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Cultura Histórica e Cultura Escolar

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DOI: 10.5216/hr.v17i1.

21686

Cultura histórica e cultura escolar:


diálogos a partir da educação histórica

Maria Auxiliadora Moreira dos Santos Schmidt*


dolinha08@uol.com.br

Resumo: O campo da Educação Histórica se consolidou como uma das importantes


áreas de investigação sobre ensino de História. O artigo propõe uma reflexão acerca
da relação dialógica entre categorias que têm sido tomadas como referências para
investigações nessa área. Abordar a questão do ensino de História, na perspectiva
da Educação Histórica significa procurar entender o emaranhado relacional
construído pelas e nas relações entre a cultura histórica e a cultura escolar, o
que pressupões desvelar epistemologicamente conceitos que afetam a teoria e
a prática da aprendizagem e, portanto, do ensino nessa disciplina. A análise de
resultados de investigações realizadas no campo da Educação Histórica indica
que esse processo necessita ser apreendido a partir da compreensão do contexto
contemporâneo, levando-se em conta o quadro de tendências políticas hegemônicas,
a reconceitualização do modelo de democracia, a lógica do projeto neoliberal e
seu determinismo globalizador, a revolução tecnocientífica e a chamada “nova era
do conhecimento”.
Palavras-chave: Educação Histórica; Cultura histórica; Cultura escolar.

Introdução
Em publicação datada de 1987 e já divulgada no Brasil (2010b), Jörn
Rüsen lançou um desafio: “Com que forma de investigação histórica, com que
estrutura teórica e abordagem metodológica a didática da história poderia
ser tratada como uma parte homogênea dos estudos históricos?” (RÜSEN,
2010b, p.39). Esse tipo de desafio foi assumido desde a década de 1980, pio-
neiramente, por pesquisadores da Alemanha e Reino Unido (Fuentes, 2002),
expandindo-se a partir do século XXI a outros países do mundo, inclusive

* Professora do Programa de Pós Graduação em Educação da UFP. Coordenadora do Laboratório de


Pesquisa em Educação Histórica-PPGE-UFPR. Bolsista de produtividade CNPq.

Recebido em 23 de dezembro de 2011


Aprovado em 03 de fevereiro de 2012
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no Brasil. Esse conjunto de investigações constituem, hoje, o campo da


Educação Histórica e onde se inclui o grupo de investigadores do Laboratório
de Pesquisas em Educação Histórica, da Universidade Federal do Paraná.
Assumindo também o desafio, esse grupo de investigadores tem
buscado alternativas metodológicas de pesquisa, particularmente oriundas
da área da pesquisa qualitativa educacional, bem como referenciais teóricos
que possam, de alguma forma, contribuir para a construção de uma estru-
tura teórica e metodológica de um novo paradigma da didática da história.
Assim, as pesquisas têm procurado apontar algumas questões que envolvem
a relação entre cultura histórica e a cultura escolar, incluindo também nessa
última, os processos constitutivos da cultura da e na escola, relacionados à
experiência histórica e concreta dos sujeitos, no interior dos processos de
escolarização. (FOURQUIN, 1993).
De modo geral, essas investigações encontram guarida nos fundamen-
tos da pesquisa educacional, de natureza qualitativa e focam seu olhar nos
contextos de escolarização, formal e informal. Ademais, e ainda em termos
gerais, os investigadores têm procurado olhar os sujeitos “no universo esco-
lar”, tendo como referência fundamental a categoria de cultura e abordagens
sociológicas e históricas, abrindo possibilidades de se encontrar, não o aluno,
mas a criança, a partir de seu modo de viver condição infantil, e o jovem, a
partir do seu modo de viver a condição juvenil.(MARGULIS/URRETI, 2000).
Williams (1961) entende a cultura como um processo integral de vida,
de caráter social, que precisa ser compreendido numa perspectiva relacional,
com ênfase na interdependência entre todos os aspectos da realidade social
e na devida dinâmica da mudança social. Assim, a cultura não se situa como
elemento absolutamente superestrutural, nem pode ser entendida como mero
reflexo da infraestrutura, mas necessita ser apreendida no e a partir de pro-
cessos relacionais. A perspectiva conceitual que referencia a obra desse autor
incorpora a cultura numa totalidade, como resultado da condição humana
universal, como um conjunto ou produto da experiência humana, como um
processo da tradição seletiva e como a ação humana na vida prática. Nesse
sentido, entende-se a cultura como algo vivido de um momento e um lugar;
a cultura como produto histórico de um determinado período e sociedade e
a cultura como seleção intencional da história da humanidade. Assim, pode-
-se falar em elementos da cultura, referindo-se aos artefatos, idéias, signos
e símbolos, as linguagens e tudo o que permite e realiza as mediações dos e
entre sujeitos, em relações sociais historicamente determinadas, onde estes
sujeitos são produto e também produtores de cultura, podendo admitir-se

