Bardo Thodol o Livro Dos Mortos Tibetano
Bardo Thodol o Livro Dos Mortos Tibetano
Bardo Thodol o Livro Dos Mortos Tibetano
Res u mo
Este artigo apresenta a concepção da morte dentro da cultura tibetana da escola
budista Mahayãna, apresentando os processos descritos no pós-morte pela leitura
da obra “O Livro Tibetano dos Mortos”, o Bardo Thödol. O foco principal do traba-
lho é apresentar o processo pelo qual o morto passa no bardo e seu processo de
transcendência. A morte no budismo tibetano também é uma oportunidade para
a libertação da ignorância, se em vida o indivíduo aprender – e meditar – acerca do
momento de confrontação com a morte e suas manifestações, ele poderá ter uma
visão mais fluída e natural da morte.
Pa lav r as - chav e
Morte; Bardo Thödol; Rituais de Morte; Budismo Tibetano; Livro dos Mortos Tibetano.
Abs t rac t
This article presents the concept of death within the Tibetan culture of the Buddhist
school Mahayãna, presenting the processes described in the post-death by reading
of the work "The Tibetan Book of the Dead", the Bardo Thodol. The main focus of the
study is to present the process by which the dead is in the bardo and its process of
transcendence. The death in Tibetan Buddhism also is an opportunity for the libe-
ration of ignorance, whether in life be learning - and meditate - about the time of
confrontation with death and its manifestations, it may have a more fluid and natural
death.
KEY WO RD S
Death; Bardo Thödol; Death Rituals; Tibetan Budism; Tibetan Book of the Dead.
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GAÎ A: Vol. 11, N. 1.
Int ro d u ç ão
O artigo será elaborado a partir de uma pesquisa bibliográfica, através de li-
vros, artigos científicos e revistas que tratam as temáticas de religião, história, cultura
entre outras. Será realizada uma pesquisa qualitativa para a condução dos estudos
com o objetivo de captar o significado e a intencionalidade das atitudes cultuais, das
crenças e dos rituais referentes ao Bardo Thödol e sua relação com a libertação na
morte. Assim, o estudo dispõe-se enquanto corpus descritivo, explicativo e interpre-
tativo das atitudes da espiritualidade daqueles que contemplam o livro enquanto
obra sapiencial. O modelo de análise será através da ciência da religião e do estudo
histórico, analisando as articulações entre as dimensões cultuais, rituais e sociais do
budismo tibetano, e como este constrói um conhecimento próprio sobre a morte. O
foco principal do trabalho é apresentar a jornada pelo qual o morto passa no bardo
e seu processo de transcendência, evidenciando a morte no budismo tibetano como
uma oportunidade para o encerramento do ciclo sangsárico.
O primeiro tradutor pós-moderno do Bardo Thödol para outro idioma foi o es-
tadunidense Evans-Wentz (1878-1965), em 1927. Para realizar a tradução, ele consul-
tou com um professor indiano de inglês, Kazi Dawa Samdup. Wentz foi influenciado
pelo orientalismo europeu e pela publicação do Livro Egípcio dos Mortos, resultado
da febre da egiptologia, e essa questão resultaram em alguns problemas para sua
tradução: primeiramente, durante a década de 20, os tibetanos eram muito fechados
a estrangeiros, por isso Wentz não conseguiu encontrar alguém mais instruído no
budismo que Samdup para ajudá-lo com a tradução. Outro problema seria o próprio
reducionismo orientalista de Wentz, que inclusive influenciou o titulo escolhido1, que
estaria buscando um paralelo com o texto egípcio.
B ud is mo
A origem do budismo data, aproximadamente, do século V AEC no Norte da
Índia. O primeiro mestre e instituidor do budismo foi Siddharta Gautama, o Buda2
Sakyãmuni, que foi um príncipe indiano que nasceu envolvido pela filosofia brâmane.
A filosofia budista é fruto da experiência religiosa de Siddharta quando este desperta
para a verdade sobre a realidade, sendo capaz de cessar a ignorância e o sofrimento.
