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AZEREDO, J. C. De. 2018 Art. Sobre Um Uso Estilístico Do Pretérito Mais-Que-Perfeito Na Sintaxe Clássica Do Português

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Sobre um uso estilístico do pretérito mais-que-perfeito na

sintaxe clássica do português

On a stylistic use of the pluperfect tense in classical Por-


tuguese syntax

José Carlos de Azeredo


Universidade do Estado do Rio de Janeiro | CNPq
jc.azeredo@terra.com.br

RESUMO:
Nossa tradição descritiva, amparada exclusivamente em traços morfológicos, assegura
ao pretérito imperfeito do subjuntivo [PIS] e ao futuro do pretérito [FtP] o status de
tempos distintos. No entanto, se levarmos em conta o comportamento de ambos no
plano sintático e no papel de meios de expressão do tempo e da atitude do falante, o
grau dessa separação fica bem reduzido. PIS e FtP ocupam, nos períodos hipotéticos,
posições complementares, e só esporadicamente são permutáveis entre si. Os sentidos
de tempo e modo expressos em cada um acabam por ser exatamente os mesmos. Esse
fato favoreceu a substituição de ambos pelo pretérito mais-que-perfeito, um recurso
estilístico da sintaxe clássica portuguesa que transfere para o plano formal uma simetria
presente no conteúdo.

PALAVRAS-CHAVE:
Sintaxe, verbo, neutralização.

ABSTRACT:
Our descriptive tradition, based exclusively on morphological traits, assures the
subjunctive imperfect past [SIP] and the future in the past [FtP] the status of distinct
tenses. However, if we take into account the behaviour of both on the syntactic level
and in the role of means of expression of the time and the attitude of the speaker, the
degree of this separation is very reduced. In conditional constructions, SIP and FtP
occupy complementary positions, and only sporadically they are interchangeable with
each other. The meanings of time and mode expressed in one and in the other end up
being exactly the same. This fact favoured the replacement of both by the pluperfect

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tense, a stylistic feature of classical Portuguese syntax that transfers to the formal plan
a symmetry present in the content. 

KEY-WORDS:
Syntax; verb; neutralization

Introdução

A chave de ouro de um soneto célebre de Camões figura em várias gra-


máticas pedagógicas como exemplo de um emprego especial do pretérito mais-
-que-perfeito em português. São dois versos que resumem o compromisso de
devotamento amoroso assumido por Jacó diante da trapaça de Labão, pai de
Raquel.: “Mais servira, se não fora/ para tão longo amor tão curta a vida”1. A
Moderna Gramática, do Prof. Evanildo Bechara, também acolhe esse exemplo.
Sobre esse uso do pretérito mais-que-perfeito, eis o comentário de mestre Be-
chara: “...serve hoje como traço estilístico de linguagem solene” (1999, p. 279).
A formação sintática do período – que sem as inversões do original poderia
ser algo como “mais servira [= serviria] / se a vida não fora [= fosse] tão curta
para tão longo amor” – é submetida a uma disposição rítmica que dá realce
ao contraste entre a constância no amor e a brevidade da vida: mais servira
X se não fora, tão longo amor X tão curta a vida. No plano sintático, temos
uma organização simétrica (adv. [mais] + verbo [servira] X adv. [não] + verbo
[fora] // adv. [tão] + adj. [longo] + nome [amor] X adv. [tão] + adj. [curta] +
nome [vida]). À simetria do plano sintático contrapõe-se o jogo antitético dos
adjetivos, que realçam o conflito entre a duração do amor e a brevidade da vida.
O jogo contrastivo tem um recurso coadjuvante no cruzamento fonológico –
semelhante à figura do quiasmo em sintaxe – urdido pelas vogas tônicas i/o em
servira/fora e o/i em amor/vida.
As formas verbais aí presentes – ambas no pretérito mais-que-perfeito
– contribuem para o arranjo simétrico e exemplificam um padrão correlativo

1
Sete anos de pastor Jacob servia / Labão, pai de Raquel, serrana bela; / mas não servia ao pai,
servia a ela, / e a ela só por prémio pretendia. / Os dias, na esperança de um só dia, / passava,
contentando-se com vê-la; / porém o pai, usando de cautela, / em lugar de Raquel lhe dava
Lia. / Vendo o triste pastor que com enganos / lhe fora assi negada a sua pastora, / como se
a não tivera merecida, / começa de servir outros sete anos, / dizendo: “Mais servira, se não
fora / para tão longo amor tão curta a vida”. (CAMÕES, 1980, p. 168).

