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Relatório Final - Parte 1

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Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho”

Faculdade de Ciências e Letras


Campus de Assis

Relatório Final de Iniciação Científica

A CONSTITUIÇÃO DIALÓGICA DE FRANKENSTEIN:


ressignificações da existência humana em Penny Dreadful

Jonathan Eliã de Almeida Nunes

Orientação: Luciane de Paula

Assis
2018

1|P ági na
Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho”
Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Assis

Relatório Final de Iniciação Científica

A CONSTITUIÇÃO DIALÓGICA DE FRANKENSTEIN:


ressignificações da existência humana em Penny Dreadful

Jonathan Eliã de Almeida Nunes


Relatório Final de Iniciação Científica
FAPESP – Processo Número
2017/27202-3

Orientação: Luciane de Paula

Assis
201

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RESUMO
O projeto propõe analisar, fundamentados nos estudos da filosofia da linguagem bakhtiniana, a
construção de imagens frankensteinianas (por meio do nascimento dos sujeitos Victor
Frankenstein, Caliban – mais tarde auto proclamado como John Clare – Proteus e Lily na relação
que possuem entre si) existentes na série Penny Dreadful (2014), em diálogo (intertexto e
interdiscurso) com o romance Frankenstein (1818), de Mary Shelley. Para isto, serão mobilizados
os conceitos de sujeito, ideologia e enunciado, postulados no interior do Círculo de Bakhtin,
Medvedev e Volochinov. O objetivo é compreender como o sujeito é constituído por contrários
contraditórios – bem e mal, morte e vida, luz e sombras – não de maneira dicotômica, mas
ambivalente e, com isso, perceber o quão humano é cada Frankenstein e o quão frankensteiniano
é o homem – essa é a relevância desta proposta de estudo. Nesse sentido, arte e vida se
entrecruzam por meio dos valores que constituem os enunciados, de maneira refletida e refratada,
sem finalização, mas com acabamento estético. A hipótese é a de que a interdiscursividade e a
intertextualidade são os traços arquitetônicos composicionais autorais da série e que, por meio
deles, a essência frankensteiniana humana contrária contraditória se constitua e explicite
materialmente na linguagem. Trata-se de uma pesquisa qualitativa de natureza bibliográfica. O
método a ser utilizado é o que Volochínov denomina de sociológico, por cotejo, com etapas de
descrição, análise e interpretação.

Palavras-chave: Ideologia; Bakhtin; Dialogismo; Penny Dreadful; Frankenstein.

3|P ági na
ABSTRACT
The project proposes to analyze, based on studies of the Bakhtinian’s Philosophy of Language
perspective, the construction of Frankenstein’s images (through the birth of the characters Victor
Frankenstein, Caliban - later self-proclaimed as John Clare - Proteus and Lily in the relation they
have among each other) in the TV Show Penny Dreadful (2014). This project also stablishes a
dialogue (intertext and interdiscursive) with the novel Frankenstein (1818), of Mary Shelley. To
achieve this, the concepts of subject, ideology and statement, postulated within the Circle of
Bakhtin, Medvedev and Volochinov, going to be mobilized. The aim is to understand how the
subject is constituted by contradictory opposites - good and evil, death and life, light and shadows
- not as a dichotomous but ambivalent way, and from this to realize how human is each
Frankenstein and how Frankenstein is the (hu)man - this is the relevance of this study proposal.
To that art and life intersect through the values that constitute the utterances, in a reflected and
refracted way, without completion, but with aesthetic finishing. The hypothesis is that
interdiscursivity and intertextuality are the architectural compositional style of the series and that,
through them, the contrary human Frankensteinian essence being constitute and explicated
materially in language. This is a qualitative and bibliographic research. The method to be used is
what Volochínov calls sociological, by comparison, with stages of description, analysis and
interpretation.

Keywords: Ideology; Bakhtin; Dialogism; Penny Dreadful; Frankenstein

4|P ági na
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: OS RELÂMPAGOS LIGAM AS MÁQUINAS............ 6

1. OS PEDAÇOS QUE COMPÕEM O CORPO, CONTEXTOS, INTERTEXTOS E

INTERDISCURSOS...............................................................................12

1.1 AS CRIAÇÕES E OS DIÁLOGOS, CONTEXTO DE PRODUÇÃO DA SÉRIE PENNY

DREADFUL...........................................................................15

1.2 AS NUANCES QUE COMPÕE OS HOMENS, A ESTRUTURA DAS

PERSONAGENS...........................................................23

1.3 OS FILHOS DE FRANKENSTEIN, AS CRIATURAS DE PENNY

DREADFUL................................................37

1.4 O DISCURSO FRANKENSTENIANO NA MODERNIDADE LÍQUIDA........53

2. A LINHA QUE COSTURA O CORPUS, SUBSÍDIO TEÓRICO BAKHTINIANO..................73

2.1 OS RETALHOS ALÉM DE SI, LINGUAGEM E ENUNCIADO....................74

2.2 A CARTILAGEM DESTE CORPO, A IDEOLOGIA.............................81

2.3 SUJEITOS, AUTORES, PESSOAS E CRIADORES..........................................86

3. O CORAÇÃO QUE COMPASSA NOSSOS ANDARES AMBÍGUOS, CAPÍTULO DE

ANÁLISE................... 91

3.1 EIXO DA CRIAÇÃO E FRAGMENTAÇÃO: HOMENS-DEUSES, DEUSES-HOMENS,

MÁQUINAS-DEUSES, DEUSES-MÁQUINA E SEUS NOMES................................92

CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................222

REFERÊNCIAS................................................................................................217

DESCRIÇÃO DAS ATIVIDADES REALIZADAS.....................................220

ANEXOS...........................................................................................................221

5|P ági na
INTRODUÇÃO: OS RELÂMPAGOS LIGAM AS MÁQUINAS

O acontecimento que cindiu o imaginário literário o qual até à contemporaneidade


circunda a temática da humanidade foi, como escreveu Mary Shelley pelos olhos de seu
Doutor Victor Frankenstein, em uma noite sombria de novembro. Nesta noite, a criatura,
antes troféu de um doutor que aspira a onipotência, revelou-se, aos olhos de seu pai, uma
monstruosidade. Como é possível? Membros humanos, motivações apoteóticas, mas
resultados demoníacos. Este é o nascimento, também, de nossa reflexão. O que
caracteriza o traço humano no qual é afirmado ser inerente à nossa natureza? São os ossos,
carnes e cartilagens que nos une, funde-nos na vã impressão de sermos uma peça só, e se
putrefazem ao parar do coração? No ângulo racional, denomina-se desta forma nossa
espécie, humana. No entanto, para além dos catálogos positivistas e biológicos, o que nos
resta? Esta é a palavra: restos. Ou, melhor, pedaços, fragmentos. Defendemos que a
complexidade que nos habita reside nos fragmentos, capítulos, ruínas, que nos
constituem. Modificamo-nos com o mundo e o modificamos, refletimos e refratamos,
somos arte e vida, as quais se, e nos, semiotizam, em nossa singularidade. O chamado
Círculo de Bakhtin expressa em seus escritos que não somos fechados, inóspitos à voz
alheia, pelo contrário, constituímo-nos na voz do outro. Somos vários eus que não se
finalizam, mas alteram-se e fazem parte de mim, inconclusos e singulares como são, como
somos.

A proposta desta pesquisa consiste em refletir sobre estas e outras questões que
não são caras apenas a nós, mas para o escopo teórico do Círculo de
Bakhtin/Medviedév/Volochínov, como é conhecido aqui no Brasil. A obra de Mary
Shelley é lida, relida, republicada e, principalmente, ressignificada com o passar do tempo
em enunciados constituídos de forma intertextual e/ou interdiscursiva, como é o caso da
série Penny Dreadful (2014), objeto de análise desta pesquisa. A partir dos teóricos
supracitados e outros, refletiremos acerca da complexidade humana que reside nas
interações, laços, construídos entre os homens e que se apresenta na constituição das
personagens da série televisiva. O homem com o próprio homem, Criaturas e criador,
Victor Frankenstein, seus filhos e nós, proles da pós-modernidade.

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Refletiremos acerca da ambivalência humana que permeia e constitui as relações
do homem com o próprio homem, de Victor e seus anjos caídos, a fim de entender como
estes aspectos não se separam, excluem-se, como em um movimento dialético, mas
coabitam o homem, revelam-se dialético-dialógico na concretude do Ser, a qual, para
Bakhtin, exige a presença do outro, não como seu contrário, mas como seu constituinte.
Como abordaremos ao decorrer da pesquisa, a série estabelece diversos diálogos com
outros enunciados, obras, sujeitos, que são referenciados e ressignificados, na série, de
forma singular como o próprio Van Helsing e Drácula, de Bram Stocker e Dorian Gray,
de Oscar Wilde. Ao decorrer da pesquisa, trabalharemos os personagens delimitados – os
quais se referem a Victor Frankenstein e suas criaturas – em interação e, por cotejo, outros
sujeitos que compõem a trama da série.

Neste profundo oceano na qual a série nos faz mergulhar, a escolha dos episódios
se deve ao acontecimento comum que ocorre nos três: o nascimento das criaturas criadas
pelo doutor Victor Frankenstein. Como um enunciado singular, nossa hipótese é a de que
a série televisiva é uma resposta à obra de Shelley, consideramos Frankenstein e seus
filhos como diálogo intertextual e interdiscursivo com a obra de Mary Shelley (1818).
Seus personagens, portanto, são unidades, únicas, nesta cadeia discursiva e se apresentam
como figuras ressignificadas, irrepetíveis, mas que nos trazem, mais uma vez, à temática
da humanidade e monstruosidade. O que (re)significa, afinal, o que é ser homem e ser
monstro, divino e profano. O que significa ser Frankenstein e criatura, principalmente, na
contemporaneidade? Podemos encontrar este reflexo frankensteniano em Quasímodo,
Edward Mãos de Tesoura e, também, principalmente, no homem contemporâneo.1

Nossa hipótese é a de que somos criaturas e criadores, esta ambivalência humana


que se revela a partir das materialidades próprias de seu gênero – série televisiva – está
presente na constituição do próprio ser humano, seja do homem pastoril – representada
nos poemas de Keats, nos quais a criatura Caliban faz referência na série – ou, então, no
homem 2.0 presente em Black Mirror, que fez da tecnologia o seu próprio criador,
consolidando uma relação de interdependência que, no início, representava a apoteose, o
discurso tecnológico, cientificista, mas que se revelou monstruosidade pois o próprio
homem se tornou criatura da máquina que criou. Esta questão também faz parte do cerne
desta pesquisa, verificar um suposto discurso frankensteniano que não permeia apenas os

1
No capítulo 1.4, discutiremos de forma aprofundada acerca do discurso frankensteniano

7|P ági na
personagens fictícios, mas o homem concreto, entrelaçando arte e vida, não como campos
paralelos, mas como unidade na responsabilidade do meu Ser. Queremos pensar neste
“homem concreto” que também é líquido e se liquefaz.

Esta é a problemática e a relevância apresentada em nosso trabalho a qual está em


harmonia com a Filosofia da Linguagem na perspectiva Bakhtiniana. A partir destas
questões é que pensaremos como esta ambivalência e, também, como o
frankenstenianismo se dá na vida, na construção do homem que existe no mundo como
enunciado concreto, a qual se faz na e pela linguagem, homem expressivo, vivo, que não
se limita à perspectiva sistêmica, em um objetivismo abstrato. Outra questão fundamental
para este trabalho é de que esta complexidade humana, que permeia as personagens,
revela-se, para nós, telespectadores, em suas materialidades sincréticas – o ângulo de
câmera, o jogo de luz e sombra, as expressões faciais, entonação da voz, trilha sonora,
entre outros –, elas constituem esta arquitetônica e concretizam o projeto de dizer destes
enunciados. Diferente da obra literária, não estamos lidando apenas com a dimensão
verbal, das palavras, mas trata-se de uma produção cinematográfica, dotada, em sua
arquitetônica enunciativa, de outras materialidades para além do verbal como, também, o
visual e o vocal2.

Para nós, como foi exposto anteriormente, não existe apenas uma criatura, são
criaturas e elas não estão, assim como os outros enunciados nos quais trabalharemos
neste trabalho, separadas em pequenas caixas para podermos analisarmos ao decorrer dos
capítulos, moldando-as às concepções que nos agrada. Não é disto que se trata o Círculo
de Bakhtin. O que há não são limites, trincheiras, mas caminhos abertos, livres, que se
relacionam, dialogam, e este termo é de extrema importância para nosso trabalho, pois ao
discutirmos sobre as concepções desenvolvidas pelos autores russos, principalmente
sobre o método nas ciências humanas, esta é a pedra toque do Círculo. Na obra Notas
sobre literatura, cultura e ciências humanas (2017), Bakhtin pontua que “O objeto das
ciências humanas é o ser expressivo e falante. Esse ser nunca coincide consigo mesmo e
por isso é inesgotável em seu sentido e significado.” (p.59), isto é, o objeto das ciências
humanas não coincide consigo porque não está finalizado em si, mas se faz necessário a

2
No capítulo 2.1, intitulado “Os retalhos além de si, linguagem e enunciado” na página “(vou colocar ao
final a página respectiva”, trataremos de forma mais aprofundada sobre o conceito de
verbivocovisualidade

8|P ági na
presença da compreensão ativa do outro, do diálogo. O Círculo não trata o objeto de
análise, o enunciado, como coisa, alheia à realidade e existência, com seu conteúdo estrito
e acabado, antes, aborda-se o objeto de análise como um pequeno fio em um emaranhado
de outros enunciados, sujeitos, vozes em movimentos, as quais estão amarradas e não se
pode abordá-las sem tomar nota do diálogo que estabelecem entre si, não há uma síntese
nesta relação dialética, mas um diálogo ininterrupto entre enunciados. O Círculo
considera o enunciado como um “elo na corrente complexamente organizada de outros
enunciados” (BAKHTIN, 2011, p.272), partícula de comunicação que passa a constituir
seu sentido a partir da compreensão ativa do outro e não pode ser separado da vida, uma
vez que o ato de enunciação se refere diretamente à um sujeito situado sócio
historicamente a qual se posiciona, marca o mundo, a partir da linguagem.

Para o Círculo, não podemos dissociar a linguagem da ideologia, o signo


linguístico não se constitui apenas de seus elementos formais que Saussure aborda na obra
Curso de Linguística Geral (1916), em uma realidade sistêmica. Os signos linguísticos
que, para Saussure, constitui-se em significante e significado, realizam-se na realidade
material, refletindo e refratando esta e outras realidades, pode-se ser fiel ou, então, alterar-
se, de acordo com a perspectiva do sujeito que se posiciona esteticamente na existência.
Os signos carregam em si aspectos valorativos que espelham e constituem os sujeitos que
vivem nos meios sociais organizados. Em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2017),
Bakhtin pontua que “Onde há signo há também ideologia. Tudo o que é ideológico possui
significação sígnica” (BAKHTIN, 2017, p.93).

