CADERNOS DE PSICANALISE - A Via Sensivel Daniel - Kupermann With Cover Page v2
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A viA sensível dA elAborAção. CAminhos dA ClíniCA psiCAnAlítiCA
Daniel Kupermann*
fato de exercer sua arte per via di levare não obriga, evidentemente, a suposição
de que o escultor não contribui com seu talento para transformar a pedra.
Nesse sentido, a aproximação da psicanálise com o campo da criação estética é
“sugestiva”, mas também arriscada. Dela deriva uma série de questões, tanto
ricas quanto embaraçosas. Desde a que indagaria se o psicanalista seria, efeti-
vamente, uma espécie de artista, até a que interrogaria se o ofício psicanalítico
estaria baseado em uma aptidão enigmática e, no limite, intransmissível, como
toda verdadeira vocação.
Porém, a força da metáfora empregada por Freud nos obriga a perguntar,
ao reletirmos sobre os problemas da prática psicanalítica na atualidade, se
trabalhamos, efetivamente, per via di levare, ou se a clínica contemporânea nos
convoca ao questionamento da efetividade dos princípios balizadores da técni-
ca freudiana – escuta lutuante, abstinência e interpretação – na lida com as
formas de sofrimento psíquico manifestadas por um número cada vez fre-
quente de analisandos, severamente comprometidos em sua competência sim-
bólica e elaboradora. Ser psicanalista hoje parece exigir a necessidade de um
gesto iconoclasta para com a igura do psicanalista-escultor, quase tão radical
e urgente quanto o de Laszlo Toth para com a Pietà de Michelangelo.
Análise química?
além daquela que o analista exerce por meio da interpretação (cf. Freud,
1919[1918]). Seria preciso, nos momentos de estagnação desses tratamentos,
incitar o analisando ao enfrentamento do objeto da sua fobia ou do horror ao
ato que o paralisa protelando o término da análise, para retomar, por meio do
incremento da angústia, o luxo produtivo da livre associação.
Encontramos, dessa forma, uma inegável abertura, promovida pelo pró-
prio Freud ainda no início do século passado, para a relexão acerca das trans-
formações no psicanalisar segundo as modalidades de sofrimento e os
imperativos ético-técnicos de cada época. De fato, Freud havia empregado o
dispositivo da técnica ativa anteriormente, no atendimento ao Homem dos
Lobos, cuja publicação só veio à luz nesse mesmo ano de 1918 (Freud,
1918[1914]). Nas observações introdutórias ao seu relato do caso, Freud revela
que determinou uma data para a conclusão do tratamento (sabemos que o fez
no início de 1914, durante o quarto ano da análise, indicando o inal desse
mesmo ano como o seu prazo limite), visando superar as resistências impostas
pela aderência transferencial desse analisando. Dessa maneira, “(...) num perí-
odo desproporcionalmente curto, a análise produziu todo o material que tor-
nou possível esclarecer as suas inibições e eliminar os seus sintomas (...) o
paciente dava a impressão de uma lucidez que habitualmente só é obtida atra-
vés da hipnose” (ibid, p. 24).
Entretanto, apesar da referência à técnica ativa, o teor da conferência de
Freud recai sobre o sentido original do termo “análise”, utilizado para precisar
do que se trata no seu método clínico. A inspiração fora a da análise química,
por meio da qual se decompõe uma forma molar em seus elementos molecu-
lares, até então irreconhecíveis e que, uma vez livres, podem se reagrupar se-
gundo suas ainidades. “Análise” signiica então “dividir ou separar”. Da mesma
maneira, o psicanalista, por meio da interpretação, decompõe o sintoma apre-
sentado pelo paciente neurótico em seus representantes pulsionais recalcados,
liberando a libido para novas conigurações, menos anacrônicas e mais ade-
quadas ao seu estilo de vida contemporâneo (Freud, 1919[1918], p. 202).
