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Capítulo 10: Reabilitação de Pessoas Com Deficiência: Políticas E Teorização Histórico-Cultural

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CAPÍTULO 10

REABILITAÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: POLÍTICAS


E TEORIZAÇÃO HISTÓRICO-CULTURAL*
Sonia Mari Shima Barroco
Neide Da Silveira Duarte de Matos
Carla Salati Almeida Ghirello-Pires

Introdução
O presente capítulo deriva de estudos teóricos, pesquisas de campo, experiência
prática nos campos da Psicologia, Pedagogia e Fonoaudiologia e da docência no Ensino
Superior. Tem como objetivos abordar documentos norteadores e políticas públicas
referentes à reabilitação de pessoas com deficiência, e expor aspectos teóricos a respeito da
reabilitação à luz da Psicologia Histórico-Cultural, considerando uma abordagem
educacional, para tanto. Problematiza-se que, se por um lado, é importante que diferentes
áreas e organismos internacionais se atentem para a reabilitação – que não se trata de
fenômeno raro, muito pelo contrário – por outro, há a necessidade de se marcar o quanto
ela não diz respeito apenas à recuperação da funcionalidade ameaçada ou perdida, mas,
também, à formação e recomposição das funções psicológicas superiores (FPS) e das
relações que a pessoa com necessidade de reabilitação trava com seus pares e com o
mundo.
A reabilitação tem sido alvo de atenção da área do Direito, posto envolver os
direitos de trabalhadores urbanos e rurais, além de outros aspectos que visem à melhoria da
condição social dos sujeitos que dela carecem. Isso é reconhecido pela Constituição
Brasileira (BRASIL, 1988), pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei n.º 13.146/2015
(BRASIL 2015 b), e por leis ou medidas que remetem ao âmbito trabalhista, como se pode
notar com a Medida Provisória n.º 905, de 11 de novembro de 2019, que institui o
Contrato de Trabalho Verde e Amarelo, que alterava a legislação trabalhista e dava outras
providências, porém, logo mais revogada pela Medida Provisória n.º 955, de 20 de abril de
2020.
Contudo, embora esteja no bojo de disputas trabalhistas, antes disso, a reabilitação
é abordada pela Medicina, em sua luta pela garantia da vida, como pode ser encontrado em
diferentes documentos norteadores, dentre os quais se destaca as Diretrizes de Atenção à
Reabilitação da Pessoa com Traumatismo Cranioencefálico - TCE (BRASIL, 2015a), que objetiva
orientar equipes interdisciplinares no cuidado e reabilitação da pessoa com traumatismo
cranioencefálico.
O TCE tem sido uma das principais causas de morbidade e mortalidade em todo o
mundo, sendo um fato que ocorre em poucos segundos, mas cujos resultantes perduram
por longos períodos ou para toda a vida, apontando para o quanto a reabilitação pode se
dar ao longo do curso da vida. A reabilitação é ofertada em diferentes pontos das Redes de
Atenção à Saúde (RAS), que deve estar atenta às inúmeras implicações do TCE, visto que
podem levar à deficiência e a significativos impactos para a saúde individual e para o
desenvolvimento físico, psíquico e social.
Sabendo-se que alguma forma de atendimento é prevista pelos setores públicos e
privados aos casos mais graves, é necessário que se atente ao seu conceito. Em meio a
diferentes abordagens e conceituações existentes ressalta-se que, segundo a Organização

* DOI - 10.29388/978-65-86678-97-0-f.139-156

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Mundial de Saúde (OMS), “Há muito tempo a reabilitação carece de uma estrutura
conceitual unificadora” (2012, p. 99). Ela pode ser compreendida com base na Classificação
Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde - CIF (OMS, 2004), que se volta às
pessoas com deficiência para torná-las capazes de levarem adiante suas atividades
profissionais, educacionais, familiares, sociais etc. A OMS (2020, p. 99, grifo nosso)
entende que “A reabilitação é sempre voluntária e alguns indivíduos podem necessitar de
apoio para decidir sobre as opções disponíveis. Em todos os casos, a reabilitação deve
ajudar a capacitar a pessoa com deficiência e sua família”. Tal capacitação seria em relação à
nova condição à qual a pessoa pode se enquadrar ao longo de sua vida.
Aceita como uma das classificações sociais da Organização das Nações Unidas
(ONU) e incorporada às Normas Padronizadas para a Igualdade de Oportunidades para Pessoas com
Incapacidades, a classificação da CIF refere-se à saúde e aos estados relacionados a ela, sendo
empregada por diferentes setores, como: “[...] seguros, segurança social, trabalho, educação,
economia, política social, desenvolvimento de políticas e de legislação em geral e alterações
ambientais” (OMS, 2004, p. 9).
Segundo a OMS, na CIF, os problemas de funcionalidade humana são agrupados
conforme essas áreas, que estão interconectadas entre si:

■ alterações das estruturas e funções corporais significa problemas de


funções corporais ou alterações de estruturas do corpo, como por exemplo,
paralisia ou cegueira;
■ limitações são dificuldades para executar certas atividades, por exemplo,
caminhar ou comer;
■ restrições à participação em certas atividades são problemas que
envolvem qualquer aspecto da vida, por exemplo, enfrentar discriminação no
emprego ou nos transportes. (OMS, 2012, p. 5, grifo no original),

Por esse documento, a deficiência diz respeito às dificuldades existentes em uma


dessas três áreas de funcionalidade ou nas três. Nele se considera que “problemas de
saúde” referem-se às doenças, lesões e complicações, e que “diminuições de capacidade”
referem-se às “[...] diminuições específicas das funções e estruturas corporais, geralmente
identificadas como sintomas ou sinais de problemas de saúde” (OMS, 2012, p. 5).
A CIF (OMS, 2004) aborda Funções e Estruturas do Corpo, e Atividades e Participação,
considerando o que uma pessoa com determinada condição de saúde ou com
doença/perturbação faz ou pode fazer. Salienta-se que a funcionalidade compreende todas as
funções do corpo, atividades e participação nestas, enquanto a incapacidade abrange
deficiências, limitação da atividade ou restrição em dela participar, relacionando fatores
ambientais que incidem sobre tudo isso. Assim, por esse documento, “[...] a classificação
permite ao utilizador registrar perfis úteis da funcionalidade, incapacidade e saúde dos
indivíduos em vários domínios” (OMS, 2004, p. 7), sendo que os fatores pessoais a implicar
na situação de cada um compõem os fatores contextuais e, segundo o documento, estes
não estão classificados, devido “[...] à grande variação social e cultural associada aos mesmos”
(p. 12, grifo nosso).
Isso pode mostrar a diretividade do documento a dadas área e perspectiva, visto
que é justamente nessa variação social e cultural que a Psicologia e a Educação podem/devem
intervir sobre o processo de reabilitação, apresentando desde os elementos teóricos
atinentes a ela, as reflexões sobre as recomposições das funções psicológicas em meio às
relações que a pessoa acometida deve enfrentar/realizar, até a conduta de intervenção
prática para seu desenvolvimento.

