Psicanálise e Feminilidade
Psicanálise e Feminilidade
Psicanálise e Feminilidade
CAMPUS SOBRAL
CURSO DE PSICOLOGIA
SOBRAL-CE
2017
2
Sobral-ce
2017
.
3
RESUMO
Freud desde o começo de sua teoria se deparou com o enigma que rondava a sexualidade
feminina, algo expresso através da célebre frase: "A mulher é o continente negro da
psicanálise". A feminilidade segue fazendo questão para a teoria psicanalítica, o objetivo
deste trabalho é investigar a compreensão dessa temática através das obras de duas
psicanalistas lacanianas expoentes nesse campo de pesquisa, por meio de uma pesquisa
qualitativa de viés reflexivo acerca de dois livros. O livro Feminilidade e Experiência
Psicanalítica (2017) de Ana Laura Pacheco faz um percurso de Freud à Lacan para
compreender a construção teórica do que a psicanálise entende como mulher, expõe as
mudanças conceituais e a estruturais que o feminino sofreu ao longo do tempo. Já a obra de
Elisabeth da Rocha Miranda que tem como título Desarrazoadas: devastação e êxtase (2017)
se detêm no último tempo do ensino de Lacan para formular uma clínica do não-todo, fazendo
uso de manifestações do gozo Feminino nos ajuda a compreender melhor e desfazer os
enganos comuns sobre o tema da feminilidade. Os textos são de relevância considerável à
causa analítica e possibilitam um percurso rigoroso e fiel à obra freudo-lacaniana sobre a
mulher.
ABSTRACT
Since the beginning of his theory, Freud faced the puzzle that rounded the feminine sexuality
some express though renowned phrase: “The woman is the dark continent of psychoanalysis”.
The femininity keep doing case to psychoanalytic theory. The objective of this job is
investigate the comprehension of this thematic by two lacanian’s psychoanalytic work
representative in this research field. The book Femininity and Psychoanalytic Experience
(2017) of Ana Laura Pacheco do a Freud à Lacan’s way to comprehend the theoretical
construction of what psychoanalysis understand about woman, expose the conceptual and
structural changes that the feminine suffered over time. The Elisabeth da Rocha Miranda’s
work has the title: Unreasonable: devastation and bliss (2017) detain the work in the last time
of Lacan’s teaching to formulate one clinic of non-all, helps us to better understand and undo
the common misunderstandings on the subject of femininity. The texts are of considerable
relevance to the analytical cause and enable a rigorous and faithful course to the Freudo-
Lacanian work about the women.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................8
2 FEMINILIDADE E EXPERIÊNCIA PSICANALÍTICA.............................11
2.1 Um retorno a Freud..........................................................................................12
2.2 Os pós-freudianos e a feminilidade.................................................................13
2.3 A interpretação Lacaniana da feminilidade.................................................15
3 AS DESARRAZOADAS DE ELIZABETH DA ROCHA MIRANDA.......17
3.1 A devastação de Paula.......................................................................................18
3.2 O êxtase de Katherine Mansfield.....................................................................19
3.3 O gozo místico de Santa Tereza D’avila..........................................................22
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................24
REFERÊNCIAS........................................................................................................27
8
1 INTRODUÇÃO
Tal percurso teórico, bem como minha vivência no estágio clínico me aproximou
mais dos enigmas do feminino, me instigando o suficiente para tomá-lo como objeto desse
trabalho. Nessa empreitada, fazemos uso de duas escritoras psicanalistas para iluminar meu
caminho, mais especificamente de duas obras: Feminilidade e experiência psicanalítica de
Ana Laura Prates Pacheco e Desarrazoadas: devastação e êxtase de Elisabeth da Rocha
Miranda. A escolha por esses livros se deu por serem de psicanalistas lacanianas e esse ser o
meu viés, por me identificar com o olhar que elas direcionam às proposições acerca do tema e
pelas contribuições que trazem à construção teórico-clínica da psicanálise no Brasil
debates clínicos sobre a temática e que possuem cada uma seu olhar, colaboram com a
compreensão do conceito de feminilidade para a psicanálise. Portanto, almeja-se chegar a tais
apontamentos através de uma pesquisa qualitativa de cunho bibliográfico, a partir do
referencial psicanalítico.
