Os Ratos
Os Ratos
Os Ratos
Setembro de 2016
OS RATOS E OS RASTROS
Porto Alegre
Faculdade de Arquitetura
2016
ii
OS RATOS E OS RASTROS
Orientador: __________________________________
Dra. Andrea Soler Machado UFRGS
Doutor pela UFRGS - Porto Alegre, Brasil
Banca Examinadora:
iii
Dedico este trabalho
Ao meu pai Rubem Schöffel,
À minha mãe Adriana Grando Schöffel,
pelos ensinamentos e, principalmente, pelo exemplo de vida.
iv
AGRADECIMENTOS
À professora Dra. Andrea Soler Machado, orientadora, pela
orientação, ensinamentos, apoio, incentivo e
tranquilidade transmitida quando estive sob
sua orientação, contribuindo para o resultado
final obtido.
Aos professores Fernando Freitas Fuão e Luís Henrique Haas
Luccas, pela disposição de participarem da
banca.
v
RESUMO
Dyonelio Machado, autor do romance “Os Ratos”, destaca-se por ter rompido
com as estruturas da literatura gaúcha e abandonado o mito do herói a cavalo para
destacar a essência urbana da capital gaúcha. O escritor usava de sua persuasão para
que os leitores o compreendessem, sabia que jogava com o mundo da literatura, e de
certa forma ressentia-se com a incompreensão da crítica, vigiada de perto pela censura.
Naziazeno, personagem principal da narrativa, apresenta sua origem na
propriedade rural, mas vive agora preso à cidade e ao seu ritmo feroz metropolitano.
Anda por ruas, pega o bonde, trabalha em uma repartição pública e tem seu olhar
lançado para o passado volta e meia, lembrando-se da sua infância e de como a cidade
em que cresceu era diferente em vários sentidos da que vive.
O objetivo do trabalho é discutir as descrições urbanas encontradas em “Os
Ratos”, a partir do método da nova História Cultural cujos princípios, destacam-se os
argumentos afirmando que o mundo só é percebido como representação através de
uma estrutura de convenções, esquemas e estereótipos culturalmente construídos. O
real não deixará de ser real, pois é exatamente a ficcionalidade que garante a identidade
às relações sociais, configurando o real e o imaginário não como coisas opostas, mas
sim complementos indispensáveis para a forma de existência da vida social.
Esta estratégia mostra como retirar o melhor proveito do cruzamento das
imagens e os discursos das cidades, gerando assim um aprofundamento nas relações
literatura e história, além da base que é a cidade, o contexto urbano e suas
transformações. As narrativas literária e histórica trazem discursos que ajudariam a
remontar a realidade urbana. Tratando-se de convencer o leitor e transporta-lo para um
outro tempo.
O que torna o romance algo a mais do que um simples relato, é que o autor
procura compreender a cidade retratando as mudanças econômicas e estruturais, pois
passava por um período de efervescência e modernização. Devido a sua visão sensível
diversos aspectos intrínsecos ao meio urbano, que se entrelaçam na transformação e
modernização da cidade aparecem no romance de Dyonelio Machado. Não apenas esta
obra, mas diversas obras de literatura podem ser usadas como fonte de pesquisa e
ajudaram a compreender novos pontos da cidade, que nem sempre ficam expressos na
história e complementam as buscas dos Arquitetos e Urbanistas na construção do
imaginário social de uma época.
vi
ABSTRACT
Dyonelio Machado, author of the novel “Os Ratos”, stands out for having broken
with the literary structures of the Brazilian Gaucho literature and for abandoning the myth
of the hero on horseback to highlight the urban essence of the Gaucho capital, Porto
Alegre. This writer used his persuasive ways for readers to understand him, he knew
that he was playing with the literary world, and in a certain way he was resentful of the
critical incomprehension, criticism being closely watched by censorship.
Naziazeno, the narrative’s main character, has an origin in the rural propriety, but
he now lives stuck to the city and to its metropolitan fierce rhythm. He walks through the
streets, takes the tram, works in a public repartition and now and then looks to the past,
remembering of his childhood and of how the city in which he grew up was in many ways
different from the one in which he lives.
This work’s aim is to discuss the urban descriptions found in “Os Ratos” according
to the Cultural History method, among whose principles stand out the arguments that
affirm that the world is only perceived as a representation through a structure of culturally
constructed conventions, schemes and stereotypes. The real will not stop being real,
because it is exactly fictionality that guarantees identity to social relations, configuring
the real and the imaginary not as opposed things but as indispensable complements to
the form of existence of social life.
This strategy shows how to take the best advantage from the crossing of images
and discourses of the cities, generating thus a deepening of the relations between
literature and history, beyond the base which is the city, the urban context and its
transformations. The literary and historical narratives bring discourses that would help
reassemble the urban reality, leading to a convincement of the reader and his or her
transposition to another time.
What makes the novel something more than a simple account is the fact that the
author seeks to comprehend the city by portraying the economic and structural changes,
for it was passing through a period of effervescence and modernization. Due to his
sensible vision, several intrinsic aspects of the urban environment, which are intertwined
in the transformation and modernization of the city, appear in Dyonelio Machado’s novel.
Not only this work but several works of literature can be used as sources of research;
they have helped to comprehend new points of the city, which are not always expressed
in history, and they also complement the architects and urban planners’ quests in the
construction of the social imaginary and of an epoch.
vii
SUMÁRIO
Introdução......................................................................................................... 11
8
3.2.1. O Arrebalde........................................................................................... 76
3.2.1.1. A Casa................................................................................................ 79
3.2.2. O Bonde................................................................................................ 82
3.2.2.1. Os Bondes na Capital gaúcha............................................................ 86
3.2.3. A Zona Central...................................................................................... 89
3.2.3.1. Bloco um: A Manhã............................................................................ 90
3.2.3.2.Bloco dois: Meio-dia............................................................................ 95
3.2.3.3. Bloco Três: Tarde............................................................................... 97
3.2.3.4. Bloco Quatro: Final da Tarde............................................................. 102
3.2.3.5. Bloco Cinco: Crepúsculo.................................................................... 106
3.3. O projeto Monumenta e o percurso de Naziazeno................................... 109
3.4. Mapeando o caminho “Dos Ratos”........................................................... 111
9
LISTA DE FIGURAS
1 Dyonelio Machado....................................................................................... 16
2 Dyonélio Machado, o habito da leitura........................................................ 18
3 Dyonélio Machado, o médico...................................................................... 18
4 Dyonelio é fichado pela polícia em uma das vezes em que foi preso......... 20
5 Dyonelio Machado no Pátio da Prisão de Bananeiras em 1935................. 20
6 Algumas capas das publicações em vida de Dyonelio Machado................. 22
7 Algumas capas das publicações em vida de Dyonelio Machado.................. 22
8 Relançamentos pela Editora Planeta em 2004............................................ 23
9 Publicações póstumas de Dyonelio Machado............................................. 24
10 Esquema área de deslocamento de Naziazeno.......................................... 76
11 Mapa do transporte público de Porto Alegre em 1928................................. 87
12 Praça da XV e o abrigo de bondes.............................................................. 88
13 Bondes de vagão duplo da J. G. Brill na Filadelfia...................................... 88
14 Bonde modelo "Birney" de segunda mão comprado no ano de 1929......... 89
15 Mercado Público e Praça da XV.................................................................. 91
16 Vista da Igreja das Dores na rua dos Andradas na década de 30.............. 92
17 Perspectiva do projeto da Usina do Gasômetro publicada em 1926........... 93
18 Fotografia da Usina do Gasômetro na década de 30.................................. 94
19 Prédio da Prefeitura de Porto Alegre........................................................... 95
20 Vista dos casarões da Avenida Independência.......................................... 96
21 Largo dos Medeiros.................................................................................... 98
22 Praça da Alfandega.................................................................................... 99
23 Largo do Medeiros, onde pode-se ver a fachada do Café Nacional........... 99
24 Rua da Ladeira, atual General Câmara...................................................... 100
25 Edifício e bonde circulando no centro de Porto Alegre................................. 103
26 Fotografia das antigas docas do Porto........................................................ 104
27 Vista do Mercado público, Praça Parobé e de parte do Porto da capital.... 106
28 Cinema Central e a multidão em 1939........................................................ 108
29 Iluminação pública na capital...................................................................... 109
30 Área tombada pelo projeto Monumenta....................................................... 110
10
INTRODUÇÃO
11
Corpo simbólico, a cidade humanizada pode também, como
os indivíduos ser capaz de apresentar0se com detentora de
virtudes ou realiza atos condenáveis, ser portadora de
positividade ou vilania.
Por vezes, a cidade torna-se um uma realidade objetiva, com suas ruas,
construções e monumentos, mas são os habitantes desta cidade que constroem as
ideias e imagens de representação coletiva. Desta forma:
12
1 BIOGRAFIA DE DYONÉLIO E ANÁLISE LITERÁRIA DO
ROMANCE
13
O objetivo desse trabalho é descrever a relação que vai sendo construída
através da narrativa, entre Naziazeno e a cidade de Porto Alegre, representada no
livro por um trajeto através de vários de seus lugares icônicos – Mercado Público, Cais
do Porto, Prefeitura, os casarões da Rua Independência e outras ruas centrais que
formam a imagem da cidade, como a Rua da Praia e a Rua da Ladeira. Mais que um
cenário das suas perspectivas, angústias, esperanças e desilusões, a Porto Alegre de
““Os Ratos”” é também um personagem que, ambiguamente, acolhe e repele, seduz e
repudia Naziazeno.
O fato de ““Os Ratos”” ser o primeiro romance urbano do Rio Grande do Sul é
um sintoma do protagonismo que a cidade passa a ter a partir da década de 1930 no
Brasil: a cidade que se moderniza gera o progresso e a multidão, mas também o tipo
humano medíocre e anônimo representado por Naziazeno.
14
aprofundando-se na constituição da sintaxe e do movimento
do estilo: o próprio discurso mimetiza a figura do rato, torna-
se entrecortado, miudinho, entranhando na tessitura fina do
texto o gesto do roedor a que se reduz o ato humano da
procura e da disputa pelo dinheiro. A progressiva
intromissão do reino animal na terra dos homens sugere a
rachadura da realidade por onde o grotesco terrível penetra
em nosso mundo (...)