É condição sine qua non abordar o signo que, diferente do estudo sistêmico,
apresenta uma terceira via: signo como parte de uma realidade material a qual o sujeito
historicamente situado se posiciona em relação a si e ao outro, portanto, além de ser parte
material, apresenta-se também na condição sócio-histórica e, também, signo como parte
da realidade do sujeito que se posiciona. Realidade sócio-histórico, língua sistêmica e,
como cartilagem, em movimento constante, a ideologia. É sempre por meio da interação,
do diálogo (é preciso sempre pontuar este termo em nosso trabalho) que o processo de
significação se concretiza nos trabalhos do Círculo. É, nesta interação social, que
defendemos o método sociológico, abordado por Volochinov no escrito Discurso na vida
e Discurso na arte, pois o material linguístico faz parte da realidade histórico-social,
constitui seu sentido em uma relação que extrapola o somente linguístico em um contexto

9|P ági na
“extraverbal”, a língua não está alheia à realidade histórica, pelo contrário, seu sentido é
constituído na e a partir dela. Como Volochinov escreve,

a situação extraverbal não é tão somente a causa externa da enunciação,


nem atua sobre esta como uma força mecânica externa. Não; a situação
forma parte da enunciação como a parte integral necessária de sua
composição semântica (VOLOCHINOV, XXX, p.79).

Além do método sociológico, o trabalho se fundamenta no chamado método


dialético-dialógico. Ao abordar as ciências humanas e o caráter dialógico desta, Bakhtin
escreve que

Um texto só tem vida contatando com outro texto (contexto). Só no


ponto desse contato de textos eclode a luz que ilumina retrospectiva e
prospectivamente, fazendo dado texto comungar no diálogo.
Salientemos que esse contato é um contato dialógico entre textos
(enunciados) e não um contato mecânico de ‘oposição’, só possível no
âmbito de um texto (mas não do texto e dos contextos) entre os
elementos abstratos (os signos no interior do texto) e necessário apenas
na primeira etapa da interpretação (da interpretação do significado e não
do sentido). (BAKHTIN, 2017, p.67)

Entende-se o texto, portanto, como dialógico e não, tão somente, dialético, ao que
Bakhtin irá se referir como “dialética monológica” (ibidem, p.67) em referência às
concepções de Hegel. Dialética, para o Círculo, é um movimento que não elimina,
encerra, a existência do outro na constituição do eu. Este eu que existe para mim, existe
como uma das facetas da alma a qual não têm em si um horizonte concluso, acabado, pois
é na atividade social e dinâmica entre o eu e o outro que o sujeito se constitui. A relação
dialética, para Bakhtin, difere-se da hegeliana a qual o eu vem a declarar morte ao outro,
exclui-se o caráter dialógico, há um afastamento a qual resulta em uma síntese sintética
de mão única, já que o Ser depende da condição do não-Ser para se concretizar. Para
Bakhtin, este Ser não é tecido pela ausência, mas, principalmente, pela presença do outro
em uma relação de alteridade, a qual o outro se posiciona valorativa e esteticamente.
Temos, portanto, o caráter dialético, mas que não se encerra na síntese, antes temos a
compreensão ativa do outro, produzindo, assim, sentidos novos, refratados no signo, em
um movimento ininterrupto e inconcluso, tenso e contraditório, (re)velando novos
enunciados. É necessário pontuar, portanto, que para o Círculo de Bakhtin, não estamos

10 | P á g i n a
falando de juízos sintéticos, abstratos e tão somente teóricos, concepções que se afastam
da realidade valorativa, mas do homem que vive, atua e interage e se constitui na e pela
linguagem, de forma dinâmica e mutável, como é a própria essência da linguagem. É
nesta perspectiva que pontuamos o método como dialético-dialógico.

A premissa do conceito dialógico é o embate, confronto de vozes e dos sistemas


valorativos que revelam o posicionamento axiológico do sujeito situado sócio, ideológica
e historicamente. O método nas ciências humanas, para Bakhtin, seja quando abordamos
as relações entre os sujeitos ou objetos, um com o outro ou entre si, tem como base,
portanto, o diálogo a qual reflete este caráter inconcluso, dinâmico. Encontramo-nos aí,
neste mar profundo. Estruturamos este texto em cinco seções: a introdução, a qual
apresenta as considerações iniciais e as questões que pretendemos abordar no desenvolver
do projeto; o primeiro capítulo (1), no qual nos debruçaremos sobre o contexto histórico
da produção da série Penny Dreadful, assim como seu enredo, temáticas abordadas ao
desenrolar da(s) trama(s), sua relação com a literatura e seu caráter interdiscursivo e
intertextual; o segundo capítulo (2) consiste na seção teórica, na qual desenvolveremos
os conceitos de sujeito, estética, enunciado, verbivocovisualidade e signo ideológico; o
terceiro capítulo (3), será de análise, verificamos e relacionaremos com o aporte teórico
do Círculo, como a complexidade humana na constituição das personagens delimitadas,
nos respectivos episódios, revela-se na arquitetônica da obra, em torno das concepções
de normalidade e monstruosidade; também verificaremos como discurso frankensteniano
permeia o enunciado e se revela em suas diferentes materialidades verbivocovisuais; e,
ao final da análise, teremos as considerações finais, na qual pesaremos e pensaremos
sobre o projeto, suas criaturas e seus frutos.

11 | P á g i n a
1. OS PEDAÇOS QUE COMPÕEM O CORPO, CONTEXTOS, INTERTEXTOS E
INTERDISCURSOS

Ao produzir o capítulo de contextualização histórica, não buscamos apenas


pontuar datas frias. Como já dito, não é disto que se trata Bakhtin. Não há como separar
arte e vida e não adotamos aqui uma abordagem indiferente e mecanizada, mas como
Mikhail Bakhtin propõe em arte e responsabilidade (2003), assumimos uma postura
dialógica, acreditamos que os diversos campos da atividade humana (ciência, arte e a
vida) não estão apartados, mas compreendemos estes na unidade de nossa
responsabilidade. Posicionamo-nos, neste trabalho, de forma responsiva e responsável ao
objeto de análise proposto. No item anterior nós contextualizamos as narrativas e
representações frankenstenianas que se cruzam ao decorrer da série televisiva Penny
Dreadful, nosso objeto de reflexão. No entanto, para nós, esta complexidade humana que
perpassa as personagens não se encontra apenas em obras fictícias apartadas da realidade.
Pelo contrário, é em uma proposta dialético-dialógica que reafirmamos arte e vida como
matéria constitutiva na unicidade de nosso Ser. Acreditamos que a obra literária, a arte
em si, tem um potencial dialógico elevado, permitindo-nos traçar relações entre
enunciados, a qual se interligam em uma cadeia enunciativa e entre enunciado e sujeito,
arte e vida, uma vez que o homem tem sua “realidade”, suas convicções, enfim, mediadas,
refletidas e refratadas na linguagem.

Em regra geral, é dito que os conceitos bakhtinianos têm como alicerce o conceito
de dialogia e, mais que isso, não podemos separá-los, desmembrá-los, pois estes se
(co)mplementam na arquitetônica composicional dos escritos dos autores russos. A obra
de arte, para o círculo, não é um objeto imanente, centrado em si. O Círculo critica essa
mecanização e chama o sujeito para assumir a responsabilidade pelos seus atos. Devemos

12 | P á g i n a
agir de forma responsiva e responsável – tanto pelo que falo quanto ajo, pois, também,
nossas palavras e ações são respostas a outros atos, ações, enfim, elementos e enunciados
que atravessam, permeiam e, assim, compõem meu lugar único na existência em forma
de signos ideológicos. Sobre a obra de arte, Volochínov escreve que

A arte também é eminentemente social. O meio social extra-artístico, a


influenciar a arte desde o exterior, encontra nela uma resposta imediata
e interna. Na arte, o que não é alheio atua sobre o alheio, e uma
formação social influência sobre oura. (p.74)

Não encaramos a arte, portanto, como coisa fechada. Pelo contrário, ao falar de
arte, entendemos que a composição valorativa (leia-se estética) da obra de arte conta com
a atuação de uma consciência intitulada de “autor-criador”, diferente do autor pessoa, a
qual caracteriza-se por ser, de fato, homem, autor empírico, de carne e ossos, o autor-
criador é uma instância discursiva que enxerga, de seu ponto distanciado, o todo da
personagem. A partir do excedente de visão, o autor organiza esse conteúdo e se posiciona
valorativamente em relação ao enunciado, esse posicionamento do autor criador, esta
“assinatura”, é também conhecida como estilo autoral. Trata-se de um recorte
enunciativo, social, que apenas o homem historicamente e socialmente situado pode
realizar. A vida, portanto, é matéria artística para a obra de arte e a arte, em contraponto,
refletindo e refratando a vida, altera-a, exige que os sujeitos se posicionem. Defendemos
que a literatura, portanto, representa o homem pois como Pavél Nikoláievitch Medviédev,
na obra intitulada O Método Formal nos Estudos Literários (2012),

A literatura, em seu ‘conteúdo’, reflete e refrata as reflexões e as


refrações de outras esferas ideológicas (ética, cognitiva, doutras
políticas, religião, e assim por diante), ou seja, a literatura reflete, em
seu ‘conteúdo’, a totalidade desse horizonte ideológico do qual ela faz
parte (p.60)

E, mais a frente, o autor pontua que


O homem, na sua vida e destino, seu ‘mundo interior’, sempre refletidos
pela literatura dentro do horizonte ideológico; tudo, aqui, realiza-se no
mundo de parâmetros e valores ideológicos. O meio ideológico é a
única ambiência na qual a vida pode realizar-se como objeto da
representação literária (ibidem, p.60)

13 | P á g i n a
Penny Dreadful partirá da literatura para a construção de seu enredo e estes dois
enunciados (o livro e a série), em diálogo com outros, nos trarão a ideia do que chamamos
de um discurso frankensteniano, do homem deslocado, à margem, o qual sente o peso de
morar em uma bolha “edênica” como condição imposta. É disto que se trata o discurso
frankensteniano e verificaremos como este discurso permeia esferas diversas de produção
enunciativa.

Como pontuamos no capítulo de introdução, o ponto basilar que marca as


concepções destes autores russos é o caráter dialógico presente em seus conceitos.
Nenhum enunciado é fechado, acabado, assim como o homem também não se encerra em
si, mas responde ativamente à palavra do outro. Para o Círculo, o diálogo é constituído a
partir da, ao menos, interação entre duas enunciações. Bakhtin, na obra Notas sobre
literatura, cultura e ciências humanas escreve que

(...) todas as palavras (enunciados, produções de discurso e


literárias), além das minhas próprias, são palavras do outro. Eu
vivo em um mundo de palavras do outro. E toda a minha vida é
uma orientação nesse mundo é reação às palavras do outro (...)
(p.38)

Vivemos dialogicamente e toda produção enunciativa responde ativamente à uma


anterior e posterior, cada enunciado traz um pressuposto enunciativo que precede sua
materialização. Este enunciado é parte desta cadeia discursiva e este caráter dialógico que
permeia o homem e suas produções, portanto, não poderia ser diferente com nosso corpus
de pesquisa, pois a grande marca de Penny Dreadful é, justamente, os diálogos que esta
estabelece com diversas outras produções cinematográficas e literárias de forma
interdiscursiva e intertextual. É possível conceber a ideia de intertexto como uma citação
direta de uma outra obra, uma referência à palavra do outro, uma concretização textual
da interdiscursividade presente no enunciado. O teórico Fiorin em seu artigo (2006)
procura situar estas duas concepções para o Círculo, recuperando os escritos de Roland
Barthes e Julia Kristeva para pensar nos níveis de composição do enunciado e como este
estabelece se relaciona dialogicamente na vida. Luiz Fiorin pontua intertexto como

Qualquer referência ao Outro, tomado como posição discursiva:


paródias, alusões, estilizações, citações, ressonâncias, repetições,

14 | P á g i n a
reproduções de modelos, de situações narrativas, de personagens,
variantes linguísticas, lugares comuns, etc. (2006, p.165)

Ao abordar a concepção de interdiscurso na obra bakhtiniana, Fiorin também


escreve que, em Bakhtin, “a questão do intediscurso aparece sob o nome de dialogismo”
(p.165), o autor entende que é pelo discurso que o homem se relaciona consigo e com o
mundo, entendemos este (discurso) como a atividade da língua no enunciado concreto,
situado social e historicamente. Para Bakhtin, nós não interagimos com o objeto real,
antes somos mediados pela linguagem, pela palavra do outro que se posiciona
axiologicamente do seu lugar único na existência. Portanto, o discurso que produzimos
está em contato com o discurso do outro, que também não tem acesso ao objeto “real”.
Apesar da pretensão do enunciado de alcançar o verdadeiro, somos constituídos e nos
expressamos por meio do signo linguístico, área de embate, de valores, a qual carrega o
tom emotivo-volitivo e reflete, portanto, apenas o meu ponto de vista, enquanto sujeito
situado de forma cultural, histórica e socialmente.

É neste ponto que entendemos que é o discurso que direciona o sentido da


enunciação e, segundo Fiorin, “o dialogismo é o modo de funcionamento real da
linguagem” (p.167). Não estamos tocando o dado puro, mas lidando e respondendo o
discurso de outrem. Portanto, o interdiscurso é justamente este diálogo entre os discursos
que podem ou não estar linguisticamente marcados. Temos na construção composicional
do enunciado aspectos que dialogam com a vida, com o objeto signo a qual altera e
distorce a realidade. Em um caráter trans-linguístico (ou extralinguístico, como
Volochínov pontua em Discurso na vida e discurso na arte) é que se revela a dialogia, e
a dialogia se apresenta justamente, no campo do discurso, pela presença da palavra do
Outro na minha, mas não de forma tênue, mas combativa, gerando sempre um novo
sentido. Partimos deste aporte teórico e defendemos que é este aspecto dialógico que está
presente em Penny Dreadful.

Não observamos como um enunciado monovalente, distanciado e isolado, mas


sempre um elo na cadeia enunciativa, sempre uma resposta, sempre com seus fios
literários e populares que permeiam o homem da Era Vitoriana e o homem do século XXI.
No item 1.1, nós faremos uma breve abordagem sobre o contexto de produção da série
para que possamos mergulhar nos vários reflexos que Penny Dreadful apresenta em sua

15 | P á g i n a
composição; no item 1.2 verificaremos os diálogos que a série estabelece com alguns
personagens que fazem parte da trama; em 1.3 faremos um rascunho de análise para que
possamos introduzir algumas características das criaturas de Victor Frankenstein; e, por
último, em 1.4 nós abordaremos o que chamamos de discurso frankensteniano, isto é,
traços que tecem um perfil temático que se repete em diversos outros enunciados e,
também, no próprio homem, em uma relação entre arte e vida.

