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Bardo Thodol o Livro Dos Mortos Tibetano

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GAÎ A: Vol. 11, N. 1.

Bardo thödol: o livro dos mortos tibetano


Luana de Almeida Telles
Mestranda em Ciência da Religião (UFJF)
lulu_telles@hotmail.com
Orientador: Luciano Caldas Camerino (UFJF)

Res u mo
Este artigo apresenta a concepção da morte dentro da cultura tibetana da escola
budista Mahayãna, apresentando os processos descritos no pós-morte pela leitura
da obra “O Livro Tibetano dos Mortos”, o Bardo Thödol. O foco principal do traba-
lho é apresentar o processo pelo qual o morto passa no bardo e seu processo de
transcendência. A morte no budismo tibetano também é uma oportunidade para
a libertação da ignorância, se em vida o indivíduo aprender – e meditar – acerca do
momento de confrontação com a morte e suas manifestações, ele poderá ter uma
visão mais fluída e natural da morte.

Pa lav r as - chav e
Morte; Bardo Thödol; Rituais de Morte; Budismo Tibetano; Livro dos Mortos Tibetano.

Abs t rac t
This article presents the concept of death within the Tibetan culture of the Buddhist
school Mahayãna, presenting the processes described in the post-death by reading
of the work "The Tibetan Book of the Dead", the Bardo Thodol. The main focus of the
study is to present the process by which the dead is in the bardo and its process of
transcendence. The death in Tibetan Buddhism also is an opportunity for the libe-
ration of ignorance, whether in life be learning - and meditate - about the time of
confrontation with death and its manifestations, it may have a more fluid and natural
death.

KEY WO RD S
Death; Bardo Thödol; Death Rituals; Tibetan Budism; Tibetan Book of the Dead.

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Int ro d u ç ão
O artigo será elaborado a partir de uma pesquisa bibliográfica, através de li-
vros, artigos científicos e revistas que tratam as temáticas de religião, história, cultura
entre outras. Será realizada uma pesquisa qualitativa para a condução dos estudos
com o objetivo de captar o significado e a intencionalidade das atitudes cultuais, das
crenças e dos rituais referentes ao Bardo Thödol e sua relação com a libertação na
morte. Assim, o estudo dispõe-se enquanto corpus descritivo, explicativo e interpre-
tativo das atitudes da espiritualidade daqueles que contemplam o livro enquanto
obra sapiencial. O modelo de análise será através da ciência da religião e do estudo
histórico, analisando as articulações entre as dimensões cultuais, rituais e sociais do
budismo tibetano, e como este constrói um conhecimento próprio sobre a morte. O
foco principal do trabalho é apresentar a jornada pelo qual o morto passa no bardo
e seu processo de transcendência, evidenciando a morte no budismo tibetano como
uma oportunidade para o encerramento do ciclo sangsárico.
O primeiro tradutor pós-moderno do Bardo Thödol para outro idioma foi o es-
tadunidense Evans-Wentz (1878-1965), em 1927. Para realizar a tradução, ele consul-
tou com um professor indiano de inglês, Kazi Dawa Samdup. Wentz foi influenciado
pelo orientalismo europeu e pela publicação do Livro Egípcio dos Mortos, resultado
da febre da egiptologia, e essa questão resultaram em alguns problemas para sua
tradução: primeiramente, durante a década de 20, os tibetanos eram muito fechados
a estrangeiros, por isso Wentz não conseguiu encontrar alguém mais instruído no
budismo que Samdup para ajudá-lo com a tradução. Outro problema seria o próprio
reducionismo orientalista de Wentz, que inclusive influenciou o titulo escolhido1, que
estaria buscando um paralelo com o texto egípcio.

B ud is mo
A origem do budismo data, aproximadamente, do século V AEC no Norte da
Índia. O primeiro mestre e instituidor do budismo foi Siddharta Gautama, o Buda2
Sakyãmuni, que foi um príncipe indiano que nasceu envolvido pela filosofia brâmane.
A filosofia budista é fruto da experiência religiosa de Siddharta quando este desperta
para a verdade sobre a realidade, sendo capaz de cessar a ignorância e o sofrimento.
Seus ensinamentos viajaram da Índia, primeiramente, para o Sudeste Asiático, para a
Ásia Central, e depois para o Tibete. De acordo com Alexander Berzin, os ensinamen-
tos budistas se embaralhavam às novas culturas que encontravam, cada lugar pos-
suía sua própria estrutura religiosa e seu próprio líder espiritual. Berzin destaca que
atualmente sobrevivem três escolas budistas principais: a Theravada que enfatiza a

1 O título literal do texto é Liberação por meio da Audição no Estado Intermediário.
2  Buddha (Buda) é todo ser que despertou para a verdade, deixando para trás todo sofrimento e ig-
norância para descobrir felicidade e paz permanentes. Uma pessoa não se torna e nem nasce um buda,
ela deixa aos poucos de viver na ilusão.

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liberação pessoal e duas Mahãyãna, a chinesa e a tibetana, que enfatizam o trabalho


para se tornar um Buda. O budismo tibetano – lamaísmo ou Vajrayana – pertence a
vertente do Mahãyãna e inicia-se no Tibete por volta do século VII EC, herdando todo
o desenvolvimento do budismo indiano com influências da tradição Bön (oeste do
Tibete) e foi introduzido por Padma Sambhava. O budismo tibetano possui quatro
escolas: Nyingma – deriva da primeira introdução, Kagyu, Sakya e Gelug – que derivam
da segunda introdução do budismo no século XI EC. Expandiu-se por toda região do
Himalaia, Mongólia e Ásia Central. O budismo Mahãyãna Tibetano tem como principal
foco o estudo da natureza da mente e das emoções, juntamente com práticas de
meditação constante e reverência a diversos budas e boddhisattvas. O foco dessa
escola é o caminho para a iluminação por meio de recitações de mantras, visualiza-
ções e meditações.
Os principais conceitos do budismo que devem ser entendidos para ajudar na
compreensão do Bardo Thödol são as noções de originação interdependente - pra-
tityasamutpada – e de vacuidade – sunyatã. A originação interdependente é a com-
preensão de que todas as coisas fazem parte de uma teia de fenômenos, por isso é
importante no budismo os ideais de compaixão e altruísmo com todas as criaturas.
Ela possui doze passos que buscam classificar as origens do sofrimento:

I sto é, a doutrina da origem interdependente de tudo. Essa doutrina


ensina que todas as coisas vêm a ser e deixam a existência por meio
de uma cadeia de acontecimentos interconectados, que se condicio-
nam mutuamente e culminam na ignorância. Em sua forma padrão, ela
tem doze encadeamentos: a ignorância, as ações volitivas, a consciên-
cia, os fenômenos fisiológicos, as capacidades perceptivas, o contato,
a sensação, a sede, o apego, o processo do devir, o nascimento e a
dor-e-morte. Cada uma dessas condições existe apenas numa relação
de interdependência com relação a todas as outras: juntas, elas cons-
tituem o mundo de samsãra, o domínio da ilusão e do sofrimento, no
qual vivem os não iluminados. (YOSHINORI, 2006, p. 13)

Estes doze passos formam um ciclo que começa no sofrimento, que se trans-
forma em condição da ignorância e termina com o sofrimento da morte. Isso quer
dizer que o sofrimento – duhkha – é o efeito de qualquer existência sangsárica3. Foi a
tentativa de superar o sofrimento que guiou Siddharta a elaborar as Quatro Nobres
Verdades, são elas: 1) A verdade sobre o sofrimento – a existência é sofrimento, assim
como o desejo, o apego, a ignorância e o extenso ciclo do nascimento, velhice, doen-
ça e morte. Diante disso, o homem sofre porque se apega na permanência de coisas
que, na verdade, são efêmeras; 2) A verdade sobre a origem do sofrimento – a causa
do sofrimento é o desejo. Pois, a vontade de realizá-lo gera o karma4, que ocasiona

3  Sangsãra é o ciclo ininterrupto de mortes e renascimentos da existência cíclica ao qual todos os


seres sencientes estão destinados, o que lhes causa contínuo sofrimento. Os ensinamentos budistas
foram elaborados para ensinar como se libertar deste ciclo vicioso.
4  Karma é a lei de "causa e efeito", todas as ações, virtuosas ou não, geram resultados correspon-
dentes, isto é, positivos para as ações virtuosas - gerando felicidade - e negativos para as não virtuosas

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no renascimento, e a existência no sangsãra, por isso se diz que este está ligado ao
desejo, ao apego e à permanência; 3) A verdade que leva a superação do sofrimento:
o meio de suprimir o sofrimento é pela aniquilação do desejo, o estado de nirvãna; 4)
A verdade sobre o caminho que leva à superação deste sofrimento: seguir o Caminho
do Meio5 através do Nobre Caminho Óctuplo.
Quem compreende a originação interdependente percebe a origem e a cessa-
ção do sofrimento, e também a vacuidade dele. E, se o sofrimento é “vazio” ele pode
se desconstruir até ser totalmente superado. Quando se fala em vazio, ou vacuidade,
no budismo para expressar a condição de possibilidade para a existência; ele não é
nada conhecido pela experiência da forma, ele é a possibilidade para as condições
das constantes transformações e a insubstancialidade dos fenômenos. Perceber o
vazio é Despertar – ser libertado da experiência – e não percebê-lo é a condição da
ignorância do sangsãra que é o plano da experiência finita. Entender o vazio é com-
preender a não dualidade, de forma que ele se encontra além dessas relações, pois é
a consciência livre de qualquer limitação. Não existe nenhum tipo de ser, ou conceito,
que fuja da determinação interdependente e da vacuidade, de forma que a vacuida-
de é a verdadeira natureza da realidade. O problema é que somente poucas pessoas
conseguem se tornar conscientes disso, pois a verdade sobre a interdependência
fica obscurecida pela noção de um sujeito permanente, resultado da atual condição
de ignorância.

A M o rt e e o R en a s ci m e n t o
A morte é um nascimento. No budismo, a existência é vista como uma roda
em constante movimento – reencarnacionismo – que segue as leis do sangsãra, cau-
sadora de sofrimento para todos os seres sencientes. De modo que, o ser nasce,
vive, adoece, morre, vaga pelo bardo6 e renasce. A morte não é o final inorgânico, é
somente o fim de um ciclo que dará origem a um novo. A morte dá início ao processo
do bardo, que possibilita o despertar ou marca o condicionamento do ser para um
próximo nascimento. A única forma de escapar deste ciclo é atingindo a Iluminação,
o estado de buda. O que é preciso aprender com os ensinamentos do Bardo Thödol é
que, quando a morte chega, é possível entrar em contato com a natureza da mente,
que também é a natureza de tudo, o vazio. Se a natureza da mente, que é o vazio,
é a natureza de tudo, todo o sofrimento, ignorância e felicidade foram criados por
ela. Assim como a vida e a morte não existem em outro lugar senão na essência da

- causando sofrimento.
5  A ideia proposta pelo Caminho do Meio aparece pela primeira vez no Sermão de Benares, o primeiro
sermão de Buda que é uma síntese de todo o conhecimento e forma para o caminho da iluminação,
onde ele coloca que o caminho para a libertação não está nos extremos, e sim no equilíbrio entre os
termos.
6  Bardo comumente é traduzido para estado intermediário entre a morte e o renascimento, mas na
realidade, nos confrontamos com os Bardos continuamente tanto na vida quanto na morte. Ele é na
verdade um estado de transição entre um ciclo e outro.

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natureza da mente. A vida e a morte possuem um relacionamento simbiótico, e, no


final, a morte é uma etapa, que pode nos abrir uma oportunidade para deslumbrar a
verdadeira natureza das coisas.