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também a existência de abordagens categoriais da cultura, tais como a cultura


histórica e a cultura escolar.
A potencialidade categorial desse conceito de cultura remete também
à possibilidade de se falar culturas específicas, relacionadas com os proces-
sos formativos da consciência histórica, integrados à dinâmica da cultura
histórica e da cultura escolar. Na perspectiva adotada por Forquin (1993), a
cultura escolar pode ser definida como o conjunto dos conteúdos cognitivos
e simbólicos que, selecionados, organizados, normatizados, rotinizados, sob
o efeito dos imperativos de didatização, constituem habitualmente o objeto
de uma transmissão deliberada no contexto das escolas e da cultura da esco-
la, sendo essa ultima a forma específica de realização da cultura escolar no
interior da própria escola. Considerando-se que a investigação em educação
histórica inscreve-se no cruzamento de, principalmente, esses dois quadros
teóricos (Barca, 2005) entende-se que a partir deste determinado conceito
de cultura podem ser articulados os dois fundamentos teóricos da pesquisa
em educação histórica, o fundamento da filosofia da História, concernente
à natureza do conhecimento histórico, e o fundamento da Educação, rela-
cionado aos princípios e finalidades dos processos educacionais.
Em sua especificidade, as investigações e reflexões que têm ocorrido
no campo da Educação Histórica circunscrevem-se às questões relacionadas
aos estudos da consciência histórica como objeto e objetivo da didática da
História e, particularmente, da aprendizagem histórica. Nesse sentido, a cons-
ciência histórica passa a ser uma categoria que serve para a autoexplicação da
História como disciplina escolar, para a sua identificação como uma matéria
específica e com uma metodologia própria. É por esse pressuposto que se
admite uma relação orgânica entre a cultura escolar ensino de História e a
cultura histórica. Segundo Jung y Staehr (1998), a categoria cultura histórica
foi introduzida por Jörn Rüsen no debate sobre a didática da história e isso
permitiu uma redefinição da maneira pela qual essa categoria vinha sendo
discutida e utilizada por alguns didaticistas alemães.
Para Rüsen, a cultura histórica é a própria memória histórica, exercida
na e pela consciência histórica, a qual dá ao sujeito uma orientação temporal
para a sua práxis vital, ao mesmo tempo, que lhe oferece uma direção para
a atuação e autocompreensão de si mesmo, ou seja,

Da consciência histórica há apenas um pequeno passo para a cultura


histórica. Se se examina o papel que tem a consciência histórica na vida
de uma sociedade, aparece como uma contribuição cultural fundamen-
talmente específica que afeta e influi em quase todas as áreas da práxis

Maria Auxiliadora Moreira dos Santos Schmidt. Cultura histórica e cultura escolar
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da vida humana. Assim, a cultura histórica pode ser definida como uma
articulação prática e operante da consciência histórica na vida de uma
determinada sociedade. (RÜSEN, 1994, p.3).