1.1 Criações e diálogos, o contexto de produção de Penny Dreadful

A partir daqui nos aprofundamos nas questões sensíveis à esta pesquisa. Com
precisão cirúrgica nas questões que tangem este trabalho, adentraremos à fisiologia do
doutor e suas criaturas, afim de entender como Victor Frankenstein e seus filhos são
recriados na série televisiva Penny Dreadful (2014) e, para além da recriação
cinematográfica, como este enunciado, a partir da literatura gótica britânica, na qual
estabelece uma relação interdiscursiva e intertextual, reflete e refrata o próprio homem
moderno que vive em estilhaços, com sua constituição fragmentária e fluída em tempos
de globalização sintética. O homem das locomotivas, da Revolução Industrial, encontra
em nosso tempo um aporte comportamental e ideológico, pois contemporaneamente
somos, também, homem máquinas. Não mais de vap----or, carvão e bobinas, mas frios,
mecanização e sintetização dos laços afetivos. A obra de Shelley dialoga com o homem
e com as produções de hoje. Estas são as questões que motivam esta pesquisa.
Penny Dreadful é uma série britânica que teve seu início em 2014 pela empresa
Neal Street Productions e Desert Wolf Productions, junto com a Showtime, e teve como
seu principal idealizador e criador da série o produtor John Logan. A série teve sua
primeira exibição no Reino Unido em Maio de 2014 no canal Showtime OnDemand e,
posteriormente, aqui no Brasil por outro canal pago conhecido como HBO. Com um total
de vinte e sete episódios produzidos, a série teve seu fim 19 de Julho de 2016, na exibição
de seu último episódio. Apesar das especulações de fãs sobre o verdadeiro motivo que
culminou no encerramento da trama, John Logan, o criador de Penny Dreadful, em
companhia de David Nevins, presidente da empresa Showtime, afirmaram com
exclusividade em 20 de Junho de 2016 para a plataforma jornalística britânica Variety
que a série foi encerrada por conta do direcionamento da trama que envolvia uma das
personagens, Vanessa Ives. Segundo John Logan, as problemáticas de Vanessa Ives

16 | P á g i n a
estavam chegando ao fim idealizado, e como o principal pilar da série, para o criador,
encontrava-se nas questões que permeavam Vanessa, Penny Dreadful, em consequência,
com seus vários fios narrativos, seria concluída.
Penny Dreadful não foi a primeira série a abordar temáticas ligadas à literatura
clássica no canal Showtime, em meados da década de 1982 o canal produziu a série
televisiva Shelley Duvall’s Faerie Tale Theatre (figura 1), sob a direção de Shelley Duvall
mas, também, com a participação de diretores variados como Tim Burton e Francis Ford
Coppola. Esta série reconstrói os principais contos de fada com uma produção
cinematográfica moderna para a época, uma proposta que se aproxima da produção de
Penny Dreadful, no entanto, a série se caracterizava por uma abordagem infantil, para
uma faixa etária livre. Aqui no Brasil, esta série de Shelley Duvall, produzida pela
Showtime, foi exibida na TV Cultura. A TV Cultura se caracteriza por programas infantis,
livre para todos os públicos, com uma abordagem educativa e lúdica, trata-se do perfil do
canal de exibição. Penny Dreadful não poderia ser transmitida a partir da TV Cultura
porque não se adequa ao estilo do canal, seu conteúdo circunda temáticas que envolvem
violência, nudez e uma linguagem caracterizada como “imprópria” pelas emissoras. Em
sua constituição, Penny Dreadful também traz para as telas personagens literários
presentes em contos de fada, mas sua abordagem é mais realista e densa, a ambivalência
humana, questão discutida ao decorrer deste trabalho, traz justamente o que não é
apropriado à “luz do dia”, mas que vive nas sombras, não é para todos os públicos.

17 | P á g i n a
Figura 1: Ilustração capa do DVD de Shelley Duvall Faerie Tale Theatre

Em meados de 2005 a série Masters of Horror também foi lançada pela Showtime,
esta série não chegou ao Brasil e foi uma das primeiras com a temática de terror produzida
pela emissora e foi classificada como TV-MA, isto é, não é recomendável para menores
de 17 anos por conta da presença de violência, nudez, entre outros. A série televisiva
Master of Horror consiste em episódios independentes, dirigidos por diferentes diretores
reconhecidos na área de produção do gênero de terror como John Carpenter, William
Malone, Larry Cohen, entre outros. Trouxemos estas duas outras séries produzidas pela
Showtime por critério temático e de classificação etária, afim de pensar em suas produções
habituais e, a partir disto, pensar no contexto de Penny Dreadful. Trata-se uma série
atípica tanto na temática quanto na abordagem – principalmente por consistir em uma
série de classificação etária alta, o que diminui o alcance e a difusão da obra. Esta difusão
pode ser verificada nos ecos que houveram no Brasil: a série foi exibida pela HBO, uma
emissora por assinatura, e não por um canal aberto ou outro canal qualquer. O principal
foco desta emissora é a exibição de filmes ou séries originais, uma vez que, por exemplo,
em meados de 1993 fechou um contrato com a empresa Sony Pictures Entertainment,

18 | P á g i n a
especializada em filmes. Nos dias atuais, é a emissora responsável pela exibição de séries
de alto custo e faixa etária acima de 17 anos como, por exemplo, Game of Thrones,
Westworld e Sex and the City.
A emissora selecionada para exibição da série no Brasil também nos revela o
público alvo para a série. No próprio nome da série televisiva podemos verificar a base
literária na qual a série se fundamenta. Na língua inglesa o vocábulo penny se refere à
moeda e ao baixo valor monetário de um penny. A palavra Dreadful, por sua vez, refere-
se ao termo maldito ou terrível. De acordo com o próprio site do canal BBC, o termo
penny dreadful se refere aos folhetins de histórias sensacionalistas voltadas para o terror
sangrento, para o chamado gore. Trata-se de histórias curtas, pequenas pílulas literárias
elaboradas para causar espanto, aflição, afim de difundir e popularizar o gênero na Era
Vitoriana. As temáticas abordadas geralmente consistiam em histórias de fantasmas,
criaturas, assassinos, assuntos ambientados na própria Londres do século dezenove3, afim
de chocar e brincar com o imaginário popular, construindo um véu místico e misterioso
nas ruas, vielas e casebres sob a escuridão. Trata-se, portanto, de folhetins extremamente
populares, com um público alvo heterogêneo, mas, principalmente, constituído de pessoas
que está em contato com ao espaço que é plano de fundo das ambientações das estórias.
Este fato revela mais uma relação íntima que a série estabelece com o universo
literário, popular e, também, com suas temáticas, pois Penny Dreadful traz estes contos
de terror para o plano cinematográfico e essa intensidade que a trama e as personagens
revelam não podem ser difundidas “à luz do dia” – justamente como na série, em que tudo
que foge aos estômagos dos homens de bem, acontece a noite, em lugares fechados,
exclusivos, debaixo dos panos – e, portanto, não poderia ser recebido e exibido em
qualquer emissora senão uma exclusiva e, também, por seu perfil de produção
cinematográfico, a exibição deveria ficar a cargo à uma emissora que se alinhasse à esta
característica cinematográfica, menos alcance, focado em um determinado nicho.
Como pontuamos, os criadores da série declaram que o fim da série se justifica
pela morte de uma das personagens, Vanessa Ives. O criador defende que ela (Vanessa)
era a peça principal das tramas, um fio condutor e, com sua morte, a série perderia seus
fios narrativos, seu sentido e, por fim, decairia. No entanto, não havia um fio condutor
único para todas as personagens e o rumo no qual as narrativas haviam tomado era outro.

3
Abordaremos os penny dreadfuls de forma mais ampla no capítulo 1.2

19 | P á g i n a
Na terceira temporada de Penny Dreadful a premissa é o distanciamento do grupo
original, a trama se divide em fios, pílulas, distintas e Ethan Chandler, Vanessa Ives,
Victor Frankenstein, Lily, Caliban e Dorian Gray desenrolam seus determinados fios
narrativos. Um dos núcleos que mais se destacam é o de Lily, a criatura mulher criada
por Victor Frankenstein4.
Após ser revivida por Victor Frankenstein, Lily se submete aos desmandos de
Victor, que constrói suas memórias afim de a manipular. Victor e Caliban impõem à Lily
regras acerca de como se vestir, portar-se em público, hábitos e costumes que as mulheres
decentes deveriam cultivar e praticar. No entanto, ao recuperar suas lembranças, dar-se
conta de sua força física superior e condição imortal, Lily se rebela e nega seu criador e
a criatura para qual foi criada (Caliban), rompendo a condição de criatura divina e
submissa, como uma Eva que nasce apenas para apaziguar o Adão. E não só se rebela,
livrando-se de mordaças, mas incendeia uma revolução, reunindo prostitutas, páreas,
renegadas e abusadas, faz um jantar, sobe na mesa como ato de inversão e hierarquia
(sequência dos fotogramas 2, 3 e 4)5 e as manda trazer as mãos dos homens, como um
sacrifício. Nesta perspectiva, Lily e Caliban são filhos de Frankenstein, e Lily foi criada
com a finalidade de servir ao homem, ser esposa e mãe em um criacionismo bíblico no
qual o núcleo de Lily dialoga.

4
No item 1.3 e no terceiro capítulo, de análise, nos debruçaremos de forma mais profunda nesta
personagem
5
Os fotogramas se referem à série televisiva Penny Dreadful (2014), episódio 07, temporada 3.
Minutagens respectivas: figura 2: 18:17 minutos; Figura 3: 18:19 minutos e Figura 4: 18:20 minutos

20 | P á g i n a
Figura 2: Lily fala para seu exército de mulheres sobre revolução

Figura 3: Lily fala para seu exército de mulheres sobre revolução

21 | P á g i n a
Figura 4: Lily fala para seu exército de mulheres sobre revolução

Ao romper os laços com Frankenstein, Lily foge, abandona o lugar que outrora
fora sua casa e decide se unir com o personagem Dorian Gray para que, juntos, possam
combinar forças, viver como imortais e impor um domínio, uma vez que o “homem” não
era tão poderoso quanto eles. Trata-se de um terceiro nascimento, um nascimento social,
pois Lily e Dorian decidem estabelecer uma nova lógica social, com um exército de
mulheres – prostitutas, abandonadas e excluídas socialmente, humilhadas pelo sistema
social de gênero da época que ditava “o que é ser mulher” – que desejam uma vingança
pela opressão sofrida. Lily organiza e fala sobre ressureição, revolução, para seu exército
de mulheres. A série, no entanto, termina antes da concretização destes acontecimentos.
Haveria uma nova lógica a ser estabelecida, um novo ciclo na série para as personagens,
porém, sem trazer uma justificativa sobre estes enredos, a série finaliza. Não é possível
afirmar, portanto, que a morte da personagem Vanessa Ives justifica o encerramento de
todas as outras personagens que tiveram suas tramas cortadas prematuramente.
Como já exposto, a série Penny Dreadful aqui no Brasil era exibida na emissora
HBO, um canal pago que sustenta um perfil mais cinematográfico. Isto resulta em um
alcance limitado, mais baixo, focando-se em nichos que acompanham as produções da
emissora e que se adequam ao perfil da série. O fato de ter recebido um alcance menor
pode ter influenciado no faturamento, tornando a continuação inviável, ainda mais porque
o próprio elenco de Penny Dreadful passou a ganhar uma notoriedade maior, fazer
sucesso e isto também influencia no contrato que é elaborado com eles. Pode-se pensar

22 | P á g i n a
que este encerramento ocorreu por motivos econômicos, mas, também, por razões
ideológicas que estavam emergindo com o rumo desta criatura mulher.
As discussões que tocam o assunto de gênero, no mundo, estão mais vigor e as
grandes empresas, para alcançar o maior público possível, omitem-se em muitas
discussões. O corte realizado da série pode, também, apresentar um teor ideológico, em
não querer suscitar discussões de gênero nos momentos atuais. No mesmo período que
Lily reunia seu então chamado exército, um movimento eclodia na Europa: as sufragistas.
Este movimento, composto por mulheres, exigiam direitos iguais aos dos homens na
época, mas sofriam uma repressão intensa por conta dos valores morais que regiam a
sociedade na época. Em determinado momento, Lily e uma de suas pupilas, Justine,
observam uma ação policial sobre um grupo de mulheres que se manifestavam em praça
pública. A criatura rechaça o movimento sufragista, explicando a Justine que sua
revolução não é a mesma, pois ela não busca igualdade entre homens e mulheres, mas a
dominação, por meio da força e do sangue. Tudo isso nos leva a refletir sobre os motivos
que suscitaram no encerramento da série televisiva, pois, apesar dos criadores afirmarem
ser por conta do encerramento de um núcleo narrativo (Vanessa Ives), há pistas que nos
leva a outros caminhos de reflexão.
Ao decorrer da série, desde os primeiros episódios, falava-se, na trama, sobre uma
profecia acerca do destino de Vanessa Ives e Ethan Chandler, este segundo é um dos
personagens que faz referência à licantropia, doença que traz ao seu portador
características fisionômicas de animal, figura popular na mitologia e no imaginário
mundial conhecida como Lobisomen6. Esta profecia se conclui na terceira e última
temporada, com uma disputa de Lúcifer e Drácula por Vanessa Ives: o primeiro (Lúcifer)
busca sua alma, o segundo deseja seu corpo e este embate, por fim, conclui-se na morte
da personagem pelas mãos de seu próprio bando. O personagem de Lúcifer não é
desenvolvido, não nos apresenta a relevância prometida pela expectativa nas temporadas
anteriores. No caso do núcleo de Ethan Chandler, seu passado obscuro havia sido
mencionado por diversas vezes, e na última temporada ele foi trabalhado, mas, também,
com uma série de fios soltos acerca de sua família e em como se tornou um fora da lei. É
a partir da profecia, e da procura de Vanessa por respostas, que os outros integrantes
aparecem e ganham espaço na trama, mas estes se desenvolvem, também, de forma

6
Abordaremos este personagem de forma mais ampla no item 1.2

23 | P á g i n a
independente em seus próprios núcleos, tornando a narrativa de Vanessa Ives mais uma
entre muitas outras.