Q uando por fim estamos libertos do corpo que definiu e dominou


nossa compreensão de nós mesmos por tanto tempo, a visão
cármica de uma vida se exaure completamente, mas qualquer carma
que poderá ser criado no futuro ainda não começou a se cristalizar.
Dessa forma, o que acontece na morte é que há um "intervalo", uma
brecha ou espaço que é fértil e tem vastas possibilidades; é um mo-
mento de rico e imenso poder em que a única coisa que importa, ou
poderia importar, é aquilo que a nossa mente de fato é. Despojada do
corpo físico a mente fica nua, revelando surpreendentemente o que
sempre foi: o arquiteto da nossa realidade. (SOGYAL RINPOCHE, 1999,
p. 308)

De acordo com o budismo, provavelmente, todos já nascemos em todos os


reinos de existência, mas devido a nossa condição atual, - de ignorância - não é pos-
sível lembrar de antigas existências. Quando Siddharta atingiu o estado de desperto,
ele disse que conseguia se recordar de suas vidas passadas; essas histórias podem
ser lidas na obra "Contos de Jataka". Portanto, a reencarnação faz parte do ciclo da
existência, onde tudo nasce, vive, morre e renasce, até que consiga se libertar do
sangsãra. Essas existências sucessivas são resultados das ações praticadas nas vidas
anteriores; um ser pode renascer em qualquer reino, seja ele superior (deva, assura
e humano) ou inferior (bruto, preta e naraka). A causa de um ser ficar transmutando
entre os reinos é o desejo, onde cada klesha específico causa o renascimento em
um reino sangsárico, que fazem parte da cosmologia budista. No sentido metafórico,
cada reino pode ser entendido como uma experiência mental e estado emocional
(klesha) é possível experienciar todos os reinos em um único dia e sofrer os seus con-
secutivos efeitos; isso quer dizer que, os reinos de existência já são vivenciados em
vida, no cotidiano e nos relacionamentos, e são construídos mentalmente.

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Figura 1: A Roda da Vida da tradição do budismo tibetano no monastério de Kopan em Nepal, Ásia.
Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/861032022485257027/. Acesso 11/11/2019 às 09:40.

B a rd o Thö d o l

" A morte está sempre acompanhada por uma determinada ideia de


morte" (LEIS, 2003, p. 348).

O Bardo Thödol é um guia, um ritual, que visa o reconhecimento do ciclo da


existência no sangsãra e da natureza da mente, partindo da concepção que o auto-
-conhecimento pode guiar a consciência durante estes estados de bardo, buscando
seguir caminho para a iluminação ou, ao menos, para um bom renascimento7.
Desde o começo, todos os seres sencientes que nasceram e morreram, assim

7  Bom renascimento é renascer em um dos reinos superiores.

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como os que ainda irão morrer, vivenciaram o bardo. A passagem por este pode
ser negativa ou positiva8, tudo depende do "estado de espírito" em que a consciên-
cia se encontra no momento da morte, de forma que "nosso pensamento passado
determinou o nosso estado presente, e o nosso pensamento atual determinará o
nosso estado futuro; pois o homem é aquilo que ele pensa" (WENTZ, 2006). Por isso,
o Bardo Thödol, ou "O Livro dos Mortos Tibetano", é um guia para todos. Ele narra a
existência durante a estadia nos três seguintes bardos: Chikhai, Chönyid e Sidpa, com
duração de 49 dias solares9 ou até que a consciência transcenda e marca o período
do estado intermediário entre a morte e o renascimento. A tradução literal do nome
do livro, Bardo Tödrol Chenmo, que significa "Grande Liberação por Meio da audição
no Bardo”. O livro mostra a importância de conhecer a morte antes do momento de
confrontação, é preciso ter familiaridade com os ensinamentos do Bardo Thödol em
vida e com a prática espiritual - como a meditação, para que os ensinamentos desta
obra sejam aproveitados.

O Livro dos Mortos Tibetano tenta despertar qualquer ligação com a


prática espiritual que a pessoa morta possa ter tido, e encoraja-
-nos a abandonar o apego à pessoas e bens; a deixar de lado o anseio
por um corpo; a não ceder ao desejo ou raiva; a cultivar a bondade
em vez de hostilidade e a nem mesmo pensar em ações negativas. Ele
recorda à pessoa que morreu que não há nada a temer. De um lado
diz-lhe que as assustadoras figuras do bardo nada são além de proje-
ções de suas ilusões, vazias por natureza. E de outro, afirma que essas
figuras têm apenas um corpo mental de tendências habituais, portanto
vazio também. Assim, a vacuidade não pode trazer dano à vacuidade.
(SOGYAL RINPOCHE, 1999, p. 369)

É uma obra pertencente à tradição do budismo tibetano, foi atribuída ao mestre


Padma Sambhava10, por volta do século VIII. Porém, o mestre, escondera o livro, pois
achava que ainda não estávamos prontos para tal ensinamento. O livro foi revelado
por Rigzin Karma Ling-pa somente no século XIV, próximo ao Himalaia. Atualmente o

8  A passagem pode ser positiva se o morto consegue reconhecer as visões do Bardo e por isso não
às teme. Já os que ficam obscurecidos pelo mau karma creem que as alucinações são reais e as temem,
sofrendo variadas formas de torturas. Segundo o budismo tibetano existem objetos e entidades que
podem ser criados pela força do pensamento, são chamados de tulpa. Logo, tulpa é um pensamento
que chega a assumir forma material, física dessa forma a mente é capaz de criar um mundo de ilusão,
ela também pode criar qualquer objeto desejado.
9  Dias solares são os dias com duração de 24 horas, já dias de meditação são contados pelo tempo
que o praticante consegue repousar sua mente, por exemplo, o Chöniyd Bardo dura cinco dias de me-
ditação se um ser consegue manter a mente estável por 2 minutos, então sua experiência deste bardo
será de 10 minutos. Por este motivo, o Chikhai e o Chöniyd Bardo são sentidos de formas diferentes,
para aqueles que praticaram conseguem manter a mente estável e conseguem reconhece-los. Os leigos
sentem estes passando como um trovão, pois não conseguem repousar a mente. Por isso a técnica da
meditação é tão importante, para que no bardo o ser consiga manter a mente estável e consiga contro-
la-la, podendo escolher um bom renascimento, ou até mesmo atingir a Iluminação.
10  Padma Sambhava, chamado de Guru Rinpoche, é o fundador da escola tântrica Tibetana.