Esses referenciais permitem a construção de um diálogo específico


entre a cultura histórica e os elementos da cultura escolar, pertinentes ao
ensino da História, representados pelos “textos visíveis”, como os currículos
e manuais, bem como pelos “textos invisíveis”, como as práticas e usos esco-
lares, constitutivos do “código disciplinar da História” e que indicam que a
História, como matéria de ensino, é resultado de

una tradición social que se configura históricamente y que se compone


de un conjunto de ideas, valores, suposiciones e rutinas, que legitiman
la funcion educativa atribuída a la História y que regulam el orden de la
práctica de su enseñanza. Alberga, pues, las especulaciones y retóricas
discursivas sobre su valor educativo, los contenidos de sua enseñanza y
los arquetipos de práctiva docente, que se suceden en el tiempo y que se
consideran, dentro de la cultura dominante, valioso e legitimo. En suma,
el código disciplinar comprende lo que se dice acerca del valor educativo
de la Historia, lo que se regula expresamente como conocimiento his-
torico y lo que realmente se enseña en el marco escolar. (FERNANDEZ
CUESTA, 1998, p.8-9).

O “código disciplinar da História”, pertinente à cultura escolar e pen-


sado a partir do quadro teórico da Educação Histórica, possui uma relação
intrínseca e dinâmica com a cultura histórica de determinada sociedade,
tornando-se imprescindível explicitar certas contradições e tensões cons-
titutivas dessa relação.

A cultura escolar e sua relação com a cultura histórica

Segundo Juliá (1995), a cultura escolar necessita ser apreendida,


não somente a partir de indícios encontrados em documentos e fontes
relacionadas com a organização burocrática da escola, mas também tem
que ser procurada nos indícios heterogêneos e mutantes da prática educa-
tiva. Para esse autor, de um lado, encontra-se a cultura escolar evidenciada
nas normas e textos relativos ao controle do cotidiano escolar, de outro, a
multiplicidade das práticas cotidianas. Trata-se do que Rockwell e Ezpeleta
(2007, p.133) chamam de “a história documentada da escola” que convive
com a “história não documentada” da escola e ambas precisam ser olhadas

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em sua diversidade, sempre na perspectiva da mudança e tomando a esco-


la como uma construção social, ou seja, que ”cada escola, mesmo imersa
num movimento histórico de amplo alcance, é sempre uma versão local e
particular desse movimento.”
Nesse sentido, para Rockwell (2011), enquanto as normas e textos da
cultura escolar articulam-se e evidenciam uma escola praticamente imune
às contradições e tensões do mundo exterior, a cultura da escola, isto é, as
práticas cotidianas da escola que as reinterpreta, de maneira multifacetada,
podem ser reveladoras dessas tensões e contradições. Segundo essa autora:

-- Há normas não escritas (as vezes são as mais efetivas);


-- Há práticas discursivas e discursos práticos;
-- Há práticas que fixam a norma (escrita ou não e vigiam a sua
aplicação);
-- Algumas normas, produto de práticas, refletem consensos amplos;
-- Muitas práticas, derivadas das normas são impostas por coerção;
-- Muitas normas e práticas têm escassa relação umas com as outras.
(ROCKWELL, 2011, p.160-161).

A partir desses pressupostos, entende-se que as reflexões e investiga-


ções sobre a melhoria da qualidade do ensino e a aprendizagem da história
necessitam levar em conta a interpretação que os sujeitos fazem da realidade
escolar, buscando entender questões como o desenho e desenvolvimento de
currículos na sala de aula, a análise do comportamento e do oficio do pro-
fessor, o estudo dos conceitos e elementos relativos à natureza da didática da
História e a interpretação de concepções históricas de alunos e professores.
Cita-se, por exemplo, a pesquisa realizada por Peter Lee, Rosalyn Ashby e
Alary Dickinson, da universidade de Londres, na década de noventa, conhe-
cido como Projeto CHATA: Concepts of history and teaching approaches at
key stage 2 and 3. Essa pesquisa foi organizada em três fases, que abrangiam
desde a investigação das ideias dos alunos sobre processos cognitivos da
história, sobre explicação causal e a interpretação das evidências históricas,
passando pelo desenvolvimento de modelos didáticos para o ensino da his-
tória, chegando até à análise das relações existentes entre as estratégias de
ensino e aprendizagem, os contextos curriculares e a compreensão dos alunos
acerca de alguns processos mentais da consciência histórica. Um resultado
interessante dessa investigação pode ser observado no quadro