Logo depois, nos voltaremos para o livro de Elizabeth da Rocha Miranda lançado
em 2017, fruto de sua tese que se detêm na clínica do Gozo Outro. Fazendo uso tanto de
autores como Freud e Lacan aborda o conceito de Gozo Feminino e tece uma rede
interessantíssima com seus casos clínicos e casos literários para abordar a devastação e o
êxtase, bem como os relatos de místicos e sua relação com a loucura feminina. Por fim, trata-
se de refletir sobre como os dois livros contribuem para a compreensão do conceito de
feminino pra Psicanálise e em que medida seus elementos podem confluir. Em linhas gerais o
que as duas obras em conjunto colaboram para a exploração do dark continente, que foi como
Freud nomeou o “território” chamado mulher.
Ana Laura Prates Pacheco nasceu em São Paulo cidade onde exerce a Psicanálise
há mais de 25 anos. É psicanalista, Analista Membro da Escola (AME) de Psicanálise dos
Fóruns do Campo Lacaniano - FCL-SP. O já citado livro “Feminilidade e Experiência
Psicanalítica” é fruto de sua dissertação de mestrado, que tinha como título “Ⱥ Mulher não
existe? Um estudo sobre feminilidade e suas implicações na clínica psicanalítica” e que foi
defendida em 1996, sob a orientação da professora Jussara Falek Breuer. Ana Laura faz da
proposição uma pergunta e nos conta na carta da autora, parte do livro antes da introdução,
que o processo de construção dessa pesquisa não foi fácil devido a dificuldade de se estudar
Lacan nos anos 80 e 90, era preciso construir pontes e ir por caminhos tortuosos, pois muitos
dos seminários de Lacan usados no livro foram lidos em versões piratas e não publicadas
10
O livro foi lançado em 2001 e dezesseis anos depois teve uma nova edição
revisada e aumentada. Mas, por que relança-lo? Vivemos outro contexto onde temos acesso
fácil a inúmeros conteúdos e de outra realidade também no que diz respeito ao debate sobre
sexualidade e gênero, a Psicanálise é convocada a ampliar “o diálogo com movimentos
sociais feministas, LGBT, bem como com as teorias de gênero e com a teoria queer. Em
suma, o livro aborda umas das questões mais investigadas pela Psicanálise “O que é ser
mulher?”, e em meio a transexualidades e intersexualidades, a atualidade e atualização das
contribuições que ele fornece justifica a sua republicação.
inclusive na pesquisadora (ibid) como ela conta na introdução do livro. A primeira teoria
infantil, como já exposta aqui, é que todos os sujeitos possuem o pênis. Segundo Freud (1908,
tradução nossa) a menina ao deparar-se com a diferença sexual se sente desprovida de algo,
passa a invejar o pênis e a desejar ser um menino. A autora não se furta da polêmica e defende
que Freud tentou manter uma “solução de compromisso” no que diz respeito à premissa fálica
e à noção de bissexualidade, por não conseguir abandonar em definitivo os pressupostos da
biologia, “a noção de inveja do pênis como ponto central da sexualidade feminina é, portanto,
uma consequência desse impasse teórico” (PACHECO, 2017, p. 78).
Em 1920, Freud postula que a satisfação primeira do sujeito em relação a mãe é
passiva em ambos os sexos, antes era tomado como feminina. Logo depois, há o investimento
libidinoso ativos em direção a mãe como objeto. A complexidade da construção da
feminilidade consta na dificuldade em lidar, simultaneamente com o falicismo necessário para
afastá-la dessa passividade inicial citada e retomar em seguida uma passividade
especificamente feminina que a libere do “Complexo de masculinidade”, isto é, da denegação
da castração. Para tal passagem paradoxal, Freud fornece três saídas: “a) a que leva à cessação
da vida sexual; b) a da teimosa acentuação da masculinidade; c) os primeiros passos para a
feminilidade definitiva” (1931, p. 209).