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em que se reconhece um traço da sintaxe antiga e clássica do português. Ca-


mões valeu-se dessa construção com frequência, quer nas composições líricas
(note-se ainda seu uso no último verso do primeiro terceto: tivera por tivesse),
quer no texto épico2; poetas árcades brasileiros serviram-se dela com alguma
regularidade (“Destes penhascos fez a natureza/ O berço, em que nasci; oh
quem cuidara, / Que entre penhas tão duras se criara/ Uma alma terna, um
peito sem dureza!”3), e no Eurico, de A. Herculano, ainda se lê “Que fora a
vida se nela não houvera lágrimas?” (1944, p. 28), outro exemplo recorrente
nas gramáticas pedagógicas.
Essa construção constitui uma variedade de enálage4, figura de linguagem
de amplo uso, mas que, no caso específico em apreço, ostenta, no uso atual, ares
de arcaísmo ou de afetação literária, conforme a observação do prof. Bechara
acima mencionada. Sua sobrevivência na linguagem corrente se acha restrita
a umas poucas expressões cristalizadas, ordinariamente exclamativas ou inter-
jetivas, como “Quem me dera!” e “Pudera!”. Com valor de tempo passado, o
pretérito mais-que-perfeito simples ainda resiste em registros formais escritos;
a língua falada só conhece a forma composta do tipo “tinha cantado”.
O presente artigo reunirá, comentando-as, considerações da autoria de
alguns filólogos/linguistas brasileiros e oferecerá subsídios para uma explicação
estrutural da utilização, por escritores antigos e clássicos, do pretérito mais-
-que-perfeito nos contextos referidos nesta introdução.

1. Tempo e modo em português

Diferentemente do aspecto e da voz, categorias também associadas ao


verbo, o modo e o tempo “põem o sujeito falante como ponto de referência do
que enuncia” (CÂMARA JR. , 1967, p. 15). Desde que essas categorias foram
formuladas na história dos estudos gramaticais, entende-se que cabe ao modo
traduzir o ponto de vista subjetivo do falante sobre a ‘realidade’ do que ele
enuncia, ao passo que ao tempo compete organizar a cronologia dos aconteci-
mentos relatados em função do momento em que o enunciador produz seu texto.

2
“E, se mais mundo houvera, lá chegara.” (CAMÕES, s/d.)
3
Soneto XCVIII de Claudio Manuel da Costa. (Proença Filho, 1996, p. 95).
4
Emprego de uma unidade linguística em função que seria própria de outra: um adjetivo na
função de um advérbio; o plural na função do singular; o presente na função do passado etc.

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Tradicionalmente, usam-se os termos ‘passado’, ‘presente’ e ‘futuro’ para


representar conceitos firmados a partir do eixo primário da enunciação, que
designamos com a expressão ‘aqui-agora’. De acordo com o senso comum,
o presente compreende um espaço-tempo coincidente com o ‘aqui-agora’; o
passado compreende um tempo anterior ao ‘aqui-agora’, e o futuro compreende
um tempo posterior ao ‘aqui-agora’.
A tradição gramatical – que difundiu a representação da categoria lin-
guística do tempo como um correlato da experiência cronológica tripartida em
passado, presente e futuro – se enraizou firmemente na sociedade graças à ação
escolar. Ao longo do século XX, vários linguistas rejeitaram essa correlação,
por entenderem que o ‘aqui-agora’ do ato de linguagem não é a única âncora
do posicionamento temporal dos fatos enunciados. De fato, a linguagem opera
com relações temporais bem mais variadas do que indica essa triangulação: a
contemporaneidade, a anterioridade e a posterioridade não estão restritas ao
eixo ‘aqui-agora’; são noções lógicas que também estão ancoradas no passado
e no futuro. Ou seja: um fato pode ser anterior, contemporâneo ou posterior
tanto a algo que já aconteceu, quanto a algo que ainda vai acontecer. Desse
modo, presente, passado e futuro são âncoras ou pontos de referência, e os
fatos relatados no texto se situam em momento anterior, contemporâneo ou
posterior a essas âncoras.
Não há em português – e provavelmente em nenhuma língua – um con-
junto de formas encarregadas de expressar com exclusividade e distinguir com
precisão essas nove possibilidades de relações temporais.
Uma explicação mais adequada para as escolhas que o falante faz entre
as expressões morfológicas do tempo deve tomar por base pelo menos duas
âncoras – o presente e o passado – ‘prendendo’ a cada uma delas três momen-
tos referidos como anterior, contemporâneo e posterior à respectiva âncora
(ou ‘ponto de referência’). É evidente que até mesmo o que aqui chamamos
‘passado’ representa um momento que é fixado linguisticamente a partir do
‘aqui-agora’ do ato físico de produzir sons vocais ou sinais gráficos. Esse ato
se dá ‘fisicamente’ em um momento que chamamos de ‘presente’. Nosso con-
ceito de âncora ou ponto de referência é, no entanto, outra coisa. Ele permite
explicar a expressão do tempo gramatical como um sistema de relações que se
estabelecem em dois conjuntos de formas: um organizado em torno do presente
e outro organizado em torno do passado.

