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Os Ratos

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OS RATOS E OS RASTROS

A construção da realidade urbana através das palavras 

Débora Grando Schöffel

Setembro de 2016
OS RATOS E OS RASTROS

A construção da realidade urbana através das palavras 

Dissertação apresentada ao Programa


de Pesquisa e Pós Graduação em
Arquitetura - PROPAR – da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, como
requisito parcial para obtenção do título
de Mestre em Arquitetura

Orientadora: Profa. Dra. Andréa Soler


Machado

Porto Alegre

Faculdade de Arquitetura

2016

Débora Grando Schöffel

ii 
 
OS RATOS E OS RASTROS

A construção da realidade urbana através das palavras

Esta dissertação foi julgada adequada para


a obtenção do título de Mestre em
Arquitetura e aprovada em sua forma final
pelo Orientador e pela Banca Examinadora.

Orientador: __________________________________
Dra. Andrea Soler Machado UFRGS
Doutor pela UFRGS - Porto Alegre, Brasil

Banca Examinadora:

Prof. Dra. Daniela Marzola Fialho, UFRGS


Doutor pela UFRGS - Porto Alegre, Brasil

Prof. Dr. Fernando Freitas Fuão, UFRGS


Doutor pela Universidad Politécnica de Cataluña

Prof. Dr. Luís Henrique Haas Luccas


Doutor pela UFRGS - Porto Alegre, Brasil

Coordenador do PROPAR: __________________________________

Prof. Dra. Claudia Piantá Costa Cabral

iii 
 
 

Dedico este trabalho 
Ao meu pai Rubem Schöffel, 
À minha mãe Adriana Grando Schöffel, 
pelos ensinamentos e, principalmente, pelo exemplo de vida. 

   

iv 
 
AGRADECIMENTOS

À  CAPES  bela  bolsa  e  pelo  suporte  para  a  realização  deste 


trabalho.  

À professora Dra. Andrea Soler Machado, orientadora, pela 
orientação,  ensinamentos,  apoio,  incentivo  e 
tranquilidade  transmitida  quando  estive  sob 
sua  orientação,  contribuindo  para  o  resultado 
final obtido.  

À  professora  Dra.  Daniela  Marzola  Fialho,  pelas  suas 


pertinentes  observações  e  contribuições  que 
proporcionaram melhorias ao trabalho.  

Aos professores Fernando Freitas Fuão e Luís Henrique Haas 
Luccas,  pela  disposição  de  participarem  da 
banca. 

Ao  Programa  de  Pós‐graduação  em  Arquitetura  da 


Universidade  Federal  do  Rio  Grande  do  Sul  – 
PROPAR ‐ UFRGS, pela acolhida.  

À  Melina,  pelos  dias  de  companhia  e  carinho  durante  a 


escrita da dissertação.  


 
RESUMO

Dyonelio Machado, autor do romance “Os Ratos”, destaca-se por ter rompido
com as estruturas da literatura gaúcha e abandonado o mito do herói a cavalo para
destacar a essência urbana da capital gaúcha. O escritor usava de sua persuasão para
que os leitores o compreendessem, sabia que jogava com o mundo da literatura, e de
certa forma ressentia-se com a incompreensão da crítica, vigiada de perto pela censura.
Naziazeno, personagem principal da narrativa, apresenta sua origem na
propriedade rural, mas vive agora preso à cidade e ao seu ritmo feroz metropolitano.
Anda por ruas, pega o bonde, trabalha em uma repartição pública e tem seu olhar
lançado para o passado volta e meia, lembrando-se da sua infância e de como a cidade
em que cresceu era diferente em vários sentidos da que vive.
O objetivo do trabalho é discutir as descrições urbanas encontradas em “Os
Ratos”, a partir do método da nova História Cultural cujos princípios, destacam-se os
argumentos afirmando que o mundo só é percebido como representação através de
uma estrutura de convenções, esquemas e estereótipos culturalmente construídos. O
real não deixará de ser real, pois é exatamente a ficcionalidade que garante a identidade
às relações sociais, configurando o real e o imaginário não como coisas opostas, mas
sim complementos indispensáveis para a forma de existência da vida social.
Esta estratégia mostra como retirar o melhor proveito do cruzamento das
imagens e os discursos das cidades, gerando assim um aprofundamento nas relações
literatura e história, além da base que é a cidade, o contexto urbano e suas
transformações. As narrativas literária e histórica trazem discursos que ajudariam a
remontar a realidade urbana. Tratando-se de convencer o leitor e transporta-lo para um
outro tempo.
O que torna o romance algo a mais do que um simples relato, é que o autor
procura compreender a cidade retratando as mudanças econômicas e estruturais, pois
passava por um período de efervescência e modernização. Devido a sua visão sensível
diversos aspectos intrínsecos ao meio urbano, que se entrelaçam na transformação e
modernização da cidade aparecem no romance de Dyonelio Machado. Não apenas esta
obra, mas diversas obras de literatura podem ser usadas como fonte de pesquisa e
ajudaram a compreender novos pontos da cidade, que nem sempre ficam expressos na
história e complementam as buscas dos Arquitetos e Urbanistas na construção do
imaginário social de uma época.

Palavras-chave: Dyonelio Machado, Literatura, Os Ratos, Percepção urbana.

vi 
 
ABSTRACT

Dyonelio Machado, author of the novel “Os Ratos”, stands out for having broken
with the literary structures of the Brazilian Gaucho literature and for abandoning the myth
of the hero on horseback to highlight the urban essence of the Gaucho capital, Porto
Alegre. This writer used his persuasive ways for readers to understand him, he knew
that he was playing with the literary world, and in a certain way he was resentful of the
critical incomprehension, criticism being closely watched by censorship.
Naziazeno, the narrative’s main character, has an origin in the rural propriety, but
he now lives stuck to the city and to its metropolitan fierce rhythm. He walks through the
streets, takes the tram, works in a public repartition and now and then looks to the past,
remembering of his childhood and of how the city in which he grew up was in many ways
different from the one in which he lives.
This work’s aim is to discuss the urban descriptions found in “Os Ratos” according
to the Cultural History method, among whose principles stand out the arguments that
affirm that the world is only perceived as a representation through a structure of culturally
constructed conventions, schemes and stereotypes. The real will not stop being real,
because it is exactly fictionality that guarantees identity to social relations, configuring
the real and the imaginary not as opposed things but as indispensable complements to
the form of existence of social life.
This strategy shows how to take the best advantage from the crossing of images
and discourses of the cities, generating thus a deepening of the relations between
literature and history, beyond the base which is the city, the urban context and its
transformations. The literary and historical narratives bring discourses that would help
reassemble the urban reality, leading to a convincement of the reader and his or her
transposition to another time.
What makes the novel something more than a simple account is the fact that the
author seeks to comprehend the city by portraying the economic and structural changes,
for it was passing through a period of effervescence and modernization. Due to his
sensible vision, several intrinsic aspects of the urban environment, which are intertwined
in the transformation and modernization of the city, appear in Dyonelio Machado’s novel.
Not only this work but several works of literature can be used as sources of research;
they have helped to comprehend new points of the city, which are not always expressed
in history, and they also complement the architects and urban planners’ quests in the
construction of the social imaginary and of an epoch.

Keywords: Dyonelio Machado, Literature, Os Ratos, Urban perception.

vii 
 
SUMÁRIO

Introdução......................................................................................................... 11

11 Biografia de Dyonélio e Análise literária do romance....................... 13


1.1 Dyonelio Machado, o Lobo........................................................................ 16
1.2 Dyonelio Machado, o médico.................................................................... 18
1.3 Dyonelio Machado, o político.................................................................... 19
1.4 Dyonelio Machado, o escritor.................................................................... 21
1.4.1 A crítica – “O escritor maldito” ............................................................... 25
1.4.2 “Os Ratos”, um romance de urbanização............................................... 28
1.5 Análise de narrativas................................................................................. 32
1.5.1 Os elementos de uma narrativa............................................................. 32
1.5.1.1 Enredo................................................................................................. 33
1.5.1.2 Personagens....................................................................................... 33
1.5.1.3 Tempo, espaço e narrativa.................................................................. 34
1.6 Analise de narrativa aplicada ao romance “Os Ratos” ............................. 35
1.6.1 Enredo.................................................................................................... 35
1.6.1.1 O Enredo do Romance........................................................................ 36
1.6.2 Os personagens..................................................................................... 40
1.6.2.1 Naziazeno Barbosa, o anti-herói – Personagem Principal.................. 41
1.6.2.2 A cidade como personagem................................................................ 46
1.6.2.3 As personagens femininas e sua pouca participação......................... 47
1.6.2.4. O dinheiro e as relações entre os personagens................................. 50
1.6.3 Tempo, espaço e narrativa..................................................................... 54

2. Seguindo os rastros de Naziazeno ............................................................ 56


2.1 A História Cultural...................................................................................... 56
2.2. A literatura como fonte............................................................................. 59
2.3 A leitura da cidade – A urbe representada em palavras........................... 61
2.4 Representação e interpretação cartográfica............................................. 67
2.5 Por que mapear romances?...................................................................... 68
2.6 Os Ratos – A construção das palavras de Dyonelio................................. 70

3. Caminhando como rato .............................................................................. 72


3.1. A cidade como organismo vivo................................................................. 73
3.2. A capital refletida nas andanças............................................................... 74


 
3.2.1. O Arrebalde........................................................................................... 76
3.2.1.1. A Casa................................................................................................ 79
3.2.2. O Bonde................................................................................................ 82
3.2.2.1. Os Bondes na Capital gaúcha............................................................ 86
3.2.3. A Zona Central...................................................................................... 89
3.2.3.1. Bloco um: A Manhã............................................................................ 90
3.2.3.2.Bloco dois: Meio-dia............................................................................ 95
3.2.3.3. Bloco Três: Tarde............................................................................... 97
3.2.3.4. Bloco Quatro: Final da Tarde............................................................. 102
3.2.3.5. Bloco Cinco: Crepúsculo.................................................................... 106
3.3. O projeto Monumenta e o percurso de Naziazeno................................... 109
3.4. Mapeando o caminho “Dos Ratos”........................................................... 111

Considerações Finais................................................................................... 114

Referencias bibliográficas............................................................................ 116

ANEXO 1......................................................................................................... 121


 
LISTA DE FIGURAS

1 Dyonelio Machado....................................................................................... 16
2 Dyonélio Machado, o habito da leitura........................................................ 18
3 Dyonélio Machado, o médico...................................................................... 18
4 Dyonelio é fichado pela polícia em uma das vezes em que foi preso......... 20
5 Dyonelio Machado no Pátio da Prisão de Bananeiras em 1935................. 20
6 Algumas capas das publicações em vida de Dyonelio Machado................. 22
7 Algumas capas das publicações em vida de Dyonelio Machado.................. 22
8 Relançamentos pela Editora Planeta em 2004............................................ 23
9 Publicações póstumas de Dyonelio Machado............................................. 24
10 Esquema área de deslocamento de Naziazeno.......................................... 76
11 Mapa do transporte público de Porto Alegre em 1928................................. 87
12 Praça da XV e o abrigo de bondes.............................................................. 88
13 Bondes de vagão duplo da J. G. Brill na Filadelfia...................................... 88
14 Bonde modelo "Birney" de segunda mão comprado no ano de 1929......... 89
15 Mercado Público e Praça da XV.................................................................. 91
16 Vista da Igreja das Dores na rua dos Andradas na década de 30.............. 92
17 Perspectiva do projeto da Usina do Gasômetro publicada em 1926........... 93
18 Fotografia da Usina do Gasômetro na década de 30.................................. 94
19 Prédio da Prefeitura de Porto Alegre........................................................... 95
20 Vista dos casarões da Avenida Independência.......................................... 96
21 Largo dos Medeiros.................................................................................... 98
22 Praça da Alfandega.................................................................................... 99
23 Largo do Medeiros, onde pode-se ver a fachada do Café Nacional........... 99
24 Rua da Ladeira, atual General Câmara...................................................... 100
25 Edifício e bonde circulando no centro de Porto Alegre................................. 103
26 Fotografia das antigas docas do Porto........................................................ 104
27 Vista do Mercado público, Praça Parobé e de parte do Porto da capital.... 106
28 Cinema Central e a multidão em 1939........................................................ 108
29 Iluminação pública na capital...................................................................... 109
30 Área tombada pelo projeto Monumenta....................................................... 110

10 
 
INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende trabalhar com as descrições da cidade de Porto


Alegre na obra “Os Ratos” de Dyonelio Machado. A obra visa trazer a realidade das 24
horas de um funcionário público, Naziazeno, que recebe um ultimato do leiteiro para
pagar-lhe os 53 mil réis. A cidade no romance assume um papel de personagem muito
ativo no desenvolvimento do enredo. Naziazeno percorre todo o centro da cidade e deve
ter um percurso de pelo menos quinze quilômetros. Quando adentramos nas
atribulações do protagonista, passamos a perceber outra cidade, mais concreta, mais
palpável, mais presente para o leitor, desde que transposto um primeiro nível de
dificuldades relativo à referencialidade.
Os Ratos, aparenta ser uma trama simples, sem muita profundidade. Porém a
obra retrata uma crítica social, induzindo o leitor à reflexão. Seu autor, Dyonelio
Machado, recebeu inúmeras premiações com este romance, como o prêmio Machado
de Assis, que é considerado o principal prêmio, da Academia Brasileira de Letras e
postumamente, Comenda Ordre des Arts et des Lettres, do Governo da França. O livro
surgiu como uma crítica a sociedade dos anos 30, porém ainda pode ser considerado
atual devido às reflexões que este ainda leva aos leitores.
A justificativa da escolha deste tema veio através da curiosidade de descobrir
como era a cidade e a vida da população porto-alegrense no início do século XX.
Percebe-se que a própria literatura ajudaria nesta compreensão, pois os romances de
30 eram considerados os “romances urbanos” ou até “romances neo-naturalistas” que
se destacam por abordar de forma muito realista a rotina dos seus personagens.
Depois dessa identificação de que os romances de 30 poderiam ser uma fonte
de informação busquei um livro que trouxesse a realidade da população porto-alegrense
em 1930 e a resposta surgiu com o romance “Os Ratos”: e através da leitura do livro
percebe-se que a cidade e a arquitetura tinham papel de destaque na prosa, com
descrições bastante detalhadas, tanto que mereceriam um estudo de ponto de vista
arquitetônico mais cuidadoso.
O objetivo da pesquisa é recompor a cidade onde Naziazeno morava, percorria
dominava e era dominado, através das descrições do romance, comparando-as com
imagens e os dados encontrados sobre as construções do centro da capital gaúcha.
Como Pesavento (1997, pg.26) afirma:

11
Corpo simbólico, a cidade humanizada pode também, como
os indivíduos ser capaz de apresentar0se com detentora de
virtudes ou realiza atos condenáveis, ser portadora de
positividade ou vilania.

Por vezes, a cidade torna-se um uma realidade objetiva, com suas ruas,
construções e monumentos, mas são os habitantes desta cidade que constroem as
ideias e imagens de representação coletiva. Desta forma:

Através de discursos e imagens o homem re-apresenta a


ordem social vivida, atual e passada, transcendendo a
realidade insatisfatória. (...) a cidade tem, pois, um lado negro
uma faceta ameaçadora que, qual a esfinge mitológica, é
capaz de devorar quem não souber decifrá-la.
(PESAVENTO, 1997, pg. 26).

No primeiro capítulo será tratada a vida do autor do romance, Dyonelio Machado,


todas as suas nuances como pai, avo, escritor, político e médico sua relação com a
crítica e a sociedade da década de 30. Em seguida falarei sobre o livro “Os Ratos”, como
romance de urbanização. E como último tópico, este capítulo tratará da análise da
narrativa, falando sobre a estória do livro e os personagens.
O segundo capítulo “Seguindo os rastros de Naziazeno” trata sobre a Nova
história cultural e de uma forma geral podemos dizer que a proposta da História Cultural
seria decifrar o passado por meio de suas representações. Em seguida, fala-se sobre a
literatura como fonte: ideia de que a criação literária não seria um fato isolado, ou seja,
todo texto se compõe com referência a uma circunstância, tradição ou norma,
trabalhando como um intertexto. A leitura da urbe se dá através das descrições literária
e por fim, se examinam quais as implicações de mapear um romance.
O terceiro capítulo, “Caminhando como rato”, utiliza os trechos do livro,
fotografias, dados históricos sobre as edificações citadas, e a cidade de Porto Alegre
constrói-se, assim, o imaginário da época através das descrições de Dyonelio Machado.
E para finalizar, foi produzido um mapa que mostra os principais pontos do percurso de
Naziazeno na sua caminhada no centro da cidade.

12
1 BIOGRAFIA DE DYONÉLIO E ANÁLISE LITERÁRIA DO
ROMANCE

Qual o discurso que predomina numa determinada época e


numa dada corrente, quais as formas de refração da palavra
que existem, o que é que serve de meio de refração¿ todas
essas questões são de importância primordial passa o estudo
do discurso artístico (...) A própria orientação do homem em
relação ao discurso do outro e à consciência que o outro tem
dele, eu para mim, no fundo do eu para o outro. Por isso o
discurso do herói sobre si mesmo se constrói sobre a influência
direta do discurso sobre ele. (BAKHTIN, 1981, p. 176 e 180)

Esse capítulo tratará da vida e obra do autor Dyonelio Machado, revelando


detalhes da sua história que podem ser relevantes para entender o que o levou a
escrever o seu primeiro romance “Os Ratos”, objeto dessa dissertação.

O livro publicado em 1935 pela editora Nacional de São Paulo, nasceu de um


pedido do escritor Erico Verissimo a propósito de um concurso literário. Considerado o
romance mais importante do autor, recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia
Brasileira de Letras, no mesmo ano e, em 1985, a Comenda Ordre des Arts et des
Lettres do Governo da França - devido à publicação, em 1983, de L’Argent du laitier, a
sua versão francesa.

A história narra um dia na vida do funcionário público, Naziazeno Barbosa, um


cidadão comum que perambula pelo centro de Porto Alegre em busca de algum
dinheiro para saldar a dívida com o leiteiro.

13
O objetivo desse trabalho é descrever a relação que vai sendo construída
através da narrativa, entre Naziazeno e a cidade de Porto Alegre, representada no
livro por um trajeto através de vários de seus lugares icônicos – Mercado Público, Cais
do Porto, Prefeitura, os casarões da Rua Independência e outras ruas centrais que
formam a imagem da cidade, como a Rua da Praia e a Rua da Ladeira. Mais que um
cenário das suas perspectivas, angústias, esperanças e desilusões, a Porto Alegre de
““Os Ratos”” é também um personagem que, ambiguamente, acolhe e repele, seduz e
repudia Naziazeno.

O fato de ““Os Ratos”” ser o primeiro romance urbano do Rio Grande do Sul é
um sintoma do protagonismo que a cidade passa a ter a partir da década de 1930 no
Brasil: a cidade que se moderniza gera o progresso e a multidão, mas também o tipo
humano medíocre e anônimo representado por Naziazeno.

Posfácio de Davi Arriguci da reedição da editora Planeta, em 2004, publicado na


Folha de São Paulo em 6 de junho do mesmo ano:

Em 28 capítulos curtos, apareceram, em 1935, "“Os Ratos”",


de Dyonelio Machado, dublê de escritor e psiquiatra, cuja
obra mais representativa é parca, mas instigante, e pela
aparente desigualdade do conjunto continua desafiando a
crítica. Trata-se de um romance breve, concentrado,
surpreendente pela originalidade saída do mais prosaico,
com perfeito equilíbrio entre os elementos psicológicos e
sociais, explorados em profundidade, numa forma simbólica
de longo alcance.
Os anos se escoaram, e o livro continua forte, entre o que
há de fundamental na prosa de ficção brasileira, sendo
exemplo bom até hoje de como se pode tratar de problemas
humanos básicos da vida em sociedade sem cair no
naturalismo rasteiro, nos modismos fáceis de linguagem e
na mera reprodução das formas de brutalismo e violência
que infestam nossas cidades, degradando nossa existência.
É pelas pegadas esquivas de seu anti-herói moderno que
entramos a fundo em perplexidades reveladoras de nosso
tempo, demonstrando a força de conhecimento, sugestão
imaginativa e sopro de poesia que pode alcançar a literatura
quando bem feita.
(...)Um dos maiores acertos artísticos de Dyonelio foi ter
encontrado uma imagem analógica, um "correlato objetivo",
para o universo emocional de seu personagem, na metáfora
animalesca, que dá forma concreta ao drama moral,
alastrando-se numa verdadeira cadeia metonímica -- os
indícios de rato multiplicam-se por toda parte, nos olhares
esquivos, nas ações entrecortadas, nos gestos miúdos, nos
aspectos do corpo, na cor das vestimentas--, até se
configurar como símbolo complexo e aterrador da condição
do homem acuado.
O arraigamento desse símbolo poderoso vai mesmo além
da linguagem figurada e dos modos de dicção,

14
aprofundando-se na constituição da sintaxe e do movimento
do estilo: o próprio discurso mimetiza a figura do rato, torna-
se entrecortado, miudinho, entranhando na tessitura fina do
texto o gesto do roedor a que se reduz o ato humano da
procura e da disputa pelo dinheiro. A progressiva
intromissão do reino animal na terra dos homens sugere a
rachadura da realidade por onde o grotesco terrível penetra
em nosso mundo (...)

Assim como Naziazeno, Dyonelio era um “caminhante” e amante da cidade:

Prefiro as madrugadas, no seu relativo silêncio. Para a


estruturação da intriga valho-me das minhas caminhadas
pela meia manhã. Um bom livro de ficção não me perturba
quando escrevo os meus. Tanto mais que tenho por hábito
ler à noite, deitado. Não releio o que faço, quando já
terminado. Meu narcisismo nasce e morre à primeira e única
revisão. (MACHADO apud RAABE, 2011, p.24).

As características do autor em ordem particular são muito particulares,


principalmente quando tratam-se da sua escrita. Dyonelio relia e revisava
exaustivamente seus textos, usando de caminhadas como artifícios para melhorar o
pensamento, e quando dava as obras como acabadas não realizava mais alterações.

Sob o ponto de vista da Nova História Cultural – a teoria de apoio desse estudo -
, percebe-se que o texto é um espaço de diálogo entre o escritor e a instituição
literária, balizado pelas críticas e diferentes instancias sociais, guiadas por um sistema
de valores que é resultado das experiências vividas por um grupo, identificados entre
si e por um sistema de ideias e ideais comuns. Quanto mais compatibilidade houver
entre as experiências relatadas pelo autor e as vividas pelo agrupamento de humanos
“críticos”, ou de semelhança entre as ideologias, mais fácil será a recepção do material

Dyonelio mostrava outro lado da sociedade gaúcha, um lado que a crítica da


época não estava preparada para associar como “boa literatura”. Considerado por ele
próprio um “escritor maldito”, só teve sua produção valorizada depois do final da
ditadura militar. Seguem abaixo as características dominantes e únicas desse escritor
que inaugurou a literatura urbana gaúcha. Como ele mesmo dizia, “minha vida é um
romance”1.

1
Depoimento da neta do Dyonelio e minha orientadora, Professora Andréa Machado.

15
1.1 Dyonelio Machado, o Lobo

Figura 1. Dyonelio Machado. Disponível em: <https://luciointhesky.wordpress.com/2013/08/01/os-ratos-


de-dyonelio-machado/> Acesso em jul. 2016.

Dyonelio Tubino Machado (Figura 1) nasceu no dia 21 de agosto de 1895, em


Quaraí, fronteira do Brasil com o Uruguai. Viveu sua infância em meio aos relatos
campeiros e guerreiros nos pampas gaúchos, palco de muitas batalhas sangrentas
durante a revolução federalista de 1893, e depois da Guerra do Paraguai. Perdeu o pai
aos 7 anos, assassinado, o que fez com que o menino começasse a trabalhar muito
cedo para ajudar a completar a renda familiar. Foi também um assíduo leitor com
interesses especiais em história e literatura. Trabalhou como vendedor de loterias,
balconista de livraria e aos 12 anos foi admitido como servente no semanário O
Quaraí, tornando-se também monitor de classes atrasadas na Escola.

Véscio (1995, p.45) destaca que nessa Quaraí, onde a circulação dos livros era
restrita e lenta, e os autores mais destacados eram editados no exterior, a imprensa
era a fonte de leitura mais acessível. Dyonelio circulava livremente nesse meio,
fazendo grandes amigos. Em 1911, ajuda a fundar “O Martelo” o jornal da mocidade
da cidade.

Muda-se para Porto Alegre, em 1912, com o intuito de estudar medicina. Na


capital, durante esse período vive em uma república de estudantes, chamada
“República do Império”, o elo do grupo era o interesse pela filosofia, literatura e
música. Em 1914, tem início a primeira guerra mundial, e a crise econômica gerada
faz com que Dyonelio retorne a Quaraí, tornando-se radialista e diretor do jornal “O
Cidadão”.

16
É nesta época que conhece sua futura esposa, Adalgiza Martins, que retornara
de Santa Maria para lecionar no Colégio Municipal de Quaraí, instituição para a qual
Dyonelio é nomeado Diretor no mesmo período. Conhecem-se devido ao trabalho,
mas o interesse pela professora só ocorre quando a escuta tocando ao piano a
Patética de Beethoven. Dyonelio retorna então à capital, buscando um emprego para
sustentar a família que pretendia construir ao casar-se com Adalgiza

Nesse mesmo período, durante o governo de Borges de Medeiros, são abertas


as inscrições para um concurso público, Dyonelio se inscreve, tira o primeiro lugar e é
nomeado para a secção de compras de um órgão de construção do porto de Porto
Alegre. Com a renda do novo emprego, aluga uma casa, podendo então casar-se. Na
data marcada para o casamento, adoece, vê-se forçado a casar-se por procuração e a
mãe de Dyonelio acompanhada do irmão de Adalgiza vai para o interior buscar a
recém-casada. Nesta viagem sucedem-se uma sequência de infortúnios e viagem que
estava programada para um dia, leva três: o carro estraga, perdem o trem que os
traria de volta a capital e no dia seguinte, o trem descarrilha,

A união se concretiza e gera dois filhos, Cecília e Paulo. Ambos em descrições


do pai falam sobre seu empenho em ensiná-los e garantir que tivessem acesso à
cultura: leitura, estudos, arte, música e mitologia. Cecília aprendeu a tocar piano e
Paulo, violino. Entre as suas primeiras leituras, estão as aventuras de Sherlock
Holmes, de Conan Doyle.

Dyonelio teve a vida dotada de vários “títulos”: pai, avô, escritor, professor,
médico e político. Em cada um deles, manteve a mesma conduta alinhada com os
seus ideais, visando sempre fazer o melhor, tanto para os parentes, como para os
leitores, alunos, pacientes e eleitores. Valorizava muito o convívio familiar, e é
lembrado com carinho pelos parentes. Foi uma pessoa de uma integralidade
fantástica, e jamais abdicou de seus pensamentos: não fazia concessões e nem se
deixava comprar. Madruga (1986, p. 33) relata a história que o autor costumava contar
a Cecília, sobre um lobo que invejava a vida mansa do cão por ganhar comida e ter
uma boa casa para retornar ao final do dia, mas negava-se a usar a coleira, e assim
assumir que teria que se submeter aos desejos e vontade de seu dono, podendo desta
forma aproveitar-se dos mesmos privilégios que o colega. A propósito dessa história,
dizia, que “era um lobo que não usava coleira”. O velho Dyonelio nunca colocaria uma
coleira.

17
Figura 2. Dyonelio Machado, e o habito da leitura. Disponível em:
<http://zelmar.blogspot.com.br/2015/09/os-ratos-de-dyonelio-machado-completa.html> Acesso em jul.
2016.

Dyonelio é lembrado sempre com um livro ou um jornal sob os joelhos (Figura


2), ouvindo uma boa música, ou pelo peculiar hábito de pegar a família, colocar no
carro e sair sem rumo para viajar nos finais de semana, desbravando assim o interior
do Estado.

Falece em 19 de junho de 1985, acreditando que “já vivera o bastante”


(MADRUGA, 1986, p. 60), sempre muito apaixonado por tudo que fez.

1.2 Dyonelio Machado, o médico

Figura 3. Dyonelio Machado, o médico. Disponível em: <http://www.grupoescolar.com/pesquisa/dyonelio-


machado.html> Acesso em jul. 2016.

18
Sua tentativa frustrada de entrar na faculdade de medicina no período da
primeira guerra mundial, deixa-lhe adormecido o desejo de tornar-se médico. Quando
a primeira filha do casal, adoece Adalgiza pede que Dyonelio inicie seus estudos em
Medicina, graduando-se em 1929 na Universidade do Rio Grande do Sul (URGS)
(Figura 3), instituição que viria a se tornar a Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS). Antes mesmo da formatura, já no penúltimo ano da faculdade, é
nomeado médico no Hospital São Pedro, onde trabalharia por 30 anos. Durante o
período o de 1930 e 1931, especializou-se em psiquiatria e neurologia no Rio de
Janeiro, sendo o introdutor desse ramo da medicina no Estado do Rio Grande do Sul.
Lecionou neurologia e psiquiatria na Santa Casa de Misericórdia, publicando em 1933
“Uma Definição biológica do crime” sua tese doutoral.