A feminilidade nos termos freudianos é quando:
Ocorre o abandono da masturbação clitoridiana e, junto com ela a renúncia à
atividade alinhada à posição masculina. A passividade faz-se dominante e ocorre a
virada em direção ao pai, movida no início pelo desejo de obter dele um pênis,
desejo que depois é deslocado para ter um filho (PACHECO, 2017, p. 75).
Dessa forma menina alcança a feminilidade quando deseja ser mãe, o engodo
dessa passagem e dessa construção pautada na anatomia, se dá também em ter como
sinônimos as noções de mãe e mulher.
Em Análise terminável e interminável (1937, tradução nossa) Freud afirma que
toda dificuldade em análise culmina em fazer o homem suportar a angústia da castração e a
mulher abandonar seu desejo de ter pênis, ele chama tal dificuldade de rocha da castração.
Rocha esta que seria o ponto onde o psiquismo esbarra no biológico pois defende que o
repúdio à feminilidade seria um fato advindo deste último. Ana Laura concorda com C. Soller
(1993) e expõe que a diferença entre o fim de análise dos homens e das mulheres se baseia,
em Freud, na diferença anatômica. Ana Laura conclui que:
Freud não conseguiu se desprender dos enigmas da feminilidade (...). O sexo
feminino, que não deixa morrer a pergunta de por que precisamos do falo para
construir uma diferença que já está dada, a priori, na natureza, fica na teoria
freudiana como um resto inassimilável. E, nesse ponto, ele coloca uma rocha –
termo significativo – que estabelece um limite à análise freudiana. (2017, p. 81).
13
Outro ponto relevante da obra de Ana Laura é sua opção por retornar a
determinados autores a fim de refletir sobre as polêmicas envolvendo as conceituações de
Freud sobre a feminilidade, sendo assim dedica todo um capítulo onde traz um breve relato
sobre os encontros e desencontros desses psicanalistas com as teorias freudianas. De início
traz Abraham que em 1922 escreve um artigo onde com base clínica defende que as mulheres
possuem o desejo de ser homem, não por conta das construções culturais que valorizam o
masculino, mas devido à visão do órgão sexual do homem, assim a menina precisaria
“reconciliar o seu ‘defeito’ físico com o desenvolvimento sexual propriamente feminino”.
Karen Horney uma das primeiras psicanalistas a se deter sobre a questão da
sexualidade feminina torna-se uma das maiores opositoras de Freud quanto a esse assunto, em
linhas gerais defende que a inveja do pênis não é a causa da insatisfação da mulher com seu
sexo e que este campo teórico que tratava sobre as mulheres estava sendo abordado
predominantemente por homens, denuncia o caráter patriarcal da sociedade moderna onde
viviam Freud e seus colaboradores e de como o contexto social de uma cultura misógina havia
menosprezado as proposições analíticas sobre as mulheres (ibid). Dessa forma se vale da
biologia para ir contra a noção de inveja do pênis, diz que:
Seria necessária a apresentação de provas irrefutáveis para ser aceita a ideia de que a
mulher, constituída fisiologicamente para desempenhar funções tipicamente
femininas, fosse caracterizada psiquicamente pelo desejo de ter atributos de outro
sexo. (HORNEY, 1959, p. 88).
14
Horney discorda com a tese de que a origem de todos os sintomas neuróticos das
mulheres é a inveja do pênis, vale ressaltar que ela admite a ocorrência na clinica, mas atribui
isso a valorização cultural que permeia ser homem.
