASHORE, B. Legitimacy and privatization of environmental governance: how non-state market
driven governance systems gain rule-making authority. Governance, v. 15, i. 4, p. 503-529,
2002. Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1468-0491.00199/full. Acesso
em 28.10.2017.
19
AMARAL, M. O desafio do “protecionismo privado” e as regras multilaterais de comércio da OMC.
Rev. Bra. Com. Ext. – RBCE, Ano XXVII, 2013. Disponível em: http://www.funcex.org.br/publica-
coes/rbce/material/rbce/115_MKA.pdf.pdf. Acesso em 28.10.2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 441
2.4. OMC e protecionismo

A crise financeira internacional de 2008, que teve início em 2007 no


mercado imobiliário norte-americano subprime, afetou as relações econômi-
cas internacionais ao mostrar falhas na regulamentação desse mercado, por
exemplo, no que tange ao princípio da autorregulação do mercado quando as
decisões dos bancos passaram a ter mais valor que as do próprio governo, além
da estrita correlação entre bancos e instituições financeiras a fim de diminuir
os riscos de crédito e, por consequência, aumentar a liquidez do mercado20.
Com essa instabilidade, houve preocupação com o risco de novas polí-
ticas protecionistas tendo em vista a experiência da crise de 1929, decorrente
da superprodução que, formando um excedente maior que o próprio mercado
consumidor, ocasionou a falência de muitas empresas e a queda nas vendas de
ações, diminuindo demasiadamente seus valores e suscitando, portanto, a crise
na bolsa de valores de Nova York21.
Existia receio em relação ao isolacionismo econômico, desfavorável ao
mercado internacional. Uma consequência desse colapso foram barreiras co-
merciais criadas pelos Estados que prejudicaram as relações comerciais globais,
como o Smoot-Hawley Tariff Act dos Estados Unidos, que se configurou como
protecionista22, uma vez que consistia em aumentar as tarifas sobre produtos
importados pelo país23.
Hoje, há um acordo mundial considerando o protecionismo como prá-
tica desfavorável ao mercado externo. Contudo, recessões conduzem os gover-
nos à possibilidade de adoção de medidas protecionistas com o objetivo de
obter vantagens em curto prazo, entretanto há prejuízos ao mercado em longo
prazo ao enfraquecer as relações comerciais entre os países. Deve-se adotar, em
caso de crises, não essas práticas, mas providências cautelosas24.

20
FARHI, M. et al. A crise e os desafios para a nova arquitetura financeira internacional. Rev. Econ. Po-
lít., v. 29 n.1, p.133-149, 2009. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rep/v29n1/08.pdf. Acesso em:
03.01.2018.
21
MOREIRA, T. F. Crise do capitalismo: A Depressão de 1929. Disponível em: https://s3.amazonaws.
com/academia.edu.documents/39465584/CRISE_DO_CAPITALISMO_-_A_Crise_de_1929.pdf?AW-
SAccessKeyId=AKIAIWOWYYGZ2Y53UL3A&Expires=1515006092&Signature=WJWqEqHzf-
t4S6tnbYdbxO9ij0nA%3D&response-content-disposition=inline%3B%20filename%3DA_Crise_
de_1929.pdf. Acesso em: 03.01.2018.
22
WORLD TRADE ORGANIZATION (WTO). An insurance policy against protectionism. Trade, In-
vestment, Tax and Transparency: G7 Germany: The Schloss Elmau Summit., 2005. Disponível em:
https://www.wto.org/english/thewto_e/dg_e/g7_2015.pdf. Acesso em: 03.01.2018.
23
EICHENGREEN, B. The Political Economy of the Smoot-Hawley Tariff. NBER Working Paper.
n.2001, 1986. Disponível em http://www.nber.org/papers/w2001.pdf. Acesso em: 03.01.2018.
24
MOREIRA, T. F. Crise do capitalismo: A Depressão de 1929. Disponível em: https://s3.amazonaws.
com/academia.edu.documents/39465584/CRISE_DO_CAPITALISMO_-_A_Crise_de_1929.pdf?AW-
SAccessKeyId=AKIAIWOWYYGZ2Y53UL3A&Expires=1515006092&Signature=WJWqEqHzf-
442 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Para evitar a utilização dessas medidas pelos países membros, a Organi-


zação Mundial do Comércio (OMC) estabeleceu normas com a finalidade de
regular as relações econômicas multilaterais e combater práticas que sejam
contraproducentes ao comércio internacional, buscando, inclusive, dificultar
o protecionismo. Ademais, a OMC supervisiona o cumprimento das regras
pelos países e procura solucionar conflitos existentes no meio global, objeti-
vando a transparência e responsabilidade dos governos25.
A lei da OMC autoriza, porém restringe a formação de Acordos Comer-
ciais Regionais, todavia esses têm crescido substancialmente perante o sistema
jurídico internacional, sendo a atuação jurídica necessária frente aos confli-
tos entre regionalismo e multilateralismo. Esta organização também permite
acordos, desde que estes estejam em conformidade com as leis estabelecidas
pelos seus países membros com a finalidade de evitar delitos fiscais e práticas
prejudiciais no comércio exterior26.
Todavia, esses limites determinados pela OMC não são sempre efetivos de
forma que o Comitê dos Acordos Comerciais Regionais aplicou medidas para
garantir a transparência das relações comerciais em detrimento da análise dos acor-
dos citados a fim de garantir sua consonância com as regras dessa Organização26.
Essa transparência é de extrema relevância, já que, apesar de muitos docu-
mentos estarem no site da OMC e, assim, haver grande quantidade de dados,
alguns desses continuam em sigilo, o que poderia ser resolvido pelos seus países-
-membros. A partir dessa transparência, essas informações seriam mais acessíveis27.
Devido à crise do sistema financeiro de 2008, a OMC passou a emitir
relatórios de monitoramento do comércio mundial duas vezes ao ano para
tornar mais eficaz a regulação desse. Tais relatórios demonstraram que os paí-
ses apresentaram ressalvas acerca de medidas restritivas do comércio enquanto
o armazenamento desses países seguia crescendo28.

t4S6tnbYdbxO9ij0nA%3D&response-content-disposition=inline%3B%20filename%3DA_Crise_
de_1929.pdf. Acesso em: 03.01.2018.
25
WORLD TRADE ORGANIZATION (WTO). An insurance policy against protectionism. Trade, In-
vestment, Tax and Transparency: G7 Germany: The Schloss Elmau Summit., 2005. Disponível em:
https://www.wto.org/english/thewto_e/dg_e/g7_2015.pdf. Acesso em: 03.01.2018.
26
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l’OMC. NOMOS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, Fortaleza, v.33, n.1,
p. 351-374, 2013. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/12056/1/2013_art_arsil-
va.pdf. Acesso em: 08.01.2018.
27
Da SILVA, A. R. Melhor é ver do que julgar: análise da convivência do regionalismo com o multilate-
ralismo da OMC. NOMOS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, Fortaleza,
v.35, n.2, p.15-42, 2015. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/19927/1/2015_
art_arsilva.pdf. Acesso em: 08.01.2018.
28
WORLD TRADE ORGANIZATION (WTO). An insurance policy against protectionism. Trade, In-
vestment, Tax and Transparency: G7 Germany: The Schloss Elmau Summit., 2005. Disponível em:
https://www.wto.org/english/thewto_e/dg_e/g7_2015.pdf. Acesso em: 03.01.2018.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 443
2.4.1. Acordo de Facilitação de Comércio da OMC e combate a delitos
aduaneiros

Em 2013, houve a implementação do Acordo de Facilitação de Comércio


pelos países-membros na IX Conferência Ministerial da Organização Mundial
do Comércio, em Bali, Indonésia, objetivando o combate a infrações fiscais e
a simplificação de processos no comércio internacional29.
Esse acordo busca tornar as informações relativas a importações, expor-
tações e trânsito mais acessíveis ao prever que essas devem ser publicadas,
contribuindo também para que haja transparência nas relações econômicas
entre os países29.
Além disso, o acordo também visa regular a interpretação da legislação
tributária e aduaneira e busca diminuir as taxas e encargos presentes nas re-
lações comerciais nos países-membros que ratificaram o referido acordo. Os
Membros devem também estabelecer penalidades em caso de infrações adua-
neiras e em consonância com a jurisprudência do próprio país, sendo essas
dependentes do grau e gravidade dos delitos praticados29.
Tal acordo diz ainda que os Membros deverão tomar medidas que impos-
sibilitem conflitos de interesse submetendo-se, assim, estritamente a jurispru-
dência e legislação do próprio país. Ademais, quando do não cumprimento da
jurisprudência do Estado, deve-se esclarecer o acusado da transgressão acerca
da natureza da infração e qual a lei ou norma que ele descumpriu, sendo a de-
núncia espontânea atenuante à pena a ser designada para o dito transgressor29.
No entanto, o acordo também afirma que as cláusulas nele previstas
não excluem, de modo algum, o direito dos países-membros de investigação,
apreensão ou utilização dos bens de maneira diferente dos preceitos estabele-
cidos pela OMC29.
Outrossim, os países precisam aplicar um sistema de gestão de risco para
controle aduaneiro, devendo facilitar o desbloqueio de cargas de baixo risco
em detrimento de cargas de alto risco. Pode-se adotar um sistema de triagem
baseado em critérios determinados pelo país receptor das cargas em questão,
como natureza e valor dos bens, além do país de origem dessas cargas e os
meios de transporte utilizados para conduzir os bens até o destino30.
O acordo também ressalta a importância da chamada Auditoria Pós-Des-
pacho Aduaneiro, que se configura como uma ferramenta utilizada para evitar
delitos aduaneiros e garantir o respeito à jurisprudência cabível do Estado que
receberá a carga. Esse mecanismo se adéqua à intensidade do risco proposto no
29
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO (OMC). Acordo de Facilitação de Comércio. Bali,
2013. Disponível em: http://idg.receita.fazenda.gov.br/orientacao/aduaneira/importacao-e-exportacao/
AcordodeFacilitaoOMCnovo.pdf. Acesso em 08.01.2018.
444 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

sistema de gestão de risco no que tange aos parâmetros de seleção dos bens em
questão, sendo permitida a utilização posterior pela justiça de dados obtidos
durante o processo relatado30.
Além disso, os Membros poderão instituir medidas para simplificar o
comércio que precisam ter no mínimo três dos sete itens previstos no acordo,
a saber: menor volume de documentos e informações obrigatórios, menos
inspeções e exames físicos, tempo de liberação de cargas inferior, pagamento
distinto de direitos, tributos e encargos, uso de garantias globais ou reduzidas,
declaração aduaneira unificada de importações e exportações em certo período
e despacho aduaneiro das cargas em qualquer local autorizado30.
O Acordo de Facilitação de Comércio da OMC demonstra, portanto,
uma tentativa de estabelecer medidas comuns aos seus países-membros a fim
de combater delitos aduaneiros, como o protecionismo, de permitir maior
transparência nos processos fiscais e de tornar o comércio internacional me-
nos complexo e mais fluido, embora essa não seja sempre eficaz.

CONCLUSÃO

Conclui-se que a relação entre comércio e Direito existe há muito tem-


po, estando o protecionismo amplamente relacionado com o Direito in-
ternacional econômico, uma vez que, na dinâmica comercial hodierna, a
Organização Mundial do Comércio institui normas, porém os governos e
os agentes privados seguem as próprias regras. O Estado impõe medidas para
proteger os produtos nacionais, tendo em vista o mercado globalizado e com
produtos estrangeiros competitivos, adentrando na diferença entre direito
público e privado. Ademais, apesar de a OMC estabelecer acordos que visem
o combate aos delitos aduaneiros, como o protecionismo, tais medidas não
são, de fato, eficazes.