Dyonelio era muito apaixonado pela sua área de especialização e destacava-se


nos estudos e leituras que fazia na área, como bem demonstra Santos:

Profundo estudioso das obras de Freud e de Jung, o


médico psiquiatra Dyonelio Machado conhecia como
poucos a complexidade da mente do ser humano.
Analisando seus livros de memórias, constata-se que, ao
compor seus trabalhos artísticos, o autor não gostaria que
eles fossem lidos somente como uma espécie de
“laboratório clínico” a despeito do estudo literário. De
qualquer forma, é inegável que em suas obras há
especificidades que giram em volta da teoria das
ideologias, no sentido marxista, e da teoria das ilusões, tal
como a sistematiza Freud, por exemplo. Pode-se dizer que
essas duas premissas juntas salientam a função crítica
contra o sistema monetário e a inconsciente subjugação
por ele propagada – atributo esse analisado
minuciosamente pelos teóricos da Escola de Frankfurt,
entre outros. (DOS SANTOS, 2013, pg. 331)

Dyonelio era capaz de entrar no automóvel e percorrer longas distâncias para


atender um paciente necessitado, mesmo sabendo que muitas vezes a pessoa não
poderia pagar a consulta. No seu local de trabalho, era adorado pelos funcionários:
“uma pessoa extremamente comovida com as dores alheias. Um médico caritativo”
(MADRUGA, 1986, p. 33)

Postumamente, no ano de 1985, foi agraciado com o Diploma de Honra ao


Mérito da Secretaria de Saúde e Meio Ambiente, devido ao seu trabalho durante a
Direção do Hospital São Pedro.

19
1.3 Dyonelio Machado, o político

Nos primeiros anos da década de 30, volta-se para o campo político, mostrando
afinidade com os partidos de esquerda. O período de 1934-35 é muito marcante para
a trajetória política e literária do autor. Em 18 de julho é preso (Figura 4) pelo governo
de Flores da Cunha – borgista – por delito de opinião, não havia feito nada, só
discordava do partido de Borges. Cumpre no total dois anos de pena, devido à
reclusão é exonerado do seu cargo no Hospital São Pedro, passando um ano detido
em Porto Alegre e outro no Rio de Janeiro (Figura 5). Durante o período de cárcere
recebe o prêmio Machado de Assis, pelo romance, “Os Ratos”.

Figura 4. Dyonelio é fichado pela polícia em uma das vezes em que foi preso. Disponível em:
<http://www.cruesp.sp.gov.br/?p=4726> Acesso em jul. 2016.

Libertado no ano de 1937 pela “Macedada”, retorna a Porto Alegre e, anistiado,


volta, no ano seguinte, a clinicar no Hospital São Pedro. Busca a família – que devido
a sua reclusão havia retornado a Quaraí - e aos poucos retoma as suas atividades
jornalísticas e literárias.

20
Figura 5. Dyonelio Machado no pátio da prisão de Bananeiras, em 1935. Disponível em:
<http://zelmar.blogspot.com.br/2015/09/os-ratos-de-dyonelio-machado-completa.html> Acesso em jul.
2016.

Em 1947, se elege Deputado Estadual Constituinte pelo Partido Comunista do


Brasil (PCB) – durante a época da campanha recebe apoio de sua família,
especialmente de Adalgiza, debate ferrenhamente a Constituição, mas a sua
assinatura é substituída pela de um suplente, pois, por motivos de saúde, encontrava-
se em Buenos Aires nessa data. Desse momento em diante, os atritos com seus
correligionários conduzem ao seu desligamento do Partido – que, em seguida, é posto
na ilegalidade – e à cassação do seu mandato.

Ressentido, encerra seu flerte com a carreira política com a política, deslocando
seus ideais para a literatura:

A trajetória de alguns de seus mais importantes


personagens poderia aludir peculiarmente a signos do
próprio percurso do autor, bem como a importantes
questões que ocorriam no período de publicação de seus
livros (SANTOS, 2013, pg. 160).

Naziazeno, personagem principal de “Os Ratos”, já está carregado de uma certa


carga política, mas como o livro foi escrito antes dos incidentes políticos do autor, sua
carga de crítica não é tão elevada quanto a que aparece nos romances que foram
publicados na sequência.

21
1.4 Dyonelio Machado, o escritor

Entre o médico, o homem de família e o político, formava-se o escritor: a escrita


nunca deixou de estar presente em sua vida. Fundou inúmeros jornais, como “O
Martelo”, em Quarai, no ano de 1911, e “A Informação”, na capital gaúcha, em 1942.
Madruga (1986, p. 26) comenta que o autor nunca deixou de escrever, publicando
frequentemente contos em jornais, que, infelizmente, acabaram se perdendo.

Estreou nas publicações literárias com o livro de contos “Um pobre homem”
publicado pela Editora Globo, em Porto Alegre, no ano de 1927.

Em 1935 publica “Os Ratos” e em 1942, publica o romance “O louco do Cati”,


pela Editora Globo de Porto Alegre, e um dos contos de “Um Pobre Homem” - “Noite
no Acampamento”, um conto polêmico, que lhe rendeu nova detenção para
esclarecimentos. Apesar das duras críticas aos seus romances, segue a carreira e em
1944 publica “Desolação” pela José Olympio.

Em 1945, ao lado do escritor Graciliano Ramos, lidera, o “I Congresso Nacional


de Escritores”, que exigia a legalidade democrática, e publica em 1946 o romance
“Passos Perdidos”, pela Martins Editora de São Paulo.

Figura 6. Algumas capas das publicações em vida de Dyonelio Machado.

Ao todo, possui vinte obras publicadas (Figura 6 e Figura 7), quatro póstumas
(Figura 9). Destaca-se o longo período de jejum nas publicações que ocorreu de 1947
a 1966, quase vinte anos, porém isto não quer dizer que o autor não produziu, apenas
guardava para si, e para alguns próximos, os frutos de sua atividade literária,
(Madruga, 1986, p. 57), devido ao incentivo de um grupo de jovens. Abriu-se na
década de oitenta um baú cheio de livros, como “Deuses econômicos”, escrito no
período de descanso do trabalho até a madrugada, fruto de uma pesquisa longa e
minuciosa sobre a cultura grega e o Império Romano. O romance é considerado o
primeiro de uma trilogia – chamada de trilogia da liberdade – e foi lançado pela Editora
Leitura do Rio de Janeiro. Porém a primeira edição desse livro, (MADRUGA, 1986, p.

22
38) estava errada de tal maneira, que despertou o desespero do escritor, que tratou de
ir à editora e ao comércio e recolher todas as cópias do livro.

Figura 7. Algumas das outras capas das publicações em vida de Dyonelio Machado.

Em 1979, recebe o Grande Prêmio de Crítica de Arte da Associação dos Críticos


de Arte de São Paulo e toma posse da cadeira 38 na Academia Rio-grandense de
Letras. Em 1980 tem dois romances lançados: “Prodígios” pela Editora Moderna e
“Endiabrados” pela Ática, ambas de São Paulo - publicação que recebe, no ano
seguinte, o Prêmio Jabuti. E a Editora Moderna publica outros dois de seus romances
“Nuanças” e “Sol subterrâneo”.

“Prodígios” e “Sol subterrâneo” concluem a trilogia da liberdade, responsável por


renovar as características de escritor de Dyonelio: o autor abandona os limites
geográficos do Rio Grande do Sul e inclusive a cronologia contemporânea, para
escrever romances históricos sobre outras nações, ao contrário do que faziam o
restante dos escritores brasileiros (MADRUGA, 1986, p. 38).

Em 1982 são editados os romances “Fada” e “Ele vem do Fundão”, pela Ática e
Dyonelio recebe por “Nuanças” o Prêmio Fernando Chinaglia pela União Brasileira de
Escritores.

Figura 8. Relançamentos pela Editora Planeta em 2004

23
A editora planeta relançou em 2004 três das obras mais significativas (Figura 8)
de Dyonelio Machado, “O Louco do Cati”, ““Os Ratos”” e “Desolação”, o que trouxe
novamente a discussão e a atenção da crítica para a obra do escritor e a editora
inovou também quando trouxe para as capas, dos romances, obras do artista plástico
Ibere Camargo.

Quanto a sua produção póstuma (Figura 9), Maria Zenilda Grawunder organizou
o relançamento do livro de contos “Memórias de um Pobre Homem”, e a Editoria
Graphoia lançou em 1995 o livro “O cheiro de coisa viva: entrevistas, reflexões
dispersas e um romance inédito: o estadista”. A obra e pensamento político de
Dyonelio Machado fizeram com fosse organizado pela Assembleia Legislativa de Porto
Alegre o livro “O pensamento político de Dyonelio Machado” no ano de 2006. E em
novembro de 2014, a Editora Siglaviva, de Brasília publica “Proscritos”, livro inédito,
escrito em 1964 e fixado pelo pesquisador Camilo Mattar Raabe.

Figura 9. Publicações póstumas de Dyonelio Machado.

A bibliografia acima citada expõe alguns dados bastante simplificados da


trajetória de Dyonelio Machado, para a busca de informações mais detalhadas pode-
se procurar o Acervo Dyonelio Machado que registra sua história, assim como por
estudos realizados a partir de seu espólio. Nesse Acervo, atualmente localizado na
DELFOS, Espaço de Documentação e Memória Cultural da PUCRS, nele existem
cerca de 3000 itens organizados em distintas classes, como os originais das obras,
publicações na imprensa, correspondências, notas, esboços diversos, cadernetas e
outros objetos pessoais.

Quando trata-se de descrever o papel de Dyonelio como escritor, se diz sobre


o autor e toda a sua obra:

O projeto da obra exige do escritor uma aproximação


concreta e formal capaz de “traduzir” os elementos mais

24
íntimos que subjazem às motivações da criação,
desenvolvendo uma relação harmônica e equilibrada entre
subjetividade e objetividade, elementos integrantes da
estética literária. Daí o que diferencia os artistas de outras
pessoas: a sua capacidade de traduzir tais emoções em
palavras. (RAABE, 2011, p.27).

Na busca por inspirações para a criação o autor apontava principalmente os


escritores que “inspiram-se na vida”, obras que tinham a sua predileção. Dessa classe
caracterizam-se dois grupos: os que buscam inspiração na própria vida – “que não é
somente deles, mas dum grande número de indivíduos” (MACHADO apud RAABE,
2011, p.27) – e os que buscam “inspiração com exclusividade na vida ambiente,
despersonalizando sua obra” (MACHADO apud RAABE, 2011, p.27). A obra de
Dyonelio caracteriza-se principalmente pelos elementos encontrados no segundo
grupo, pois ele considerava-se “universalista geral” (MACHADO apud RAABE, 2011,
p.27), e apontava sua escrita como “arte feita para o maior número de pessoas
entenderem” (MACHADO apud RAABE, 2011, p.27). A psicanálise é muito frequente
no discurso, ajudando a expressar as preocupações sociais.

Em entrevista a Antônio Hohlfeldt, no jornal Correio do Povo, nos anos 60


aparece um pouco como o autor levava a sério a relação da psicanálise e do seu
discurso:

AH – (...) que tipo de relação você, escritor, você,


criador, passa a manter com a criatura, passa a manter com
a personagem à medida em que ela vai surgindo.
DM - Eu vou só te dizer uma coisa, não sei se te
satisfaço a pergunta ou se entro no sentido da tua pergunta.
O Dostoievsky dizia ao falar das novelas dele- eu li isso em
francês: “Je me plais le rêve que se l‟écrire”. (Eu gosto mais
de sonhar com as novelas do que de escrevê-las.) Nesse
sonho, a gente se identifica tremendamente. E se identifica
de uma maneira que é a personagem que escreve aquilo.
Não é piada isso. Os atos vêm de personagens mesmo. E o
escritor que não se cinja disso, que não fica sendo um
instrumento da personagem, não é um escritor. Fará uma
bela crônica, não faz um livro de ficção. (MACHADO apud
RAABE, 2011, p.31)

Sua criação artística, provém de um conceito em que o trabalho do escritor


varia entre o transcendental, divino e o simples, braçal. Explica-se assim as suas
ideias tão elaboradas e textos corrigidos a exaustão. A personalidade do escritor e sua
mente atenta a análise da mente do ser humano pode ser claramente lida em sua
obra.

25
1.4.1 A crítica – “O escritor maldito”

Grawunder (1997, p. 34) define como literaturas proscritas aquelas que, mesmo
elaboradas no campo da instituição e seguindo canais ordinários, tornam-se, por
razões de ideologia objeto de alguma forma de censura e têm o seu reconhecimento e
consagração dificultados. A autora aponta o aparecimento de vários escritores
“malditos” ao redor do mundo, como Roussel, Baudelaire e outros. Também salienta
que tal exclusão é, muitas vezes, provisória, pois com o passar do tempo as
sociedades reavaliam e reformulam os seus padrões, aceitando ou excluindo novos
personagens. Esse foi o caso de Dyonelio.

Foi chamado em 1972 de “escritor maldito” por Marco Tulio de Rose, pois, com
seu discurso, Dyonelio rompeu com os códigos da instituição literária da época, um
dos exemplos dessa discriminação segundo Grawunder (1997, p. 34) é um jornal
gaúcho que anuncia a premiação de “Os Ratos”, mas não faz nenhuma menção ao
autor da obra, pois ele encontrava-se encarcerado. O delito de opinião estendeu-se
tanto que, por muitas vezes, o autor viu-se obrigado a publicar críticas com
pseudônimos, pois sua opinião seria simplesmente desconsiderada.

De forma resumida, Grawunder (1997, p.40) aponta três fatores para o problema
de aceitação da literatura de Dyonelio em seu período histórico:

- Sua ideologia, que englobava fortemente o contexto social;

- As imagens, as ideias que eram dirigidas por um impulso criador, muitas


vezes, o escritor descreve que a sorte de seus personagens era ditada por eles
mesmos, não por ele (conforme será tratado no item 2.4);

- A interação ou oposição entre o discurso da obra e o discurso que era


considerado socialmente aceito como o padrão da época.

A mudança de comportamento da omissão para a crítica ferrenha a sua obra


acontece após a publicação do romance “O louco do Cati”, “obra de cunho psicológico,
e, ao mesmo tempo alegórico, com outra forte ruptura das regras estético-literárias
vigentes”. (GRAWUNDER, 1997, p. 34) Devido a traços de caráter e personalidade,
aliados ao seu discurso, o escritor é, muitas vezes, barrado e ignorado pela crítica
literária gaúcha, percebe-se, inclusive, que, ao longo de sua vida de publicações, a
maioria esmagadora de seus livros foram editados e lançados por editoras do eixo Rio
de Janeiro – São Paulo, pois não havia interesse das editoras gaúchas em promover
as obras do seu “escritor maldito”. Porém, nas décadas seguintes, surge uma busca e

26
questionamento dos valores socais e políticos da literatura e então inicia-se o
reconhecimento e prestígio do autor.

Ainda falando sobre a alma contestadora de Dyonelio Raabe (2011, p.38)


afirma:

Os artistas são, frequentemente, pessoas com dificuldades


em adequarem-se ao status quo no qual estão inseridos. No
caso de Dyonelio, um rebelde, como o próprio se
considerava, que lutou ativamente contra os padrões
vigentes na sociedade: tanto na Política como na Medicina,
tentou tornar realidade as suas concepções humanitárias e
sociais. A literatura serviu como válvula de escape de tais
emoções frustradas pelo mecanismo de sublimação. No
entanto, sofreu com isso, e, até o final de sua vida, usou de
tal meio para uma adaptação à realidade, essencial para
uma vida saudável.

Junto com as questões políticas e literárias que contribuíram para o seu


reconhecimento tardio apresentam-se as que dizem ser as noções de arte e literatura
de Dyonelio bastante diferentes das dos críticos literários e o escritor não apresentava
pudor nenhum em gerar polêmicas. Como no seguinte texto datilografado que foi
encontrado no acervo do autor:

Faltam a nossa crítica as ‘ideias gerais’, o pensamento


filosófico, em suma, que investiga as causas, liga os fatos entre
si, descobre-lhes as leis de correlação, tornando-a, tanto
quanto possível uma ciência objetiva... (MACHADO apud
GRAWUNDER,1997, p.93)

Ficando claro que o autor não aceitava a opinião dos críticos acadêmicos e que
sentia que estas críticas não representavam de fato opiniões de devessem ser
respeitadas, destaca-se outra nota de reação do escritor: “O crítico é um interpretador,
sabe tudo, tem na mão a vida do criticado. Na realidade é um romancista frustro...”
(MACHADO apud GRAWUNDER,1997, p.83).

Outro formato de crítica que não era bem aceito pelo autor era a crítica indireta
de instituição literária representada pelo poder público, principalmente a do Instituto do
livro. Pois quando exercida tentava opinar sobre a literatura como consciência do
povo, uma história da cultura popular. Sobre isso escreve:

“O escritor se põe a serviço do poder pela forma indireta da


estatização. Esta movimenta dois aparatos: a censura e os
institutos do livro, – que os há, em esfera nacional e
estadual. Em ambas as frentes o poder exerce a sua polícia:
na censura, diretamente – impedindo, suprimindo,
confiscando; no instituto do livro, mediante a figura
altamente engenhosa da co-edição, – que traz implícita a
censura. E – o que é mais significativo – a co-autoria marca
seu comparecimento junto ao escritor, ditando-lhe o que

27
convém ou não convêm pôr no papel.” (MACHADO apud
GRAWUNDER,1997, p.94)

As citações acima constituem, de forma bastante especifica, a relação de


Dyonelio com a crítica especializada, mostrando como o autor apresentava, inclusive,
consciência de como funcionava a força institucional da época. Bolle (1994, p.20)
ainda acrescenta a seguinte definição quanto a modernidade e a crítica:

A tarefa principal da crítica, segundo Benjamin, consiste em


decifrar esses mitos que cercam o horizonte da
Modernidade, descobrindo-se as contradições camufladas
sob as palavras de ordem e desmascarando a
“modernização” como propagadora da violência. A partir da
leitura da superfície da metrópole, o crítico procura ver o
rosto da modernidade “de dentro”, investigando traços da
mentalidade burguesa e pequeno-burguesa, a mudança de
padrões culturais, o imaginário social e político e a ação dos
intelectuais, mediadores culturais e produtores de imagens.

O escritor usava de sua persuasão para que os leitores o compreendessem.


Sabia que jogava com o mundo da literatura, e de certa forma ressentia-se com a
incompreensão da crítica. “Seus livros eram originais não só na temática e na forma,
mas também no conteúdo ideológico” (GRAWUNDER, 1997, p. 78). Ainda sobre as
narrativas do autor também pode-se afirmar que:

As mais expressivas narrativas dyonelianas também estão


pautadas pelo tema da viagem ou por um tipo de incansável
peregrinação, ora devido a uma fuga da repressiva
perseguição policial e política, ora pela necessidade de
obter dinheiro ou outros meios de garantir a sobrevivência,
ora, enfim, em virtude de algo que nem os personagens
nem o narrador sabem exatamente o que é. Uma das
principais funções dessa característica, inerente às
peripécias literárias, é demarcar as transformações
temporais do universo ficcional e, especialmente, as
mudanças que emanam daquilo que há de mais profundo
no homem, muitas vezes diante da impossibilidade de
instaurar a revolução ou ante o fracasso de um ambiente
repleto de contradições econômicas, sociais, políticas e
religiosas. (DOS SANTOS, 2013, pg. 27 e 28)

Grawunder (1997, p. 77) comenta que o autor representa um corte no


pensamento de sua geração, pois em sua obra ficcional e não ficcional apresenta
ideias vanguardistas como os ideais marxistas, que eram emergentes na Europa,
incorporados a ideais de humanismo, solidariedade, igualdade e justiça social.
Tratando de realizar uma compreensão maior do ser humano.

Depois que estivesse com o texto pronto, o escritor revisava até a exaustão,
gostava de ter certeza absoluta de todos os significados de cada expressão usada em
seus romances. Dyonelio reflete, como escritor, em sua obra, a existência da retórica –

28
a arte de comunicar-se de forma clara e persuasiva – abstraindo-se da refração
institucional e, com sua linguagem, textualizando a voz de leitores que não se sentiam
representados pelas grandes instituições e críticos.

1.4.2 “Os Ratos”, um romance de urbanização

“Os Ratos” é, aparentemente, uma trama trivial. No entanto, a obra relata muito
mais que a história de um homem e sua dívida, exibindo uma crítica social sutil, mas
muito eficiente. Esse é o grande feito do livro: induzir ao pensamento. Na década de
70, o livro a História concisa da literatura brasileira, do autor Alfredo Bosi, destaca que
o romance é um dos mais importantes do período de 30, em uma de suas mais
destacadas vertentes.

Sobre o autor e seu discurso de denúncia:

Dyonelio também se debruça sobre a realidade que se


descontinua à sua volta. É um intelectual comprometido, cujas
ideias estão refletidas na produção artística. Em “Os Ratos”,
questiona a condição de vida do trabalhador urbano que luta
em busca de sua subsistência, cruzando o problema social
com a questão psicológica (VESCIO, 1995, pg.83).

Tornou-se uma das obras mais influentes da segunda geração da literatura


moderna no Brasil, recebendo o prêmio Machado de Assis, que é considerado o
principal prêmio, da Academia Brasileira de Letras. A obra que surgiu como uma
crítica à sociedade dos anos 30, ainda pode ser considerado atual devido às reflexões
que ela ainda leva aos leitores. “O romance Os Ratos é hoje bastante conhecido,
transformou-se num dos clássicos da literatura rio-grandense e é, certamente, uma
das principais referências da moderna literatura urbana feita no Brasil”. (CRUZ, 1994,
pg. 89)

Posto isso, pode-se seguir com o estudo do Modernismo brasileiro, que, em


suas tendências literárias, apresentava eixos básicos claros como: a preocupação com
produções artísticas e a problemática de reencontrar uma nova identidade nacional.
Para resolver esses dois problemas formularam-se dois métodos.

O primeiro consistia na recuperação da identidade por meio do resgate das


origens culturais. Esse processo foi mais utilizado pela geração de 22 e resultou em
romances vanguardistas como “Macunaíma” de Mario de Andrade. Essa geração
focava em resgatar o Brasil pré-burguês e pré-cabralino, potencializando os ganhos da
ciência técnica na sociedade industrial, encontrando assim as energias necessárias

29
para contestar a identidade nacional que se baseava apenas nos costumes das
nações ocidentais que colonizaram o país posteriormente.

O segundo método é o que deu origem a geração de 30, que consistia em


analisar os impasses da nacionalidade, filtrados pela ótica de uma consciência social e
política, o que demanda a criação e estruturação de uma temporalidade histórica
bastante elaborada. A segunda fase do modernismo remonta justamente um período
de transformação simbólica, pois apresenta representantes espalhados por várias
regiões do país, como Jorge Amado – baiano -, Graciliano Ramos – alagoano –, José
Lins do Rego – paraíbano –, Erico Veríssimo e Dyonelio Machado – gaúchos.

Gil (1997, p. 29) aponta que esses dois momentos do modernismo não se
excluem, mas remontam uma linha de continuidade e completude entre si, como se
fossem uma visão do “Brasil encantado” e do “Brasil realista“, correspondendo a
momentos diferentes da realidade estrutural do país e mundial. Tratando-se de um
processo multifacetado que redesenha o mapa histórico e cultural do país, pois:

O romance social ou proletário foi quantitativamente


dominante na década, mas seu prestígio teve a tendência
de diminuir a partir de um momento de auge em 1933. O
romance psicológico, seu antagonista, ao contrário, foi
menos numeroso, mas seu prestigio foi se consolidando
com o correr dos anos. É por isso que, depois da discussão
de dois temas gerais sem os quais é difícil pensar o período
- a natureza da polarização artística, paralela àquela
polarização política. e as relações com o modernismo de 22,
que o precedeu - o grosso desta história do romance de 30
desenvolve paulatinamente aquele complexo movimento de
uma dúvida a outra. Depois disso, como arremate e síntese,
são estudadas as obras de quatro autores - Cornélio Penna,
Dyonelio Machado, Cyro dos Anjos e Graciliano Ramos.
Esses autores ocupam essa posição especial nesta história
por mais de um motivo. Em primeiro lugar, não se pode
deixar de admitir que eles produziram os textos mais bem
acabados do período, aqueles que, por justiça, integrariam
um cânone de nossa ficção, ou, dizendo de outra maneira,
aqueles que não fariam feio numa abordagem sincrônica -
embora, é preciso frisar, não sejam os únicos. (CAMARGO,
2001, pg. 11 e 12)

A geração de 30 defendia um discurso narrativo que tratava de racionalizar o


mundo de uma forma holística e global, por isso, atribuía justificativas e explicações
para as suas relações sociais.

A situação se reflete no Brasil: ocorre nesse período, no país, a criação do


Partido Comunista, as revoltas operárias de São Paulo, a formação da Aliança
Nacional Libertadora, assim como a Revolução de 30 e a instalação da Ditadura do
Estado Novo por Getúlio Vargas. Transformando esta época em um palco de

30
acontecimentos muito marcantes e alteradores da realidade nacional, os quais
mereciam ser registrados inclusive em literatura.

Outra característica muito marcante para o modernismo é a substituição da


figura do herói pela do herói fracassado, figurando um belo achado literário, pois
descreve de uma forma muito mais realista o momento em que a população brasileira
se encontrava. Forma que era capaz de libertar o brasileiro do desconforto gerado
pela visão mítica dos movimentos literários anteriores.

Monteiro (1964, p. 280 e 281) afirma que o romance urbano, a partir da década
de 30 ajudou a elaborar o conflito de como era estabelecer-se em uma cidade
moderna repleta de novas possibilidades e ao mesmo tempo a perda dos referenciais
da vida antiga.

A narrativa ficcional “Os Ratos” oferece elementos que trazem um recorte mais
profundo, abordando circunstâncias de tempo, de lugar e mostrando uma problemática
social. Pode-se dizer que a obra se refere está fortemente ligada ao espaço da ficção,
permitindo, assim, a recuperação de seu referencial e o ponto de vista histórico. O
livro, publicado em 1935 segundo Véscio (1995, p. 82) abrange problemáticas e
indicações circunstanciais da cidade de Porto Alegre, no período entre o final da
década de 20 e o início da década de 30. Os principais marcadores temporais da obra
são as alusões ao início das obras do porto, as quais iniciam-se no ano de 1919 e
seriam concluídas no ano de 1936, também os indícios do traçado urbano que
compreende a vida do funcionário público em determinada época. Apresentando
elementos referenciais bastante diluídos, a narrativa corresponde ao espaço urbano
muito real da cidade de Porto Alegre.

Com o intuito de abordar de forma mais específica os problemas nacionais da


sociedade, os quais descortinam-se a sua volta, Dyonelio questiona, de forma
bastante clara, a condição de vida do trabalhador urbano e a sua luta na busca pela
subsistência, Véscio (1995, p. 83) afirma que existe um cruzamento entre o problema
social e a condição psicológica de quem vive o dilema, no caso o funcionário público
Naziazeno.

Ao optar por aprofundar a problemática psicológica de Naziazeno, o autor


acrescenta um caráter mais convincente à trama. Sua personagem frequenta o centro
da cidade e Porto Alegre, caminha pelas ruas, visita as obras do porto, entra nos
cafés, participa de um jogo de roleta. É nesse coração pulsante da cidade, e, também
na periferia, que a vida do funcionário público se desenrola.

31
Naziazeno Barbosa é um funcionário burocrata que trabalha na repartição
responsável pelas obras de ampliação do porto, desempenhando ima função
subalterna considerada intermediária entre os funcionários braçais e os chefes. Tem
como origem uma pequena cidade do interior, de onde saiu atraído pelo
desenvolvimento da grande cidade. Ao estabelecer-se na capital, engrossa ainda mais
a massa anônima que povoa a periferia, trabalha no centro comercial burocrático e,
para chegar, da periferia ao centro, desloca-se de bonde. Véscio (1995, p. 82)
acrescenta que as descrições quase reais das ruas centrais da cidade no romance
fomentam ainda mais a realidade imediata do livro e aumentam a persuasão da obra.

O drama de Naziazeno envolve o leitor, é um problema pessoal que se


desenrola no psicológico bastante conturbado do personagem. O lado esquecido das
vivências humanas pode ajudar a determinar de forma mais sensível os problemas do
indivíduo em relação ao social e as consequências desses:

O medo, a covardia, os constrangimentos, os


desapontamentos, são elementos que compõe o aparato
coletivo que se perde no tempo histórico-social e que Dyonelio
Machado contempla em sua obra ao buscar a totalidade
individual da personagem. (VÉSCIO, 1995, p. 84)

Pelo fato de o livro ter sido escrito durante o governo de Vargas que precede o
Estado Novo, época bastante problemática para intelectuais que se baseavam na
ideologia de esquerda, há um recorte de temática onde a opressão através do fator
econômico funciona como válvula de escape para apontar as tensões ideológicas que
ocorriam no momento. A trama ganha, assim, elementos que determinam um
referencial histórico, político e geográfico compondo um quadro questionador para os
problemas da sociedade. A ficção incorpora elementos do real, representando a vida
de uma grande camada da população da capital nos anos de 1930.