Seus ensinamentos viajaram da Índia, primeiramente, para o Sudeste Asiático, para a
Ásia Central, e depois para o Tibete. De acordo com Alexander Berzin, os ensinamen-
tos budistas se embaralhavam às novas culturas que encontravam, cada lugar pos-
suía sua própria estrutura religiosa e seu próprio líder espiritual. Berzin destaca que
atualmente sobrevivem três escolas budistas principais: a Theravada que enfatiza a
1 O título literal do texto é Liberação por meio da Audição no Estado Intermediário.
2 Buddha (Buda) é todo ser que despertou para a verdade, deixando para trás todo sofrimento e ig-
norância para descobrir felicidade e paz permanentes. Uma pessoa não se torna e nem nasce um buda,
ela deixa aos poucos de viver na ilusão.
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Estes doze passos formam um ciclo que começa no sofrimento, que se trans-
forma em condição da ignorância e termina com o sofrimento da morte. Isso quer
dizer que o sofrimento – duhkha – é o efeito de qualquer existência sangsárica3. Foi a
tentativa de superar o sofrimento que guiou Siddharta a elaborar as Quatro Nobres
Verdades, são elas: 1) A verdade sobre o sofrimento – a existência é sofrimento, assim
como o desejo, o apego, a ignorância e o extenso ciclo do nascimento, velhice, doen-
ça e morte. Diante disso, o homem sofre porque se apega na permanência de coisas
que, na verdade, são efêmeras; 2) A verdade sobre a origem do sofrimento – a causa
do sofrimento é o desejo. Pois, a vontade de realizá-lo gera o karma4, que ocasiona
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no renascimento, e a existência no sangsãra, por isso se diz que este está ligado ao
desejo, ao apego e à permanência; 3) A verdade que leva a superação do sofrimento:
o meio de suprimir o sofrimento é pela aniquilação do desejo, o estado de nirvãna; 4)
A verdade sobre o caminho que leva à superação deste sofrimento: seguir o Caminho
do Meio5 através do Nobre Caminho Óctuplo.
Quem compreende a originação interdependente percebe a origem e a cessa-
ção do sofrimento, e também a vacuidade dele. E, se o sofrimento é “vazio” ele pode
se desconstruir até ser totalmente superado. Quando se fala em vazio, ou vacuidade,
no budismo para expressar a condição de possibilidade para a existência; ele não é
nada conhecido pela experiência da forma, ele é a possibilidade para as condições
das constantes transformações e a insubstancialidade dos fenômenos. Perceber o
vazio é Despertar – ser libertado da experiência – e não percebê-lo é a condição da
ignorância do sangsãra que é o plano da experiência finita. Entender o vazio é com-
preender a não dualidade, de forma que ele se encontra além dessas relações, pois é
a consciência livre de qualquer limitação. Não existe nenhum tipo de ser, ou conceito,
que fuja da determinação interdependente e da vacuidade, de forma que a vacuida-
de é a verdadeira natureza da realidade. O problema é que somente poucas pessoas
conseguem se tornar conscientes disso, pois a verdade sobre a interdependência
fica obscurecida pela noção de um sujeito permanente, resultado da atual condição
de ignorância.
A M o rt e e o R en a s ci m e n t o
A morte é um nascimento. No budismo, a existência é vista como uma roda
em constante movimento – reencarnacionismo – que segue as leis do sangsãra, cau-
sadora de sofrimento para todos os seres sencientes. De modo que, o ser nasce,
vive, adoece, morre, vaga pelo bardo6 e renasce. A morte não é o final inorgânico, é
somente o fim de um ciclo que dará origem a um novo. A morte dá início ao processo
do bardo, que possibilita o despertar ou marca o condicionamento do ser para um
próximo nascimento. A única forma de escapar deste ciclo é atingindo a Iluminação,
o estado de buda. O que é preciso aprender com os ensinamentos do Bardo Thödol é
que, quando a morte chega, é possível entrar em contato com a natureza da mente,
que também é a natureza de tudo, o vazio. Se a natureza da mente, que é o vazio,
é a natureza de tudo, todo o sofrimento, ignorância e felicidade foram criados por
ela. Assim como a vida e a morte não existem em outro lugar senão na essência da
- causando sofrimento.