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Reabilitação: o recomendado pela OMS e o preconizado na Lei
Para a OMS (2012, p. 100), “Educar as pessoas com deficiência é fundamental para
desenvolver os conhecimentos e habilidades para a autoajuda, a assistência, a gestão e a
tomada de decisões. Deficientes e suas famílias conseguem melhorar a saúde e a
funcionalidade quando são parceiros na reabilitação”. A reabilitação, por sua vez, diz
respeito às medidas que auxiliam pessoas com deficiência ou prestes a estar sob essa
condicionalidade, a terem/manterem uma funcionalidade ideal na interação com o
ambiente. Para a OMS (2012), pode-se fazer distinção entre a habilitação, que mira auxiliar
aquelas pessoas com deficiências congênitas ou adquiridas na primeira infância a
desenvolverem sua máxima funcionalidade individual, e a reabilitação, que auxilia as
pessoas que tiveram perdas funcionais a readquiri-las (com ou sem uso de próteses, órteses
e outros recursos), como, por exemplo, melhorando aspectos básicos como a capacidade
de se alimentarem ou fazerem a higiene com menos auxílios possível.
A reabilitação requer a intervenção no ambiente em que o sujeito vive, removendo
barreiras, como preconizado, no Brasil, pela Lei n.°13.146/2015, de Inclusão da Pessoa
com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) (BRASIL, 2015b, s.p.):

IV - barreiras: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que


limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e
o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de
expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação
com segurança, entre outros, classificadas em:
a) barreiras urbanísticas: as existentes nas vias e nos espaços públicos e privados
abertos ao público ou de uso coletivo;
b) barreiras arquitetônicas: as existentes nos edifícios públicos e privados;
c) barreiras nos transportes: as existentes nos sistemas e meios de transportes;
d) barreiras nas comunicações e na informação: qualquer entrave, obstáculo,
atitude ou comportamento que dificulte ou impossibilite a expressão ou o
recebimento de mensagens e de informações por intermédio de sistemas de
comunicação e de tecnologia da informação;
e) barreiras atitudinais: atitudes ou comportamentos que impeçam ou
prejudiquem a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de
condições e oportunidades com as demais pessoas;
f) barreiras tecnológicas: as que dificultam ou impedem o acesso da pessoa com
deficiência às tecnologias;

Por essa Lei, a reabilitação não diz respeito, portanto, a um programa ao qual
alguém deva se submeter a um intenso trabalho de superação individual. Em seu Capítulo
II, a habilitação e a reabilitação são tomadas como direito da pessoa com deficiência (inata ou
adquirida). Ambas têm como objetivo o

[...] desenvolvimento de potencialidades, talentos, habilidades e aptidões físicas,


cognitivas, sensoriais, psicossociais, atitudinais, profissionais e artísticas que
contribuam para a conquista da autonomia da pessoa com deficiência e de sua
participação social em igualdade de condições e oportunidades com as demais
pessoas. (BRASIL, 2015b, s.p.).

Assim, para o alcance desse objetivo, a reabilitação deve compor um trabalho


intenso ou mais leve, contínuo ou esporádico, direcionado à uma dada pessoa, podendo ser
com vistas a recuperar funcionalidades perdidas, minoradas ou mesmo ameaçadas.
Contudo, chama a atenção nessa Lei – que foi resultante de um longo trabalho que contou
com a participação efetiva de pessoas com deficiências – o enfoque para que se ultrapasse

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os limites individuais e se volte à sociedade no enfrentamento aos impedimentos ou
barreiras. Essa Lei considera que os processos de habilitação e de reabilitação requerem
avaliação multidisciplinar das necessidades, habilidades e potencialidades da pessoa,
devendo seguir as diretrizes preconizadas (BRASIL, 2015b, s.p., grifo nosso):

I - diagnóstico e intervenção precoces;


II - adoção de medidas para compensar perda ou limitação funcional, buscando o
desenvolvimento de aptidões;
III - atuação permanente, integrada e articulada de políticas públicas que
possibilitem a plena participação social da pessoa com deficiência;
IV - oferta de rede de serviços articulados, com atuação intersetorial, nos
diferentes níveis de complexidade, para atender às necessidades específicas da
pessoa com deficiência;
V - prestação de serviços próximo ao domicílio da pessoa com deficiência,
inclusive na zona rural, respeitadas a organização das Redes de Atenção à Saúde
(RAS) nos territórios locais e as normas do Sistema Único de Saúde (SUS).

Essa Lei também prevê que nos programas e serviços de habilitação e de


reabilitação sejam garantidos:

I - organização, serviços, métodos, técnicas e recursos para atender às


características de cada pessoa com deficiência;
II - acessibilidade em todos os ambientes e serviços;
III - tecnologia assistiva, tecnologia de reabilitação, materiais e equipamentos
adequados e apoio técnico profissional, de acordo com as especificidades de
cada pessoa com deficiência;
IV - capacitação continuada de todos os profissionais que participem dos
programas e serviços. (BRASIL, 2015b, s.p.)

Aponta, ainda, que os serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único
de Assistência Social (SUAS) devam promover ações articuladas para que a pessoa com
deficiência e sua família tenham informações e orientações referentes à saúde, educação,
cultura, esporte, lazer, transporte, previdência social, assistência social, habitação, trabalho,
empreendedorismo, acesso ao crédito, promoção, proteção e defesa de direitos, etc., de
modo a exercer sua cidadania, acessando políticas públicas disponíveis e tendo plena
participação social.
O Capítulo VI desta Lei, Do Direito ao Trabalho, em sua Seção II, Da Habilitação
Profissional e Reabilitação Profissional, prevê ser dever do poder público “[...] implementar
serviços e programas completos de habilitação profissional e de reabilitação profissional
para que a pessoa com deficiência possa ingressar, continuar ou retornar ao campo do
trabalho, respeitados sua livre escolha, sua vocação e seu interesse” (BRASIL, 2015b, s. p.).
Tais programas de habilitação ou de reabilitação devem levar à restauração da
capacidade e habilidade profissional ou, ainda, à aquisição de novas capacidades e habilidades
referentes ao âmbito do trabalho. Expõe, também, que

A habilitação profissional corresponde ao processo destinado a propiciar à


pessoa com deficiência aquisição de conhecimentos, habilidades e aptidões para
exercício de profissão ou de ocupação, permitindo nível suficiente de
desenvolvimento profissional para ingresso no campo de trabalho. (BRASIL,
2015b, s.p.).