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livro é usado no Tibete como um manual de ritual fúnebre, que é ditado pelos lamas,
direcionado aos mortos. Foi traduzido na década de 20 Lama Kazi Dawa-Samdup e
o Dr. Evans-Wentz. C.G. Jung escreveu o prefácio do livro analisando seu conteúdo
do ponto de vista psicológico, onde ele escreve: “todo leitor sério forçosamente irá
perguntar-se se estes antigos e sábios lamas, afinal de contas, não poderiam ter
vislumbrado a quarta dimensão, arrancando assim o véu dos maiores mistérios da
vida” (JUNG, 2015). O livro é resultado de uma mistura da antiga religião Bön com o
budismo disseminado pelo mestre Padma Sambhava, que afirma ser possível morrer
de forma consciente e que, desta forma, é possível atingir a Iluminação no estado do
bardo.
Ele relata desde o momento de desconstrução (Chikai Bardo), onde retomamos
a verdadeira natureza da mente, depois, o momento da unidade que é o momento
de aliança com as divindades tutelares (Chönyid Bardo), até o momento final, o pro-
cesso de individualização (Sidpa Bardo). Então, o livro aconselha que o ser direcione
sua atenção para uma Clara Luz, que é a única verdade – a manifestação do vazio
– podendo assim, Despertar. É possível encontrar diferentes classificações para os
bardos, usarei a classificação de Sogyal Rinpoche: o primeiro é chamado de Rang
Bzhin Bardo, o Bardo Natural que marca o período entre o nascimento e a morte. O
segundo, chamado de Chikhai Bardo, trata sobre o momento da morte. Em seguida
o Chönyid Bardo que relata as ilusões kármicas do pós-morte e a confrontação com
a natureza da mente, e por último o Sidpa Bardo que relata o momento da "busca
por um renascimento". E dessa forma, o Bardo Thödol busca guiar o ser para escapar
desse movimento cíclico encarnatório e retornar11 ao estado puro da Iluminação.

O que distingue e define cada um dos bardos é que todos eles são
intervalos ou períodos em que a possibilidade do despertar está
particularmente presente. As oportunidades de liberação estão ocor-
rendo de maneira contínua e ininterrupta ao longo da vida e da morte.
(SOGYAL RINPOCHE, 1999, p. 144)

O estado de Bardo é, então, encarado como um momento de transição, onde


a consciência se encontra entre dois estados, um intervalo entre o encerramento e o
início de um ciclo. No momento em que a consciência percebe que seu corpo físico
morreu, ela pode retornar ao estado primordial, que é a natureza da mente, mani-
festada pela Clara Luz no momento de morte. Para aqueles que treinaram em vida
para este momento, e se dedicaram ao caminho espiritual, conseguem reconhecer
e unir-se a esta Luz e assim, cessar o ciclo de renascimentos. Para aqueles que pos-
suem algum treinamento espiritual, mas não conseguem reconhecer a natureza da
mente, devem enfrentar o segundo bardo, o Chönyid. Os leigos ainda permanecem
na inquietude do processo por mais um estado, o Sidpa. O livro deve ser lido para
um morto ou moribundo, por um monge, para auxiliar a transferência da consciência

11 Retornar porque, primeiramente, a natureza da mente é o vazio, todos “viemos” dele. E atingir a
iluminação, seria o retorno a essa condição.

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no momento da morte, caso a separação do corpo não seja completada12. Sua men-
sagem central é que, não importa as visões ou aparições do pós-morte, o ser deve
passar em cada um dos bardos com total tranquilidade e estabilidade mental, e para
isso, precisa perceber que essas visões são criadas pela própria consciência13.

E ntão vem este Grande Thödol, que deve ser lido sete, ou três ve-
zes, segundo as circunstâncias. Em primeiro lugar, vem a confron-
tação com os sintomas da morte; em seguida, a viva recordação, a con-
frontação com a Realidade, durante o estado intermediário, e enfim, os
métodos para fechar as portas das matrizes quando, no estado inter-
mediário, o morto tenta renascer. (SAMDUP, 1983, p. 53)

O Bar d o d o s mo m e n t o s da M o rt e – C H I K H A I
BARDO
O período do Chikhai Bardo compreende do momento em que se contrai/de-
senvolve uma doença - ou outra condição, mesmo aquela vertiginosa, instantânea,
inesperada que ocasionará em sua morte - até o instante em que a Clara Luz se
manifesta. O processo de morrer pode ser muito doloroso, já que perder o corpo
e a vida pode ser muito custoso. No processo de morrer, existem sinais - mentais e
físicos - que marcam quando a morte está chegando, esse procedimento consiste
em duas etapas de desintegração que ocorrem tanto no corpo quanto na mente:
uma externa - que envolve os sentidos e os elementos - e outra interna - que inclui
os estados de pensamento. O corpo físico se desenvolve fundado na mente, que
compreende as qualidades dos cinco elementos e, por conta deste agregado - corpo/
mente - é possível ter a experiência do mundo exterior.