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30
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO (OMC). Acordo de Facilitação de Comércio. Bali,
2013. Disponível em: http://idg.receita.fazenda.gov.br/orientacao/aduaneira/importacao-e-exportacao/
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Capítulo 29
Missões de Paz da ONU:
Uma Análise dos Diferentes Tipos de
Relacionamentos Interpessoais Estabelecidos
entre os Pacificadores e as Mulheres
das Comunidades Locais

Ingrid Forte Moura Rocha

1. INTRODUÇÃO

Os trabalhadores das tropas de paz da Organização das Nações Unidas,


ou, como são popularmente conhecidos, os pacificadores da ONU, totalizam,
atualmente, mais de 110 mil homens e mulheres – militares, policiais e civis – e
servem em 15 missões distribuídas ao redor do mundo.1
Além de manter a paz e a segurança, as forças de paz prestam assistência
aos processos políticos e às reformas dos sistemas judiciários, treinam policiais,
desarmam e reintegram ex-combatentes, apoiam o retorno de refugiados e de
pessoas deslocadas internamente e desenvolvem diversas outras atividades.2
Contudo, mesmo os pacificadores sendo reconhecidos como pessoas que
manifestam os melhores atributos da solidariedade global, pois servem de for-
ma corajosa em ambientes perigosos e fornecem segurança a populações vul-
neráveis, alguns relatos de abuso e de exploração sexual os envolvendo, espe-
cificamente aqueles do sexo masculino, foram intensificando-se e tornando-se
alvo de preocupação das autoridades dos países integrados às missões de paz.
Para impedir estas situações, a ONU, juntamente com os países, elaborou uma
política de tolerância zero, na qual práticas de quaisquer tipos de relações sexuais
entre pacificadores e membros da população local hospedeira, mesmo que consen-
tidas por mulheres maiores de idade, são fortemente reprimidas e condenadas.
Ocorre que, esta política, por ser muito generalizada, deixa de avaliar a
realidade das missões de paz, de forma que estas relações sexuais que ocorrem

1
UNITED NATIONS PEACEKEEPING. Peacekeeping Fact Sheet. Disponível em <http://www.
un.org/en/peacekeeping/resources/statistics/factsheet.shtml> Acesso em 14 de setembro de 2017.
2
ONU marca o Dia Internacional dos trabalhadores das Forças de Paz: brasileiro será homenageado. Nações
Unidas do Brasil, 18 de maio de 2016. Disponível em < https://nacoesunidas.org/onu-marca-dia-internacio-
nal-dos-trabalhadores-das-forcas-de-paz-brasileiro-sera-homenageado/> Acesso em 17 de setembro de 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 447
de maneira consentida e que são decorrentes da mera integração na comu-
nidade em que o pacificador está vivendo são enquadradas como abuso e
exploração sexual.
Este artigo pretende expor e analisar as diversas situações que envolvem
as relações entre os pacificadores e as mulheres maiores de idade das popula-
ções onde se instalam as missões de paz, enfatizando a importância de dife-
renciar as relações sexuais decorrentes da integração na comunidade daquelas
oriundas de abusos e de exploração sexual. Será abordado também o posicio-
namento e o tratamento dado a este tema pelas Nações Unidas e pelos países
implicados e a consequência deste na realidade fática das missões de paz.
Previamente, será feita uma apresentação de em que consistem as missões
de paz da Organização das Nações Unidas, sendo discutidas, posteriormente,
as situações de abuso e de exploração sexual nestas e a integração dos pacifi-
cadores na comunidade local. Por fim, restará uma abordagem da política de
tolerância zero da ONU e dos países envolvidos e as problemáticas resultantes
desta, com ênfase em uma construção dialética que envolva diferentes perspec-
tivas da questão suscitada.

2. MISSÕES DE PAZ: CONCEITOS E FUNÇÕES

A Organização das Nações Unidas (ONU) possui como propósitos a


manutenção da paz e da segurança internacional; o desenvolvimento de rela-
ções amistosas entre as nações; a realização da cooperação internacional para
resolver os problemas mundiais de caráter econômico, social, cultural e hu-
manitário; e a promoção do respeito aos direitos humanos e às liberdades
fundamentais, sendo, desta forma, um centro destinado a harmonizar a ação
dos povos para a consecução desses objetivos comuns. 3
Destarte, as Operações de Manutenção de Paz da ONU, caracterizando-
-se como uma espécie de expressão mais ostensiva da realização desses propó-
sitos, foram estabelecidas em 1948, por meio da autorização do Conselho de
Segurança, com o intuito de auxiliar nas necessidades oriundas de diferentes
conflitos e de ajudar os países devastados a criar condições para alcançar a
paz permanente.
As Missões de Paz são guiadas por três princípios básicos: o consenso
entre as partes, a imparcialidade e o não uso da forca, exceto nos casos de
autodefesa dos pacificadores e de defesa das suas funções.

3
ARTIFON, A. L. et al. A importância das Missões de Paz para a Estratégia de Inserção Internacio-
nal do Brasil. Disponível em < http://www.aman.eb.mil.br/artigos-congresso-academico/udf-a-impor-
tancia-das-missoes-de-paz-para-a-estrategia-de-insercao-internacional-do-brasil.pdf> Acesso em 12 de
setembro de 2017.
448 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Estas operações, ao longo dos anos, têm se provado uma das ferramentas
mais efetivas para a prestação de auxilio, por parte dos pacificadores das Na-
ções Unidas, aos países vulneráveis hospedeiros, possibilitando, desta manei-
ra, que estes superem as dificuldades resultantes de conflitos e que consigam
reestabelecer a paz.
Ainda que não constem na Carta das Nações Unidas, definem-se ainda,
como um importante instrumento para a ratificação da presença da ONU em
áreas frágeis, possuindo, portanto, uma ampla importância, com implicações
políticas, estratégicas, éticas e sociais.
As missões de paz possuem duas categorias, a primeira são as operações de
manutenção da paz, empreendimentos multinacionais que precisam ter sido
acordados anteriormente pelas partes envolvidas e que servem para converter
esforços sobre uma área conflituosa ou com indícios de que está se tornando
conflituosa, para assegurar a vida e para promover a segurança; e a segunda,
são as operações de imposição da paz, as quais tratam do restabelecimento da
paz entre envolvidos beligerantes, sem prévio consentimento entre as partes.
Estas operações não são formadas unicamente para manter a paz e a
segurança nos países hospedeiros, pois, além disto, facilitam os processos po-
líticos, protegem os civis, auxiliam no desarmamento, na desmobilização e
na reintegração de antigos combatentes, remedeiam a organização de eleições,
protegem e promovem os direitos humanos, entre outras atribuições.4
No sentido de concretizar os propósitos das Nações Unidas, surgiu
o ideal da R2P (Responsabilidade de Proteger), acolhido pelo ex-Secretário
Geral da ONU, Kofi Annan e incluído na resolução final da World Summit
Outcome 2005.
Nessa resolução encontram-se os três pilares da responsibility 2 protect, sen-
do estes: a responsabilidade dos Estados, em primeira instância, de proteger a
sua população do genocídio, da limpeza étnica, dos crimes contra a humani-
dade e dos crimes de guerra; da comunidade internacional de promover auxí-
lio aos Estados na construção da aptidão de exercer a sua responsabilidade pri-
mária; e ainda da comunidade internacional de utilizar meios diplomáticos,
humanitários, entre outros para preservar as populações contra tais crimes.
Dessa forma, caso o Estado falhe na tutela de sua população, é necessário,
no contexto da Carta das Nações Unidas, que a comunidade internacional
adote ações coletivas para proteger a população, tendo como um dos princi-
pais exemplos as missões de paz da ONU.
Atualmente, existem 15 missões de paz sob a liderança das Nações Uni-
das, estando estas localizadas no Haiti, Saara Ocidental, Libéria, Mali, Repú-

4
UNITED NATIONS PEACEKEEPING. What is peacekeeping? Disponível em <http://www.un.org/
en/peacekeeping/operations/peacekeeping.shtml > Acesso em 14 de setembro de 2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 449
blica Centro-Africana, República Democrática do Congo, Darfur, Abyei, Su-
dão do Sul, Kosovo, Chipre, Líbano, Oriente Médio, Síria e Índia e Paquistão.
Algumas missões foram estabelecidas há mais de 50 anos, como as locali-
zadas no Oriente Médio, 1948, na Índia e Paquistão, 1949, e no Chipre, 1964.
Outras datam em média 40 anos, como as da Síria, 1974, e do Líbano, 1978.
Há ainda as que possuem 15 anos ou mais, como as no Saara Ocidental, 1991
e no Kosovo, 1999. Por fim, as mais recentes surgiram há 10 anos ou menos,
sendo a última estabelecida em 2014 na República Centro-Africana.5
Desta forma, a tendência das missões é de que se perpetuem ao longo
dos anos, sem prazo para supressão, conquanto haja a concretização dos seus
objetivos.

3. A INTEGRAÇÃO DOS PACIFICADORES NAS POPULAÇÕES


HOSPEDEIRAS

Atualmente, mais de 14 mil civis, de 90 mil policiais e militares profis-


sionais e de mil voluntários servem às Nações Unidas em Missões de Paz ao
redor do mundo.
Esses homens e mulheres, que se dedicam, também, a trabalhar com di-
reitos humanos e com questões humanitárias, têm, durante a sua missão, o ob-
jetivo de ajudar a população vulnerável a aliviar suas dificuldades, restaurar a
sua capacidade econômica, ultrapassar as barreiras existentes e fortalecer a paz.
O atual Secretário Geral das Nações Unidas, António Guterres, ao se
pronunciar acerca de todos aqueles que estão a serviço desta, incluindo os
pacificadores, proferiu as seguintes palavras:

Individuals who work under the United Nations flag are deeply convinced
that they can make a difference to help alleviate hardship, restore economic ca-
pacity, bridge divides or strengthen a fragile peace. Each one of us comes with
personal and professional expectations that we hope to fulfil in the United
Nations. We come to find a home for our passions, our ideas, our values and
our principles. We come hoping to unleash our expertise and our energies to
confront the harshest conditions and the worst suffering with steadfast effort
and grace. We come expecting to add our voices and our deeds to those of
colleagues and others who, like each of us, come ready to serve, not just work.67

5
UNITED NATIONS PEACEKEEPING. Current peacekeeping operations. Disponível em <http://
www.un.org/en/peacekeeping/operations/current.shtml> Acesso em 15 de setembro de 2017.
6
UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Special measures for protection from sexual exploi-
tation and abuse: a new approach. Report f the Secretary-General, 2017, p. 4.
7
Cada um de nós veio com expectativas pessoais e profissionais que nós esperamos satisfazer dentro
das Nações Unidas. Nós viemos encontrar morada para nossas paixões, nossas ideias, nossos valores e
nossos princípios. Nós viemos esperando utilizar nosso conhecimento e nossas energias para confrontar
450 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Os pacificadores são submetidos a situações desafiadoras, visto que estão


vivendo em países diversos dos seus, tendo, desta forma, que enfrentar diver-
sos tipos de dificuldades e de perigos.
Estes trabalhadores, inúmeras vezes, precisam estabelecer morada nos
países hospedeiros, com isso, em razão do seu tempo de permanência nas
missões, desenvolvem espontaneamente uma interação com a população local.
A despeito dos pacificadores serem estrangeiros nas populações vulnerá-
veis onde atuam e de estarem nesta prestando um serviço assistencial, é natural
e necessária a sua inserção na comunidade local, considerando-se que viverão
nestes locais por certo período de tempo, o qual poderá ser curto ou extenso.
Ainda que os trabalhadores da ONU estejam alojados em determinada
população para prestar auxilio e suporte devido a prejuízos físicos, psicoló-
gicos e estruturais causados por conflitos nestas regiões, a integração, nas
sociedades de acolhimento, destes estrangeiros, ou seja, das pessoas naturais
de países diferentes daquele onde se econtram8, é um processo complexo e
multifacetado que beneficia tanto os pacificadores, como a população recep-
tora, dado que possibilita um melhor convívio e uma coexistência pacifica
e igualitária.
Demetrios Papademetriou (2003 apud FONSECA, M. L, 2003) define in-
tegração como o processo de interação,  ajustamento e adaptação mútua entre
estrangeiros e a sociedade de acolhimento, pelo qual, ao longo do tempo, as
pessoas recém-chegadas e a população local formam um todo integrado. 9
O autor enfatiza, ainda, a diversidade de intervenientes no processo de
integração: imigrantes, governos, instituições e comunidades locais.
Deste modo, as formas de inserção dos estrangeiros nas sociedades recep-
toras são processos dinâmicos, ou seja, em permanente mudança, resultantes
de influências bastante diversas da estrutura econômica, social, política e insti-
tucional das pessoas que chegam ao país estrangeiro e das especificidades dos
contextos locais dos territórios onde se fixam.
Os estrangeiros são coabitantes ativos de um lugar e coprodutores de
uma cultura local, por isso, as trajetórias de integração são processos de adap-
tação que estabelecem as condições de vida local e a construção coletiva e
cooperativa dos territórios hospedeiros.