Cabe ressaltar que, segundo a OMS (2012), em geral, a reabilitação ocorre durante
um determinado período (na fase aguda ou logo após a descoberta do problema médico,
até as fases pós-aguda e de manutenção), envolvendo intervenções simples ou múltiplas,

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executadas por um profissional ou por uma equipe de profissionais. Também requer a
identificação dos problemas e necessidades, “[...] o relacionamento dos transtornos aos
fatores relevantes do indivíduo e do ambiente, a definição de metas de reabilitação,
planejamento e implantação de medidas, além da avaliação de seus efeitos” (OMS, 2012, p.
100).
A CIF repercute o comprometimento das capacidades para realizar atividades que,
em seu meio, se consideram “normais” para as pessoas da mesma idade, sexo, grupo social
etc. Se, de alguma forma, essa pessoa está fora da “norma” socialmente estabelecida, então,
passa a ser considerada com deficiência.
Lembra-se que, para a OMS, a discapacidade é toda restrição ou ausência por uma
deficiência da capacidade de realizar uma atividade social, de acordo com parâmetros
considerados comuns à maioria das pessoas, conforme um modelo social dado. É
importante mencionar que os termos disability (inglês) e discapacidad (espanhol) podem ser
traduzidos para o português como deficiência.
A OMS considera que as deficiências não são, necessariamente, permanentes.
Assim, aqui muito importa o que a Psicologia Histórico-Cultural preconiza: concomitante
às deficiências ou discapacidades existem as possibilidades culturais de se formar meios
alternativos e/ou vias substitutivas (VIGOTSKI, 1989) para que as pessoas sigam com as
suas vidas e sejam partícipes, de direito e de fato, da sociedade e da coletividade às quais se
vinculam.
Numa direção contrária à uma concepção de cunho adaptacionista da reabilitação,
Rossi (2016, p. 20, grifo nosso) escreve:

A reabilitação é um contrato de vida e deveria ser pensada a partir desta perspectiva. Uma
criança com lesão cerebral será um adulto com lesão cerebral e provavelmente
precisará do acompanhamento de reabilitação de longo prazo. É preciso
acomodar o projeto educacional de reabilitação às diferentes fases da vida e
procurar incorporar novas ferramentas educacionais a esses programas.

Ao se tratar de habilitação da pessoa que não desenvolveu grande parte de seu


arcabouço cultural, e de reabilitação da pessoa cujo desenvolvimento alcançado esteja sob
ameaça ou foram tolhidos/rompidos brusca ou paulatinamente, deve-se reconhecer que se
trata de um processo de educação/reeducação. Ou seja, toda a direção desse trabalho
centra-se no desenvolvimento cultural, para que uma dada alteração no funcionamento
cerebral ou no sistema nervoso central não resulte em limitação ou em impedimento, como
um problema apenas pessoal ou individual.
Nenhum trabalho de reabilitação deve forjar algo que não tenha relação com a vida
da pessoa. Segundo Rossi (2016), as propostas a respeito devem partir dos interesses dos
sujeitos envolvidos, de modo a “[...] maximizar os benefícios da abordagem e da
recuperação neurológica'', e pondera que um processo compreensivo de reabilitação ocorre
a partir do enriquecimento do ambiente natural de vida, da valorização e do respeito aos
interesses pessoais e aos valores individuais, de forma prazerosa e sustentável” (p. 20).
Rossi (2016) aponta que devem estar “[...] integrados ao cotidiano de vida, incorporando
ferramentas, linguagens, modos de comunicação e relacionamento social próprios de cada
etapa do desenvolvimento, do contexto e do momento histórico” (p. 20). Considera que a
reabilitação se trata de um processo dinâmico, que demanda um diálogo às áreas da
educação e da saúde, ante o grande desafio a ser enfrentado.
O que está em jogo, portanto, não é apenas a recuperação de funcionalidades,
vencendo incapacidades, mas a pessoa como um todo, que pode ser mais bem
compreendida e auxiliada/apoiada quando se reconhece a indivisibilidade organismo-
psiquismo, afeto-cognição.

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Reabilitação sob concepções da Psicologia Histórico-Cultural
Abordou-se que, no Brasil, o Estatuto da Pessoa com Deficiência ou Lei
n.°13.146/2015 (BRASIL, 2015b) não trata apenas da reabilitação, mas da habilitação. Ao
se refletir sobre como a Psicologia e a Educação podem contribuir para que o conteúdo
desta Lei se constitua como uma política que responda às necessidades das pessoas com
deficiências e necessidades especiais, entende-se que a teorização histórico-cultural possa
apresentar elementos essenciais.
Para tanto, primeiramente, é necessário abordar a capacidade à luz da tese central da
formação social do psiquismo. Destaca-se que no processo de formação da personalidade,
as capacidades são “[...] qualidades psíquicas”, ou seja, “[...] condição para realizar com êxito
determinados tipos de atividade”, de tal forma que, “[...] nenhuma atividade isolada pode garantir a
execução com êxito de uma atividade” (LEITES, 1969. p. 433, grifos no original, tradução
nossa)1. Elas podem se distinguir em capacidades gerais e especiais, porém ambas são
imprescindíveis para o êxito na realização de dada atividade.
A concepção de capacidade está em intrínseca relação com o modo como a
sociedade se organiza e reproduz um dado modus vivendi. Dessa forma, entende-se que, nas
relações sociais, tal concepção permeia a tudo e a todos, e constitui os sujeitos, as
organizações e instituições. Tais relações produzem e reproduzem ideias hegemônicas
calcadas num modelo de sujeito ideal, produtivo, que desempenha atividades que atendem
e reforçam capacidades normativas. Isso leva ao que se denomina capacitismo (em inglês,
ableism), termo que diz respeito à discriminação e ao preconceito social direcionado ou
envolvendo pessoas com deficiência ou necessidades especiais.
Em sociedades ou espaços capacitistas, o normal significa a ausência de quaisquer
deficiência ou necessidades especiais, devendo as exceções serem superadas ou corrigidas.
Por essa concepção hegemônica capacitista, a intervenção médica é altamente desejada,
visto que pode produzir a ansiada normalidade em alguém, comumente não respeitado
como pessoa, conforme os estudos empreendidos e a prática docente na educação básica e
superior permitem afirmar.
Numa direção diversa sobre capacidades, para Leites (1969), “[...] quanto mais
ampla e variada se faz a atividade das pessoas, mais ampla e variadamente se desenvolvem
suas capacidades” (p. 434, tradução nossa)2. Essa compreensão redimensiona todo o
trabalho de formação dos sujeitos e reveste de significado o trabalho de reabilitação de
funções, ao reestabelecer capacidades que foram afetadas ou perdidas. Certo é que,

À medida que a humanidade cria novas atividades, nasce e se desenvolve novas


capacidades e as antigas recebem um novo conteúdo. A divisão e a
especialização do trabalho conduzem a especialização das capacidades
humanas. O desenvolvimento das capacidades depende em um grau decisivo das condições
histórico-sociais da vida do homem, das condições da vida material da sociedade. (LEITES,
1969, p. 434-35, grifo no original, tradução nossa)3.

1 No original: [...] cualidades psíquicas [...] condición para realizar con éxito determinados tipos de actividades [...]. Ninguna capacidad
aislada puede garantizar la ejecución con éxito de una actividad.
2 Cuanto más amplia y variada se hace la actividad de las personas, más amplia y variadamente se desarrollan sus

capacidades.
3 No original: A medida que la humanidad ha creado nuevas actividades han nacido y se han desarrollado nuevas

capacidades y las antiguas han recibido un nuevo contenido. La división y la especialización del trabajo han conducido a la
especialización de las capacidades humanas. El desarrollo de las capacidades depende en un grado decisivo de las
condiciones histórico-sociales de la vida del hombre, de las condiciones de la vida material de la sociedad. (LEITES, 1969,
p. 434, 435).

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É necessário complementar que esse desenvolvimento também está implicado pela
classe social a que se pertence, pois não somente atua como um prisma para refletir o real,
mas o compõe.