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Quando o prof. Evanildo Bechara escreveu que se emprega o pretérito


imperfeito [do indicativo] “quando nos transportamos mentalmente a uma
época passada e descrevemos o que então era presente” (1999, p. 277), estava
assinalando, de fato, que a diferença entre o presente e o pretérito imperfeito do
indicativo repousa tão somente no ponto de referência escolhido. Ainda como
reforço a essa posição que vimos assumindo, lembremos que a simetria entre o
pretérito imperfeito e o presente do indicativo é ratificada pelo conjunto comum
de valores aspectuais associados a esses dois tempos: um e outro exprimem a
duração, a momentaneidade ou a habitualidade do processo. Por isso mesmo, é
o pretérito imperfeito – e não o perfeito – que ordinariamente assume o lugar do
presente do indicativo na passagem do discurso direto para o discurso indireto,
ou seja, quando um enunciador 1 assume como um passado em relação a si o
presente de um enunciador 2 ao qual se reporta.
Estabelecido isso, entendemos que as formas verbais podem traduzir a
posterioridade X não posterioridade e/ou conclusão X não conclusão do pro-
cesso relativamente aos polos do presente e do passado. Daí que se distinguem
dois conjuntos simétricos de três formas: um conjunto ancorado no ponto de
referência PRESENTE (p. ex. acordo /acordei/ acordarei) – e um conjunto
ancorado no ponto de referência PASSADO (p. ex. acordava / tinha acordado
[ou acordara] / acordaria). Não há novidade nisso; trata-se de uma sistemati-
zação já implícita nas designações tradicionais “pretérito-mais-que-perfeito”,
“futuro do presente” e “futuro do pretérito”.
Essa visão do sistema temporal equivale a considerar que a forma denomi-
nada “pretérito perfeito” não exprime necessariamente um passado; seu valor
constante é o de um processo ou estado de coisas concluído ou consumado
relativamente a algum ponto de referência. Quando o momento que serve
de âncora dessa conclusão é o próprio ato enunciativo, podem ocorrer duas
situações: uma delas é a que é expressa pelo enunciado ‘Achei!’ de alguém
que procura um objeto perdido e depara repentinamente com ele; a outra é
aquela em que o pretérito perfeito vem – ou pode vir – acompanhado de uma
expressão adverbial que posiciona explicitamente o fato no passado, como no
enunciado ‘Achei esse retrato há dois dias’. O primeiro exemplo expressa um
ato performativo, provido de alguma carga dramática, já que a enunciação é
parte do acontecimento em curso. O segundo exemplo expressa um depoimento
ou relato, cujo objeto não faz parte da cena em que ocorre a enunciação, já que
é trazido somente na memória do enunciador.

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2. O modo subjuntivo

No modo subjuntivo, as relações temporais apresentam peculiaridades a


que o modelo proposto para o indicativo não se adapta integralmente. A esse
respeito, é oportuno transcrever o trecho de Gérard Moigner citado por Celso
Cunha:

... os tempos do subjuntivo não representam noções de época da forma por que
o fazem os do indicativo. Pode-se, no entanto, falar de certos hábitos de concor-
dância dos tempos que não procedem de um automatismo rígido e puramente
formal, antes resultam do funcionamento de mecanismos delicados e complexos
(Cunha e Cintra, 1985, p. 461).