as severas condições e os piores sofrimentos com firmes esforços e com graça. Nós viemos esperando
adicionar nossas vozes e nossas obras àqueles colegas e a outros que, como cada um de nós, estão pron-
tos para servir e não só para trabalhar. (tradução livre)
8
DICIONÁRIOS, Infopédia. Estrangeiro. Porto Editora. Disponível em <https://www.infopedia.pt/di-
cionarios/lingua-portuguesa/estrangeiro> Acesso em 15 de setembro de 2017.
9
FONSECA, M. L. Integração dos imigrantes: estratégias e protagonistas. In: CONGRESSO IMI-
GRAÇÃO EM PORTUGAL – DIVERSIDADE, CIDADANIA E INTEGRAÇÃO, 1., 2003, Lis-
boa. Anais... Lisboa, 2003.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 451
Tais processos envolvem uma aprendizagem mútua, composta por coope-
ração, diálogo, troca de saberes, experiências e práticas culturais entre indivíduos,
grupos sociais ou comunidades étnicas que partilham o mesmo espaço geográfico.
Desta maneira, é natural e inevitável que, em decorrência desta interação
dos pacificadores com a população local, surjam relações sexuais, amorosas ou
amigáveis, entre estes e mulheres maiores de idade, desde que conscientes e,
portanto, consentidas.

4. O ABUSO E A EXPLORAÇÃO SEXUAL NOS CAMPOS DE


MISSÕES

Na década de 90, com o aumento das funções exercidas pelos pacificado-


res, e, consequentemente, do número de tropas empregadas, as denúncias de
má-conduta sexual tornaram-se, em várias missões das Nações Unidas, cada
vez mais numerosas.
No decorrer dos anos, inúmeros pacificadores foram acusados de en-
volvimento com tráfico humano, prostituição forçada, sexo com menores,
estupro e troca de sexo por alimentos, bens básicos e empregos. 
Desta forma, a ONU foi sendo, sistematicamente, acusada de negligência
na atuação de soldados em missões de paz. O caso mais emblemático até hoje,
ocorreu no ano de 2015, na República Centro-Africana e na República De-
mocrática do Congo, onde 69 pacificadores foram acusados de abuso sexual.
A situação de pobreza extrema e de vulnerabilidade em que se encontram a
maioria das mulheres dos países hospedeiros, a sensação de impunidade e a grande
disparidade de recursos entre militares e habitantes locais têm, como consequência,
uma série de relações sexuais praticadas mediante abuso ou exploração sexual.10
Dados coletados pela ONU em 2016 indicam 65 denúncias de exploração
e abuso sexual envolvendo civis, enquanto 80 envolvem pessoas uniformiza-
das – policiais, militares e oficiais. Essas 145 denúncias estão associadas a 311
vítimas, sendo a maioria delas mulheres e crianças. 11
O número de denúncias do ano de 2016 aumentou em relação ao ano de
2015, acredita-se que isto decorreu do crescimento de esforços e de medidas
voltados ao encorajamento das vítimas e de testemunhas.
O reconhecimento da violência sexual como crime de guerra e crime
contra a humanidade pelo Estatuto de Roma, em 2002, enfatizou o estupro

10
FONTOURA, N. R. Heróis ou vilões? O abuso e a exploração sexual por militares em missões de paz
da ONU. 2009. 130 f. Tese (Mestrado em Relações Internacionais) – Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2009.
11
UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Special measures for protection from sexual exploi-
tation and abuse: a new approach. Report f the Secretary-General, 2017, p. 5.
452 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

como representação principal do abuso sexual, principalmente em períodos


de conflito armado.12
Tal violência é um fenômeno multifacetado, que inclui variados atos não
consentidos relacionados à sexualidade humana, tais como prostituição força-
da, escravidão sexual, mutilação genital, exposição ou participação forçada em
pornografia, entre outros.13
De forma geral, o conceito de abuso sexual está ligado ao maior ato de
violência de conotações sexuais cometidos sob coerção, o estupro.
O conceito de exploração sexual diz respeito, geralmente, ao ato de lucrar
monetária, social ou politicamente da exploração sexual de alguém.
Contudo, a realidade da violência sexual nas Operações de Paz das Nações
Unidas possui uma conceituação complexa, dado que dela decorrem diversas ou-
tras relações entre militares ou funcionários civis internacionais e mulheres locais,
confundindo-se, muitas vezes, as relações não consentidas com as consentidas.
Para resolver estas sutilezas, o conceito utilizado pelas Nações Unidas
é essencialmente mais abrangente, uma vez que se considerou que todas as
relações sexuais entre pacificadores e mulheres locais, ainda que com configu-
rações distintas, são permeadas por assimetrias de poder e de recursos entre os
envolvidos, estabelecendo prejuízos a médio e longo-prazo a estas.
Em 2003, o então Secretário das Nações Unidas, Kofi Annan, definiu
exploração sexual como “Any actual or attempted abuse of a position of vul-
nerability, differential power, or trust, for sexual purposes, including but not
limited to, profiting monetarily, socially or politically from the sexual explo-
ration of another.” 14 15
O abuso sexual, em contrapartida, foi definido como a ameaça ou a
própria invasão física de uma natureza sexual, seja por força ou sob condições
desiguais ou coercitivas.

5. A REGULAÇÃO DAS RELAÇÕES SEXUAIS NAS MISSÕES DE


PAZ DA ONU

Apesar dos inúmeros relatos de abuso e de exploração sexual nas ope-


rações de paz da Organização das Nações Unidas na Somália e no Camboja,

12
INTERNATIONAL CRIMINAL COURT. Rome Statute of the International Criminal Court. Docu-
mento das Nações Unidas número A/CONF.183/9, DE 17 DE JULHO DE 1998.
13
HUMANS RIGHTS WATCH. We will kill you if you cry, 2003, p. 2. Disponível em <https://www.
hrw.org/reports/2003/sierraleone/> Acesso em 16 de setembro de 2017.
14
Organização das Nações Unidas. Secretariado. Special Measure for protection from sexual exploitation
and abuse, Secretary-General’s Bulletin. Documento das Nações Unidas No. ST/SGB/2003/13, 09.10.2013.
15
Qualquer abuso ou tentativa de abuso de uma posição de vulnerabilidade, de assimetria de poder ou de
confiança, com propósitos sexuais, incluindo, mas não se limitando a, benefícios monetários, sociais ou
políticos decorrentes da exploração sexual de alguma pessoa. (tradução livre)
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 453
na década de 90, o tema só ganhou espaço nos documentos e nas políticas
da organização em 2002, quando o Alto Comissariado das Nações Unidas
para Refugiados (ACNUR) e a organização inglesa Save the Children acusaram
milhares de missões de paz e de trabalhadores humanitários de abuso sexual a
crianças refugiadas na África Ocidental.
A partir dessas denúncias e de sua extensa veiculação na mídia, inúmeras
medidas foram implementadas pela ONU, tais como o estabelecimento de pon-
tos focais para investigar os casos, de grupos de trabalho, de medidas disciplina-
res e de manuais e diretrizes para utilização em todas as Operações de Paz. As
primeiras diretrizes determinaram o padrão de conduta esperado das tropas de
paz e marcaram o início de uma mudança gradual na forma como a questão do
abuso e da exploração sexual era tratada nos materiais da Organização.16
Tais providências demonstraram que a ONU estaria dando certa impor-
tância ao problema, proibindo formalmente tais práticas, consideradas, então,
como um comportamento inaceitável.
Estas medidas, no entanto, não se revelaram tão eficazes para uma dimi-
nuição relevante dos casos de abuso e de exploração sexual, devido, principal-
mente, à diversidade das imunidades dos indivíduos envolvidos, que acabava
por contribuir com o clima de impunidade entre os participantes das missões
de paz, e à impossibilidade de eliminar o problema através de políticas intro-
duzidas nas próprias missões, como a implementação de programas de trei-
namento sobre abuso e exploração sexual e de códigos de condutas objetivos.
Em decorrência disto, instituiu-se a política de tolerância zero na Organiza-
ção das Nações Unidas. A partir dos casos da África Ocidental, a ONU estabeleceu
formalmente a proibição total de tais atos, de uma maneira geral e inespecífica.
Em outubro de 2003, Kofi Annan redigiu o Boletim sobre medidas es-
peciais de proteção contra o abuso e a exploração sexual.17 Os dois principais
pontos consistiram na proibição de relações sexuais com pessoas menores de
18 anos e de relações sexuais em situações nas quais, independente da idade do
indivíduo, tira-se vantagem deste.18
Esta é a questão de grande importância e de inúmeras controvérsias sobre
o Boletim, que reconhece que todas as relações sexuais entre os pacificadores e a
mulheres da população local possuem um aspecto significativo de desigualdade.

16
SIMIC, Olivera. Regulation of Sexual Conduct in UN Peacekeeping Operations. Berlim: Springer, 2012.
17
Organização das Nações Unidas. Secretariado. Special Measure for protection from sexual exploita-
tion and abuse, Secretary-General’s Bulletin. Documento das Nações Unidas No. ST/SGB/2003/13,
09.10.2013.
18
NDULO, Muna. The United Nations Responses to the Sexual Abuse and Exploitation of Women and
Girls by Peacekeepers During Peacekeeping Missions. Berkeley Journal of International Law, v.27,
n.1, p.127-161, 2009. Disponível em: < http://scholarship.law.berkeley.edu/bjil/vol27/iss1/5/>. Acesso
em 18 de setembro de 2017.
454 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

Estipulou-se que todos os países que recebem Missões de Paz em seu


território frequentemente se recuperam de conflitos e apresentam os mais di-
versos problemas, dessa forma, todas as mulheres destes locais seriam pobres,
desempregadas, com baixo nível de educação ou somente vulneráveis por al-
gum outro motivo e estariam subjugadas aos pacificadores, uma vez que estes
podem oferecer apoio não apenas financeiro, mas também emocional. Assim,
mesmo uma relação consensual será sempre desigual e abusiva.
Existe, portanto, a ideia de que a assimetria de poder existente entre os
trabalhadores da ONU, incluindo os pacificadores, e a população local tiraria
da mulher a capacidade de consentir livremente, impossibilitando a existência
de uma relação verdadeiramente consentida por ambos.
Assim, a má-conduta sexual englobaria não só as relações sexuais força-
das, mas também a prostituição e quaisquer tipos de relações sexuais, mesmo
que resultantes da vontade explícita e genuína da mulher.
Ocorre que, visando proteger as mulheres do abuso e da exploração se-
xual, a ONU criou um estereótipo dos trabalhadores das missões de paz, tidos
genericamente como abusadores do poder que lhes é conferido, e, principal-
mente, das mulheres das comunidades locais, consideradas somente vítimas
nas situações de conflito e não indivíduos que podem tomar suas próprias
decisões e ter suas escolhas, submetendo-se, dessa forma, ao perigo da imple-
mentação de políticas gerais nas relações humanas.
A Dr. Olivera Simic, em seu livro Regulation of Sexual Conduct in UN pea-
cekeeping Operations, afirma: “Given that current UN policies to protect women from
SEA are overprotective and informed by gender and imperial stereotypes, they are in
tension with the human rights of those involved.”1920
A política da ONU colapsa os fenômenos das relações sexuais, da explo-
ração sexual e da prostituição no contexto das missões de paz, generalizando-
-os e proibindo todos os encontros sexuais entre mulheres locais e os trabalha-
dores da ONU.
Essa política nega a escolha sexual das mulheres e adota os estereótipos
dominantes de gênero, nos quais as mulheres são sempre vulneráveis e os
homens são predadores, além de ignorar o contexto social das missões de paz
e as interações humanas existentes, ao não diferenciar adultos de crianças,
consenso de forca e ações voluntarias de involuntárias.
A maior dificuldade das Nações Unidas no combate ao abuso e à ex-
ploração sexual consiste na existência de diversas categorias de participantes