Do mesmo modo que a vida de uma sociedade não representa um único e


uniforme todo, e a sociedade ela mesma é subdividida em diferentes classes,
assim também, não pode ser dito que a composição das personalidades
humanas representa algo homogêneo e uniforme em um dado período
histórico, e a psicologia tem que levar em conta o fato básico que a tese geral
que foi formulada agora mesmo, só pode ter uma conclusão direta, confirmar o
caráter de classe, natureza de classe e distinções de classe que são responsáveis
pela formação dos tipos humanos. As várias contradições internas que são
encontradas nos diferentes sistemas sociais encontram sua expressão tanto no
tipo de personalidade quanto na estrutura da psicologia humana naquele
período histórico. (VYGOTSKY, 2004, s.p.).

Está, pois, na base dessas afirmações, o reconhecimento da condicionalidade


histórica e material da constituição do psiquismo, algo anterior à aquisição ou perda
(abrupta ou paulatina) da funcionalidade do organismo e do psiquismo. Não se nasce
contando com algumas capacidades determinadas, a não ser algumas particularidades
anatômicas e fisiológicas do organismo, como as vinculadas ao sistema nervoso e ao
cérebro, ou seja, funções que chamamos naturais ou elementares
Do ponto de vista fisiológico, pode-se considerar que uma função do sistema
nervoso central (SNC) possui tanto os mecanismos gerais, como os particulares, que
determinam a especificidade das novas relações funcionais que passam a ser estabelecidas
com a reabilitação, sendo os fatores sociais de fundamental importância nessa estreita inter-
relação. Quanto a estes, reafirma-se que o desenvolvimento humano é eminentemente
social, que a base de sua formação está dependente da assimilação da experiência histórico-
social, culturalmente produzida. Entende-se, pois, que para que desenvolvam as
capacidades, é preciso que haja a assimilação do já elaborado. Isso serve de matéria prima
para

[...] a utilização criadora dos conhecimentos, dos hábitos e das habilidades elaboradas no
curso da prática histórico-social. Os conhecimentos e as habilidades não são
indiferentes com respeito às capacidades. À medida que se assimilam,
contribuem com seu desenvolvimento. As capacidades se formam por meio das
habilidades generalizadas. (LEITES, 1969, p. 437, grifo no original, tradução
nossa)4.

Por essa teorização da formação das capacidades, o ensino e a escolarização


assumem papéis fundamentais posto que, ao transmitirem a experiência social, permitem a
acessibilidade à leitura e escrita, aos conteúdos científicos, artísticos, filosóficos etc., e que
se formem hábitos essenciais para a vida cotidiana. Quando assimila o sistema de
conhecimentos, ao mesmo tempo, a pessoa adquire o domínio das operações mentais (a
análise, a síntese, a generalização), o que desenvolve suas capacidades mentais, e o mesmo
ocorre em relação aos domínios técnicos, artísticos etc. A ausência ou a falta desses
conhecimentos e da formação dos hábitos necessários tornam-se os maiores impedimentos
para a formação das capacidades (LEITES, 1969). Assim, discapacidade ou incapacidade
não se refere somente à condição gerada pela deficiência.

4No original: [...] la utilización creadora de los conocimientos, los hábitos y las habilidades elaboradas en el curso de la práctica histórico-
social. Los conocimientos y las habilidades no son indiferentes con respecto a las capacidades. A medida que se asimilan
contribuyen a su desarrollo. Las capacidades se forman de las habilidades generalizadas” (LEITES, 1969, p. 437, grifo no original).

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Podem ser consideradas capacidades [...] aquelas qualidades psíquicas que, mesmo
dependentes dos conhecimentos, dos hábitos e das habilidades, não se reduzem a eles” (LEITES, p. 438,
grifos no original, tradução nossa)5. Para o autor, as capacidades se constituem de forma
mais lenta que a aquisição de conhecimentos, hábitos e habilidades e são, portanto,
qualidades mais estáveis da personalidade. Por essa explicação, pode-se dizer que a
formação de capacidades está baseada nas formas superiores de desenvolvimento psíquico.
Desse modo, se as capacidades se formam e se desenvolvem à medida que se
assimilam conhecimentos e habilidades e se formam hábitos, por sua vez, o
desenvolvimento da capacidade depende da facilidade com que se aprende a dominar tais
conhecimentos e habilidades. Considerando essas teorizações, pode-se dizer que, ainda que
existam condições biológicas e sociais desfavoráveis, a formação de [novas] capacidades
demandadas na reabilitação está apoiada e é explicada pelo processo compensatório
(VIGOTSKI, 1989; VYGOTSKY; LURIA, 1996) que produz, nas estruturas psicológicas,
a assimilação das experiências culturais e sociais produzidas historicamente. Há que se
considerar que a execução de uma mesma atividade pode se efetivar por distintas
combinações de capacidades. Psicologicamente, se pode conseguir o êxito em uma
atividade por distintos caminhos. [...] Na prática escolar se encontram com frequência casos
de substituição e de compensação de umas capacidades por outras. (LEITES, 1964, p. 441,
tradução nossa)6.
Mas, para tanto, é mister a formação dos sistemas necessários de conexões
condicionadas sendo que, concomitantemente, se desenvolvem os processos nervosos
fundamentais e as singularidades das relações mútuas dos sistemas de sinais, em
conformidade com as condições da atividade.
Isso tudo remete à anterior teorização de L. S. Vigotski, no Tomo V de Obras
Completas (1989) que, dentre outros propósitos, dedica-se a analisar a essência dos processos
psicológicos superiores, com explicações sobre o desenvolvimento e sobre a gênese dos
defeitos primários e secundários. Quando teorizou, nas décadas de 1920-1930, no campo da
Defectologia – área comparável à atual Educação Especial – era comum empregar o termo
defeito para fatores que trariam limitações ao desenvolvimento ontogenético, tais como
deficiência, déficit, má formação congênita etc. Apontou para os aspectos biológicos como
defeitos primários e para as limitações sociais ao desenvolvimento, geradas e reproduzidas
nas e pelas relações sociais, como defeitos secundários.
Além de trazer à luz que as limitações não estariam, necessariamente, nas condições
biológicas, mas no modo de produção social da vida, mediante o qual os homens se
relacionam entre si, Vigotski acaba reposicionando o fator biológico da deficiência,
conferindo-lhe um papel que não é determinante em si mesmo. O autor pleiteia o direito
de todas as pessoas ao desenvolvimento cultural, ao alcance da formação de FPS a
patamares mais elevados/complexos, criticando fortemente as práticas de meros treinos
adaptativos empreendidos pelas escolas auxiliares (escolas especiais) e instituições de
reabilitação da época.
Tal perspectiva vigotskiana põe em questão o equívoco de se insistir em
treinamentos/condicionamentos obsoletos e estéreis como se fossem relevantes para a
reabilitação. Antes, postula uma pedagogia especial que pudesse ocupar o papel de diretora
do desenvolvimento e não implementadora de uma educação insossa de mediações
culturais.

5No original: [...] aquellas cualidades psíquicas, que aunque dependen de los conocimientos, los hábitos y las habilidades,
no se reducen a ellos.
6No original: La ejecución de una misma actividad se puede realizar por distintas combinaciones de las capacidades.

Psicológicamente, se puede conseguir el éxito en una actividad por distintos caminos. [...] En la práctica escolar se
encuentran con frecuencia casos de substitución [sic] y de compensación de unas capacidades por otras.” (LEITES, 1964,
p. 441).