A cidade de Porto Alegre revela, através dos passos de Naziazeno, condições


de uma cidade em processo de modernização, com visível crescimento econômico,
mas que ainda não está completa, juntamente com o drama do trabalhador para
encontrar o dinheiro do leite. “A cidade que aparece em ‘“Os Ratos”” provoca uma
sensação dolorida de realidade”. (VÉSCIO, 1995, p. 128). Provando que em meio de
um progresso urbano e material notável ainda ocorrem dramas que evocam a
fragilidade humana.

32
1.5 Análise de narrativas

Analisar um texto e compreendê-lo supõe não só a familiaridade com a leitura


como também uma metodologia, ainda que informal. Esse tópico propõe uma
abordagem que auxilie a leitura sem perder a visão subjetiva, que é importantíssima
para a análise literária.2

1.5.1 Os elementos de uma narrativa

Toda narrativa estrutura-se sob cinco elementos. Sem fatos não há história, e
quem vive os fatos são os personagens em um determinado tempo e lugar.
Finalizando a estrutura, devido ao fato desta ser uma prosa de ficção fica então clara a
necessidade de um narrador, pois é ele quem fundamenta o termo narrativa.

1.5.1.1 Enredo

Enredo é o conjunto de fatos de uma história. Segundo Gancho (2006, p. 12)


duas são as questões fundamentais para se observar em um enredo: sua estrutura –
sendo as partes que o compõem – e sua natureza ficcional. A verossimilhança pode
ser aplicada a narrativas quando se percebe que os fatos de uma história não
precisam ser verdadeiros. Entende-se como verdadeiros, por corresponderem
exatamente a fatos exteriores ao texto, mas devendo ser verossímeis; ou seja, mesmo
sendo inventados pelo autor o leitor consegue acreditar naquilo que lê. Esta
credibilidade advém da organização lógica dos fatos dentro do enredo, apresentando
correlação entre os fatos da história. Quanto as partes do enredo, para a compreensão
destas é preciso entender que histórias tem mais do que princípio, meio e fim. Existe
um elemento estruturador das partes: o conflito. Em geral, define-se conflito pela
tensão criada entre o desejo do personagem principal e alguma força opositora, sendo
esta outra personagem, o ambiente ou até mesmo o seu universo psicológico.

Destaca-se entre os enredos, o enredo psicológico que é o caso do romance


analisado pela dissertação, nesse os fatos não ficam sempre evidentes, pois nem
sempre equivalem a ações concretas dos personagens, e sim a movimentos interiores.
Entende-se o enredo psicológico como um enredo de ação, pois por mais que os
conflitos sejam internos esses se equivalem de verossimilhança e partes, portanto
passível de análise.

2
Esse item tem como referência bibliográfica o livro GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar
narrativas. São Paulo: Ática, 2006.

33
1.5.1.2 Personagens

Os Personagens são seres fictícios responsáveis pelo desempenho do enredo,


seres que pertencem a história e, desta forma, só existe se tem atos ou falam. Se um
ser é comentado na história por terceiros e não fala, e nem age, não pode ser
considerado uma personagem. Classificam-se quanto à caracterização:

- Personagens planas: possuem um pequeno número de atributos

- Personagens redondas: são mais complexas, apresentam uma variedade


maior de características, como características psicológicas, sociais, ideológicas e
morais. Podendo inclusive mudar ao decorrer da história.

Segundo Gancho (2006, p. 22) a mesma personagem pode ser julgada de


maneiras diferentes para cada personagem, narrador ou leitor. Portanto poderá
apresentar características morais diferentes dependendo do ponto de vista adotado.

1.5.1.3 Tempo, espaço e narrativa

Trata-se de um elemento com várias nuances, pode-se considerar a época em


que se passa a história, que constitui um pano de fundo para o enredo, que nem
sempre é a mesma época em que a história é escrita. Quanto ao período de duração
da história, algumas se passam e um período curto de tempo, como é o caso do
romance ““Os Ratos””, outras ao contrario levam décadas para serem contadas, aqui
pode-se falar sobre a obra “O tempo e o vento3”, e outras ainda não tem esse tipo de
especificação, como “A paixão segundo GH4”.

Tempo também pode ser considerado cronológico ou psicológico sendo o


primeiro, que transcorre na ordem natural dos fatos, do começo ao final, linearmente.
O segundo transcorre na ordem determinada pelo desejo ou imaginação do narrador,
alterando a ordem natural dos fatos, é ligado ao enredo, e não é linear.

Quanto ao local onde se passa a ação em uma narrativa. Tem como principais
funções situar as ações das personagens e estabelecer uma interação entre eles
influenciando suas atitudes, pensamentos ou emoções. Pode também ser alterado
pelos personagens. O termo espaço dá conta do lugar físico da história. Para designar
um “lugar” psicológico é usado o termo ambiente.

3
Trilogia escrita por Érico Verissimo, composta por 7 volumes divididos em 3 livros, que conta
a história da ocupação do Estado do Rio Grande do Sul, até o ano de 1945 – ano do final do
Estado Novo.
4
Livro de Clarice Lispector, que relata a perda da individualidade de uma mulher cujas inicias
são G.H, após ter esmagado uma barata na porta de um guarda-roupa.

34
O ambiente para Gancho (2006, p. 28) apresenta várias características para
análise: é dele a capacidade de situar os personagens no tempo, no espaço e grupo
social, estende-se a projeção dos conflitos vividos pelas personagens, podendo até
estar em conflito com as personagens. E, por fim, fornece os índices para o
andamento do enredo. Por exemplo, é muito comum, em romances policiais, o
ambiente fornecer pistas para o desfecho, muitas vezes, apenas perceptível para o
leitor que apresenta uma leitura mais atenta. Para se caracterizar o ambiente, levam-
se em consideração os seguintes aspectos: época (em que se passa a história),
características físicas (do espaço), aspectos sócio econômicos, psicológicos morais e
religiosos das personagens.

A variantes de narrador podem ser inúmeras, o autor cria um narrador para


cada obra. É importante esclarecer que o autor não é o narrador, esse é apenas uma
entidade da ficção, ou seja, uma criação do autor. Quanto aos tipos de narrador, para
Gancho (2006, p. 31) ele se divide em dois grandes grupos: os narradores em terceira
pessoa e o narrador personagem.

O narrador em terceira pessoa é o que se posiciona do lado de fora dos fatos,


também pode ser chamado de narrador observador e tem como principais
características a consciência e a onipresença. Também são considerados narradores
em terceira pessoa o narrador intruso, que fala diretamente com o leitor julgando o
comportamento dos personagens. O narrador parcial, que se identifica com
determinada personagem da história permitindo que esta tenha mais espaço que as
outras. E o narrador personagem, aquele que participa diretamente do enredo como
qualquer personagem, e por isso não pode ser considerado nem onipresente ou
onisciente podendo ser um protagonista ou não.

1.6 Analise de narrativa aplicada ao romance “Os Ratos”

1.6.1 Enredo

O romance “Os Ratos” é uma obra estruturada pela cronologia dos


acontecimentos, pelo lado psicológico de Naziazeno, a obra descreve um drama
cotidiano. Como já dito anteriormente o romance possui um enredo psicológico, ou
seja, boa parte da trama desenvolve-se na cabeça de Naziazeno, tendo base nos seus
pensamentos e sentimentos. A história apesar de não ser totalmente baseada em
fatos reais provém de uma experiência verdadeira.

35
O próprio Dyonelio assume que começou a escrever “Os Ratos” baseado na
angustia da mãe que imaginou que os roedores comeriam o dinheiro deixado para
pagar o leiteiro na manhã seguinte. Porém todos os percalços de Naziazeno durante o
período do dia em que o personagem perambula pelo centro são verossímeis, o
personagem poderia ter realmente passado pelos lugares descritos, mas não há
certeza absoluta que isso de fato aconteceu.

O conflito gerador da trama é o de Naziazeno com o leiteiro, a sua sensação de


inequidade e a necessidade de acertar a dívida. Nesta busca pelos 53 mil reis o
funcionário público interage com diversos personagens, entre eles a cidade de Porto
Alegre e o seu psicológico.

1.6.1.1 O Enredo do Romance:

Naziazeno acorda certo dia da sua vida e depara-se com o leiteiro


questionando sua honra, pois cobra-lhe que acerte o valor da conta do leite fornecido
que estava atrasada. São cinquenta e três mil reis, que o funcionário público
obviamente não tinha consigo a determinado ponto do mês. Após a discussão, o
leiteiro promete que, caso a dívida não seja acertada, suspenderá o fornecimento.

A revolta de Naziazeno direciona-se a sua esposa, Adelaide, que não permite


que o filho do casal, Mainho, que acabava de se recuperar de uma doença muito
grave, fique sem o leite, já que muitos alimentos, como a manteiga, por exemplo, já
tinham sido cortados da despensa da família. Movido pela discussão, ele decide sair
de casa e tentar resolver o mais rápido possível a situação.

Ao sair de casa, sua visível revolta transforma-se em covardia e o personagem


principal enfrenta os olhares dos vizinhos, que acompanharam a discussão,
encurralado pela vergonha que a situação lhe gera e o personagem vive momentos de
indecisão, ao decidir se cumprimenta ou não o vizinho Fraga.

Já dentro do bonde, meio de transporte que usa para chegar ao centro da


cidade, analisa o comportamento das outras pessoas que moram a sua volta ou que
estão no bonde com ele. No percurso do arrebalde até o centro da cidade, lembra-se
também do sufoco que foi a doença do filho e movido pela conversa de dois estranhos
em um banco próximo, lembra-se das apostas que já fez em corridas de cavalo.

Ao desembarcar do transporte, a necessidade de conseguir o dinheiro já está


clara na cabeça de Naziazeno, e ele entra em um café no centro da cidade e começa
a analisar as possibilidades de consegui-lo. Pensa que pode pedir o dinheiro

36
emprestado para o Diretor da repartição onde trabalha, pois o chefe já o desapertou
nos momentos de doença do filho. Lembra-se de Duque, um amigo que é batalhador e
pode livrá-lo dessa situação difícil, ele poderia acompanhá-lo às casas de penhores ou
aos agiotas sem nenhum questionamento, porque compreende muito bem a situação
de não ter mais verba a essa altura do mês. Imagina-se pedindo o dinheiro
emprestado ao Diretor, e esse lhe dando a quantia desejada, a ideia de conseguir o
dinheiro lhe dá outro ar, sente-se um homem revigorado, em paz com seus deveres.

Encara o relógio, ainda é cedo para chegar na repartição, a essa hora da


manhã o chefe ainda não estará lá. Decide, então, procurar por Duque nos cafés e
locais que o amigo costuma passar o tempo durante o dia, anda um pouco pelo centro
da cidade, mas não encontra o amigo. Decide encaminhar-se até o local de trabalho,
chegando lá pergunta pelo diretor, mas ele ainda não havia chegado. Descreve o seu
trabalho, sua função passando notas a limpo, diz que não há necessidade de levar o
serviço muito a par do tempo, costuma deixar os livros com cerca de uns dez meses
de atraso. Retorna ao centro, encontra-se com Alcides, outro de seus amigos,
pergunta por Duque, mas Alcides também não sabe o paradeiro do amigo. Naziazeno
conta a Alcides a situação em que se encontra, sua vergonha e a necessidade de
conseguir o dinheiro, vão juntos procurar por Duque pelo centro da cidade, não
encontram o amigo e resolvem colocar alguns tostões no bicho para garantir quem
sabe a solução do problema.

Passadas as primeiras horas da manhã, o personagem principal resolve


encaminhar-se à repartição com a esperança de que o diretor atenda ao seu pedido,
mas infelizmente a resposta desta vez é negativa: “o senhor pensa que eu tenho
alguma fábrica de dinheiro?” (MACHADO, 2004, p.50). Deixa a repartição atordoado,
com tudo girando ao seu redor.

Sente-se mentalmente esgotado, não tem nenhuma outra ideia de como


conseguir o dinheiro, e metade do dia já se passou. Encontra-se com Alcides no
horário do meio dia, conta-lhe que não conseguiu o dinheiro e esse pede que
Naziazeno procure Andrade, e peça para que inteire a quantia de uma comissão ainda
não liquidada na venda de um automóvel. O funcionário público sai em caminhada até
a rua Independência, chegando lá Andrade diz que a parte que ainda está em haver
deve ser acertada pelo comprador, o senhor Mister Rees, que trabalha no New York
Bank. Tenta em vão encontrar Alcides para explicar a situação, mas não o encontra.
Vai então ao banco, tentar receber o valor, mas o Mister Rees está em viagem para o
Rio de Janeiro, sente-se aliviado, não saberia como cobrar esse dinheiro.

37
Quase duas horas da tarde, e ele ainda não almoçou, sente uma fraqueza.
Decide retornar ao centro procura por algum conhecido, encontra-se com Costa
Miranda, pede-lhe dez reis para o almoço, o conhecido lhe empresta cinco. Lembra-se
do Dr. Romero, negociante que já lhe adiantou um vale uma vez. Com o dinheiro no
bolso vem-lhe a indecisão de o que fazer, monta um plano na cabeça, em uma
tabacaria perto há uma roleta, local onde pode tentar a sorte e conseguir o dinheiro.

Adentra na tabacaria, passa pela porta de vai-e-vem que separa o salão de


entrada do salão de jogos, senta-se à roleta e todos os jogadores fazem as suas
apostas. Um tumulto e um estado de confusão atingem a cabeça do personagem
principal, tira o dinheiro do bolso, pensa em jogar, mas um intuito o inibe. As apostas
continuam, fica ali observando o jogo de um desconhecido como se fosse o seu, até
que retorna à realidade percebendo o seu engano e deixa a sala de jogos. Confere o
bicho do dia, ele e Alcides não terão retorno dos tostões investidos no jogo.

Naziazeno caminha pelo centro com outro plano na cabeça, vai até uma
fornecedora onde já teve um vale e pede que o caixa lhe adiantasse mais um pouco
de dinheiro, a tentativa revela-se inútil. Sente-se cansado, os pés parecem feitos de
chumbo, o dia já se encaminha para o seu final, muitos estabelecimentos já fecham as
portas. Nos arredores do mercado público, encontra-se com Alcides novamente,
conta-lhe como passou a tarte, o amigo percebendo seu estado paga-lhe um copo de
leite. Finalmente localizam Duque, está em outra mesa do café com um desconhecido,
fazem sinal para o garçom e pedem que leve o recado de que precisam falar com
Duque.

Quando Duque chega à mesa dos dois amigos, Alcides rapidamente o coloca a
par da situação. Decidem que Alcides vai até o agiota Rocco, pedir-lhe um
empréstimo. Combinam de se encontrarem no café Nacional, em frente ao Banco do
Comércio. Duque apresenta a Naziazeno o seu companheiro de mesa, o rábula
Anacleto Mondina, acertam a conta do café e dirigem-se para o ponto de encontro,
enquanto caminham conversam sobre a situação do funcionário público.

No Nacional, o leite que havia tomado de almoço começa a fazer-lhe mal,


sente-se enjoado e com ânsias de vômito, os companheiros aconselham que peça
uma charrua, a qual bebe em pequenos goles. Alcides retorna, não conseguiu a
quantia, pois o agiota tinha suspendido os empréstimos temporariamente. Agora
Duque assume a dianteira, pega Naziazeno pelo braço e leva- o para Fernandes,
outro agiota, outra tentativa frustrada. Passam por outro escritório de agiota e também

38
não conseguem a quantia. Retornam ao Nacional com um novo plano em mente:
abordar Mondina.

Mondina simpatiza com a situação, mas diz que no momento não pode ajudar
os companheiros com a quantia. Duque lembra-se então do famoso anel de bacharel
da família de Alcides, que está penhorado por cerca de 80 mil réis. O plano seria
retirar a joia do penhor e penhora-la em outro lugar por um valor maior. Alcides não
gosta muito da ideia, mas acaba cedendo e eles saem para essa nova empreitada.

Naziazeno já não tem mais forças. A casa de penhores está fechada, ligam
para o dono, e esse aceita recebê-los em sua casa. Esclarecidas as necessidades,
vão até a casa de penhores onde acertam a letra e retiram o anel do penhor. Em
posse do anel, dirigem-se para o Dupasquier, o joalheiro oferece pelo anel cerca de
trezentos e cinquenta mil reis, mas como o caso era de penhora não tem interesse no
negócio. Duque sugere que conversem sobre o assunto em um café, Mondina está
encurralado, oferecem-lhe que o rábula penhore para eles o anel apenas pela noite,
para que desapertem Naziazeno da situação em que se encontra. Mondina tira a
carteira do bolso, e não tem o dinheiro trocado, vão até a bilheteria do cinema onde
conseguem trocar as notas.

Salvo, momentaneamente, pela astúcia de Duque, Naziazeno retorna de bonde


a sua casa, renovado, durante a noite, com o dinheiro do leite, manteiga, um pedaço
de queijo, um brinquedo para o filho e ainda recupera o sapato da mulher que estava
no sapateiro.

Entra em casa visivelmente abatido, Adelaide insiste que ele conte como
conseguiu o dinheiro enquanto ele janta, mas ele desconversa e pede que a esposa
mande o menino da vizinha comprar-lhe uma garrafa de vinho. Depois de finalizada a
refeição, pensa em como fará para entregar o dinheiro ao leiteiro. Naziazeno pensa
em levantar cedo e entregar o dinheiro em mãos ao leiteiro, e Adelaide sugere que o
marido deixe o dinheiro em cima da mesa ao lado da panela, na qual o leiteiro deixa o
leite todas as manhas. Opta pela opção da esposa, pois está muito cansado de
caminhar o dia todo, acha melhor aproveitar a noite e a manhã de sono.

Deitam-se, o filho já dorme desde que Naziazeno chegou em casa, nem


chegou a ver o presente. Adelaide dorme em seguida, o marido fica revivendo as suas
andanças e sente os membros doloridos do dia atribulado, doem-lhe até os olhos! Mas
o sono não vem. Os barulhos noturnos o incomodam, escuta passos do lado de fora, o
filho movimenta-se na cama ao lado.

39
No silêncio da noite escuta pequenos ruídos, como se fossem insetos ou algo
parecido. Dá-se conta então que a cozinha está cheia de ratos! Escuta o som dos
ratos roendo o dinheiro, arrepende-se da decisão de deixá-lo em cima da mesa. Sente
sono, quer examinar a situação, mas não tem coragem e sente-se cansado demais
para levantar. Percebe o absurdo de suas ideias, pensa em acordar Adelaide, mas a
esposa dorme profundamente. Cronometra a passagem do tempo pelas idas e vindas
do bonde. Deseja muito conseguir dormir.

Com um baque a porta se abre e ele escuta o barulho do jorro do leite,


Naziazeno enfim consegue livrar-se da insônia e é recompensado pelo sono.

1.6.2 Os personagens

A trama apresenta vários personagens, como o personagem principal:


Naziazeno Barbosa. E os outros secundários, como o leiteiro com quem ocorre a rixa
logo pela manhã, Adelaide a esposa de Naziazeno, Alcides e Duque amigos de
Naziazeno, o chefe da repartição em que o personagem principal trabalha, outros
colegas de repartição, como Clemente, o faxineiro e inclusive a cidade de Porto
Alegre.

O personagem principal, Naziazeno, é redondo, possui mais características e


sua personalidade possui muitas nuances, apesar de ser uma pessoa com um
passado no interior e levar uma vida simples na cidade grande. O funcionário público
possui diversas nuances, medos, preocupações e desejos. Um exemplo de desejo é
levar a família para passear no centro, podem até mesmo ir ao cinema. Devido ao seu
comportamento, pouca força de vontade e as presepadas apresentadas no decorrer
do livro levam-me a classifica-lo como um anti-herói. Naziazeno tem consciência de
seu lugar, e mesmo tendo alternativas para mudar a sua realidade e
consequentemente a realidade de sua família, o personagem deixa-se levar pela
inercia quando vê o seu problema resolvido e o romance deixa a impressão que a vida
do funcionário público continuará exatamente da mesma forma.

Outro personagem que pode ser lido como redondo é a cidade de Porto Alegre,
pois possui ela vários nuances e vontades, que ficam claras através das descrições de
Naziazeno. A capital responde aos estímulos de Naziazeno e acompanha o seu
estado de ânimo durante o dia.

Os outros personagens são considerados secundários, planos, mesmo os com


participação considerável no livro. Duque, para Naziazeno, é sempre o colega esperto,
mais preparado para a vida, quem o ajudará a desenrolar o problema e de fato, o

40
amigo é quem cria o plano que resultará no dinheiro para quitar a dívida. Adelaide, é a
esposa, que fica em casa, que depende de Naziazeno para tudo e que acredita que a
vida da família deveria ser levada na “uniformidade” (MACHADO, 2006, pg. 09)
ficando feliz e realizada quando o marido retorna para o lar com o dinheiro, pedaços
de manteiga e queijo, um presente para Mainho, filho do casal, e com o seu sapato
que estava retido no sapateiro.

1.6.2.1 Naziazeno Barbosa, o anti-herói – Personagem principal

Quando pensamos em Naziazeno logo monta-se um estereótipo muito


conhecido em nossas mentes:

Naziazeno Barbosa é funcionário público burocrata da


repartição que cuida das obras de ampliação do porto; e
desempenha uma função subalterna, representativa de uma
classe social intermediária entre os trabalhadores braçais e
os chefes. Sua origem é a pequena cidade de interior, de
onde saiu atraído pelo desenvolvimento da cidade grande.
Ele faz parte da massa anônima, que povoa a periferia e
movimenta-se no centro comercial burocrático enquanto
força de trabalho. Daí a importância do bonde e de todo o
traçado urbano das ruas centrais, por onde Naziazeno
peregrinava em busca do dinheiro para pagar o leiteiro,
referencias que permitem um exercício de aproximação com
a realidade imediata, aumentando a força de persuasão e
denuncia da obra. (VÉSCIO, 1995, pg. 82)

Esse estereótipo de trabalhador urbano é reforçado pela realidade social de um


trabalhador urbano, considerado um funcionário público de baixo escalão,
marginalizado. “Esse é um homem novo no cenário social e também literário do Rio
Grande do Sul, até aí econômica e politicamente dominado pelas oligarquias rurais,
cujo poder gradativamente cede espaço à nova burguesia emergente”
(GRAWUNDER, 1997, p. 96). Considerando assim, que o campo diminui a sua
importância em relação às cidades, as próprias famílias descendentes de oligarquias,
nessa época, mandam seus filhos para estudar no exterior, formando assim médicos,
advogados e engenheiros, que voltam e concentram suas atividades na cidade e não
mais na lida do campo.

Porém Naziazeno não possui suporte familiar, teve a educação básica em


uma escola pública de interior e veio para a capital em busca de novas alternativas
que não a vida dedicada à lida no campo, e o personagem encontra-se “angustiado
por não ser capaz de suprir com dignidade as necessidades básicas de sua família”
(GRAWUNDER, 1997, p. 96). Esse caminho, em busca da dignidade é solitário, tão

41
solitário que boa parte dos diálogos do livro são do personagem com ele mesmo, dele
com as suas memórias.

“Os Ratos” foi lançado no período em que o autor foi preso político. “Dyonelio
solta ao mundo seus “ratos”, as angústias e palavras simples que corroem o dia-a-dia
da maioria socialmente desprivilegiada” (GRAWUNDER, 1997, p. 95). A obra é um dos
primeiros exemplares da literatura gaúcha que é voltada para a realidade dos
personagens dominados e marginalizados.

Monica Raisa Schpun aponta que a utopia urbana não existe no discurso de
Dyonelio Machado quando o autor fala da minoria que Naziazeno fazia parte, afirma
que “o olhar, positivo, tornou-se dominante, mas as vozes dissonantes soaram
anacrônicas, nostálgicas e conservadoras” (2000, pg. 138). O discurso do autor limita-
se em seguir a contramão da nostalgia, Naziazeno lembra-se da infância na cidade
pequena e rural como algo de que “ele se livrou”. Ou muitas vezes pensa nas
comodidades rurais fundidas com a realidade urbana, quando observa, no capítulo
dois, quando está no bonde que o levará pela manhã do arrebalde até o centro, outro
personagem que tinha vacas e animais de criação em sua propriedade. Em momento
algum, o funcionário público pensa em retornar para o interior, apenas admite que
possuir esse meios – animais de porte rural – na cidade daria a sua família melhores
condições de existência.

Trata-se de um discurso fora do tom, pois o crescimento urbano diminui as


esperanças e utopias da camada mais dominada da sociedade. Naziazeno grita por
condições melhores para si e sua família, porém não encontra em sua realidade
formas imediatas de conseguir tal melhora.

“O fato histórico novo é que, na modernidade, se estabelece um mercado de


imagens, que interage com o imaginário coletivo” (BOLLE, 1994, p.68). Quando
estudamos esse espaço imagético podemos medir o grau de consciência histórica de
variadas classes sociais. Compreende-se também que o autor sobreponha a imagem
do personagem principal em uma espécie de personagem coletivo, alguém que
represente várias realidades das classes oprimidas. Muitas vezes, como Naziazeno, o
personagem possui a capacidade de mudar a sua realidade, só não vê pois está tão
inserido dentro dos seus problemas que não encontra nenhuma saída aparente. O
funcionário público chega a cogitar, durante a sua noite de insônia, a possibilidade de
encontrar mais de um emprego, algum que possa gerar mais remuneração ou que
combinado com o da repartição pública consiga uma renda adequada para sustentar a

42
sua família, no entanto esse pensamento não toma uma forma definida e o
personagem volta a ser absorvido pelas suas preocupações.

Naziazeno, com sua visão de mundo, apanha fisionomias, conflitos miúdos de


gente pequena, que povoa e frequenta, anonimamente, o centro da cidade. “Dessa
sociedade, da totalidade, ele individualiza um representante, apregoando sua
incômoda existência e marginalização do pensamento da industrialização social,
vinculado a este espaço como a narrativa” (GRAWUNDER, 1997, p. 81).

Os acontecimentos narrados na história possuem um cunho e motivos


sociológicos. Por meio deles o leitor pode acompanhar as situações e processos que
são característicos à sociedade onde o funcionário público vive. No livro, há
claramente, a denúncia de um processo de dominação. Naziazeno não vê soluções
aparentes para a sua situação financeira, busca sempre meios rápidos e fáceis para
conseguir o dinheiro para quitar a sua dívida.

A opção do autor, em aprofundar a problemática do funcionário público com


ênfase no aspecto psicológico, eleva a trama a um caráter mais convincente,
entretanto, o personagem oprimido não está fora do mundo. “Pelo contrário, localiza-
se em Porto Alegre, nas obras do porto, nas ruas centrais, nos cafés, no jogo de
roleta. É ali, bem no coração da cidade grande, e também lá, na periferia que o
personagem sofre os enxovalhos da vida na sociedade capitalista”. (VÉSCIO, 1995,
pg. 83) e essa estrutura, que se apresenta sufocante, não é uma ideia, e sim uma
ação sofrida pelo personagem que tem como opressor a própria sociedade. O
problema, de não conseguir recursos financeiros suficientes para gerir a casa e a
família, configura-se a um grau de realismo tão persuasivo que ajuda a criar os
vínculos entre o personagem e o leitor, enquanto esse desfruta da obra.

É do drama psicológico do personagem, da sua angústia com o problema


pessoal que nasce o psiquismo que envolve o leitor com a história. “Dyonelio trata a
questão social e ideológica do indivíduo, revelando as suas consequências mais
graves e profundas” (VÉSCIO, 1995, pg. 84). O autor busca nos constrangimentos,
medos e desapontamentos a totalidade do personagem. Esse lado, das frustrações
muitas vezes é esquecido pelos outros autores, que tentam aproximar seus
personagens do leitor por meio das conquistas e pontos positivos da personalidade
deles. Em “Os Ratos” ocorre o exato oposto.

