Desmundo
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DESMUNDO
Romance de Ana Miranda
PARTE 1 - A chegada
1
"A vista de uma colina distante tangeu dentro do meu coração música de boas
falas, com doçainas e violas d'arco, a ventura mais escondida clareia a alma.
Ali estava bem na frente a terra do Brasil, eu a via pelos estores treliçados,
lustrada pelo sol que deitava. Uxtix, uxte, xulo, cá! Verdadeira? Tão pequena
quanto pudesse eu imaginar, lavada por uma chuva de inverno, verde, umas
palmeiras altas no sopé, por detrás de nuvens de tapeçaria, véu de leve fumo.
Hio, hio, huhá. Espantada que a alegria pudesse entrar tão profundamente em
meu coração, em joelhos rezei. Deus, graças, fazes a mim, tua pequena
Oribela, a mais vossa mercê em idade inocente, um coração novo e um
espírito de sabedoria, já estou tão cegada pela porta de meus olhos que nada
vejo senão deleitos, folganças do corpo, louvores, graças prazentes e meu
coração endurecido, entrevado sem saber amar ou odiar. Assim como o azeite
acende o lume, a vista acende o desejo. Dá a mim a graça de muitas lágrimas
com que lavar o meu sonho, maior que meu corpo.
Nossa carne quebrada, já sendo vencida pela fraqueza e ainda assim se
batiam palmas. Cantai, cantai. Davam pancadas nas tábuas de nosso
camarote para aviso da terra, não tivéssemos dois olhos bons em cada fuça,
diziam para darmos mostra da ventura, queridas, boa a chegada, acabada a
água do armário do camarote e só chuva para tomar, atinava eu que ia beber
água fresca, água fresca, água fresca água fresca águafrescaáguafresca larari
lará, molhar as mãos, as ventas, derramar o que fosse, sem contar gota por
gota, não ouvir mais gente bradar por água, molhar meus cabelos em um
chafariz, bica, ter um lugar onde ficar só, sem ver caçarem os peixes,
ferroarem seus olhos, rasgarem suas gargantas, pardeus, sem ouvir mais a
litania do padre Antolim e suas gritarias para despossuir gente tomada pelo
Diabo, as más línguas da Parva amarrada ao pé do condenado, ia eu ter uma
cama onde pudesse estirar minhas pernas e sem me acordarem cotovelos
alheios, nem o medo, nem o suor, nem as vacas batendo os chifres nas
cavernas, será?"
2
"Ia tirar de mim o cheiro de lã podre, vestir camisa limpa, lavar o sal da pele,
comer fruta da árvore, carne assada, esquentar as mãos num fogão de lenha,
assentar à mesa, adeus ferrugem, adeus carne de porco na banha, ai um pão
quente, um ceitil de cerejas, tudo parecia alta maravilha, qualquer botão de
corno, qualquer fita, nova vida, sem rezar pelas monções nem temer as
tempestades e jogar os pequenos ágnus-dei de cera na água para acalmar,
rainha de nossa sorte, lançar às águas as cartas de baralho, os livros de
pecados e fornicações fora o preço da nossa vida tão mal paga, que nada vale,
ia poder andar numa relva, ter uma igreja onde assistir à missa e imagem de
santa, deixar malga de leite à janela para os mortos, lavar minha boca, que
sentia os dentes escuros da mula espanhola ia deitar numa cama sem me
importar se era dia santo ou domingo e ao acordar comer chorizos de sangue,
depois de estômago cheio rezar pois, dissera meu pai, na hora do batismo
encostaram em minha testa uma cruz e eu gritara muito, prova de haver coisa
em mim. Amém, amém, mas nada podia eu compreender do mundo e do céu,
meu modo era esquivar e renegar, no que fiz o sinal-da-cruz no peito, a face
vazia, sem obra, sem costume, sem a memória do passado, os olhos
alongados ao verde da terra, pensando naquelas coisas que desfazem um
coração limpo."