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A seu ver, era preciso sair do reino dos treinos e condicionamentos, o que requeria
o abandono da ênfase no domínio sensorial para a busca da formação da abstração nas
pessoas com deficiência. O alvo de todo o trabalho formativo (de habilitação) e de
reabilitação deveria ser o desenvolvimento da consciência, como unidade das FPS e como
compreensão do real, das suas leis. A pessoa com deficiência ou com limitações em sua
funcionalidade não seria, pois, fadada ao não desenvolvimento, posto que o
desenvolvimento cultural, propriamente humano, poderia ser alcançado por vias
alternativas, colaterais.
É preciso ressaltar que os treinos vigentes da época, justamente por serem apenas
treinos, excluíam as situações efetivas de produção de sua prática, ou seja, o significado do
ato, seja ele motor ou verbal. Sabemos que significação/significado são termos muito caros
para Vigotski, visto que carregam a generalização, a formação dos conceitos, ato
indispensável e autêntico do pensamento, uma vez que, para ele “[...] palavra sem
significado é um som vazio” (VIGOTSKI, 2001, p. 398). Desta forma, é possível
compreender o quão nocivo o treino mecânico fora das situações efetivas de significação
pode ser para a formação de FPS de pessoas com deficiência.
Nessa direção, teoriza sobre as particularidades estruturais da personalidade integral
da pessoa com deficiência que, tal como as demais, conta com a indissociabilidade afetivo-
cognitiva. Em suas explicações sobre o desenvolvimento dessa pessoa, leva em
consideração a existência de lesão orgânica do SNC e as limitações que esta pode produzir
em potencial, mas não de modo inevitável ou determinante. Postula que as limitações
orgânicas são socialmente alteráveis, reconhecendo o papel fundamental da educação na
sua correção e compensação, e nas possibilidades de seu pleno desenvolvimento humano. Para
Vigotski,

O defeito orgânico por si só [...] é um fato biológico. Mas o educador deve


trabalhar não só com os fatos por si mesmos, mas com suas consequências
sociais. [...] Por isso que a educação da criança deficiente não é mais do que
educação social. Exatamente da mesma maneira, também os processos de
compensação que são representados nesta criança, sob a influência do defeito,
são dirigidos, fundamentalmente, não pela linha de eliminação do defeito (o que
é impossível), mas pela linha de reorganização psicológica, de substituição, de
nivelamento do defeito, pela conquista da validação social ou por sua
aproximação. (1989, p.161-2, tradução nossa)7.

Com essas explicações gerais sobre as potencialidades dos meios sociais que servem
de contexto favorável ou desfavorável diante de um eventual defeito no organismo de uma
pessoa, o autor concebe que a chave da aprendizagem e do desenvolvimento humano está
nas relações estabelecidas entre o adulto e a criança, entre o professor e o aluno, ou entre
sujeitos mais experientes e sujeitos menos experientes em uma unidade indivisível e
produtiva. A relação de ensino-aprendizagem dos conteúdos e meios da cultura, onde
quem assume o papel de agente mediador principal nem sempre é consciente da condição
formativa que guia, dirige, promove e acelera o desenvolvimento cultural.
A constituição do edifício cultural sobre a base biológica inicial é um longo e árduo
processo, pois se trata da formação da genericidade na criança, o que depende, portanto, do
outro. Isso ocorre, por um lado, pela própria condição genética da espécie humana; pela

7No original: El defecto orgánico por sí mismo […] es un hecho biológico. Pero el educador tiene que trabajar no sólo
con los hechos por sí mismo, como con sus consecuencias sociales […]. Por eso, la educación del niño deficiente no es
más que la educación social. De un modo exactamente igual, también los procesos de compensación que se representan
en este niño, bajo la influencia del defecto se dirigen, en lo fundamental, no por la línea de la eliminación del defecto (lo
que es imposible), sino por la línea del vencimiento psicológico, de la sustitución, de la nivelación del defecto, por la
conquista de la validez social o del acercamiento a ella. (VIGOTSKI, 1989, p. 161-2).

147
filogênese, que permite ao sujeito herdar toda a evolução filogenética. Por outro, porque a
formação da personalidade singular, pela ontogênese, encaminha ao produto do
desenvolvimento humano peculiar, carece de um processo de internalização das
características culturais, históricas e sociais já existentes e potencialmente transmissíveis
pelas pessoas, por mediação de signos e significados constituídos.
Ainda, segundo Vygotsky e Luria (1996, p. 177, grifo nosso), no processo de
desenvolvimento,

[...] a criança não só cresce, não só amadurece, mas ao mesmo tempo - e isso é
a coisa mais fundamental que se pode observar em nossa análise da evolução da
mente infantil -, a criança adquire inúmeras novas habilidades, inúmeras novas
formas de comportamento. No processo de desenvolvimento, a criança não só
amadurece, mas também se torna reequipada. É exatamente esse “reequipamento”
que causa o maior desenvolvimento e mudança que observamos na criança à
medida que se transforma num adulto cultural.

As explicações desses autores a respeito de aprendizagem e desenvolvimento


esclarecem a interrelação entre o biológico e o cultural na formação do psiquismo humano.
Por essa razão, a relação dialética existente entre os fenômenos biológicos – que são a base
da existência e se expressam nos comportamentos reflexos e instintivos – e os culturais –
os instrumentos mediadores (signos e instrumentos da cultura), objetivados nos diversos
tipos de produção humana – possibilitam um salto qualitativo na direção da história
humana, na medida em que são apropriados pelo indivíduo e em sua própria história, seja
em processos formativos de habilitação ou de reabilitação.
Ao mostrarem a insuficiência do nascimento para a criança vir a se tornar um ser
cultural por conta própria, ambos os autores consideram que são múltiplos os fatores que
atuam ao longo do desenvolvimento humano, constituindo-se como sujeito em um todo
único, a cada período de sua vida social. Em sua concretude, os processos psicológicos
superiores

[...] surgem não no ‘interior’ da célula viva, mas em suas relações com o meio
circundante, na fronteira entre o organismo e o mundo exterior, e ela [célula]
assume as formas de um reflexo ativo do mundo exterior que caracteriza toda
atividade vital do organismo. À medida que a forma de vida se torna mais
complexa, com uma mudança no modo de existência e com o desenvolvimento
de uma estrutura mais complexa dos organismos, estas formas de interação
com o meio ou de reflexo ativo mudam; todavia, os traços básicos desse
reflexo, bem como suas formas básicas tais como foram estabelecidas no
processo da história social devem ser procurados não no interior do sistema
nervoso, mas nas relações concernentes à realidade, estabelecidas em estágios
sucessivos de desenvolvimento histórico. (LURIA, 2006, p. 194).

Para Luria, assim como para Vigotski, as FPS (presentes somente nos seres
humanos e orientadas pela consciência, pela intencionalidade) se formam por meio das
relações sociais com os conteúdos e meios da cultura. Tem-se, com isso, que “[...] toda
função psíquica superior foi externa, porque foi social antes de ser interna; antes de ser
uma função psíquica propriamente, em princípio constitui-se em uma relação social entre
duas pessoas” (VYGOTSKI, 2000, p. 150, tradução nossa) 8.
Considera-se, assim, que a formação das FPS sobre a base daquelas funções
naturais vai se desenvolvendo na atividade e comunicação com os outros; isso corresponde
ao desenvolvimento cultural ontogenético, ou seja, para este autor, as funções psicológicas

8 No original: Toda función psíquica superior fue externa por haber sido social antes que interna; la función psíquica
propiamente dicha era antes una relación social de dos personas.