5 A ideia proposta pelo Caminho do Meio aparece pela primeira vez no Sermão de Benares, o primeiro
sermão de Buda que é uma síntese de todo o conhecimento e forma para o caminho da iluminação,
onde ele coloca que o caminho para a libertação não está nos extremos, e sim no equilíbrio entre os
termos.
6 Bardo comumente é traduzido para estado intermediário entre a morte e o renascimento, mas na
realidade, nos confrontamos com os Bardos continuamente tanto na vida quanto na morte. Ele é na
verdade um estado de transição entre um ciclo e outro.
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Figura 1: A Roda da Vida da tradição do budismo tibetano no monastério de Kopan em Nepal, Ásia.
Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/861032022485257027/. Acesso 11/11/2019 às 09:40.
B a rd o Thö d o l
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como os que ainda irão morrer, vivenciaram o bardo. A passagem por este pode
ser negativa ou positiva8, tudo depende do "estado de espírito" em que a consciên-
cia se encontra no momento da morte, de forma que "nosso pensamento passado
determinou o nosso estado presente, e o nosso pensamento atual determinará o
nosso estado futuro; pois o homem é aquilo que ele pensa" (WENTZ, 2006). Por isso,
o Bardo Thödol, ou "O Livro dos Mortos Tibetano", é um guia para todos. Ele narra a
existência durante a estadia nos três seguintes bardos: Chikhai, Chönyid e Sidpa, com
duração de 49 dias solares9 ou até que a consciência transcenda e marca o período
do estado intermediário entre a morte e o renascimento. A tradução literal do nome
do livro, Bardo Tödrol Chenmo, que significa "Grande Liberação por Meio da audição
no Bardo”. O livro mostra a importância de conhecer a morte antes do momento de
confrontação, é preciso ter familiaridade com os ensinamentos do Bardo Thödol em
vida e com a prática espiritual - como a meditação, para que os ensinamentos desta
obra sejam aproveitados.
8 A passagem pode ser positiva se o morto consegue reconhecer as visões do Bardo e por isso não
às teme. Já os que ficam obscurecidos pelo mau karma creem que as alucinações são reais e as temem,
sofrendo variadas formas de torturas. Segundo o budismo tibetano existem objetos e entidades que
podem ser criados pela força do pensamento, são chamados de tulpa. Logo, tulpa é um pensamento
que chega a assumir forma material, física dessa forma a mente é capaz de criar um mundo de ilusão,
ela também pode criar qualquer objeto desejado.
9 Dias solares são os dias com duração de 24 horas, já dias de meditação são contados pelo tempo
que o praticante consegue repousar sua mente, por exemplo, o Chöniyd Bardo dura cinco dias de me-
ditação se um ser consegue manter a mente estável por 2 minutos, então sua experiência deste bardo
será de 10 minutos. Por este motivo, o Chikhai e o Chöniyd Bardo são sentidos de formas diferentes,
para aqueles que praticaram conseguem manter a mente estável e conseguem reconhece-los. Os leigos
sentem estes passando como um trovão, pois não conseguem repousar a mente. Por isso a técnica da
meditação é tão importante, para que no bardo o ser consiga manter a mente estável e consiga contro-
la-la, podendo escolher um bom renascimento, ou até mesmo atingir a Iluminação.
