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Desmundo

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Desmundo

DESMUNDO
Romance de Ana Miranda

Pediram-me que lesse "Desmundo", de Ana Miranda, para que pudéssemos


comparar opinões a respeito. Não tinha lido nada da autora, ainda, e a primeira
impressão ao apenas folhear o livro não foi das melhores, confesso: páginas,
quase todas, com blocos maciços de texto, sem parágrafo, sem nenhum
espaço nem à direita, nem à esquerda das páginas. Isso, por si só, já dá idéia
de cansaço na leitura. Mas o importante é ler a obra para saber de suas
qualidades. 
Comecei a ler e veio a confirmação: o romance realmente é cansativo, não só
pelos blocos maçudos, compactos de texto, mas pela maneira como foi escrito,
quase que sem pontuação e sem diálogos - daí a falta de parágrafos e,
conseqüentemente, de espaços -, com emprego de muitas palavras em desuso
nos dias atuais, prejudicando a compreensão. Além disso, a autora tentou - e
conseguiu, acho - usar a maneira de falar da época da colonização do Brasil
pelos portugueses, isto é: a maneira de falar dos portugueses de quatro
séculos e meio atrás. E como a narradora é uma das órfãs que o reinado
português mandara para o Brasil para casar com os homens que aqui estavam
"em pecado", o modo de falar não poderia ser dos mais cultos. 
Além da falta de pontuação, os períodos enormes e às vezes desconexos,
complicam ainda mais a compreensão. Quanto às palavras novas - ou tão
velhas que são desconhecidas, sem nenhum significado para nós, atualmente -
precisaríamos de um dicionário aberto durante toda a leitura do livro, o que
demandaria um enorme tempo para se conseguir terminar de lê-lo. Seria quase
uma tradução.
A história, sem dúvida, é boa: é o Brasil de quase cinco séculos atrás visto e
sentido por uma mulher, uma portuguesa simples da época - simples, mas forte
e densa, uma personagem interessantíssima. 
O romance pode ter sido uma experiência lingüística, uma pesquisa histórico-
lingüística para a autora, mas como ela própria afirmou, escrever o livro foi
como aprender uma nova língua durante um ano e meio, tempo que levou para
concluir a obra. Mas há que se reconhecer que os leitores não aprenderam
essa nova língua para ler o livro, o que o torna cansativo e difícil. Li o livro todo,
resisti e não me arrependi, mas não posso garantir que, se não me tivessem
pedido para lê-lo, eu não teria desistido.
Abaixo, alguns trechos colhidos aleatoriamente das trezentas e tantas páginas
de "Desmundo", para que se possa ter uma pequena idéia de como é o livro:
"O físico na fé de suas virtudes esteve um grande espaço tanto confuso,
determinou que nada mais da cozinha tomasse eu, no que passou a purgar
com eleição a miserável doença..."
"Vai-te d´hi, aramá vas."
"A cidade sem ter divisa de antiguidade, já como que em ruínas, fosse velho o
lugar, ficava por trás de umas palmeiras de frutos verdes, tâmaras, parreiras,
laranjais em flor, nela espalhados cheiro de bom odor desvestido e defumado
de seu mau fedor, assim como ver de olhos tonteados pelo mar e qual a
bebedice do amor e seus pecados e beberagens que embebedam e todas as
coisas parecem boas.

Fonte (Portal Prosa, Poesia & Cia)


APRESENTANDO "DESMUNDO":
Numa noite estrelada do ano de 1555 chega ao Brasil uma caravela trazendo
uma leva de órfãs mandadas pela rainha de Portugal para se casarem com os
cristãos que aqui habitavam. Com a mente repleta de sonhos e fantasias, elas
pisam pela primeira vez a terra distante, onde um mundo rude, belíssimo,
violento, as espera. A história dessas órfãs é contada por uma delas, Oribela,
com sua visão mítica, espiritual, sensual, uma jovem que costuma ter visões
noturnas, ímpetos de partir e muito medo da paixão que habita sua alma. Seu
relato íntimo revela, todavia, não apenas as aspirações e angústias de sua
desamparada existência feminina, mas a brutalidade do desmundo que a
cerca, o encontro de povos em guerra, o conflito entre seres diferentes, a
intolerância religiosa, os terrores que encerra o desconhecido. 
Suas "palabras pronunciadas con el corazón caliente" formam um suntuoso
relato arrancado das partes mais inconscientes, mais misteriosas, de um ser
que atravessou não apenas o oceano Atlântico, mas a linha imaginária que
separa a realidade e o sonho, a liberdade e a escravidão, o amor e o ódio, a
virtude e o pecado, o corpo e o espírito.
Desmundo