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Nivel Definição
O passado vem como dado Os alunos não são capazes de re-
conhecer nenhuma diferença de
enfoque entre os relatos propostos
O passado é inacessível Os alunos são capazes de aten-
tar para as diferenças, mas
consideram-nas como resultado
da falta de acesso ao passado
O passado é o que determina o relato As diferenças entre os relatos pro-
postos são resultado de lacunas
de informação ou de erros.
O passado é explica- Os alunos percebem que as diferenças
do de forma parcial são produto de análises parciais e não
somente de falta de informações.
O passado é selecionado e organi- Os alunos consideram que a visão
zado a partir de um ponto de vista do autor pesa de forma substan-
cial em cada um dos relatos.
O passado é uma reconstrução, As diferenças estão na natu-
de acordo com um critério reza própria do sucesso na
construção do relato.
( Fonte: FUENTES, 2002, p. 59)

Investigações como essas podem ser indiciárias de formas e tipos de


consciência histórica presentes nas sociedades, podendo fornecer pistas para
a melhoria da qualidade do ensino de História.

A cultura histórica como referência para a aprendizagem histórica

A cultura histórica é uma categoria de análise que permite com-


preender a produção e usos da história no espaço público na sociedade
atual. Trata-se de um fenômeno do qual fazem parte o grande boom da
História, o sucesso que os debates acadêmicos tem tido fora do circulo de
especialistas e a grande sensibilidade do público face o uso de argumentos
históricos para fins políticos. Desse processo, fazem parte os embates,
enfrentamentos e aproximações entre a investigação acadêmica, o ensino
escolar, a conservação dos monumentos, os museus e outras instituições,
em torno de uma aproximação comum do passado. Assim, para Rüsen
(1994, p.2),

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a cultura histórica contempla as diferentes estratégias de investigação


científico-acadêmica, da criação artística, da luta política pelo poder,
da educação escolar e extra escolar, do lazer e de outros procedimentos
da memória histórica pública, como concretudes e expressões de uma
única potência mental.

A partir das funções da cultura histórica em determinadas socieda-


des, esse autor apresenta suas dimensões principais: a estética, a política, a
cognitiva e a dimensão ética. Na dimensão estética da cultura histórica, as
rememorações históricas se apresentam, sobretudo, sob a forma de criações
artísticas, como as novelas e dramas históricos. Não se trata de encontrar o
histórico no estético, mas a presença do estético no histórico, tornando-o
visível como algo relevante para o trabalho rememorativo da consciência
histórica.
A dimensão política da cultura histórica baseia-se no princípio de que,
qualquer forma de dominação necessita da adesão e/ou consentimento dos
dominados e a memória histórica tem um papel importante nesse processo,
particularmente devido à necessidade de legitimação para o consentimento.
É a dimensão política da cultura histórica que

cimenta o domínio político mentalmente, já que o marca nas construções


de sentido da consciência histórica que servem para a orientação cultural
na vida prática atual. Esse entrelaçamento se estende até as profundezas
da identidade histórica. A construção da identidade se realiza geralmente
em meio ao poder e da dominação, e isso tanto na intimidade dos sujeitos
individuais como na relação entre eles. (RÜSEN, 1994, p.18).

A dimensão cognitiva da cultura histórica se realiza, principalmente,


por meio da ciência histórica e de seus processos de regulação metódica
das atividades da consciência histórica, ou seja, “trata-se do princípio de
coerência do conteúdo, que se refere à fiabilidade da experiência histórica e
ao alcance das normas utilizadas para a sua interpretação” (RÜSEN, 1994,
p.20). Finalmente, a dimensão ética da cultura histórica impõe novas ques-
tões para o historiador, particularmente face o desafio das inseguranças
das identidades históricas, as pressões da diversidade cultural, as críticas às
tradições ocidentais, no momento histórico da era da globalização, quando
um novo tipo de humanismo faz-se necessário. (RÜSEN, 2010c).
Sistematizando suas reflexões sobre a cultura histórica, Rüsen afirma
que, na sociedade atual, a tendência à instrumentalização tem diminuído
as possibilidades de articulação entre as diferentes dimensões, fazendo com