19
Dado que as atuais políticas da ONU para proteger as mulheres do abuso e da exploração sexual são
superprotetoras e informadas por gênero e estereótipos imperiais, elas estão em tensão com os direitos
humanos dos envolvidos. (tradução livre).
20
SIMIC, Olivera. Regulation of Sexual Conduct in UN Peacekeeping Operations. Berlim: Springer, 2012.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 455
de missões de paz, que são submetidos a quadros jurídicos diferentes e que
gozam de distintas imunidades, dificultando o estabelecimento de medidas de
respostas únicas. Policias civis, trabalhadores humanitários da ONU, de suas
agências e de ONGs, observadores militares, membros de contingentes milita-
res nacionais, voluntários da ONU, consultores e trabalhadores terceirizados
etc. são algumas das muitas categorias hoje presentes nas missões de paz.
Pelos acordos estabelecidos entre a ONU e os países contribuintes de tropas,
os soldados gozam de imunidade total com relação às leis locais, e, em troca, os
países de origem destes se comprometem a exercer jurisdição criminal e discipli-
nar sob eles. Assim, a reponsabilidade de punir quaisquer suspeitos fica a cargo
dos países e a ONU possui, portanto, jurisdição limitada sob os soldados que
trabalham em seu nome, podendo somente repatriar, sob ordem do Secretário-
-geral, qualquer membro militar que tenha sido considerado culpado de séria má-
-conduta através de investigação. Além disso, militares são empregados como parte
do contingente e não como indivíduos, o que dificulta sua punição individual.
Já os observadores militares e policiais civis têm status de experts on mission
e são recrutados como indivíduos, por isso respondem juridicamente e crimi-
nalmente ao seu país natal, mas sua imunidade é funcional e não total, ou seja,
o individuo está protegido de processos legais relacionados apenas a ações que
forem levadas a cabo durante o cumprimento de seus deveres.21
Com relação aos funcionários da ONU, há diferentes níveis entre os vá-
rios civis internacionais participantes de missões de paz. Os que possuem nível
hierárquico superior podem gozar de imunidade total e os que possuem o sta-
tus de funcionários oficiais são protegidos, assim como observadores militares
e policiais civis, por imunidade funcional. Os que não têm esse status também
são protegidos por imunidade funcional, mas esta apenas os protegem da ju-
risdição do país hóspede e não do Secretário-geral, a quem respondem. Na ver-
dade, funcionários da ONU acabam por gozar de imunidade também de seu
país natal, já que respondem ao Secretário-geral e não ao seu país de origem.
No que tange aos funcionários de ONGs, normalmente estes não gozam
de nenhum tipo de status especial e tendem a responder pelos seus atos indi-
vidualmente. Contudo, a maior punição que estas organizações podem aplicar
a seus funcionários é a demissão.
Acontece que, na maioria dos países receptores de missões de paz, o sis-
tema judiciário e policial é absolutamente falho ou mesmo inexistente, o que,
na prática, garante certa imunidade ao perpetrador. Além disso, há o fato de,
em contexto pós-conflito, a existência de corrupção generalizada dentre as
autoridades locais, seja do setor policial ou judicial.

21
A. Kihara-Hunt and F. Hampson, The Accountability of Personnel Associated with Peacekeeping Opera-
tions, in Unintended Consequences of Peacekeeping (United Nations University Press, May 2007). P. 200.
456 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

De acordo com a Convenção Geral de 1946 (Convention on the Privileges


and Immunities of the United Nations), há a possibilidade das imunidades esta-
belecidas serem suspensas, com exceção da imunidade absoluta. Dessa forma,
policiais civis, observadores militares e funcionários geralmente podem ter
suas imunidades suspensas a pedido do Secretário-geral, quando este entender
que o direito de proteção está obstruindo o curso da justiça. No entanto, rara-
mente essas imunidades são revogadas, devido às questões políticas envolvidas.
A função das imunidades não é a de garantir a impunidade, todavia, estas
de certa forma, reforçam a sensação de impunidade.
Em alguns casos, principalmente nos que possuem grande repercussão na
mídia, as autoridades nacionais de fato levam adiante as investigações e as puni-
ções necessárias. Contudo, segundo o relatório do Refugees International22, a maioria
dos países em pouco ou nenhum interesse em levar seus funcionários a tribunal
pelos atos cometidos enquanto faziam boas ações em outras partes do mundo. Os
pacificadores têm noção da impunidade de que gozam, a qual entendem como
permissão para a prática de quaisquer atos cometidos no exterior.
Todos os participantes das missões de paz, independente de suas catego-
rias, devem agir conforme os padrões de direitos humanos, de acordo com a
Carta da Nações Unidas. Todos devem se portar, ainda, de acordo com os dois
códigos de condutas para missões de paz: Tem rules: Code of Personal Conduct for
Blue Helmets e We are United Nations Peacekeepers. Entretanto, estas proibições
constituem apenas recomendações e não regras que subtendam punições pelo
seu não cumprimento.
Com isso, percebe-se que são inúmeras as variantes que levam a falta de
punição dos indivíduos que abusam e exploram sexualmente as mulheres nas
missões de paz, como as diversas imunidades concedidas, a falta de vontade
política de ambos os países, de capacidade investigativa e judiciária do país-
-contribuinte, de documentação existente etc.
A implantação de uma politica de tolerância zero, que generaliza e que
não avalia as diferentes situações existentes no âmbito das missões de paz, não
é a solução para a diminuição do número de casos de abuso e de exploração
sexual, visto que o maior problema está na competência para julgar e punir
estes casos e na maneira que o processo legal ocorre.

CONCLUSÃO

Apesar das intensas discussões acerca do tema, a política de tolerância


zero da ONU ainda é bastante defendida devido ao sentimento da comunidade

22
“Adressing the Sexual Misconduct of Peacekeepers.” Refugees International, 23/09/2014. Disponível
em http://www.refugeesinternational.org/content/article/detail/4047/. Acesso em 21/10/2017.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 457
internacional de repúdio à prática do abuso e da exploração sexual e da neces-
sidade imediata de resolver esse problema.
Dessa forma, prefere-se ignorar os contratempos decorrentes dessa polí-
tica e os diversos casos concretos de integração entre pacificadores e mulheres
locais em prol de um suposto bem maior, que é a erradicação deste tipo de
conduta das missões de paz.
Ocorre que, a adoção dessa espécie de política não traz benefícios para a
comunidade internacional, uma vez que não resolve o cerne da questão, que
é a dificuldade de definir a jurisdição e a forma de punição dos abusadores.
Além disto, a implementação destas medidas traz consigo outros proble-
mas, como a supressão da vontade conjunta da mulher e do pacificador e a
exclusão de uma variante imprescindível para o sucesso das missões de paz,
que é a integração dos pacificadores na comunidade e o seu relacionamento
interpessoal com os moradores do local onde passará a residir.
Concluiu-se, portanto, que é necessário que sejam estabelecidas agendas
mais esclarecidas e realista, que possibilitem a análise dos diversos casos existen-
tes, observando sempre o fenômeno da integração social e da vontade das partes,
possibilitando uma real mudança no ambiente desafiador das missões de paz.

REFERÊNCIAS
A. Kihara-Hunt and F. Hampson. The Accountability of Personnel Associated with Peacekeeping Opera-
tions, in Unintended Consequences of Peacekeeping (United Nations University Press, May 2007). P. 200.
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ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Secretariado. Special Measure for protection from sexual exploitation
and abuse, Secretary-General’s Bulletin. Documento das Nações Unidas No. ST/SGB/2003/13, 09.10.2013.
458 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)
ONU marca o Dia Internacional dos trabalhadores das Forças de Paz: brasileiro será homenageado. Nações
Unidas do Brasil, 18 de maio de 2016. Disponível em <https://nacoesunidas.org/onu-marca-dia-internacional-
-dos-trabalhadores-das-forcas-de-paz-brasileiro-sera-homenageado/> Acesso em 17 de setembro de 2017.
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UNITED NATIONS PEACEKEEPING. Current peacekeeping operations. Disponível em <http://www.
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UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Special measures for protection from sexual exploitation and
abuse: a new approach. Report f the Secretary-General, 2017, p. 4.
UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY. Special measures for protection from sexual exploitation and
abuse: a new approach. Report f the Secretary-General, 2017, p. 5.
Capítulo 30
A Atual Condição Jurídica do
Refugiado na França
Alaíde Linhares Carlos
Lara Campos Arriaga
Theresa Rachel Couto Correia

1. INTRODUÇÃO

O território francês tem sido marcado, na última década, pela entrada de


milhares de pessoas que deixaram o seu país de origem em busca de melhores
condições de vida. Em meio a muitos indivíduos que saem dos Estados onde
habitavam à procura de trabalho, e, portanto, da situação econômica em que
viviam, há um contingente de pessoas que fogem de conflitos armados e de
outros tipos de perseguições nas nações onde residiam, a fim de sobreviverem.
Nos anos de 2015 e de 2016, constantes foram as notícias na mídia interna-
cional acerca do fluxo de estrangeiros na cidade de Calais, no norte da França,
que tentavam alguma maneira de chegar à Inglaterra.
O contingente de pessoas que fogem de seus Estados devido a algum
tipo de perseguição ou ameaça são, portanto, os refugiados, o que se dife-
rencia dos migrantes econômicos, que são os indivíduos que saem de seus
países a procura de melhores condições socioeconômicas. Para LOCHAK1
“a noção de refugiado começou a assumir um significado preciso e a ser
construída como uma categoria legal somente quando a questão dos refugia-
dos apareceu como um problema ao qual a comunidade internacional foi
forçada a buscar soluções. ”
Assim, esses indivíduos são vítimas de perseguições em decorrência de
raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social
ou opiniões políticas, e possuem, como principal instrumento internacio-
nal de proteção, a Convenção de Genebra de 1951. No que diz respeito aos

1
LOCHAK, Danièle. Qu’est-ce qu’un réfugié? La construction politique d’une catégorie juridique. Re-
vista Pouvoirs, Paris, v.1, p.33-47, jan. 2013. Disponível em: <http://www.cairn.info/revue-pouvoirs-
2013-1-page-33.htm> Acesso em: 07 set 2017, p. 192, tradução nossa.
460 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

fundamentos do direito dos refugiados na França, segundo AUBIN2, “o


estrangeiro solicitante de refúgio pode pedir para ser acolhido no território
francês invocando diversas formas de proteção previstas pela Constituição e
pelo direito da União Europeia. ”
A França foi um dos primeiros Estados europeus a se preocupar com a
questão internacional dos indivíduos vulneráveis vítimas de algum tipo de
perseguição, o que levou esse Estado a assinar rapidamente a dita Convenção
de 1951. Ademais, criou, pouco tempo depois, órgãos internos encarregados
de cuidar dos assuntos relativos aos direitos dos refugiados. Nesse sentido,
CASTILLO3 afirma que:

A França é um dos primeiros Estados a aderir à Convenção de Genebra. Assinou o


texto em 11 de setembro de 1952 e ratificou-o em 23 de junho de 1954. Já em 1952,
os órgãos eram responsáveis pelo reconhecimento do status de refugiado com
base neste último. O Gabinete Francês para a Proteção de Refugiados e Apátridas
(OFPRA) e o Conselho de Recurso de Refugiados – que passou a ser a CNDA em
2009 - foram criados pela lei de 25 de julho de 1952 sobre o direito de asilo.