1.2 As nuances que compõem os homens, a estrutura das personagens

Para nós, a série Penny Dreadful é um emaranhado de fios, núcleos, figuras e


personagens que não estão soltos, à esmo, mas se conectam no desenrolar da trama.
Conforme o enredo se desenvolve, novas personagens são recrutadas por Vanessa Ives e
Sir Malcolm Murray e, aos poucos, um grupo é formado. No entanto, antes de abordar o
grupo em si, como unidade, é preciso entender as razões que levam a formação deste
bando pois são personagens que estabelecem relações interdiscursivas e intertextuais com
diferentes obras literárias e produções cinematográficas. Temos, por exemplo, a
personagem Dorian Gray, criação emblemática do autor Oscar Wilde. A história da
personagem é bastante popular: trata-se de um jovem dono de muitas riquezas que, em
um determinado dia, têm seu reflexo imortalizado como um dos trabalhos artísticos de
Basil Hallward, um pintor amigo de Dorian. Esta “imortalização” ocorre de fato: Dorian
decide que sua representação na pintura é que deverá envelhecer no lugar de si. Esta
primeira ação nos revela a bússola moral de Dorian: a beleza deve ser imortal, pois é a
única coisa que de fato tem importância para ele. A personagem vive plenamente a
sexualidade, apaixona-se por uma mulher, desilude-a e passa a viver uma vida dupla:
drogas, sexo e futilidades, mas sem nunca envelhecer. Sua fisionomia permanece jovem
e bela enquanto seu próprio retratado se transforma em uma paródia monstruosa,
refletindo a vida devassa e fútil de Dorian Gray (sequência de fotogramas 5, 6 e 7)7.

Os fotogramas se referem à série televisiva Penny Dreadful (2014), episódio 08, temporada 2. Minutagens
respectivas: figura 5: 38:33 minutos; Figura 6: 38:34 minutos e Figura 7: 38:35 minutos

24 | P á g i n a
Figura 5: A série Penny Dreadful traz a representação de Dorian Gray e seu quadro "monstruoso"

Figura 6: Figura 5: A série Penny Dreadful traz a representação de Dorian Gray e seu quadro "monstruoso"

25 | P á g i n a
Figura 7: Figura 5: A série Penny Dreadful traz a representação de Dorian Gray e seu quadro "monstruoso"

Algumas destas características de Dorian Gray também se fazem presente em


Penny Dreadful, o que nos é mostrado não é apenas a vaidade e a eternidade que Dorian
dispõe, mas a futilidade, a ausência de motivações e a sexualidade exacerbada, fato que
o torna superficial. Na obra literária, Dorian se apaixona pela personagem Sibyl Vane,
uma atriz consagrada. Mas a partir do momento em que Sibyl abre mão de sua carreira
como atriz para se dedicar à uma vida com Dorian, este o rejeita, pois, de acordo com o
jovem, a beleza que o atraía advinha da profissão dela como atriz. A atração de Dorian
não é pelo sujeito em si, mas pela posição que este ocupa, pela função social. Dorian Gray
é um colecionador. Este é o aspecto fútil e principal característica que sua personagem no
universo de Penny Dreadful apresenta. Trata-se de uma figura dupla: de fisionomia bela,
mas caráter distorcido, duas faces do mesmo corpo que se materializam entre o quadro e
o corpo, arte e vida. Esta ambivalência em Dorian se caracteriza, também, como uma
relação entre criatura e criador; o embate que se revela como uma linha perceptível que
separa o que está visível à luz do sol, entre as ruas, calçadas, que os homens de bem
habitam e o pecaminoso, repreensível vendado pelas sombras dentro de sua mansão.

26 | P á g i n a
Figura 8: Vanessa Ives em uma sessão espírita, possuída por um demônio

Figura 9: Vanessa Ives em uma sessão espírita, possuída por um demônio

27 | P á g i n a
Figura 10: Vanessa Ives em uma sessão espírita, possuída por um demônio

Este aspecto também está presente em Vanessa Ives, por exemplo. A personagem
nos é apresentada como uma espécie de bruxa que, ao decorrer da narrativa, descobrimos
ser a disputada entre duas forças diabólicas que desejam dominar seu corpo e alma:
Lúcifer e Drácula. É no núcleo desta personagem que os diálogos com o sobrenatural do
universo religioso são mais proeminentes. Possessões demoníacas (sequência de
fotogramas 8, 9 e 10)8, manifestações sobrenaturais e representações de bruxas e
feiticeiras são elementos que constituem a personagem Vanessa Ives, no entanto, este
aspecto também nos é apresentado com a dupla face que discutimos: enquanto ela é
extremamente humana, às vezes submissa – às demandas de Sir Malcolm Murray – e
sensível, ela também tem sua sexualidade aflorada durante a noite, participa dos
fenômenos demoníacos e, também, é ela que, ao cair do sol, orquestra o bando para o
cumprimento de seus objetivos. Esta ligação de Vanessa como o infernal chama atenção
de Dorian Gray, que a vê como item exótico por sua anormalidade.

Foi no início da primeira temporada, especificamente no primeiro episódio,


intitulado Night Work que o personagem Ethan Chandler aparece. Uma das principais
características da série, isto é, a que se destaca, consiste nos diálogos que ela estabelece
com o(s) universo(s) literário. No entanto, os diálogos não se constituem apenas de

8
Os fotogramas se referem à série televisiva Penny Dreadful (2014), episódio 02, temporada 1.
Minutagens respectivas: figura 8: 38:09 minutos; Figura 9: 38:10 minutos e Figura 10: 38:11 minutos

28 | P á g i n a
relações intertextuais – uma das formas de diálogo que podem ser estabelecidas – mas
também interdiscursivas, conceito que discutimos na introdução deste capítulo. Victor
Frankenstein estabelece uma relação intertextual com a obra de Mary Shelley pois está
marcado seu nome, determinadas falas e contextos ocorrem como na obra literária,
enquanto com outros personagens, como o próprio Ethan Chandler, não se refere a uma
personagem específica do universo literário, mas estabelece relações com uma tradição
ou com uma gama enunciados que o próprio analista, leitor ou interlocutor precisa
conhecer. No caso desta personagem, Ethan, podemos verificar a presença da licantropia,
condição que transforma o portador em uma fera popularmente conhecida como
Lobisomen. Esta personagem atravessa o imaginário popular deste os tempos antigos,
pois no poema Eclogas, datado de meados de 39 A. C., do poeta Virgílio, uma das
personagens se transforma em uma fera após ingerir algumas plantas. Nos tempos
modernos, em meados da Era Vitoriana, a obra de George W. M. Reynolds se tornou uma
referência com pequenas pílulas literárias de terror escritas e espalhadas semanalmente
em forma de folhetins, isto representa o Penny Dreadful, isto é, centavo maldito, pois
seus folhetos, e de outros autores, de estórias, eram distribuídos nas ruas e custavam
apenas um penny.
As estórias de George Reynolds, compiladas e intituladas de The Mysteries of
London (1847), por exemplo, trazem em sua ambientação uma Londres cruel, com altos
índices de violência, pobreza e doença. Trata-se da representação de uma cidade obscura
na qual é sob a luz da lua, na escuridão, que o sobrenatural e tudo o que é reprovável sob
a luz diurna se manifesta. Assim também o é na série corpus desta pesquisa, a qual traz o
mesmo nome dos folhetins da época do autor George Reynolds. O público alvo destes
folhetos eram as massas da época – operários, trabalhadores manuais, sujeitos que viviam
justamente nesta Londres decaída – pois os folhetos brincavam com o imaginário popular,
da mesma forma que as antigas florestas medievais traziam dúvidas, receios e
alimentavam o receio com o desconhecido debaixo de suas copas escura. A Era Vitoriana
sustenta as mesmas inquietações, as sombras das árvores dão lugar aos sons do
maquinário da Revolução Industrial e as estórias supersticiosas se fundem com o discurso
cientificista: eis nossa criatura frankensteniana, composta não apenas pelo homem
positivista que acredita alcançar um status de (D)eus, mas também pela força do
desconhecido, reflexo das sombras que habitam as florestas proibidas em profusão com

29 | P á g i n a
turbinas, vapores e carvão que anima o industrial: o velho e o novo, juntos, até nos
temores do homem vitoriano.
Verificamos, portanto, que estas transformações sociais e, também, contos
populares estão presentes na série televisa sob a forma, por exemplo, do personagem
supracitado Ethan Chandler, que porta a doença da licantropia.

Figura 11: Ethan Chandler vestido como caubói do velho oeste em um espetáculo recebe aplausos por sua encenação

Figura 12: Ethan Chandler vestido como caubói do velho oeste em um espetáculo recebe aplausos por sua
encenação

30 | P á g i n a
Figura 13: Ethan Chandler vestido como caubói do velho oeste em um espetáculo recebe aplausos por sua encenação

Este personagem tem sua primeira aparição como um ator em um espetáculo


itinerante (sequência de fotogramas 11, 12 e 13)9, Ethan faz uma apresentação de tiro ao
alvo para o público e logo após sua apresentação, Vanessa Ives vai até o personagem para
recrutá-lo para um “trabalho noturno”, trabalho no qual seus talentos (Ethan) como
atirador poderão ser úteis. Como abordamos em Vanessa Ives e Dorian Gray, as
personagens de Penny Dreadful atuam dentro de suas próprias tramas e Chandler não foge
deste “padrão” em seus vários níveis: ele nos é apresentado como personagem nômade,
vagante, em suas vidas duplas e até suas particularidades, as características que o
singulariza – como sua habilidade com armas de fogo – são utilizadas para disfarçar sua
identidade, mesclando-se entre vida e arte, sujeito e personagem, duas faces em um só
sujeito. Vanessa Ives, então, oferece um valor pelos serviços de Ethan e, a partir daí,
estabelecem uma parceria pessoal, íntima, tornando-se parte do bando. Ao decorrer da
trama, a série nos revela que este personagem é um licantropo e que de tempos em
tempos, ele perde a consciência, transforma-se em uma fera e comete chacinas pela
cidade. Esta é uma das personas que Ethan tentava esconder fazendo parte de um grupo
caracterizado por sua presença efêmera, que está sempre na estrada. Bakhtin na obra

Os fotogramas se referem à série televisiva Penny Dreadful (2014), episódio 01, temporada 1. Minutagens
respectivas: figura 11: 06:48 minutos; Figura 12: 06:49 minutos e Figura 13: 06:50 minutos

31 | P á g i n a
Questões de literatura e estética: a teoria do romance aborda, por exemplo, o cronotopo
da estrada:

No romance, os encontros ocorrem frequentemente na “estrada”. Ela é


o lugar preferido dos encontros casuais. Na estrada (!a grande estrada”)
cruzam-se num único ponto espacial e temporal os caminhos espaço-
temporais das mais diferentes pessoas, representantes de todas as
classes, situações, religiões, nacionalidades, idades. Aqui podem se
encontrar por acaso, as pessoas normalmente separadas pela hierarquia
social e pelo espaço, podem surgir contrastes de toda espécie,
chorarem-se e entrelaçarem-se diversos destinos. (p.349-350, 2010)

Em suma, entende-se o cronotopo em uma relação de tempo e espaço na produção


enunciativa, na composição do discurso e refere-se ao homem e seu tempo. Esses espaços
têm uma significação temática e são assimilados pela arte. Trata-se de recortes da relação
entre pequeno e grande tempo que trazem um determinado sentido pra narrativa. Estes
espaços e tempos cronotópicos se repetem em diversos enunciados porque têm uma
função, fazem parte de um projeto de dizer, como, por exemplo, o cronotopo da praça
pública, sala de estar e, também, o da estrada. O cronotopo da estrada é o espaço-tempo
do não-lugar, do homem transeunte, sem identidade que está à mercê do acaso e encontra,
ao decorrer de sua trajetória, indivíduos de toda origem e hierarquia. Os antigos heróis de
cavalaria, como Dom Quixote, utilizado pelo filósofo russo como exemplo,
caracterizavam-se por este traço aventuresco representado pela constante presença do
cronotopo estrada como a trilha dos heróis que buscam peripécias.
Na série, verificamos este traço aventuresco em Ethan Chandler: é um personagem
sem origem, que mescla sua identidade com a dos personagens que apresenta em seus
espetáculos itinerantes. O cronotopo da estrada é um não-lugar, ideal para um semi-deus
que busca respostas como Hércules, para um cavaleiro que busca aventuras ao explorar o
mundo como Dom Quixote e, também, para um indivíduo que busca e faz de ideário de
sua vida o anonimato como Ethan Chandler. Um não-lugar para um não-sujeito. Como
Mikhail Bakhtin escreveu na citação anterior, o cronotopo da estrada pode incluir o
cronotopo do encontro. Em uma dessas expedições é que Ethan Chandler encontra
Vanessa Ives, que o recruta quase de imediato. As duas personagens, Vanessa e Ethan,
vivem suas vidas duplas, entre demônios e homens, caças e presas, múltiplas
personalidades, temática presente também na obra Jekyll & Hyde, também conhecida
como O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson’s. Na terceira temporada este

32 | P á g i n a
personagem, o doutor Jekyll, também é introduzido na obra como Henry Jekyll (figura
6), um dos amigos de infância de Victor Frankenstein que aspira ser um cientista de
sucesso. Tanto Victor quanto Jekyll se caracterizam por sua intrepidez, são personagens
que vivem em sua reclusão, na labuta de suas criações afim de alcançar algo que está além
do próprio homem.
O personagem de o médico e o monstro é reconhecido na literatura mundial por
sua dupla personalidade: enquanto uma se caracteriza por fera, monstruosidade, a
representação das próprias trevas que habitam o homem, a outra consiste no sujeito de
bem, sociável e dotado de razão. Na série Penny Dreadful, o doutor Jekyll auxilia
Frankenstein no processo de criação de um soro que promete trancafiar o lado bestial do
homem10. O dilema do criador e criatura aparece, novamente, como dois polos opostos,
duas vozes que habitam um único ser, no qual as duas forças tentam dominar. Trata-se,
assim como os outros personagens que compõem a trama da série, de um criador que
tenta trancar sua criatura vil e primitiva no campanário, castelo, masmorra, em si mesmo.
Outro personagem presente na série é o Sir Malcolm Murray. Este personagem
nos é apresentado como um ex-explorador que se aventurou, junto de seu filho, há anos
pela África. Após um desastre que nos é revelado ao decorrer do enredo, Malcolm Murray
sede sua moradia e passa a morar com Vanesa Ives. Na primeira temporada, Vanesa Ives
e Murray estão a procura de mercenários para ajudar no resgate de Mina Murray, sua
filha, que foi sequestrada por demônios. Em meados de 1885, o autor Sir H. Rider
Haggard escreveu a obra “Mina do Rei Salomão” (1885), no qual o Allan Quartemain era
o personagem principal.