10 Padma Sambhava, chamado de Guru Rinpoche, é o fundador da escola tântrica Tibetana.
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livro é usado no Tibete como um manual de ritual fúnebre, que é ditado pelos lamas,
direcionado aos mortos. Foi traduzido na década de 20 Lama Kazi Dawa-Samdup e
o Dr. Evans-Wentz. C.G. Jung escreveu o prefácio do livro analisando seu conteúdo
do ponto de vista psicológico, onde ele escreve: “todo leitor sério forçosamente irá
perguntar-se se estes antigos e sábios lamas, afinal de contas, não poderiam ter
vislumbrado a quarta dimensão, arrancando assim o véu dos maiores mistérios da
vida” (JUNG, 2015). O livro é resultado de uma mistura da antiga religião Bön com o
budismo disseminado pelo mestre Padma Sambhava, que afirma ser possível morrer
de forma consciente e que, desta forma, é possível atingir a Iluminação no estado do
bardo.
Ele relata desde o momento de desconstrução (Chikai Bardo), onde retomamos
a verdadeira natureza da mente, depois, o momento da unidade que é o momento
de aliança com as divindades tutelares (Chönyid Bardo), até o momento final, o pro-
cesso de individualização (Sidpa Bardo). Então, o livro aconselha que o ser direcione
sua atenção para uma Clara Luz, que é a única verdade – a manifestação do vazio
– podendo assim, Despertar. É possível encontrar diferentes classificações para os
bardos, usarei a classificação de Sogyal Rinpoche: o primeiro é chamado de Rang
Bzhin Bardo, o Bardo Natural que marca o período entre o nascimento e a morte. O
segundo, chamado de Chikhai Bardo, trata sobre o momento da morte. Em seguida
o Chönyid Bardo que relata as ilusões kármicas do pós-morte e a confrontação com
a natureza da mente, e por último o Sidpa Bardo que relata o momento da "busca
por um renascimento". E dessa forma, o Bardo Thödol busca guiar o ser para escapar
desse movimento cíclico encarnatório e retornar11 ao estado puro da Iluminação.
O que distingue e define cada um dos bardos é que todos eles são
intervalos ou períodos em que a possibilidade do despertar está
particularmente presente. As oportunidades de liberação estão ocor-
rendo de maneira contínua e ininterrupta ao longo da vida e da morte.
(SOGYAL RINPOCHE, 1999, p. 144)
11 Retornar porque, primeiramente, a natureza da mente é o vazio, todos “viemos” dele. E atingir a
iluminação, seria o retorno a essa condição.
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no momento da morte, caso a separação do corpo não seja completada12. Sua men-
sagem central é que, não importa as visões ou aparições do pós-morte, o ser deve
passar em cada um dos bardos com total tranquilidade e estabilidade mental, e para
isso, precisa perceber que essas visões são criadas pela própria consciência13.
E ntão vem este Grande Thödol, que deve ser lido sete, ou três ve-
zes, segundo as circunstâncias. Em primeiro lugar, vem a confron-
tação com os sintomas da morte; em seguida, a viva recordação, a con-
frontação com a Realidade, durante o estado intermediário, e enfim, os
métodos para fechar as portas das matrizes quando, no estado inter-
mediário, o morto tenta renascer. (SAMDUP, 1983, p. 53)
O Bar d o d o s mo m e n t o s da M o rt e – C H I K H A I
BARDO
O período do Chikhai Bardo compreende do momento em que se contrai/de-
senvolve uma doença - ou outra condição, mesmo aquela vertiginosa, instantânea,
inesperada que ocasionará em sua morte - até o instante em que a Clara Luz se
manifesta. O processo de morrer pode ser muito doloroso, já que perder o corpo
e a vida pode ser muito custoso. No processo de morrer, existem sinais - mentais e
físicos - que marcam quando a morte está chegando, esse procedimento consiste
em duas etapas de desintegração que ocorrem tanto no corpo quanto na mente:
uma externa - que envolve os sentidos e os elementos - e outra interna - que inclui
os estados de pensamento. O corpo físico se desenvolve fundado na mente, que
compreende as qualidades dos cinco elementos e, por conta deste agregado - corpo/
mente - é possível ter a experiência do mundo exterior.
12 Quando a respiração do moribundo está prestes a cessar, é preciso coloca-lo na “Postura do Leão
Adormecido”, que ajuda a consciência a deixar o corpo pela abertura do topo da cabeça, deve-se deitar
a pessoa sobre o seu lado direito, a mão direita sob o queixo fechando a narina direita e a mão esquer-
da descansa na coxa esquerda. As pernas ficam levemente dobradas. Essa postura também ajuda no
reconhecimento da Clara Luz.