N ossa existência inteira é determinada pelos elementos: terra,


água, fogo, ar e espaço. Por meio deles nosso corpo é formado e
sustentado; quando eles se dissolvem, morremos. Estamos familiariza-
dos com os elementos externos, que condicionam o modo como vive-
mos, mas o que importa é a maneira como esses elementos externos
interagem com os elementos internos dentro do nosso corpo físico.
E o potencial e a qualidade desses cinco elementos também existem

12 Quando a respiração do moribundo está prestes a cessar, é preciso coloca-lo na “Postura do Leão
Adormecido”, que ajuda a consciência a deixar o corpo pela abertura do topo da cabeça, deve-se deitar
a pessoa sobre o seu lado direito, a mão direita sob o queixo fechando a narina direita e a mão esquer-
da descansa na coxa esquerda. As pernas ficam levemente dobradas. Essa postura também ajuda no
reconhecimento da Clara Luz.
13  As manifestações do livro existem para todos, mas, sendo o conteúdo da mente maleável pela
cultura, as manifestações serão percebidas de formas diferentes. As visões descritas no livro são adap-
tadas à cultura tibetana, típicas dos costumes religiosos do povo. Dessa forma, os cristãos poderão ter
visões sobre o inferno ou o paraíso.

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dentro da nossa mente. A habilidade da mente para servir de base a


toda experiência é a qualidade terra; sua continuidade e adaptabilida-
de é água; sua claridade e capacidade de perceber é fogo; seu contínuo
movimento é ar, e sua vacuidade ilimitada é espaço. (...) A consciência
dos sentidos surge da nossa mente. A carne, os ossos e o órgão do
olfato, bem como os odores sentidos por esse órgão, são formados
pelo elemento terra. O sangue, os líquidos do corpo, o órgão do pa-
ladar e os sabores sentidos por esse órgão vêm do elemento água. O
calor, a cor clara, o órgão da visão e a forma percebida por esse órgão
vêm do elemento fogo. A respiração, o órgão do tato e as sensações
físicas sentidas por esse órgão são formados pelo elemento vento. As
cavidades do corpo, o órgão da audição e os sons percebidos por esse
órgão são formados pelo elemento espaço. (SOGYAL RINPOCHE, 1999,
p. 314 e 315)

Após a morte, todos esses elementos serão dizimados. Esse processo se revela
fisicamente no moribundo - como uma mudança na cor da pele, certo odor, mudan-
ças na respiração - e psicologicamente enquanto o ser enfrenta a morte. Durante
o processo da morte ocorre a dissolução - que está conectada com os canais de ar
e com os chakras - dos cinco elementos: terra, água, fogo, ar e consciência. A disso-
lução externa é o processo pelo qual os sentidos e os elementos se desintegram.
A primeira fase tem inicio quando os sentidos não podem mais ser vivenciados. O
segundo estágio da dissolução ocorre quando o elemento terra se dissolve em água.
Em seguida o elemento água se dissipa em fogo que se dilui dentro do elemento ar.
O quinto momento14 é quando o ar se desagrega na consciência. Nesta ocasião, po-
de-se dizer que o corpo morreu biologicamente.
Ao final da dissolução externa, quando nada mais pode obscurecer a verda-
deira natureza, ela finalmente pode se manifestar. O surgimento da Clara Luz15 no
momento da morte, e o seu reconhecimento como a natureza da sua mente, é a pri-
meira oportunidade de Libertação no plano pós-morte. A dissolução interna ocorre
quando o corpo físico morre e a consciência volta para o estado original. Reconhecer
a Clara Luz garante o estado de Buda no Dharmakãya, que é o estado perfeito de
Buda – além do sofrimento, da ignorância e dos fenômenos transitórios (forma, tem-
po e espaço).

14 Thrangu Rinpoche diz que neste ponto de dissolução, dependendo da ocasião da morte, ainda é
possível que o ser reviva. Porém, depois deste estágio o processo de dissolução física está completo,
dando inicio ao processo de dissolução interna. Ele também fala de mais um processo de dissolução –
dos constituintes que produziram o corpo, os três kleshas fundamentais: estupidez, luxúria e ira
15  A Clara Luz dura quanto tempo o ser conseguir repousar no estado da natureza da mente. Sogyal
Ripoche fala que “a vasta maioria não reconhece em absoluto a Luminosidade Base, e em vez disso mer-
gulha num estado de inconsciência que pode prolongar-se por até três dias e meio. (...) Era frequente
não mexer no corpo de uma pessoa comum antes dos passados três dias (...) acredita-se que se ele for
tocado em determinado lugar – por exemplo, ao aplicar-se uma injeção – a consciência pode ser des-
viada para esse ponto. Então a consciência do morto pode sair pela abertura mais próxima, ao invés de
sair pela fontanela, levando um renascimento infeliz.” (SOGYAL RINPOCHE, 1999, p. 337)