Segundo o Ministério do Interior Francês4, no ano de 2016, o número de


85.726 solicitações de refúgio foi registrado no Ofício Francês de Proteção aos
Refugiados e Apátridas (OFPRA), o que representou um aumento de 7,1% em
comparação com o ano de 2015. Com relação às decisões da Corte Nacional
de Asilo (CNDA), jurisdição que aprecia as decisões da OFPRA, e, todavia,
segundo as estatísticas de 2017 do Ministério do Interior Francês, a quantia de
42.968 demandas de outorga de refúgio foi analisada, totalizando uma eleva-
ção de 19,4% relativamente ao ano de 2015.
No relatório de atividades do ano de 2016 da Corte Nacional de Asilo5,
é possível perceber que os recursos, em sua maioria, foram interpostos por
pessoas originárias dos seguintes países: Haiti, Bangladesh, Sudão, República
Democrática do Congo e Albânia. Comparativamente com o Brasil, de acordo
com as estatísticas de 2016 do Comitê Nacional para os Refugiados6, os estran-

2
AUBIN, Emmanuel. Droit des étrangers. 3. Ed. Issy-les-Moulineaux; GUALINO, 2014, p. 325, tradu-
ção nossa.
3
CASTILLO, Justine. Les interprètes de la Convention de Genève du 28 juillet 1951 relative au
statut des refugies : Etude du point de vue de la France. 2016, p.62, online, tradução nossa.
4
MINISTÈRE DE L’INTÉRIEUR. Les demandes d’asile (statistiques). Disponível em: <https://www.
immigration.interieur.gouv.fr/fr/Info-ressources/Donnees-statistiques/Statistiques/Essentiel-de-l-immigra-
tion/Chiffres-clefs/Les-demandes-d-asile-statistiques>. Acesso em: 12 setembro 2017, tradução nossa.
5
COUR NATIONALE DU DROIT D’ASILE. Ressources juridiques et géopolitiques, Disponível em:
<http://www.cnda.fr> Acesso em: 09 de setembro de 2017, tradução nossa.
6
COMITÊ NACIONAL PARA OS REFUGIADOS. Dados sobre refúgio no Brasil – Balanço até de-
zembro de 2016, Disponível em: <http://www.acnur.org/portugues/recursos/estatisticas/dados-sobre
-refugio-no-brasil/>. Acesso em: 11 setembro. 2017..
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 461
geiros da República Democrática do Congo representaram a segunda categoria
de migrantes que solicitaram o status de refugiado.
O artigo 1º da atual constituição francesa – a Carta Magna de 1958 – asse-
gura a igualdade de todos perante a lei, sem levar em consideração a origem, a
raça ou a religião da pessoa. Em nível regional, o direito de refúgio é previsto
no Tratado de Lisboa de 2007, que reforçou a existência da União Europeia.
Esse instrumento jurídico internacional defende também a existência de uma
política comum dos Estados Europeus em matéria de refúgio e imigração.
Desse modo, insta dizer, também, que outro importante documento re-
gional o qual prevê a proteção ao direito de refúgio é a Carta de Direitos
Fundamentais da União Europeia de 2000. Vale destacar, ainda, que a Con-
venção Europeia dos Direitos do Homem não trata acerca do asilo, mas, nas
palavras de BELORGEY7, “oferece diversos dispositivos de apoio importantes
aos solicitantes de refúgio pela defesa de seus direitos, podendo ser invocados
não somente perante a Corte Europeia de Direitos do Homem, mas também
perante as jurisdições nacionais.”
Diante das considerações acima elaboradas, questiona-se: A França, país
berço dos direitos humanos, possui atualmente um quadro jurídico suficiente e
capaz de garantir aos refugiados a efetiva proteção a seus direitos fundamentais?
Este artigo objetiva, portanto, expor a forma na qual a legislação fran-
cesa regulamenta o refúgio, mostrando o procedimento de concessão desse
instituto naquele País e suas outras formas de proteção aos indivíduos vulne-
ráveis e descrevendo quais direitos fundamentais os solicitantes de refúgio e
os refugiados possuem. Para a realização deste artigo, utilizar-se-á a pesquisa
bibliográfica, com a consulta de materiais publicados em livros, artigos e teses,
bem como a análise de documentos de sites oficiais do governo francês, de
dados estatísticos, de jurisprudências dos tribunais franceses, de textos legais
nacionais e internacionais.

2. A REGULAMENTAÇÃO DO REFÚGIO NA FRANÇA

Na legislação francesa, o asilo é equivalente ao refúgio, diferentemente do


que ocorre na América Latina, onde esses dois institutos jurídicos diferem-se,
principalmente, porque o asilo é uma proteção outorgada a um determinado
indivíduo, possuindo caráter eminentemente político, não se tratando, por-
tanto, de um instrumento universal, como o refúgio. Desse modo, frente à ad-
ministração francesa e à jurisdição desse país, o indivíduo “demandeur d’asile”
(solicitante de refúgio) ao qual a proteção estatal é concedida, será conhecido
como refugiado.

7
BELORGEY, Jean-Michel. Le droit d’asile. Paris; LGDJ, 2013, p.42, tradução nossa.
462 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

A legislação francesa prevê seis tipos de proteção aos indivíduos vulnerá-


veis, conforme será analisado nos parágrafos seguintes. Inicialmente, vale des-
tacar o asilo convencional e o asilo constitucional. No que tange ao primeiro,
esse é atribuído com base nos artigos da Convenção de Genebra de 1951, rati-
ficada pelo Estado Francês em 1954, a qual prevê em seu artigo 1º, A, 2,8, in-
corporado ao Código de Entrada e Permanência dos Estrangeiros e do Direito
de Asilo (CESEDA) em seu artigo L.711, que será considerado refugiado quem:

Em conseqüência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951


e temendo ser perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo
social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e
que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse
país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha
sua residência habitual em conseqüência de tais acontecimentos, não pode ou,
devido ao referido temor, não quer voltar a ele.

Insta afirmar que o temor por motivo de raça leva em consideração a cor
da pele e o grupo étnico ao qual o indivíduo pertence. Com relação à naciona-
lidade, JAULT-SESEKE, CORNELOUP E BARBOU DES PLACES9 levam em
conta não apenas a noção de cidadania, mas também o grupo com identidade
cultural e linguística da pessoa. No que se refere à religião, a proteção pode ocor-
rer pelo fato pelo fato de a perseguição ter como causa a prática ou não da fé.
Já no que toca ao pertencimento a um grupo social, JAULT-SESEKE,
CORNELOUP E BARBOU DES PLACES10 defendem que ele consiste na
“posse de uma característica ou uma crença comum por um grupo de pessoas,
tomando, também, em conta aspectos de gênero.” Por fim, pode-se dizer que o
temor por motivo de opinião política relaciona-se ao fato de alguém manifes-
tar ou não seu ponto de vista acerca de uma determinada ideologia ou partido.
Vale ressaltar que a outorga da proteção convencional pressupõe temores
pessoais, atuais e graves do perseguido. Ademais, nas palavras de JAULT-SESE-
KE, CORNELOUP E BARBOU DES PLACES11, a Corte Europeia de Direitos
Humanos tem atuado no sentido de “verificar se o reenvio da pessoa que alega

8
Code de l’entrée et du séjour des étrangers et du droit d’asile (CESEDA). Code de l’entrée et du
séjour des étrangers et du droit d’asile du 24 novembre 2004. Le Journal officiel de la République
française. Paris, 1 março 2005. Disponível em: <https://www.legifrance.gouv.fr/affichCode.do?cidTex-
te=LEGITEXT000006070158>. Acesso em: 11 setembro 2017, tradução nossa.
9
BARBOU DES PLACES, Ségolène; CORNELOUP, Sabine; JAULT-SESEKE, Fabienne. Droit de La
Nactionalité et Des Étrangers. Ed. Thémis, 2015, p.344, tradução nossa.
10
BARBOU DES PLACES, Ségolène; CORNELOUP, Sabine; JAULT-SESEKE, Fabienne. Droit de La
Nactionalité et Des Étrangers. Ed. Thémis, 2015, p.345, tradução nossa.
11
BARBOU DES PLACES, Ségolène; CORNELOUP, Sabine; JAULT-SESEKE, Fabienne. Droit de La
Nactionalité et Des Étrangers. Ed. Thémis, 2015, p.343, tradução nossa
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 463
a perseguição a seu país de origem a expõe ao risco de tratamentos desumanos
proibidos pelo artigo 3º da Convenção Europeia de Direitos Humanos.”
Relativamente à proteção constitucional, ela é prevista no preâmbulo da
Constituição Francesa de 1946, embora, atualmente, esteja em vigor a Cons-
tituição de 1958, a qual reafirma em seu corpo o apego do povo francês aos
princípios de direitos humanos e aos princípios da soberania nacional, elenca-
dos na Carta Magna anterior, na Declaração dos Direitos do Homem de 1749
e na Carta Ambiental de 2004.
Nota-se que a alínea IV do preâmbulo da Carta Magna de 1946 afirma que
“qualquer homem perseguido por suas ações em favor da liberdade tem direito
ao asilo nos territórios da República.” Ademais, o CESEDA, lei que regula a en-
trada e permanência de estrangeiros e refugiados no País da qual diversos artigos
foram alterados pelo advento da lei do 29 de julho de 2015 relativa à reforma do
direito de asilo, prevê esse tipo de proteção em seu artigo L. 711-A.
Conforme o Ofício Francês de Proteção aos Refugiados e Apátridas
(OFPRA)12, para ter direito ao asilo constitucional, o demandante deve provar
que teve “um compromisso ativo com o estabelecimento de um regime de-
mocrático ou para defender os valores que lhe são inerentes, como liberdade
de expressão e opinião, liberdade de associação, liberdade de associação, etc.”
Para obter o tipo de proteção acima mencionado, o solicitante deve
comprovar que lutava de alguma forma pela liberdade e que, devido a isso,
passou efetivamente a ser perseguido. Ademais, pode-se dizer que esse modelo
de proteção ao indivíduo assemelha-se ao asilo político na América Latina,
pois ele é concedido a uma determinada pessoa com base na prova de perse-
guição a ela, e não a um determinado grupo, tendo sido aplicado a jornalistas,
militares, artistas, etc. Segundo AUBIN13, “essa proteção visa os estrangeiros
qui são engajados, em seu país de origem, em uma luta política cujo objetivo
é defender o respeito aos direitos do homem e a democracia e, que, por esses
motivos, o indivíduo torna-se vítima de perseguição.”
Insta dizer que ao solicitante de refúgio, pode ser-lhe concedido o status
de refugiado ou a proteção subsidiária, diferentemente do que ocorre com a le-
gislação brasileira, que outorga ou não a condição de refugiado, não existindo
uma proteção intermediária como existe na legislação francesa. Essa proteção
é prevista no artigo L.712-1 do CESEDA, o qual afirma que:

A proteção subsidiária é concedida a qualquer pessoa que não se qualifique


para o reconhecimento como refugiado e para quem há motivos substanciais
para acreditar que existe um risco real dos seguintes acontecimentos:

12
OFFICE FRANCAIS DE PROTECTION AUX REFUGIES ET APATRIDES. Asile. Disponível em: <ht-
tps://www.ofpra.gouv.fr/fr/asile/les-differents-types-de-protection/l-asile> . Ano 2016, tradução nossa.
13
AUBIN, Emmanuel. Droit des étrangers. 3. Ed, 2014, p. 325, tradução nossa.
464 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

(A) A pena de morte ou a execução;


(B) Tortura ou tratamento ou punição desumano ou degradante;
(C) No caso de um civil, uma ameaça séria e individual para sua vida ou pes-
soa devido a violência que pode se estender a pessoas, independentemente da
sua situação pessoal e resultante de uma situação de conflito armado domés-
tico ou internacional.