PARTE 1 - A chegada
1
"A vista de uma colina distante tangeu dentro do meu coração música de boas
falas, com doçainas e violas d'arco, a ventura mais escondida clareia a alma.
Ali estava bem na frente a terra do Brasil, eu a via pelos estores treliçados,
lustrada pelo sol que deitava. Uxtix, uxte, xulo, cá! Verdadeira? Tão pequena
quanto pudesse eu imaginar, lavada por uma chuva de inverno, verde, umas
palmeiras altas no sopé, por detrás de nuvens de tapeçaria, véu de leve fumo.
Hio, hio, huhá. Espantada que a alegria pudesse entrar tão profundamente em
meu coração, em joelhos rezei. Deus, graças, fazes a mim, tua pequena
Oribela, a mais vossa mercê em idade inocente, um coração novo e um
espírito de sabedoria, já estou tão cegada pela porta de meus olhos que nada
vejo senão deleitos, folganças do corpo, louvores, graças prazentes e meu
coração endurecido, entrevado sem saber amar ou odiar. Assim como o azeite
acende o lume, a vista acende o desejo. Dá a mim a graça de muitas lágrimas
com que lavar o meu sonho, maior que meu corpo.
Nossa carne quebrada, já sendo vencida pela fraqueza e ainda assim se
batiam palmas. Cantai, cantai. Davam pancadas nas tábuas de nosso
camarote para aviso da terra, não tivéssemos dois olhos bons em cada fuça,
diziam para darmos mostra da ventura, queridas, boa a chegada, acabada a
água do armário do camarote e só chuva para tomar, atinava eu que ia beber
água fresca, água fresca, água fresca água fresca águafrescaáguafresca larari
lará, molhar as mãos, as ventas, derramar o que fosse, sem contar gota por
gota, não ouvir mais gente bradar por água, molhar meus cabelos em um
chafariz, bica, ter um lugar onde ficar só, sem ver caçarem os peixes,
ferroarem seus olhos, rasgarem suas gargantas, pardeus, sem ouvir mais a
litania do padre Antolim e suas gritarias para despossuir gente tomada pelo
Diabo, as más línguas da Parva amarrada ao pé do condenado, ia eu ter uma
cama onde pudesse estirar minhas pernas e sem me acordarem cotovelos
alheios, nem o medo, nem o suor, nem as vacas batendo os chifres nas
cavernas, será?"
2
"Ia tirar de mim o cheiro de lã podre, vestir camisa limpa, lavar o sal da pele,
comer fruta da árvore, carne assada, esquentar as mãos num fogão de lenha,
assentar à mesa, adeus ferrugem, adeus carne de porco na banha, ai um pão
quente, um ceitil de cerejas, tudo parecia alta maravilha, qualquer botão de
corno, qualquer fita, nova vida, sem rezar pelas monções nem temer as
tempestades e jogar os pequenos ágnus-dei de cera na água para acalmar,
rainha de nossa sorte, lançar às águas as cartas de baralho, os livros de
pecados e fornicações fora o preço da nossa vida tão mal paga, que nada vale,
ia poder andar numa relva, ter uma igreja onde assistir à missa e imagem de
santa, deixar malga de leite à janela para os mortos, lavar minha boca, que
sentia os dentes escuros da mula espanhola ia deitar numa cama sem me
importar se era dia santo ou domingo e ao acordar comer chorizos de sangue,
depois de estômago cheio rezar pois, dissera meu pai, na hora do batismo
encostaram em minha testa uma cruz e eu gritara muito, prova de haver coisa
em mim. Amém, amém, mas nada podia eu compreender do mundo e do céu,
meu modo era esquivar e renegar, no que fiz o sinal-da-cruz no peito, a face
vazia, sem obra, sem costume, sem a memória do passado, os olhos
alongados ao verde da terra, pensando naquelas coisas que desfazem um
coração limpo."

DESMUNDO - romance de Ana Miranda


(resumo)

Em 1570, chega ao Brasil um grupo de órfãs, enviadas pela rainha de Portugal


para desposarem os primeiros colonizadores. Entre elas vem Oribela, uma
jovem sensível e religiosa. Contra sua vontade, ela se casa com Francisco de
Albuquerque, que a leva para seu engenho de açúcar. Apesar de rude,
Francisco trata Oribela respeitosamente: quer que ela seja a senhora da casa,
mãe de seus filhos brancos. Contudo, na fazenda moram a mãe e uma jovem
irmã de Francisco, num estranho e incestuoso núcleo familiar. Certo dia,
aproveitando a passagem de Ximeno, um comerciante vendedor de escravos,
Oribela foge. Quer pegar um navio e voltar a Portugal. Nesta primeira tentativa,
é estuprada pelos marinheiros que deveriam levá-la ao navio. Furioso, o marido
a prende acorrentada num galpão. Sozinha e ferida, a jovem esposa se
deprime, passa os dias chorando. A índia que lhe leva comida é quem, pouco a
pouco, ajuda-a na sua recuperação. Mas Oribela é obstinada em tentar uma
volta impossível para o velho mundo. Em busca do conhecido -- passado
doloroso, mas conhecido -- acaba indo de encontro a todos os perigos, da ira
do marido abandonado, às feras da mata virgem e as pedras da sociedade.
Três vezes ela foge do casamento a que foi empurrada, pelos padres e reis,
com um desconhecido que só lhe provocava náuseas. "Seu aspecto era o de
um cão danado, lhe faltavam dentes, tinha pernas finas, nariz quebrado, da cor
de um desbotado seus olhares. Cheirava a vinho de açúcar, usava um chapéu
roto, tinha tantos pêlos a modo de uma floresta desgrenhada e estava sujo,
imundo (...) O homem me veio a mirar e no rosto lhe cuspi", conta a jovem
rebelde, que aceita o casamento com medo de um mal maior, acabar como
outra mulher que conheceu no mosteiro, que teve os pés e mãos cortados por
recusar um marido. Mas, como um animal selvagem engaiolado, Oribela só
pensa em fugir. Na segunda tentativa, perde a esquadra, mas encontra a
paixão pelo homem a que mais temia. Na terceira, depois de colocar fogo em
tudo, vive a loucura ou a felicidade, dependendo de como se lê a última página
de sua história.

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