Hélène Deutsch, de acordo com Ana Laura adiantou algumas proposições de
Freud presentes em Sobre a sexualidade feminina (1931) e A feminilidade (1933), mas vamos
nos deter nos seus distanciamento das ideias freudianas, o masoquismo e o lugar ocupado
pelo pênis na sexualidade feminina. Para Hélène (1947) haveria uma equivalência entre seio e
pênis na fase oral, “assim o seio promoveria, de certa forma, a erotização da boca e, do
mesmo modo, o pênis fixaria a libido da mulher na vagina. Portanto, até a primeira relação
sexual, a vagina não teria nenhum papel erógeno” (PACHECO, 2017, p. 91). Em relação ao
masoquismo afirma que a mulher seria biologicamente mais passiva e receptiva do que o
homem, e embasa tal afirmação na espera passiva pela fecundação. Em linhas gerais, há um
forte caráter biológico nas ideias de Deustch (1947) inclusive compara essa passividade
natural da mulher às fêmeas de outras espécies.
A pesquisadora (2017) ainda traz as concepções de feminilidade de Ernest Jones e
seu conceito de aphanis, Melanie Klein e o desejo de possuir o pênis dando lugar ao de
incorporar o pênis paterno como objeto de gratificação oral, Sandor Ferenczi e sua bionálise
com a teoria da “submissão passiva à genitalidade”. Porém, para finalizarmos essa exposição
optou-se por trazer as articulações do artigo de Joan Riviere, de 1929 e seu original e
importante conceito de mascarada.
Em resumo, Joan Riviere (1929, p. 303 apud PACHECO, 2017, p. 105). por meio
de um caso clínico formula a tese que “aquelas mulheres que desejam a masculinidade podem
revestir-se da máscara de feminilidade para afastar a angústia e a vingança dos homens” O
próprio nome de “máscara” remete a sua função de disfarce, consistiria na fantasia feminina
de ter o falo, o pênis do pai. Diante da pergunta de como distinguir a mascarada da
feminilidade Riviere (ibid) afirma que elas são a mesma coisa, e é aí que reside a sua hipótese
mais transformadora, Ana Laura (2017, p. 105) diz que para ele “a diferença residiria na
forma como a feminilidade é utilizada, isto é, como uma defesa contra a angústia, e não como
um modo primário de gozo (...) essas ideias serão retomadas por Lacan” em relação à mulher,
como abordaremos a seguir.
Trazer a tona as polêmicas envolvendo as postulações de Freud sobre a
feminilidade dentro do movimento psicanalítico é de extrema relevância para a compreensão
do caminho histórico e teórico que esse conceito percorreu, e ainda percorre visto que a
Psicanálise é uma teoria em constante construção. Ana Laura ao trabalhar esses autores
15
às psicanalistas mulheres sobre o motivo da especificidade do gozo feminino nunca ter tido
uma elaboração suficiente. No Seminário 17 (1969) já desenvolve teorizações que Ana Laura
resume na seguinte frase “há sempre algo na mulher que escapa ao discurso” (ibid, p. 173).
Para dar conta dessa questão faz uso do “quadrado das proposições” de Aristóteles
e de seu princípio de não-contradição para elaborar as fórmulas da sexuação. A subversão
mais radical em relação á lógica aristotélica refere-se ao lado da mulher e é no que vamos nos
deter. Lacan formula duas proposições: “A mulher é não-toda inscrita na função fálica”
(VxΦx) e “Não existe uma mulher que não esteja submetida à ordem fálica” (ƎxΦx).
Lacan introduz a transformadora noção de não-todo:
Em parte nenhuma até agora, na lógica se colocou, promoveu ou se salientou a
função de “Não-Toda” [...] inversamente, é enquanto há o vazio, a falta, a ausência
de seja o que for negando a função fálica a nível da mulher, que nada mais há senão
essa coisa formulada pelo “Não-Todo” na posição da mulher a respeito da função
fálica (1972, apud PACHECO, 2017, P. 177).
Afirmação polêmica que aponta para a alteridade desse gozo Outro, dito Gozo feminino e que
será o foco do livro da Elisabeth da Rocha Miranda, que será o alvo da próxima parte desse
trabalho.