Conforme o artigo L.712-2 da lei supramencionada, essa proteção não é con-


cedida àqueles indivíduos que representam ameaça à paz pública, que comete-
ram crimes graves ou contra a humanidade. Não obstante, ela pode ser extinta a
qualquer momento pelas autoridades francesas no caso de os motivos que deram
origem a essa medida protetiva houverem cessado. Para o autor francês BELOR-
GEY14, algumas críticas podem ser percebidas com relação a esse tipo de proteção:

A proteção subsidiária apresente dois tipos de ambiguidade essenciais. A pri-


meira consiste que, embora possa ajudar a aumentar o número de benefi-
ciários de uma proteção, ela pode inicialmente ser usada, tanto na OFPRA
quanto na CNDA para evitar a concessão de status de refugiado, incluindo os
casos em que não se vê que há obstáculos à aplicação da Convenção de Gene-
bra. Com relação à segunda ambiguidade, nota-se que a proteção subsidiária é
concedida apenas por um ano e nenhuma disposição legal engloba seriamente
as modalidades de sua renovação.

A legislação francesa prevê ainda que a condição de refugiado poderá ser


concedida às pessoas que estiverem sob o mandato do Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Refugiados (asilo estatutário), conforme estabelecido
nos artigos 6 e 7 de seu estatuto de 1950. Para JAULT-SESEK, CORNELOUP
E BARBOU DES PLACES15, “o solicitante de refúgio deve estabelecer tanto a
sua colocação sob o mandato do ACNUR como a continuação do mandato,
ou seja, a ausência de causa para o fim da proteção.”
Dessa forma, a quarta forma de concessão do refúgio na França dá-se atra-
vés da aplicação do princípio da Unidade Familiar, previsto no artigo L314-11
do CESEDA, que, segundo a OFPRA consiste em:

Estender a proteção concedida a um refugiado a seus parentes próximos para


permitir que ele ou ela conduzam uma vida familiar normal e lhe ofereçam
proteção total. No entanto, o princípio da unidade familiar aplica-se apenas
ao cônjuge (casado ou em convivência), filhos menores ou pessoas sob tutela.
Portanto, não se aplica a ascendentes e colaterais e não pode ser invocado para
pessoas que beneficiam de proteção subsidiária.

14
BELORGEY, Jean-Michel. Le droit d’asile. Paris; LGDJ, 2013, p.62, tradução nossa.
15
BARBOU DES PLACES, Ségolène; CORNELOUP, Sabine; JAULT-SESEKE, Fabienne. Droit de La
Nactionalité et Des Étrangers. Ed. Thémis, 2015, p.341, tradução nossa.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 465
Ademais, de acordo com a legislação francesa, para que o solicitante con-
siga trazer seus familiares para perto de si, é necessário que ele esteja legal-
mente no País após no mínimo 18 meses. O reagrupamento familiar pode ser
solicitado, também, pelos menores de dezoito anos e pode não ser concedido
ao demandante no caso de ele não possuir recursos financeiros suficientes para
o sustento da sua família ou de não possuir uma moradia digna para acolhê-la.
Nas palavras de CASTILLO16, “o princípio da unidade familiar é um
princípio geral de direito dentro dos princípios gerais de direito aplicáveis
aos refugiados e um princípio geral no direito relativo à proteção da vida
familiar.” Constata-se, desse modo, que os indivíduos que conseguirem o rea-
grupamento familiar receberão uma carta de residente temporária e possuirão
o direito de trabalhar.
Todavia, é importante destacar a existência da proteção temporária, pre-
vista no artigo L811-1 do CESEDA e no artigo 63 do Tratado de Lisboa de
2007 que é uma medida excepcional criada para proteger pessoas no caso de
grandes fluxos de deslocamentos. CASTILLO estabelece uma crítica entre a
criação desse tipo de proteção e a Convenção de Genebra de 1951, pois a Con-
venção leva sempre em consideração a situação individual do indivíduo vítima
de perseguição, enquanto a proteção temporária considera o movimento de
uma coletividade:

A proteção da Convenção de Genebra pode revelar-se insuficiente quando não


são uma, mas muitas pessoas que se movem e são irrelevantes quando esses
movimentos estão relacionados a um conflito particular. É o deslocamento
forçado e maciço das pessoas causado pelos conflitos no território da ex-Ju-
goslávia e pela crise no Kosovo que exigiram uma solução urgente. A idéia de
criar um mecanismo temporário de proteção daí surgiu. (CASTILLO, online,
tradução nossa, 2016, p. 419)

Destaca-se, ainda, o artigo L811-3 do CESEDA, que prevê que com a pro-
teção temporária o indivíduo terá o direito de trabalhar, ademais a proteção
poderá durar no máximo três anos:

Um estrangeiro pertencente a um grupo específico de pessoas abrangidas pela


decisão do Conselho gozará de proteção temporária a partir da data mencio-
nada nessa decisão. Um documento de residência provisório acompanhado,
se for caso disso, de uma autorização provisória de trabalho é lhe dado. Este
documento temporário de residência deve ser renovado até que a proteção
temporária seja rescindida.

16
CASTILLO, Justine. Les interprètes de la Convention de Genève du 28 juillet 1951 relative au
statut des refugies : Etude du point de vue de la France. 2016, p. 271, tradução nossa.
466 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

O benefício da proteção temporária é concedido por um período de um ano


renovável até um máximo de três anos. Esta proteção pode ser encerrada a
qualquer momento por uma decisão do Conselho.
O documento de residência provisório pode ser recusado se o estrangeiro já
estiver autorizado a residir sob a cobertura de uma autorização de residência
para protecção temporária em outro Estado-Membro da União Europeia e
não pode reclamar o benefício da disposição prevista no artigo L. 811-6.

Diferentemente da entrada de um estrangeiro no território francês que


pressupõe a posse de documentos de viagem, a entrada de um refugiado não
está condicionada a esse fator, em conformidade com o princípio do non-
-refoulement, ou da não-devolução, norma jus cogens do direito internacional
público, que possui, portanto, força imperativa, segundo a qual o refugiado ou
demandante dessa proteção não será devolvido ao Estado onde sua vida esteja
ameaçada. O artigo 741-3 do CESEDA prevê que a admissão à residência não
pode ser recusada pelo simples fato de o estrangeiro não possuir documentos
e vistos. Nas palavras de Gaeremynck17, “é um artigo essencial, que ilustra per-
feitamente a especificidade, como mencionado acima, do direito de asilo em
relação ao direito de estrangeiros em geral.”
No que se refere à demanda de refúgio, nota-se que ela pode ser feita
quando o estrangeiro estiver em seu país de origem, na fronteira ou no ter-
ritório francês. Dessa forma, conforme o OFPRA, “a emissão do visto de
asilo é responsabilidade do Ministério do Interior, mas o OFPRA pode ser
consultada em determinados pedidos. Se o estrangeiro obtiver este visto, ele
pode permanecer na França, devendo apresentar-se à prefeitura do seu local de
residência para continuar o procedimento de asilo.”
A demanda de refúgio pode, de outro modo, ser realizada nas fronteiras,
sejam elas aéreas, marítimas ou terrestres, e, caso o estrangeiro não preencha
as condições para entrar no País, ele ficará na zona de espera do aeroporto ou
dos portos, podendo ali fazer a solicitação. Segundo o OFPRA, “o período
máximo de permanência nesta zona é de 20 dias, sob a supervisão do juiz das
liberdades e da detenção.”
No que se refere à entrada de estrangeiros ilegais por vias terrestres, têm
sido, cada vez mais, comuns os fluxos de pessoas de países africanos que en-
tram no continente europeu por via marítima e atravessam diversos países
para chegar à França ou Inglaterra, de forma que essas entradas ilegais no
território francês geram uma certa contradição, pois, conforme as normas
europeias de direitos humanos, o Estado que deveria analisar uma solicitação
17
GAEREMYNCK, Jean. L’arrivée et la demande d’asile. Revista Pouvoirs, Paris, v.1, Disponível em:
< http://www.cairn.info/revue-pouvoirs-2013-1-page-49.htm> Acesso em: 07 setembro 2017, p. 49, tra-
dução nossa.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 467
de refúgio deveria ser aquele pelo qual o estrangeiro teve acesso ao continente
europeu. Nesse sentido, Gaeremynck18 expõe que:

É aqui que aparece o chamado paradoxo de Dublin, sob o nome do Regula-


mento (CE) n.º 343/2003 do Conselho, de 18 de Fevereiro de 2003, que estabe-
lece os critérios e mecanismos para a determinação do Estado responsável na
União Europeia, de examinar um pedido de asilo: dada a posição geográfica
da França, a aplicação desse regulamento deve conduzir a negar a competência
da França para tratar a maioria das demandas.

Já a demanda de refúgio quando o indivíduo já está na França deve ser


realizada na prefeitura de polícia do departamento no qual a pessoa está. Se-
gundo o OFPRA:

Para demandar o asilo, o demandante deve primeiro dirigir-se a uma associa-


ção responsável pelo pré-acolhimento, cuja missão é, em particular, fixar seu
compromisso no balcão único. Esta associação enviará uma chamada para essa
consulta que ocorrerá dentro de três dias. Deve-se, então, registrar o pedido de
asilo na agência única do local de residência, composto por agentes da prefei-
tura e agentes do Ofício Francês de Imigração e Integração (OFII) reunidos
especificamente para garantir sua aceitação.

As próximas etapas da demanda serão quando um agente da prefeitura ana-


lisará as informações fornecidas pelo solicitante e quando um agente do Ofício
Francês de Imigração e Integração analisará se o demandante possui o aloja-
mento provisório. Conforme o OFPRA, a partir desse momento o subsídio de
requerente de asilo passa a ser direito do indivíduo que demandou o refúgio, que
consiste em uma ajuda financeira provisória à pessoa. Nesse momento, o agente
da prefeitura fornece ao demandante uma atestação de demanda de refúgio e
um formulário de solicitação de asilo que deve ser transmitido ao OFPRA. Em
seguida, esse órgão convocará a pessoa para uma entrevista de demanda de refú-
gio em que a decisão será favorável ou desfavorável. O artigo L741-2 dispõe que:

Quando o pedido de asilo é examinado pelas autoridades francesas, o estran-


geiro introduz sua demanda no Ofício Francês de Proteção de Refugiados e
Apátridas no prazo fixado por um decreto de Conselho de Estado. A autorida-
de administrativa competente informará imediatamente ao Ofício o registro
do pedido e a apresentação do certificado de asilo. Um pedido de asilo só
pode ser apresentado se tiver sido previamente sido registrado pela autoridade
administrativa competente e se a atestação de demande de asilo houver sido
entregue ao interessado.

18
GAEREMYNCK, Jean. L’arrivée et la demande d’asile. Revista Pouvoirs, Paris, v.1, p. 49, online,
tradução nossa.
468 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

No caso de recusa de concessão de refúgio pelo OFPRA ou em caso de


não aceitação da decisão desse órgão, um recurso poderá ser interposto pelo
demandante perante a Corte Nacional de Asilo (CNDA). Importante mencio-
nar que o demandante poderá ter o benefício da assistência judiciária gratuita
para a interposição de recurso perante esse Tribunal. Nesse sentido, é possível
afirmar com relação à essa jurisdição que:

Ela é competente para apreciar as decisões sobre os pedidos de asilo, é um


tribunal administrativo especializado que decide, em primeira instância, os
recursos contra decisões do Ofício Francês de Proteção de Refugiados e Apá-
tridas. Esta jurisdição, colocada sob a jurisdição do Conseil de Estado (Conseil
d’État), tem jurisdição nacional. É uma jurisdição contenciosa, reconhecida
pelo Conselho de Estado desde a sua decisão Aldana Barrena, de 8 de Janeiro
de 1982. Isto significa que o juiz de asilo não se limita a anular a decisão
tomada pelo Diretor-Geral da OFPRA, mas que ele pode substituí-la por sua
própria decisão decidindo-se sobre o direito do autor ao estatuto de refugiado
ou ao benefício da proteção subsidiária. [Corte Nacional de Asilo, 2017, online,
tradução nossa].