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O Bar d o Da Vivê n ci a Da Re a l i da d e –
CHÖNYID BARDO
Este bardo inicia-se quando o processo de dissolução externa foi completado.
Duas coisas importam no momento da morte: o que foi feito em vida - o karma - e o
estado em que a mente se encontra, dessa forma, o último pensamento ou emoção
que se tem antes de morrer, tem efeito no bardo; por isso também, é importante
que durante a leitura do Bardo Thödol os familiares ao redor do corpo não devem se
lamentar, pois podem causar sentimentos de apego, dificultando a jornada do morto
em seu processo sangsárico. Se o ser falhar em reconhecer a Clara Luz e for neces-
sário, por causa de seu karma, enfrentar o Chönyid Bardo, que acontecerá durante os
primeiros sete dias - o primeiro dia é contado a partir do momento que o ser percebe
que morreu que seria de três dias e meio a quatro dias após a sua morte. O morto
irá enfrentar as Divindades Pacíficas e, depois, entre, o oitavo ao décimo quarto dia,
ele confrontará as Divindades Iradas, todos esses dias também são chances para a
Libertação. Sogyal Rinpoche chama essas manifestações de divindades de "aspecto
energético” da natureza da mente. Deve-se manter em mente que, todas essas são
partes da natureza da própria mente, ou seja, elas não têm existência externa, se-
não em sua própria forma-pensamento. Conquanto, sem a estabilidade da prática
espiritual, os pronunciamentos neste estado podem parecer reais, ganhando assim
existência, personificando as emoções, tornando-as externas a mente, e como con-
sequência, a consciência é conduzida para a ilusão da existência sangsárica.
As quatro fases do Chönyid, que pertencem ao processo de dissolução interna
são: 1) Luminosidade: é a primeira etapa deste bardo, o ser, que antes habitava um
corpo físico, agora possuí um corpo de luz que se movimenta por um ambiente fluido
fabricado de som, luz e cor - que é a expressão natural das qualidades elementares
da mente: a terra é percebida como uma luz amarela, o ar como luz verde, o fogo
vermelha, a água como branca e o espaço azul. 2) União: novamente, por causa de
sua condição de ignorância, o ser continua a seguir pelo Bardo. O momento que
Riponche rotula de União é marcado pela união das luzes que originam Mandalas
com as quarenta e duas deidades pacíficas e as cinquenta e oito irritadas, onde a
luminosidade se manifesta na forma de budas ou deidades. Se o ser não consegue
reconhecer estas visões como manifestações de seu próprio pensamento, ele ainda
deve permanecer no bardo. 3) Sabedoria: manifestação dos aspectos das cinco sabe-
dorias16, que é o potencial para a Iluminação. 4) Presença espontânea: "Então, as dei-
dades pacíficas e iradas aparecem, seguidas pelos reinos puros dos budas, e abaixo
delas os seis reinos da existência samsárica. (...) A visão inteira, então, dissolve-se
retornando à sua essência original." (SOGYAL RINPOCHE, 1999, p. 351)
No Bardo Thödol, narra-se que essas deidades se anunciam por um período de
dias e que esse momento é uma oportunidade para a libertação ou para o renasci-

16  Os Dhiãni Buddhas são atributos da divindade absoluta, e são conhecidos como guias tutelares das
Cinco Sabedorias. A visão das Sabedorias Búdicas surge junto com a visão dos agregados e emoções
negativas (kleshas), isso porque essencialmente eles são a mesma coisa. “Tome como exemplo o que
se manifesta em nossa mente comum como um pensamento de desejo; se sua verdadeira natureza é

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mento. Os reinos se revelam em luminosidade, os puros em luz radiantes e os reinos


impuros do sangsãra em luz opaca, durante a confrontação com estes o ser deverá
“escolher” um destes modos de existência, mas que, devido aos hábitos das vidas
passadas o ser sente-se atraído pela opaca luz dos reinos sangsáricos, causando o
renascimento. Vamos tomar um exemplo de manifestação de um dos budas pacífi-
cos, que ilustrará esse processo, uma vez que ele ocorre de forma similar para todas
as aparições:

A aurora das divindades pacíficas

Ó nobre filho, escuta atentamente. No Quarto Dia a luz vermelha,


que é a forma primitiva do elemento fogo, brilhará. Nesse mo-
mento, do Reino Oeste Vermelho da Felicidade, o Bhagavãn Buda Ami-
tãbha17, de cor vermelha, levando um loto em sua mão, sentado sobre
um trono-pavão e abraçado pela Divina Mãe Gökarmo, brilhará sobre
ti, [juntamente com] os boddhisattvas Chenrazee e Jampal, acompa-
nhados pelos Boddhisattvas fêmeas Ghirdhima e Ãloke. Os seis corpos
de Iluminação brilharão sobre ti por meio de um halo de luz arco-íris. A
forma primitiva do agregado de sensações representado pela cor ver-
melha da Sabedoria Onidiscernente, cintilantemente vermelha, glorifi-
cada com astros e astros satélites, luminosa, transparente, gloriosa e
deslumbrante, vinda do coração do Divino Pai-Mãe Amitãbha, atingirá
seu coração [tão radiantemente] que mal poderás mirá-la. Não a te-
mas. Juntamente com ela, uma opaca luz vermelha do Preta-loka, vindo
lado a lado com a Luz da Sabedoria, que brilhará sobre ti. Age de modo
a não te afeiçoares a ela. Abandona a afetividade [e] a franqueza [por
ela]. Nesse momento, devido a influência de intensa afetividade, te sen-
tirás aterrorizado pela deslumbrante luz vermelha, e [desejarás] fugir
[ás] dela. E sentirás afeição por essa opaca luz vermelha do Preta-Loka.
Nesse momento, não tenhas medo da gloriosa, deslumbrante e radian-
te luz vermelha. Reconhecendo-a como Sabedoria, conservando teu in-
telecto em estado de resignação, te fundirás [nela] inseparavelmente e
obterás o estado de Buda. Se não a reconheceres, pensa: ‘São os raios
da graça do Bhagavãn Amitãbha e nela buscarei refúgio’; e, confian-
do humildemente nela, ora por ela. Ela é o gancho dos raios da graça
do Bhagavãn Amitãbha. Confia nela humildemente; não fujas. Mesmo

reconhecida, ele surge livre do apego, como “Sabedoria do Discernimento”. (...) Assim, as cinco emoções
negativas emergem como resultado direto de reconhecermos a sua verdadeira natureza. Quando re-
conhecidas, são purificadas e liberadas, mostrando-se como nada menos que a manifestação das cinco
sabedorias. (...) Assim, por exemplo, se você deixou de reconhecer a luz vermelho-rubi da sabedoria do
discernimento, ela surge como fogo, porque é a essência pura do elemento fogo” (SOGYAL RINPOCHE,
1999, p. 354).
17  Com esses Budas (chamados de Dhiãni Buddhas), Divindades (Devatãs) e Lokas estão associados
certos kleshas, skandhas, elementos materiais e as cores. Outra observação que Sogyal Rinpoche faz é
que: enquanto as cores e elementos são elementos universais, os Budas são de origem Oriental hindu-
-budista, isso que dizer que, as visões vivenciadas no Bardo podem variar em função da cultura, por isso
um cristão verá Jesus entre as divindades pacíficas e entre as iradas verá demônios, abismos, de forma
que, o Bardo é determinado pelas ideias que o ser cultiva em vida.