Na obra, Allan Quartemain é um explorador britânico que ajudou a colonizar parte


da África. Na série Penny Dreadful o personagem Malcolm Murray também detém estas
características e seu plano, em todo decorrer da temporada, é arrecadar fundos o suficiente
para uma última viagem de exploração. Na trama, Murray detém um passado sombrio –
com traições à própria esposa e como autor de assassinatos –, sua personalidade é
extremamente difusa e a todo momento ele tenta sobrepujar, dominar, a própria Vanessa
Ives. Não se trata de um personagem, assim como os outros do bando, linear, mas
ambivalente, ao mesmo tempo que mostra empatia e preocupação com Vanessa e,
também, tenta resgatar sua filha, Malcolm Murray traiu sua esposa e seu melhor amigos

10
Discutiremos sobre estes personagens de forma mais aprofundada no capítulo de análise

33 | P á g i n a
diversas vezes, permitiu que seu filho morresse em uma das explorações pela África e
tem a seus serviços um escravo negro, de uma das tribos africanas na qual ele passou
durante suas andanças, isto tudo faz de Sir Malcolm Murray um personagem complexo
e, assim como os outros, beirando luz e sombras.

A série apresenta, também, uma íntima relação com a obra de Bram Stocker,
Drácula (1897). Algumas relações intertextuais podem ser percebidas, como, por
exemplo, a filha de Sir Malcolm Murray, Mina Murray, capturada por criaturas noturnas.
Na obra clássica de Bram Stocker, a personagem Mina Harker, esposa do protagonista,
Jonathan Harker. Na obra literária, Mina Harker auxilia o grupo de caçadores na pesquisa
sobre as fraquezas do vampiro Drácula. Na série, por outro lado, ela é levada como uma
refém e transformada em uma das criaturas. Outro personagem da mesma obra literária
presente em Penny Dreadful é Van Abraham Helsing (sequência de fotogramas 14, 15 e
16)11, na obra literária este é professor de filosofia e antropologia, além de ser um
cientista. Seu trabalho científico é focado nas áreas obscuras, à procura do vampirismo,
áreas de estudos poucos habituais, aproximando-se do próprio doutor Victor
Frankenstein.

Figura 14: Victor Frankenstein E Van Helsing são próximos na ciência e como amigos

11
Os fotogramas se referem à série televisiva Penny Dreadful (2014), episódio 06, temporada 1.
Minutagens respectivas: figura 14: 18:56 minutos; Figura 15: 18:57 minutos e Figura 16: 18:58 minutos

34 | P á g i n a
Figura 15: Victor Frankenstein E Van Helsing são próximos na ciência e como amigos

Figura 16: Victor Frankenstein E Van Helsing são próximos na ciência e como amigos

Van Helsing é o personagem que segue á caça de Drácula na Transilvânia, mas,


em Penny Dreadful, é o homem que ajuda Victor nos seus estudos acerca dos demônios
que estão atrás de Vanessa e Malcolm Murray. As nuances entre o céu e o inferno, luz e
sombras, também se revelam no caçador de vampiros. À luz do dia, Van Helsing se
apresenta como um químico, cientista e professor respeitado, mas, ao cair da noite, seus
hábitos consistem na procura dos fenômenos que envolvem as criaturas que Vanessa Ives
e seu bando estão à procura. Van Helsing, na série televisiva, tornou-se um caçador após
sua esposa ter sido transformada também em uma das criaturas sombrias.

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Não buscamos, neste trabalho, elucidar todas as intertextualidades que a série
estabelece, mas apontar as mais significativas para o escopo de nosso trabalho.
Defendemos que cada personagem, portanto, cada membro que compõe o bando principal
de Penny Dreadful não é monovalente, dicotômico, mas tem suas facetas. Este heroísmo
e vilania também compõe as personagens, pois, pergunte-se: um grupo deste, o que os
une? Onde há afinidades que se enlaçam entre eles como fios nesta trama? Para nós: a
anormalidade. Todos possuem uma máscara. Estão sempre encenando, como se a noite
fosse o momento em que de fato vivem e o mundo ao meio dia fosse uma ilusão, um
palco, que exige de seu bando papéis. Pensamento este que se alinha com a produção
literária da época pois a série estabelece diversas relações com as obras de Shakespeare.
É na obra As you like it que a personagem Jacques entoa, em uma das cenas, que o mundo
inteiro é como uma grande peça e os homens e mulheres são como meros atores. Podemos
verificar aproximações e distanciamentos, marcados de forma intertextual e
interdiscursiva, na série televisiva.

Ao serem reconstruídos na série televisiva, consideramos estes enunciados


interdiscursivos e intertextuais, pois estes personagens respondem à suas obras
predecessoras, fazem parte desta cadeia e ressignificam a ideia, no caso de nosso corpus,
a qual está delimitada no núcleo de Frankenstein, o que é ser criatura, monstruosidade,
enfim, Frankenstein. Este diálogo interdiscursivo aparece, também, em outras obras, nas
quais estabeleceremos as aproximações no próximo momento da pesquisa, revelando-nos
não um Frankenstein linguisticamente, textualmente, explicitamente marcado, mas
características discursivas que se aproximam da ideia do ser a qual chamamos de
frankensteniano. Trouxemos breves excertos sobre alguns dos personagens, de forma
individual e dialógica, mas isto foi apenas para que pudéssemos ressaltar o caráter
unificador deste grupo. Não é a primeira vez que ícones da literatura gótica, da Era
Vitoriana, são reunidos afim de salvar o mundo, afinal, o Círculo de Bakhtin escreve que
o enunciado é um elo em uma cadeia discursiva, estabelece, portanto, relação com
produções antecessoras e predecessoras.

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É possível estabelecer uma relação interdiscursiva, por exemplo, entre a série
televisiva Penny Dreadful e Liga extraordinária, em inglês conhecida como The League
of Extraordinary Gentlemen (1999) (figura 1). O critério para citar esta obra foi o de
selecionar um enunciado que se aproximasse de uma das características que ressaltamos
em Penny Dreadful: os personagens não estão isolados, mas juntos, interagindo entre si,
eles têm uma missão em comum e cada diálogo é pensado em um contexto coletivo
(dialoga com as outras personagens que fazem parte do bando), não individual, por isto
trouxemos a obra The League of Extraordinary (1999). Esta obra foi inicialmente
produzida em quadrinhos pelo roteirista e desenhista Alan Moore e Kevin O’Neill, ela
também é conhecida por construir suas tramas a partir do agrupamento de personagens
advindos da literatura britânica como: Capitão Nemo, Allan Quartemain, o médico e o
monstro, Dorian Gray e entre outros. Estes personagens, assim como em Penny Dreadful,
unem-se para cumprir missões relativas ao próprio universo literário.

Figura 17: à esquerda The Legend Extraordinary Gentleman e à direita, Penny Dreadful

A presença da intertextualidade e interdiscursividade pode ser sentida, também,


como nos deteremos em seus pormenores no capítulo de análise, na arquitetônica
composicional dos sujeitos das tramas, mais especificamente, nas criaturas de

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Frankenstein. Algumas personagens, como Caliban, tem seu caráter construído a partir
de referências literárias, às vezes, utilizando versos inteiros para referenciar si,
mostrando-nos que parte de sua identidade gira em torno da literatura. A literatura
apresenta-se como um de seus outros. No terceiro episódio da primeira temporada,
intitulado Ressurrection (2014) verificamos de forma clara a presença da literatura como
uma das facetas que constitui a criatura, pois, abandonado na casa que antes fora de seu
criador, Caliban desenvolve suas características cognitivas, aprendendo a ler e a
interpretar o mundo a partir das obras literárias deixadas para trás por Victor
Frankenstein. Nesse ato de compreensão e, também, interpretação, as obras literárias vêm
como palavra alheia, um outro, e é por meio do diálogo que nós nos alteramos,
(re)construímo-nos. Os poetas os quais Caliban cita para se referenciar vêm como parte
da personagem, faz parte de seu todo, de seu acabamento estético. Mesmo o nome
(Caliban) a qual recebe de um proprietário do teatro Grand Guignol, tem sua origem em
William Shakespeare da peça The Tempest, o personagem que carrega este nome era
representado por um homem animalesco, instintivo e primitivo, não civilizado,
justamente como a criatura de Frankenstein é referenciada.

O aspecto do teatral e os diálogos que a série estabelece com o teatrólogo William


Shakespeare, inclusive, são latentes no núcleo de Victor Frankenstein. Como pontuado
ao decorrer deste capítulo, as personagens são multifacetadas, apresentam-se de formas
distintas entre as luz e as sombras – literalmente – pois enquanto, à luz do sol, são pessoas
comuns e civilizadas, ao pôr do sol seus aspectos “demoníacos” e “reprováveis” pelos
olhos dos “homens de bem” se sobrepujam. Caliban, o primogênito de Frankenstein, vive
no sótão, na coxia de um teatro que tem seus espetáculos baseados nos penny dreadfuls,
isto é, nas estórias sensacionalistas de terror e horror. Caliban não está nos holofotes,
sequer nas margens – pois o sujeito na margem, apesar de distante do centro civilizado,
ainda é visível –, não, a criatura é invisível e vive nos bastidores puxando cabos, movendo
alavancas e organizando a logística das peças que os homens civilizados encenam. É
comicidade e tragédia, a ligação de Shakespeare com o núcleo de Frankenstein é latente,
pois são os homens civilizados que encenam, por poucos minutos, papéis monstruosos e
sensacionais, atuam ser aquilo que é Caliban.

1.3 Os filhos de Frankenstein, as criaturas de Penny Dreadful

38 | P á g i n a
A série televisiva Penny Dreadful tem como base, como situamos anteriormente,
personagens de obras literárias icônicas da literatura britânica. Dedicamo-nos, nesta
pesquisa, a tratar de um dos personagens mais populares da literatura mundial: doutor
Victor Frankenstein e sua(s) criatura(s). A narrativa, assim como na obra, apresenta-nos
o início do século XX como ambientação, meados da Era Vitoriana. Algumas transições
marcam este espaço-tempo, trata-se do início da Revolução Industrial, período do
positivismo, cientificismo e a busca do homem pelas inovações nas áreas da medicina e,
também, da tecnologia. É neste quadro que Victor Frankenstein é reconstruído. O doutor
nos é apresentado como um sujeito deslocado e extremamente calculista e alheio à
afetividade, esta racionalidade faz referência a seu próprio tempo-espaço, reflete e refrata
o homem máquina que não pode parar ou sentir e esta característica retratada de forma
negativa é acentuada pelo posicionamento antipático assumido por este (Victor) em
relação à Vanessa Ives, personagem que, como um fio condutor que agrupa os
personagens à sua volta, busca o auxílio profissional do doutor. Como já pontuamos,
verificamos uma relação complexa do homem com o próprio homem ao decorrer da série
televisiva. É a partir da interação com o Outro que o sujeito, de atos concretos, constitui-
se socialmente e revela suas facetas. Ao decorrer da trama os sujeitos se posicionam
esteticamente em relação ao outro, e, por afinidade ou diferenças, constroem suas relações
afetivas, sempre singulares.
Após se posicionar de forma racional e não empática em relação às personagens,
Victor Frankenstein recita versos de Shakespeare, a qual Vanessa Ives completa. É neste
diálogo, entre estes dois sujeitos, que verificamos a linha tênue que compõem a
constituição ambivalente das personagens, pois enquanto o doutor, por um lado, nos é
apresentado como um sujeito insensível às relações afetivas, racional e metódico, é
extremamente sensível às artes, como a poesia, enfim, à literatura. No segundo episódio,
primeira temporada, parte da delimitação desta pesquisa, uma das criações de Victor
Frankenstein é introduzida na série. Acreditamos que este caráter não-dicotômico, no
núcleo de Frankenstein, tem sua maior expressão nos nascimentos da criatura. É a partir
deste acontecimento, que marca os três episódios selecionados, que verificamos os laços
que Victor sustenta com suas criações. A caracterização fisionômica, o convívio social

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das criaturas em uma relação entre criatura e sociedade e, também, entre criatura e criador,
traz a tensão que marca esta ambivalência.
A primeira criatura que nos é apresentada é trazida ao mundo de forma pacífica.
Como um filho recém-nascido, Victor assume um papel fraternal e seleciona um nome
para a criatura. Apesar de cogitar o nome que leva o personagem bíblico Adão,
posicionando-se como o deus que está acima da morte, este decide nomear sua criação a
partir das obras de Shakespeare e de maneira “aleatória” – Victor abre o livro, folheia as
páginas e sua criatura interrompe o fluxo de páginas com um dedo em cima de um nome:
“Proteus”. Como apontamos, a série estabelece diversas relações intertextuais e
discursivas, mas uma das mais latentes no núcleo de Frankenstein é o dramaturgo William
Shakespeare. É neste capítulo que abordaremos alguns diálogos que a série estabelece
com, especificamente, o núcleo de Frankenstein, portanto, é preciso pontuar de início que
os personagens de Penny Dreadful são, antes de tudo, atores. Atores que compõem uma
peça. Atores de si mesmos, pois sua característica ambivalente os torna multifacetados.
O nome “Proteus” vem da comédia The Two Gentlemen of Verona, a principal
temática desta comédia é a amizade e traição. Quando Valentine é enviado para Milan,
Proteus é obrigado a abandonar sua amada, Julia, e seguir com Valentine. Lá, Valentine
se apaixona por Sílvia e Proteus, que também se apaixona por Sílvia, elabora uma
armadilha para afastar Valentine e sua amada. A amizade dos dois personagens apresenta
estas nuances, peripécias, até que, ao final, estabilizam-se. A estória é sobre dois melhores
amigos, assim como o laço de Victor Frankenstein e sua criatura, com é apontado ao final
do segundo episódio, no qual Frankenstein declara sua afeição por Proteus – criando o
contraste entre a seleção de nomes para ambas personagens em relação ao seu criador:
Proteus, o homem de Victor Frankenstein e Caliban, a criatura primitiva e vil. O nome,
no entanto, não se esgota aí, pois ao final da excursão de Proteus e Frankenstein pela
cidade, a criatura é arremetida por lembranças de sua vida anterior à morte. Nesta vida,
de acordo com Proteus, ele era um homem do mar, um marinheiro, assim como o deus
grego Proteus, filho de Oceano e Tétis e também chamado por Nereus. Há, portanto, duas
referências em seu nome: a peça de Shakespeare, que enfatiza o laço de Proteus com seu
criador e, também, sua origem como homem do mar, assim com a divindade grega.
Após o nome ser decidido, “Proteus”, o doutor o leva para a cidade para que este
possa se sentir parte do organismo social. A caracterização fisionômica de Proteus (Figura
12) nos traz o aspecto de normalidade, um padrão “aceitável” para Victor. Não há

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características destoantes com o restante dos homens. A recepção de Victor à esta criatura
é fraternal, de um pai que assume seu filho e o ensina, aos poucos, como comer, andar,
falar, enfim, como ser homem, como habitar o mundo como seu criador habita. Mais uma
vez verificamos a faceta de Frankenstein como homem cartesiano, metódico, entrar em
conflito com uma suposta sensibilidade que se revela na interação entre criador e criatura.
O que há não é rejeição, mas acolhimento e este ato marca o laço de afeição recíproca
entre os dois sujeitos ao decorrer da caminhada entre as ruas da cidade. Ao final deste
episódio Proteus é levado de volta para a residência de Victor e, durante uma conversa
com o doutor, duas mãos atravessam o peito da criatura, revelando-nos uma forma
humana atrás de Proteus, que o rasga, despedaça-o, como se este fosse um traje incômodo
a qual estava vestindo. A posição da câmera apresenta este momento como um
nascimento, a vida que nasce a partir da morte, atravessando-a. Esta nova vida traz em si
o sangue que representa a dor do parto, a selvageria pela sobrevivência em um movimento
dialético. Aqui, a morte que deu lugar à vida (sequência de fotogramas 18, 19 e 20)12.
Temos, até este momento da narrativa, duas representações de nascimento. Enquanto uma
se faz pacífica, a outra é conturbada.