Com relação à jurisprudência da Corte Nacional de Asilo, diversas têm


sido as decisões recentes que anularam ou mantiveram as decisões do OFPRA,
a fim de garantir os direitos humanos dos demandantes de refúgio. A primeira
decisão a qual vale a pena mencionar é a N° 16014463 da CNDA da 3ª seção
e do 3º gabinete, cuja audiência ocorreu em 28 de fevereiro de 2017, em que
M.O, um indivíduo originário da Mongólia, alegou ser vítima de perseguições
pelo fato de ser homossexual naquele país.
Essa pessoa fora rejeitada por sua família por ter um caso com um colega
de classe quando era mais novo, fora preso em detrimento desse fato, fora
agredido por familiares de seu companheiro e, também, fora ameaçado de
morte por eles. O homem decidiu, então, ir para a França, e lá pedir refúgio
ao Estado, o que, entretanto, foi-lhe negado pelo OFPRA, não lhe cabendo
alternativa a não ser a interposição de recurso perante a CNDA. A Ementa
dessa jurisprudência foi no seguinte sentido:

Embora a homossexualidade não seja penalizada neste país, os mongóis ho-


mossexuais, no entanto, constituem um grupo social cuja característica es-
sencial a que não podem renunciar é sua orientação sexual e cuja própria
identidade é percebida como diferente da sociedade circundante e pelas insti-
tuições da Mongólia. Os receios do requerente de ser re-vitimado devido à sua
pertença a esse grupo social no caso de seu retorno ao seu país, sem poder se
valer da proteção das autoridades, foram considerados fundamentados e ele
foi reconhecido como um refugiado. [CNDA 31 de maio de 2017 M. O. No.
16014463 C, online, tradução nossa]
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 469
Em outro julgado recente, percebe-se que a CNDA agiu no sentido de
manter a decisão da OFPRA, pois um ex-membro do regime líbio de Kadhafi
solicitou refúgio à França alegando perseguições em seu país de origem por
milícias pró-islâmicas. Ocorre que esse indivíduo fora acusado de agir contra
os princípios das Nações Unidas, tendo o direito de asilo negado novamente
pelo Tribunal:

O OFPRA havia lhe excluído da Convenção de Genebra com base no Artigo


1F (c), por seu pertencimento a à ditadura do regime Muammar Kadhafi.
Em primeiro lugar, o tribunal considera os motivos de perseguição do reque-
rente no caso de seu retorno ao seu país devido às suas opiniões políticas e
sua carreira profissional no Estado sob o comando de Muammar Kadhafi,
bem como o contexto de represálias por membros das milícias pró-islâmicas
contra partidários do antigo regime. Esses medos decorrem de uma carreira
profissional de quase trinta anos no governo da Líbia, durante o qual ocupou
vários cargos no Serviço de Inteligência Estrangeira e posteriormente com o
Ministro das Relações Exteriores. Em segundo lugar, o tribunal caracteriza os
elementos que permitem a participação pessoal do requerente em atos contrá-
rios aos propósitos e princípios das Nações Unidas, conforme o Artigo 1F (c)
da Convenção de Genebra. Ele considera que suas atividades como treinador
na técnica de interrogatório de agentes de inteligência externa, cuja documen-
tação pública demonstra o uso generalizado da tortura e, suas atividades com
Moussa Koussa, ex-diretora do serviço de inteligência e assuntos estrangeiros
em que, em particular, elaborou relatórios que levaram à prisão de opositores
políticos, permitindo considerar que “contribuiu pessoalmente para a comis-
são de atos de tortura por agentes do regime líbio sob a autoridade de seu
serviço ou dependente disso “e, portanto, levam à exclusão do benefício da
proteção convencional. [CNDA 11 de julho de 2017 M. N. 16001216 C, online,
tradução nossa]

Diante das jurisprudências expostas acima, percebe-se que, no Território


Francês, a recusa da concessão do refúgio pelo OFPRA, órgão administrati-
vo, pode ser revista pela CNDA, organismo judicial, que tem agido das mais
diversas formas, reformulando, algumas vezes, decisões inteiras do primeiro.
Nota-se, com isso, também, o avanço da legislação francesa relativamente à
proteção jurídica dos demandantes de refúgio, tendo em vista a existência de
diversas formas de proteção ao estrangeiro vulnerável e a amplitude do direito
de acesso à justiça aos solicitantes de refúgio.

3. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS REFUGIADOS NA


FRANÇA

No que se refere aos direitos dos estrangeiros no País em análise neste


artigo, mais precisamente aos direitos dos refugiados, insta dizer que, aos
470 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

imigrantes em situação regular, é garantido-lhes o direito de circular e residir


livremente no território estatal. Da mesma forma, eles possuem o direito de
deixar o país no qual habitam. Segundo afirma SUDRE19, a proteção aos
direitos fundamentais desses indivíduos é reconhecida não apenas pela legis-
lação francesa, mas também por instrumentos internacionais, à exemplo da
Convenção Europeia de Direitos Humanos:

Sob reserva de limitações em decorrência de atividades políticas, os estrangei-


ros (originários de estados que não fazem parte da Convenção, refugiados ou
apátridas) podem se fazer proteger por direitos e liberdades enunciados pela
Convenção Europeia de Direitos Humanos. A Convenção, em seu artigo 1º,
reconhece esses direitos a toda pessoa, sem levar em conta sua nacionalidade,
desde o momento em que ela está na jurisdição de um de seus Estados-Mem-
bros, entretanto o direito de entrar ou se estabelecer no território de um dos
estados contraentes não lhes é garantido; ademais, o direito do estrangeiro à
liberdade de circulação é bastante restrito.

De acordo com o que fora destacado até agora neste artigo, nota-se que o
direito à posse de documentos pessoais de identidade é uma garantia que passou
a ser concedida aos refugiados na França, tendo o OFPRA papel essencial nesse
aspecto. Nesse sentido, BELORGEY20 afirma que: “Nesse momento, o OFPRA
substitui as autoridades do país de origem para conceder aos refugiados os docu-
mentos necessários à realização dos atos da vida cotidiana, compreendendo os
documentos de identidade civil de si e dos membros da família.”
A lei francesa que regulamenta os direitos dos refugiados e dos solicitantes
de refúgio possui um caráter bastante protetivo, estabelecendo diversos direitos
desde a demanda do asilo, bem como após a outorga desse dispositivo. A primei-
ra garantia que merece destaque é o direito à um alojamento (droit au logement),
pois ele consiste em uma condição mínima para que o acolhimento do estran-
geiro no País seja realizado de forma a respeitar devidamente a sua dignidade.
Nesse contexto, a fim de fornecer um local digno para a instalação desse
indivíduo vulnerável, o governo francês dispõe de centros de acolhimento
denominados Centro de Acolhimento para os Demandantes de Asilo (CADA)
que estão presentes em todo o território nacional para acolher refugiados e
familiares, onde pessoas profissionalmente capacitadas para acolher esses es-
trangeiros estão presentes e lhes auxiliam nos procedimentos administrativos
necessários para a instalação no País. Conforme afirma AUBIN21, “A lei de

19
SUDRE, Frédéric. Droit européen et international des droits de l’homme. 12. Ed. Paris; PUF, 2015,
p.868, tradução nossa.
20
BELORGEY, Jean-Michel. Le droit d’asile. Paris; LGDJ, 2013, p.123, tradução nossa.
21
AUBIN, Emmanuel. Droit des étrangers. 3. Ed. Issy-les-Moulineaux; GUALINO, 2014, p. 338, tradu-
ção nossa.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 471
coesão social do 18 de janeiro de 2005 fez do alojamento dos solicitantes de
asilo uma prioridade.” Dessa forma, percebe-se que o artigo 744-3 do CESEDA
legisla acerca do direito de asilo a esses indivíduos, estabelecendo que:

As decisões de admissão de requerentes de asilo para um lugar de asilo, remo-


ção do local e mudança de lugar são tomadas pelo Ofício Francês de Imigra-
ção e Integração, após consulta do diretor do lugar com base no regime na-
cional de acolhimento dos requerentes de asilo e, se for caso disso, no regime
regional previsto no artigo L. 744-2 e tendo em conta a situação do requerente.
São lugares de acomodação para os requerentes de asilo:
1° - Os centros de acolhimento para requerentes de asilo mencionados no
artigo L. 348-1 do Código de Ação Social e Famílias;
2° - Qualquer estrutura financiada pelo Ministério encarregado do asilo para
o acolhimento dos requerentes de asilo e sujeita a declaração, na acepção do
artigo L. 322-1 do mesmo Código.
Os requerentes de asilo alojados no alojamento mencionado nos 1 ° e 2 ° deste
artigo beneficiam de apoio social e administrativo.
O representante do Estado no departamento pode invocar motivos de ordem
pública para a decisão de admissão de um requerente de asilo em local de aco-
modação. Nesse caso, o Ofícioo deve tomar uma nova decisão de admissão. O
Instituto deve assegurar que as pessoas que tenham sido encaminhadas tenham
estado presentes nos locais de alojamento durante a vigência do processo.

Percebe-se que a legislação francesa leva em conta o critério da vulnerabi-


lidade com intenção de conceder mais rapidamente um alojamento à pessoa
necessitada, pois, por exemplo, em seu artigo L744-6, o CESEDA prevê a reali-
zação de uma entrevista pelos agentes do OFPRA com o demandante de asilo
para que suas necessidades particulares em matéria de acolhimento sejam ava-
liadas, bem como o seu estado de saúde. Desse modo, pessoas acompanhadas
de filhos menores, mulheres grávidas ou deficientes físicos são considerados
como vulneráveis.
Imprescindível é mencionar, porém, que muitas vezes o acesso aos lo-
cais pelos refugiados não é dado com a mesma facilidade que é concedido
aos nacionais, fazendo que muitos indivíduos dessa categoria instalem-se nas
ruas das grandes cidades, de modo que, para BELORGEY22, “os refugiados
normalmente têm acesso pleno à habitação de aluguel social, assim como os
nacionais, mas são mais vulneráveis ao fornecimento inadequado desses tipos
de habitação, devido a seus recursos limitados e às práticas discriminatórias.”
Relativamente à concessão de auxílios financeiros ao estrangeiro vulnerá-
vel, após as condições de alojamento serem definidas e, no caso de o deman-
dante não possuir recursos suficientes para se manter, ele poderá usufruir de

22
BELORGEY, Jean-Michel. Le droit d’asile. Paris; LGDJ, 2013, p.133,tradução nossa.
472 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

uma alocação enquanto espera a outorga definitiva da condição de refugiado a


si, nos moldes do artigo 744-9 do instrumento jurídico supramencionado. Essa
ajuda não é exclusiva dos demandantes de refúgio ou refugiados, podendo ser
estendida àqueles indivíduos que sejam beneficiários da proteção temporária.
No que se refere ao direito de trabalhar, essa garantia está prevista no
artigo L744-11 do CESEDA, que, entretanto, limita aos solicitantes de refúgio
ao mercado de trabalho francês:

O acesso ao mercado de trabalho pode ser concedido ao requerente de asilo


quando o Serviço Francês de Proteção de Refugiados e Apátridas, por motivos
não imputáveis ao ​​ requerente, não se pronunciou sobre o pedido de asilo
no um período de nove meses após a apresentação do pedido. Neste caso, o
requerente de asilo está sujeito às regras comuns aplicáveis aos
​​ trabalhadores
estrangeiros para a emissão de uma autorização de trabalho.
Os requerentes de asilo que entram no mercado de trabalho nas condições previs-
tas no primeiro parágrafo do presente artigo beneficiam das medidas de formação
profissional contínua previstas no artigo L. 6313-1 do Código do Trabalho.