É muito difícil compilar os pontos principais para a compreensão da feminilidade
do livro de Ana Laura, principalmente nessa parte que abarca Lacan pela extensão e
importância dos postulados que se referem à temática. Um dos pontos mais interessantes é
que antes de abordar as fórmulas de sexuação, ela enfatiza o uso dos termos “homem” e
“mulher” como semblante, problematiza o porquê de Lacan ter optado por essas palavras e
indica a importância de entendermos a significação teórica pra Psicanálise dessa utilização,
considera que a retomada desses termos não seja casual. Pelo contrário, “aponta uma coragem
em não se furtar a uma problemática clínica, que acompanha a Psicanálise: como saber, afinal,
quando estamos a escutar um homem ou uma mulher?” (PACHECO, 2017, p. 172).
17
A autora com sua escrita clara e rigorosa consegue trazer o percurso de Lacan na
sua concepção de feminilidade bem como relacionar isso aos postulados freudianos, as
concepções de outros psicanalistas e outros autores como Canguilhem, e de forma
contundente consegue colocar-se com pontuações e opiniões que agregam e inquietam,
fazendo desse caminho trilhado algo fascinante.
Dessa forma traz elementos tanto de sua clínica, como da literatura além de toda a
conceituação psicanalítica para abordar a questão da não-toda, se detendo no último tempo do
ensino de Lacan onde conceituou justamente o Outro gozo. Diante das inúmeras contribuições
que a obra traz, optou-se por abordar três pontos: a clínica, a literatura e o gozo místico.
sem encontrar palavras para transmitir essa estranheza que lhes ocorre e pode causar tanto
uma grande angústia como uma sensação de extrema felicidade. Ela destinou um capítulo
justamente para abordar alguns casos, mas ao longo de todo o livro consegue transmitir essa
dimensão clínica e ilustrar com sua experiência psicanalítica os elementos teóricos que
aborda, evidenciando que a Psicanálise “não existiria sem a clínica, razão pela qual a ética que
a rege é a práxis de sua teoria” (ibid, p. 41).
O caso intitulado “Paula e a morte” é um desses casos e em linhas gerais aborda
uma devastação onde o mais-de-gozar do sujeito é justamente a morte, revelada na figura da
mãe fálica. Paula inicia a análise com a descoberta de uma doença grave, um tumor na coluna
que a angustia pois a coloca face a face com a morte e por isso teme “perder-se em si mesma”
e goza nesse lugar. Após algumas entrevistas o sujeito aparece, e um relacionamento fora do
casamento com uma médica, 15 anos mais velha. Sente-se desamparada e passa por uma
experiência que seu corpo é tomado por uma sensação de vazio, que não sabe mais onde está,
nem quem é.
Sua angústia localiza-se além do que a sexualidade organiza, visto que,
O homem goza com o objeto de sua fantasia, ao passo que a mulher , por não estar
toda na norma fálica , por não estar de todo causada pelo objeto de sua fantasia,
experimenta um gozo Outro, um gozo suplementar feminino, não causado pelo
objeto a. Ela pode experimentá-lo no encontro com um homem, com outra mulher,
com a morte ou com Deus no gozo místico, ou ainda oferecer-se como objeto do
gozo do Outro, como na devastação (ibid, p. 49).
Esse gozo mortífero diz da relação com uma tia/madrinha que Paula repete agora
com a namorada. Desde que nasceu sua tia a invadia com uma maternagem excessiva onde
Paula desejava separar-se dela, mas ao mesmo tempo essa ideia lhe causava muita angústia.
Um dos pontos mais interessantes é quando nos é dito que quase todas as namoradas de Paula,
possuem o mesmo nome. A autora aponta que esse nome assemelha-se a morte e traz o ato-
falho cometido onde Paula fala que “A marte faz parte de mim”. Devido a namorada também
sofrer de uma grave doença as duas se cuidam mutuamente e intercalam as internações,
“pode-se dizer, portanto, que a relação entre elas se sustenta na coluna doença e morte. Ela
goza do lugar de objeto de gozo para Outro, de sua posição devastada. Em que o Outro é
literalmente a morte”(ibid, p. 53).