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que, muitas vezes, um dos modelos se torne mais decisivo na construção


da consciência histórica. Isso pode provocar uma fragilização da força
argumentativa do uso metodológico do intelecto ao abordar a experiência
do passado em relação à expectativa do futuro, sempre a partir do presen-
te, reduzindo, assim, as potencialidades da aprendizagem histórica para a
cidadania. Um exemplo interessante dessa tendência à instrumentalização
pode ser encontrado nos processos atuais de escolha dos manuais didáticos
pelos professores de história da escola básica brasileira, no âmbito das dire-
trizes relacionadas à atual política educacional e ao Programa Nacional do
Livro Didático. Depois de serem avaliados por um grupo de especialistas,
os manuais são encaminhados aos professores, juntamente com um guia
onde são apresentadas as informações sobre como já foi feito o processo de
avaliação, incluindo os critérios utilizados para esse fim. Cabe aos professores
“a escolha” da coleção que melhor se adaptar às suas atividades de docência.
Revela-se, aqui, um momento interessante e revelador de um processo de
divisão técnica do trabalho, no qual o historiador/professor é expropriado
da posse dos meios pelos quais ele poderia, por si mesmo, avaliar e, a partir
de sua própria avaliação, realizar o processo de escolha do livro. É nesse
contexto que pode ser admitido um deslocamento da natureza da cultura
histórica, em seu diálogo com a cultura escolar

O descolamento no interior da dimensão cognitiva da cultura histórica como um


problema da didática da história

No interior do quadro de referências explicitado pode-se levantar a


hipótese da existência de um processo de descolamento no interior da di-
mensão cognitiva da cultura histórica, devido ao processo de especialização
da História como ciência, provocando a separação entre quem pesquisa – os
historiadores; e quem ensina – “os outros.”
A consolidação da História como ciência excluiu a Didática da
História do centro da reflexão do historiador sobre sua própria profissão,
sendo substituída pela metodologia da pesquisa histórica, provocando uma
separação entre o ensino da História e a sua pesquisa. Durante o processo
de ‘cientifização’ da História o ensino passou a ser visto como atividade de
menor valor, secundária, de mera reprodução do saber acadêmico, com
objetivo de cumprir as finalidades pressupostas nos processos e formas de
escolarização de cada sociedade. Ao ato de ensinar História e ao produto
de tal ato não se atribuía o status de ciência, pois enquanto o conhecimento
científico era produzido exclusivamente pelos profissionais da História, a

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tarefa da didática da História era transmitir este conhecimento sem participar


da criação do discurso” (Rüsen, 2010b, p.25). Essa separação acabou deixando
um vazio para o conhecimento histórico acadêmico, o vazio de sua função,
pois a partir do “século dezenove, quando os historiadores constituíram
sua disciplina, eles começaram perder de vista um princípio importante,
qual seja, que aquela História precisa estar conectada a necessidade social
de orientação da vida dentro da estrutura temporal” (RÜSEN, 2010b, p.
28). Justificava-se a existência do conhecimento histórico erudito para que
esse servisse como base para o ensino, todavia não se justificava o ensino
da História, porque sua função para a vida prática havia se perdido. Essa
desconexão da disciplina História de um sentido prático, se por um lado
ofereceu-lhe o status de disciplina erudita, por outro lado gerou o vazio da
função do ensino de História na Escola. Tal ponto de vista chegou ao ápice
em meados do século XX

Perguntas relativas à inter-relação entre pesquisa histórica e o mundo


vivido (da experiência) (Lebenswelt) deste investigador, como também to-
das as perguntas que interessam educação histórica, foram banidas como
uma disciplina separada, extra-histórica: consequentemente, a História
formal não se direcionou diretamente a essência do conhecimento histó-
rico escolar. Os historiadores consideraram que sua disciplina podia ser
legitimada pela mera existência e compararam-se os estudos históricos e
sua produção de conhecimento a uma árvore que produz suas folhas. ‘A
árvore vive contanto que tenha folhas e é seu destino viver e ter folhas’.
Recusou-se a dar para História qualquer uso prático ou real função nas
áreas culturais, onde a História pode servir como um meio para fornecer
explicitamente uma identidade coletiva e para uma orientação para vida”
(RÜSEN, 2010b, p.29).