Sob o ponto de vista da Nova História Cultural – a teoria de apoio desse estudo -
, percebe-se que o texto é um espaço de diálogo entre o escritor e a instituição
literária, balizado pelas críticas e diferentes instancias sociais, guiadas por um sistema
de valores que é resultado das experiências vividas por um grupo, identificados entre
si e por um sistema de ideias e ideais comuns. Quanto mais compatibilidade houver
entre as experiências relatadas pelo autor e as vividas pelo agrupamento de humanos
“críticos”, ou de semelhança entre as ideologias, mais fácil será a recepção do material
1
Depoimento da neta do Dyonelio e minha orientadora, Professora Andréa Machado.
15
1.1 Dyonelio Machado, o Lobo
Véscio (1995, p.45) destaca que nessa Quaraí, onde a circulação dos livros era
restrita e lenta, e os autores mais destacados eram editados no exterior, a imprensa
era a fonte de leitura mais acessível. Dyonelio circulava livremente nesse meio,
fazendo grandes amigos. Em 1911, ajuda a fundar “O Martelo” o jornal da mocidade
da cidade.
16
É nesta época que conhece sua futura esposa, Adalgiza Martins, que retornara
de Santa Maria para lecionar no Colégio Municipal de Quaraí, instituição para a qual
Dyonelio é nomeado Diretor no mesmo período. Conhecem-se devido ao trabalho,
mas o interesse pela professora só ocorre quando a escuta tocando ao piano a
Patética de Beethoven. Dyonelio retorna então à capital, buscando um emprego para
sustentar a família que pretendia construir ao casar-se com Adalgiza
Dyonelio teve a vida dotada de vários “títulos”: pai, avô, escritor, professor,
médico e político. Em cada um deles, manteve a mesma conduta alinhada com os
seus ideais, visando sempre fazer o melhor, tanto para os parentes, como para os
leitores, alunos, pacientes e eleitores. Valorizava muito o convívio familiar, e é
lembrado com carinho pelos parentes. Foi uma pessoa de uma integralidade
fantástica, e jamais abdicou de seus pensamentos: não fazia concessões e nem se
deixava comprar. Madruga (1986, p. 33) relata a história que o autor costumava contar
a Cecília, sobre um lobo que invejava a vida mansa do cão por ganhar comida e ter
uma boa casa para retornar ao final do dia, mas negava-se a usar a coleira, e assim
assumir que teria que se submeter aos desejos e vontade de seu dono, podendo desta
forma aproveitar-se dos mesmos privilégios que o colega. A propósito dessa história,
dizia, que “era um lobo que não usava coleira”. O velho Dyonelio nunca colocaria uma
coleira.
17
Figura 2. Dyonelio Machado, e o habito da leitura. Disponível em:
<http://zelmar.blogspot.com.br/2015/09/os-ratos-de-dyonelio-machado-completa.html> Acesso em jul.
2016.
18
Sua tentativa frustrada de entrar na faculdade de medicina no período da
primeira guerra mundial, deixa-lhe adormecido o desejo de tornar-se médico. Quando
a primeira filha do casal, adoece Adalgiza pede que Dyonelio inicie seus estudos em
Medicina, graduando-se em 1929 na Universidade do Rio Grande do Sul (URGS)
(Figura 3), instituição que viria a se tornar a Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS). Antes mesmo da formatura, já no penúltimo ano da faculdade, é
nomeado médico no Hospital São Pedro, onde trabalharia por 30 anos. Durante o
período o de 1930 e 1931, especializou-se em psiquiatria e neurologia no Rio de
Janeiro, sendo o introdutor desse ramo da medicina no Estado do Rio Grande do Sul.
Lecionou neurologia e psiquiatria na Santa Casa de Misericórdia, publicando em 1933
“Uma Definição biológica do crime” sua tese doutoral.
19
1.3 Dyonelio Machado, o político
Nos primeiros anos da década de 30, volta-se para o campo político, mostrando
afinidade com os partidos de esquerda. O período de 1934-35 é muito marcante para
a trajetória política e literária do autor. Em 18 de julho é preso (Figura 4) pelo governo
de Flores da Cunha – borgista – por delito de opinião, não havia feito nada, só
discordava do partido de Borges. Cumpre no total dois anos de pena, devido à
reclusão é exonerado do seu cargo no Hospital São Pedro, passando um ano detido
em Porto Alegre e outro no Rio de Janeiro (Figura 5). Durante o período de cárcere
recebe o prêmio Machado de Assis, pelo romance, “Os Ratos”.
Figura 4. Dyonelio é fichado pela polícia em uma das vezes em que foi preso. Disponível em:
<http://www.cruesp.sp.gov.br/?p=4726> Acesso em jul. 2016.
20
Figura 5. Dyonelio Machado no pátio da prisão de Bananeiras, em 1935. Disponível em:
<http://zelmar.blogspot.com.br/2015/09/os-ratos-de-dyonelio-machado-completa.html> Acesso em jul.
2016.
Ressentido, encerra seu flerte com a carreira política com a política, deslocando
seus ideais para a literatura:
21
1.4 Dyonelio Machado, o escritor
Estreou nas publicações literárias com o livro de contos “Um pobre homem”
publicado pela Editora Globo, em Porto Alegre, no ano de 1927.
Ao todo, possui vinte obras publicadas (Figura 6 e Figura 7), quatro póstumas
(Figura 9). Destaca-se o longo período de jejum nas publicações que ocorreu de 1947
a 1966, quase vinte anos, porém isto não quer dizer que o autor não produziu, apenas
guardava para si, e para alguns próximos, os frutos de sua atividade literária,
(Madruga, 1986, p. 57), devido ao incentivo de um grupo de jovens. Abriu-se na
década de oitenta um baú cheio de livros, como “Deuses econômicos”, escrito no
período de descanso do trabalho até a madrugada, fruto de uma pesquisa longa e
minuciosa sobre a cultura grega e o Império Romano. O romance é considerado o
primeiro de uma trilogia – chamada de trilogia da liberdade – e foi lançado pela Editora
Leitura do Rio de Janeiro. Porém a primeira edição desse livro, (MADRUGA, 1986, p.
22
38) estava errada de tal maneira, que despertou o desespero do escritor, que tratou de
ir à editora e ao comércio e recolher todas as cópias do livro.
Figura 7. Algumas das outras capas das publicações em vida de Dyonelio Machado.
Em 1982 são editados os romances “Fada” e “Ele vem do Fundão”, pela Ática e
Dyonelio recebe por “Nuanças” o Prêmio Fernando Chinaglia pela União Brasileira de
Escritores.
23
A editora planeta relançou em 2004 três das obras mais significativas (Figura 8)
de Dyonelio Machado, “O Louco do Cati”, ““Os Ratos”” e “Desolação”, o que trouxe
novamente a discussão e a atenção da crítica para a obra do escritor e a editora
inovou também quando trouxe para as capas, dos romances, obras do artista plástico
Ibere Camargo.
Quanto a sua produção póstuma (Figura 9), Maria Zenilda Grawunder organizou
o relançamento do livro de contos “Memórias de um Pobre Homem”, e a Editoria
Graphoia lançou em 1995 o livro “O cheiro de coisa viva: entrevistas, reflexões
dispersas e um romance inédito: o estadista”. A obra e pensamento político de
Dyonelio Machado fizeram com fosse organizado pela Assembleia Legislativa de Porto
Alegre o livro “O pensamento político de Dyonelio Machado” no ano de 2006. E em
novembro de 2014, a Editora Siglaviva, de Brasília publica “Proscritos”, livro inédito,
escrito em 1964 e fixado pelo pesquisador Camilo Mattar Raabe.
24
íntimos que subjazem às motivações da criação,
desenvolvendo uma relação harmônica e equilibrada entre
subjetividade e objetividade, elementos integrantes da
estética literária. Daí o que diferencia os artistas de outras
pessoas: a sua capacidade de traduzir tais emoções em
palavras. (RAABE, 2011, p.27).
25
1.4.1 A crítica – “O escritor maldito”
Grawunder (1997, p. 34) define como literaturas proscritas aquelas que, mesmo
elaboradas no campo da instituição e seguindo canais ordinários, tornam-se, por
razões de ideologia objeto de alguma forma de censura e têm o seu reconhecimento e
consagração dificultados. A autora aponta o aparecimento de vários escritores
“malditos” ao redor do mundo, como Roussel, Baudelaire e outros. Também salienta
que tal exclusão é, muitas vezes, provisória, pois com o passar do tempo as
sociedades reavaliam e reformulam os seus padrões, aceitando ou excluindo novos
personagens. Esse foi o caso de Dyonelio.
Foi chamado em 1972 de “escritor maldito” por Marco Tulio de Rose, pois, com
seu discurso, Dyonelio rompeu com os códigos da instituição literária da época, um
dos exemplos dessa discriminação segundo Grawunder (1997, p. 34) é um jornal
gaúcho que anuncia a premiação de “Os Ratos”, mas não faz nenhuma menção ao
autor da obra, pois ele encontrava-se encarcerado. O delito de opinião estendeu-se
tanto que, por muitas vezes, o autor viu-se obrigado a publicar críticas com
pseudônimos, pois sua opinião seria simplesmente desconsiderada.
De forma resumida, Grawunder (1997, p.40) aponta três fatores para o problema
de aceitação da literatura de Dyonelio em seu período histórico:
26
questionamento dos valores socais e políticos da literatura e então inicia-se o
reconhecimento e prestígio do autor.
Ficando claro que o autor não aceitava a opinião dos críticos acadêmicos e que
sentia que estas críticas não representavam de fato opiniões de devessem ser
respeitadas, destaca-se outra nota de reação do escritor: “O crítico é um interpretador,
sabe tudo, tem na mão a vida do criticado. Na realidade é um romancista frustro...”
(MACHADO apud GRAWUNDER,1997, p.83).
Outro formato de crítica que não era bem aceito pelo autor era a crítica indireta
de instituição literária representada pelo poder público, principalmente a do Instituto do
livro. Pois quando exercida tentava opinar sobre a literatura como consciência do
povo, uma história da cultura popular. Sobre isso escreve:
27
convém ou não convêm pôr no papel.” (MACHADO apud
GRAWUNDER,1997, p.94)
Depois que estivesse com o texto pronto, o escritor revisava até a exaustão,
gostava de ter certeza absoluta de todos os significados de cada expressão usada em
seus romances. Dyonelio reflete, como escritor, em sua obra, a existência da retórica –
28
a arte de comunicar-se de forma clara e persuasiva – abstraindo-se da refração
institucional e, com sua linguagem, textualizando a voz de leitores que não se sentiam
representados pelas grandes instituições e críticos.