148
superiores – como atenção voluntária, memória lógica e linguagem verbal – são
estruturadas no cérebro humano sob um processo relacional com outro humano, pois “[...]
todas as formas fundamentais de comunicação verbal do adulto com a criança se converte
mais tarde em função psíquica" (2000, p. 150, tradução nossa)9.
Essa concepção formativa relacional do desenvolvimento psíquico se faz essencial
no processo educativo e/ou de reabilitação. Por ela se percebe a possibilidade de o trabalho
educativo investir sobre o desenvolvimento de uma maneira prospectiva e potencializadora,
pois se considera que a educação promove a construção de estruturas e sistemas
psicológicos complexos, nos quais se incluem os mecanismos de compensação da
deficiência, da limitação.
Com o exposto, há elementos teóricos para se pensar a habilitação e a reabilitação
para além da conquista da independência motora, e passa-se a buscar a funcionalidade do
organismo num processo contínuo e intencional de criação das condições necessárias para
se realizar, nos sujeitos singulares, a genericidade historicamente dada.

Considerações sobre mediação, habilitação e reabilitação


No Brasil, a Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação, talvez seja a maior referência
para o que denominam neurorreabilitação de lesões medulares congênitas ou adquiridas, de
origem traumática (acidentes de trânsito, quedas, mergulhos, ferimentos por armas brancas
ou de fogo etc.) ou não traumática (tumores, infecções, malformações arteriovenosas,
doenças degenerativas). A Rede aponta que “[...] os programas de reabilitação são
individualizados e organizados de forma dinâmica e contextualizada, de acordo com o
potencial de recuperação funcional, e podem ser realizados ambulatorialmente, em regime
de hospital-dia ou internação” 10. A Rede indica, como seus princípios:

Criar uma rede de neurorreabilitação, que entenda o ser humano como sujeito
da ação e não como objeto sobre o qual se aplicam técnicas.
Trabalhar para que cada pessoa seja tratada com base no seu potencial e não
nas suas dificuldades.
Vivenciar o trabalho multidisciplinar em saúde como um conjunto de
conhecimentos, técnicas e atitudes unificadas, destinadas a gerar um processo
de reabilitação humanístico.
Transformar cada pessoa em agente de sua própria saúde.
Atuar na sociedade para prevenir a incapacidade, combatendo, ao mesmo
tempo, preconceitos quanto às limitações e diferenças, pois o que caracteriza a
vida é a infinita variação da forma que no tempo muda.
Valorizar a iniciativa inovadora e a troca de experiências, no ensino e na
pesquisa, estimulando a criatividade de pessoas e grupos, gerando
conhecimento.
Melhorar a qualidade dos serviços prestados a um número cada vez maior de
cidadãos, através da eficiente aplicação dos recursos e da continuada
qualificação dos seus recursos humanos.
Restituir ao cidadão brasileiro, com serviços qualificados de saúde e de
reabilitação, os impostos que por ele foram pagos.
Viver para a saúde e não sobreviver da doença11.

9 No original: Todas las formas fundamentales de comunicación verbal del adulto con el niño se convierten más tarde en
funciones psíquicas.
10 Disponível em: https://www.sarah.br/especialidades/neurorreabilitacao-em-lesao-medular/. Acesso em: 10 maio 2021.
11 Disponível em: https://www.sarah.br/a-rede-SARAH/nossos-principios/ . Acesso em: 10 maio 2021.

149
Esses princípios contemplam, de alguma forma, o que os documentos norteadores
ou legais já citados apontam. Também se apoiam em elementos teorizados pelos autores
soviéticos sobre as novas bases para a constituição do psiquismo humanizado nos sujeitos,
para se compreender a organização e funcionamento cerebral, que devem ser recuperados,
quando se trata da reabilitação.
A esse respeito, importante salientar que, para Luria (1977, 1981), fatores externos,
os quais medeiam a relação entre dois seres humanos, possibilitam a relação entre pontos
distintos do sistema nervoso central, ou seja, estruturam e reestruturam o funcionamento
do cérebro, visto que as funções mentais (ou psicológicas) superiores não são inatas, mas
organizadas na ontogênese. Neste sentido podemos entender que funções superiores são
aquelas em que, diferentemente das elementares, ou naturais, não há previsibilidade de que
aconteçam, a não ser por meio de uma situação relacional orientada e intencional na qual o
outro se faz imprescindível. Portanto, é de fundamental importância um ambiente rico em
humanização, que proporcione aos sujeitos, desde a mais tenra infância, situações
relacionais intencionais com outras pessoas, principalmente com adultos.
É importante salientar que Luria (1981), compreendendo o cérebro como algo
dinâmico, passível de reestruturação e reorganização constantes, apontou falhas na escola
clássica de estudos em neurofisiologia sobre a formulação dos conceitos de "função",
"localização" e “sintoma”. Demonstrou que o que era chamado de função, destinava-se à
compreensão de um tecido particular, mas não sendo adequada para todos os tipos de
funções, como a de um sistema funcional complexo que recrutava vários processadores
neurológicos, resultando em um funcionamento sistêmico e orquestrado de várias unidades
cerebrais.
Esta forma de compreender o funcionamento do cérebro como complexo,
diferencia-se da abordagem dos chamados “localizacionistas”, para quem as funções
mentais superiores estariam circunscritas em áreas específicas no cérebro. Assim, qualquer
acidente que resultasse em lesões, levaria a um trabalho de reabilitação pautado em treinos,
condicionamentos e hábitos levando em conta apenas o sintoma neuropsicológico
aparente, sem compreender a profundidade e complexidade do sistema funcional no qual
podemos ter, a depender do fator lesado, sintomas primários (perturbações diretamente
relacionadas com a lesão) e secundários (perturbações que surgem como consequência dos
sintomas primários por meio da interação sistêmica) em um sistema funcional.
A proposta teórico-metodológica de Luria reflete uma perspectiva de
desenvolvimento diferenciada, na qual nenhum processo mental pode estar vinculado a
uma única região específica do cérebro. Essa forma de raciocínio traz consequências
importantes para o processo de reabilitação; sua revisão ao conceito de localização mostra
que, quando ocorre uma lesão, não há a “perda” de uma função específica correspondente
àquela região, como queriam propor os adeptos do localizacionismo.
Nesse sentido, não obstante haver, sim, a perturbação de uma dada área cerebral, a
lesão levaria, segundo Luria (1981), à reorganização do funcionamento original por partes
intactas do cérebro. Para ele, na prática, nenhuma função cerebral é tão precisamente
demarcada que permita com que a lesão destrua, somente, um grupo estreitamente
localizado de células nervosas, e nem todos os elementos de uma região cerebral inteira.
Dessa forma, o trabalho de reabilitação torna-se de fato possível, pois como o
funcionamento do cérebro é dinâmico, as regiões íntegras ou não afetadas podem ser
recrutadas para atuar na reestruturação dos processos mentais.
Ao revisar o conceito de sintoma, Luria (1981) demonstra que um sintoma muito
próximo de dois pacientes pode ter sua origem bem distinta no sistema nervoso central;
desta forma, é preciso compreender o que o autor russo chama de fator. Para ele, um
movimento voluntário (praxia) constitui um sistema funcional complexo, que incorpora
inúmeras condições ou fatores dependentes de todo um grupo de zonas corticais e