13 As manifestações do livro existem para todos, mas, sendo o conteúdo da mente maleável pela
cultura, as manifestações serão percebidas de formas diferentes. As visões descritas no livro são adap-
tadas à cultura tibetana, típicas dos costumes religiosos do povo. Dessa forma, os cristãos poderão ter
visões sobre o inferno ou o paraíso.
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Após a morte, todos esses elementos serão dizimados. Esse processo se revela
fisicamente no moribundo - como uma mudança na cor da pele, certo odor, mudan-
ças na respiração - e psicologicamente enquanto o ser enfrenta a morte. Durante
o processo da morte ocorre a dissolução - que está conectada com os canais de ar
e com os chakras - dos cinco elementos: terra, água, fogo, ar e consciência. A disso-
lução externa é o processo pelo qual os sentidos e os elementos se desintegram.
A primeira fase tem inicio quando os sentidos não podem mais ser vivenciados. O
segundo estágio da dissolução ocorre quando o elemento terra se dissolve em água.
Em seguida o elemento água se dissipa em fogo que se dilui dentro do elemento ar.
O quinto momento14 é quando o ar se desagrega na consciência. Nesta ocasião, po-
de-se dizer que o corpo morreu biologicamente.
Ao final da dissolução externa, quando nada mais pode obscurecer a verda-
deira natureza, ela finalmente pode se manifestar. O surgimento da Clara Luz15 no
momento da morte, e o seu reconhecimento como a natureza da sua mente, é a pri-
meira oportunidade de Libertação no plano pós-morte. A dissolução interna ocorre
quando o corpo físico morre e a consciência volta para o estado original. Reconhecer
a Clara Luz garante o estado de Buda no Dharmakãya, que é o estado perfeito de
Buda – além do sofrimento, da ignorância e dos fenômenos transitórios (forma, tem-
po e espaço).
14 Thrangu Rinpoche diz que neste ponto de dissolução, dependendo da ocasião da morte, ainda é
possível que o ser reviva. Porém, depois deste estágio o processo de dissolução física está completo,
dando inicio ao processo de dissolução interna. Ele também fala de mais um processo de dissolução –
dos constituintes que produziram o corpo, os três kleshas fundamentais: estupidez, luxúria e ira
15 A Clara Luz dura quanto tempo o ser conseguir repousar no estado da natureza da mente. Sogyal
Ripoche fala que “a vasta maioria não reconhece em absoluto a Luminosidade Base, e em vez disso mer-
gulha num estado de inconsciência que pode prolongar-se por até três dias e meio. (...) Era frequente
não mexer no corpo de uma pessoa comum antes dos passados três dias (...) acredita-se que se ele for
tocado em determinado lugar – por exemplo, ao aplicar-se uma injeção – a consciência pode ser des-
viada para esse ponto. Então a consciência do morto pode sair pela abertura mais próxima, ao invés de
sair pela fontanela, levando um renascimento infeliz.” (SOGYAL RINPOCHE, 1999, p. 337)
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O Bar d o Da Vivê n ci a Da Re a l i da d e –
CHÖNYID BARDO
Este bardo inicia-se quando o processo de dissolução externa foi completado.