Figura 18: Proteus é atravessado por Caliban

12
Os fotogramas se referem à série televisiva Penny Dreadful (2014), episódio 02, temporada 1.
Minutagens respectivas: figura 18: 58:46 minutos; Figura 19: 58:47 minutos e Figura 20: 58:48 minutos

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Figura 19: Proteus atravessado por Caliban

Figura 20: Proteus atravessado por Caliban

42 | P á g i n a
Figura 21: O rosto de Caliban e de Frankenstein manchado com o sangue de Proteus

Figura 22: O rosto de Caliban e de Frankenstein manchado com o sangue de Proteus

43 | P á g i n a
Figura 23: O rosto de Caliban e de Frankenstein manchado com o sangue de Proteus

A criatura que (re)nasce a partir de Proteus, de acordo com o enredo, é Caliban, o


primogênito de Frankenstein. Revela-se, neste momento, um embate palpável entre o
doutor e Proteus e entre o doutor e sua criatura primogênita. Por se tratar de um enunciado
não só verbal, mas, também, visual, o enunciado conta, em sua arquitetônica
composicional, com diferentes materialidades para a construção de sentido
(materialidades as quais abordaremos no capítulo teórico com mais profundidade). A
tensão ideológica é acentuada pela representação fisionômica das duas criaturas,
enquanto Proteus é apresentado com uma fisionomia padrão, com menos cicatrizes,
retalhos, com a pele de coloração “natural”, a segunda criatura, conhecida como Caliban,
apresenta uma imagem deformada, marcada, uma coloração que denota a ausência de
circulação sanguínea como se este não estivesse vivo. Tanto o pai quanto o filho
primogênito carregam, em suas faces, corpo, mãos, o sangue da “criança” morta
(Protheus)13.
No capítulo de análise abordaremos estas e outras questões de forma ampliada, à
luz das concepções bakhtinianas, mas é importante pontuar questões fundamentais acerca
das relações destes personagens. Essa distinção é reforçada pela relação entre criador e
criatura, a qual, com Proteus, é uma relação fraternal e com Caliban é de negação. Victor
o acolhe (Proteus) como filho, enquanto, para Caliban, o que marca a constituição desta

13
Os fotogramas se referem à série televisiva Penny Dreadful (2014), episódio 02, temporada 1.
Minutagens respectivas: figura 21: 58:56 minutos; Figura 22: 58:57 minutos e Figura 23: 58:58 minutos

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personagem é o abandono de seu criador e a repulsa pela sua aparência tida como
“monstruosa”. Podemos verificar a presença de duas vozes que entram em embate,
colidem, superestrutura e infraestrutura, em um movimento dialético-dialógico. Enquanto
temos a voz hegemônica, Frankenstein, ideologia oficial, que tenta concretizar uma visão
estabilizada de “normalidade” de cima para baixo, Caliban se posiciona como avesso à
essa padronização, uma voz de resistência ao imperativo hegemônico.
A criatura primogênita de Victor Frankenstein é introduzida definitivamente como
elemento constitutivo da trama no terceiro episódio da primeira temporada intitulado
Ressurrection. É neste episódio que a narrativa do doutor e de sua criação, até aquele
momento, se cruzam e a série nos revela o passado de Victor, fenômenos que constituem
este sujeito, assim como os acontecimentos que sucederam o abandono do doutor à
criatura. Neste episódio a narrativa da série também se cruza com a da obra de Mary
Shelley (1818), apresentando-nos um personagem frágil, também marcado pela morte e
ausência de pessoas importantes, motivando-o a buscar formas de interromper este ciclo.
A morte da mãe, tia e de seu cão justifica a paixão, a qual se pode dizer também obsessão,
pela ciência natural. Os acontecimentos que marcaram a história de Victor se fazem
importantes, também, para entender como este se posiciona em relação às pessoas que o
cercam e, é claro, para entender o ato de abandono e de exclusão que este reproduz na
relação com suas criaturas. Mesmo no funeral de sua tia, Victor é introspectivo, encontra-
se recluso, tomando distância dos laços familiares e demonstrações de afeto. No núcleo
de Frankenstein, o abandono, a reclusão e o embate entre morte e vida são temáticas
recorrentes.
Assim como a narrativa de Victor, a trajetória de Caliban também se cruza com a
da obra de Shelley. Ao decorrer do episódio, visualizamos os ideais, valores e referências
que compuseram o personagem. Caliban teve seu nascimento conturbado, enquanto
Proteus foi acolhido como “filho”, esta criatura foi negada e excluída, não foi recebida
por seu “pai”. Na obra de Shelley, o momento que a criatura acorda é aterrorizador a
fisionomia desta, para Victor, também é perturbadora. Essa cena, para o doutor, é descrita
da seguinte forma,

Como descrever minhas emoções diante da catástrofe, ou como esboçar


o infeliz que eu, com dores e cuidados infinitos, havia me empenhado
em formar? Seus membros eram proporcionais, e havia escolhido suas
feições para que fossem belas. Belas! Santo Deus! Sua pele amarela mal
cobria a atividade dos músculos e artérias abaixo; seu cabelo era

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escorrido, de um negro lustroso; os dentes, de uma brancura perolada.
Estas exuberâncias, no entanto, só formavam um contraste ainda mais
horrendo com seus olhos serosos, que pareciam quase da mesma cor
das órbitas de um branco pardo onde se fixavam, e com a pele enrugada
e os lábios finos e negros. (p.83, 2017)

A obra de Shelley traz a visão de Victor acerca de sua criação e pontua seu
posicionamento ideológico em relação à “monstruosidade” que ele criara, antes mesmo
que ela perceba seu lugar no mundo. É assim que o doutor é representado na obra e, neste
paralelo, é em semelhante tom que Frankenstein e sua criatura são representados na série
Penny Dreadful. Caliban nasce em agonia, há sangue pelo chão e raios, trovões, tingem
o céu fora de seu laboratório, elementos que constituem o cenário aterrorizador de
nascimento desta criatura.

Em seu nascimento, a primeira ação humana experimentada por Caliban, diferente


de seu “irmão” Proteus, foi a negação. Assim como Frankenstein, a criatura é composta
por retalhos, pedaços emocionais costurados, marcas do sujeito se constituiu a partir da
perda e ausência em lugar da fraternidade. Sem seu “tutor”, como Proteus teve em Victor,
Caliban reside na casa que outrora fora de Frankenstein e passa a observar a cidade a
partir de uma janela voltada para as ruas movimentadas. Sem seu “tutor”, como Proteus
teve em Victor, Caliban reside na casa que outrora fora de Frankenstein e passa a observar
a cidade a partir de uma janela voltada para as ruas movimentadas. É importante salientar
que o lugar que a criatura ocupa para observar o homem é na margem, afastado do
convívio, em uma fresta (figura 24, 25 e 26)14. A posição da câmera marca este espaço
entre homem e sociedade que se relaciona, também, com o falecimento da tia de Victor.
Ao longe, entre as folhas de árvore e as folhas dos livros, nas sombras das copas e dos
tijolos, estes dois sujeitos revelam a cisão entre si e o mundo.

14
Os fotogramas se referem à série televisiva Penny Dreadful (2014), episódio 03, temporada 1.
Minutagens respectivas: figura 24: 10:17 minutos; Figura 25: 10:18 minutos e Figura 26: 10:19 minutos

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Figura 24: Caliban, a partir da janela, observa os homens

Figura 25: Caliban, a partir da janela, observa os homens

47 | P á g i n a
Figura 26: Caliban, a partir da janela, observa os homens

Os vidros que separam a criatura e sociedade se tornam seus “tutores” e é a partir


desta janela que Frankenstein assimila sobre o que significa ser homem, ali ele assiste à
representação da humanidade na prática. Diferente de Proteus, Caliban não foi
introduzido na sociedade, não foi acolhido pelos homens. A criatura, por meio deste
quadro vivo, observa o tratamento que o homem dispõe ao seu igual, homem com o
próprio homem e, também, entre os homens e os animais. Caliban apreende o homem
como um ser cruel, sádico, a qual baseia suas relações na morte, subjugação e dor. Estas
são as referências afetivas que, a partir da observação, constituem a criatura e a ensinam
como deve se portar na sociedade, uma vez que ela não se reconhece com parte dela, mas
um membro amputado, desagradável, que dispõe de tratamento utilitário, por meio da
violência, como um animal. Este se reconhece, afinal, como bicho. Ao decorrer da
narrativa, ao tentar andar pela cidade, é escorraçado, violentado por sujeitos que não
aceitam tamanha “monstruosidade”. Na casa, a partir da janela, a criatura busca
compreender a relação entre si e o mundo e percebe uma cisão. Esta cisão, também, física
e está registrada na face de Caliban. Ele (a criatura) vê em si remendos, cortes, cicatrizes

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e percebe que não faz parte deste mundo (figura 27, 28 e 29)15. Ele percebe que, se “isto”
é ser “homem”, ele era, de fato, um animal.

Figura 27: A criatura começa a refletir sobre suas cicatrizes

Figura 28: A criatura começa a refletir sobre suas cicatrizes

15
Os fotogramas se referem à série televisiva Penny Dreadful (2014), episódio 03, temporada 1.
Minutagens respectivas: figura 27: 10:37 minutos; Figura 28: 10:38 minutos e Figura 29: 10:39 minutos

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Figura 29: Caliban observa seu reflexo

A figura 17 é icônica. Aproximando-nos de um rascunho para análise, necessária


para entender como o autor-criador, instância valorativa do autor-pessoa, posiciona-se em
relação ao todo desta personagem, observamos a figura 18. Há uma sobreposição de
imagens, revelando-nos parte do todo da personagem mesmo tempo que temos um
momento de introspecção do próprio sujeito que, igualmente, assume uma perspectiva
sobre si. Visualizamos, na esquerda, Caliban tocar seu rosto e concluir consigo, afinal,
que nessa sociedade de homens tão cruéis, ele só poderia ser de fato um animal. Seus
olhos são uma mescla entre amarelo e vermelho, as marcas cortam seu roto quase por
inteiro e sua pele comporta um tom cinzento, de ferro, como se este fosse máquina ou,
então, qualquer outra coisa, menos “homem”. À direita, janela, o quadro vivo que traz
consigo a representação do homem. Há dois planos visuais na cena, sobrepostos, que
enquanto traz Caliban tocando em seu rosto e refletindo sobre quem, de fato, ele é neste
“mundo” (des)humano, têm em seu fundo sujeitos que se enquadram na “normalidade”
vagando pelas ruas, distantes, levemente esfumaçados e indiferentes, como é a relação do
próprio Caliban com este círculo social. Não foi por seu criador ou, então, pela relação
amistosa com os homens que a criatura, eventualmente, aprendeu a reconhecer palavras,
mas pelas obras literárias abandonadas por Frankenstein. A partir das palavras, esta
encontrou em contato com os livros de Frankenstein e encontrou, neles, uma espécie de
acolhimento.

50 | P á g i n a
Tanto o livro quanto a janela assumem um papel de tutores à criatura e, como
signos ideológicos, elas refletem e refratam a realidade, tornam-se parte da constituição
de Caliban que passa a se referenciar, posicionar-se, a partir do que apreendeu e das obras,
palavras de outro, alheias, nas quais este se apropria e de maneira intertextual e
interdiscursiva passa a compor o todo estético da personagem. O sujeito se constitui na e
pela linguagem, esta é a mediadora do sujeito na relação com o que é “real” (um dado
real nunca apreendido, mas distorcido pelo caráter ideológico do signo) e este outro faz
parte de um eu sempre inconcluso, que exige a presença deste outro que nos compõe de
maneira combativa, não pacífica, em uma relação dialético-dialógica. Estes seus outros,
a janela, os livros, portanto, relacionam-se dialogicamente com a personagem, revela-nos
estas facetas de uma mesma criatura.
A série, como já pontuado, utiliza-se de intertextos e interdiscursos para
representar suas personagens, constituindo-as, compondo sua arquitetônica enunciativa.
Ainda no terceiro episódio da primeira temporada (Ressurrection), temos outro
acontecimento que se relaciona com o livro. Aliás, é um dos clímaces da obra literária: o
encontro e enfretamento entre criador, deus-homem, e criatura, o primogênito. Diferente
da obra literária, a qual estes se encontram em meio à uma trilha perdida entre montanhas,
na série literária o embate emblemático ocorre na própria residência do doutor
Frankenstein. Após traçar o percurso que cada personagem percorreu para chegar até ali,
cruzando as narrativas do percurso, até aquele momento, entre deus e criatura,
justificando-nos suas ausências, danos e atos. E aqui, novamente, como, temos a
representação do discurso ambivalente que permeia estas personagens: o “velho mundo”
e o “novo mundo”. Temos os valores da modernidade em contestação à antiguidade. É a
partir de Protheus, de sua morte, que Caliban renasce para nós na narrativa. O apagamento
de um sujeito traz à luz o Outro, em um movimento dialético de negação do Ser. Nisto, a
vida que, com a morte, nos traz a ressureição, a criação, outra vida. No enfrentamento,
temos o movimento dialético entre as criaturas: não se trata da morte, mas do que é “novo”
que nasce dos “velhos” valores.
É Frankenstein, um sujeito humano que aspira ser deus que traz a vida à uma
criatura de capacidades e constituição desconhecidas, este é o diálogo que marcado entre
criador e criatura em seu enfrentamento. Caliban assume-se não mais como animal, mas
também nega esta valoração “humana”, este se posiciona como algo além, “novo”,
superior ao “homem”. Esta posição é marcada pelo uso da poesia, de forma intertextual e