O dado subjetivo da existência, as miudezas individuais não


encontram espaço no grande esquema discursivo da
história das cidades, dos estados e dos países, costuma-se
pautar por uma tomada genérica, evitando as

43
particularidades. Em “Os Ratos”, dá-se ao contrário, a
apreensão da realidade se faz pela pequenez, pela
impotência de um ser que sente a cidade, a repartição, o
movimento, dos homens de negócio, a partir de sua
angústia e opressão. O estado psicológico da personagem
determina a apreensão do que se passa à sua volta. Ele vê
e sente a partir de seu drama. Esta situação de fragilidade
possibilita o discurso narrativo da interioridade que se cruza
com o contexto histórico, revelando, entretanto, uma outra
forma de registro que privilegia antes de mais nada o vivido.
(VÉSCIO, 1995, p. 84)

O funcionário público está completamente ciente de sua posição e sua classe


social, tanto que quando observa os outros funcionários da repartição que são
teoricamente de “uma classe social mais baixa” sente uma espécie de repugnância
dos personagens que trabalham como faxineiros da repartição:

O relógio da Prefeitura marca pouco mais de oito


horas. Vem-lhe um quadro: a repartição toda aberta, vazia,
e encostados a uma porta que dá pra uma areazinha com
piso de tijolo, Horácio e Clementino desfiando histórias
lentas, antigas. Naziazeno sente-se todo trepidação, ainda.
Mas já não tem muito entusiasmo em chegar logo à
repartição, abordar o diretor. Nem ele há de cumprir logo
assim, sem exame, aquele plano de chegar sempre cedo à
repartição. É a hora da limpeza. Horácio e Clementino,
serventes privilegiados, ficam ali... mas sempre lhe causou
certa repugnância e qualquer outra coisa mais ver o velho
Jacinto, curvo, com as abas do capote varrendo o chão,
varrendo tudo, a trazer as pencas de escarradeiras, o ar
atarantado e fantástico, e ir colocando-as nos seus lugares,
sob o olhar fiscalizador e vulgar do Clementino...
(MACHADO, 2006, p. 25)

Acima a descrição da chegada cedo à repartição e os outros personagens


que estão trabalhando lá, o que varre e o que fiscaliza o trabalho. Horácio e
Clementino, são os serventes, representam o cotidiano e como o tempo pode ser
preenchido com a vulgaridade banal do dia a dia, Naziazeno, se considera a cima
deles. Destaca-se a descrição da repartição que segue o mesmo padrão, salienta-se o
que está por baixo: o chão, as escarradeiras. O anti-herói fala muito pouco, mas sua
mente é lotada de comentários e “achismos” sobre os outros funcionários da
repartição:

Naziazeno chega à porta da repartição, à escada.


O “capataz” vem descendo, sem casaco, a camisa muito
limpa, estofada pela barriga redonda. Uma corrente, em
arco, de ferro branco e lustroso, parte do cinto, sobre a
frente, e vai-se perder num dos bolsos da calça, com as
chaves. O capataz tem uns papéis na mão.
— O diretor está?
— Não veio ainda. (MACHADO, 2006, p. 31)

44
O olhar de Naziazeno classifica-se como interno, por isso considera-se que
ele conhece o funcionamento da repartição e não se assusta com a conduta errada
dos colegas.

Ele se dirige para a sua carteira. Na sala,


pequena, trabalham mais dois: o primeiro escriturário e o
datilógrafo. Ambos muito quietos. O primeiro escriturário
confere contas. É um serviço que faz há muito tempo.
Dispõe de grande prática. Faz cálculos, usa tinta encarnada,
bate muitos carimbos. Depois, quando tem já um grupo de
contas respeitável, ergue-se e repassa-as uma a uma (com
todas as suas “primeiras”, “segundas” e “terceiras vias”) nos
dedos — que ele a cada passo molha nos lábios com um
certo ruído. O datilógrafo, quando não está “batendo”, lê um
livro, aberto dentro da gavetinha ao lado. (MACHADO,
2006, p. 32)

Ao descrever sua própria função, fica claro o quanto o trabalho na repartição


é obscuro e tedioso, também fica aparente como a sua atitude ajuda a empacar o
sistema público e encobre as atitudes do diretor

O trabalho de Naziazeno é monótono: consiste em


copiar num grande livro cheio de “grades” certos papéis, em
forma de faturas. É preciso antes submetê-los a uma
conferência, ver se as operações de cálculo estão certas.
São “notas” de consumo de materiais, há sempre
multiplicações e adições a fazer. O serviço, porém, não
exige pressa, não necessita “estar em dia”. — Naziazeno
“leva um atraso” de uns bons dez meses. (MACHADO,
2006, p. 33)

Como já foi descrito acima Naziazeno trata-se de um funcionário público, mas


com o decorrer do livro descobrimos que o personagem trabalha na secretaria de
obras do Porto, quanto a isso podemos observar a coesão de Dyonelio Machado nas
descrições no romance podemos compara-las com o Decreto Estadual nº 2.834,
regulamentado em 15 de junho de 1921 tratava dos assuntos do Porto da capital:

Os armazéns gozam das vantagens e favores de


alfandegados pela lei federal nº 2.544, de 4 de janeiro de
1912, art. 6º e seus parágrafos, arrecada taxas de atração
de navios e chatas, utilização de caes, expediente de
capatazias, armazenagens, transportes, reboques,
fornecimento d’água e lastro, guindastes e outros,
observando n’isso o regimem dos demais portos da União.
A tabela de taxas do referido porto foi baixada com o
decreto estadual nº2804, de 31 de maio de 1921. Os
serviços a cargo da administração do porto da capital estão
distribuídos por três diretorias: expediente, contabilidade e
estatística e a do tráfego do porto.

45
Véscio (1995, pg. 91) afirmava que a primeira diretoria, de expediente, era
formada por um diretor, dois secretários, dois datilógrafos, porteiro, contínuo, dois
serventes, telefonista e chofer. A segunda, denominada de contabilidade e estatística,
era composta de um diretor, um subdiretor, doze escriturários, um tesoureiro e um fiel.
A última e terceira diretoria, de tráfego do porto, constituía-se de um diretor, um
subdiretor cinco escriturários, três fieis de armazém, um ajudante, dez conferes de
primeira classe, dez conferes de segunda classe, dez conferes de terceira classe um
capataz geral, um encarregado dos guindastes um apontador geral, um médico, um
patrão das lanchas e um maquinista.

Dyonelio além de apresentar a repartição, enquanto quadro


semelhante ao da realidade, deixa escapar nas entrelinhas
o quadro de morosidade, ineficiência, paternalismo e
corrupção existente no serviço público estadual. A começar
pelo protagonista que abandona o trabalho durante o dia
todo, sem que ninguém o fiscalize, assim como o datilógrafo
que lê um livro aberto dentro da gavetinha, quando não está
batendo. Não menos problemática é a situação de dois
serventes privilegiados, cujo trabalho é fiscalizar o
verdadeiro servente, que realmente faz a limpeza, e atender
telefones. (VÉSCIO, 1995, p. 93)

O quadro de funcionários descrito no romance é completamente compatível


com a descrição acima. Adequado ao modelo da estrutura administrativa do governo
de Borges de Medeiros. O autor, Dyonelio Machado, conhecia muito bem a estrutura
pública que criticava, pois ele exerceu por anos a função de concursado da Secretaria
de Obras Públicas.

Dyonelio retrata, em sua obra, o clima de esgotamento,


marasmo, corrupção da repartição burocrática, visto pelo
prisma de uma possibilidade de emprego, que não oferece
condições de sobrevivência digna, mas a única alternativa
disponível para indivíduos como Naziazeno, que não sabe
fazer nada além de conferir e anotar dados. (VÉSCIO, 1995,
p. 95)

Nas entrelinhas do romance, percebemos a denúncia de um sistema viciado,


no qual o personagem principal, o anti-herói, Naziazeno pode ser considerado um
produto acabado de um Estado paternalista e autoritário. Revela que a busca pelo
dinheiro no mundo capitalista, na verdade, é uma luta diária e que Naziazeno
representa sim, milhares de trabalhadores urbanos que não recebem dinheiro
suficiente nem para bancar o leite e alimentação de sua família.

46
Dyonelio cria uma obra que mostra a mentalidade e os medos da classe
operária, marcando definitivamente a cidade em modernização e “Os Ratos” que
habitam a cidade moderna.

1.6.2.2 A cidade como personagem

Além de o livro ressaltar as relações dos personagens com a cidade e como


essa não exerce simplesmente o papel de cenário, tornando-se um personagem ativo
na narrativa, gera os percalços, acertos e erros de Naziazeno. Schpun descreve a
cidade no romance como:

Em “Os Ratos” a cidade funciona como um vetor essencial


apara práticas e relações sociais. Não se trata aqui de um
cenário ou pano de fundo para a ação, mas de um espaço
que ora se impõe como obstáculo às personagens, ora abre
brechas e atalhos para a realização de seus projetos; ora
dificulta, ora possibilita encontros (SCHPUN, 2000, pg. 129)

A cidade é parte integrante do romance como personagem, e será abordada


detalhadamente no capítulo 3 desta dissertação.

1.6.2.3 As personagens femininas e sua pouca participação

No Brasil, a constituição de 1981 não impedia as mulheres de votarem, pois


nela estava escrito que "São eleitores todos os cidadãos maiores de 21 anos",
entretanto a palavra “cidadãos” não era um plural que englobava os seres do sexo
feminino e do sexo masculino, tratava-se apenas dos homens. O direito de voto das
mulheres só foi adquirido em 1932, e, nesse mesmo ano, entra em vigor a “Legislação
trabalhista” que regulamentava o trabalho das mulheres, outro grande avanço para o
sexo feminino.

Podemos analisar as personagens femininas que são descritas no livro, e


perceber qual era a visão dominante na capital gaúcha dos anos 30. As personagens
são pouquíssimas, e evidenciam, assim, a identidade coletiva construída com o passar
dos anos – bom como o espaço moderno que começava a se configurar.
Aparentemente, a cidade era um espaço estritamente masculino.

A maior personagem mulher que aparece no romance é Adelaide, esposa de


Naziazeno, mãe de Mainho, que fica com o papel de dona de casa. Mesmo
preocupada com a situação de sua família, permanece em casa durante o dia e nada
faz para ajudar a resolver o problema familiar. É também importante ressaltar, que

47
Adelaide é o único personagem para quem Naziazeno aumenta a voz e impõe a sua
vontade, o casal – Adelaide e Naziazeno – tem uma briga feia antes de o marido sair
rumo ao centro em busca do dinheiro para quitar a dívida com o leiteiro.

Ele se anima:
— Quando foi da manteiga, a mesma coisa, como
se fosse uma lei da polícia comer manteiga. Fica sabendo
que eu quando pequeno, na minha cidadezinha, só sabia
que comiam manteiga os ricos, uma manteiga de lata,
amarela. O que não me admirava, porque era voz geral que
eles ainda comiam coisa pior.
Um silêncio.
Mexe nos bolsos; dá a volta à peça; vai até ao
cabide de parede, onde havia colocado o chapéu.
— Me dá o dinheiro — diz, num tom seco,
torcendo-se para a mulher, enquanto pega o chapéu.
E voltando ao “seu ponto”, depois de pôr no bolso
os níqueis que a mulher lhe trouxera:
— Aqui não! É a disciplina. É a uniformidade. Nem
se deixa lugar para o gosto de cada um. Pois fica sabendo
que não se há de fazer aqui cegamente o que os outros
querem.
A mulher não diz nada. Voltara a esfregar uma
qualquer coisinha na tábua da mesa.
Ele se para bem defronte dela e a interpela:
— Me diz uma coisa: o que é que se perdeu não
comendo manteiga, isso, que é mais um pirão de batatas do
que manteiga?
Ela não responde.
— E o gelo?... pra que é que se precisava de
gelo?...
Faz-se uma pausa. Ele continua:
— Gelo... manteiga... Quanta bobice inútil e
dispendiosa...
— Tu queres comparar o gelo e a manteiga com o
leite?
— Por que não?
— Com o leite?!
Ele desvia a cara de novo.
— Não digo com o leite — acrescenta depois —
mas há muito esbanjamento. (MACHADO, 2006, p. 9 e 10)

Apesar da briga com Adelaide, Naziazeno cede às preocupações da esposa e


passa o dia todo buscando o dinheiro para quitar a dívida da família. Quando retorna
ao arrebalde e à casa durante a noite, encontra a mulher emburrada, pois passou o
dia todo a sua espera angustiada, mas no fim a situação é contornada facilmente com
uma simples explicação do funcionário público.

A mulher traz-lhe o café.


Parece meio emburrada.
— Tive um dia brabo hoje, Adelaide.
Ela olha-o com interesse.
— Depois te conto. Não sabes como me custou
esse dinheiro. Mas está aqui.

48
Tira os cinquenta mil-réis do bolso. Vai até à
cadeira onde se acha a sua roupa.
Traz as notinhas miúdas, os níqueis. (MACHADO,
2006, p. 151)

As outras personagens mulheres são apenas citadas, Naziazeno percebe a


presença delas, mas não há interação do personagem com as mesmas. Por exemplo,
ainda no primeiro capítulo uma das vizinhas do anti-herói observa por entre as cercas,
com o filho no colo, a discussão com o leiteiro.

São descritas mais três personagens mulheres, uma que acompanhada do


marido e do filho vai ao cinema. Naziazeno ao presenciar tal cena ainda pensa que no
final de semana seguinte virá com a família passear no centro, se conseguir dinheiro
para recuperar o sapato da esposa que ficou retido no sapateiro por falta de
pagamento. Ainda são descritas outras duas mulheres, que estão no bonde ou
esperando pelo mesmo acompanhadas de seus filhos.

As mulheres que habitam a mesma cidade que o funcionário público, são


frequentemente ignoradas pelo personagem em detrimento da observação dos seres
do sexo masculino. Naziazeno só observa os personagens masculinos, as
personagens mulheres do livro em sua grande maioria são mães e esposas, limitam-
se pela função que exercem perante os seus maridos. A única personagem mulher
que trabalha é a criada de Martinez, dono da loja de penhores onde está o anel de
Alcides:

— Penso que é esta a casa. — Alcides procura o


número, sobre a porta. — Olha o número.
Aperta a campainha.
A casa é um sobradinho. A porta da rua tem uma
gradezinha com vidraça, no alto. Alcides espia para dentro:
na meia escuridade distingue-se uma escada estreita com
degraus de mármore.
Segue-se um certo tempo. Depois, uma
criadinha, lentamente e com um aspecto tímido, vem
atender.
Pergunta o que querem, através da gradezinha,
cuja vidraça abriu.
— Queremos falar com o seu Martinez.
Ela fica um instante indecisa.
— Diga que é o moço que telefonou — acrescenta
Alcides. (MACHADO, 2006, p. 126)

Na sequência do mesmo capítulo, ainda aparece outra personagem mulher, a


esposa de Martinez, que aparentemente também fica em casa e gerencia o trabalho
da empregada, a esposa nem chega a aparecer, apenas fala com o marido na sala de
jantar e é ouvida pelo grupo de visitantes. No entanto, por mais que exista uma

49
relação entre Martinez, sua a esposa e a criada, não fica claro se há vínculo
empregatício ou qualquer tipo de pagamento apara os serviços prestados pela
“criadinha”.

Nenhuma das personagens masculinas da narrativa tem a sua identidade


atrelada a seu status familiar como as mulheres descritas. Naziazeno cita a situação
do filho doente para conseguir o dinheiro para quitar sua dívida, mas essa
característica está longe de ser a única citada para o personagem e não chega a
defini-lo completamente, o funcionário público possui muitas outras características
psicológicas que são descritas com o passar da narrativa.

Naziazeno, sufocado pela dívida com o leiteiro, vive uma experiência limitada
da cidade, e observa pouco as mulheres em 1935 estavam recém iniciando a marcar
presença no mercado de trabalho, logo as mulheres não tinham renda para ajudar o
personagem com a questão da dívida, e por isso devem ter sido ignoradas em grande
parte das descrições. Conforme pode ser observado no trecho:

Naziazeno cruza com inúmeros outros indivíduos em suas


andanças. Os códigos de comportamento, as formas de
entrar em relação e, de modo mais geral, a cultura urbana
de cada um parece ser comum a todos. E isso apesar das
diferenças entre os meios materiais de que dispõem,
inclusive para usufruir a cidade. (SCHPUN, 2000, pg.135)

Como Schpun (2000, pg. 136) aponta muito bem, que as mulheres não podiam
vivenciar e experimentar a cidade, Naziazeno mesmo encaixando-se no grupo de
indivíduos menos favorecidos monetariamente, ainda se apropria muito mais da
cidade do que as mulheres na época. De uma forma geral, Naziazeno vive uma cidade
marginalizada, por ser considerado de uma classe menos favorecida de trabalhadores,
mas ainda é considerado um cidadão da cidade, as mulheres – personagens do
romance – não vivenciavam nada além do interior das casas.

1.6.2.4 O dinheiro e as relações entre os personagens

Apesar de não considerar o dinheiro como um personagem na narrativa,


podemos ver claramente que os personagens se definem pela sua classe social e
posses. Clemente e Horácio, constituem o ponto mais baixo da pirâmide monetária da
obra, como já dito acima Naziazeno sentia um certo nojo dos personagens mais
simples que ele. Naziazeno ficava no segundo degrau da pirâmide, um funcionário
público de baixo escalão, sem muitas posses. Alcides e Duque estão acima de
Naziazeno, pois apesar de viverem de negócios eles são capazes de manter-se. E no

50
topo da pirâmide ficam pessoas como Martinez, o Rábula Anacleto Mondina, esses
personagens têm outros modos e observam a cidade de uma maneira diferente de
Naziazeno.

“O dinheiro também é o tema dominante da novela e do pensamento do


protagonista. (...) Naziazeno, na cidade dos anos trinta, conhece perfeitamente a
relação entre as coisas e o dinheiro, lembra-se continuamente do preço das coisas”
(VANGELISTA, 2000, 152).

Quanto custa um jornal?... É estranho, está em


dúvida... Duzentos ou trezentos? A sua cabeça anda
cansada, é isto. Mas não se lembra bem mesmo. Parece
que é trezentos: sofreu dois aumentos – o primeiro pra
duzentos réis, depois pra trezentos... É caro.
Já se lhe foram quinhentos réis... — Um medo o
invade, então! Mas é passageiro, e outra vez está ali com
ele a sua confiança. (MACHADO, 2006, pg. 26)

A repetida preocupação com o preço das coisas, não é apenas um reflexo da


crise de 1930, que afetou muitos níveis da população global, mas sim um atestado da
condição social de Naziazeno. Quem sempre teve que contar o dinheiro para saber se
podia ou não fazer determinada coisa. A pobreza não é um elemento novo na vida do
personagem.

Ele se anima:
— Quando foi da manteiga, a mesma coisa, como
se fosse uma lei da polícia comer manteiga. Fica sabendo
que eu quando pequeno, na minha cidadezinha, só sabia
que comiam manteiga os ricos, uma manteiga de lata,
amarela. O que não me admirava, porque era voz geral que
eles ainda comiam coisa pior. (MACHADO, 2006, pg. 9)

O personagem principal está fora da economia de autoconsumo (forma de


economia que se produz o que é necessário para sobreviver), e custa-lhe muito para
participar da economia de mercado (forma de economia onde se compra o que se
precisa para sobreviver).

E para realizar essas compras ou quitar a dívida, situação que move todo o
romance, não há relação entre o pagamento ser fruto de trabalho, porque não pensa
em trabalhar para conseguir o dinheiro, pensa imediatamente em seu amigo Duque,
que conhece as artimanhas da cidade e pode-lhe ajudar arrecadar a quantia
necessária. Como já foi explicado acima, Naziazeno não vê grande importância no seu
trabalho, inclusive sabe que, para que esse seja bem feito, precisa levar um bom

51
tempo de atraso, não há relação de satisfação ou de realização quando ele
desempenha seu trabalho na repartição.

A melhor alternativa para conseguir dinheiro rápido é possuir bens materiais,


que possam ser vendidos, trocados ou até empenhados, como acontece de fato na
história:

É um desaperto um anel daqueles.


Nunca ouvira Alcides falar naquele avô. Será por
parte de pai? Ele é Kônrad. Nome alemão. Alcides provém
duma família que já foi decerto importante. Uma
providência, aquele anel...
Sempre a sua precipitação, o seu atarantamento....
Perdeu aquele relógio. Lhe seria bem útil num instante
desses. (MACHADO, 2006, pg. 168)

Naziazeno pensa em pessoas, amigos que, de alguma forma poderiam ter o


dinheiro para emprestar, ou no seu chefe, que já lhe deu um adiantamento antes na
situação de doença do filho. Mas se entristece por não conseguir pensar em uma
solução, ele mesmo para a saída desta situação desagradável.

Aí é que está: que fazer, senão pedir esse dinheiro


ao diretor? Recorrer a um colega, nem pensar; nessa altura
do mês, nenhum deles podia socorrê-lo, mesmo que
quisesse.
— Tu tens alguma outra ideia?
— Não — respondeu Naziazeno. A sua ideia era
sempre “uma pessoa”: o diretor, o Duque... como isso o
humilhava! Qualquer daqueles seus amigos, com menos
cabeça do que ele, mexia-se. Ele se limitava a recorrer a um
ou outro... “— Eu sei que há muitos homens que arranjam
um biscate depois que largam o serviço” — dissera-lhe uma
vez a mulher. “— Por que não consegues um pra ti?” —
Realmente, por que não “produzir” como os demais, como
todo o mundo? Agora mesmo, toda essa manhã perdida em
busca de uma e outra pessoa, quando podia estar
agenciando, cavando... Certa ocasião ele vira o Duque
ganhar oitenta mil-réis pra pagar o aluguel atrasado
aproximando dois sujeitos: um que queria vender um
terreno, outro que queria comprá-lo. Foi uma transação
limpa e rápida. Ainda os sujeitos ficaram sorrindo pra o
Duque, um sorriso de admiração bondosa...
Mas onde estão os negócios? Onde estão? Ele
nunca “via nada”; era a aptidão que lhe faltava... .
(MACHADO, 2006, pg. 44)

52
Mais uma vez, o funcionário público coloca-se como vítima da sua situação,
aquele rompante de razão e força que mostrara a mulher ao sair de casa desaparece
e ele se torna uma espécie de “rato” na cidade.

Naziazeno “vê-se” no meio da sala, atônito, sozinho,


olhando pra os lados, pra todos aqueles fugitivos, que se
esgueiram, que se somem com pés de ratos... (MACHADO,
2006, pg. 46)

No romance, ao passar das vinte e quatro horas do dia do anti-herói, o dinheiro


adquire um valor simbólico, por meio do qual pode-se identificar a colocação social e o
gênero das personagens. Considera-se não somente a forma de adquiri-lo – se o
personagem já possui, se ele conseguiu trabalhando ou se ganhou no jogo por
exemplo – como também a forma de administrá-lo e de manejá-lo. Naziazeno não
possui carteira, por várias vezes, no romance coloca a mão no bolso para conferir se
os níqueis e as moedas continuam em seu lugar. O próprio fato de possuir uma
carteira já indica um status social acima, ao qual o personagem principal não pertence.

— Você diga ao Alcides que vá pagar aquela letra do agiota


de que sou avalista — observa-lhe, passado um momento.
— Não quero o meu nome na boca desses sujeitos.
Esses escrúpulos surpreendem Naziazeno, que sabe bem
quem é o Costa Miranda... Ainda com a mesma atitude
retraída e a cara fechada, mete a mão no bolso da calça.
Tira a carteira do dinheiro. Abre-a: as notas estão divididas
pelos seus valores, em compartimentos especiais. Escolhe
uma cédula de cinco mil-réis e passa-a a Naziazeno.
— Até amanhã — e desce pausadamente a Ladeira,
virando-se lentamente para um lado e outro, como que
observando sem pressa e sem tempo... (MACHADO, 2006,
pg. 75 e 76)

“A novela de Dyonelio Machado mostra como o caráter misterioso, iniciático e


alienante da moeda e do papel moeda permanece ao longo do tempo, em pleno
âmbito urbano e de mercado” (VANGELISTA, 2000, 159). A incapacidade do
personagem principal se relacionar com o dinheiro é proporcional ao número de
amigos que ele possui que o podem ajudar nesse momento de aperto. O romance, lido
sob o ponto de vista de Naziazeno, mostra o dinheiro como uma mercadoria de fontes
duvidosas, que nunca se sabe ao certo como foi conseguido. “Nesse mundo pequeno
burguês, no qual se luta também contra a ameaça de um trabalho manual ou de

53
serviço, o manejo do papel-moeda é uma forma de distinção de status e de gênero”
(VANGELISTA, 2000, 159).

A atenção dos personagens no manusear o dinheiro também exprime a


escassez da moeda, e a incapacidade clara em consegui-la de maneira fácil. Ao
chegar em casa, cansado, após o dia difícil, o funcionário público pensa em qual seria
a melhor maneira para entregar o dinheiro ao leiteiro, se deveria levantar pela manhã
e confrontá-lo, se simplesmente entrega o dinheiro, pelo fim a ideia de Adelaide
prevalece:

— Tu vais levantar cedo amanhã para entregar em


mão ao leiteiro? — quer saber a mulher.—
Pretendia. O que é que tu achas?
Por que não botava em cima da mesa da cozinha,
junto com a panela do leite?
— Com isto evita levantar de madrugada.
— É isto mesmo — faz Naziazeno, depois de refletir
um momento.
A surpresa que ele não vai ter quando abrir a porta
(ele leva a chave da cozinha) e der com o dinheiro...
Os seus lábios têm um leve sorriso bom... de
repouso... (MACHADO, 2006, pg. 155)

O gesto de pagar o leiteiro é confuso, pois dá-se a relação entre dois homens e
o dinheiro. Naziazeno opta por não estar presente e assim evitar discussões que
podem apenas começar de maneira péssima mais um dia, além do mais a
possibilidade de dormir algumas horas a mais pela manhã parece-lhe tentadora, pois
já passara o dia anterior todo caminhando pelo centro da cidade. Não imagina que sua
mente será sugada por um turbilhão de ideias que não lhe permitirá descansar durante
a noite, são muitos pensamentos, lembranças dos percalços do dia, insegurança de
que o leiteiro não encontrará o dinheiro ou até de que os ratos comam a tão suada
quantia.

Com a chegada da manhã, a normalização do abastecimento do leite,


Naziazeno dá por acabada a sua luta e assim entrega-se ao sono.

1.6.3 Tempo, espaço e narrativa

Os seguintes elementos de análise são abordados de maneira mais específica


no capítulo 3 da dissertação “Caminhando como rato”. O tempo, as vinte e quatro

54
horas do dia do funcionário público. As horas no livro correspondem do capítulo um ao
vinte a narrativa é linear, o tempo segue a passagem logica. E do capitulo vinte em
diante a história toma um rumo confuso, e é guiada pelas lembranças de Naziazeno.

E o espaço, a cidade de Porto Alegre na década de 1930. Ambiência da cidade


nessa determinada época cria o ambiente em que se passa toda a trama, esse item
também será detalhado de forma mais esmiuçada também no terceiro capítulo da
dissertação.

O narrador, configura-se como um narrador em terceira pessoa, mas que


observa a história através dos olhares e pensamentos de Naziazeno, o personagem
principal. o narrador portanto não é onipresente. Como o romance trata-se de uma
narrativa psicológica muitas vezes o narrador descreve o que se passa na cabeça do
personagem principal, como pode ser averiguado nas descrições do capítulo três.

55
2. SEGUINDO OS RASTROS DE NAZIAZENO

(…) se o historiador, na sua busca de construção de um conhecimento


sobre o mundo, quer resgatar as sensibilidades de uma outra época, a
maneira como os homens representavam, a si próprios e à realidade, como
não recorrer ao texto literário, que lhe poderá dar indícios dos sentimentos,
das emoções, das maneiras de falar, dos códigos de conduta partilhados,
da gestualidade e das ações sociais de um outro tempo? (PESAVENTO,
2000, p. 7, 8).

2.1. A História Cultural

Segundo Ginzburg (1989, p. 152) o que caracteriza o saber é a capacidade de,


a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa
não experimentável diretamente. A partir dessa afirmação, temos um resumo do que
significa a História Cultural e sua função primordial, qual seja, de uma certa forma juntar
as peças de um quebra cabeça com o que é fornecido e, assim, montar um quadro que
revele o todo.

Surge então a figura do historiador “detetive”, pois é ele quem deve determinar
a solução para o enigma e exercitar-se para reconhecer traços que nem sempre estão
completamente aparentes, percebendo detalhes escondidos os quais revelam partes
importantes da história e passariam despercebidos não fosse seu olhar treinado. Se há
um capital próprio à formação do historiador é justamente esse: ter um volume de
conhecimento disponível para ser aplicado e usado, dando margem a uma maior
possibilidade de conexões e inter-relações.

Sandra Jatahy Pesavento (2004, p. 65) chama atenção para a capacidade de


montar, combinar, compor, cruzar, revelar o detalhe, dar relevância ao secundário,

56
sendo esse o segredo de um método do qual a História se vale, para atingir os sentidos
partilhados pelos homens de um outro tempo.

Essa ideia de descoberta e construção de um todo a partir dos detalhes constitui


o ponto essencial do paradigma indiciário ou semiótico, e penetrou nos mais variados
âmbitos cognoscitivos, modelando profundamente as ciências humanas. Minúsculas
particularidades paleográficas foram empregadas como pistas que permitiam reconstruir
trocas e transformações culturais.