E, assim como as composições químicas atendem às forças que regem a
atração molecular, haveria no psiquismo uma tendência a promover novas li-
gações, uma verdadeira “compulsão para a uniicação e a combinação” – atri-
buída a essa “grande unidade a que chamamos ego” – que ocorre “automática
e inevitavelmente” sem que, para isso, o psicanalista tenha que intervir. Justa-
mente pela eicácia dos processos egóicos atuantes no psiquismo do analisan-
do, o analista está liberado de qualquer trabalho de ligação, ou seja, de
“psicossíntese” (ibid, p. 203-204). Desse modo, o tratamento psicanalítico seria
balho muitas vezes silencioso e paciente para que a resistência pudesse dar
lugar à emergência de novas associações; tampouco apenas por meio da faca
amolada da interpretação e da fé cega nos processos egóicos de ligação atuan-
tes no analisando, como na metáfora da análise química. Sua efetividade reside
na via sensível da elaboração, o que implica a disponibilidade do psicanalista
para se fazer presente no plano de afetação que se estabelece no setting, e que
conigura a “parte do trabalho que efetua as maiores mudanças no paciente”
(Freud, 1914, p. 203).
Nesse sentido, pode-se considerar que a emergência do conceito de elabo-
ração na teoria da técnica freudiana se impõe como um verdadeiro divisor de
águas, atendendo à exigência de se repensar o manejo dos quadros diferencia-
dos de sofrimento psíquico e à necessidade de se relativizar a primazia do
princípio de abstinência, atribuindo-se uma atenção especial à afetividade e à
dimensão estética da clínica (cf. Kupermann, 2003). A publicação de Linhas
de progresso na terapia psicanalítica, em 1918, é herdeira dessa problemática,
bem como do diálogo com as inquietações trazidas ao campo psicanalítico por
Sándor Ferenczi.
Por seu turno, Ferenczi (1926) percebeu rapidamente que o incremento
da excitação promovido pela técnica ativa junto a certos analisandos só pode-
ria mesmo ter como efeito uma adesividade transferencial de tonalidade para-
nóica que, longe de conduzir o tratamento a termo, tendia a torná-lo
interminável, como aconteceu com o Homem dos Lobos. As injunções e as
proibições enunciadas pelo psicanalista o alçavam a uma posição ainda mais
idealizada que aquela atribuída pelo analisando que sofria de uma angústia de
abandono traumática. Foi justamente a percepção de que lidava com subjetivi-
dades severamente comprometidas pelo sofrimento psíquico que permitiu
com que Ferenczi formulasse um estilo clínico adequado ao manejo transfe-
rencial com esses analisandos.
Dessa forma, a técnica psicanalítica tornava-se “elástica”, no sentido de
que o analista, reverberando empaticamente o sofrimento apresentado por seu
analisando, buscava promover um setting suicientemente adaptado às suas
necessidades regressivas e à expressão da sua criatividade (Ferenczi, 1928). O
suporte afetivo oferecido pelo psicanalista dava voz ao infantil em estado la-
tente (e não recalcado) em seu analisando, até então bem protegido por iden-
tiicações estáticas, favorecendo a expressão do horror traumático, mas também
do gesto lúdico, tão frequentes nas experiências então inovadoras da psicaná-
lise de crianças.
Inspirado nas modiicações do método exigidas pela clínica com crianças,
Daniel Kupermann
email: dkupermann@usp.br
Referências
Breuer, Joseph; Freud, Sigmund (1893-95). Estudos sobre a histeria. Rio de Janeiro:
Imago, 1980. p. 41-59. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas
de Sigmund Freud, 2).
Chaves, Ernani. A paciência no trabalho analítico. Pulsional - revista de psicanálise,
ano 14, n. 147, p. 5-11, 2001.
Ferenczi, Sándor. (1909). Transferência e introjeção. In:______. Psicanálise 1. São
Paulo: Martins Fontes, 1991. (Obras completas). p. 77-108.
______. (1919). Diiculdades técnicas de uma análise de histeria. In: ______.
Psicanálise 3. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 1-7. (Obras completas).
______. (1926). Contra-indicações da técnica ativa. In: ______. ______. São Paulo:
Martins Fontes, 1993. p. 365-375. (Obras completas).
1
Sobre a ética do cuidado na clínica psicanalítica, ver também Figueiredo (2009) e Maia
(2009).