A lei determina que o solicitante de refúgio e os refugiados poderão


usufruir de uma ajuda de membros da administração para a busca de em-
prego. Percebe-se, porém, que frequentes são as limitações desses indivíduos
ao mercado de trabalho, pois a dificuldade com o idioma estrangeiro, com a
revalidação de diplomas e a proteção da lei local ao acesso a determinados em-
pregos restringem o acesso desses estrangeiros a possuir uma ocupação. Nesse
sentido, afirma BELORGEY23 que: “Muitas profissões continuam fechadas aos
estrangeiros, refugiados ou beneficiários de proteção subsidiária por razões
de segurança do Estado, e, também, por outras razões: como a ocupação de
função pública.”
Outro direito de notória importância dos refugiados na França, é o direito
à educação das crianças refugiadas. Tal direito é previsto da mesma forma na
legislação dos refugiados e dos estrangeiros, que, obrigatoriamente devem ser esco-
larizados entre os 6 e os 16 anos, e que, nas palavras de AUBIN24, “a recusa de um
prefeito de autorizar a escolarização de uma criança em razão de sua nacionalidade
é uma discriminação, conforme os artigos 225-1 e 225-2 do Código Penal Francês.”
Em relação ao direito de saúde, o qual consiste em direito universal que
deve sempre priorizar a dignidade do indivíduo, importante mencionar que
o instrumento jurídico francês regulamentador dessa garantia é o Código de
Saúde Pública, que prevê em seu artigo L111-01 que:

23
BELORGEY, Jean-Michel. Le droit d’asile. Paris; LGDJ, 2013, p. 131, tradução nossa.
24
AUBIN, Emmanuel. Droit des étrangers. 3. Ed. Issy-les-Moulineaux; GUALINO, 2014, p.430, tradu-
ção nossa.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 473
O direito fundamental à proteção da saúde deve ser exercido por todos os
meios disponíveis em benefício de qualquer pessoa. Profissionais, estabeleci-
mentos e redes de saúde, órgãos de seguro de saúde ou outros organismos en-
volvidos em prevenção e cuidados, e as autoridades de saúde, juntamente com
os usuários, contribuem para o desenvolvimento da prevenção, garantindo o
acesso igual para garantir a continuidade dos cuidados e a melhor segurança
sanitária possível.

Observa-se do artigo acima mencionado que o direito à saúde deve ser ga-
rantido a todos, não levand em consideração o fato de indivíduo ser portador
ou não da nacionalidade francesa. Ocorre, entretanto, que, por dois motivos,
o acesso à saúde ao estrangeiro pode ser limitado, os quais consistem, nas
palavras de AUBIN25:

Em um primeiro tempo, a Administração Pública pode recusar a concessão de


um título de estadia no território (titre de séjour) a um estrangeiro que deseja
ficar na França por um motivo médico; e, em um segundo tempo, ela pode
tomar uma medida de afastamento de estrangeiros doentes presentes no Terri-
tório devido ao risco que ele pode representar.

Outro importante direito que merece destaque consiste no acesso à prote-


ção social, permitindo o acesso do refugiado a direitos, como a licença-mater-
nidade, pensão em caso de invalidez e a outras ajudas financeiras do Estado.
Segundo TOPPINO26, “os estrangeiros residentes na França tem direito de
se beneficiar da proteção social nas mesmas condições que os nacionais, sob
reserva de uma estadia regular.”
Nota-se que, no País, o acesso à assistência social inclui também o acesso
dos refugiados a diversos outros auxílios econômicos, como o financiamento
de parte do aluguel pelo Estado, o direito à ajuda financeira a deficientes físi-
cos e o direito de receber dinheiro mesmo após o fim do seguro-desemprego,
garantias as quais podem ser concedidas até mesmo a quem possui apenas a
proteção subsidiária. Assim, conforme BELORGEY27:

Os direitos dos beneficiários da proteção subsidiária são menos extensos, pois


a diretriz qualificação autorizava a restrição desses indivíduos às prestações
essenciais, entretanto um decreto de 28 de fevereiro de 2006, concedeu o acesso
à alocação das pessoas deficientes aos estrangeiros que têm a proteção subsidiá-
ria quando estivessem em posse de um título de residente válido.

25
AUBIN, Emmanuel. Droit des étrangers. 3. Ed. Issy-les-Moulineaux; GUALINO, 2014, p.422, tradu-
ção nossa.
26
TOPPINO, Agnès. Guide pratique des droits des étrangers. Issy-les-Moulineaux; ESF, 2012, p.193.
27
BELORGEY, Jean-Michel. Le droit d’asile. Paris; LGDJ, 2013, p.132, tradução nossa.
474 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

O legislador francês agiu também no sentido de conceder aos menores


de idade que estão desacompanhados no País e que demandam o estatuto de
refugiados alguns direitos no que se refere à instalação desses indivíduos vul-
neráveis, visando evitar o isolamento e o abandono de milhares de crianças e
adolescentes que entram na França. Ocorre, porém, que muitas vezes, a prova
de uma verdadeira perseguição torna-se difícil pela falta de documentos desses
jovens. Nesse sentido, o Relatório anual sobre o asilo na França e na Europa
de 2017 estabeleceu que:

Todos os menores não acompanhados estão, no entanto, sujeitos a um pro-


cedimento específico para a admissão aos serviços de assistência social de-
partamental para crianças, que sofreu várias mudanças em 2016. O desman-
telamento do campo de Calais em outubro 2016 resultou na introdução de
procedimentos e dispositivos específicos a esses indivíduos. [2017, p. 158, on-
line, tradução nossa]

Percebe-se, com o abordado neste tópico, que a legislação francesa, sobre-


tudo em seu instrumento jurídico protetor dos estrangeiros, o CESEDA, esta-
beleceu diversos direitos dos nacionais dos quais os solicitantes de refúgio e os
refugiados podem usufruir. Nota-se, também, que a possibilidade de receber
mais facilmente um alojamento e as ajudas financeiras oferecidas pelo Estado
Francês consistem em aspectos atrativos que fazem que muitos indivíduos que
carecem materialmente ou que realmente são vítimas de perseguição em seu
país de residência busquem a França para tentar melhorar de condições de
vida em detrimento de outros países da União Europeia.

CONCLUSÃO

De acordo com o que foi analisado ao longo deste artigo, percebe-se que
o “droit d’asile”, que compreende o direito de asilo (direito de refúgio no sis-
tema jurídico francês) é uma proteção que, no direito francês, possui origem
no artigo 120 da Constituição de 1793 – período da Revolução Francesa – que
previa, segundo BELORGEY28 que: “O povo francês daria asilo aos estran-
geiros banidos de sua pátria de origem em razão da liberdade e o recusa aos
tiranos.” Posteriormente, essa garantia veio prevista no preâmbulo da Consti-
tuição francesa de 1946 e fora adotado, novamente, na atual constituição da
Vª República, que é a Carta Magna de 1958.
Não obstante, a França, país berço dos direitos humanos, é signatária de
diversos tratados internacionais de direitos humanos que prevêm esse direito,

28
BELORGEY, Jean-Michel. Le droit d’asile. Paris; LGDJ, 2013, p. 24, tradução nossa.
Os Desafios do Direito Internacional Contemporâneo 475
como a Convenção de Genebra de 1951, o principal documento mundial de
proteção aos refugiados, o Protocolo de 1967 relativo aos direitos dos refugia-
dos e de outros tratados europeus que regulamentam o instituto do refúgio,
como a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, o Tratado de
Lisboa de 2007 e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Outrossim, conforme o explicado neste trabalho, percebe-se que a prote-
ção ao ser vulnerável vítima de algum tipo de perseguição pode ser concedida
ao indivíduo, na França, por meio de seis formas: asilo convencional, constitu-
cional, estatutário; proteção subsidiária; reagrupamento familiar e, finalmente,
proteção temporária. Constata-se, ademais que, consoante o que foi analisado,
o Ofício Francês de Proteção aos Refugiados e Apátridas (OFPRA) possui um
papel fundamental no que alude à proteção dos demandantes de asilo e refu-
giados, pois é o órgão nacional responsável por toda a burocracia referente à
outorga ou não-outorga do estatuto refugiado ao estrangeiro.
Impossível deixar de destacar o papel crucial da Corte Nacional de Asilo
(CNDA), jurisdição contenciosa e consultiva, que possui, dentre suas funções,
reanalisar as decisões do OFPRA, onde os juízes podem substituí-las por suas
próprias decisões, dispondo acerca da concessão ou não do estatuto de refugia-
do ou do benefício da proteção subsidiária.
Insta dizer, relativamente à garantia de certos direitos previstos na legis-
lação francesa, que muitas dificuldades ainda são constatadas, por exemplo,
relativamente à obtenção de um alojamento para os refugiados, tendo em vista
as crescentes demandas e a burocracia a qual o solicitante necessita enfrentar.
Acerca desse tema, dispõe o Relatório anual sobre o asilo na França e na Eu-
ropa de 2017 que:

Apesar da criação de locais realizados nos últimos anos no sistema de hospe-


dagem nacional, a capacidade de acolhimento permanece amplamente insufi-
ciente em relação às necessidades. No anexo do projeto da Lei de Finanças de
2017, o Governo indicou que 55% das pessoas elegíveis para acomodação em
um centro dedicado aos requerentes de refúgio foram alojados, contrariando
o alvo de 70%. (2017, p. 156, online, tradução nossa)

Constata-se, com o exposto neste estudo, que a França tem realizado


conquistas no que tange à outorga de garantias fundamentais aos estrangeiros,
especialmente aos refugiados, possuindo uma legislação que, se comparada a
de muitos países, é generosa, pois prevê diversas formas de alocações financei-
ras a esses indivíduos, mesmo quando o status de refugiado não lhes tem sido,
todavia, concedido.
Ocorre que, cada vez mais, no interior dessa País, tem crescido a pressão
social para que haja uma maior limitação à concessão desses benefícios aos
476 Tarin Cristino F. Mont’Alverne / Silvana Paula M. de Melo/ Arthur Gustavo S. de Queiroz (Orgs.)

não-nacionais, acarretando a emergência de movimentos nacionalistas e de


candidatos governistas de extrema direita, como nas eleições de 2017, onde a
candidata à presidência Marine Le Pen, que defendia a criação de quotas para a
entrada de refugiados na França e a retirada de seu país da União Europeia, so-
freu uma derrota para o atual presidente Emmanuel Macron, que se posiciona
a favor do acolhimento de estrangeiros vítimas de algum tipo de perseguição.

REFERÊNCIAS

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SUDRE, Frédéric. Droit européen et international des droits de l’homme. 12. Ed. Paris; PUF, 2015
TOPPINO, Agnès. Guide pratique des droits des étrangers. Issy-les-Moulineaux; ESF, 2012.
A obra reúne, em trinta capítulos, temas relacionados aos desafios do Direito Internacional
contemporâneo, dividindo-se em quatro partes, a saber, “Os instrumentos de implementação
dos objetivos para o desenvolvimento sustentável”, “A evolução da jurisprudência internacional
penal e o seu reflexo no sistema penal brasileiro”, “A implementação dos compromissos inter-
nacionais pelo Brasil: avanços ou retrocessos?” e “Os desafios do Direito internacional: outros
temas relevantes”. Entre os autores da obra, encontram-se graduandos(as) e graduados(as),
mestrandos(as) e mestres(as), doutorandos(as), doutores(as) e pós-doutores(as) de inúme-
ras instituições de ensino superior, nacionais e internacionais, o que possibilita crescente in-
tercâmbio de conhecimento.

ISBN 9788582384985

9 788582 384985

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