Duas coisas importam no momento da morte: o que foi feito em vida - o karma - e o
estado em que a mente se encontra, dessa forma, o último pensamento ou emoção
que se tem antes de morrer, tem efeito no bardo; por isso também, é importante
que durante a leitura do Bardo Thödol os familiares ao redor do corpo não devem se
lamentar, pois podem causar sentimentos de apego, dificultando a jornada do morto
em seu processo sangsárico. Se o ser falhar em reconhecer a Clara Luz e for neces-
sário, por causa de seu karma, enfrentar o Chönyid Bardo, que acontecerá durante os
primeiros sete dias - o primeiro dia é contado a partir do momento que o ser percebe
que morreu que seria de três dias e meio a quatro dias após a sua morte. O morto
irá enfrentar as Divindades Pacíficas e, depois, entre, o oitavo ao décimo quarto dia,
ele confrontará as Divindades Iradas, todos esses dias também são chances para a
Libertação. Sogyal Rinpoche chama essas manifestações de divindades de "aspecto
energético” da natureza da mente. Deve-se manter em mente que, todas essas são
partes da natureza da própria mente, ou seja, elas não têm existência externa, se-
não em sua própria forma-pensamento. Conquanto, sem a estabilidade da prática
espiritual, os pronunciamentos neste estado podem parecer reais, ganhando assim
existência, personificando as emoções, tornando-as externas a mente, e como con-
sequência, a consciência é conduzida para a ilusão da existência sangsárica.
As quatro fases do Chönyid, que pertencem ao processo de dissolução interna
são: 1) Luminosidade: é a primeira etapa deste bardo, o ser, que antes habitava um
corpo físico, agora possuí um corpo de luz que se movimenta por um ambiente fluido
fabricado de som, luz e cor - que é a expressão natural das qualidades elementares
da mente: a terra é percebida como uma luz amarela, o ar como luz verde, o fogo
vermelha, a água como branca e o espaço azul. 2) União: novamente, por causa de
sua condição de ignorância, o ser continua a seguir pelo Bardo. O momento que
Riponche rotula de União é marcado pela união das luzes que originam Mandalas
com as quarenta e duas deidades pacíficas e as cinquenta e oito irritadas, onde a
luminosidade se manifesta na forma de budas ou deidades. Se o ser não consegue
reconhecer estas visões como manifestações de seu próprio pensamento, ele ainda
deve permanecer no bardo. 3) Sabedoria: manifestação dos aspectos das cinco sabe-
dorias16, que é o potencial para a Iluminação. 4) Presença espontânea: "Então, as dei-
dades pacíficas e iradas aparecem, seguidas pelos reinos puros dos budas, e abaixo
delas os seis reinos da existência samsárica. (...) A visão inteira, então, dissolve-se
retornando à sua essência original." (SOGYAL RINPOCHE, 1999, p. 351)
No Bardo Thödol, narra-se que essas deidades se anunciam por um período de
dias e que esse momento é uma oportunidade para a libertação ou para o renasci-
16 Os Dhiãni Buddhas são atributos da divindade absoluta, e são conhecidos como guias tutelares das
Cinco Sabedorias. A visão das Sabedorias Búdicas surge junto com a visão dos agregados e emoções
negativas (kleshas), isso porque essencialmente eles são a mesma coisa. “Tome como exemplo o que
se manifesta em nossa mente comum como um pensamento de desejo; se sua verdadeira natureza é
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reconhecida, ele surge livre do apego, como “Sabedoria do Discernimento”. (...) Assim, as cinco emoções
negativas emergem como resultado direto de reconhecermos a sua verdadeira natureza. Quando re-
conhecidas, são purificadas e liberadas, mostrando-se como nada menos que a manifestação das cinco
sabedorias. (...) Assim, por exemplo, se você deixou de reconhecer a luz vermelho-rubi da sabedoria do
discernimento, ela surge como fogo, porque é a essência pura do elemento fogo” (SOGYAL RINPOCHE,
1999, p. 354).
17 Com esses Budas (chamados de Dhiãni Buddhas), Divindades (Devatãs) e Lokas estão associados
certos kleshas, skandhas, elementos materiais e as cores. Outra observação que Sogyal Rinpoche faz é
que: enquanto as cores e elementos são elementos universais, os Budas são de origem Oriental hindu-
-budista, isso que dizer que, as visões vivenciadas no Bardo podem variar em função da cultura, por isso
um cristão verá Jesus entre as divindades pacíficas e entre as iradas verá demônios, abismos, de forma
que, o Bardo é determinado pelas ideias que o ser cultiva em vida.