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se fugires, ela te acompanhará inseparavelmente [de ti mesmo]. Não


a temas. Não te deixes atrair pela opaca luz vermelha do Preta-Loka.
Ela é o caminho de luz procedente das acumulações de tua intensa
afetividade [pela existência sangsãrica] que vem para receber-te. Se
te apegares a ela, cairás no Mundo dos Espíritos Infelizes e sofrerás
insuportável pena de fome e sede. Não terás chance de ganhar a Liber-
tação [ali]. Essa opaca luz vermelha é a interrupção para obstruir-te no
Caminho da Libertação. Não te deixes seduzir por ela, e abandona tuas
inclinações habituais. Não sejas fraco. Confia na brilhante e deslum-
brante luz vermelha. Põe tua confiança concentrando-a no Bhagavãn
Amitãbha, o Pai-Mãe, e ora assim: “Ai de mim! Quando perambular pelo
Sangsãra devido ao poder da intensa afetividade, No radiante Caminho
de luz da Sabedoria Discernente. Que [eu] seja guiado pelo Bhagavãn
Amitãbha. Que a Divina Mãe, Aquela de Trajes Brancos, seja [minha]
retaguarda. Que [eu] seja guiado com segurança através da perigosa
emboscada do Bardo; E que [eu] seja posto no estado do Todo-perfeito
Buda. Orando assim, humilde e fervorosamente, te fundirás no coração
do Divino Pai-Mãe, o Bhagavãn Amitãbha, no halo da luz arco-íris e atin-
girás o estado de Buda no Sambhogakãya, no Reino Oeste chamado
Feliz.” (EVANS-WENTZ, 2006, p. 89)

O Bard o D o R en a s ci m e n t o - S i d pa B a r d o
Se não for possível reconhecer as revelações do Chönyid, então o ser que se
percebia como luminosidade vai experienciar um estado de inconsciência até que
"acorde" no Sidpa Bardo18, nessa posição o ser habita um corpo mental. Este terceiro
bardo, também chamado de Ma Rigpa, onde o processo de dissolução é revertido,
"vêm os estados de pensamento relacionados com a ignorância, o desejo e a raiva.
Então, pelo fato de a memória do nosso corpo kármico passado estar ainda fresca
em nossa mente, tomamos um ‘corpo mental’.” (SOGYAL RINPOCHE, 1999, p. 362).
Quando o processo de renascimento começa, ou seja, a consciência começa a buscar
por uma representação material - o que também resulta no surgimento dos kleshas,
o ser começa a ter visões dos possíveis locais de renascimento e quanto mais se tor-
na familiar com os ensinamentos, a consciência poderá ter a capacidade de escolher
um local e também compreender o significado das revelações. "Alguns afirmam que
se você for renascer como um (...) animal, ver-se-á em uma caverna, um buraco no
chão ou um ninho feito de palha." (SOGYAL RINPOCHE, 1999, p. 371). O juízo tem
como mediador o Senhor da Morte que julga com a ajuda do espelho kármico os
feitos passados do ser. Por este motivo não é possível enganá-lo.

18  É importante citar a nota número 29: “Aqui é preciso não esquecer que todos os fenômenos ter-
ríveis e os infortúnios são inteiramente kármicos. Fosse o discípulo desenvolvido espiritualmente, sua
existência no Bardo seria tranquila e feliz desde o início e ele não teria errado tanto até aqui. O Bardo
Thödol se refere principalmente ao indivíduo comum e não aos seres humanos altamente desenvolvi-
dos, cuja morte liberta para a Realidade.” (EVANS-WENTZ, 2015, p. 126)

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Os seres que ainda não conseguiram se libertar do Bardo passarão pelas expe-
riências que irão determinar seu renascimento. Nessa fase, a influência dos kleshas
é crucial, por isso, o Bardo Thödol está sempre relembrando a importância do desa-
pego e do equilibro da mente, pois no Bardo qualquer pensamento tem influências.
O livro, então, revela duas possíveis soluções para este momento: prevenir o renas-
cimento através da libertação da mente ou, falhando nisto, o livro aponta para uma
melhor escolha no processo de renascimento, isto é, o bom nascimento, num dos
reinos superiores. Quanto mais tempo o ser permanece nesse estado, mais ansioso
fica para habitar um corpo, e fica tentado a renascer no primeiro lugar que percebe.
Existem quatro formas de nascimento de acordo com o Bardo Thödol: pelo ovo ou
pela matriz, o supranormal e pelo calor e umidade. Os nascimentos pelo ovo ou pela
matriz são chamados de “nascimento pelo germe”, que ocorrem nos reinos: humano,
no preta-loka ou mesmo no Inferno. O nascimento supranormal ocorre quando a
consciência migra entre um Loka e outro, como por exemplo, um ser humano evo-
luído espiritualmente que nasce entre os Budas ou os Devas, ou então um menos
evoluído que renasce entre os Pretas. A última forma de nascimento, pelo calor e
umidade, diz respeito ao nascimento no mundo vegetal.
Existem somente dois reinos perceptíveis aos olhos físicos dos seres humanos:
o reino humano e o reino dos brutos, dos animais. Os brutos são limitados pela ig-
norância e pelo instinto. Segundo o budismo, só é possível atingir o estado de ilumi-
nação no reino humano (guiado pelo desejo e posteriormente, superando-os), pois
temos a possibilidade de aprender e praticar o dharma - o que nos garante as condi-
ções necessárias para o progresso espiritual. Já o reino Naraka, é o mais baixo reino
da existência. Habitado por aqueles influenciados pelo klesha do ódio, é marcado por
intensa dor e sofrimento, o ser permanece neste até que seu karma seja “esgotado”.
O sentimento de raiva, aversão, culpa e remorso em conjunto com castigos - como
fome, sede e desmembramentos - são vivenciados por estes seres a maior parte do
tempo; por isso, acabam se tornando impotentes e não exibem esforços para tentar
escapar desta condição. Somente transcendendo a raiva esses seres podem trans-
mutar para uma próxima existência. Os infernos quentes (existem oito) são descritos
como sendo formados de grandes planícies e montanhas de ferro e fogo, cortados
por rios de metais derretidos. Já nos infernos gelados (que também possui oito está-
gios) a paisagem é formada apenas por gelo.
O reino dos pretas, conhecidos também como fantasmas famintos, são domi-
nados pelo apego. São descritos como seres com barrigas enormes - do tamanho de
montanhas – porém, com bocas muito pequenas e a garganta muito estreita, causan-
do um estado de extrema e constante fome. Eles estão fadados a sentir a ânsia da
busca por alimentos, mas quando encontram, não conseguem engolir. A fome, po-
rém, é alucinante o que os leva a insistir em ingerir alimentos - entretanto, nada que
eles comem os satisfaz, o que os leva à incessante busca por saciar esta fome. Estes
seres são assombrados pela ânsia de realizar seus desejos e somente transcenden-
do essa sensação, eles podem transmutar de sua condição. O reino dos semideuses,
onde moram os asuras, é regido pela inveja. Eles são seres ciumentos, paranóicos
e estão sempre buscando conflitos e brigas – principalmente com os seus vizinhos,