É muito explicita a relação direta que a analista faz entre a namorada e a morte,
Paula namora a figura da morte em sua companheira e em si, experiencia um gozo nessa
relação próprio da devastação, do qual ela só consegue semi-dizer. Esse caso fornece de
forma evidente a ligação entre o gozo não-todo e o além do princípio de prazer, já que com a
19
amante Paula provava um gozo que não entendia e que a angustiava por medo de perder-se
nesse abismo:
A experiência do Outro Gozo vivida com a amante causa os efeitos de
dessubjetivação e de ausência de si mesma, só que Paula, valendo-se dos
significantes “marte”, “morte” e “morta”, consegue promover uma separação e em
suas palavras, recuperar a “alma e o corpo” até então aprisionados no encontro com
a namorada, já que a mãe não lhe deu substância como mulher, para que virasse uma
mascarada feminina, e o pai claudicou como cafajeste em sua função de barrar o
gozo mortífero da relação vivida com a sua madrinha (ibid, p. 54).
Bertha não sabe o que fazer com isso que a ultrapassa, mas segundo Elisabeth,
Katherine, a autora do conto, sabe muito bem, ela escreve. (MIRANDA, 2017, p. 142). Nesse
sentido traz a dimensão do próprio ato da criação da personagem como uma maneira de fazer
algo com esse gozo, Katherine nos permite em seu ato sublimatório de escrita pensar numa
certa construção de suplência face ao gozo Feminino. Com isso afirma que
Pode-se dizer que, através de Bertha, Katherine Mansfield fala da mulher excluída
da natureza das coisas, da natureza das palavras, da mulher que não existe, no dizer
de Lacan, por estar situada fora do falo, fora da cadeia significante: é o lado não-
todo fálico da posição feminina, situado num lugar onde a mulher é outra para si
mesma, em que a alteridade se presentifica. Nesse lugar recalcado pela psicanálise, o
poeta e o místico se abismam. (ibid, p. 142).
Bertha nos transmite novamente sua experiência de êxtase ao temer que aquilo
começasse de novo, pois “era quase insuportável, ela mal tinha coragem de respirar, por medo
de atiçar aquele fogo” (MANSFIELD, p. 12), fogo esse que se localizava em seu próprio
corpo e que “Bertha não sabia como expressar essa sensação, nem o que fazer com ela” (ibid,
p. 14). Exprimindo o caráter de inefável do que a cometia, mas diferente da sensação de que
Paula relatava que também apontava justamente o limite da linguagem, o gozo de Bertha era
sentido como uma felicidade extrema, mas que também a angustiava por não conseguir
controlar, isto é, por ser algo que também a invadia.
A personagem revela-se assim também uma das desarrazoadas de Elizabeth,
contudo vem não só com o objetivo de abordar o êxtase mas também o uso da arte para
abarcar o gozo Outro, como esse saber-fazer com aquilo que escapa a toda simbolização.
Assim como a escrita de Clarice Lispector, Katherine em suas linhas também tenta escrever o
indizível, “em suma, escreve a invasão de um gozo que a torna louca. Sua escrita traz, nas
entrelinhas, o inumano, o selvagem que existe em cada mulher, vivido nesse conto como
êxtase (...), encontro com o divino” (MIRANDA, 2017, p. 145).