Segundo a tradição descritiva, o modo subjuntivo tem o papel de represen-


tar o processo verbal como algo hipotético, incerto ou possível, distinguindo-
-se, portanto, do modo indicativo, responsável por indicar o caráter fatual do
processo. Comparem-se “Ela pede que eu venha” e “Ela sabe que eu virei”. No
primeiro exemplo, o ato de vir é o resultado direto do ato de pedir, e encerra
uma possibilidade, ao contrário do que se passa no segundo exemplo, em que o
ato de vir existe por si e constitui um fato. Nas orações substantivas, o emprego
do subjuntivo atende a uma exigência sintático-semântica do verbo da oração
principal; já nas orações adjetivas atua um dado extraoracional: a pressuposi-
ção. Quando dizemos “Corte as árvores que estão cobertas de erva daninha”,
indicamos que essas árvores existem de fato. Já não temos, porém, essa certeza
quando dizemos “Corte as árvores que estejam cobertas de erva daninha”.
Quanto aos tempos no subjuntivo, deve-se observar, de início, que o con-
teúdo “futuro”, ou “posterior”, não dispõe de uma forma que o concretize por
oposição ao presente, como se observa no indicativo. A escolha da forma vier no
lugar de venha, por exemplo, não atende à intenção de situar o processo em um
momento posterior àquele em que se fala, mas se prende ao tipo de conjunção
que introduz a oração subordinada adverbial. Diremos “Se você vier [fut./subj.]
amanhã, passa lá em casa”, mas “Caso você venha [pres./subj..] amanhã, passa
lá em casa”. Do mesmo modo, ao afirmar “Quem souber [fut./subj.] o nome do
Rei Sol ganha um doce”, o autor da brincadeira tanto pode estar propondo uma
questão a ser respondida dali a minutos, horas ou dias (futuro), como testando
a cultura geral das pessoas que tem diante de si (presente).
Se a forma verbal empregada para situar o processo no presente ou no

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futuro é precedida de expressão do tipo quem quer que / onde quer que, a osci-
lação entre presente e futuro do subjuntivo também é comum: “Quem quer que
seja (ou for) eleito vai governar um país dividido”. Tal oscilação é comprovada
nos seguintes exemplos tomados a Os Lusíadas:

E vós, Deuses do mar, que não sofreis


Injúria alguma em vosso reino grande,
Que com castigo igual vos não vingueis
De quem quer que por ele corra e ande,
Que descuido foi este em que viveis?
(Camões, s.d., p. 28)

Enquanto apascentar o largo Polo


As estrelas, e o Sol der lume ao mundo
Onde quer que eu viver, com fama e glória,
Viverão teus louvores em memória.
(Camões, s.d., p. 105)

Não há no subjuntivo formas específicas para a expressão da posterioridade


do processo; emprega-se indiferentemente o pretérito imperfeito do subjuntivo
para a simultaneidade e a posterioridade do processo. É o que se observa em
“Eu acreditava que ele me apoiasse” e “Eu esperava que ele me apoiasse”. No
primeiro exemplo, acreditava e apoiasse denotam processos – uma crença e uma
atitude – que decorrem no mesmo segmento de tempo; no segundo, apoiasse
situa o processo em uma época logicamente posterior à do processo contido
em esperava. No indicativo, teríamos que escolher entre apoiava e apoiaria
(Eu tinha certeza que ele me apoiava X Eu tinha certeza que ele me apoiaria).
A oposição temporal no subjuntivo resume-se, portanto, à distinção entre pas-
sado e não passado. A distinção conclusão X não conclusão do processo fica
a cargo das perífrases verbais com ter + particípio.

3. Imperfeito do subjuntivo; pretérito mais-que-perfeito do indica-


tivo e futuro do pretérito: suas relações no português

O futuro do pretérito, enquanto expressão de um tempo, denota um proces-


so posterior à âncora ‘passado’, nos termos que expusemos nas seções anteriores.

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A exemplo do futuro do presente, ele assume em alguns contextos um


papel essencialmente modal, a que Said Ali chamou “futuro problemático”,
nele identificando “um processo engenhoso de dizer, de afirmar e de fazer crer
uma cousa verdadeira ou não verdadeira, que não acarreta responsabilidade
para o indivíduo que assim se exprime” (1964, p. 319-20).