“Os Ratos” é, aparentemente, uma trama trivial. No entanto, a obra relata muito
mais que a história de um homem e sua dívida, exibindo uma crítica social sutil, mas
muito eficiente. Esse é o grande feito do livro: induzir ao pensamento. Na década de
70, o livro a História concisa da literatura brasileira, do autor Alfredo Bosi, destaca que
o romance é um dos mais importantes do período de 30, em uma de suas mais
destacadas vertentes.
29
para contestar a identidade nacional que se baseava apenas nos costumes das
nações ocidentais que colonizaram o país posteriormente.
Gil (1997, p. 29) aponta que esses dois momentos do modernismo não se
excluem, mas remontam uma linha de continuidade e completude entre si, como se
fossem uma visão do “Brasil encantado” e do “Brasil realista“, correspondendo a
momentos diferentes da realidade estrutural do país e mundial. Tratando-se de um
processo multifacetado que redesenha o mapa histórico e cultural do país, pois:
30
acontecimentos muito marcantes e alteradores da realidade nacional, os quais
mereciam ser registrados inclusive em literatura.
Monteiro (1964, p. 280 e 281) afirma que o romance urbano, a partir da década
de 30 ajudou a elaborar o conflito de como era estabelecer-se em uma cidade
moderna repleta de novas possibilidades e ao mesmo tempo a perda dos referenciais
da vida antiga.
A narrativa ficcional “Os Ratos” oferece elementos que trazem um recorte mais
profundo, abordando circunstâncias de tempo, de lugar e mostrando uma problemática
social. Pode-se dizer que a obra se refere está fortemente ligada ao espaço da ficção,
permitindo, assim, a recuperação de seu referencial e o ponto de vista histórico. O
livro, publicado em 1935 segundo Véscio (1995, p. 82) abrange problemáticas e
indicações circunstanciais da cidade de Porto Alegre, no período entre o final da
década de 20 e o início da década de 30. Os principais marcadores temporais da obra
são as alusões ao início das obras do porto, as quais iniciam-se no ano de 1919 e
seriam concluídas no ano de 1936, também os indícios do traçado urbano que
compreende a vida do funcionário público em determinada época. Apresentando
elementos referenciais bastante diluídos, a narrativa corresponde ao espaço urbano
muito real da cidade de Porto Alegre.
31
Naziazeno Barbosa é um funcionário burocrata que trabalha na repartição
responsável pelas obras de ampliação do porto, desempenhando ima função
subalterna considerada intermediária entre os funcionários braçais e os chefes. Tem
como origem uma pequena cidade do interior, de onde saiu atraído pelo
desenvolvimento da grande cidade. Ao estabelecer-se na capital, engrossa ainda mais
a massa anônima que povoa a periferia, trabalha no centro comercial burocrático e,
para chegar, da periferia ao centro, desloca-se de bonde. Véscio (1995, p. 82)
acrescenta que as descrições quase reais das ruas centrais da cidade no romance
fomentam ainda mais a realidade imediata do livro e aumentam a persuasão da obra.
Pelo fato de o livro ter sido escrito durante o governo de Vargas que precede o
Estado Novo, época bastante problemática para intelectuais que se baseavam na
ideologia de esquerda, há um recorte de temática onde a opressão através do fator
econômico funciona como válvula de escape para apontar as tensões ideológicas que
ocorriam no momento. A trama ganha, assim, elementos que determinam um
referencial histórico, político e geográfico compondo um quadro questionador para os
problemas da sociedade. A ficção incorpora elementos do real, representando a vida
de uma grande camada da população da capital nos anos de 1930.
32
1.5 Análise de narrativas
Toda narrativa estrutura-se sob cinco elementos. Sem fatos não há história, e
quem vive os fatos são os personagens em um determinado tempo e lugar.
Finalizando a estrutura, devido ao fato desta ser uma prosa de ficção fica então clara a
necessidade de um narrador, pois é ele quem fundamenta o termo narrativa.
1.5.1.1 Enredo
2
Esse item tem como referência bibliográfica o livro GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar
narrativas. São Paulo: Ática, 2006.
33
1.5.1.2 Personagens
Quanto ao local onde se passa a ação em uma narrativa. Tem como principais
funções situar as ações das personagens e estabelecer uma interação entre eles
influenciando suas atitudes, pensamentos ou emoções. Pode também ser alterado
pelos personagens. O termo espaço dá conta do lugar físico da história. Para designar
um “lugar” psicológico é usado o termo ambiente.
3
Trilogia escrita por Érico Verissimo, composta por 7 volumes divididos em 3 livros, que conta
a história da ocupação do Estado do Rio Grande do Sul, até o ano de 1945 – ano do final do
Estado Novo.
4
Livro de Clarice Lispector, que relata a perda da individualidade de uma mulher cujas inicias
são G.H, após ter esmagado uma barata na porta de um guarda-roupa.
34
O ambiente para Gancho (2006, p. 28) apresenta várias características para
análise: é dele a capacidade de situar os personagens no tempo, no espaço e grupo
social, estende-se a projeção dos conflitos vividos pelas personagens, podendo até
estar em conflito com as personagens. E, por fim, fornece os índices para o
andamento do enredo. Por exemplo, é muito comum, em romances policiais, o
ambiente fornecer pistas para o desfecho, muitas vezes, apenas perceptível para o
leitor que apresenta uma leitura mais atenta. Para se caracterizar o ambiente, levam-
se em consideração os seguintes aspectos: época (em que se passa a história),
características físicas (do espaço), aspectos sócio econômicos, psicológicos morais e
religiosos das personagens.
1.6.1 Enredo
35
O próprio Dyonelio assume que começou a escrever “Os Ratos” baseado na
angustia da mãe que imaginou que os roedores comeriam o dinheiro deixado para
pagar o leiteiro na manhã seguinte. Porém todos os percalços de Naziazeno durante o
período do dia em que o personagem perambula pelo centro são verossímeis, o
personagem poderia ter realmente passado pelos lugares descritos, mas não há
certeza absoluta que isso de fato aconteceu.
36
emprestado para o Diretor da repartição onde trabalha, pois o chefe já o desapertou
nos momentos de doença do filho. Lembra-se de Duque, um amigo que é batalhador e
pode livrá-lo dessa situação difícil, ele poderia acompanhá-lo às casas de penhores ou
aos agiotas sem nenhum questionamento, porque compreende muito bem a situação
de não ter mais verba a essa altura do mês. Imagina-se pedindo o dinheiro
emprestado ao Diretor, e esse lhe dando a quantia desejada, a ideia de conseguir o
dinheiro lhe dá outro ar, sente-se um homem revigorado, em paz com seus deveres.
37
Quase duas horas da tarde, e ele ainda não almoçou, sente uma fraqueza.
Decide retornar ao centro procura por algum conhecido, encontra-se com Costa
Miranda, pede-lhe dez reis para o almoço, o conhecido lhe empresta cinco. Lembra-se
do Dr. Romero, negociante que já lhe adiantou um vale uma vez. Com o dinheiro no
bolso vem-lhe a indecisão de o que fazer, monta um plano na cabeça, em uma
tabacaria perto há uma roleta, local onde pode tentar a sorte e conseguir o dinheiro.
Naziazeno caminha pelo centro com outro plano na cabeça, vai até uma
fornecedora onde já teve um vale e pede que o caixa lhe adiantasse mais um pouco
de dinheiro, a tentativa revela-se inútil. Sente-se cansado, os pés parecem feitos de
chumbo, o dia já se encaminha para o seu final, muitos estabelecimentos já fecham as
portas. Nos arredores do mercado público, encontra-se com Alcides novamente,
conta-lhe como passou a tarte, o amigo percebendo seu estado paga-lhe um copo de
leite. Finalmente localizam Duque, está em outra mesa do café com um desconhecido,
fazem sinal para o garçom e pedem que leve o recado de que precisam falar com
Duque.
Quando Duque chega à mesa dos dois amigos, Alcides rapidamente o coloca a
par da situação. Decidem que Alcides vai até o agiota Rocco, pedir-lhe um
empréstimo. Combinam de se encontrarem no café Nacional, em frente ao Banco do
Comércio. Duque apresenta a Naziazeno o seu companheiro de mesa, o rábula
Anacleto Mondina, acertam a conta do café e dirigem-se para o ponto de encontro,
enquanto caminham conversam sobre a situação do funcionário público.
38
não conseguem a quantia. Retornam ao Nacional com um novo plano em mente:
abordar Mondina.
Mondina simpatiza com a situação, mas diz que no momento não pode ajudar
os companheiros com a quantia. Duque lembra-se então do famoso anel de bacharel
da família de Alcides, que está penhorado por cerca de 80 mil réis. O plano seria
retirar a joia do penhor e penhora-la em outro lugar por um valor maior. Alcides não
gosta muito da ideia, mas acaba cedendo e eles saem para essa nova empreitada.
Naziazeno já não tem mais forças. A casa de penhores está fechada, ligam
para o dono, e esse aceita recebê-los em sua casa. Esclarecidas as necessidades,
vão até a casa de penhores onde acertam a letra e retiram o anel do penhor. Em
posse do anel, dirigem-se para o Dupasquier, o joalheiro oferece pelo anel cerca de
trezentos e cinquenta mil reis, mas como o caso era de penhora não tem interesse no
negócio. Duque sugere que conversem sobre o assunto em um café, Mondina está
encurralado, oferecem-lhe que o rábula penhore para eles o anel apenas pela noite,
para que desapertem Naziazeno da situação em que se encontra. Mondina tira a
carteira do bolso, e não tem o dinheiro trocado, vão até a bilheteria do cinema onde
conseguem trocar as notas.
Entra em casa visivelmente abatido, Adelaide insiste que ele conte como
conseguiu o dinheiro enquanto ele janta, mas ele desconversa e pede que a esposa
mande o menino da vizinha comprar-lhe uma garrafa de vinho. Depois de finalizada a
refeição, pensa em como fará para entregar o dinheiro ao leiteiro. Naziazeno pensa
em levantar cedo e entregar o dinheiro em mãos ao leiteiro, e Adelaide sugere que o
marido deixe o dinheiro em cima da mesa ao lado da panela, na qual o leiteiro deixa o
leite todas as manhas. Opta pela opção da esposa, pois está muito cansado de
caminhar o dia todo, acha melhor aproveitar a noite e a manhã de sono.