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interdiscursiva. Ao citar John Keats e William Wordsworth, poetas pastoris que
recorrentemente em suas obras abordam valores do campo, Caliban pontua que ele é
criação moderna, a qual não se sustenta mais nos valores pastoris, pontuados pela criatura
como “antigos”. A criatura representa a modernidade: a mecanização, o homem-máquina,
as turbinas, os vapores, a noção de “progresso” não apenas industrial, mas ideológico,
subjugando a ideia de “homem” que Victor Frankenstein sustenta e que esses poetas
supracitados sustentam em seus trabalhos.
Este momento é importante para nós. Ao contextualizar esta representação de
Frankenstein e suas criaturas na série televisa, nós seguimos um percurso filosófico:
Penny Dreadful traz a representação do homem da modernidade. A partir da obra literária
de Shelley e a série Penny Dreadful, a qual parte do livro, traçamos nossa reflexão sobre
o que é ser Frankenstein, monstro e homem, vilão e herói. É importante que estas
características sejam observadas ao decorrer de nossas leituras pois consideramos a
pesquisa importante não apenas pela mobilização dos conceitos, aliadas ao método
dialético-dialógico para análise de um enunciado verbivocovisual (marca de nosso grupo
de estudos) mas, principalmente, pela relação entre arte e vida. O discurso do “homem
moderno” que compõe a personagem está marcado sócio historicamente em nosso
pequeno e grande tempo, evidenciando não personagens – podemos enxergar a vida como
uma grande peça, como William Shakespeare propõe a partir de um personagem na obra
As you like it escrita entre 1599 e 1623 – mas homens e mulheres que, de frestas, à
margem, isolam-se ou são isolados em um discurso globalizante, desmembram-se em um
discurso capitalista que exige torpor, a qual não permite que o homem sinta.
Além das duas criaturas aqui abordadas – Proteus e Caliban – há, ainda, mais um
nascimento e, este, diferencia-se dos outros por se tratar de uma criatura feminina. É no
episódio conhecido como Verbis Diablo, primeiro episódio da segunda temporada, que o
doutor traz a primeira figura feminina entre suas criações. Há uma aproximação com o
discurso bíblico, pois, assim como Adão, o personagem bíblico criado do pó por Deus,
Caliban, nessa altura da série autoproclamado “John Clare” (em referência a outro poeta
da tradição inglesa), a criação do homem-deus Victor sente o peso de estar só e clama por
uma companheira. Na obra literária o ato de criação da criatura mulher nunca chega a
acontecer pois Victor sente receio de suas criações procriarem entre si. Na série Penny
Dreadful, por outro lado, Victor, impelido por John Clare, traz Lily de volta à vida para
servir aos propósitos pré-estabelecidos de seu “mestre”: casar-se com John Clare. O nome

52 | P á g i n a
escolhido pelo autor-criador também não é à toa, uma das referências ao nome “Lily”
dialoga com a prima de criação de Victor Frankenstein na obra literária de Mary Shelley,
como o seguinte excerto nos revela:
A partir de então, Elizabeth Lavenza se tornou minha companheira de
brincadeiras e, ao crescermos, minha amiga. Era dócil e de bom
temperamento, mas alegre e travessa como um inseto de verão. Embora fosse
cheia de vida e animada, seus sentimentos eram fortes e profundos e sua
disposição incomumente afetuosa. Ninguém desfrutava melhor da liberdade
do que ela, embora ninguém se submetesse com mais graça ás restrições e aos
caprichos. (SHELLEY, 2017, p.53)

Na obra literária o próprio Victor Frankenstein ressalta o caráter dócil e submisso


de Elizabeth às regras que lhe são impostas e esta característica de Lily-Elizabeth é
mantida na série: a criatura acata aos desmandos e às preferências de seu criador de forma
passiva. Lily, assim como as outras criaturas, acorda sem suas lembranças e Frankenstein
se encarrega de ajuda-la. Por um período, Lily vive com Victor para que ele ajude em seu
desenvolvimento cognitivo e, enquanto a ajuda, o doutor também (re)constrói, aos
poucos, fio por fio, suas memórias de forma que mais lhe apraz. Aliando o acréscimo da
figura de John Clare às suas memórias (nas quais Victor afirma que Lily era sua noiva
antes de ela ter perdido suas memórias) e as visitas da criatura primogênita à sua nova
pretendente, Lily tem sua vida anterior cirurgicamente construída e preenchida. Mas não
é apenas sua memória e seu sistema cognitivo que o doutor trabalha na criatura mulher,
ele também, chamando-a de prima e afirmando, portanto, um laço familiar que lhe
concede uma suposta autoridade, ensina-a a se comportar de acordo com os regulamentos
comportamentais para gênero feminino da época e, partindo destas “regras de etiqueta”,
transforma-a, desde seu cabelo até suas vestimentas e posturas, enfim, impõe-na suas
preferências.
Ao Proteus nascer, Victor Frankenstein recebeu-o. Ensinou a seu “filho” o que é
fazer parte dos “seres humanos”, colocou-o em contato com os homens como se estes
fossem seus iguais. Tratamento diferente foi imposto ao seu outro filho, Caliban.
Enquanto para um a mão de Victor acolhe como pai, para outro, a mesma mão afasta
como carrasco. No caso de Lily, esta não é negada como o primogênito, mas a
participação de Frankenstein no desenvolvimento de Lily não é fraternal. Instaura-se uma
relação de poder. Para Caliban, a voz de Victor é a da superestrutura, hegemônica, que
rechaça sua criação a partir de um discurso plástico, que define os parâmetros para o que

53 | P á g i n a
é aceitável, o que é “humano” e o que é negado, “monstruoso”. A mesma voz hegemônica,
agora, impõe as regras sobre como uma mulher deve se vestir, comportar-se e submeter-
se. Em um primeiro momento Lily se submete aos desmandos de seu criador, sem
questioná-lo e todo comportamento, desta arquitetônica constituída entre os dois, é de
controle, mesmo (e ainda mais) que haja afeição por parte de Victor por Lily. Para o
doutor, Lily se torna um objeto, posse. É possível verificar, no núcleo da criatura-mulher
um discurso bíblico que permeia as personagens: Caliban, como o Adão solitário no
paraíso – condenado a viver em uma reclusão edênica imposta, de cima para baixo, por
Victor – exige de seu criador uma companheira que compartilhe de sua “monstruosidade”.
Assim, Lily é trazida ao mundo com o propósito semelhante à de Eva, a companheira
trazida à vida, por si só, a partir de uma objetificação.
Em determinada altura da trama, no entanto, Lily assume um posicionamento
independente, negando-se a manter-se submissa às ordens de Victor Frankenstein.
Segundo algumas leituras dos apócrifos bíblicos, Lilith foi a primeira mulher de adão,
criada a partir do pó – não de sua costela – como seu companheiro. Esta se rebelou contra
Deus e abandonou o paraíso, negando, simultaneamente seu criador e seu pretendente.
Enquanto, para Caliban, temos a presença de Lily como Eva, para Victor, no entanto, em
uma relação de criador e criatura, Lily assume um posicionamento independente,
colocando-se como Lilith16.

1.4 O discurso frankensteniano na modernidade líquida

A partir de um diálogo com o conceito aristotélico do ethos, pensamos a


concepção de um suposto discurso a qual chamamos de Frankensteinianismo. Para a
construção de um determinado ethos, seleciona-se os traços composicionais éticos para
emoldurar e apresentar uma imagem crível ao interlocutor. O ethos é um artifício retórico
a qual, neste contexto enunciativo que abordamos, a própria arquitetônica da obra faz a
seleção dos recursos – materialidades visuais, sonoras, gestuais, entre outros que
compõem o projeto de dizer do enunciado – para construir uma caracterização da
personagem. Trata-se, por tanto, de características composicionais presentes nas

16
Discutiremos sobre a construção das criaturas em relação ao criacionismo bíblico de forma mais
profunda no capítulo de análise.

54 | P á g i n a
arquitetônicas discursivas que singularizam um discurso comum, um discurso
frankensteniano que permeiam outras produções. É na obra de Shelley, por exemplo, que
verificamos problemáticas que originam nossa flexão, estas problematizações marcam as
relações entre: criador e criatura, criatura e sociedade e, também, entre a criatura consigo.
Refletiremos, neste capítulo, de que forma o autor-criador mobilizou as materialidades
do gênero em questão para elaborar sua arquitetônica, construir seu projeto de dizer.

Victor Frankenstein deseja viver, viver para superar a morte. Mas, a criatura, por
outro lado, deseja morrer. O doutor aspira criar a vida, mas esta “vida” é máquina, vida
que não é gente, deseja a morte. Ao decorrer da obra, temos algumas relações que
caracterizam este discurso que está vivo pela criatura. Na obra literária, em determinado
momento da narrativa a criatura reflete sobre sua condição “monstruosa”:

Ao ler, porém, concentrava-me de modo particular em minha própria


condição e sentimentos. Achavam-me semelhante, embora, ao mesmo
tempo, estranhamente diferente dos seres sobre os quais lia e de cuja
conversa era ouvinte. Identificava-me com eles e os entendia em parte,
mas minha mente ainda era informe; não dependia de ninguém e não
estava relacionado com ninguém. ‘O caminho de minha partida estava
livre’, e não havia ninguém para lamentar minha destruição. Minha
aparência era horrível, minha estatura gigantesca. O que significava
isso? Quem era eu? O que era eu? De onde eu vinha? Qual era o meu
destino? Tais questões me ocorriam constantemente, mas eu era incapaz
de responde-las”. (p.185)

A criatura, neste ponto da obra de Shelley, esconde-se nos fundos de uma pequena
residência e, de lá, observa a vida comum dos moradores. Este “comum” é o que traz
fascínio para a criatura, pois esta não tem a possibilidade de se relacionar da mesma
forma. A criatura, portanto, observa pela fresta, ao longe, apartada, uma vida (in)comum
que lhe é tão próxima, mas tão distante. Neste trecho se revela um dos pontos importantes
para a caracterização de um possível discurso frankensteniano: a fresta. Esta é a cisão na
problemática entre criatura e sociedade. É a partir desta fresta que o monstro se relaciona
com o homem, esta fresta o mostra como o homem se relaciona com o próprio homem e,
a partir daí, nasce uma afeição da criatura e um desejo de se relacionar como igual¸ de
forma humana. Ao sair da “margem” e ir até os homens, os quais tanto tempo a criatura
observou, suas motivações são interrompidas; ao encontrar a criatura, os moradores se
precipitam violentamente em direção à criatura, obrigando-a a se esconder, fugir. Como

55 | P á g i n a
pontuamos anteriormente, há parâmetros construídos coletivamente que definem as linhas
tênues entre o “monstruoso” e o “belo” e, estes mesmos parâmetros, rebaixam a criatura
para um nível trágico, demoníaco e não-humano, portanto. Esta é a concretização da
problemática entre criatura e sociedade: a criatura, a qual fora criada para ser o mais
perfeito reflexo da divindade que reflete o homem, carrega em si, ao contrário, o profano
em suas delineações fisionômicas. Esta é a ambivalência que a criatura porta em sua
constituição.

Esta fresta pode ser verificada em outros enunciados. Na série Penny Dreadful,
este é o momento que a criatura se encontra, reflexiva, na residência de seu criador. É a
partir da fresta, das sombras, que a criatura observa, por exemplo, uma peça de horror
que se passa em Grand Guignol (sequência de fotogramas 30, 31 e 32)17, teatro a qual a
criatura passa a morar – em uma espécie de subsolo, afastado das outras pessoas – em
troca de auxílio no funcionamento da peça.

Figura 30: Caliban nas sombras observando a peça

17
Os fotogramas se referem à série televisiva Penny Dreadful (2014), episódio 03, temporada 1.
Minutagens respectivas: figura 30: 23:08 minutos; Figura 31: 23:09 minutos e Figura 23: 23:10 minutos

56 | P á g i n a
Figura 31: Caliban nas sombras observando a peça

Figura 32: Caliban nas sombras observando a peça

O teatro Grand Guignol, historicamente, é um espaço artístico voltado para as


peças do gênero “horror” e “terror”, figuras horripilantes, assassinos da época e monstros
são representados nas peças. Trata-se de um teatro carnavalizado no qual os valores de
“normalidade” e “monstruosidade” são invertidos: o que está à margem, quem é
renegado, é enaltecido e alvo do fascínio dos homens. É neste lugar que Caliban encontra
moradia. Característica parecida pode ser verificada, também, na obra cinematográfica
adaptada do livro de Victor Hugo: “O Corcunda de Notre Dame” (1995), produzido pelas
industrias Walt Disney. O protagonista da obra é Quasímodo e nos primeiros minutos da

57 | P á g i n a
obra cinematográfica o bufão, que carrega em si, segundo Jean Chevalier (2012), a
representação da figura carnavalizada, nos revela o significado do nome da criança: meio-
formado. Quasímodo se refere à sua constituição fisionômica, uma “criatura” criada ou,
melhor, moldada em sua cognição e constituição psicológica, por Claude Frollo, um
bispo. No início da obra, ao nos contextualizar o embate da mãe de Quasímodo, uma
cigana, contra Frollo, o bispo, o bufão leva nosso olhar à uma representação, por meio de
fantoches, do crescimento do protagonista que sobe as escadas do campanário e, logo em
seguida, questiona-nos: “Quem é o homem e o monstro, quem é?”. Logo no início,
portanto, o bobo (que não é da corte, mas das ruas) já nos traz a ambiguidade que compõe
o núcleo narrativo de Quasímodo e Frollo, os valores e o parâmetro plástico, de aceitação
coletiva, são colocados em cheques no questionamento, uma pergunta aberta a qual nos
exige um posicionamento estético, uma reposta.
Nesta narrativa, a criatura vive em um campanário e, a partir deste lugar, lá de
cima, espaço a qual não tem autorização para deixar, ela observa os homens viverem de
forma despretensiosa (sequência de fotogramas 33, 34 e 35)18, indiferentes, alheios ao
círculo fechado ditado pelas delimitações valorativas que pautam a reflexão acerca do
aceitável ou não em uma perspectiva plástica. Quasímodo, então, observa, questionando-
se o porquê de não poder fazer parte destes grupos. É a fascinação da criatura pelos
homens, este campanário também ensina Quasímodo.