Trata-se de pensar a cultura como um conjunto de significados partilhados, ou


seja, que foram construídos pelos homens de uma determinada época para explicar o
mundo. A cultura pode ser analisada como uma forma de expressão e tradução de uma
realidade simbólica, admitindo-se que os significados das ações sociais se apresentam
de forma cifrada, portando em si uma apreciação valorativa.

Porém, este método segundo Ginzburg (1989, p. 157) sofreu críticas durante sua
implantação, devido ao apreço às disciplinas estritamente qualitativas, como a
matemática ou a física, por exemplo, que têm por objeto casos, situações e documentos
individuais, e, justamente por isso, alcançam resultados que propiciam uma margem
não limitada de casualidades. Isso pode ajudar a explicar por que a história não
conseguiu se tornar uma ciência galileana, e se manteve como uma ciência social,
inegavelmente ligada ao concreto, mesmo que o historiador não possa deixar de se
referir, explícita ou implicitamente, a séries de fenômenos comparáveis. O seu objetivo,
de fato, constitui-se utilizando uma drástica seleção dos elementos pertinentes.

Quanto à validação do discurso histórico considera-se que:

Formular assim o problema da História como fato verídico é


colocar simultaneamente todo um conjunto de questões que
dizem respeito tanto à pertinência e à representatividade dos
vestígios acessíveis, como à maneira de articular a relação entre
representações das práticas e práticas de representação.
(CHARTIER, 2002, p. 86)

O autor Roger Chartier (2002, p. 88) retoma que admitir uma margem de
incerteza irredutível e renunciar à noção de prova pode parecer decepcionante, como
um recuo ao propósito da disciplina. Contudo não existe outra via a não ser postular o
relativismo absoluto de uma história identificada com a ficção, pois as certezas de uma
história positivista são meramente ilusórias.

Pesavento (2004, p. 66) afirma sobre a metodologia da história cultural que é ler,
um texto em outro; remeter uma imagem a outra, associar diferentes significantes para
arremeter a um terceiro oculto, portador de um significado. Tudo isso multiplica a

57
capacidade de interpretação e faz parte das estratégias metodológicas que dão
condições a um historiador para ampliar seu referencial teórico ao empírico das fontes.
Fornece, então, meios de controle e verificação, possibilitando uma maneira de mostrar,
com segurança e serenidade, o caminho percorrido desde a pergunta formulada à
pesquisa de arquivo, produzindo sentidos e revelações, que ele transforma em texto.

A história seria a ficção controlada pelo recurso ao extratexto, considerando a


bagagem de conhecimentos da pessoa que está fazendo a análise, que é inclusive
registro e marca a revelação da exemplaridade do método seguido, a compor e
estabelecer o cruzamento dos dados usados na pesquisa.

Walter Benjamin define os fatos históricos e o papel do historiador como:

O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre


vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por
ser causa é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em
fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que
podem estar dele separados por milênios. O historiador
consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os
acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta a
configuração em que sua própria época entrou em contato com
uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele
funda um conceito do presente com um agora no qual se infiltram
estilhaços do messiânico. (1994, p. 232)

A partir da afirmação acima percebemos que a percepção histórica é de suma


importância e acontecerá com o passar dos anos. O entendimento de um fato como
importante historicamente dependerá de toda uma sequência de fatos que será posterior
a ele, da mesma forma como essa interpretação pode mudar no decorrer dos anos.

Pesavento (2004, p. 56) aponta para outro ponto importante para o entendimento
da História Cultural, a sensibilidade, pois essa representa o núcleo primário de
percepção e tradução da experiência humana no mundo. Quando afirma que “o
conhecimento sensível opera como uma forma de apreensão do mundo que brota não
do racional ou das elucubrações mentais elaboradas, mas dos sentidos, que vem do
íntimo de cada indivíduo” (PESAVENTO, 2004, p. 56). Deduzimos que as sensibilidades
seriam as maneiras pelas quais os indivíduos percebem e traduzem a sua realidade,
retornando assim, à reflexão de que a história seria uma espécie de ficção, porém
controlada, sobretudo pelas fontes que ligam o trabalho do historiador aos rastros do
passado. De uma maneira geral, pode-se pensar nas sensibilidades como
representantes do real e do não-real, remetendo ao mundo do imaginário, da cultura e
do seu conjunto de significações sobre o mundo.

58
Seguindo a sensibilidade somos levados ao imaginário e como a História Cultural
apresenta este novo conceito. Pesavento (2004, p. 43) afirma que: “entende-se por
imaginário um sistema de ideias e imagens de representação coletiva que os homens,
em todas as épocas construíram para si, dando sentido ao mundo”. Toda a ideia de
imaginário e sua sistemática remetem à compreensão de que ele se constitui dotado de
relativa coerência e articulação. Segundo Baczko, o imaginário é histórico e datado, ou
seja, em cada época os homens constroem representações para conferir o sentido ao
real. O imaginário também comporta crenças, mitos e ideologias sendo um construtor
de identidades. Ele é um saber-fazer responsável por organizar o mundo, produzindo a
coesão e o conflito.

De uma forma geral podemos dizer que a proposta da História Cultural seria
decifrar o passado por meio de suas representações. Fica claro o quanto este processo
é complexo, pois leva à leitura de códigos de um outro tempo, que podem mostrar-se,
por vezes, incompreensíveis, dados os fatos que o passado impõe.

A rigor trabalha-se com uma temporalidade escoada, algo não visto e não vivido,
só acessível utilizando-se registros e sinais do passado.

2.2. A literatura como fonte

Maria Zenilda Granwunder (1997, p.26) afirma que a literatura, em si mesma é


uma abstração e uma concretização, ou seja, um momento de síntese de oposições de
um mesmo objeto. E isto ocorre, pois o texto literário emerge e atua, num quadro
conceitual de cultura, em que cada atividade de criação, permuta e preserva
informações funcionando como um intertexto – uma unidade permeada de sistemas
semióticos – que não existem ou se manifestam apenas isoladamente. As diferentes
esferas de manifestações individuais e sociais coexistem em torno de uma noção
unificadora, um composto de elementos interativos, que gira em torno do ser humano e
sua linguagem. Cultura e Arte supõem essa linguagem complexa.

Dessa forma, o estudo da obra, ou de uma produção cultural, situa-se entre a


análise das relações intratextuais e o seu conteúdo latente – as experiências
psicológicas e culturais servem como plano de fundo.

Citando Ginzburg (1989, p. 168) é justamente graças à literatura de imaginação


que o paradigma da reconstrução da história conheceu um novo e inesperado destino.
O autor relata a importância que a literatura teve para o registro da história popular,
mostrando momentos históricos de pontos de vista variados e que precisam de

59
interpretação para uma leitura de toda a amplitude do quadro, pois nem só da visão dos
vencedores é feita a história.

A linguagem literária, quando analisada, pode assumir uma via dupla, em que
tanto a linguagem trabalha com a intertextualidade, podendo afetar a fala do autor, como
a linguagem de um sujeito poético, capaz de influenciar o ser do outro (o leitor) e da
sociedade. A ação da persuasão é possível, porque o escritor-artista é capaz de
perceber que os fatos humanos não se esgotam no real, mas estendem-se ao factível,
por meio das propriedades da linguagem. M. Bakhtin se vale de signos verbais para
afirmar que, a arte em geral pode ser considerada uma linguagem, como a obra literária,
é um texto, ou seja, uma espécie de sistema de comunicação entre o leitor e o autor.

Segundo Véscio (1995, p. 04) a narrativa, enquanto gênero, pode ser


considerada uma forma racional de apreensão da realidade, muito comum tanto no
discurso ficcional quanto no discurso histórico. Esse gênero mantém proximidades
claras com os dois campos da história e o da literatura. Assim, os discursos da ficção e
da história aproximam-se sob forma de um diálogo referencial entre os campos da
criação e da realidade, sob o traço da narrativa, dado comum a ambos.

Paul Ricoeur considera a narrativa pertencente às formas simbólicas, pois


aparece em todas as culturas provendo a forma de experiência do tempo:

Contando histórias, os homens articulam sua experiência do


tempo, orientam-se no caos das modalidades potenciais de
desenvolvimento, marcam com enredos e desenlaces o curso
muito complicado das ações reais dos homens. Deste modo, o
homem narrador torna inteligível para si mesmo a inconstância
das coisas humanas, que tantos pertencendo a diversas
culturas, opuseram à ordem imutável dos astros. (1978, p. 16)

Granwunder (1997, p.32) coloca a ideia de que a criação literária não seria um
fato isolado, ou seja, todo texto se compõe com referência a uma circunstância, tradição
ou norma, trabalhando como um intertexto. E quando um autor escreve pode expor ou
não os seus enunciados, confirmando que esse ato é coletivo, pois a escrita não tem
nenhum sentido se não for visualizada pelo outro. A produção e a legitimação de um
tipo de literatura ou de uma obra são o resultado da própria estruturação e valores de
um conjunto de instâncias que fazem parte da história individual de um leitor e do
escritor.

A observação de que os historiadores culturais acusam a narrativa tradicional de


descartar aspectos importantes do passado, desprezando a ligações da estrutura
econômica e social com a experiência e modos de pensar das pessoas comuns,
defendida por Peter Burke (1992, p. 327), aproxima a história tradicional da ficcional

60
devido à forma como os acontecimentos são tratados. O autor conclui dizendo que essa
tendência parece ser inerente à organização da narrativa.

Quando pensado como um dispositivo de produção de sentido, o texto se


desdobra sobre vários planos de linguagem, por isso nunca poderá ser tratado como
um objeto fechado, haja vista a escrita sempre poder ser submetida à intertextualidade
e ser considerada como exemplo de entidades mais amplas: ou seja, a manifestação de
discursos em diálogo e sintonia, contradição ou oposição.

Portanto, segundo Granwunder (1997, p.37) “Numa determinada época e


espaço, uma sociedade fala como instituição e a literatura, como escrita de uma
sociedade, fala como instituição literária. ” Essa fala funciona como a linguagem de
tendências ideológicas, que representam como os sistemas fechados – sociedade e
literatura – comunicam-se.

Visto que se deseja aqui aproximar a história, a literatura e a arquitetura, faz-se


necessário afirmar que a concepção da narrativa histórica apresenta elementos para
uma aproximação com o ficcional, uma vez que os discursos conformam manifestações,
as quais tem em comum uma determinada forma de expressão da realidade.

2.3. A leitura da cidade – A urbe representada em palavras.

Como Sandra Jatahy Pesavento (1991, p.14) afirma, as imagens urbanas


trazidas pela arquitetura – ou pelo traçado da cidade, pela publicidade, pela fotografia,
pelo cartaz, pelo selo, pela pintura, pelo desenho e pela caricatura – têm o potencial de
remeter também, tal como a literatura, a outro tempo. É o caso de um momento que se
edifica no passado, mas é pensado e sentido por meio do presente, uma vez que a
leitura do livro “Os Ratos” trará a pele os percalços de Naziazeno no centro da cidade,
descrevendo-a e fazendo com que o leitor compartilhe de sua angústia na procura do
dinheiro. O espaço urbano e sua materialidade imagética tornam-se um suporte do
memorial social da cidade.

Pode-se considerar a literatura como uma representação do real, como uma


fonte que traz novas perspectivas e uma sintonia fina: os rastros de uma época. As
características principais estão na raiz dos modos de pensar, sentir, agir e de
representar o mundo. A literatura é a melhor forma de entender o sistema de ideias e
imagens do homem do outro tempo. Em muitos pontos, o urbanista e o historiador se
aproximam, ao resgatar a essência da época e da cidade utilizando-se de imagens
urbanas e de representações das cidades.

61
Ainda tratando sobre a literatura e a sua capacidade de representar e comunicar-
se com o mundo:

A literatura como meio de comunicação entre todos os escritores


que já viveram, não apenas estabelece uma continuidade entre
gerações, mas cria um tipo de informação e tempo
extremamente concentrados. Na obra de um autor, na forma de
um livro, no espaço de uma biblioteca, ela tem sua expressão
cristalina. (BOLLE, 1994, p.310)

Segundo Machado (2003, pg.76) a história permanente engloba a narrativa e o


indivíduo como social. O micro como porta de entrada para o macro, a possibilidade de
incorporação da subjetividade no campo da história e uma teoria do imaginário surge
como alternativa, que é responsável pela ampliação de horizontes de cunho positivista
e cientificista os quais aproximam a produção cultural às estruturas econômicas e socais
de determinada época.

A Nova História Cultural trata de um lado a analogia histórica e a literatura de


ficção a qual abala os alicerces das teorias marxistas fundadas no cientificismo do
século XIX, por Hegel e, de outro, a proposta de uma ideia de história alinhada com o
pensamento de Walter Benjamin, segundo o qual, "articular historicamente o passado
não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma
reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo" (1994, p. 224).

Porém, mesmo sujeito a muitas críticas, o trabalho do historiador que procura


novas fontes para a reprodução de uma nova visão do passado já merece credibilidade.
O argumento de Peter Burke (1992, p. 15) em favor das representações literárias como
fonte para a história é de que o mundo só é percebido como representação por meio de
uma estrutura de convenções, esquemas e estereótipos culturalmente construídos.

Quando admitimos a imaginação de uma época como um fenômeno social o qual


é capaz de revelar as sensibilidades, mitos e crenças, levando a um reconhecimento de
realidades e identidades distintas que redefinem a escrita da história, tais novas
abordagens teórico-metodológicas consideram-se amplamente mais comprometidas
com a verossimilhança que com a veracidade. Instaura-se um campo epistemológico no
qual, de acordo com Baczko, a imaginação não se opõe, ao contrário, está unida
dialeticamente ao verdadeiro, tornando-se uma de suas faces (1991, p. 303). Para
Chartier, "no espaço assim traçado se inscreve todo o trabalho situado no cruzamento
de uma história das práticas, social e historicamente diferenciadas e de uma história das
representações inscritas nos textos ou produzidas pelos indivíduos” (1994, p.179).

62
Para Roger Chartier (2002, p. 59 e 60) o consumo cultural pode ser definido
como uma outra produção, por exemplo, a leitura de um texto, pode assim escapar à
passividade, que tradicionalmente lhe é atribuída. Ao ler, olhar ou escutar efetuamos
uma série de atitudes intelectuais que permitem a resistência e a desconfiança. Dessa
forma, podemos repensar totalmente a relação entre o público designado como popular,
os produtos e a forma como estes são consumidos. A forma do consumo é uma das
chaves que permitem elucidar, como a cultura da maioria pode construir um lugar ou
instaurar uma coerência própria nos modelos que lhe são impostos pelos grupos
dominantes.

O autor ainda aborda o espaço do texto como espaço de investigação:

Este texto propõe-se, acima de tudo, traçar um projecto


intelectual e um espaço de investigação. O fundamento comum
a ambos decorre da aparente contradição em que se encontra
envolvida toda a história, ou toda a sociologia da leitura: quer se
considere o caracter todo-poderoso do texto, e o seu poder de
condicionamento sobre o leitor. CHARTIER (2002, p. 121)

Machado (2003, p.78) define que a abordagem da literatura como fonte histórica
considera o aproveitamento de aspectos estruturais da arte e de relações compositivas
do objeto artístico como produto de seu tempo:

descrevendo um movimento cognitivo que se inicia


"proustianamente" no presente da percepção dos elementos
capazes de despertar o passado. A arte atua como a
madeleine de Proust, sobretudohá como uma espécie de
música, trilha sonora de gerações, pois evoca saudades e
memórias, muitas vezes, auxiliando na visualização de um
quadro contextual histórico. Por outro lado, a literatura
reconstrói cenários e comportamentos, sempre um convite a
viagens a tempos passados, enquanto a arquitetura abriga
na pedra os ecos de vontades, desejos e utopias conjugadas
a grandes esforços, confundindo-se com o próprio quadro
histórico. Se “não há fatos puros”, mas “sempre uma
interpretação teórica que nele está contida” (VIRIEUX-
REYMOND, 1972, p. 98-99), é na distância existente entre
uma e outra que surge a invenção, artística e histórica.
(MACHADO, 2003, p. 77)

A construção de uma temporalidade distinta do passado pode ser realizada por


meio da análise de uma narrativa, reconstruindo o que parecia ter sido perdido e é
reapresentado como forma de história para o mundo. Assim, o texto histórico aproxima-
se do literário, pois pode representar uma versão dos acontecimentos partindo de um
olhar do passado, um novo olhar utilizando a interpretação histórica, mas não
determinado por ela. Cruz (1994, p.19) afirma que “Pensar a literatura através da ótica

63
da cidade permite um maior entendimento do homem moderno e suas condições de
existência, sejam materiais ou espirituais”.

Machado (2003, p. 78) considera que:

Uma narrativa histórica mais interpretativa que descritiva


aproxima-se suficientemente do passado não vivido à medida
que o representa, enquanto o historiador, construtor de tal
aproximação, delimita seu campo de ação selecionando,
articulando e cruzando o leque de informações disponíveis para
que as fontes ou sinais do passado possam falar. Nesse sentido
o historiador realiza um trabalho análogo ao do arquiteto, de
recomposição de partes dispersas com o passar do tempo.
Ambos podem ser vistos como produtores de artifícios ou
artífices de conhecimento.

Walter Benjamin, considera que a cidade moderna se faz mais perceptível ao


historiador, como objeto e como fonte de conhecimento histórico, por meio de suas
representações simbólicas, – incluindo a literatura, a arte, as metáforas, os mitos e as
lendas – que pela tentativa de abordagem direta de sua transitória concretude e lógica
de funcionamento (MACHADO, 2003, p. 79) (1989. CF.). Como diz Sandra Pesavento,
"Calíope pode ensinar a Clio, e vice-versa” (2000, p. 7, 8).

Porém, ainda hoje o cruzamento de história e literatura encontra alguns


percalços para seu reconhecimento. A cidade em processo de modernização não pode
ser lida apenas com concretude, mas com abstração, pensamento e objeto de
conhecimento por meio das suas representações.

Juhani Pallasmaa (2005, pg. 64) levanta que a literatura não apresentaria os
mesmos poderes de encanto sem a capacidade humana de entrar em lugares que são
imaginários, classifica ainda esses como uma obra de arte e completamente reais, no
sentido de uma experiência do leitor. Afirma que “a memória nos remete a cidades
distantes, e os romances nos transportam através de cidades invocadas pela mágica da
palavra do escritor. Os cômodos, as praças e as ruas de um grande escritor são tão
vivas como qualquer lugar que visitamos”.

Quanto as formas de recordar as cidades:

Há cidades que permanecem como meras imagens visuais


distantes quando recordadas, e há cidades que são recordadas
com toda a vivacidade. A memória resgata a cidade prazerosa com
todos os seus sons, cheiros e variações de luz e sombras. Posso
até escolher se quero caminhar pelo lado ensolarado ou pelo lado
sombreado de uma rua da agradável cidade de minhas
recordações. A medida real das qualidades de uma cidade é se
conseguimos nos imaginar nos apaixonando por alguém nessa
cidade. (PALLASMAA, 2005, pg. 65)
As descrições literárias também podem ser interpretadas como:

64
O acesso à sintonia fina ou ao clima de uma época, ao modo pelo
qual as pessoas pensavam o mundo, a si próprias, quais fatores
guiavam seus passos, quais os preceitos, medos e sonhos. Ela dá
a ver sensibilidades, perfis e valores. Ela representa o real, ela é
fonte privilegiada para a leitura do imaginário. Porque se fala disto
e não daquilo em um texto? O que é recorrente de uma época, o
que escandaliza, o que emociona, o que é aceito socialmente o que
é condenado ou proibido? Para alguém das disposições legais ou
de códigos de etiquetas de uma sociedade, é a literatura que
fornece os indícios para pensar como e porque as pessoas agiam
daquela forma. (PESAVENTO, 2004. P. 82 e 83)
Percebe-se então que a literatura trabalha como testemunho de si própria,
portanto, não cabe analisar apenas o tempo da narrativa. Deve-se analisar também a
época na qual a obra foi escrita, pois a partir destes dados percebemos o seu horizonte.

Trazendo a literatura para o contexto brasileiro, lembra-se que a escrita, como o


instrumento atual de comunicação, chegou ao Brasil com o controle e a dominação da
metrópole portuguesa, acabando assim com a cultura indígena local. Segundo Willi
Bolle (2004, p. 289) “a literatura no Brasil criou uma determinada identidade, destruindo
uma outra identidade. Por outro lado, a literatura revelou-se no decorrer do tempo como
um instrumento de resgate e emancipação”.

Sandra Jatahy Pesavento (1999, p.09) afirma que: “sendo a cidade, por
excelência, o “lugar do homem”, ela se presta à multiplicidade de olhares encruzilhados
que, de forma transdisciplinar, abordam o real na busca de cadeias e significados. ”
Essa postura, coloca a História Cultural Urbana em um local de destaque, pois as
representações da cidade tendem a assumir uma forma metafórica de expressão, já que
associadas à cidade as palavras tomam novos sentidos. Esse procedimento implica
pensar a literatura como uma leitura específica do urbano, a qual seria capaz de resgatar
as sensibilidades, os cenários e conferir novos sentidos ao meio.

“A literatura, ao dizer a cidade, condensa a experiência do vivido em texto”


(PESAVENTO,1999, p. 10) essa estratégia aponta para o cruzamento das imagens e
os discursos das cidades, gerando assim um aprofundamento nas relações literatura e
história, além da base que é o contexto urbano em transformação. Definiríamos então,
que a as narrativas literária e histórica trazem discursos que ajudariam a remontar a
realidade urbana. Adotar, uma postura a qual vê, por meio da literatura, uma forma de
remontar a história e as realidades urbanas, numa tentativa de convencer o leitor e
transportá-lo para um outro tempo. Em seguida a autora ainda afirma que
“Consideramos que a literatura tem, ao longo do tempo, produzido representações sobre
o urbano, que traduzem não só as transformações do espaço como as sensibilidades e
sociabilidades dos seus agentes” (PESAVENTO,1999, p. 13)

65
Considerando o contexto literário, o autor dirá a cidade “a seu modo”, assumindo
uma forma de expectador privilegiado, pois pode, além de observar a cidade, expô-la
pelo seu ponto de vista, provendo assim à urbe uma nova existência. Com essa
afirmação se insinua a entrada do urbanista, pois ele é capaz de perceber a cidade
utilizando a leitura dos traços deixados pela arquitetura e os traçados do urbano.

Se toda percepção é balizada por meio dos sentidos, tudo o que se experimenta
é recriado por meio de sensações, revividas em memórias e decodificadas em seus
significados, então a atribuição de sentido aos monumentos dependerá do ponto de
vista, do lugar e daquilo que o observador sente. Sem dúvida, as cidades são capazes
de gerar imagens urbanas, que tem o seu valor simbólico, consensual imposto/atribuído
à desigual apropriação do solo e dos distintos posicionamentos de cada observador.

Pallasmaa (2005, pg.68) aborda de forma muito clara a percepção quanto aos
sentidos argumentando:

Em seu modo de representar e estruturar a ação e o poder,


a ordem cultural e social, a interação e a separação, a
identidade e a memória, a arquitetura se envolve com
questões existenciais fundamentais. Qualquer experiência
implica em atos de recordação, memória e comparação. Uma
memória incorporada tem um papel fundamental como base
da lembrança de um espaço ou um lugar. Transferimos todas
as cidades e vilas que já visitamos, todos os lugares que
reconhecemos, para a memória encarnada em nossos
corpos. Nosso domicílio se torna integrado à nossa auto
identidade; ele se torna parte de nosso corpo e nosso ser.
Em experiências memoráveis de arquitetura, espaço matéria
e tempo se fundem em uma dimensão única, na substancia
básica da vida, que penetra em nossas consciências.
Identificamo-nos com esse espaço, esse lugar, esse
momento, e essas dimensões se tornam ingredientes da
nossa própria experiência. A arquitetura é a arte de nos
reconciliar com o mundo e esta mediação se dá por meio dos
sentidos.

Retomamos, então, a visão da arquitetura como algo fixo – que daria um


contorno morfológico visual à cidade – implicando uma relação complexa entre a forma
física e as representações sociais de força, já que a preferência no momento do projeto
arquitetônico ou urbano por uma forma ou determinado material pode – ou não – dizer
muito sobre os avanços técnicos ou o estilo preferido de uma época. Traça-se, assim,
utilizando-se de dados descritos pelo autor e seu imaginário, a realidade da cidade em
uma determinada época. PALLASMAA (2005, pg. 60) ainda trata o espaço arquitetônico
como “um espaço vivenciado, e não um mero espaço físico, e espaços vivenciados
sempre transcendem a geometria e a medida, o tamanho.

66
Descrevendo a função da arquitetura:

A função atemporal da arquitetura é criar metáforas


existenciais para o corpo e para a vida que concretizem e
estruturem nossa existência no mundo. A arquitetura
reflete, materializa e torna eternas as ideias e imagens da
vida ideal, as edificações e cidades nos permitem
estruturar, entender e lembrar o fluxo amorfo da realidade e
em ultima análise, reconhecer e nos lembrar quem somos,
a arquitetura permite-nos perceber e entender a dialética da
permanência e da mudança, nos inserir no mundo e nos
colocar no continuum da cultura e do tempo. (PALLASMAA,
2005 pg. 63)

Considera-se a arquitetura e o traçado de ruas e praças como o registro físico


de uma cidade, mas também pode ser o modo de pensar de quem o projetou e da
população que ocupa o espaço. Esse, é sempre portador de um significado, cuja
expressão passa pelas outras formas de comunicação. “É, pois, na capacidade
mobilizadora das imagens que se ancora a dimensão simbólica da arquitetura”.
(PESAVENTO,1999, p. 16). Cada monumento carrega em si uma materialidade e uma
historicidade de produção, sendo possível, então, sua datação e classificação, mas o
que interessa, é pensar nesse monumento como um traço da cidade, sua capacidade
de evocar sentidos vivencias e valores.

2.4. Representação e interpretação cartográfica

Conforme Nuno Silva Costa (2011, p. 25 e 26) tem sido na História Cultural que
as questões relativas à representação têm sito mais debatidas. Existe, segundo o autor,
um problema de dois lados para a representação: pelo primeiro os textos dos
historiadores, como os próprios, representam determinada cultura ou sociedade; e pelo
segundo, as representações incidem em sociedades passadas, as quais não estão
presentes e têm suas realidades interpretadas usando um testemunho da época. O
entendimento entre essas duas fontes, o autor e a sociedade que esse representa, é
fundamental para a composição da nova face de sociedade e assumir que os mapas
também trabalham como documentos históricos.

A extensão da noção e texto, parte como afirma Costa (2001 pg. 29) “da ideia de
que os mapas são práticas de significação intertextuais associados a outros textos
culturalmente construídos e, portanto, são elementos comunicativos de produção de
sentido”. Compreende-se também a mutabilidade desse sentido, pois ele é cultural,
social e fica variável conforme as experiências do leitor.

67
A abstração que implica o conceito de representação, pode ser traduzida no
conceito de história ampliado, como uma fonte histórica e em um novo campo de
conhecimento fundado na negação das duplas antagônicas explicativas, porém que
simplificam, opondo a realidade à irrealidade. De acordo com Peter Burke (1992, p. 11-
15), a Nova História Cultural baseia-se na consideração de que a história é socialmente
construída por uma pluralidade de vozes, muitas vezes, em oposição. A composição do
grupo social no qual baseia-se a história estaria no mundo das imagens. Um mundo que
inclui as obras de arte e podem ser usadas como "matéria de pesquisa e de
interpretação histórica" e como "categoria a ser pensada historicamente" (ARGAN,1995,
p. 27).

Considerando-se uma representação, que não necessariamente precisa ser real,


são importantes os discursos que surgem a partir desta representação, pois estes
discursos podem ser lidos como reais pela sociedade. ”A cidade moderna e suas
representações são construídas por meio de sua problemática e concretude.”
(MACHADO, 2003, p. 80). Assim, documentos como fotos, textos projetos de arquitetura
e urbanismo podem ajudar a construir a realidade da cidade, através da representação
da realidade “lidos como os rastros de uma época, capazes de responder as perguntas
do historiador que se encontra no presente.” (MACHADO, 2003, p. 80).

Destacam-se nos mapas, assim como nos textos, maneiras de representar a


sociedade de uma época, pois quando se normatiza o conhecimento sobre um espaço
ou território sujeitam-se estes dados a serem interpretados de formas diferentes à
intencionalidade do autor. Podemos interpretar os mapas como simples reflexos da
natureza cartesiana ou como documentos históricos que demonstram a evolução da
ciência e do pensamento da sociedade que o produziu.

2.5. Por que mapear romances?

Trabalhar no mapeamento de romances cria a ideia de movimento na geografia.


Com este tipo de estudo torna-se explicita a ligação entre geografia e literatura, portanto,
mapear um romance seria torná-lo ainda mais visível e acessível, permitindo ao leitor
ligações que muitas vezes passam despercebidas pelo texto.

Campos Matos (1976, pg. 16) alerta que o cenário um pano de fundo ou
meramente estético ou mesmo gratuito, ele motiva o diálogo, compartimenta e dinamiza
as ações e liga-se à vida dos personagens, estabelecendo uma relação íntima com a
motivação dos personagens, ou mesmo o seu comportamento ou estado de espírito.