39
No silêncio da noite escuta pequenos ruídos, como se fossem insetos ou algo
parecido. Dá-se conta então que a cozinha está cheia de ratos! Escuta o som dos
ratos roendo o dinheiro, arrepende-se da decisão de deixá-lo em cima da mesa. Sente
sono, quer examinar a situação, mas não tem coragem e sente-se cansado demais
para levantar. Percebe o absurdo de suas ideias, pensa em acordar Adelaide, mas a
esposa dorme profundamente. Cronometra a passagem do tempo pelas idas e vindas
do bonde. Deseja muito conseguir dormir.
1.6.2 Os personagens
Outro personagem que pode ser lido como redondo é a cidade de Porto Alegre,
pois possui ela vários nuances e vontades, que ficam claras através das descrições de
Naziazeno. A capital responde aos estímulos de Naziazeno e acompanha o seu
estado de ânimo durante o dia.
40
amigo é quem cria o plano que resultará no dinheiro para quitar a dívida. Adelaide, é a
esposa, que fica em casa, que depende de Naziazeno para tudo e que acredita que a
vida da família deveria ser levada na “uniformidade” (MACHADO, 2006, pg. 09)
ficando feliz e realizada quando o marido retorna para o lar com o dinheiro, pedaços
de manteiga e queijo, um presente para Mainho, filho do casal, e com o seu sapato
que estava retido no sapateiro.
41
solitário que boa parte dos diálogos do livro são do personagem com ele mesmo, dele
com as suas memórias.
“Os Ratos” foi lançado no período em que o autor foi preso político. “Dyonelio
solta ao mundo seus “ratos”, as angústias e palavras simples que corroem o dia-a-dia
da maioria socialmente desprivilegiada” (GRAWUNDER, 1997, p. 95). A obra é um dos
primeiros exemplares da literatura gaúcha que é voltada para a realidade dos
personagens dominados e marginalizados.
Monica Raisa Schpun aponta que a utopia urbana não existe no discurso de
Dyonelio Machado quando o autor fala da minoria que Naziazeno fazia parte, afirma
que “o olhar, positivo, tornou-se dominante, mas as vozes dissonantes soaram
anacrônicas, nostálgicas e conservadoras” (2000, pg. 138). O discurso do autor limita-
se em seguir a contramão da nostalgia, Naziazeno lembra-se da infância na cidade
pequena e rural como algo de que “ele se livrou”. Ou muitas vezes pensa nas
comodidades rurais fundidas com a realidade urbana, quando observa, no capítulo
dois, quando está no bonde que o levará pela manhã do arrebalde até o centro, outro
personagem que tinha vacas e animais de criação em sua propriedade. Em momento
algum, o funcionário público pensa em retornar para o interior, apenas admite que
possuir esse meios – animais de porte rural – na cidade daria a sua família melhores
condições de existência.
42
sua família, no entanto esse pensamento não toma uma forma definida e o
personagem volta a ser absorvido pelas suas preocupações.
43
particularidades. Em “Os Ratos”, dá-se ao contrário, a
apreensão da realidade se faz pela pequenez, pela
impotência de um ser que sente a cidade, a repartição, o
movimento, dos homens de negócio, a partir de sua
angústia e opressão. O estado psicológico da personagem
determina a apreensão do que se passa à sua volta. Ele vê
e sente a partir de seu drama. Esta situação de fragilidade
possibilita o discurso narrativo da interioridade que se cruza
com o contexto histórico, revelando, entretanto, uma outra
forma de registro que privilegia antes de mais nada o vivido.
(VÉSCIO, 1995, p. 84)
44
O olhar de Naziazeno classifica-se como interno, por isso considera-se que
ele conhece o funcionamento da repartição e não se assusta com a conduta errada
dos colegas.
45
Véscio (1995, pg. 91) afirmava que a primeira diretoria, de expediente, era
formada por um diretor, dois secretários, dois datilógrafos, porteiro, contínuo, dois
serventes, telefonista e chofer. A segunda, denominada de contabilidade e estatística,
era composta de um diretor, um subdiretor, doze escriturários, um tesoureiro e um fiel.
A última e terceira diretoria, de tráfego do porto, constituía-se de um diretor, um
subdiretor cinco escriturários, três fieis de armazém, um ajudante, dez conferes de
primeira classe, dez conferes de segunda classe, dez conferes de terceira classe um
capataz geral, um encarregado dos guindastes um apontador geral, um médico, um
patrão das lanchas e um maquinista.
46
Dyonelio cria uma obra que mostra a mentalidade e os medos da classe
operária, marcando definitivamente a cidade em modernização e “Os Ratos” que
habitam a cidade moderna.
47
Adelaide é o único personagem para quem Naziazeno aumenta a voz e impõe a sua
vontade, o casal – Adelaide e Naziazeno – tem uma briga feia antes de o marido sair
rumo ao centro em busca do dinheiro para quitar a dívida com o leiteiro.
Ele se anima:
— Quando foi da manteiga, a mesma coisa, como
se fosse uma lei da polícia comer manteiga. Fica sabendo
que eu quando pequeno, na minha cidadezinha, só sabia
que comiam manteiga os ricos, uma manteiga de lata,
amarela. O que não me admirava, porque era voz geral que
eles ainda comiam coisa pior.
Um silêncio.
Mexe nos bolsos; dá a volta à peça; vai até ao
cabide de parede, onde havia colocado o chapéu.
— Me dá o dinheiro — diz, num tom seco,
torcendo-se para a mulher, enquanto pega o chapéu.
E voltando ao “seu ponto”, depois de pôr no bolso
os níqueis que a mulher lhe trouxera:
— Aqui não! É a disciplina. É a uniformidade. Nem
se deixa lugar para o gosto de cada um. Pois fica sabendo
que não se há de fazer aqui cegamente o que os outros
querem.
A mulher não diz nada. Voltara a esfregar uma
qualquer coisinha na tábua da mesa.
Ele se para bem defronte dela e a interpela:
— Me diz uma coisa: o que é que se perdeu não
comendo manteiga, isso, que é mais um pirão de batatas do
que manteiga?
Ela não responde.
— E o gelo?... pra que é que se precisava de
gelo?...
Faz-se uma pausa. Ele continua:
— Gelo... manteiga... Quanta bobice inútil e
dispendiosa...
— Tu queres comparar o gelo e a manteiga com o
leite?
— Por que não?
— Com o leite?!
Ele desvia a cara de novo.
— Não digo com o leite — acrescenta depois —
mas há muito esbanjamento. (MACHADO, 2006, p. 9 e 10)
48
Tira os cinquenta mil-réis do bolso. Vai até à
cadeira onde se acha a sua roupa.
Traz as notinhas miúdas, os níqueis. (MACHADO,
2006, p. 151)
49
relação entre Martinez, sua a esposa e a criada, não fica claro se há vínculo
empregatício ou qualquer tipo de pagamento apara os serviços prestados pela
“criadinha”.
Naziazeno, sufocado pela dívida com o leiteiro, vive uma experiência limitada
da cidade, e observa pouco as mulheres em 1935 estavam recém iniciando a marcar
presença no mercado de trabalho, logo as mulheres não tinham renda para ajudar o
personagem com a questão da dívida, e por isso devem ter sido ignoradas em grande
parte das descrições. Conforme pode ser observado no trecho:
Como Schpun (2000, pg. 136) aponta muito bem, que as mulheres não podiam
vivenciar e experimentar a cidade, Naziazeno mesmo encaixando-se no grupo de
indivíduos menos favorecidos monetariamente, ainda se apropria muito mais da
cidade do que as mulheres na época. De uma forma geral, Naziazeno vive uma cidade
marginalizada, por ser considerado de uma classe menos favorecida de trabalhadores,
mas ainda é considerado um cidadão da cidade, as mulheres – personagens do
romance – não vivenciavam nada além do interior das casas.
50
topo da pirâmide ficam pessoas como Martinez, o Rábula Anacleto Mondina, esses
personagens têm outros modos e observam a cidade de uma maneira diferente de
Naziazeno.
Ele se anima:
— Quando foi da manteiga, a mesma coisa, como
se fosse uma lei da polícia comer manteiga. Fica sabendo
que eu quando pequeno, na minha cidadezinha, só sabia
que comiam manteiga os ricos, uma manteiga de lata,
amarela. O que não me admirava, porque era voz geral que
eles ainda comiam coisa pior. (MACHADO, 2006, pg. 9)
E para realizar essas compras ou quitar a dívida, situação que move todo o
romance, não há relação entre o pagamento ser fruto de trabalho, porque não pensa
em trabalhar para conseguir o dinheiro, pensa imediatamente em seu amigo Duque,
que conhece as artimanhas da cidade e pode-lhe ajudar arrecadar a quantia
necessária. Como já foi explicado acima, Naziazeno não vê grande importância no seu
trabalho, inclusive sabe que, para que esse seja bem feito, precisa levar um bom
51
tempo de atraso, não há relação de satisfação ou de realização quando ele
desempenha seu trabalho na repartição.
52
Mais uma vez, o funcionário público coloca-se como vítima da sua situação,
aquele rompante de razão e força que mostrara a mulher ao sair de casa desaparece
e ele se torna uma espécie de “rato” na cidade.
53
serviço, o manejo do papel-moeda é uma forma de distinção de status e de gênero”
(VANGELISTA, 2000, 159).
O gesto de pagar o leiteiro é confuso, pois dá-se a relação entre dois homens e
o dinheiro. Naziazeno opta por não estar presente e assim evitar discussões que
podem apenas começar de maneira péssima mais um dia, além do mais a
possibilidade de dormir algumas horas a mais pela manhã parece-lhe tentadora, pois
já passara o dia anterior todo caminhando pelo centro da cidade. Não imagina que sua
mente será sugada por um turbilhão de ideias que não lhe permitirá descansar durante
a noite, são muitos pensamentos, lembranças dos percalços do dia, insegurança de
que o leiteiro não encontrará o dinheiro ou até de que os ratos comam a tão suada
quantia.
54
horas do dia do funcionário público. As horas no livro correspondem do capítulo um ao
vinte a narrativa é linear, o tempo segue a passagem logica. E do capitulo vinte em
diante a história toma um rumo confuso, e é guiada pelas lembranças de Naziazeno.
55
2. SEGUINDO OS RASTROS DE NAZIAZENO
Surge então a figura do historiador “detetive”, pois é ele quem deve determinar
a solução para o enigma e exercitar-se para reconhecer traços que nem sempre estão
completamente aparentes, percebendo detalhes escondidos os quais revelam partes
importantes da história e passariam despercebidos não fosse seu olhar treinado. Se há
um capital próprio à formação do historiador é justamente esse: ter um volume de
conhecimento disponível para ser aplicado e usado, dando margem a uma maior
possibilidade de conexões e inter-relações.