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os devas. No reino divino, que residem os devas, também há sofrimento. Apesar de


serem os seres mais idealizados, os devas também sofrem, estão apegados as suas
experiências prazerosas e são obscurecidos pelo orgulho. O devas possuem vidas
longas, comparada com a dos humanos, porém também estão sujeitos a morte, e
quando seu karma positivo acaba, podem renascer nos reinos inferiores de existên-
cia. O ser que se acomoda nesse reino falha por sua posição radical - a vida de prazer
- esquecendo qual o seu principal objetivo, que é a libertação do ciclo reencarnatório.

Con c lu s ão
A morte no budismo tibetano é encarada não só como um fato natural, mas
como uma relação íntima com a vida. A morte é serena, pois ela não é o final, também
não é o começo, ela é somente uma etapa de uma existência cíclica. Dessa forma, a
ideia hierárquica entre vida e morte é desconstruída. Os tibetanos incorporam em
seus rituais princípios da morte, como o Bardo Thödol, passando o aprendizado de
que a morte não é a finitude da essência do ser. A obra tem um grande valor sote-
riológico para a tradição do budismo tibetano, pois instiga a análise crítica acerca da
realidade, que é perceber a impermanência e a insubstancialidade dos fenômenos.
Entender o caráter teórico dessa aplicação é “simples”, mas seria somente com a
experiência da prática espiritual e da meditação que se pode colher os frutos desses
conceitos. O debate acerca da morte na cultura Mahãyãna envolve compreender
muito além de conceitos teóricos, ele incorpora uma dedicação ao aperfeiçoamento
da mente com práticas de meditação constante e uma vida dedicada à espiritualida-
de. O processo de expansão da consciência é eterno e quando, enfim, acredita-se
que chegou a verdade, o risco de estar errado é grande. Mas o budismo é assim, uma
incansável busca pela sabedoria.
Deste modo concluo que nada posso concluir. Considerando o processo de
morte onde o corpo físico passa pela desintegração de seus elementos até sua ex-
tinção biológica, o que o excede é a consciência... Mas o que representa essa consci-
ência? O que significa dizer que um ser se fragmenta em consciência? E se esta não
tem forma, o que é aquilo que vaga pelo bardo? Na verdade, o ser do bardo está no
estado de não-criado, um estado primordial de todo ser senciente, mas ele não per-
cebe sua própria natureza por ter uma ilusória sensação de ainda possuir um corpo,
resultado do karma que este acumulou em vida. Quando a "consciência" transmuta
para a luz - que é energia fluída - o ser contempla as deidades por um breve período
de tempo até que novamente se reduza a outra condição, onde o corpo que era de
luz torna-se um corpo mental - de desejo que anseia um nascimento. Dessa maneira,
a morte não deve ser percebida como um final - o retorno ao inorgânico - mas como
o início de uma nova existência, onde todo o movimento do bardo encontra-se no
caminho entre ela. Portanto, a morte não é encarada como simples decesso, mas
como a possibilidade de vida.

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Font e s
EVANS-WENTZ, W. Y. O Livro Tibetano dos Mortos. São Paulo: Pensamento, 2015.
SAMDUP, L. K. D. O Livro Tibetano dos Mortos. São Paulo: Hemus, 1983.

Ref er ên c ias b ib l i o g r á f i ca s
BERZIN, Alexander. A Expansão do Budismo na Ásia. Study Buddhism. Disponível em:
<https://studybuddhism.com/pt/budismo-tibetano/sobre-o-budismo/o-mundo-do-
-budismo/a-expansao-do-budismo-na-asia>. Acesso: 01 de mar. de 2020.
BERZIN, Alexander. Buddhism and Its Impact on Asia. Asian Monographs, no. 8. Cairo:
Universidade do Cairo, Centro de Estudos Asiáticos, 1996.
JUNG, C.G. Prefácio. In EVANS-WENTZ, W. Y. O Livro Tibetano dos Mortos. São Paulo:
Pensamento, 2015.
LEIS, Héctor Ricardo. A Sociedade dos Vivos. In: Sociologias, Porto Alegre, ano 5, n.9,
p. 340-353, jan/jun 2003.
RINPOCHE, K. T. The Clear Lights of the Buddha´s Teachings wich Benefits All Beings.
Shenpen Ösel, volume 2, n. 3, p. 2-63, dez 2005.
RINPOCHE, S. O Livro Tibetano do Viver e do Morrer. São Paulo: Palas Athena, 1999.
YOSHINORI, T. A Espiritualidade Budista Vol I. São Paulo: Perspectiva, 2006.

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