68
Franco Moretti (2003, pg. 13) define que “os mapas não são como metáforas,
quero dizer, menos ainda como ornamentos de discurso, mas como ferramentas
analíticas: que dissecam o texto de uma maneira incomum, trazendo a luz relações que
de outro modo ficariam ocultas”. Mapas são capazes de especializar as palavras que
estão escritas nos romances, trazendo novas palavras e interpretações às mentes dos
leitores, gerando melhores percepções do livro.

Utilizando os mapas literários percebemos, segundo Moretti (2003, pg. 15) desde
a forma espacial de cada forma literária, cada uma com seu formato peculiar, suas
fronteiras e rotas, até trazer à tona a lógica interna das narrativas, “o domínio semiótico
em torno do qual o enredo se aglutina e organiza”. Ressalta também que é por meio das
imagens da paisagem urbana que são criadas as sensações de impacto visual e que as
descrições urbanas “constituem símbolos do seu complexo significado social e urbano
e lhe dão um sentido de organismo vivo, com uma identidade única”.(MATOS, 1976,
pg.21).

Situar um fenômeno literário em seu espaço especifico não é a conclusão do


trabalho, depois que se finaliza o mapa é que começa a parte mais difícil, a interpretação
desse. Campos Matos (1976, pg. 13) destacava o papel preponderante da geografia e
pelos elementos definidores do meio, no universo da literatura, o que ajuda a construir
o atributo de realismo nas obras. Acrescenta ainda que “os elementos que situam e
caracterizam o meio são, simultaneamente, ingredientes criadores no leitor da ilusão da
realidade”. (MATOS, 1976, pg. 15). Ou seja, o romance tem como uma de suas
habilidades a capacidade de levar o leitor a acreditar em uma ficção como se esta fosse
uma autentica realidade:

Se traçarmos, porém, a rede total dos arruamentos. Praças e jardins


que lhe servem de espaço cênico, dela poderão inferir-se
qualidades específicas evidentes na estrutura urbana da cidade:
pela sua função ou atividade particular, por atributos sociais ou
históricos especiais, por características peculiares de qualificação
espacial pela presença de panoramas ou fugas que prolongam o
seu campo visual para além desses espaços, ou mesmo por
existirem pontos focais de importância simbólica. (MATOS, 1976,
pg. 22)

Rebecca Solnit (2010, pg. 8 e 9) afirma que “mapas sempre convidam as


pessoas a interagirem com eles de formas diferentes que os textos e as fotografias
fazem. Um mapa é um convite para um território, enquanto um romance é apenas um

69
convite para a emoção e a imaginação. A autora também ressalta que a leitura da cidade
e dos locais é única de cada indivíduo e que todas seriam capazes de gerar mapas
diferentes e interessantes, definindo a cidade como muitas palavras em um mesmo
lugar.

2.6. Os Ratos – A construção das palavras de Dyonelio.

Naziazeno, personagem principal da narrativa, apresenta sua origem na


propriedade rural, mas vive agora preso à cidade e ao seu ritmo feroz metropolitano.
Anda por ruas e avenidas, pega o bonde, trabalha em uma repartição pública e tem seu
olhar lançado para o passado volta e meia, lembrando-se da sua infância e de como a
cidade em que cresceu era diferente em vários sentidos da que vive. Nessa atitude
pode-se encontrar muito do “Angelus Novus”, de Klee, mencionada por Walter Benjamin
em “Sobre o Conceito da História”, personagem cujo rosto era voltado para o passado
pois gostaria de se deter para acordar os mortos e juntar fragmentos do passado.

No desenrolar de apenas um dia, o personagem principal discute com o leiteiro,


passa pelo trabalho, ronda infindavelmente o centro da cidade, tenta a sorte no jogo e
passa pelas portas de muitos agiotas. Vinte e quatro horas, um dia inteiro que leva a
mente e o corpo à exaustão:

Conforme nos adentramos nas atribulações do protagonista,


passamos a perceber outra cidade, mais concreta, mais
palpável, mais presente para o leitor, desde que transposto em
um primeiro nível de dificuldades relativo à referencialidade,
conforme será visto adiante. O fato de Dyonelio centrar a ação
em torno de uma única personagem protagonista no pleno
sentido da palavra, acaba fazendo com que a cidade, percorrida
por esta personagem em infindáveis caminhadas ao longo do
dia, torne-se algo muito presente para a consciência leitora. O
caráter orgânico que a cidade adquire, sua aparência de corpo
vivo decorre, em grande parte do fato de que as ações
acontecem em sua maioria, no espaço público, no âmbito da
polis. Os interiores privados têm uma pequena participação,
reduzindo-se quase que exclusivamente a casa do protagonista.
(CRUZ, 1994, P. 90)

Granwunder (1997, p.116) interpreta o mundo de Dyonelio como um universo


particular elaborado pelo autor, a partir do centro de ideias que é a cidade, ao mesmo
tempo a metaforizando como um objeto universal, um mundo ilimitado: com
personagens, tramas próprias e outros sinais de individualidade. Destaca-se a leitura de
que o mundo do outro é um mundo organizado, porém o do personagem é problemático.
A trajetória de seus personagens não seria fatalissimamente determinada pelo autor.
Admite-se a inversão da situação, se os fatos gerarem essa expectativa. O ato de narrar

70
é também um fato de linguagem, simplesmente contingente, um recurso necessário
para evidenciar a sua concepção de mundo ficcional no qual o narrado é mais
importante daquele que narra. Ao narrador, cabe instituir fatos, substituir e aproximar
sentidos do leitor e do personagem de forma visual, auditiva, olfativa e tátil do fato
narrado.

Junto com os padrões de experiência universais Dyonelio desenvolve conceitos


que tematizam e provocam os modos de experiência, os costumes e sistemas éticos de
uma sociedade. Granwunder (1997, p.120) aponta para uma espécie de crítica aos
valores da sociedade, questionando como a sociedade se desenvolve e como o apoio
moral e social está baseado na opinião de vizinhos e de amigos, gerando aceitação ou
protesto.

O espaço urbano no qual a personagem se movimenta é sinuoso e labiríntico,


segundo Véscio (1995, p.70) “a geografia espacial composta de portas, janelas, ruas,
corredores, esquinas, fachadas, balcões e letreiros conduzem o seu olhar para baixo,
para a concretude das construções, para o solo urbano que delimita as possibilidades
das ações”. Se atentarmos aos aspectos da geografia de Dyonelio, a cada passo
verificamos o conhecimento íntimo que o autor possuía da capital. Pode-se perceber o
desejo de ver, observar e até respirar a realidade de Naziazeno. Dyonelio era, inclusive,
muito conhecido devido as suas caminhadas pela cidade.

O texto de Dyonelio não nos oferece apenas uma visão documental de uma área
urbana em especial, de um específico edifício ou um monumento, faz com que o leitor
perceba uma nova dimensão da realidade, por meio do espirito de seu personagem.

Dyonelio não se antecipou apenas no fato de dar voz às classes urbanas


desprivilegiadas, mas também ao representar a cidade onde estas classes habitam,
tornando-a não simplesmente um cenário onde ocorrem as ações, mas sim algo
orgânico e vivo, ao dar voz ao proletário anônimo que não recebe o suficiente para pagar
o leite do filho, esse personagem que passa por espaços de jogo ilegal, pela agiotagem
e recorre aos amigos marginais para conseguir, a verba que necessita.

71
3. CAMINHANDO COMO RATO

O romance só tem uma função; refletir, produzir uma


imagem. É um espelho. Um espelho, que se passeia ao longo
duma grande estrada. Ainda há de haver quem se recorde do
sucesso do conceito. Pertence a Stendhal. Como espelho é
também o quadro. Estátua, o poema, uma partitura musical. A
humanidade não pode prescindir dele, da mesma forma como a
mulher não dispensa o seu. Será sempre a prova de que ainda se
existe: mais prospero ou mais desiludido, não tem importância. O
que vale é a sua perpetuação – que a imagem sabe dar.
A criação literária ou artística não é arbitrária, nem muito
menos imotivada. Você mesmo apontou o fato quando
reconheceu, neste ato de pôr algo no papel, a necessidade de se
desembaraçar dum peso, quer dizer: recorrer a um processo de
sublimação. E deve ser isso mesmo (MACHADO apud
GRAWUNDER,1997, p.126).

O presente capítulo tem como objetivo central a análise das informações


encontradas no romance “Os Ratos” de Dyonelio Machado, observando até que ponto
a literatura permite o maior entendimento do homem moderno e suas condições de
existência. Devido a sua formação em medicina e especialização em psicanálise o
autor vai fundo em sua análise da realidade, em especial da moderna sociedade
brasileira, extremamente convulsionada neste final de século no que diz respeito às
suas grandes concentrações urbanas. A cena da desumanização das grandes cidades
já estava muito presente no romance, e Naziazeno pode ser considerado um típico
anti-herói da modernidade.

Trata-se de reconstruir ou construir uma versão, já que também essa será


uma representação da Porto Alegre de “Os Ratos”: de certa forma, isso significa
construir, através de textos e imagens, o cenário do livro, um espelho da realidade
urbana da cidade a partir de trechos do livro, passagens que são de certa forma como
cenas urbanas cinematográficas.

72
3.1. A cidade como organismo vivo

“Conforme nos adentramos nas atribulações do protagonista, passamos a


perceber outra cidade, mais concreta, mais plausível, mais presente para o leitor,
desde que transposto um primeiro nível de dificuldade relativo à referencialidade”
(CRUZ, 1994, pg.90). Devido à centralidade no personagem principal, a cidade
percorrida transforma-se em infindáveis caminhadas ao longo do dia, tornando-se
bastante presente na consciência do leitor. A urbe, como organismo vivo, adquire um
caráter orgânico, cujas características são ressaltadas, pois boa parte do romance
acontece nas ruas, nos âmbitos urbanos e muito pouco nos interiores das residências.

Pelo fato do livro ter sido publicado em 1935, Dyonelio tenta reler a
problemática da urbanização das grandes cidades e os problemas enfrentados pelos
trabalhadores urbanos. Véscio (1995, pg. 82) afirma que, os principais determinantes
temporais seriam as obras de ampliação do porto, que tiveram seu início no ano de
1919 e só foram concluídas em 1936, alterando permanentemente o traçado urbano
da cidade de Porto Alegre. Naziazeno representa a própria configuração do
funcionário público de baixo cargo da época. As referências ainda ficam bastante
diluídas em narrativas privilegiando o espaço que coincide com a capital gaúcha na
década de 30.

A cidade, que se encontra em pleno processo de modernização e expansão


capitalista, segundo Claudio Cruz (1994, pg. 90) “torna-se um personagem tão ativo
que chega a ser sentida, em vários momentos, como um antagonista aos desejos do
funcionário público ao longo do dia”. Dia este, que se estabelecerá como uma jornada
atrás do dinheiro que saldará a sua dívida.

Lucie Didio Michalski expressa-se quanto a significação da obra:

Conclui-se que a visão configurada em Os Ratos é a visão


do mundo da classe média proletarizada, em particular do
proletariado urbano, em geral, na década de 30. Este
mundo artisticamente configurado por Dyonelio Machado
desvela-se um mundo de constante luta pela subsistência e
pela sobrevivência, um mundo sem dimensão de passado e
sem perspectiva de futuro, repleto de desassossego,
intranquilidade, insegurança, onde o indivíduo se encontra
detido na “imediatez” de sua existência e na sobrevivência
cotidiana (MICHALSKI, 1977, pg. 105).

73
Fica evidente que o âmbito urbano da obra se destaca por evidenciar a
cidade em seu processo de modernização a partir da revolução de 30. “Percebe-se,
pois, que emerge em tais leituras, uma cidade muito mais concreta” (CRUZ, 1994, pg.
92).

Ao estudar o percurso de Naziazeno perceberemos como era a cidade por


volta do ano de 1935, quando o livro foi escrito e lançado: as alterações na vida dos
moradores de Porto Alegre com a implantação da modernidade, através das ricas
descrições urbanas encontradas no livro.

3.2. A capital refletida nas andanças

Naziazeno a personagem principal, apresenta no livro um discurso


claramente masoquista e voltado para a estagnação. A ausência de revolta com a sua
situação, e de vontade de impelir-se para frente a fim de vencer as dificuldades ficam
marcadas desde o início do livro como traços de sua personalidade. Nesse momento
delimitaremos a discussão ao espaço por onde ele circula, referente a boa parte do
centro da cidade, com toda a agitação típica e possível na década de 30. Véscio
(1995, pg. 100) destaca que “a mistura de referenciais temporais possibilita que se una
uma imagem vislumbrada do futuro, com indicadores que continuam apontando para
um passado distante”. Misturando-se os referenciais temporais, se estabelece uma
discussão sobre a estagnação da sociedade.

Sobre o pulsar do centro da cidade e suas questões Sandra Pesavento


aborda:

Entretanto, por mais que o novo imaginário urbano se povoe


das figuras de homens e mulheres bem vestidos, a “flanar”
pelas ruas, existem outros personagens neste cenário urbano.
A rua é também meio de vida, onde cangueiros, biscateiros, e
vendedores ambulantes transitam diariamente, entre cruzando-
se com carroceiros, amas-secas, motoristas, motorneiros e
free-lancers de toda ordem, neste sentido a rua é do povo,
onde se misturam operários professores, caixeiros de loja,
bancários, negociantes e porque não dizer, vagabundos,
desocupados e larápios (PESAVENTO, 1992, pg.64)

Claudio Cruz (1994, pg 100) defende que o livro pode ser interpretado de duas
formas:

 A primeira: divide os primeiros vinte capítulos, nos quais ocorre a “batalha” pela
procura do dinheiro para saldar a dívida com o leiteiro, e os outros oito

74
descrevem o período que se estende da chegada de Naziazeno a sua casa
até a chegada do leiteiro na manhã seguinte. Esta divisão define-se pelo estilo
de narrativa, no que diz respeito em como é tratado o elemento temporal. Até
o capitulo vinte a narrativa é predominantemente linear – mesmo que hajam
constantes lembranças do passado ou previsões do futuro, estas ficam
bastante claras durante a leitura – o fluir do texto em linhas gerais e
cronológico. A partir do capitulo vinte e um, as idas e vindas do tempo se
passam dentro da cabeça do personagem, o que torna a ordem menos clara:
começa a ser utilizado um discurso completamente narrativo contando cenas
que ocorreram ao longo do dia e que só agora são reveladas. Assim, como é
definido por Cruz (1994, pg. 101) “pode-se dizer que, até o capitulo 20, temos
um tratamento cronológico virtualmente linear, e, do capitulo 21 em diante,
começa a haver, progressivamente, uma explosão da linearidade cronológica”.

 A segunda maneira de pensar na distribuição dos capítulos é através do


espaço: são três espaços de ação, claramente divididos entre o arrebalde, o
bonde e o centro. O primeiro capítulo é o que situa as ações no arrebalde; o
segundo capitulo é dedicado ao deslocamento do personagem para o centro,
passando-se todo no interior do bonde. Do capítulo três ao vinte, Naziazeno
encontra-se no centro, sendo que os capítulos oito e nove são responsáveis
pela descrição da ida ao bairro independência, vizinho do centro. Cruz (1994,
pg. 103) define cinco pontos fundamentais que constituem o espaço do
romance quanto a descrição da zona central, esta que, grosso modo, vai da
Caldas Junior até a Vigário José Inácio, cujo eixo principal seria a rua da
Praia, e o encontro central seria o Largo dos Medeiros. Esquematicamente os
polos de ação mais concentrados ficam conforme está explicitado na Figura 1.

A partir do capitulo 21, como já foi explicitado no primeiro item, torna-se


mais difícil realizar uma divisão espacial coerente, mas de qualquer maneira
se pensarmos na lógica do romance e em sua totalidade a divisão espacial
fica no seguinte formato:

ARREBALDE – BONDE – ZONA CENTRAL – BONDE – ARREBALDE

75
Figura 10. Esquema área de deslocamento de Naziazeno. (CRUZ, 1994. pg. 103)

Cruz (1994, pg. 104) frisa que “segundo cronistas de época, a vida noturna,
especialmente no centro de Porto Alegre, era muito expressiva na década de 30, e
não foi sequer citada,” decorrência da visão de Dyonelio da imagem tradicional da
cidade sob o ponto de vista do trabalho, e não do lazer. A rua da Praia e todos os seus
atrativos noturnos permanecem lá, não foram esquecidos, porém foi representada
como qualquer rua principal, inóspita ou atraente, dependendo da pessoa que a
transita.

Para fins de esmiuçar de forma mais ampliada a relação do personagem


principal com a cidade, toma-se a segunda forma de divisão como norte para a
dissertação, divisão e discussão dos espaços encontrados no livro.

3.2.1. O Arrebalde

Os dois primeiros parágrafos do romance criam a ambientação do bairro calmo,


mais afastado do centro, e da quebra repentina que representa a discussão
inesperada com o leiteiro, a qual transforma completamente o dia do funcionário
público. Naziazeno passará as próximas horas percorrendo o centro da cidade para
encontrar os cinquenta e três mil reis para quitar a dívida.

Os bem vizinhos de Naziazeno Barbosa assistem ao


“pega” com o leiteiro. Por detrás das cercas, mudos, com a
mulher e um que outro filho espantado já de pé àquela hora,
ouvem. Todos aqueles quintais conhecidos têm o mesmo

76
silêncio. Noutras ocasiões, quando era apenas a “briga” com a
mulher, esta, como um último desaforo de vítima, dizia-lhe:
“Olha, que os vizinhos estão ouvindo”. Depois, à hora da saída,
eram aquelas caras curiosas às janelas, com os olhos fitos
nele, enquanto ele cumprimentava.
O leiteiro diz-lhe aquelas coisas, despenca-se pela
escadinha que vai do portão até à rua, toma as rédeas do burro
e sai a galope, fustigando o animal, furioso, sem olhar para
nada. Naziazeno ainda fica um instante ali sozinho. (A mulher
havia entrado.) Um ou outro olhar de criança fuzila através das
frestas das cercas. As sombras têm uma frescura que cheira a
ervas úmidas. A luz é doirada e anda ainda por longe, na copa
das árvores, no meio da estrada avermelhada (MACHADO,
2004, pg. 07).

Destaca-se na seguinte descrição alguns detalhes que ajudam a construir a


imagem do bairro, onde as cercas são feitas de madeira, o orvalho é cheiroso e seu
perfume domina as primeiras horas da manhã. A descrição de que os “quintais são
conhecidos” levanta a impressão que é confirmada nas demais descrições do livro:
Naziazeno conhecia seus vizinhos, alguns não intimamente, porém sabia o nome de
todos, onde boa parte trabalhava e que função exerciam em seu emprego.

Quanto aos vizinhos, conforme o funcionário público os descreve percebe-se


que pertencem à mesma classe social e que muitos deles também partilhavam da
carreira pública.

O moço seu vizinho, que espera o bonde quase a seu


lado, relanceia-lhe às vezes um pequeno olhar. Sempre
Naziazeno se intrigou muito com esse rapaz silencioso com
cara de quem não vê e não compreende. Só muito tempo
depois foi que soube que ele é empregado de escritório na
“Importadora” (MACHADO, 2004, pg. 12).

Nem todos os vizinhos eram considerados boa gente, como o Amanuense da


Prefeitura, a quem Naziazeno não gostaria de encontrar ainda mais nesta infortuna
manhã.

Ele teme dar com os olhos no outro seu vizinho, o dos


fundos. É um amanuense da Prefeitura, tem mulher e filhos,
anda sempre barbado. Quando Naziazeno foi morar ali, logo
soube da fama que acompanha esse sujeito: “— Não paga
ninguém!” Se ele agora aparecesse ali, lá viriam aqueles dois
olhos, sabidos, de verruma, olhos devassadores... (MACHADO,
2004, pg. 13).

77
Durante o dia a lembrança do bairro da casa fica apagada e Naziazeno lembra-
se apenas de episódios como a briga com o leiteiro, a discussão com a mulher ou os
episódios de doença do filho.

As descrições do arrebalde retornam no capítulo vinte e seis, entre os


devaneios insones, encontramos uma descrição da aura do bairro onde Naziazeno
morava, como era a iluminação pública das ruas e a valeta entre a calçada e a rua, por
onde provavelmente devia correr a água das chuvas. As escadas e a descrição das
casas simples mostra, novamente, que o bairro era habitado pela classe trabalhadora
e operária que se formou em decorrência da modernização da capital gaúcha.

Dali à sua casa são pouco menos de duas quadras.


Ele não tem onde pôr o embrulho dos sapatos. Aperta-
o com o braço, quase na altura da axila. O vento, que às vezes
tem uma rajada mais forte, entra pelo embrulho malfeito de
papel de jornal, e desmancha-o quase. Ele tem de estar a cada
momento compondo-o...
Os lampiões são dum lado só da rua. Um braço, preso
lá no alto, do poste do fio do bonde, sustenta a lâmpada com
tulipa, que balança, balança, no vento... Já se distingue o oitão
da sua casa. O terreno é alto. Um valo fundo corre entre a faixa
de cimento e as casas. Pinguelas, defronte dos portõezinhos.
Escadinhas, de tábua, de cimento, que sobem o barranco,
fazem uma mancha clara na terra negra.
Ao chegar próximo à esquina, Naziazeno tem um
sobressalto: pôs os olhos na cara escura, barbuda do
amanuense da Prefeitura — que vem atravessando a rua,
quase que inteiramente voltado para ele... (MACHADO, 2004,
pg. 183).

O arrebalde torna-se um personagem mais ativo nas descrições da


madrugada, quando o vento sopra, e ele ouve o “ruído surdo” que vem das ruas sem
movimento. O vento, presente nas descrições, ajuda a definir a época do ano como o
período entre o final do verão e início da primavera, apesar não existir menção de
datas no decorrer do livro, mas através das descrições pode-se definir esta época.

Naziazeno percebe que se acha bem esperto.


Entretanto, quereria dormir. Tem necessidade dum sono longo,
longo...
Talvez esse barulho do vento é que o esteja
incomodando. Nessa época do ano é assim: faz calor — calor
mesmo — de dia, e as noites são frias e ventosas.
Essa posição de barriga pra cima é pior. Vai-se virar de
lado e ver se dorme. Fecha os olhos. Os globos dos olhos
também lhe doem (MACHADO, 2004, pg. 160).

78
Após o dia todo caminhando o corpo cansado de Naziazeno deseja o sono,
mas a mente inquieta do personagem não o deixa dormir. E a noite ventosa o
acompanha.

Já quase não venta. Distingue perfeitamente todos os


ruídos em torno. Os galos longamente cantaram, responderam-
se. Depois um cão ficou muito tempo latindo... uivando...
Agora, acompanha todos os quartos de hora do relógio
(MACHADO, 2004, pg. 167).

Apesar das descrições que compõem um ar bastante completo para o


arrebalde, onde vive o personagem principal, não são encontradas descrições que
marquem o caminho ou que deem pontos de referência para descobrir em qual ponto
da cidade ficava a residência do funcionário público.

3.2.1.1. A Casa

Como as descrições da casa de Naziazeno são sempre muito ricas, optou-se


por fazer um novo item, destinado a recolher as características deste humilde lar dar
mais vida a realidade doméstica do funcionário público.

Logo depois da rixa com o leiteiro, no parágrafo seguinte ocorre uma discussão
do personagem principal com sua mulher, Adelaide. Percebem-se descrições do
interior da casa que confirmam a simplicidade do estilo de vida da personagem:

Naziazeno encaminha-se então para dentro de casa.


Vai até ao quarto. A mulher ouve-lhe os passos, o barulho de
abrir e fechar um que outro móvel. Por fim, ele aparece no
pequeno comedouro, o chapéu na mão. Senta-se à mesa,
esperando. Ela lhe traz o alimento. (MACHADO, 2004, pg. 07)

A casa possui um interior simples, paredes finas que propiciam que Adelaide
escute Naziazeno e sua indignação, enquanto ele se arruma para o trabalho no
quarto. O comedouro é descrito apenas como pequeno, e a comida é simplesmente
chamada de alimento, para ressaltar que não havia muita variedade no prato da
família. A escassez de adjetivos, mesmo que negativos, tem como objetivo mostrar
que as coisas eram “somente” o que elas eram.

Um silêncio.
Mexe nos bolsos; dá a volta à peça; vai até ao cabide
de parede, onde havia colocado o chapéu.

79
— Me dá o dinheiro — diz, num tom seco, torcendo-se
para a mulher, enquanto pega o chapéu.
E voltando ao “seu ponto”, depois de pôr no bolso os
níqueis que a mulher lhe trouxera:
— Aqui não! É a disciplina. É a uniformidade. Nem se
deixa lugar para o gosto de cada um. Pois fica sabendo que
não se há de fazer aqui cegamente o que os outros querem.
A mulher não diz nada. Voltara a esfregar uma
qualquer coisinha na tábua da mesa (MACHADO, 2004, pg.
09).

Percebe-se como é pequeno o comedouro, pois o personagem principal não


demora para dar toda a volta na peça, ele simplesmente dá alguns passos e já está no
cabide em que tinha colocado o seu chapéu. A mulher para encerrar a discussão com
o marido, Naziazeno já está de saída para o centro, prende a sua atenção na tábua da
mesa. Outro detalhe que aponta a simplicidade da casa e a ausência de pomposas
decorações, não há toalha, fruteira, quadros ou vasos.

Bem como o Arrebalde as descrições da casa só reaparecem no capitulo vinte


e um, quando já em posse do dinheiro o funcionário público retorna ao lar.

A porta do comedouro vai-se abrindo (entra-se


diretamente do pátio para a “varanda”). Senta-se à mesa sem
toalha, no seu pequenino trabalho, a mulher ergue uma cara
pálida, triste e atenta. É tarde (são nove horas). Naziazeno não
quer que ela se assuste. Daí essa precaução. Abre a porta
devagar, empurrando-a com os embrulhos. Tem um sorriso
branco no meio do rosto escuro (está com uma barba de dois
dias). (MACHADO, 2004, pg. 143)

Adelaide passara o dia todo preocupada esperando o retorno do marido. Ele


sabendo que a mulher poderia se assustar com sua chegada repentina diminui o ritmo
na hora de entrar em casa. Mais uma vez é apontada a simplicidade da casa entra-se
direto do pátio para a varanda onde está a mesa, chamada de comedouro.

Naziazeno tira o casaco com o colete; dependura-os


duma cadeira. Remanga-se.
— Eu quero passar uma água no rosto. — E vai-se
encaminhando para os lados da cozinha.
Adelaide foi buscar uma toalha limpa lá dentro. Ao
passar pelo lavatoriozinho do corredor (do corredor que
comunica com a cozinha), pega a saboeira. Só tem água
encanada na pia da cozinha. (MACHADO, 2004, pg. 145)

80
A casa, como a maioria das residências da época, não possuía vários pontos
de agua encanada. Havia apenas o ponto de água central e que garantia o
fornecimento da casa toda. O banheiro não é citado no livro, porém pelas descrições
da casa imagino que seja uma latrina e que fique localizada na parte exterior da casa.

O vento assobia. Uma que outra coisa bate. Do pátio


vem às vezes um guincho, de lata, dalguma lata de
galpãozinho ou de galinheiro que o vento força e levanta.
— Podia-se já ir fechando a casa — sugere Naziazeno,
erguendo-se lentamente.
A mulher levanta-se também. Ela começa a fechar pelo
comedouro. Ele vai “ver” as janelas da sala.
— Antes de me deitar eu tomaria um outro cafezinho —
diz ele, ao se encontrar de novo com ela na “varanda”.
Adelaide se dirige para a cozinha (MACHADO, 2004,
pg. 155 e 156.)

Enquanto preparam-se para dormir Naziazeno e Adelaide fecham a casa,


dividindo as peças entre si para que o serviço seja feito de forma mais eficiente
garantindo que a casa estará toda fechada. O clima, muito ventoso, gera muitos
barulhos na vizinhança, Naziazeno não tem certeza de onde vem os sons, mas supõe
as fontes, e assim percebemos como as coisas no bairro são simples, como uma porta
de lata ou da cerca de algum galinheiro.

A mulher já está se acomodando. Já pôs num canto a


lamparina de azeite, que passa acesa todas as noites desde
que adoeceu o filho.
— Não apagaste a luz da varanda...
Tinha-se esquecido.
Naziazeno volta, torce a chave. A luzinha da lamparina
avança pela porta, ilumina um pedaço do assoalho do
comedouro.
Naziazeno despe-se, mete-se na cama. (MACHADO,
2004, pg. 158 e 159.)

O casal dividia o único quarto da casa com o filho, provavelmente a casa não
dispunha de outro cômodo. E também porque o menino recém havia se curado de
uma diarreia muito forte, incidente citado várias vezes no livro, os custos com o
tratamento foi o que levou ao primeiro empréstimo do funcionário público com o chefe
da repartição. A luminária que fica acesa a noite inteira, por orientação médica, apesar
de a casa já possuir iluminação optou-se por iluminar o quarto com um uma luminária
de óleo.