56
sendo esse o segredo de um método do qual a História se vale, para atingir os sentidos
partilhados pelos homens de um outro tempo.
Porém, este método segundo Ginzburg (1989, p. 157) sofreu críticas durante sua
implantação, devido ao apreço às disciplinas estritamente qualitativas, como a
matemática ou a física, por exemplo, que têm por objeto casos, situações e documentos
individuais, e, justamente por isso, alcançam resultados que propiciam uma margem
não limitada de casualidades. Isso pode ajudar a explicar por que a história não
conseguiu se tornar uma ciência galileana, e se manteve como uma ciência social,
inegavelmente ligada ao concreto, mesmo que o historiador não possa deixar de se
referir, explícita ou implicitamente, a séries de fenômenos comparáveis. O seu objetivo,
de fato, constitui-se utilizando uma drástica seleção dos elementos pertinentes.
O autor Roger Chartier (2002, p. 88) retoma que admitir uma margem de
incerteza irredutível e renunciar à noção de prova pode parecer decepcionante, como
um recuo ao propósito da disciplina. Contudo não existe outra via a não ser postular o
relativismo absoluto de uma história identificada com a ficção, pois as certezas de uma
história positivista são meramente ilusórias.
Pesavento (2004, p. 66) afirma sobre a metodologia da história cultural que é ler,
um texto em outro; remeter uma imagem a outra, associar diferentes significantes para
arremeter a um terceiro oculto, portador de um significado. Tudo isso multiplica a
57
capacidade de interpretação e faz parte das estratégias metodológicas que dão
condições a um historiador para ampliar seu referencial teórico ao empírico das fontes.
Fornece, então, meios de controle e verificação, possibilitando uma maneira de mostrar,
com segurança e serenidade, o caminho percorrido desde a pergunta formulada à
pesquisa de arquivo, produzindo sentidos e revelações, que ele transforma em texto.
Pesavento (2004, p. 56) aponta para outro ponto importante para o entendimento
da História Cultural, a sensibilidade, pois essa representa o núcleo primário de
percepção e tradução da experiência humana no mundo. Quando afirma que “o
conhecimento sensível opera como uma forma de apreensão do mundo que brota não
do racional ou das elucubrações mentais elaboradas, mas dos sentidos, que vem do
íntimo de cada indivíduo” (PESAVENTO, 2004, p. 56). Deduzimos que as sensibilidades
seriam as maneiras pelas quais os indivíduos percebem e traduzem a sua realidade,
retornando assim, à reflexão de que a história seria uma espécie de ficção, porém
controlada, sobretudo pelas fontes que ligam o trabalho do historiador aos rastros do
passado. De uma maneira geral, pode-se pensar nas sensibilidades como
representantes do real e do não-real, remetendo ao mundo do imaginário, da cultura e
do seu conjunto de significações sobre o mundo.
58
Seguindo a sensibilidade somos levados ao imaginário e como a História Cultural
apresenta este novo conceito. Pesavento (2004, p. 43) afirma que: “entende-se por
imaginário um sistema de ideias e imagens de representação coletiva que os homens,
em todas as épocas construíram para si, dando sentido ao mundo”. Toda a ideia de
imaginário e sua sistemática remetem à compreensão de que ele se constitui dotado de
relativa coerência e articulação. Segundo Baczko, o imaginário é histórico e datado, ou
seja, em cada época os homens constroem representações para conferir o sentido ao
real. O imaginário também comporta crenças, mitos e ideologias sendo um construtor
de identidades. Ele é um saber-fazer responsável por organizar o mundo, produzindo a
coesão e o conflito.
De uma forma geral podemos dizer que a proposta da História Cultural seria
decifrar o passado por meio de suas representações. Fica claro o quanto este processo
é complexo, pois leva à leitura de códigos de um outro tempo, que podem mostrar-se,
por vezes, incompreensíveis, dados os fatos que o passado impõe.
A rigor trabalha-se com uma temporalidade escoada, algo não visto e não vivido,
só acessível utilizando-se registros e sinais do passado.
59
interpretação para uma leitura de toda a amplitude do quadro, pois nem só da visão dos
vencedores é feita a história.
A linguagem literária, quando analisada, pode assumir uma via dupla, em que
tanto a linguagem trabalha com a intertextualidade, podendo afetar a fala do autor, como
a linguagem de um sujeito poético, capaz de influenciar o ser do outro (o leitor) e da
sociedade. A ação da persuasão é possível, porque o escritor-artista é capaz de
perceber que os fatos humanos não se esgotam no real, mas estendem-se ao factível,
por meio das propriedades da linguagem. M. Bakhtin se vale de signos verbais para
afirmar que, a arte em geral pode ser considerada uma linguagem, como a obra literária,
é um texto, ou seja, uma espécie de sistema de comunicação entre o leitor e o autor.
Granwunder (1997, p.32) coloca a ideia de que a criação literária não seria um
fato isolado, ou seja, todo texto se compõe com referência a uma circunstância, tradição
ou norma, trabalhando como um intertexto. E quando um autor escreve pode expor ou
não os seus enunciados, confirmando que esse ato é coletivo, pois a escrita não tem
nenhum sentido se não for visualizada pelo outro. A produção e a legitimação de um
tipo de literatura ou de uma obra são o resultado da própria estruturação e valores de
um conjunto de instâncias que fazem parte da história individual de um leitor e do
escritor.
60
devido à forma como os acontecimentos são tratados. O autor conclui dizendo que essa
tendência parece ser inerente à organização da narrativa.
61
Ainda tratando sobre a literatura e a sua capacidade de representar e comunicar-
se com o mundo:
62
Para Roger Chartier (2002, p. 59 e 60) o consumo cultural pode ser definido
como uma outra produção, por exemplo, a leitura de um texto, pode assim escapar à
passividade, que tradicionalmente lhe é atribuída. Ao ler, olhar ou escutar efetuamos
uma série de atitudes intelectuais que permitem a resistência e a desconfiança. Dessa
forma, podemos repensar totalmente a relação entre o público designado como popular,
os produtos e a forma como estes são consumidos. A forma do consumo é uma das
chaves que permitem elucidar, como a cultura da maioria pode construir um lugar ou
instaurar uma coerência própria nos modelos que lhe são impostos pelos grupos
dominantes.
Machado (2003, p.78) define que a abordagem da literatura como fonte histórica
considera o aproveitamento de aspectos estruturais da arte e de relações compositivas
do objeto artístico como produto de seu tempo:
63
da cidade permite um maior entendimento do homem moderno e suas condições de
existência, sejam materiais ou espirituais”.
Juhani Pallasmaa (2005, pg. 64) levanta que a literatura não apresentaria os
mesmos poderes de encanto sem a capacidade humana de entrar em lugares que são
imaginários, classifica ainda esses como uma obra de arte e completamente reais, no
sentido de uma experiência do leitor. Afirma que “a memória nos remete a cidades
distantes, e os romances nos transportam através de cidades invocadas pela mágica da
palavra do escritor. Os cômodos, as praças e as ruas de um grande escritor são tão
vivas como qualquer lugar que visitamos”.
64
O acesso à sintonia fina ou ao clima de uma época, ao modo pelo
qual as pessoas pensavam o mundo, a si próprias, quais fatores
guiavam seus passos, quais os preceitos, medos e sonhos. Ela dá
a ver sensibilidades, perfis e valores. Ela representa o real, ela é
fonte privilegiada para a leitura do imaginário. Porque se fala disto
e não daquilo em um texto? O que é recorrente de uma época, o
que escandaliza, o que emociona, o que é aceito socialmente o que
é condenado ou proibido? Para alguém das disposições legais ou
de códigos de etiquetas de uma sociedade, é a literatura que
fornece os indícios para pensar como e porque as pessoas agiam
daquela forma. (PESAVENTO, 2004. P. 82 e 83)
Percebe-se então que a literatura trabalha como testemunho de si própria,
portanto, não cabe analisar apenas o tempo da narrativa. Deve-se analisar também a
época na qual a obra foi escrita, pois a partir destes dados percebemos o seu horizonte.
Sandra Jatahy Pesavento (1999, p.09) afirma que: “sendo a cidade, por
excelência, o “lugar do homem”, ela se presta à multiplicidade de olhares encruzilhados
que, de forma transdisciplinar, abordam o real na busca de cadeias e significados. ”
Essa postura, coloca a História Cultural Urbana em um local de destaque, pois as
representações da cidade tendem a assumir uma forma metafórica de expressão, já que
associadas à cidade as palavras tomam novos sentidos. Esse procedimento implica
pensar a literatura como uma leitura específica do urbano, a qual seria capaz de resgatar
as sensibilidades, os cenários e conferir novos sentidos ao meio.
65
Considerando o contexto literário, o autor dirá a cidade “a seu modo”, assumindo
uma forma de expectador privilegiado, pois pode, além de observar a cidade, expô-la
pelo seu ponto de vista, provendo assim à urbe uma nova existência. Com essa
afirmação se insinua a entrada do urbanista, pois ele é capaz de perceber a cidade
utilizando a leitura dos traços deixados pela arquitetura e os traçados do urbano.
Se toda percepção é balizada por meio dos sentidos, tudo o que se experimenta
é recriado por meio de sensações, revividas em memórias e decodificadas em seus
significados, então a atribuição de sentido aos monumentos dependerá do ponto de
vista, do lugar e daquilo que o observador sente. Sem dúvida, as cidades são capazes
de gerar imagens urbanas, que tem o seu valor simbólico, consensual imposto/atribuído
à desigual apropriação do solo e dos distintos posicionamentos de cada observador.
Pallasmaa (2005, pg.68) aborda de forma muito clara a percepção quanto aos
sentidos argumentando:
66
Descrevendo a função da arquitetura:
Conforme Nuno Silva Costa (2011, p. 25 e 26) tem sido na História Cultural que
as questões relativas à representação têm sito mais debatidas. Existe, segundo o autor,
um problema de dois lados para a representação: pelo primeiro os textos dos
historiadores, como os próprios, representam determinada cultura ou sociedade; e pelo
segundo, as representações incidem em sociedades passadas, as quais não estão
presentes e têm suas realidades interpretadas usando um testemunho da época. O
entendimento entre essas duas fontes, o autor e a sociedade que esse representa, é
fundamental para a composição da nova face de sociedade e assumir que os mapas
também trabalham como documentos históricos.