Era este corregedor muito honrrado e de sua casa e estado e muito praceiro e de
boa conversaçom, e seeria estonce em mea hidade. (LOPES, s.d., p. 119).

É sintomático esse emprego, tanto mais quanto se percebe que o seeria


pode dar lugar a fosse, desde que o contexto sintático favoreça o subjuntivo
(algo como “e he possivel que...”). A afinidade entre o futuro do pretérito e o
imperfeito do subjuntivo já foi aqui demonstrada quando comentamos os em-
pregos de apoiasse e apoiaria. Comparem-se ainda “Ela sabia que eu viria” e
“Ela esperava que eu viesse”. Qualquer das duas formas traduz a posterioridade
do processo à âncora ‘passado’. Na língua arcaica, a variação se dá sem res-
trição contextual de forma mais ampla. Said Ali aduz na Gramática Histórica
um extenso rol de exemplos dessa dupla ocorrência em orações que servem de
complemento ao verbo cuidar (= imaginar)
“Este emprego é sobretudo notável quanto ao imperfeito do conjuntivo
(subjuntivo), o qual aparece nas narrações alternando com o futuro do pretérito
e como seu equivalente: Estavã todos tam contentes e confiados de se acharem
juntos que cada hũs cuydavã que a outra parte seria mais fraca (Francisco de
Morais, Palm. 1, 237) – Cuydando que per aquella via mais prestes se vencessem
(ib. 1, 250) – Sempre eu cuidei, oh padre poderoso, que pera as cousas que eu
do peito amasse te achasse brando, affabil e amoroso. (Camões, s.d., p. 328).
Também Claudio Brandão (1963, p. 527) refere-se à possibilidade dessa
alternância, citando o mesmo exemplo d’Os Lusíadas apontado por Said Ali,
no qual ‘achasse’ pode dar lugar a ‘acharia’:

Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso,


Que, para as cousas que eu do peito amasse,
Te achasse brando, afábil e amoroso,
Posto que a algum contrário lhe pesasse.
(CAMÕES, s.d., p. 39)

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Finalmente, cabe considerar que elas instauram correlações que põem


em jogo formas da mesma categoria temporal. Isto é: do mesmo modo que
dizemos “Se eu o visse, falaria com ele”, temos “Se eu o vir, falarei com ele”,
com dois futuros, ou “Se eu o vejo, falo com ele”, com dois presentes. Na
crônica de D. Pedro, acima citada, temos “... porque a huus prazeria que o
rrecebessem” (LOPES, s.d., p. 250). Se trocássemos o prazeria por praz – pre-
sente – rrecebessem cederia lugar a rrecebam – também presente. Do mesmo
modo, a ocorrência do futuro prazerá implica a correlação com recebam, o que
é explicável sabendo-se que a escolha do futuro do subjuntivo ou do presente
do subjuntivo está sujeita a fatores distribucionais (cf. a escolha entre SE e
CASO já mencionada), e que, como comentamos na mesma passagem, não há
distinção temporal entre essas formas.
Nas variedades arcaica (séculos XIV-XV) e clássica (séculos XVI – XVIII)
do português, quer na prosa quer na poesia, era comum o pretérito mais-que-
-perfeito desviar-se de seu valor aspectual e temporal – processo concluído
em relação à âncora ‘passado’ – em substituição ao par pretérito imperfeito do
subjuntivo/futuro do pretérito, como se viu em exemplos citados na introdução
deste artigo. Não se trata, naturalmente, de um subsistema triádico, mas, ao
que parece, de dois subsistemas alternativos estilisticamente diferenciados. A
indiferença das formas em –ra a certos contextos sintáticos que requerem ora a
forma em –ria ora a forma em –sse opera e evidencia, como opção estilística, a
neutralização dessas formas, fato que me parece explicável à luz das afinidades
que vimos apontando. Insistimos nesse ponto: a prevalência do caráter modal
sobre o temporal em certos contextos favorece a substituição das referidas
formas por uma terceira. Para Mattoso Câmara, o pretérito mais-que-perfeito
em –ra é uma das formas do passado do indicativo que “funciona nas línguas
românicas para a expressão do irreal”.
Em relação ao futuro, o caráter modal ainda é mais nítido e se pode dizer
pacificamente compreendido e aceito, embora não se tenham tirado daí todas as
inferências que o fato comporta. Pode-se mesmo adiantar que a intromissão da
dúvida, da mera potencialidade, da expectativa, do anelo, da volição com a ideia
de futuro é constante na linguagem espontânea. Sem subintenções subjuntivas,
potenciais, optativas, imperativas, o tempo futuro, para a asserção franca, se
realiza essencialmente pela forma de presente.
Ainda é Mattoso Câmara quem acrescenta: “Na correlação condicional,
o uso da forma em –ra na apódose estende-se, em regra, à prótase, em vez do
pretérito imperfeito do subjuntivo”.