150
estruturas subcorticais, sendo que cada uma dá sua contribuição peculiar para a realização
do movimento.
Para exemplificar o que foi dito Luria (1981) nos dá o exemplo da apraxia, que é
quando um paciente não consegue manipular objetos de forma adequada. Para o autor a
condição essencial para que um movimento ocorra é sua aferenciação cinestésica, ou seja se
estes impulsos aferentes estiverem ausentes o movimento perde sua base e se torna
descontrolado. Como resultado desse fato mesmo lesões leves do córtex pós-central
podem levar a uma forma característica de “apraxia cinestésica”, que é a incapacidade do
paciente colocar a mão na posição adequada para a ação manipulatória que queira executar.
Mas a presença essencial da aferenciação cinestésica não é suficiente para a ação da ação,
pois todo movimento é efetuado por meio de um sistema de coordenadas espaciais que é
levado a cabo por zonas terciárias parieto occipital do córtex. Se esta região for afetada um
distúrbio do movimento se manifesta, “apraxia espacial”, mas agora com características
diferentes, ou seja, o paciente tem dificuldades em posicionar a mão em coordenadas
espaciais sendo por exemplo difícil levar o garfo à boca. O autor russo aponta ainda outras
duas condições que podem alterar o curso do movimento quais sejam: “apraxia cinética”, que
ocorre quando uma alteração na região pré-motora altera a melodia cinética dos
movimentos dificultando a produção da sequência fluida e suave do movimento, e a última
condição descrita, que é a incapacidade do paciente para subordinar seus movimentos à
intenção expressa pela fala, ocasionada por lesões do lobo frontal. Essa alteração, “apraxia
das ações dirigidas a metas” leva à uma desintegração de programas organizados reduzindo-os
à repetição ecopráxica dos movimentos que perderam sua natureza racional.
Desta forma podemos concluir, dos fatos descritos acima, que o movimento
voluntário, praxia, constitui um sistema funcional que incorpora inúmeras condições, sendo
assim o sintoma “apraxia” segundo Luria (1981) é um sinal de uma lesão que precisa ser
minuciosamente analisado. O autor aponta que a primeira tarefa do investigador,
neuropsicólogo, é estudar detalhadamente o fator básico que está por trás do sintoma
observado, e não confundir o foco, a lesão, que pode ser localizada, com a função, que não
é localizada, pois depende de um sistema funcionando em concerto.
Pode-se compreender que quando há lesão no cérebro, isso pode acarretar uma
grande desorganização do sistema nervoso central, entretanto, a ação em conjunto de todas
as áreas possibilita notáveis rearranjos neurofuncionais, fato este considerado pelas
neurociências, na atualidade, como “neuroplasticidade”, o que já havia sido aventado por
Vigotski e por Luria nas décadas iniciais até meados do século passado. Desta forma, nota-
se quão importante são seus estudos sobre a estruturação do cérebro, vislumbrando novos
rearranjos caso se façam necessários.
Com o exposto, entende-se que estimular adequadamente o sujeito durante as
primeiras etapas da vida é algo, por si só, importante. Contudo, ao se voltar à pessoa com
deficiência ou que apresente algum fator de risco que possa comprometer seu
desenvolvimento, identificar as possibilidades e atuar de forma multidisciplinar resulta em
uma intervenção fundamental para a sua vida e para a sociedade.
Isso significa dizer que o diagnóstico multidisciplinar e dinâmico deve ser realizado
o mais cedo possível e por um processo explicativo das possibilidades de intervenção com
vistas a promover o desenvolvimento das funções e/ou analisadores mentais complicados
por uma dada condição ou perdidos, de modo a se constituir a substituição, por vias
alternativas, daquilo que se encontra comprometido.
Assim, leva-se em conta, necessariamente, a grande plasticidade e dinâmica do SNC
e em especial do cérebro, o que permite considerar o complexo e dinâmico mecanismo
interfuncional do psiquismo humano. E isso, de tal maneira, que na pessoa com deficiência,
os processos compensatórios que aparecem por influência do defeito criam uma posição
peculiar e não se dirigem à linha da reparação orgânica da insuficiência (coisa impossível).

151
Nesse processo, porque o defeito dificulta, se projeta a tendência para o futuro com
as exigências e aspirações do ser social seguindo a linha da superação psicológica com
atividade intensificada, de substituição, de correção do defeito, de conquista da validez
social ou de aproximação à mesma (VIGOTSKI, 1989), como exposto. Este pressuposto
teórico subsidia tanto a reabilitação nos aspectos cerebral e físico-motor e, ainda, a
integração social com potencialidades superiores de humanização da pessoa com
deficiência.
Por esses preceitos, pensar e produzir vias alternativas ao desenvolvimento que se
encontra comprometido por uma lesão ou má formação anatômico-funcional, possibilita
reconhecer como ocorre a formação da personalidade, intervindo intencionalmente sobre
ela, bem como identificar as possibilidades do meio social na compensação do “dano”. Isso
é importante para não se tomar a concepção de reabilitação limitada apenas aos recursos e
tratamentos clínicos, terapêuticos, médicos individuais e individualizantes, e voltados à uma
funcionalidade pragmática que não implica a consciência.
Isso, porque, a formação da personalidade das pessoas com e sem deficiência
depende, eminentemente, da situação social de desenvolvimento, ou seja, da capacidade
humana (educativa) e do entorno social em formar e produzir as vias colaterais e/ou
alternativas, sobretudo, por meio de atividades específicas elaboradas a fim de trabalhar de
forma sistêmica, a transformação dos processos internos do desenvolvimento e das
condições externas.
De acordo com tais possibilidades, Luria (1981) aponta que os processos mentais
humanos são sistemas funcionais que ocorrem por meio da participação de três principais
unidades funcionais, cuja participação de cada uma se torna necessária para qualquer
atividade mental, sendo elas: a primeira unidade que regula o tono ou a vigília; a segunda
unidade, que recebe, processa e armazena as informações que chegam do mundo externo;
e, a terceira unidade, que programa, regula e verifica a atividade mental.
Essas unidades funcionais também são chamadas de Blocos, sendo que o Bloco I
localiza-se em estruturas subcorticais, ou seja, tronco cerebral, tálamo, hipotálamo e fibras
reticulares. Seu funcionamento de regulação do tônus cortical é pré-requisito para o
funcionamento dos Blocos II ou III, pois, para que os processos mentais ocorram, é
necessário um nível ótimo de atenção.
O Bloco II, por sua vez, é formado pelas áreas auditivas (lobo temporal), área
visual (lobo occipital) e área tátil-cinestésica (lobo parietal), estruturas das regiões laterais do
córtex ocupando a região posterior dos hemisférios cerebrais. Diferentemente do Bloco I,
o Bloco II subdivide-se em zonas primárias, secundárias e terciárias; e qual o
funcionamento destas zonas?
As zonas primárias são encarregadas de receber as informações do mundo externo
e transmiti-las para o cérebro; neste nível, não há análise. A zona primária é circundada pela
zona secundária, que está encarregada de proceder uma primeira análise, sobre o que foi
ouvido, visto ou capturado de algum modo. Já seguindo a hierarquia, tem-se a zona
terciária, que diferentemente da zona secundária, não possui área específica; situa-se na
fronteira dos três córtices, auditivo, parietal e occipital, ou seja, integrando este
funcionamento. Isso faz com que esta seja uma região importantíssima, pois realiza a
síntese das informações, permitindo o funcionamento coordenado de vários analisadores, a
conversão da percepção concreta ao pensamento abstrato: são estruturas essenciais e
especificamente humanas.
O Bloco III ocupa a região anterior do cérebro, chamado de lobo frontal, e é
responsável pela programação, regulação e verificação da atividade. É considerado o
mecanismo regulador mais complexo do cérebro, pois é onde criamos intenções e
formamos planos para serem executados. Divide-se, também, em três zonas, como no
Bloco II, entretanto, em ordem inversa. Ou seja, no Bloco III, os processos se iniciam nas