81
Na cozinha, um barulho, um barulho de tampa, de
tampa de alumínio que cai. O filho ali na caminha tem um
prisco. Mas não acorda.
São os ratos na cozinha.
Os ratos vão roer — já roeram! — todo o dinheiro!...
Ele vê os ratos em cima da mesa, tirando de cada lado
do dinheiro — da presa! — roendo-o, arrastando-o para longe
dali, para a toca, às migalhas!...
Tem um desespero nervoso. Vai levantar! Mas depois
do baque da tampa caindo, fez-se um silêncio, um grande
silêncio... Espera um pouco. O silêncio continua. Nem mesmo
o chiado se ouve. Há só o silêncio. (MACHADO, 2004, pg. 190
e 191.)

As mesmas paredes finas, que deixam Adelaide escutar Naziazeno no quarto e


sua preocupação no início do romance, dão asas à imaginação do personagem
principal e transformam os ruídos da casa no barulho de ratos roendo o dinheiro,
deixado sob o tampo da mesa da cozinha, ao lado da panela do leite.

3.2.2. O Bonde

Este meio de transporte pode ser considerado como parte da complexidade


urbana, do impulso de desenvolvimento da época e das condições de vida da
população que não tinha condições de comprar um automóvel. A história destes
viajantes se perde nas viagens do dia-a-dia.

No romance o bonde toma um espaço muito maior do que um simples meio de


locomoção: “é um espaço-tempo que faz a ligação dos dois extremos da vida de
Naziazeno, um elemento que une o particular, pobre e problemático, ao coletivo do
centro da cidade, dinâmico, neutro e historicamente registrado” (VÉSCIO 1995, pg.
119).

O segundo capítulo trata da descrição do trajeto ARREBALDE – CENTRO:

O bonde já se acha no fim da linha. No fim da linha,


duas ou três quadras dali, é um amontoado de carroças de
leiteiro e de carretas de lenha na frente dum armazém. Os
leiteiros e os lenheiros tomam cachaça naturalmente
(MACHADO, 2004, pg. 11).

Em seguida, Naziazeno não reconhece os companheiros de bonde e alivia-se


com isso, estava muito alterado devido aos acontecimentos da manhã e ainda tenta
recompor a sensação da rixa com o leiteiro:

82
Os melhores lugares do bonde estão ocupados. “—
Apesar de tão cedo! É estranho...” Senta-se à extremidade
dum dos bancos dos lados, no fundo.
O bonde leva uma “outra gente”. Não a que ele está
acostumado a ver, às nove ou dez horas, a “sua” hora. “—
Melhor, Essa falta de “conhecidos” apazigua-o. (MACHADO,
2004, pg. 13)

O bonde pode ser descrito como “um espaço de convivência urbana diária,
principalmente das classes menos favorecidas” (CRUZ, 1994, pg. 107) as descrições
que seguem no capítulo dois apontam como os outros ocupantes do bonde eram
pessoas simples. Quando Naziazeno pensa no seu chefe, da repartição, pensa que
ele só anda de carro com motorista. “ Fica claro o sentido de controle social que uns
são capazes de exercer sobre os outros” (CRUZ, 1994, pg. 108):

O bonde, que deslizava numa corrida vertiginosa, para


de súbito, travado com força. Há um meio tumulto dentro do
veículo, com os passageiros lançados para a frente, os bancos
desarticulando-se. Ouve-se a voz ralhada do motorneiro,
praguejando para fora, para alguém que ainda se encontra na
frente do carro. Alguns passageiros já estão levantados,
curiosos. Naziazeno espicha o pescoço com atenção quase
indiferente e chega a ver o casal de garotos, causa daquilo, ele
e ela, pequeninos, presos pela mão, os olhos apavorados,
escapando do perigo com um ar de confusão estúpida.
— É um perigo essas crianças...
— Os pais é que mereciam...
— Querem perder as pernas — comenta o motorneiro,
meio voltando-se para os passageiros, a voz ainda alterada, o
bonde já em marcha. — Aqui nesta cidade se conhece
facilmente os moradores das linhas de bondes: — os que têm
mais pernas, têm uma...
Risos (MACHADO, 2004, pg. 19).

Segundo Cruz (1994, pg. 109) esta passagem aponta para os perigos
iminentes do uso do bonde apesar de haver inúmeras descrições de acidentes de
transito no jornal e nos demais meios de comunicação. Percebe-se também os
diferentes tipos de meios de transporte que eram usados na década de 30:

Passam carroças de padeiro e de leiteiro, algumas à


disparada, meio pendidas para trás, a figura curva do
carroceiro açoitando o animal. A “carroça” que ele tem dentro
como se justapõe a essas que por ali transitam: é sempre o
mesmo quadro — um rapagão mal encarado fustigando o
burro, possesso... (MACHADO, 2004, pg. 16)

83
No trajeto do bonde Naziazeno encontra-se mais concentrado em observar os
companheiros de viagem, em saber o eu eles pensam e fazem do que analisar o
percurso, talvez porque o percurso já é um velho conhecido, mas o bonde leva uma
“outra gente”, despertando a curiosidade do personagem. Também entende-se que o
bonde era um local de interação social na época, conforme a afirmação de Walter:

No imaginário social, os bondes estavam relacionados com a


modernidade. Principalmente nesse período, os bondes iam e
vinham, do centro aos arrabaldes e vice-versa, lotados de
gente. Muitas das viagens eram verdadeiras escolas de
tolerância social, quem ali estava tinha que necessariamente
aprender a conviver, conhecendo e relativizando as atitudes do
outro. (2016, pg. 204):

Depois o bonde só se fará presente no retorno para casa no final do dia, já com
o dinheiro para quitar a dívida em mãos. O protagonista faz uma viagem bem mais
serena, com paradas para compras, de manteiga e queijo, na Fiambreria, de um
presente para o filho, na Loja Dolores, e para recuperar o sapato de Adelaide que
estava retido no sapateiro por falta de pagamento. Devido a ruptura da linearidade no
capítulo vinte e um, a viagem de volta é descrita de uma forma mais picotada, e com o
personagem deveras cansado e muito menos atento aos detalhes do percurso Centro
– Arrebalde.

Enquanto circula pelo centro, Naziazeno estaria envolto em uma aura mais
propícia de força e capacidade para lutar com os seus problemas. Porém nos dois
momentos no bonde, nos trajetos de ida e volta ao Arrebalde, relembra e traz à tona
todas as suas mazelas. “A viagem fecha um círculo, onde a personagem, com sua
história, participa da história da cidade” (VÉSCIO 1995, pg. 121).

O sapateiro fica mais ou menos uma quadra ou duas


aquém da sua casa. É melhor um banco da direita, pra ir
cuidando a casa do sapateiro.
A mulher da criança tomou esse mesmo bonde. É
morena (queimada). O cabelo liso, puxado para trás. É moça
menos na boca, uma boca comprimida, com vincos, boca de
estar fechada sempre... Olha para a criança e para fora.
Parece que procura se distrair olhando para fora toda vez que
a criança permite... Quando o condutor vem cobrar, meio que
não compreende... Depois paga.
Naziazeno já está com os níqueis na mão.
Confunde muito essas ruas... Não vá já estar perto... O
mais acertado é começar a cuidar desde agora. A cabeça, para
fora da janelinha, recebe um vento forte, frio. Quem diria que o
tempo haveria de mudar... Aquela ameaça de temporal...
Choveu decerto pra alguma parte.

84
O sapateiro mora numa casinha pequena, duma série
de casinhas todas iguais.Talvez já esteja acomodado. Vai-se
fazendo tarde... Eram oito horas lá no café. Depois disso,
quanto ainda fez, quanto ainda caminhou... A demora na
fiambreria... A demora na Loja Dolores... E ainda aquele tempo
de espera do bonde... (MACHADO, 2004, pg. 181 e 182).

Outro autor que trata do transporte coletivo, como os bondes é Walter


Benjamin, várias características do personagem flâneur podem ser reconhecidas em
Naziazeno, como por exemplo a contemplação da cidade e também o fato que “todo o
homem, tanto o melhor quanto o mais miserável, traz consigo um segredo, que caso
fosse conhecido, torná-lo-ia odioso a todos os demais” (BENJAMIN, 1991, pg. 67)

Benjamin ainda aponta sentidos e os motivos pelos quais o sentido da visão se


aguça quando nos encontramos em um transporte público:

O transporte coletivo é um dos lugares nos quais o sentido do


olhar se desenvolve e inquieta. O que provoca no indivíduo
essa inquietação é justamente o fato de se deparar com os
outros, tendo que ficar às vezes horas cruzando olhares sem
pronunciar uma palavra. Muitas vezes, sem saber
objetivamente o porquê, desviar o olhar de certas pessoas é
muito difícil. (BENJAMIN, 1991, pg. 67)

Muitas vezes, durante a noite insone de Naziazeno, no romance “Os Ratos" o


passar barulhento do transporte urbano se funde com o som do vento típico desta
época do ano no Arrebalde conformando um novo personagem, uma espécie de
cidade noturna com uma sobrevida, que é um dos fatores que mantém Naziazeno
acordado.

Através das rajadas do vento, começa a perceber um


ruído uniforme, parelho, que cresce, cresce, progressivamente,
se avoluma. É o bonde! Vai se aproximar, vai passar bem pela
frente da casa. Põe os ouvidos bem atentos. O barulho do
bonde é um contraste: é cedo lá fora, há vida... Naziazeno se
acalma inteiramente.
O bonde está perto. O seu ruído domina o ruído do
vento. Vamos ver se ele vai parar ali no poste... O barulho
torna-se claro agora, francamente sonoro, metálico. Sente-se
bem o rodar das rodas sobre os trilhos. Naziazeno tem receio
que ele não pare... que ele siga, indiferente... Mas não! O ruído
está diminuindo... Cessou de inopino, com uma espécie de
baque. Um silêncio... Alguém desceu. De novo, de novo o
barulho, que se branda, se ausenta, se acaba... (MACHADO,
2004, pg. 161).

O bonde ajuda na marcação das horas da noite insone, já que a família não
possui um relógio. Dentre todas as suas preocupações Naziazeno pensa em como

85
adquirir um relógio para a família e aproveita-se do silencio noturno para tentar ouvir
as badaladas dos relógios dos vizinhos, para saber o horário.

Que horas serão? Parece que ouviu, por entre o vento,


ainda há pouco, umas pancadas de relógio na casa vizinha, na
casa do “rapaz”. Tinha vontade de saber se de fato há lá um
relógio que dê pancadas. Adelaide lhe poderia talvez
responder.
Serão onze horas? Meia-noite?
É bem possível. Já não ouve bonde há muito tempo.
Mas, quem sabe se já não passou por um sono, uma modorra?
Não pode jurar, não... Parece-lhe estranho que tenha estado
acordado todo esse tempo...
Tem curiosidade de saber que horas são.
Faz-lhes falta um relógio. Principalmente um relógio de
parede, na varanda. Vendem-se esses relógios em prestações.
Eles já tiveram entusiasmo por um relógio desses. (MACHADO,
2004, pg. 162).

Durante a noite a frequência dos bondes diminuía, não exatamente como o seu
número de passageiros, pois o “bonde fantasma” como era chamado o bonde que
chegava ao arrebalde por perto da meia noite vinha lotado.

Acha estranho não ter até agora ouvido o barulho do


bonde “fantasma”. Porque com toda a certeza já passou... Que
horas serão? Não pode precisar. Ainda há pouco ouviu um
quarto.
O bonde vinha cheio de gente. Bondezinho fechado,
igual ao da manhã. Agora estão pondo desses bondes nesta
linha... Fechado, agasalhado, cheio de luz. Como uma casa
(MACHADO, 2004, pg. 177).

Os bondes eram parte da vida de Naziazeno, faziam a conexão do local de


trabalho com a casa e eram completamente intrínsecos à rotina diária do funcionário
público, tanto que eram reconhecidos como uma espécie de casa.

3.2.2.1. Os Bondes na Capital gaúcha

O trafego dos bondes elétricos em Porto Alegre inicia em 1908, antes deste
período era utilizada tração animal. Segundo Walter (2016, pg. 156)

A viagem inaugural dos bondes elétricos aconteceu durante


a noite na linha Partenon e, como o veículo estava todo
iluminado, deve ter criado um clima de cidade grande para
Porto Alegre. O bonde saiu da garagem na Av. João pessoa

86
e foi até o final da linha na Rua Luiz de Camões, retornando
ao depósito. Além do Partenon, os bondes elétricos
atendiam o Menino Deus e passaram a operar as linhas
Glória e Teresópolis.

Segundo Ovadia (1976) no ano de 1916 o número de linhas foi ampliado.


Mesmo que algumas tenham sido eliminadas, como as linhas Cidade, São Pedro,
Floresta, Partenon (via Santana) e Menino Deus (João Alfredo). As mudanças mais
significativas em relação ao transporte ocorreram no centro da cidade com a
implantação de duas novas linhas circulares: a linha Duque, que subia a Rua Bento
Martins e galgava a ladeira da península e a linha Circular que atravessava a Rua da
Praia em toda a sua extensão, utilizando o traçado da linha Menino Deus e fechando o
circuito pela Rua 1°de Março e Conceição. O trajeto e a cobertura das linhas de bonde
da Capital no ano de 1928 pode ser observado na, que mostra o mapa da cidade com
o trajeto dos bondes.

Figura 11. Mapa do transporte público de Porto Alegre em 1928. Disponível em:
<https://picasaweb.google.com/museuvirtualcarris/MapasDiversosDePortoAlegre> Acesso em jul. 2016.

87
Com o crescimento do número de bondes fez-se necessário um abrigo, que na
década de 30 ficou convencionado à Praça da XV, um ponto de convergência do
transporte público no centro da cidade. Como pode ser visto na Figura 12.

Figura 12. Praça da XV e o abrigo de bondes. Disponível em:


<http://antigaportoalegre.no.comunidades.net/fotos-1921-1940 > Acesso em jul. 2016.

Os carros dos bondes eram comprados na Europa, mais especificamente na


Inglaterra e na Bélgica, e também dos Estados Unidos alguns dos modelos usados na
época podem ser vistos nas Figura 13 e Figura 14.

Figura 13. Bondes de vagão duplo da J. G. Brill na Filadelfia. Disponível em: <
http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=545103> Acesso em jul. 2016.

88
Figura 14. Bonde modelo "Birney" de segunda mão comprado no ano de 1929. Disponível em:
<http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=545103> Acesso em jul. 2016.

3.2.3. A Zona Central

Véscio (1995, pg. 101) define a zona central em que o personagem principal
caminha compreendida na área do centro antigo da capital gaúcha entre exemplares
arquitetônicos e urbanísticos muito conhecidos desta região. Entre os primeiros estão
a Prefeitura, a Igreja das Dores, o Café Nacional, o Café do Mercado, as Docas, a
Biblioteca, o New York Bank, o Banco do Comércio. Os segundos incluem as ruas, da
Ladeira, da Ponte, do Rosário, Santa Catarina, Clara, Coronel Carvalho, Sete, General
Câmara, Nova e a Voluntários da Pátria.

Algumas destas ruas trocaram de nome durante o passar dos anos, mas suas
identidades continuam e se mantem como elementos muito importantes do centro
histórico da capital.

A divisão dos trajetos em cinco blocos principais de acordo com Cruz (1994,
pg. 113) facilita a compreensão dos deslocamentos do personagem, e organiza a
discussão sobre os detalhes importantes do Centro Histórico. O primeiro bloco
corresponde ao período da manhã, no qual Naziazeno desembarca do bonde, passa
pelos cafés e pelo Mercado Público buscando por Duque, um amigo que, segundo o
protagonista, teria meios rápidos para resolver o seu problema. Por outro lado,
Naziazeno ainda tem em sua mente que o Diretor, chefe na repartição pública, poderá
lhe conceder um adiantamento como já havia feito. Neste bloco o foco principal fica
nos deslocamentos entre a Repartição e o Mercado Público.

89
O segundo corresponde aos capítulos oito e nove, nos quais o funcionário
público desloca-se para o Bairro Independência, vizinho do centro, para cobrar uma
dívida de um outro amigo, Alcides, que encontra pelas caminhadas matinais.
No terceiro, a área mais privilegiada é o Largo dos Medeiros, conhecida como
“coração da cidade na época” (CRUZ,1994, pg. 113), situada no encontro da rua da
Praia com a Praça da Alfândega. Corresponde a um período bastante delicado do
romance no qual Naziazeno procura por Alcides para lhe informar de que a cobrança
não dera certo, e desesperado o funcionário público tenta a sorte jogando em uma
roleta clandestina no centro da cidade.
O quarto corresponde aos capítulos quatorze e quinze, pouco menos de dez
páginas que representam a angustia da personagem principal no final do dia, quando
o sol se põe e Naziazeno vê indo embora com a luz do sol as possibilidades de
solucionar o problema que lhe atormentara o dia inteiro.
O último e quinto bloco de ações, trata de quando o funcionário público
finalmente encontra seu amigo, Duque, e consegue os cinquenta e três mil reis para
quitar a dívida com o leiteiro. Este bloco volta a centrar as ações no Largo dos
Medeiros.

3.2.3.1. Bloco um: A Manhã

Logo ao sair do bonde a mente do funcionário público está confusa, ainda não
sabe exatamente quais medidas tomar durante o dia para resolver a sua situação. O
anti-herói sente-se agitado:

Naziazeno, numa das esquinas, olha rapidamente em


torno como se procurasse orientar-se. Mas nada vê. É o
pensamento que se agita e arrasta a cabeça nos seus
movimentos. Ele procura “visualizar” bem a ideia de ir ter
com o Duque.
Mas, espera: que horas serão? Não há mais tempo
agora; é preciso ir direito à repartição. Foi o seu primeiro
plano, e é força segui-lo (MACHADO, 2004, página 24).

O trecho acima de certa forma define as preocupações que ocupam a cabeça


do funcionário público na sua chegada ao centro. Em seguida confere o horário no
relógio da prefeitura e decide que ainda é muito cedo para dirigir-se até o local de
trabalho, tomando assento então em um dos cafés.

90
Véscio (1995, pg. 104) esclarece que o ponto de chegada para um grande
número dos usuários do bonde era a Praça Quinze, supostamente a primeira casa de
prostituição da vila, no século XIX, quando ainda se chamava Praça do Paraíso --
motivo de muitas discussões na câmara dos vereadores. O espaço demandava muita
atenção, particulares reivindicavam parte do terreno, foi realizada uma reapropriação
da área, pois ambulantes haviam a invadido e em 1829 a praça foi até indicada para
ponto fixo do recolhimento e deposito de lixo na capital. Em 1844 é construído neste
terreno o primeiro mercado da cidade, que permanece nesta localização até 1870,
data da demolição do prédio. Depois disto a praça teve diversos usos, chegou até a
ser palco para um circo de 1875 a 1978 e, finalmente, em 1882 recebeu a função de
ponto de bonde. Como pode ser visto na Figura 12 e na Figura 15.

Figura 15. Mercado Público e Praça da XV. Disponível em:


<http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?p=59750633#post59750633> Acesso em jul. 2016.

Quando Naziazeno se levanta para fazer pela primeira vez o trajeto Centro –
Repartição, “é facilmente verificável pela iconografia disponível da época, o papel de
destaque ocupado pela Igreja das Dores em relação à paisagem da zona central”
(CRUZ,1994, pg. 113).

Têm um sorriso sereno. O indivíduo fala com eles em


alemão. Está certamente em “visita”. Naziazeno viu-se
inopinadamente interpelado ao passar: “— Não pode me dizer
o que é aquilo lá no céu?” — Uma luz, uma estrelinha um
pouco acima da Igreja das Dores; parece um contato de fios.
“— Naquela altura!...Olhe, aqui onde estou já saí vinte e duas
vezes a barra. Não penso que seja um simples contato.” — A

91
luzinha às vezes se apaga. É lívida, na manhã luminosa. —
Que será mesmo?
O cargueiro alemão estava batido das vagas, com
grandes retalhos de vermelho zarcão.
A luzinha, Naziazeno, de volta do cais, ainda a
acompanha, no seu pisca-pisca, até que, num ângulo de rua,
ela desaparece, oculta no casario. (MACHADO, 2004, página
30).

A igreja das Dores localiza-se na rua dos Andradas s/n, e é considerada a


igreja mais antigas da cidade de Porto Alegre, teve sua pedra fundamental lançada no
ano de 1807 e as obras concluídas em 1904. Tombada pelo IPHAN, como patrimônio
histórico e artístico nacional no ano de 1938, estes dados ajudam a entender porque a
igreja é considerada um ponto de referência para a população da capital gaúcha na
década de 30.

Figura 16. Vista da Igreja das Dores na rua dos Andradas na década de 30. Disponível em:
<http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?p=59750633#post59750633> Acesso em jul. 2016.

Outro momento que pode ser considerado muito significativo é quando


Naziazeno encontra-se nas Docas e, segundo Cruz (1994, pg. 114) faz referências a
rua Voluntários da Pátria, olhando em direção à ponta da Cadeia:

Aquele penacho de fumaça escura que se ergue meio


dobrado sobre o céu pesado de vapores são as “obras”. A
fumaça é da usina.

92
Está longe. Calcula uns dois quilômetros.
Deixa! É fácil saber... Pelo comprimento do cais já
construído...
(Faz um cálculo. Surgem embaraços. Desiste.)
Vem daqueles lados um ruído surdo: a cidade..
(MACHADO, 2004, página 102).

Na descrição acima Naziazeno observa a “usina”, trata-se da Usina térmica,


atualmente conhecida pelos porto alegrenses como “usina do gasômetro”. O prédio,
localizado na Av. Presidente João Goulart, 551, data de 1928 como pode-se ver na
Figura 17, mas teve seu projeto original alterado em 1937 quando foi inserida a
chaminé de 117 metros conforme a Figura 18, pois a fuligem que era emitida pela
termoelétrica causava desconforto nos habitantes da capital. Construída para suprir as
necessidades da cidade quanto a energia elétrica foi desativada no ano de 1970, mas
continuou como referência para os moradores da cidade que curtem o pôr do sol no
Guaíba em seu gramado. O imóvel atualmente é tombado pela Prefeitura de Porto
Alegre e foi reformado no ano de 2007.

Figura 17. Perspectiva do projeto da Usina publicada em 1926. Disponível em:


<http://ronaldofotografia.blogspot.com.br/2010_10_01_archive.html> Acesso em jul. 2016.

93
Figura 18. Fotografia da Usina na década de 30. Disponível em:
<http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1327521&page=1> Acesso em jul. 2016.

Da mesma forma como os percursos até a repartição eram balizados pela


luzinha da Igreja das Dores, este ponto de referência pode descrever o deslocamento
no sentido leste-oeste do personagem. Quanto aos retornos ao centro, estes tinham
como foco principal o relógio da Prefeitura.

Naziazeno vai andando...


É a segunda vez que consulta o relógio da Prefeitura
essa manhã. Esse relógio, lá no alto, na torre, parece-lhe
uma cara redonda e impassível...
Já pôs o pé na calçada do mercado. O “café do Duque”
fica na outra esquina. Toda essa calçada é uma sombra
fresca e alegre, cheia de passos, de vozes. Quando
defronta o portão central, abre-se-lhe, lá dentro, uma
perspectiva de rua oriental, cheia de bazares, miragem
remota de certas gravuras... ou de certas fitas... que viu.
Não enxerga o Duque nos lugares habituais... E,
entretanto, é a “hora dele”. Vai ficar por ali, pelas portas,
alguns minutos.
Ele não poderá tardar. Nunca deixa de ir a esse café.
Só por doença. (MACHADO, 2004, página 37)

O edifício da prefeitura de Porto Alegre (Figura 19), localiza-se na praça


Montevideu, 10, construído entre os anos de 1898 e 1901, traduz em seu ecletismo o
apreço do povo gaúcho pela monumentalidade. A edificação nos anos de 1927 a 1947
abrigava em suas salas térreas a Contadoria-Geral do Município, Receita Municipal,
Tesouraria e Procuradoria, porém com o aumento da população e a especialização

94
dos serviços da prefeitura esses espaços acabaram sendo transferidos para outros
prédios.

Figura 19. Prédio da Prefeitura de Porto Alegre. Disponível em:


<http://www.sul21.com.br/jornal/patrimonio-paco-dos-acorianos-comemora-110-anos-com-exibicao-da-
samaritana/> Acesso em jul. 2016.

Como se verifica, com os dados fornecidos a cima fica clara a importância das
edificações citadas como reverencia nos primeiros capítulos do livro. Pode-se, ainda,
dizer que lugares como a Praça XV na história de Porto Alegre, estão “diretamente
relacionado ao ponto de chegada ao centro da cidade, da população vinda dos
bairros” (VÉSCIO, 1995, pg. 105). Esta praça, junto com o Mercado e o Largo dos
Medeiros constituem os pontos principais onde a história do romance se desenrolará.
E as passagens marcadas pela curiosidade na Igreja das Dores.

3.2.3.2.Bloco dois: Meio-dia

Os primeiros parágrafos do capítulo oito, que junto com o capítulo nove,


descrevem a ida do funcionário público até o bairro Independência (Figura 20). O

95
trajeto ocorre no horário do meio dia, hora em que o sol fica a pino e o calor na cidade
atinge o seu ápice, Naziazeno aproveita o que consegue de sombra.

Treme o ar, toda a rua treme com o calor, tremem as


casas, como um pedaço de paisagem submarina,
ondulando através da água movediça. As habitações têm
colorido.
Pequenos jardins. Bairro elegante.
Naziazeno disfarça o cansaço, porque tem uma
esperança. Segue o trilho estreitíssimo e quebrado da
sombra das casas na calçada, bem junto das paredes. Toda
a rua está balizada num lado e noutro por uns blocos
metálicos, dum brilho sombrio: limousines em descanso.
O “sujeito” mora no número 357. É o fim da rua, lá no
alto (MACHADO, 2004, página 55).

As descrições do mostram claramente que lá vivem pessoas de outro padrão,


que tem a vida mais “resolvida”, tinham limusines estacionadas na porta de suas
casas.

Figura 20. Vista dos casarões da Avenida Independência. Disponível em:


<http://antigaportoalegre.no.comunidades.net/fotos-1921-1940> Acesso em jul. 2016.

Entretanto, apesar de o bairro ser chique a casa onde mora o suposto credor é
simples, “de aparência um tanto pobre” (MACHADO, 2004, pg. 58). Como o
funcionário público está focado em simplesmente conseguir o dinheiro para saldar a
dívida, sente-se miserável por sua situação e não pensa em opções para resolver
definitivamente os seus problemas financeiros. “Mesmo circulando por um bairro nobre

96
o protagonista só encontra pobreza” (CRUZ, 1994, pg. 117). Portanto, é bastante
significativo que a cidade pareça tão inóspita, pois ela é, de fato, um antagonista para
o humilde funcionário público. Como pode-se perceber na Figura 20 realmente há uma
ausência de arvores e elementos humanizados como postes de iluminação na altura
dos pedestres ou caçadas largas, que dariam mais vida a rua.

A cidade não tem árvores. A rua é um bloco inteiriço de


granito escaldante.
Terão de esperar pelo expediente da tarde pra falar
com o subgerente no banco. Parece-lhe agora um tanto
estranho aquele equívoco do Alcides... Entretanto, a cara do
Andrade tinha um ar de surpresa e de sinceridade. Mas, se
ainda tinham falado havia pouco no tal Mister Rees, na
parte que lhe cabia pagar, como era possível ter Alcides se
enganado?...
Ele lhe vai explicar tudo isso.
Alcides o espera certamente no Nacional.
O silêncio da cidade já se quebrou. Outra vez rola, em
direção ao centro, a onda dos automóveis e dos bondes. A
tira mesmo de sombra junto à parede já é mais larga e mais
disputada. (MACHADO, 2004, página 66).

Cruz (1994, pg.117) afirma que se pode supor que Naziazeno está descendo a
Av. Independência, em direção ao centro, no momento em que o intervalo encerra-se
o intervalo para o meio-dia e a cidade retoma as suas atividade para o período da
tarde. Novamente a posição solar, e a forma como a cidade é percebida através desta
informação, ajuda a deixar claro a posição do personagem principal na cidade e o
horário em que o percurso é percorrido.