Constata-se, gradativamente, que a separação entre a Didática da


História e a História acadêmica, foi contribuindo para a formação de um
“código disciplinar” próprio da História (FERNANDEZ CUESTA, 1998), o
que empurrou as questões do ensino e aprendizagem da História tenden-
cialmente para o âmbito da cultura escolar e foi a partir desse reajustamento
que a dimensão cognitiva passou a se articular com a dimensão política da
cultura histórica. Nesse processo, as questões relacionadas à aprendizagem
histórica e, portanto, ao seu ensino, saíram da pauta dos historiadores e en-
traram, prioritariamente, na pauta das teorias educacionais e, portanto, das
formas e funções da escolarização, identificadas com as relações de poder
presentes nas políticas educacionais de cada momento histórico.

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Em decorrência, pode-se afirmar que as problemáticas e crises que


ocorrem na dimensão cognitiva da cultura histórica passam a pertencer
mais ao âmbito das crises da escolarização do que da própria ciência. Essa
crise vem se acentuando, na medida em que novos desafios se colocam aos
processos de mediação entre a cultura histórica e a cultura escolar, como as
relações entre as novas tecnologias da informação e da comunicação e os
usos públicos do conhecimento histórico.

A educação histórica como uma possibilidade de interdependência entre as dimensões


da cultura histórica e da cultura escolar

A perspectiva da definição e constituição do campo da Educação


Histórica tem suas raízes nas pesquisas que foram e continuam a ser feitas,
no sentido de se recolocar o referencial da aprendizagem histórica na pró-
pria epistemologia da Historia. Essas pesquisas, como as realizadas por Lee
(2005; 2006; 2008) levantaram contrapontos a outras que indagavam o que
é aprender e como é a aprendizagem histórica, e que eram centradas nos
referenciais da psicologia, particularmente a psicologia genética. Segundo
Barca (2005, p. 15),

nestes novos estudos, os investigadores têm centrado a sua atenção nos


princípios, fontes, tipologias e estratégias de aprendizagem em Historia,
sob o pressuposto de que a intervenção na qualidade das aprendizagens
exige um conhecimento sistemático das ideias dos alunos e dos pro-
fessores , por parte de quem ensina. A análise destas ideias implica um
enquadramento teórico que respeite a natureza do saber histórico e que
de refletir-se, do mesmo modo, na aula de História.

Tendo em vista a necessidade de inserir a historicidade da aprendi-


zagem no âmbito dos processos de escolarização, no Grupo de Educação
Histórica da UFPR, a fundamentação da educação histórica encontra guarida
também em teorias educacionais que procuram entender o significado dos
processos de escolarização, particularmente no que se refere aos processos
de ensino e aprendizagem, face ao declínio da escola como instituição com
a “função de”, para entendê-la como o espaço da experiência (individual
e social) dos sujeitos com o conhecimento, na esteira dos estudos desen-
volvidos por investigadores como Charlot( 2000), Dubet, (2006), Dubet;
Martuccelli,(1998). A partir dessas concepções, amplia-se o conceito de
“escola” para todo ambiente em que pode ocorrer a relação com o conheci-
mento. Desse princípio decorrem alguns pressupostos importantes.

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Um primeiro pressuposto é o de que o professor (historiador) não


pode, em hipótese alguma, ser um mero reprodutor/transmissor, deposita-
dor de conhecimentos, mas necessita estabelecer, em sua profissionalização,
uma relação orgânica entre ensino e pesquisa. Essa relação não implica
em transformar ensino em pesquisa, mas entende que a articulação entre
a forma pela qual cada um se pensa como professor e a condição de vi-
ver a atividade de professor é produzida historicamente. Neste sentido, é
importante que se busque superar a lógica perversa da divisão técnica do
trabalho, que separou, historicamente, aqueles professores que são auto-
rizados a produzir conhecimento, daqueles a quem é permitida apenas a
sua transmissão.
Outro pressuposto é o da necessidade de se entender a consciência
histórica de alunos e professores como produções históricas também rela-
cionadas à cultura escolar e, assim, procurar apreendê-los como construções
históricas, sociais e culturais, entendendo as suas aprendizagens históricas
também a partir das condições históricas e objetivas em que eles constroem
a si mesmos e, portanto, da práxis, ou seja,