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O Bard o D o R en a s ci m e n t o - S i d pa B a r d o
Se não for possível reconhecer as revelações do Chönyid, então o ser que se
percebia como luminosidade vai experienciar um estado de inconsciência até que
"acorde" no Sidpa Bardo18, nessa posição o ser habita um corpo mental. Este terceiro
bardo, também chamado de Ma Rigpa, onde o processo de dissolução é revertido,
"vêm os estados de pensamento relacionados com a ignorância, o desejo e a raiva.
Então, pelo fato de a memória do nosso corpo kármico passado estar ainda fresca
em nossa mente, tomamos um ‘corpo mental’.” (SOGYAL RINPOCHE, 1999, p. 362).
Quando o processo de renascimento começa, ou seja, a consciência começa a buscar
por uma representação material - o que também resulta no surgimento dos kleshas,
o ser começa a ter visões dos possíveis locais de renascimento e quanto mais se tor-
na familiar com os ensinamentos, a consciência poderá ter a capacidade de escolher
um local e também compreender o significado das revelações. "Alguns afirmam que
se você for renascer como um (...) animal, ver-se-á em uma caverna, um buraco no
chão ou um ninho feito de palha." (SOGYAL RINPOCHE, 1999, p. 371). O juízo tem
como mediador o Senhor da Morte que julga com a ajuda do espelho kármico os
feitos passados do ser. Por este motivo não é possível enganá-lo.
18 É importante citar a nota número 29: “Aqui é preciso não esquecer que todos os fenômenos ter-
ríveis e os infortúnios são inteiramente kármicos. Fosse o discípulo desenvolvido espiritualmente, sua
existência no Bardo seria tranquila e feliz desde o início e ele não teria errado tanto até aqui. O Bardo
Thödol se refere principalmente ao indivíduo comum e não aos seres humanos altamente desenvolvi-
dos, cuja morte liberta para a Realidade.” (EVANS-WENTZ, 2015, p. 126)
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Os seres que ainda não conseguiram se libertar do Bardo passarão pelas expe-
riências que irão determinar seu renascimento. Nessa fase, a influência dos kleshas
é crucial, por isso, o Bardo Thödol está sempre relembrando a importância do desa-
pego e do equilibro da mente, pois no Bardo qualquer pensamento tem influências.
O livro, então, revela duas possíveis soluções para este momento: prevenir o renas-
cimento através da libertação da mente ou, falhando nisto, o livro aponta para uma
melhor escolha no processo de renascimento, isto é, o bom nascimento, num dos
reinos superiores. Quanto mais tempo o ser permanece nesse estado, mais ansioso
fica para habitar um corpo, e fica tentado a renascer no primeiro lugar que percebe.
Existem quatro formas de nascimento de acordo com o Bardo Thödol: pelo ovo ou
pela matriz, o supranormal e pelo calor e umidade. Os nascimentos pelo ovo ou pela
matriz são chamados de “nascimento pelo germe”, que ocorrem nos reinos: humano,
no preta-loka ou mesmo no Inferno. O nascimento supranormal ocorre quando a
consciência migra entre um Loka e outro, como por exemplo, um ser humano evo-
luído espiritualmente que nasce entre os Budas ou os Devas, ou então um menos
evoluído que renasce entre os Pretas. A última forma de nascimento, pelo calor e
umidade, diz respeito ao nascimento no mundo vegetal.
Existem somente dois reinos perceptíveis aos olhos físicos dos seres humanos:
o reino humano e o reino dos brutos, dos animais. Os brutos são limitados pela ig-
norância e pelo instinto. Segundo o budismo, só é possível atingir o estado de ilumi-
nação no reino humano (guiado pelo desejo e posteriormente, superando-os), pois
temos a possibilidade de aprender e praticar o dharma - o que nos garante as condi-
ções necessárias para o progresso espiritual. Já o reino Naraka, é o mais baixo reino
da existência. Habitado por aqueles influenciados pelo klesha do ódio, é marcado por
intensa dor e sofrimento, o ser permanece neste até que seu karma seja “esgotado”.