3.2.3.3. Bloco Três: Tarde

Dos capítulos 10 ao 12 o personagem percorre lugares na imediação do Largo


do Medeiros (Figura 21). Cruz (1994, pg.117) afirma que “não por acaso, certamente,
são dois dos espaços urbanos mais importantes de Porto Alegre em 1935. Isto
confirma-se pela iconografia da cidade que tem, nestas duas áreas farta
documentação”. Referindo-se assim, a materiais criados por cronistas e memorialistas
da época cujas manifestações são extensas e detalham um pouco da vida nesta
região de Porto Alegre no determinado período de tempo:

Dirige-se pra outro café. O comércio reabre as suas


portas. A rua outra vez se enche de gente. Os cafés têm quase

97
todas as mesas ocupadas. O ar comunica-lhe um mugido
surdo que se levanta daí e que o estado de debilidade do seu
estômago e da sua cabeça amplia em certos momentos até lhe
parecer um trovão.
Dos cafés, estende a sua pesquisa à rua, à praça.
O Alcides, naturalmente, cansou-se de esperá-lo. Foi
decerto comer.
Vai até ao Restaurante dos Operários, que fica perto.
Como não o encontra também aí, lembra-se daquela vez que o
acompanhou a um frege do mercado... É isso! É onde Alcides
tem de estar. Chega até a vê-lo naquela mesma mesa,
comendo com concentração, silencioso... Irá até lá!
Mas ao mesmo tempo, vê-se com igual nitidez indo ao
frege do mercado e não o encontrando... Só enxerga aí caras
estranhas... Tudo desconhecido... Tudo desabitado... como
aquela esquina do seu tempo de guri... (MACHADO, 2004,
página 67).

No trecho de Dyonelio citado acima há clara referência a Praça da Alfandega


(Figura 22) que é simplesmente denominada como “praça” e a rua da Praia também
tem seu nome suprimido e chama-se apenas de “rua”. Desta forma, sabemos que
Naziazeno procurará seu amigo no “Café Nacional, muito conhecido na época, e que
se situava em frente à Praça da Alfandega”. (DE SÁ JUNIOR, 1982, pg. 124). A
fachada principal do café pode ser vista na Figura 23.

Figura 21. Largo dos Medeiros. Disponível em:


<http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=783292&highlight=&langid=5> Acesso em jul. 2016.

98
Figura 22. Praça da Alfandega. Disponível em:
<http://www.terra.com.br/noticias/infograficos/praca-da-alfandega/antes-e-depois/fotos/6-1.jpg> Acesso
em jul. 2016.

Figura 23. Largo do Medeiros, onde pode-se ver a fachada do Café Nacional. Disponível em:
<https://www.flickr.com/photos/fotosantigasrs/with/11013523193/> Acesso em jul. 2016.

Com os dados e imagens apresentado podemos, enfim, fazer uma relação


entre a cidade real em transposição com a cidade fictícia. “Dados como este o fato de
que se quisermos nos guiar no labirinto urbano de marchas e contramarchas a que se
é levado por Naziazeno, devemos realmente segui-lo momento a momento”. (CRUZ,
1994, pg.118). A partir desta afirmação percebo que está ainda mais clara a maneira

99
intrínseca como a cidade real se mistura com a cidade imaginária do personagem
construindo a Porto Alegre através dos olhos de um personagem que vivia a cidade de
uma maneira que a história oficial não relata completamente, o lado marginal do centro
tomado de apostas, locais para jogar no bicho, de passar as tardes nos cafés tentando
ser intermediário de negócios e de conseguir dinheiro por intermédio de empréstimos
com agiotas.

No capítulo 11, o qual Cruz (1994, pg.119) denomina de “capítulo da ladeira”,


rua onde se localiza o escritório do Dr. Conti, amigo de Duque que pode ajudar na
situação. A rua, sua inclinação desgastante, o horário e a fome, pois ainda não havia
almoçado, fazem-se perceber pelas descrições, e o funcionário público ainda aumenta
o seu calvário com a indecisão de entrar ou não no escritório, subindo e descendo a
rua da ladeira algumas vezes.

Do meio da quadra retrocede. As suas passadas são


grandes e compassadas, porque é forte a subida e ele já anda
cansado de tanto caminhar.
Vai pelo cordão da calçada. Entre ele e a parede, como
num canal em declive, os transeuntes derivam com a força de
água corrente. São pequenos grupos, sucessivos. Vêm
conversando. Dão-lhe a impressão de virem dalguma reunião, que
haja acabado naquele instante.
Ao defrontar o escritório, um grupo se interpõe entre ele e
a porta. Aproxima-se então da janela. Mas no momento em que
vai espiar para dentro, volta-se subitamente e dá com os olhos
num sujeito que, na porta duma casa fronteira, observa-o com o
olhar fixo. Retira-se vivamente e sobe. Vai até à esquina.
(MACHADO, 2004, página 74).

Figura 24. Rua da Ladeira, atual General Câmara. Disponível em:


<http://wp.clicrbs.com.br/almanaquegaucho/2013/03/14/olavo-dutra-e-a-revolucao/?topo=13,1,1,,,13/>
Acesso em jul. 2016.

100
Em um destas subidas e descidas da Rua da Ladeira, que atualmente recebe o
nome de General Câmara, o personagem principal encontra-se com Costa Miranda,
incidente que inicia o capítulo 12, e Naziazeno consegue cinco mil reis emprestados
para almoçar, mas tendo o dinheiro em mãos o funcionário público decide tentar a
sorte na roleta.

Esse “plano” veio-lhe de súbito, e perturba-o!


Há uma roleta montada meio secretamente nos fundos duma
tabacaria, mesmo ali perto. Justamente nesse momento (hão
de ser duas horas, mais ou menos) começou a funcionar. Se
tentasse...?
Seu estômago porém está oco. Uma dor lhe sobe por
dentro do peito, até ao pescoço, à garganta. Sente uma
debilidade na cabeça, espécie duma leve sonolência, como
quando tem febre. Entretanto, está com a testa fresca. Sabe
que, se comer, tudo isso desaparece. É de haver passado todo
esse tempo sem se alimentar.
Mas como perder essa oportunidade?... . (MACHADO,
2004, página 78).

Naziazeno passa boa parte da tarde no interior da “tabacaria”, onde funciona


uma roleta ilegal, ganha nas apostas dinheiro suficiente para quitar sua dívida, mas
permanece jogando até que todo o valor se perca.

Muitas casas de comércio já estão fechadas. A luz do dia


é mortiça. O calor abrandou.
Com o caminhar, um pouco de vento, uma certa aragem
lhe vem à cara e refresca-a.
Ao chegar à esquina duma rua em declive, por onde
descem bondes, tem de esperar que passem um bonde e um
automóvel. O bonde vem quase vazio. Um indivíduo de meia-
idade, sobre uma das janelinhas, olha pra tudo com um olhar
sereno de recreação...
A quadra seguinte, em que há pouco desse comércio
“elegante”, se acha mais deserta ainda.
Dobra uma esquina. Entra numa rua mais larga.
Às horas de movimento, esta rua está sempre coalhada de
automóveis. Nesse momento se encontra tão desabitada como as
outras. (MACHADO, 2004, página 78).

Ao sair da edificação constata que perdeu quase toda a tarde no jogo e, agora,
que o dia termina suas chances de conseguir o dinheiro ficam menores, refletindo-se
na forma como percebe o ambiente, as descrições deste trecho do livro se mostram
muito mais amargas o capítulo treze se encerra com um tom melancólico que
percorrerá as descrições do final da tarde.

101
3.2.3.4. Bloco Quatro: Final da Tarde

Trata-se dos capítulos quatorze e quinze, nos quais o Naziazeno entra em


profunda melancolia, ao ver o dia acabando e com ele a chance de conseguir os
cinquenta e três mil reis para quitar a dívida com o leiteiro. O cansaço o domina e o
anti-herói não sabe mais o que fazer para reparar a sua situação.

Naziazeno vai andando.


Desemboca numa avenida. Os edifícios, altos, têm uma
faixa de luz, alaranjada e distante, sobre os últimos andares. O
estrépito dum bonde que desce enche dum ruído
duro o ar silencioso.
Atravessa a avenida. Poucas casas abertas. A bem dizer,
apenas os armazéns.
Continua andando.
Já se avistam esses pavilhões compridos, antigos
trapiches, que avançam agora na areia do recalque, como ainda
há bem pouco nas águas do rio.
O espaço está mais livre. Faz-se um contato mais estreito
com o dia e com a tarde.
Naziazeno toma a grande artéria onde se concentra todo o
grosso comércio da cidade. Ao chegar ao meio da quadra, mais ou
menos, atravessa a rua, enveredando pra uma grande casa
atacadista, assinalada por duas enormes placas metálicas
colocadas dum lado e doutro da porta principal.
Só uma meia folha aberta. (MACHADO, 2004, página 93 e
94).

As descrições apontam para ruas com edifícios e que sustentam muita


movimentação de comércio durante o dia, mas que agora encaminham-se para o final
do dia. Um exemplo da Porto Alegre que possuía edifícios e bondes pode ser visto na
Figura 25. A avenida que Naziazeno atravessa, onde avista apenas os armazéns
abertos provavelmente trata-se da antiga avenida Dique, que com o final do dia torna-
se uma avenida mais morta.

102
Figura 25. Edifício e bonde circulando no centro de Porto Alegre. Disponível em:
<http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?p=59750633#post59750633> Acesso em jul. 2016.

Às costas de Naziazeno se acha uma pequena rua


transversal que vai ter às docas em construção. É uma rua
inacabada, que, poucos passos depois da esquina, se perde
na areia.
Ele toma essa rua.
Dum lado e doutro ela é margeada agora de umas
construções de madeira, compridas e baixas, pintadas de
negro. Dois ex-trapiches. Um deles — o da esquerda —
continua ainda por uma ponte pela areia adentro. Do meio
pra o fim, o piso da ponte desapareceu: estão somente as
estacas, deixando escapar apenas de sobre a areia um
pequeno esquadrão de cubos de madeira, avançando em
filas escuras até quase à linha do dique.
A cidade se recorta sobre a claridade avermelhada que
tem o céu para os lados onde está se escondendo o sol. O
semicírculo do horizonte que Naziazeno abraça com o olhar
está pesado de vapores. O rio, que reflete e baralha as
cores escuras e claras do céu, tem um movimento lento e
espesso de óleo. Bem à direita, lá longe, quase sobre as
ilhas baixas, as sombras dos grandes navios ancorados no
largo cavam buracos pretos na água grossa.
Naziazeno vê-se rodeado de areia, perdido naquele
pequeno deserto. Ensaia safar-se pela esquerda, alguns
metros mais abaixo.
Tem grandes passadas. Arrasta enormes pés de
chumbo... (MACHADO, 2004, página 99).

Na citação acima, encontram-se as obras do porto de Porto Alegre, bem


como as ruas que davam acesso a este. Sua condição de inacabadas e em

103
construção podem também ser interpretadas como “ruinas”, relacionadas ao
sentimento de incompleto que o personagem sente neste momento do livro, por não
conseguir atingir o seu objetivo principal, o qual o motivara a saída do arrebalde pela
manhã.

São descritas também as estruturas conhecidas como trapiches que eram


estruturas de madeira. As estruturas precisam de manutenção praticamente anual, e
segundo a descrição do autor não estavam sendo realizadas pelo governo Estadual.
Percebe-se nesta parte do texto a procura da margem do Guaíba. A vista dos navios
ancorados no porto e a sensação calmante que Naziazeno encontra na beira d’agua.

Nota-se também que a descrição da cidade se diferencia do tradicional


divulgado pela literatura até então, existe uma visão negativa, um peso demasiado nas
descrições. O horizonte está “pesado de vapores” (MACHADO, 2004, página 99), o rio
“tem um movimento lento e espesso de óleo” (MACHADO, 2004, página 99) e os
navios “”cavam buracos pretos na agua grossa” (MACHADO, 2004, página 99). Esta
imagem da cidade mostra a urbe que oprime o funcionário público, pois na sequencia
ele descreve a sua sensação de inferioridade e de incapacidade de reação. Todos os
esforços durante o dia do funcionário público não geram resultados, apaticamente
Naziazeno “Arrasta enormes pés de chumbo” (MACHADO, 2004, página 99).

Figura 26. Fotografia das antigas docas do Porto. Disponível em:


<http://ronaldofotografia.blogspot.com.br/2011/03/o-cais-da-alfandega-visto-do-guaiba.html> Acesso em
jul. 2016.

O capítulo quinze narra o trajeto que Naziazeno escolhe quando volta “pela
rua Voluntários da Pátria até chegar ao Mercado público” (CRUZ, 1994, pg. 124),

104
neste momento há muitas referências a cidade real, pois o personagem achava-se
perdido em seus pensamentos e o narrador descreve através dos olhos de Naziazeno
alguns retratos urbanos que eram bastante comuns na época. Percorre a rua até
avistar o Mercado Público (Figura 27) e percebe os sons característicos que de lá
vem:

Avança...
Através das pérgulas e dos arbustos da praça lá no
fundo, distingue a esquina do mercado. Um pouco mais para
diante, na altura do portão central, há movimento, pessoas que
atravessam a rua. Bondes, automóveis desembocam na praça,
fazem a curva defronte da grande casa que toma todo o
quarteirão.
Os pios das buzinas chegam já, meio veladamente,
aos ouvidos de Naziazeno.
Atinge a esquina da rua Santa Catarina, por onde
entrou o auto... É larga, bonita. Diminui o passo, até quase
parar: fica olhando ao longo da rua... No fundo, passando a
avenida, estacionam alguns automóveis... Uma limousine
mesmo vai nesse momento fazendo a manobra pra sair.
Naziazeno pára. A limousine toma impulso, aproxima-se da
esquina onde começa uma ladeira forte; buzina. Ele distingue a
figura do inspetor do tráfego quadrando-se todo, dando
passagem. — A limousine desaparece numa curva.
(MACHADO, 2004, página 103)

Com a descrição se percebe que “o trânsito ao contrário do que viria a


acontecer no futuro, começa a diminuir seu movimento no final do dia”. (CRUZ, 1994,
pg. 124) Apesar de os jornais e o romance em estudo apontam para um transito que já
era considerado significativo ainda não aparecem registros de engarrafamentos, os
quais “começaram a se tornar rotina a partir das décadas de 60 e 70” (CRUZ, 1994,
pg. 124). Na Figura 27, apesar de as obras do porto já estarem completas percebe-se
um pouco do que é descrito no romance “Os Ratos”: ruas calmas sem tanto trafego de
veículos.

Naziazeno não apenas observa o espaço urbano, mas


contempla-o, levando consigo o leitor. A personagem como que
levanta a cabeça e olha ao longe. Como se pode constatar, são
várias tomadas cinematográficas no capítulo em que se
enxerga ao longe movimentos em câmera lenta. O clima é
melancólico, o tom caminha em direção a um lirismo enxuto, os
objetos como se esfumam ao longe, como aquele bonde
desaparecendo o automóvel sumindo na curva. As coisas
parecem se distanciar de Naziazeno. A própria cidade é vista
ao longe de forma esmaecida”. (CRUZ, 1994, pg. 125).

105
Figura 27. Vista do Mercado público, Praça Parobé e de parte do Porto da capital. Disponível em:
< http://jcrs.uol.com.br/institucional/wp-content/uploads/2013/05/Foto-4649f-MERCADO-
P%C3%9ABLICO.jpg> Acesso em jul. 2016.

3.2.3.5. Bloco Cinco: Crepúsculo

Na seguinte descrição Naziazeno consumido pela angustia do final do dia e


pelas incontáveis tentativas frustradas de conseguir o dinheiro para quitar a sua dívida
descreve o entorno do café, como o relógio da prefeitura que pode ser observado na
Figura 19, que foi usado diversas vezes durante o dia, visto que ele já havia
empenhado o seu, e o restante dos edifícios altos que construíam o entorno da praça
e tapavam o sol poente:

O relógio da Prefeitura — aquele relógio que lhe


parecera de manhã uma cara redonda e impassível — e que
ele espia agora furtivamente, com o cuidado de não
interromper a conversa, está marcando seis e vinte. À frente
deles, uns edifícios altos, que fecham o “largo” nessa parte,
não lhe deixam ver mais a moeda em brasa do sol.
Está perdido o dia... Está perdido o dia...
(MACHADO, 2004, página 64).

O capítulo seguinte, de número 16, representa a chegada do personagem ao


café do entorno do Mercado Público, o seu reencontro, com Alcides, de quem havia se
perdido no meio do dia e, finalmente encontra o Duque, quem Naziazeno acreditava
que possuía as artimanhas para resolver o seu problema desde a manhã quando saiu

106
do bonde. O personagem principal se torna impaciente, precisa falar com Duque,
mesmo que o amigo esteja em outra mesa tratando com um senhor de aparência
refinada.

Depois que o anti-herói explica a sua situação, Duque confabula um plano,


que deve resultar no dinheiro necessário para quitar a dívida de Naziazeno, entretanto,
devido ao horário, os passos devem ser seguidos rapidamente, o que consiste em
descrições menos detalhadas das áreas por onde os personagens passam. Os
capítulos dezessete ao vinte um, relatam que “O Duque está no seu momento”
(MACHADO, 2004, pg. 135). São citados vários lugares, alguns que já haviam
aparecido antes, como o café Nacional (Figura 23), e outros nomes também
aparecem, como a rua Paissandu, a rua Clara e a rua Nova, citadas no livro como os
locais onde os agiotas tem seus escritórios.

Caminham algum tempo calados. Eles vão agora à


rua Nova, ao agiota Assunção.
Assunção não chega mesmo a dar uma desculpa. Diz
que não, e pronto. Eles aliás não insistem. Àquela ideia de que
vai chegar em casa com as mãos abanando, Naziazeno sente
um gelo, ao mesmo tempo que a sua cabeça se enche dum
turbilhão.
Tocam-se em direção ao café. A penumbra da tarde,
aquela sombra que cresce, progressivamente cresce, põe-no
nervoso. Mesmo a sua náusea passou: ele está agora todo
trepidação inquieta outra vez. Pergunta ao Duque:
— Você tem alguma ideia?
— Vamos abordar o Mondina. (MACHADO, 2004,
página 118)

Enfim, encontramos a descrição do centro, no cair da noite, quando as lojas


encerram seu expediente e os quatro personagens cruzam a Praça da Alfândega para
chegar ao Cinema, onde trocarão o dinheiro do penhor do anel de bacharel de Alcides.
Destaca-se a descrição da cidade, a presença de arborização, a calma e a
determinação na qual se encontra Naziazeno, pois percebera uma solução para o seu
problema. São descritos também os grupos que estavam na frente do cinema,
provavelmente olhando as vitrines e a espécie de “furor” social que existia em torno de
tal edificação na época (Figura 28):

Dobram a primeira esquina. Entram na rua principal. As


vitrinas, raras ainda nessa “altura”, projetam nas calçadas
retângulos de luz, que os passeantes pisam, pisam, com pés
iluminados...

107
Vai travada uma conversa na fila da frente. Naziazeno
distingue perfeitamente as palavras de Martinez, que fala para
os dois, sem contudo voltar nem uma vez a cabeça para o lado
de um ou outro. O seu passo é ligeiro e firme, o olhar sempre
em frente.
Chegam ao canto da praça. Defronte dos cinemas,
pequenos grupos, um que outro casal. Há sujeitos no guichê da
bilheteria. Outros olham por um momento os cartazes. Uma
pequena família vai entrando. O homem entrega as entradas. A
mulher tem uma criança pela mão.
Atravessam a praça.
Olhando para o chão, para as fachadas, para a frente
dos cinemas, para as árvores, é noite. Mas Naziazeno ergue os
olhos. Bem lá em cima, naquelas nuvens esbranquiçadas, há
ainda um ar de dia... As nuvens agora — os pedaços delas que
ainda se podem distinguir — têm uma luz esmaecida, lívida...
(MACHADO, 2004, página 74.)

Figura 28. CInema Central e a multidão em 1939. Disponível em:


<http://ronaldofotografia.blogspot.com.br/2011/02/cinema-central.html> Acesso em jul. 2016.

Surge uma espécie de clima fantasmagórico, devido as descrições do horário,


e do comportamento da luz: “A rua ilumina-se dum jato” (MACHADO, 2004, pg. 125) .
As luzes que saem das vitrines, iluminam os pés dos personagens apressados para
finalizar sua transação antes que o dia se dê por encerrado. Aqui faz-se presente o
fascínio pela chegada da iluminação pública na capital. Neste momento a energia

108
gerada na já citada Usina Termoelétrica do Gasômetro inunda as ruas de Porto
Alegre.

Figura 29. Iluminação pública na capital. Disponível em:


<http://ronaldofotografia.blogspot.com.br/2010_10_01_archive.html> Acesso em jul. 2016.

3.3. O projeto Monumenta e o percurso de Naziazeno

O projeto Monumenta é um Programa do Ministério da Cultura com recursos do


Orçamento da União. Seu principal objetivo é atuar nos sítios históricos urbanos
brasileiros, não apenas como um programa de recuperação física de monumentos,
mas visando criar referenciais para prática da gestão sustentada do patrimônio
cultural.

109
O programa é nacional e possui cerca de 27 centros históricos cadastrados em
todo o país, entre eles o centro de Porto Alegre. Na capital gaúcha o Monumenta
começou a atuar no ano de 2001 quando iniciou o restauro do Cais Mauá.

A área escolhida, por ser o centro de Porto Alegre acaba tendo muito em
comum com o percurso de Naziazeno, como pode ser observado na Figura 30 abaixo.

Figura 30. Área tombada pelo projeto Monumenta. Disponível em:


<http://seer.ufrgs.br/index.php/EmQuestao/article/view/2983/2035#capitulo3topo> Acesso em jul. 2016.

O próprio IPHAN na descrição da área escolhida pelo programa ressalta muitos


pontos que já foram citados e mostrados no trabalho como pontos importantes no
percurso de Naziazeno, comprovando o quanto o centro está presente no imaginário
social e na consciência de patrimônio do habitante da capital gaúcha:

A escolha da área do Projeto Monumenta Porto Alegre,


baseada nos eixos longitudinal e transversal à orla do

110
Guaíba, inspirou-se na existência de perímetro tombado
pelo Iphan em 1999, que se estende da cumeada do
promontório que caracteriza a área mais antiga, ao longo da
rua Duque de Caxias, até a orla do Lago Guaíba, cruzando-
se ambos os eixos no largo dos Medeiros, ponto fortemente
ancorado na história da cidade. Essa escolha foi reforçada
pela preexistência do corredor cultural da rua da Praia, cuja
valorização por meio de melhorias nas calçadas,
arborização e iluminação, foi promovida pelo município nos
anos 1980. O contorno desses eixos, dos quais o perímetro
foi levemente ampliado por conter significativo volume de
imóveis privados de valor cultural, abarca os principais
monumentos e logradouros tradicionais do centro histórico.
Os investimentos do Monumenta concentram-se
prioritariamente ao longo desses eixos, prevendo-se que
seu efeito exemplar e dinamizador se espraie na
circunvizinhança, atraindo investimentos e incentivando
iniciativas de restauração de imóveis e melhorias
urbanísticas. Com essa estratégia pretende-se reforçar a
imagem do centro histórico aos olhos da população. Vem ao
encontro desse propósito o fato de os eixos transversal e
longitudinal serem espaciais e topograficamente bem
delimitados e conhecidos pela população. (PROGRAMA
MONUMENTA – Porto Alegre, 2010, pg.34)

No decorrer do programa foram instaurados dois eixos, o primeiro é definido,


pelo quarteirão do Palácio Piratini, Catedral e Cúria Metropolitana, e no outro extremo
pelo Pórtico e os Armazéns A e B do Cais Mauá, contemplando o perímetro do sítio
urbano tombado pelo IPHAN no ano de 1999. No segundo, o eixo longitudinal –
corredor cultural da rua da Praia –, é limitado, de um lado, pela Esquina Democrática
e, de outro, pela Igreja Nossa Senhora das Dores.

3.4. Mapeando o caminho “Dos Ratos”

Através das descrições citadas no livro foi elaborado um mapeamento da


capital de Naziazeno, ressaltando os locais que mais tiveram importância no percurso
do personagem durante o dia. Levando em conta as caminhadas descritas no livro
calcula-se por alto, que Naziazeno tenha percorrido um percurso de pelo menos quinze
quilômetros. Literalmente ele palmilha todo o centro da cidade, a seguir a lista dos
percursos identificados, o mapa com os percursos é Mapa 01 que está no Anexo 01:

1. Café do Mercado - Café do Centro

2. Café do Centro – Cais

111
3. Cais – Repartição

4. Repartição - Café do Mercado

5. Café do Mercado - Café do Centro

6. Café do Centro – Repartição

7. Repartição - Café do Centro

8. Café do Centro - Independência (Casa do Andrade)

9. Independência (Casa do Andrade ) - Café do Centro

10. Café do Centro – Rua da Ladeira/Tabacaria (Roleta)

11. Rua da Ladeira/ Tabacaria (Roleta)- Café do Centro

12. Café do Centro - Voluntários da Pátria

13. Voluntários da Pátria – Docas

14. Docas - Voluntários da Pátria

15. Voluntários da Pátria - Café do Mercado

16. Café do Mercado - Café do Centro

17. Café do Centro - Rua Clara (Fernandes)

18. Rua Clara (Fernandes) - Rua Nova (Assunção)

19. Rua Nova (Assunção) - Café do Centro

20. Café do Centro - Rua da Ladeira (Martinez)

21. Rua da Ladeira (Martinez) - Travessa (Martinez)

22. Travessa (Martinez) - Rua da Ladeira (Martinez)

23. Rua da Ladeira (Martinez) - Rua do Rosário (Dupasquier)

112
24. Rua do Rosário (Dupasquier) - Café da Esquina

25. Café da Esquina – Bolão

26. Bolão – Cinema

27. Cinema – Mercado

Além dos percursos identificados foram selecionados pontos referenciais os


mais citados no livro ou que o personagem procura como pontos de referência, estes
pontos ficaram:

 Mercado público

 Prefeitura

 Praça da XV

 Usina do Gasômetro

 Igreja Nossa Senhora das Dores

 Rua da Ladeira

 Avida Independência

 Rua da Praia

Foi produzido um mapa (Mapa 02) com as imagens e a localização dos pontos
de referência, além disso ou realizado um terceiro mapa (Mapa 03) cruzando o
percurso com os pontos de referência, ambos os mapas podem ser vistos no Anexo 01.

113
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho desenvolvido procurou mostrar a maneira como a cidade é percebida


e incorporada na obra literária do autor Dyonelio Machado, que trata Porto Alegre de
uma maneira muito elaborada, apropriando-se dos elementos do romance de diferentes
formas, entre elas: retratando as características físicas e sociais dos bairros nobres e
suburbanos, bem como os seus moradores. Descrevendo o centro da cidade e seu
emaranhado de caminhos e criticando de forma sutil as diferenças socais e mostrando
ao leitor as interpretações variadas da cidade a partir de um ponto de vista não
procurado e aceito historicamente, o do trabalhador de baixo escalão.
Dyonelio Machado sintetiza a cidade através das descrições da urbe, dos
percursos de Naziazeno e como o personagem principal percebia os percursos. Assim,
quando se fala sobre Porto Alegre no romance essa presença não pode ser entendida
como um retrato inerte de cidade, mas sim como maneira de compreensão da cidade e
sua complexidade social e urbana, sob os mais diversos olhares. O que diferencia o
trabalho do autor é o tratamento dado à psicologia do personagem, “Os Ratos” não só
introduz um personagem das classes trabalhadoras na literatura gaúcha como também
inicia o romance psicológico.
A crítica de Dyonelio é mais direcionada a maneira como o habitante da cidade
se comporta, sendo ele o fruto da cidade em modernização. A cidade, extremamente
presente buscava o crescimento e se equiparar ao Rio de Janeiro e a Europa,
comportando-se como um elemento de extrema importância para a descrição,
ambientação e caracterização de toda a narrativa. Não é apenas o elemento urbano que
deve ser levado em consideração, e sim toda a ambientação do livro – dados sociais,
culturais e políticos – da Porto Alegre da década de 30.
Esta Porto Alegre, descrita nas páginas da narrativa, pode muito bem ter existido
a sua ambientação está correta e os personagens parecem muitas vezes saídos das
páginas de jornais, discursos políticos ou relatos de médicos higienistas. Como
Pesavento (1991, pg. 37) diz “reafirma-se que não se quer encontrar uma cidade real,
mimética, na cidade literária, nem se admite que as fontes históricas deem conta da
versão definitiva do que passou”. Logo, aceita-se a literatura como um complemento a
história, uma forma de complementar as páginas já escritas com a realidade de outro
grupo que não o grupo dos vencedores.

114
O que torna o romance algo a mais do que um simples relato, é que o autor
procura compreender a cidade retratando as mudanças econômicas e estruturais, pois
passava por um período de efervescência e modernização. Devido a sua visão sensível
diversos aspectos intrínsecos ao meio urbano, que se entrelaçam na transformação e
modernização da cidade aparecem no romance de Dyonelio Machado. Não apenas esta
obra, mas diversas obras de literatura podem ser usadas como fonte de pesquisa e
ajudaram a compreender novos pontos da cidade, que nem sempre ficam expressos na
história e complementam as buscas dos Arquitetos e Urbanistas na construção do
imaginário social de uma época.

115
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120
ANEXO 01
MAPA 01 - O Percurso de Naziazeno
01 02 03 04 05 05 06 07

MAPA 02 - Pontos de referenciais de Naziazeno


01 02 03 04 05 05 06 07

MAPA 03 - Pontos de referenciais e Percurso de Naziazeno

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