Esse apelo ao divino é expresso na seguinte parte:
Mal ousava se olhar no espelho gelado mas olhou sim, e o espelho devolveu uma
mulher radiante, com lábios que sorriam, que tremiam, e olhos grandes, escuros, e
um ar de escuta, de expectativa de que alguma coisa... divina acontecesse... que ela
sabia que tinha de acontecer... infalivelmente. (MANSFIELD, 1920, p.4)
Elisabeth relaciona tal trecho como se esse êxtase vivido por Berta se dirige não
ao outro semelhante, mas ao Outro Deus quando ela diz estar à espera que algo divino
aconteça. Esse Deus sendo aqui uma referência ao registro do Real, “uma vez que algo do real
escapa a barra do Outro e promove a busca pelo impossível, o inumano, o divino”
(MIRANDA, p. 143). É justamente nesse algo do Real que pode ser entendido como a falta
onde o gozo feminino se localiza, um grande vazio que só podemos bordejar.
21
Há uma ruptura com o simbólico no gozo feminino, porque esse gozo pode jogar
o sujeito no campo dos desvarios, da loucura, da devastação, das desmedidas, da euforia, do
desarrazoamento, que Katherine descreve. Para barrar esse gozo é preciso apelar para algo
que a faça retornar ao mundo dos humanos, e é justamente essa função que a literatura de
Katherine tem para ela, ao incorporar tal experiência e em certo sentido simbolizá-la por meio
da escrita, ciente de que algo sempre vai escapar.
Por fim, é relatado a experiência de Bertha em um encontro sem palavras com
Miss Fulton:
E as duas mulheres se deixaram ficar ali, lado a lado, olhando para a esguia árvore
em flor. Embora imóvel, a árvore parecia estender-se para cima, subir, tremer no ar
brilhante como a chama de uma vela, e crescer, crescer mais alto diante delas -
quase tocar a borda da lua cheia prateada.
Por quanto tempo elas ficaram ali? Era como se as duas estivessem presas naquele
círculo de luz extraterrena, entendendo-se uma à outra perfeitamente, criaturas de
um outro mundo, perguntando-se o que fazer neste mundo com todo aquele tesouro
sublime que queimava dentro do peito e se derramava em flores prateadas pelos seus
cabelos e mãos?
Para sempre - ou por um segundo? E Miss Fulton murmurara mesmo “Sim,
exatamente isso” ou Bertha havia sonhado? (p. 13)
Esse trecho citado acima traz uma espécie de encantamento, um estado de certa
forma “fora do tempo” onde Bertha é tomada junto a pereira em flor por um sentimento
imprevisível, como se saísse de si e fosse justamente ao inominável, ao divino presente na
natureza.
Em resumo, Elisabeth aborda vivência de Bertha como
um gozo que, na falta de gozar de Deus, goza com o real, com o furo abissal. Em
outras palavras, há um furo de impossível no lugar do Outro do Outro que não
existe, uma abertura, um abismo que atrai as mulheres por elas não estarem na
suficientemente referidas ao falo. Lugar dos êxtases e do gozo suplementar
feminino, bem como de uma loucura própria às mulheres que caem nesse abismo.
(p.145)
A autora destina um capítulo de sua obra para abordar a relação entre o gozo
místico e a loucura feminina. Segundo ela (2017) a experiência dos místicos passa por
22
A santa retratada no livro é considerada uma das maiores místicas do século XVI,
era cristã e ortodoxa e inspirou artistas com seus relatos, um de seus êxtases é contado por ela
e trazido no livro dessa forma:
Quis o Senhor que eu visse aqui algumas vezes essa visão: via um anjo junto de
mim. (...) Via em suas mãos um dardo de ouro grande e no final da ponta me parecia
haver um pouco de fogo. Ele parecia enfiá-lo algumas vezes em meu coração e
chegava às entranhas. Ao tirá-lo me parecia que as levava consigo e me deixava toda
abrasada em grande amor de Deus. Era tão grande a dor que me fazia dar aqueles
gemidos, e tão excessiva suavidade que põe em mim essa enorme dor que não há
como desejar que se tire nem se contenta a alma com menos do que Deus. Não é
uma dor corporal, mas espiritual, ainda que não deixe o corpo de participar em
alguma coisa e até bastante (D’AVILA, 1562, p. 267 apud MIRANDA, 2017, p.