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É essa construção antiga, ampliada no latim tardio para a apódose da


irrealidade intemporal, que explica historicamente o uso românico da forma
em –ra como pretérito irreal (CÂMARA JR., 1967, p. 79).
Observe-se, a propósito, o seguinte exemplo do latim citado por Ernout
e Thomas (1964, p. 380): “quingentos simul, // ni hebes machaera foret, uno
ictu occideras” (Se tua espada não estivesse (foret) cega (hebes), abaterias
(occideras) quinhentos inimigos num só golpe).

Conclusão

O foco de nossa tradição descritiva na morfologia assegura ao pretérito


imperfeito do subjuntivo (PIS) e ao futuro do pretérito (FtP) o status de tempos
distintos. Ao observá-los no plano sintático e, sobretudo, no papel que têm re-
lativamente à expressão do tempo e à atitude do falante, levantam-se algumas
dúvidas sobre o grau da diferença que os separa. O mesmo se pode dizer da
distinção entre o presente do subjuntivo e o futuro do subjuntivo. As formas
reunidas em cada um desses pares ocupam, nas construções hipotéticas, posições
complementares, e quando eventualmente são permutáveis entre si, revelam-se
variantes estilísticas. Os conteúdos temporais e modais de uma e outra acabam
por ser exatamente os mesmos, fato que favoreceu a substituição de ambos pelo
pretérito mais-que-perfeito (forma em -ra), menos sensível que é à restrição de
contexto sintático. O presente artigo reúne, comentando-as, considerações da
autoria de alguns filólogos/linguistas brasileiros e oferece subsídios para uma
explicação estrutural do recurso ao pretérito mais-que-perfeito como captação
da equivalência modo-temporal entre PIS e FtP.
Diacronicamente falando, esse paralelismo pode ser interpretado como
uma sobrevivência do padrão sintático do latim – tanto clássico como vulgar
– cujas formas verbais presentes na prótase e na apódose tendiam a igualar-se
em tempo e modo. Em termos sincrônicos, explica-se como uma solução que
assegura, como opção estilística, o emprego de uma mesma forma – servira /
fora – para a expressão de um mesmo conteúdo – princípio responsável pela
simetria que permitiu a Camões realçar a antítese entre o excesso – mais (ser-
vira) – e a carência – não (fora)– com que Jacó reafirma e enaltece sua paixão.

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Referências

ALI, Manuel Said. Gramática histórica da língua portuguesa. São Paulo:


Melhoramentos, 1964. p. 319-20.
BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37 ed. revista e am-
pliada. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999. p. 279.
BRANDÃO, Cláudio. Sintaxe clássica portuguesa. Belo Horizonte: Imprensa
da UFMG, 1963. p. 527.
CÂMARA JR., J. Mattoso. A forma verbal portuguesa em –ria. Washington:
George University Press, 1967. p. 15.
CAMÕES, Luís de. Lírica completa, v. II. (Prefácio e notas de Maria de Lurdes
Saraiva). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1980. p. 168.
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Canto VII, estrofe 14. Porto: Porto Editora, s/d.
CUNHA, Celso e CINTRA, Luis F. Lindley. Nova gramática do português
contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 461.
ERNOUT, Alfred THOMAS, François. Syntaxe latine. Paris: Klincksiek, 1964.
p. 380.
HERCULANO, Alexandre. Eurico, o presbítero. Lisboa: Livraria Bertrand,
1944. p. 28.
LOPES, Fernão. Crônica de D. Pedro. Edizione critica con introduzione e
glossario a cura di Giuliano Mácchi. Roma: Edizioni dell’Ateneo, s.d.
PROENÇA FILHO, Domicio (org.). A poesia dos Inconfidentes. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1996. p. 95.

Nota do editor: articulista convidado.

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