A extensão da noção e texto, parte como afirma Costa (2001 pg. 29) “da ideia de
que os mapas são práticas de significação intertextuais associados a outros textos
culturalmente construídos e, portanto, são elementos comunicativos de produção de
sentido”. Compreende-se também a mutabilidade desse sentido, pois ele é cultural,
social e fica variável conforme as experiências do leitor.
67
A abstração que implica o conceito de representação, pode ser traduzida no
conceito de história ampliado, como uma fonte histórica e em um novo campo de
conhecimento fundado na negação das duplas antagônicas explicativas, porém que
simplificam, opondo a realidade à irrealidade. De acordo com Peter Burke (1992, p. 11-
15), a Nova História Cultural baseia-se na consideração de que a história é socialmente
construída por uma pluralidade de vozes, muitas vezes, em oposição. A composição do
grupo social no qual baseia-se a história estaria no mundo das imagens. Um mundo que
inclui as obras de arte e podem ser usadas como "matéria de pesquisa e de
interpretação histórica" e como "categoria a ser pensada historicamente" (ARGAN,1995,
p. 27).
Campos Matos (1976, pg. 16) alerta que o cenário um pano de fundo ou
meramente estético ou mesmo gratuito, ele motiva o diálogo, compartimenta e dinamiza
as ações e liga-se à vida dos personagens, estabelecendo uma relação íntima com a
motivação dos personagens, ou mesmo o seu comportamento ou estado de espírito.
68
Franco Moretti (2003, pg. 13) define que “os mapas não são como metáforas,
quero dizer, menos ainda como ornamentos de discurso, mas como ferramentas
analíticas: que dissecam o texto de uma maneira incomum, trazendo a luz relações que
de outro modo ficariam ocultas”. Mapas são capazes de especializar as palavras que
estão escritas nos romances, trazendo novas palavras e interpretações às mentes dos
leitores, gerando melhores percepções do livro.
Utilizando os mapas literários percebemos, segundo Moretti (2003, pg. 15) desde
a forma espacial de cada forma literária, cada uma com seu formato peculiar, suas
fronteiras e rotas, até trazer à tona a lógica interna das narrativas, “o domínio semiótico
em torno do qual o enredo se aglutina e organiza”. Ressalta também que é por meio das
imagens da paisagem urbana que são criadas as sensações de impacto visual e que as
descrições urbanas “constituem símbolos do seu complexo significado social e urbano
e lhe dão um sentido de organismo vivo, com uma identidade única”.(MATOS, 1976,
pg.21).
69
convite para a emoção e a imaginação. A autora também ressalta que a leitura da cidade
e dos locais é única de cada indivíduo e que todas seriam capazes de gerar mapas
diferentes e interessantes, definindo a cidade como muitas palavras em um mesmo
lugar.
70
é também um fato de linguagem, simplesmente contingente, um recurso necessário
para evidenciar a sua concepção de mundo ficcional no qual o narrado é mais
importante daquele que narra. Ao narrador, cabe instituir fatos, substituir e aproximar
sentidos do leitor e do personagem de forma visual, auditiva, olfativa e tátil do fato
narrado.
O texto de Dyonelio não nos oferece apenas uma visão documental de uma área
urbana em especial, de um específico edifício ou um monumento, faz com que o leitor
perceba uma nova dimensão da realidade, por meio do espirito de seu personagem.
71
3. CAMINHANDO COMO RATO
72
3.1. A cidade como organismo vivo
Pelo fato do livro ter sido publicado em 1935, Dyonelio tenta reler a
problemática da urbanização das grandes cidades e os problemas enfrentados pelos
trabalhadores urbanos. Véscio (1995, pg. 82) afirma que, os principais determinantes
temporais seriam as obras de ampliação do porto, que tiveram seu início no ano de
1919 e só foram concluídas em 1936, alterando permanentemente o traçado urbano
da cidade de Porto Alegre. Naziazeno representa a própria configuração do
funcionário público de baixo cargo da época. As referências ainda ficam bastante
diluídas em narrativas privilegiando o espaço que coincide com a capital gaúcha na
década de 30.
73
Fica evidente que o âmbito urbano da obra se destaca por evidenciar a
cidade em seu processo de modernização a partir da revolução de 30. “Percebe-se,
pois, que emerge em tais leituras, uma cidade muito mais concreta” (CRUZ, 1994, pg.
92).
Claudio Cruz (1994, pg 100) defende que o livro pode ser interpretado de duas
formas:
A primeira: divide os primeiros vinte capítulos, nos quais ocorre a “batalha” pela
procura do dinheiro para saldar a dívida com o leiteiro, e os outros oito
74
descrevem o período que se estende da chegada de Naziazeno a sua casa
até a chegada do leiteiro na manhã seguinte. Esta divisão define-se pelo estilo
de narrativa, no que diz respeito em como é tratado o elemento temporal. Até
o capitulo vinte a narrativa é predominantemente linear – mesmo que hajam
constantes lembranças do passado ou previsões do futuro, estas ficam
bastante claras durante a leitura – o fluir do texto em linhas gerais e
cronológico. A partir do capitulo vinte e um, as idas e vindas do tempo se
passam dentro da cabeça do personagem, o que torna a ordem menos clara:
começa a ser utilizado um discurso completamente narrativo contando cenas
que ocorreram ao longo do dia e que só agora são reveladas. Assim, como é
definido por Cruz (1994, pg. 101) “pode-se dizer que, até o capitulo 20, temos
um tratamento cronológico virtualmente linear, e, do capitulo 21 em diante,
começa a haver, progressivamente, uma explosão da linearidade cronológica”.
75
Figura 10. Esquema área de deslocamento de Naziazeno. (CRUZ, 1994. pg. 103)
Cruz (1994, pg. 104) frisa que “segundo cronistas de época, a vida noturna,
especialmente no centro de Porto Alegre, era muito expressiva na década de 30, e
não foi sequer citada,” decorrência da visão de Dyonelio da imagem tradicional da
cidade sob o ponto de vista do trabalho, e não do lazer. A rua da Praia e todos os seus
atrativos noturnos permanecem lá, não foram esquecidos, porém foi representada
como qualquer rua principal, inóspita ou atraente, dependendo da pessoa que a
transita.
3.2.1. O Arrebalde
76
silêncio. Noutras ocasiões, quando era apenas a “briga” com a
mulher, esta, como um último desaforo de vítima, dizia-lhe:
“Olha, que os vizinhos estão ouvindo”. Depois, à hora da saída,
eram aquelas caras curiosas às janelas, com os olhos fitos
nele, enquanto ele cumprimentava.
O leiteiro diz-lhe aquelas coisas, despenca-se pela
escadinha que vai do portão até à rua, toma as rédeas do burro
e sai a galope, fustigando o animal, furioso, sem olhar para
nada. Naziazeno ainda fica um instante ali sozinho. (A mulher
havia entrado.) Um ou outro olhar de criança fuzila através das
frestas das cercas. As sombras têm uma frescura que cheira a
ervas úmidas. A luz é doirada e anda ainda por longe, na copa
das árvores, no meio da estrada avermelhada (MACHADO,
2004, pg. 07).
77
Durante o dia a lembrança do bairro da casa fica apagada e Naziazeno lembra-
se apenas de episódios como a briga com o leiteiro, a discussão com a mulher ou os
episódios de doença do filho.
78
Após o dia todo caminhando o corpo cansado de Naziazeno deseja o sono,
mas a mente inquieta do personagem não o deixa dormir. E a noite ventosa o
acompanha.
3.2.1.1. A Casa
Logo depois da rixa com o leiteiro, no parágrafo seguinte ocorre uma discussão
do personagem principal com sua mulher, Adelaide. Percebem-se descrições do
interior da casa que confirmam a simplicidade do estilo de vida da personagem:
A casa possui um interior simples, paredes finas que propiciam que Adelaide
escute Naziazeno e sua indignação, enquanto ele se arruma para o trabalho no
quarto. O comedouro é descrito apenas como pequeno, e a comida é simplesmente
chamada de alimento, para ressaltar que não havia muita variedade no prato da
família. A escassez de adjetivos, mesmo que negativos, tem como objetivo mostrar
que as coisas eram “somente” o que elas eram.
Um silêncio.
Mexe nos bolsos; dá a volta à peça; vai até ao cabide
de parede, onde havia colocado o chapéu.
79
— Me dá o dinheiro — diz, num tom seco, torcendo-se
para a mulher, enquanto pega o chapéu.
E voltando ao “seu ponto”, depois de pôr no bolso os
níqueis que a mulher lhe trouxera:
— Aqui não! É a disciplina. É a uniformidade. Nem se
deixa lugar para o gosto de cada um. Pois fica sabendo que
não se há de fazer aqui cegamente o que os outros querem.
A mulher não diz nada. Voltara a esfregar uma
qualquer coisinha na tábua da mesa (MACHADO, 2004, pg.
09).
80
A casa, como a maioria das residências da época, não possuía vários pontos
de agua encanada. Havia apenas o ponto de água central e que garantia o
fornecimento da casa toda. O banheiro não é citado no livro, porém pelas descrições
da casa imagino que seja uma latrina e que fique localizada na parte exterior da casa.
O casal dividia o único quarto da casa com o filho, provavelmente a casa não
dispunha de outro cômodo. E também porque o menino recém havia se curado de
uma diarreia muito forte, incidente citado várias vezes no livro, os custos com o
tratamento foi o que levou ao primeiro empréstimo do funcionário público com o chefe
da repartição. A luminária que fica acesa a noite inteira, por orientação médica, apesar
de a casa já possuir iluminação optou-se por iluminar o quarto com um uma luminária
de óleo.
81
Na cozinha, um barulho, um barulho de tampa, de
tampa de alumínio que cai. O filho ali na caminha tem um
prisco. Mas não acorda.
São os ratos na cozinha.
Os ratos vão roer — já roeram! — todo o dinheiro!...
Ele vê os ratos em cima da mesa, tirando de cada lado
do dinheiro — da presa! — roendo-o, arrastando-o para longe
dali, para a toca, às migalhas!...
Tem um desespero nervoso. Vai levantar! Mas depois
do baque da tampa caindo, fez-se um silêncio, um grande
silêncio... Espera um pouco. O silêncio continua. Nem mesmo
o chiado se ouve. Há só o silêncio. (MACHADO, 2004, pg. 190
e 191.)