186).
Tereza diz de um gozo arrebatador que é sentido no corpo mas objetiva um mais
além, pois é sentido como um encontro com figuras divinas visando assim um Deus-Pai que
se coloca como esse ponto onde a palavra atinge se limite. O artista Bernini inspirado por essa
experiência esculpe a estátua que intitula O êxtase da Santa Teresa D'Ávila (Figura 1) onde
Lacan afirma que basta um olhar para perceber que “ela está gozando” (1972, p. 103) e que
não por caso é a capa de seu Seminário 20: Mais, ainda:
23
contornando o vazio não se possa produzir um saber, mesmo sabendo que sempre algo irá
escapar.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retomando o objetivo desse trabalho após a exposição de cada livro com seus
pontos principais faz-se necessário concluir tal empreitada refletindo sobre como as duas
obras atuam juntas para compreender o conceito de feminino para a Psicanálise, Feminilidade
e Experiência Psicanalítica de Ana Laura, resultado de sua dissertação de mestrado e
Desarrazoadas: Devastação e Êxtase produto da tese de doutorado de Elisabeth da Rocha
Miranda.
Vale ressaltar que de nenhuma maneira o intuito foi de esgotar as colaborações
que cada livro traz para o campo da Psicanálise. Pelo contrário, foi preciso escolher um
caminho e com isso outros foram abandonados. A magnitude desses dois livros não foi toda
transmitida nesse trabalho, pois, além de impossível, não se tratava do objetivo da presente
pesquisa. Fazendo relação com o título da pesquisa, adentrando no continente negro do
feminino tivemos o desejo como bússola, outro pesquisador poderia se deter em outros
pontos, até mesmo com o mesmo objetivo que temos, mas aí que se encontra o sujeito nesse
processo de trabalho.
Concluir essa trajetória se faz de certa maneira olhando para trás, o primeiro livro
que foi o de Ana Laura (2017) veio como um denso apanhado sobre a temática de Freud a
Lacan mantendo diálogo com debates atuais e a própria vivência da autora, com uma
característica muito evidente que foi sua pretensão de concentrar em poucas páginas uma
quantidade enorme de conhecimento de forma clara e objetiva. Não se furtando de apontar as
contradições de Freud e a resistência de alguns expoentes no campo psicanalítico ao trabalhar
com a sexualidade feminina, demonstrando um modo de pesquisa muito crítico e poderoso.
Ao mesmo tempo que se coloca, nos incita a percorrer nosso próprio caminho através das
inúmeras referências e sugestões de leitura. Apesar da enorme ferramenta que seu livro se
mostra, ele é uma parte da estrada, um farol que ilumina e guia o restante da viagem.
E através dessa luz chegamos á obra de Elisabeth (2017), que pelo nível
acadêmico foi desafiadora e fez irmos também a outros textos, mas uma coisa ficou muito
clara, sem ter lido o livro de Ana Laura antes seria bem mais difícil. De certa maneira a
primeira obra trabalhada nos preparou para as complexas construções teóricas do gozo Outro,
pois sem toda a compreensão da estruturação que a noção de feminilidade foi tomando desde
25
REFERÊNCIAS
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Tradução Paulo César de Souza. -11 ed.- São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
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Tradução Paulo César de Souza. -11 ed.- São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
_________. (1931) Sobre a sexualidade feminina. In. Obras completas, volume 18.
Tradução Paulo César de Souza. -11 ed.- São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1985.
LACAN, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
MANSFIELD, K. Êxtase e outros contos. 1920. Revan, 2000. Trad. Ana C. Cesar.
O ÊXTASE, de santa Tereza d’Ávila. Gian Lorenzo Bernini, 1647-1652. Altura: 721 pixels.
Largura: 500 pixels. 74,2 Kb. Formato JPEG. Disponível em: http://post-italy.com/extase-de-
santa-tereza-em-roma/. Acesso em 03/12/2017.