O sentimento de raiva, aversão, culpa e remorso em conjunto com castigos - como
fome, sede e desmembramentos - são vivenciados por estes seres a maior parte do
tempo; por isso, acabam se tornando impotentes e não exibem esforços para tentar
escapar desta condição. Somente transcendendo a raiva esses seres podem trans-
mutar para uma próxima existência. Os infernos quentes (existem oito) são descritos
como sendo formados de grandes planícies e montanhas de ferro e fogo, cortados
por rios de metais derretidos. Já nos infernos gelados (que também possui oito está-
gios) a paisagem é formada apenas por gelo.
O reino dos pretas, conhecidos também como fantasmas famintos, são domi-
nados pelo apego. São descritos como seres com barrigas enormes - do tamanho de
montanhas – porém, com bocas muito pequenas e a garganta muito estreita, causan-
do um estado de extrema e constante fome. Eles estão fadados a sentir a ânsia da
busca por alimentos, mas quando encontram, não conseguem engolir. A fome, po-
rém, é alucinante o que os leva a insistir em ingerir alimentos - entretanto, nada que
eles comem os satisfaz, o que os leva à incessante busca por saciar esta fome. Estes
seres são assombrados pela ânsia de realizar seus desejos e somente transcenden-
do essa sensação, eles podem transmutar de sua condição. O reino dos semideuses,
onde moram os asuras, é regido pela inveja. Eles são seres ciumentos, paranóicos
e estão sempre buscando conflitos e brigas – principalmente com os seus vizinhos,
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Con c lu s ão
A morte no budismo tibetano é encarada não só como um fato natural, mas
como uma relação íntima com a vida. A morte é serena, pois ela não é o final, também
não é o começo, ela é somente uma etapa de uma existência cíclica. Dessa forma, a
ideia hierárquica entre vida e morte é desconstruída. Os tibetanos incorporam em
seus rituais princípios da morte, como o Bardo Thödol, passando o aprendizado de
que a morte não é a finitude da essência do ser. A obra tem um grande valor sote-
riológico para a tradição do budismo tibetano, pois instiga a análise crítica acerca da
realidade, que é perceber a impermanência e a insubstancialidade dos fenômenos.
Entender o caráter teórico dessa aplicação é “simples”, mas seria somente com a
experiência da prática espiritual e da meditação que se pode colher os frutos desses
conceitos. O debate acerca da morte na cultura Mahãyãna envolve compreender
muito além de conceitos teóricos, ele incorpora uma dedicação ao aperfeiçoamento
da mente com práticas de meditação constante e uma vida dedicada à espiritualida-
de. O processo de expansão da consciência é eterno e quando, enfim, acredita-se
que chegou a verdade, o risco de estar errado é grande. Mas o budismo é assim, uma
incansável busca pela sabedoria.
Deste modo concluo que nada posso concluir. Considerando o processo de
morte onde o corpo físico passa pela desintegração de seus elementos até sua ex-
tinção biológica, o que o excede é a consciência... Mas o que representa essa consci-
ência? O que significa dizer que um ser se fragmenta em consciência? E se esta não
tem forma, o que é aquilo que vaga pelo bardo? Na verdade, o ser do bardo está no
estado de não-criado, um estado primordial de todo ser senciente, mas ele não per-
cebe sua própria natureza por ter uma ilusória sensação de ainda possuir um corpo,
resultado do karma que este acumulou em vida. Quando a "consciência" transmuta
para a luz - que é energia fluída - o ser contempla as deidades por um breve período
de tempo até que novamente se reduza a outra condição, onde o corpo que era de
luz torna-se um corpo mental - de desejo que anseia um nascimento. Dessa maneira,
a morte não deve ser percebida como um final - o retorno ao inorgânico - mas como
o início de uma nova existência, onde todo o movimento do bardo encontra-se no
caminho entre ela. Portanto, a morte não é encarada como simples decesso, mas
como a possibilidade de vida.
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GAÎ A: Vol. 11, N. 1.
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