152
zonas terciárias, que planejam informações necessárias para a execução e verificam a
eficácia da ação, na zona secundária.
Com base nas informações recebidas das zonas terciárias, o Bloco III prepara os
programas de ação, compondo o que Luria (1977,1981) chama de “melodia cinética” do
movimento, referindo-se à passagem gradual e coordenada do movimento voluntário que é
executado pelas áreas pré-motoras da região frontal. A zona primária recebe as informações
das áreas secundárias e as envia para a realização do movimento, última parte do processo.
Pode-se notar o quão complexo é o processo que se inicia desde o momento em que se
captura os sinais que permitem a audição, a visão, o tato etc., até que a elaboração de um
movimento ou fala seja levada a cabo.
A partir do exposto, pode-se dizer que existem algumas leis para a organização do
funcionamento do sistema nervoso, e a que mais interessa, por estar diretamente
relacionada ao objeto deste capítulo, é a primeira delas. Ela é exemplificada por Luria da
seguinte forma: na criança pequena, a formação de zonas secundárias adequadamente
funcionantes não poderia ocorrer sem a integridade das zonas primárias, que constituem a
sua base, e o funcionamento apropriado das zonas terciárias não seria possível sem o
funcionamento das zonas secundárias.
Neste sentido, um distúrbio das zonas inferiores nos primeiros anos de vida levaria,
inevitavelmente, a um desenvolvimento incompleto das zonas corticais superiores. Vigotski
(2018, p.145) sinalizou esse fato formulando a explicação de que a passagem das funções
para os centros superiores enuncia que a linha de interação das zonas corticais vai de
“baixo para cima”.
Diferentemente, no adulto, pelo fato de suas funções psicológicas já estarem
formadas, no caso de haver uma lesão, as zonas corticais superiores assumiriam o controle,
fato este que levou Vigotski a concluir que, neste caso, no estágio tardio da ontogênese, a
linha principal de sua interação das zonas corticais vai de “cima para baixo”, fato
explicitado por Luria (1981, p. 56). Nesse caso, a consciência, a intencionalidade atuam de
modo decisivo no processo de reabilitação, de compensação do que não está íntegro.
A descoberta de que efeitos diferentes, em caso de lesões em áreas similares no
sistema nervoso central, mas em diferentes etapas do desenvolvimento psíquico, é um
aspecto de grande importância para a neuropsicologia moderna pois levou os
pesquisadores à maior compreensão deste complexo sistema levando, como consequência a
melhores possibilidades de reabilitação e organização da consciência.

5. Considerações Finais
Falar de reabilitação é algo que implica a retomada de políticas públicas a respeito,
como é o caso do Estatuto da Pessoa com Deficiência, e este remete à habilitação. Para
tratar da reabilitação de funções que se tornaram comprometidas devido à deficiência, é
necessário que também se considere o passo anterior: a formação delas. (Considera-se que
quando a sociedade precisa que algo conste em lei ou em outros documentos, fica evidente
que, em sua prática, aquela matéria não é garantida para todas as pessoas.)
Num país em que a educação pública básica não é prioridade, tanto que os
resultados de avaliações nacionais e internacionais apontam e posicionam o Brasil nos
últimos lugares dentre tantos outros países, há que se lutar pela formação humana em
patamares mais complexos para todas as pessoas, como já se garantiu a parcelas reduzidas
da humanidade. Quando isto se efetiva, sobretudo para pessoas com deficiências (e com
outros marcadores que as levam a vivenciarem intensamente as desigualdades racial,
socioeconômica, de gênero etc.), falar em reabilitação demanda um esforço coletivo e
continuado.

153
Recuperaram-se orientações de documentos internacionais e, também, a Lei
13.146/2015, para se identificar que há reconhecimento da necessidade da habilitação e da
reabilitação das pessoas com deficiência. As fontes apontam que é essencial que se atue em
favor dos que nasceram com ou adquiriram deficiência ao longo da vida, de modo que
possam ter funcionalidades em suas lidas diárias, tornando-os independentes.
Questiona-se o quanto isso pode ser enganoso, pois não basta que se focalize a
independência, funcionalidade ou a autonomia motora para realização das demandas
primárias de garantia da vida, e da vida em sociedade. É preciso que se reconheça que esse
é um passo inicial, e que se deve mirar na emancipação dos sujeitos por meio de diferentes
vias, sendo a aquisição dos conhecimentos escolares determinante para que
participem/atuem de forma ativa e consciente da vida social, em condições de assumirem
as exigências que se colocam a qualquer ser humano no contexto das relações sociais. O
que está em jogo é a formação multilateral dos sujeitos, na habilitação e na reabilitação.
Para tanto, as pessoas alvo da habilitação e, sobretudo, da reabilitação, precisam ter
direito às suas histórias de vida incluindo, aí, os diagnósticos. Também devem ter
condições de compreender como o que experienciam em seus corpos e psiquismos não se
constituem à parte das relações sociais e das políticas públicas educacionais e de saúde.
Trata-se de uma grande cilada seguir pelo caminho do divórcio do sujeito com o seu
entorno e com o mundo. Para se alcançar a formação ou uma nova formação de
capacidades é necessário o estabelecimento de relações colaborativas com os pares e com
sujeitos mais experientes, em propostas que gerem motivos para seguirem ou
redirecionarem seu desenvolvimento. Mas, como pode ser demonstrado, há que se ter
assegurado em lei os direitos fundamentais à vida e à humanização, e há que se ter
garantido na prática educacional, dentre outras, um atendimento que de fato movimente o
desenvolvimento, visto provocar a aprendizagem.
A reabilitação se constitui, pois, em um processo de individuação e não de mero
resgate de funcionalidades perdidas ou em risco, guardando aspectos diferenciados da
formação, posto que também precisa lidar com os impactos dolorosos das perdas ocorridas
ou em processo. Isso demanda que se trabalhe não somente os indivíduos, mas a
sociedade, que pode constituir barreiras e impedimentos.
Como se pode notar, há um longo trabalho educativo a ser percorrido por aqueles
que defendem o enfrentamento das desigualdades de toda ordem, cujas origens estão,
antes, mais nas relações estabelecidas entre os seres humanos do que em seus organismos.

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Provisória nº 905, de 11 de novembro de 2019, que institui o Contrato de Trabalho Verde
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