3.2.2. O Bonde
82
Os melhores lugares do bonde estão ocupados. “—
Apesar de tão cedo! É estranho...” Senta-se à extremidade
dum dos bancos dos lados, no fundo.
O bonde leva uma “outra gente”. Não a que ele está
acostumado a ver, às nove ou dez horas, a “sua” hora. “—
Melhor, Essa falta de “conhecidos” apazigua-o. (MACHADO,
2004, pg. 13)
O bonde pode ser descrito como “um espaço de convivência urbana diária,
principalmente das classes menos favorecidas” (CRUZ, 1994, pg. 107) as descrições
que seguem no capítulo dois apontam como os outros ocupantes do bonde eram
pessoas simples. Quando Naziazeno pensa no seu chefe, da repartição, pensa que
ele só anda de carro com motorista. “ Fica claro o sentido de controle social que uns
são capazes de exercer sobre os outros” (CRUZ, 1994, pg. 108):
Segundo Cruz (1994, pg. 109) esta passagem aponta para os perigos
iminentes do uso do bonde apesar de haver inúmeras descrições de acidentes de
transito no jornal e nos demais meios de comunicação. Percebe-se também os
diferentes tipos de meios de transporte que eram usados na década de 30:
83
No trajeto do bonde Naziazeno encontra-se mais concentrado em observar os
companheiros de viagem, em saber o eu eles pensam e fazem do que analisar o
percurso, talvez porque o percurso já é um velho conhecido, mas o bonde leva uma
“outra gente”, despertando a curiosidade do personagem. Também entende-se que o
bonde era um local de interação social na época, conforme a afirmação de Walter:
Depois o bonde só se fará presente no retorno para casa no final do dia, já com
o dinheiro para quitar a dívida em mãos. O protagonista faz uma viagem bem mais
serena, com paradas para compras, de manteiga e queijo, na Fiambreria, de um
presente para o filho, na Loja Dolores, e para recuperar o sapato de Adelaide que
estava retido no sapateiro por falta de pagamento. Devido a ruptura da linearidade no
capítulo vinte e um, a viagem de volta é descrita de uma forma mais picotada, e com o
personagem deveras cansado e muito menos atento aos detalhes do percurso Centro
– Arrebalde.
Enquanto circula pelo centro, Naziazeno estaria envolto em uma aura mais
propícia de força e capacidade para lutar com os seus problemas. Porém nos dois
momentos no bonde, nos trajetos de ida e volta ao Arrebalde, relembra e traz à tona
todas as suas mazelas. “A viagem fecha um círculo, onde a personagem, com sua
história, participa da história da cidade” (VÉSCIO 1995, pg. 121).
84
O sapateiro mora numa casinha pequena, duma série
de casinhas todas iguais.Talvez já esteja acomodado. Vai-se
fazendo tarde... Eram oito horas lá no café. Depois disso,
quanto ainda fez, quanto ainda caminhou... A demora na
fiambreria... A demora na Loja Dolores... E ainda aquele tempo
de espera do bonde... (MACHADO, 2004, pg. 181 e 182).
O bonde ajuda na marcação das horas da noite insone, já que a família não
possui um relógio. Dentre todas as suas preocupações Naziazeno pensa em como
85
adquirir um relógio para a família e aproveita-se do silencio noturno para tentar ouvir
as badaladas dos relógios dos vizinhos, para saber o horário.
Durante a noite a frequência dos bondes diminuía, não exatamente como o seu
número de passageiros, pois o “bonde fantasma” como era chamado o bonde que
chegava ao arrebalde por perto da meia noite vinha lotado.
O trafego dos bondes elétricos em Porto Alegre inicia em 1908, antes deste
período era utilizada tração animal. Segundo Walter (2016, pg. 156)
86
e foi até o final da linha na Rua Luiz de Camões, retornando
ao depósito. Além do Partenon, os bondes elétricos
atendiam o Menino Deus e passaram a operar as linhas
Glória e Teresópolis.
Figura 11. Mapa do transporte público de Porto Alegre em 1928. Disponível em:
<https://picasaweb.google.com/museuvirtualcarris/MapasDiversosDePortoAlegre> Acesso em jul. 2016.
87
Com o crescimento do número de bondes fez-se necessário um abrigo, que na
década de 30 ficou convencionado à Praça da XV, um ponto de convergência do
transporte público no centro da cidade. Como pode ser visto na Figura 12.
Figura 13. Bondes de vagão duplo da J. G. Brill na Filadelfia. Disponível em: <
http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=545103> Acesso em jul. 2016.
88
Figura 14. Bonde modelo "Birney" de segunda mão comprado no ano de 1929. Disponível em:
<http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=545103> Acesso em jul. 2016.
Véscio (1995, pg. 101) define a zona central em que o personagem principal
caminha compreendida na área do centro antigo da capital gaúcha entre exemplares
arquitetônicos e urbanísticos muito conhecidos desta região. Entre os primeiros estão
a Prefeitura, a Igreja das Dores, o Café Nacional, o Café do Mercado, as Docas, a
Biblioteca, o New York Bank, o Banco do Comércio. Os segundos incluem as ruas, da
Ladeira, da Ponte, do Rosário, Santa Catarina, Clara, Coronel Carvalho, Sete, General
Câmara, Nova e a Voluntários da Pátria.
Algumas destas ruas trocaram de nome durante o passar dos anos, mas suas
identidades continuam e se mantem como elementos muito importantes do centro
histórico da capital.
A divisão dos trajetos em cinco blocos principais de acordo com Cruz (1994,
pg. 113) facilita a compreensão dos deslocamentos do personagem, e organiza a
discussão sobre os detalhes importantes do Centro Histórico. O primeiro bloco
corresponde ao período da manhã, no qual Naziazeno desembarca do bonde, passa
pelos cafés e pelo Mercado Público buscando por Duque, um amigo que, segundo o
protagonista, teria meios rápidos para resolver o seu problema. Por outro lado,
Naziazeno ainda tem em sua mente que o Diretor, chefe na repartição pública, poderá
lhe conceder um adiantamento como já havia feito. Neste bloco o foco principal fica
nos deslocamentos entre a Repartição e o Mercado Público.
89
O segundo corresponde aos capítulos oito e nove, nos quais o funcionário
público desloca-se para o Bairro Independência, vizinho do centro, para cobrar uma
dívida de um outro amigo, Alcides, que encontra pelas caminhadas matinais.
No terceiro, a área mais privilegiada é o Largo dos Medeiros, conhecida como
“coração da cidade na época” (CRUZ,1994, pg. 113), situada no encontro da rua da
Praia com a Praça da Alfândega. Corresponde a um período bastante delicado do
romance no qual Naziazeno procura por Alcides para lhe informar de que a cobrança
não dera certo, e desesperado o funcionário público tenta a sorte jogando em uma
roleta clandestina no centro da cidade.
O quarto corresponde aos capítulos quatorze e quinze, pouco menos de dez
páginas que representam a angustia da personagem principal no final do dia, quando
o sol se põe e Naziazeno vê indo embora com a luz do sol as possibilidades de
solucionar o problema que lhe atormentara o dia inteiro.
O último e quinto bloco de ações, trata de quando o funcionário público
finalmente encontra seu amigo, Duque, e consegue os cinquenta e três mil reis para
quitar a dívida com o leiteiro. Este bloco volta a centrar as ações no Largo dos
Medeiros.
Logo ao sair do bonde a mente do funcionário público está confusa, ainda não
sabe exatamente quais medidas tomar durante o dia para resolver a sua situação. O
anti-herói sente-se agitado:
90
Véscio (1995, pg. 104) esclarece que o ponto de chegada para um grande
número dos usuários do bonde era a Praça Quinze, supostamente a primeira casa de
prostituição da vila, no século XIX, quando ainda se chamava Praça do Paraíso --
motivo de muitas discussões na câmara dos vereadores. O espaço demandava muita
atenção, particulares reivindicavam parte do terreno, foi realizada uma reapropriação
da área, pois ambulantes haviam a invadido e em 1829 a praça foi até indicada para
ponto fixo do recolhimento e deposito de lixo na capital. Em 1844 é construído neste
terreno o primeiro mercado da cidade, que permanece nesta localização até 1870,
data da demolição do prédio. Depois disto a praça teve diversos usos, chegou até a
ser palco para um circo de 1875 a 1978 e, finalmente, em 1882 recebeu a função de
ponto de bonde. Como pode ser visto na Figura 12 e na Figura 15.
Quando Naziazeno se levanta para fazer pela primeira vez o trajeto Centro –
Repartição, “é facilmente verificável pela iconografia disponível da época, o papel de
destaque ocupado pela Igreja das Dores em relação à paisagem da zona central”
(CRUZ,1994, pg. 113).
91
luzinha às vezes se apaga. É lívida, na manhã luminosa. —
Que será mesmo?
O cargueiro alemão estava batido das vagas, com
grandes retalhos de vermelho zarcão.
A luzinha, Naziazeno, de volta do cais, ainda a
acompanha, no seu pisca-pisca, até que, num ângulo de rua,
ela desaparece, oculta no casario. (MACHADO, 2004, página
30).
Figura 16. Vista da Igreja das Dores na rua dos Andradas na década de 30. Disponível em:
<http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?p=59750633#post59750633> Acesso em jul. 2016.
92
Está longe. Calcula uns dois quilômetros.
Deixa! É fácil saber... Pelo comprimento do cais já
construído...
(Faz um cálculo. Surgem embaraços. Desiste.)
Vem daqueles lados um ruído surdo: a cidade..
(MACHADO, 2004, página 102).
93
Figura 18. Fotografia da Usina na década de 30. Disponível em:
<http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1327521&page=1> Acesso em jul. 2016.
94
dos serviços da prefeitura esses espaços acabaram sendo transferidos para outros
prédios.
Como se verifica, com os dados fornecidos a cima fica clara a importância das
edificações citadas como reverencia nos primeiros capítulos do livro. Pode-se, ainda,
dizer que lugares como a Praça XV na história de Porto Alegre, estão “diretamente
relacionado ao ponto de chegada ao centro da cidade, da população vinda dos
bairros” (VÉSCIO, 1995, pg. 105). Esta praça, junto com o Mercado e o Largo dos
Medeiros constituem os pontos principais onde a história do romance se desenrolará.
E as passagens marcadas pela curiosidade na Igreja das Dores.