como revelação do segredo do homem como ser ontocriativo, como


ser que cria a realidade (humano-social) e que, portanto, compreende
a realidade (humana e não humana, a realidade na sua totalidade). A
práxis do homem não é atividade prática contraposta à teoria; é deter-
minação da existência humana como elaboração da realidade. (KOSIK,
1976, p. 202).

Nessa direção, é válido concluir que a História e seu ensino não podem
ser considerados como a aquisição de fatos ou conteúdos que mostrem os
acontecimentos da humanidade através dos séculos. Ao contrário, assume-se
o pressuposto fundamental de que a História como ciência é uma modalidade
específica de conhecimento que, segundo Rüsen, emerge da carência de todos
os homens, “que agem e sofrem as consequências das ações dos outros, de
orientar-se em meio às mudanças que experimentam em seu mundo e em
si mesmos”. (RÜSEN, 2001, p.12)

Considerações finais

Abordar a questão do ensino de História, na perspectiva da Educação


Histórica significa procurar entender o emaranhado relacional construído
pelas e nas relações entre a cultura histórica e a cultura escolar, o que pressu-
põe desvelar epistemologicamente conceitos que afetam a teoria e a prática

Maria Auxiliadora Moreira dos Santos Schmidt. Cultura histórica e cultura escolar
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da aprendizagem e, portanto, do ensino dessa disciplina. Esse processo


necessita ser apreendido a partir da compreensão do contexto contemporâ-
neo, levando-se em conta o quadro de tendências políticas hegemônicas, a
reconceitualização do modelo de democracia, a lógica do projeto neoliberal
e seu determinismo globalizador, a revolução tecnocientífica e a chamada
“nova era do conhecimento”.
Um grande desafio nos ronda, que é o de qualificar a aprendizagem
e o ensino de História na sua forma escolar, de modo a fazê-lo contribuir
para atuar sobre “as determinações de sentido do agir, dotá-lo da capacidade
de durar e de resistir na experiência possível da “falta de sentido” (RÜSEN,
2001, p.173). Entre outras questões, torna-se importante levar em conta a
pergunta – o que produz a escola e para quê?. Um passo nessa direção é levar
em consideração o diálogo entre a cultura escolar e a cultura histórica, numa
pauta onde esteja presente também a cultura dos sujeitos que vivem e atual
no universo escolar. Na perspectiva da Educação Histórica, a relação entre
a cultura histórica e a cultura escolar assume que o objeto e o objetivo da
aprendizagem histórica é o desenvolvimento de uma consciência histórica e
isto presume que se tome a cultura experiencial dos sujeitos como categoria
mediadora entre a sua condição e a consciência histórica, articulando-a com
os superávits de sentido do agir humano viabilizadores da utopia de uma
cidadania revolucionária.

Historical culture and scholar culture: dialogues from historical


education

Abstract: The field of Historical Education has been consolidated us one of the
important areas of investigation about History teaching. This article suggests a
reflexion about the dialogical relationship among categories which have been
considered us references for the investigations in this area. Approaching the teaching
of History questions in the Historical Education perspective means to look for to
understand which is built by and in the relationship between the historical culture
and the scholar culture. It presupposes to clarify concepts which affect the learning
theory and practice and so the History teaching. The analysis of the investigations
results which have been made in the History Education field indicate that this
process need to be taken from the comprehension of the contemporary context,
taking into account the hegemony of the political trend, the reconceptualization of
the democracy model, the neoliberal projetct logic and its globalizing determinism,
the technico-scientific revolution and so called “new era of knowledged”.
Key words: Historical Education, Historical culture, Scholar culture.

Hist. R., Goiânia, v. 17, n. 1, p. 91-104, jan./jun. 2012


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