95
trajeto ocorre no horário do meio dia, hora em que o sol fica a pino e o calor na cidade
atinge o seu ápice, Naziazeno aproveita o que consegue de sombra.
Entretanto, apesar de o bairro ser chique a casa onde mora o suposto credor é
simples, “de aparência um tanto pobre” (MACHADO, 2004, pg. 58). Como o
funcionário público está focado em simplesmente conseguir o dinheiro para saldar a
dívida, sente-se miserável por sua situação e não pensa em opções para resolver
definitivamente os seus problemas financeiros. “Mesmo circulando por um bairro nobre
96
o protagonista só encontra pobreza” (CRUZ, 1994, pg. 117). Portanto, é bastante
significativo que a cidade pareça tão inóspita, pois ela é, de fato, um antagonista para
o humilde funcionário público. Como pode-se perceber na Figura 20 realmente há uma
ausência de arvores e elementos humanizados como postes de iluminação na altura
dos pedestres ou caçadas largas, que dariam mais vida a rua.
Cruz (1994, pg.117) afirma que se pode supor que Naziazeno está descendo a
Av. Independência, em direção ao centro, no momento em que o intervalo encerra-se
o intervalo para o meio-dia e a cidade retoma as suas atividade para o período da
tarde. Novamente a posição solar, e a forma como a cidade é percebida através desta
informação, ajuda a deixar claro a posição do personagem principal na cidade e o
horário em que o percurso é percorrido.
97
todas as mesas ocupadas. O ar comunica-lhe um mugido
surdo que se levanta daí e que o estado de debilidade do seu
estômago e da sua cabeça amplia em certos momentos até lhe
parecer um trovão.
Dos cafés, estende a sua pesquisa à rua, à praça.
O Alcides, naturalmente, cansou-se de esperá-lo. Foi
decerto comer.
Vai até ao Restaurante dos Operários, que fica perto.
Como não o encontra também aí, lembra-se daquela vez que o
acompanhou a um frege do mercado... É isso! É onde Alcides
tem de estar. Chega até a vê-lo naquela mesma mesa,
comendo com concentração, silencioso... Irá até lá!
Mas ao mesmo tempo, vê-se com igual nitidez indo ao
frege do mercado e não o encontrando... Só enxerga aí caras
estranhas... Tudo desconhecido... Tudo desabitado... como
aquela esquina do seu tempo de guri... (MACHADO, 2004,
página 67).
98
Figura 22. Praça da Alfandega. Disponível em:
<http://www.terra.com.br/noticias/infograficos/praca-da-alfandega/antes-e-depois/fotos/6-1.jpg> Acesso
em jul. 2016.
Figura 23. Largo do Medeiros, onde pode-se ver a fachada do Café Nacional. Disponível em:
<https://www.flickr.com/photos/fotosantigasrs/with/11013523193/> Acesso em jul. 2016.
99
intrínseca como a cidade real se mistura com a cidade imaginária do personagem
construindo a Porto Alegre através dos olhos de um personagem que vivia a cidade de
uma maneira que a história oficial não relata completamente, o lado marginal do centro
tomado de apostas, locais para jogar no bicho, de passar as tardes nos cafés tentando
ser intermediário de negócios e de conseguir dinheiro por intermédio de empréstimos
com agiotas.
100
Em um destas subidas e descidas da Rua da Ladeira, que atualmente recebe o
nome de General Câmara, o personagem principal encontra-se com Costa Miranda,
incidente que inicia o capítulo 12, e Naziazeno consegue cinco mil reis emprestados
para almoçar, mas tendo o dinheiro em mãos o funcionário público decide tentar a
sorte na roleta.
Ao sair da edificação constata que perdeu quase toda a tarde no jogo e, agora,
que o dia termina suas chances de conseguir o dinheiro ficam menores, refletindo-se
na forma como percebe o ambiente, as descrições deste trecho do livro se mostram
muito mais amargas o capítulo treze se encerra com um tom melancólico que
percorrerá as descrições do final da tarde.
101
3.2.3.4. Bloco Quatro: Final da Tarde
102
Figura 25. Edifício e bonde circulando no centro de Porto Alegre. Disponível em:
<http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?p=59750633#post59750633> Acesso em jul. 2016.
103
construção podem também ser interpretadas como “ruinas”, relacionadas ao
sentimento de incompleto que o personagem sente neste momento do livro, por não
conseguir atingir o seu objetivo principal, o qual o motivara a saída do arrebalde pela
manhã.
O capítulo quinze narra o trajeto que Naziazeno escolhe quando volta “pela
rua Voluntários da Pátria até chegar ao Mercado público” (CRUZ, 1994, pg. 124),
104
neste momento há muitas referências a cidade real, pois o personagem achava-se
perdido em seus pensamentos e o narrador descreve através dos olhos de Naziazeno
alguns retratos urbanos que eram bastante comuns na época. Percorre a rua até
avistar o Mercado Público (Figura 27) e percebe os sons característicos que de lá
vem:
Avança...
Através das pérgulas e dos arbustos da praça lá no
fundo, distingue a esquina do mercado. Um pouco mais para
diante, na altura do portão central, há movimento, pessoas que
atravessam a rua. Bondes, automóveis desembocam na praça,
fazem a curva defronte da grande casa que toma todo o
quarteirão.
Os pios das buzinas chegam já, meio veladamente,
aos ouvidos de Naziazeno.
Atinge a esquina da rua Santa Catarina, por onde
entrou o auto... É larga, bonita. Diminui o passo, até quase
parar: fica olhando ao longo da rua... No fundo, passando a
avenida, estacionam alguns automóveis... Uma limousine
mesmo vai nesse momento fazendo a manobra pra sair.
Naziazeno pára. A limousine toma impulso, aproxima-se da
esquina onde começa uma ladeira forte; buzina. Ele distingue a
figura do inspetor do tráfego quadrando-se todo, dando
passagem. — A limousine desaparece numa curva.
(MACHADO, 2004, página 103)
105
Figura 27. Vista do Mercado público, Praça Parobé e de parte do Porto da capital. Disponível em:
< http://jcrs.uol.com.br/institucional/wp-content/uploads/2013/05/Foto-4649f-MERCADO-
P%C3%9ABLICO.jpg> Acesso em jul. 2016.
106
do bonde. O personagem principal se torna impaciente, precisa falar com Duque,
mesmo que o amigo esteja em outra mesa tratando com um senhor de aparência
refinada.
107
Vai travada uma conversa na fila da frente. Naziazeno
distingue perfeitamente as palavras de Martinez, que fala para
os dois, sem contudo voltar nem uma vez a cabeça para o lado
de um ou outro. O seu passo é ligeiro e firme, o olhar sempre
em frente.
Chegam ao canto da praça. Defronte dos cinemas,
pequenos grupos, um que outro casal. Há sujeitos no guichê da
bilheteria. Outros olham por um momento os cartazes. Uma
pequena família vai entrando. O homem entrega as entradas. A
mulher tem uma criança pela mão.
Atravessam a praça.
Olhando para o chão, para as fachadas, para a frente
dos cinemas, para as árvores, é noite. Mas Naziazeno ergue os
olhos. Bem lá em cima, naquelas nuvens esbranquiçadas, há
ainda um ar de dia... As nuvens agora — os pedaços delas que
ainda se podem distinguir — têm uma luz esmaecida, lívida...
(MACHADO, 2004, página 74.)
108
gerada na já citada Usina Termoelétrica do Gasômetro inunda as ruas de Porto
Alegre.
109
O programa é nacional e possui cerca de 27 centros históricos cadastrados em
todo o país, entre eles o centro de Porto Alegre. Na capital gaúcha o Monumenta
começou a atuar no ano de 2001 quando iniciou o restauro do Cais Mauá.
A área escolhida, por ser o centro de Porto Alegre acaba tendo muito em
comum com o percurso de Naziazeno, como pode ser observado na Figura 30 abaixo.
110
Guaíba, inspirou-se na existência de perímetro tombado
pelo Iphan em 1999, que se estende da cumeada do
promontório que caracteriza a área mais antiga, ao longo da
rua Duque de Caxias, até a orla do Lago Guaíba, cruzando-
se ambos os eixos no largo dos Medeiros, ponto fortemente
ancorado na história da cidade. Essa escolha foi reforçada
pela preexistência do corredor cultural da rua da Praia, cuja
valorização por meio de melhorias nas calçadas,
arborização e iluminação, foi promovida pelo município nos
anos 1980. O contorno desses eixos, dos quais o perímetro
foi levemente ampliado por conter significativo volume de
imóveis privados de valor cultural, abarca os principais
monumentos e logradouros tradicionais do centro histórico.
Os investimentos do Monumenta concentram-se
prioritariamente ao longo desses eixos, prevendo-se que
seu efeito exemplar e dinamizador se espraie na
circunvizinhança, atraindo investimentos e incentivando
iniciativas de restauração de imóveis e melhorias
urbanísticas. Com essa estratégia pretende-se reforçar a
imagem do centro histórico aos olhos da população. Vem ao
encontro desse propósito o fato de os eixos transversal e
longitudinal serem espaciais e topograficamente bem
delimitados e conhecidos pela população. (PROGRAMA
MONUMENTA – Porto Alegre, 2010, pg.34)
111
3. Cais – Repartição
112
24. Rua do Rosário (Dupasquier) - Café da Esquina
Mercado público
Prefeitura
Praça da XV
Usina do Gasômetro
Rua da Ladeira
Avida Independência
Rua da Praia
Foi produzido um mapa (Mapa 02) com as imagens e a localização dos pontos
de referência, além disso ou realizado um terceiro mapa (Mapa 03) cruzando o
percurso com os pontos de referência, ambos os mapas podem ser vistos no Anexo 01.
113
CONSIDERAÇÕES FINAIS
114
O que torna o romance algo a mais do que um simples relato, é que o autor
procura compreender a cidade retratando as mudanças econômicas e estruturais, pois
passava por um período de efervescência e modernização. Devido a sua visão sensível
diversos aspectos intrínsecos ao meio urbano, que se entrelaçam na transformação e
modernização da cidade aparecem no romance de Dyonelio Machado. Não apenas esta
obra, mas diversas obras de literatura podem ser usadas como fonte de pesquisa e
ajudaram a compreender novos pontos da cidade, que nem sempre ficam expressos na
história e complementam as buscas dos Arquitetos e Urbanistas na construção do
imaginário social de uma época.
115
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117
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120
ANEXO 01
MAPA 01 - O Percurso de Naziazeno
01 02 03 04 05 05 06 07