18
Os fotogramas se referem à obra cinematográfica Corcunda de Notre Dame (1996), respectivas: figura
33: 14:22 minutos; Figura 34: 14:23 minutos e Figura 35: 14:24 minutos

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Figura 33: Quasímodo observando a vida "comum" da cidade

Figura 34: Quasímodo observando a vida "comum" da vida

59 | P á g i n a
Figura 35:Quasímodo observando a vida "comum" da cidade

Este é o primeiro elemento que caracteriza um possível discurso frankensteniano


e que, também, permeia no enunciado de Quasímodo, o quase-homem, pois este vive e
observa o mundo à sua volta a partir das sombras, das frestas, como a criatura
frankensteniana na obra de Shelley e como, também, Caliban, representado na série Penny
Dreadful. A figura 21 dialoga com a figura 17 e 20, pois estas representam este elemento
composicional do discurso que chamamos de frankensteniano nesta pesquisa. Em Tim
Burton, no filme Edward Mãos de Tesoura é o personagem Edward que, do alto de seu
castelo, com suas paletas que variam entre o cinza e o preto, também observa o universo
que se desenrola sem sua presença, um mundo colorido que não aceita seus tons (Edward)
(sequência de fotogramas 36, 37 e 38)19. Na obra de Tim Burton, Edward Mão de Tesoura
(1995), Edward vive isolado em uma pequena mansão. Assim como é possível visualizar
como o aspecto profano do discurso frankensteniano se concretiza na constituição plástica
da criatura de Shelley e de Quasímodo, Edward é tem correntes, metais, amarrados em
seu corpo, tesouras – uma ferramenta que corta, machuca, fere as pessoas “normais” que
se aproximam – e sua cor, também, apresenta-se em um tom metálico, ferro, um homem-
máquina que ainda não foi terminado.

19
Os fotogramas se referem à obra cinematográfica Edward Mãos de Tesoura (1995), respectivas: figura
36: 05:13 minutos; Figura 37: 05:14 minutos e Figura 38: 05:15 minutos

60 | P á g i n a
Figura 36: Edward observando a cidade a partir de sua fresta

Figura 37: Edward observando a cidade a partir de sua fresta

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Figura 38: Edward observando a cidade a partir de sua fresta

O contato entre Claude Frollo e Quasímodo, entre criador e criatura, é de


submissão subserviência. Assim como em Frankenstein, Quasímodo tem sua fisionomia
esquadrinhada e julgada como profana, algo pecaminoso e grotesco. Frollo e Frankenstein
afastam-se de seu eu-outro, os mantém presos, pois representam seu lado “vil”, não-
humano, assim como a criatura de Frankenstein, Quasímodo, o quase-homem, não
representa a apoteose de seus criadores. Enquanto, para Frankenstein, o julgamento se dá
nos parâmetros da cientificidade – a partir da ciência, Victor se tornar, assumir a
autoridade “divina” e agir como Deus – em Frollo, é pela perspectiva de uma extrema
religiosidade que o ato de cisão entre criador e criatura se concretiza. Neste caso, Frollo
não se apresenta como um criador – ao estilo de Victor Frankenstein – biológico, mas
ideológico, valorativo. O espaço onde reside a fresta a qual a criatura “aprende” sobre o
que é ser “homem” é a própria igreja de Notre Dame, o símbolo máximo de contrição,
como a tentativa de apagar seu lado profano por uma suposta religiosidade, que, por si
só, têm um apelo social virtuoso. As estatuas que vivem com Quasímodo e assistem o
desenrolar da vida cotidiana o fazem refletir sobre si e o mundo, fazem-no questionar
sobre a humanidade, atuam na constituição de Quasímodo como a família que a criatura
de Frankenstein observa.
No caso de Edward, o criador se mostra ausente. Ao ser construído, seu criador lhe
ensinou a ler e portar-se socialmente, tomando-o como filho, um proteus de seu
Frankenstein. Chega o momento em que seu criador decide termina-lo, dar um corpo

62 | P á g i n a
humano, substituir suas mãos de tesouras afiadas, por mãos humanas. Enfim, integrá-lo a
seu círculo social. Antes que pudesse fazê-lo, no entanto, o criador de Edward tem um
ataque cardíaco e falece em sua frente. A cena deste falecimento é emblemática, traz a
ausência do criador que marca a constituição (física, emocional e psicológica) da criatura
a partir dali e, também, concretiza o rompimento da relação entre criador e criatura, pois
são suas mãos de tesoura que perfuram o “objeto” que faria parte de seu corpo humano
(sequência de fotogramas 39, 40 e 41)20, livrando-o da condição de máquina.

Figura 39: Edward perfurando, com as mãos de tesoura, suas mãos humanas

Figura 40: Edward perfurando, com as mãos de tesoura, suas mãos humanas

20
Os fotogramas se referem à obra cinematográfica Edward Mãos de Tesoura (1995), respectivas: figura
39: 1:26:13 minutos; Figura 40: 1:26:14 minutos e Figura 41: 1:26:15 minutos

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Figura 41: Edward perfurando, com as mãos de tesoura, suas mãos humanas

Em determinado momento da narrativa de Quasímodo, este abandona o campanário


e desce até o “mundo dos homens”. Ao descobrirem que a fisionomia deformada do
protagonista não se tratava de máscaras, mas de sua verdadeira face, este é amarrado e
marcado como alvo de desafetos: frutas, verduras, objetos são jogados em seu corpo e
rosto. Este momento marca a segunda característica do sujeito frankensteniano: o
afastamento do homem “normal” à uma aparente “monstruosidade”, a concretização do
parâmetro social que rebaixa o homem Quasímodo à um quase-homem. O laço do “ser
humano” que “age” (ser humano enquanto ato) de forma violenta, primitiva, da mesma
forma como se tratam os animais, aproximando-se do tratamento disposto, tanto pela
família quanto pelo seu próprio criador, à criatura do doutor Frankenstein na série Penny
Dreadful e, também, na obra de Shelley. Algo semelhante ocorre com Edward. Em
determinado momento, ele tenta se integrar ao círculo social “normal”, mas é negado por
ele quando aplicam um golpe no protagonista, atribuindo-lhe um crime que não cometera.
Ao saber do crime, a sociedade precipita, também, de forma violenta, acusatória, sem
apurar o que houve de fato, mas julgando-o criminoso por sua aparência maléfica, nos
mesmos termos que Caliban, em Penny Dreadful.

64 | P á g i n a
Estes elementos compõem este sujeito que chamamos aqui de frankensteniano.
Trata-se de sujeitos que, a partir da relação com o outro, reconhecem-se como animais,
demônios, máquinas que não sentem, amam, pensam, mas devem sofrer. O sujeito, para
Bakhtin, é um ser social, em diálogo, que se constitui no olhar valorativo, no
posicionamento estético, do outro, diferente, por exemplo, do que Volochínov chamará
de “biologismo histórico” (1935, p.32), a qual vê a constituição da (in)consciência do
homem apartado do meio social, de forma centrífuga, biológica. Para o Círculo, o homem
não é apenas um objeto, um fenômeno biológico, mas um sujeito histórico, social e
cultural.
O homem, para o psiquismo, é um ser que se altera e se desenvolve a partir de
fatores internos, mas para o Círculo, estes fatores são internalizados, tendo sua origem
no social. Nós não somos apenas um casulo. Um ser independente (no sentido de
autossuficiência), de constituição à margem (como defende Saussure ao afastar a língua
do homem, da realidade sócio histórica, colocando-a em uma nuvem utilitária). Temos
um corpo. Os parâmetros sociais buscam nos delimitar em nossos desalinhos plásticos,
mas não nos findamos nos ferros, retalhos, pedaços, argolas que se fazem presentes em
nossa epiderme física. Estamos e somos, moramos e nos constituímos, na palavra,
diálogo, nos olhos do outro. O homem revela-se palavra, inconclusa e multifacetada, com
suas formas “relativamente estáveis”, mas que se constitui e adquire seu contorno
significativo e enunciativo na vida, na língua, na dinamicidade das interações sociais e
não nas estruturas engessadas, (2016) como Bakhtin pontua ao falar sobre gêneros
discursivos. Somos constituídos por aspectos sintáticos e fônicos, aspectos que nos fazem
reconhecer humanos em uma perspectiva cartesiana, biológica, mas que se concretizam
no social, na vida e no diálogo.
Defendemos que o discurso frankensteniano tem três grandes rompimentos como
suas características centrais: a relação problemática e abusiva, ou de ausência que fere,
entre criador e criatura, a qual o primeiro nega o segundo a partir de um discurso religioso,
filosófico, científico, enfim, apontando-o como disforme, profano ou contraditório em
uma relação de deus e criação; o rompimento entre a criatura e a sociedade que, a partir
de parâmetros que delineiam as noções de “beleza” e “monstruosidade”, rebentam-se
violentamente à criatura, espantando-a e marcando a linha que divide o “homem” deste
“não-homem”; e, por último, a terceira característica é a relação da criatura consigo. Na
obra de Shelley, há um momento em que a criatura reflete:

65 | P á g i n a
Admirara as formas perfeitas dos meus aldeões – sua graça, beleza e seu
aspecto delicado, mas como fiquei aterrorizado ao me ver refletido num lago
cristalino! A princípio, recuara, incapaz de acreditar que era realmente eu
quem estava refletido no espelho; e ao ficar plenamente convencido de que
era de fato o monstro que sou, fui tomado pelas mais amargas sensações de
desânimo e mortificação. Ai de mim! Ainda não conhecia totalmente os
efeitos fatais dessa infeliz deformidade. (2017, p.163)

Este trecho nos traz um ponto crucial para a nossa reflexão: quando a criatura se
torna seu próprio carrasco, agride-se e percebe que, “de fato”, ele é um monstro. Esta
terceira característica se revela em várias facetas: o homem consumista, que se
desmembra, abando-se e retalha-se, abre buracos em si para alcançar os objetos do status
quo de sua “categoria” e substitui esses vazios, buracos, estes membros sacrificados, por
produtos, materiais sintéticos, como uma compensação e consolação pela dor que se
infligem ao perceber que não faz parte do grupo de consumo que gostaria de ser. A outra
faceta, também, é a insensibilidade a qual é incentivada devido à tecnologia: em um
aparente discurso de “globalização” e “aproximação” dos sujeitos, na Era das mídias e
redes sociais, isolamo-nos. Substituímos as relações da vida, do dia a dia, por relações
fluídas, efêmeras, fugazes, a qual Bauman chamará de líquida. O homem, agora, derruba
os preceitos concretos que conduzem as interações sociais e se individualiza, esta
desestabilização e inconstância nas referências que foram estabelecidas socialmente se
diluem, tornam-se líquidas e é nesta liquidez que o homem frankensteniano se encontra.
O homem que tinha sua solidez em determinado preceito, reformula seus paradigmas
inúmeras vezes, a partir de diversas referências, formando-se de retalhos, construindo-se
a partir de pedaços, um mosaico inconsistente e, por que não, conflitante.
Assim, não somos compostos, como a criatura frankensteniana, de pedaços
humanos, mas nos tornamos máquinas, pedaços emocionais, padronizadas, categorizados
pelo estilo de vida que as televisões, filmes e programas de televisão constroem e nos
empurra e, fora dos mercados, somos colocados nas estantes ou descartados. Se somos
jogados fora ou enaltecidos, fica a critério do parâmetro entre “beleza” e “normalidade”,
“aceitável” ou “não aceitável”, da padronização líquida que não nos permite ser sólidos.
Na obra de Zygmunt Bauman intitulada “Sobre educação e juventude”, o autor discorre
sobre o consumismo na era da pós-modernidade e reflete que, hoje, consumir é mais que
necessidade, é dever (2013). O homem moderno é fruto da revolução industrial e do
capitalismo, a dinâmica do mercado que se desenvolveu ao longo dos anos tornaram os

66 | P á g i n a
homens produtos e humanizaram as marcas, o consumo se tornou o centro do homem e,
aí, estes grupos, guetos¸ foram separados de acordo com a renda. Na obra “Industria
cultural e sociedade” (2002) Theodor Adorno afirma, sobre esta dinâmica de mercado
que altera as relações sociais, que

Para todos alguma coisa é prevista, a fim de que nenhum possa escapar; as
diferenças vêm cunhadas e difundidas artificialmente. O fato de oferecer ao
público uma hierarquia de qualidades em série serve somente à quantificação
mais completa, cada um deve se comportar, por assim dizer, espontaneamente,
segundo o seu nível, determinado a priori por índices estatísticos, e dirigir‐se
à categoria de produtos de massa que foi preparada para o seu tipo. Reduzido
a material estatístico, os consumidores são divididos, no mapa geográfico dos
escritórios técnicos (que praticamente não se diferenciam mais dos de
propaganda), em grupos de renda, em campos vermelhos, verdes e azuis. (p.7)

Somos “livres” para vagar em nossas celas catalogadas e personalizadas para nós,
sem a possibilidade de diferir, correndo o risco de sermos expulsos para a “margem”,
ridicularizados até entre os sujeitos “carnavalizados” que, também, têm seus parâmetros
estabelecidos, os quais exigem obediência. A importância de se discutir a figura da
criatura frankensteniana é pensar em como, nesta sociedade pós-moderna, o homem vive
como um ser-sem-vida, sem ter no que se apegar. Na obra de Shelley, Victor Frankenstein
deseja viver para superar a morte. Assim, como um deus, o doutor anseia por criar a vida,
mas, esta vida sintética, como máquina, que é dada à criatura, não é vida. Esta deseja,
portanto, morrer. Este ethos não está somente nas animações de Corcunda de Notre Dame
e personagens da Disney, tampouco, apenas, no universo utópico de Tim Burton, mas os
sujeitos se veem a partir destas criaturas retalhadas e marginalizadas. Todos estes são
sujeitos que não se aceitam e se assumem carrascos de si, um eu-outro autoritário que
não tolera desníveis. Sofrem a pressão da sociedade que julga este ou aquele pela
expectativa estética ou financeira, perante esse cenário, então, as “criaturas”, os
frankensteins do dia a dia, mutilam-se para que possam se encaixar. Arrancam os
pedaços que não cabem na bolha almejada. Nosso mundo contém diversos quase-
homens, criaturas frankenstenianas, homens-máquinas com suas mãos, pernas,
barrigas, dentes, “defeituosas” e “disformes” demais para o fetiche social e são estes
que, aqui, são contemplados.
Na série Black Mirror (2011), criada por Charlie Brooker, a tecnologia e as
inquietações do mundo pós-moderno se tornam protagonistas. De forma antológica, a

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série televisiva retrata situações em um mundo alternativo, mostrando-nos o impacto dos
aparelhos tecnológicos e a integração – nem sempre “positiva”, e aí está a questão – entre
esta tecnologia e a vida cotidiana. É como um “espelho negro” que nos traz o reflexo do
mundo atual, e a partir daí nos supõe o homem da pós-modernidade. Cada episódio nos
traz uma situação, reações e interações entre os sujeitos e este “futuro” tecnológico, em
como o homem substitui suas partes humanas por produtos, aparelhos, enfim, uma
paródia da pós-modernidade que se tornou escrava da tecnologia.
No segundo episódio da terceira temporada intitulada “volto já”, uma situação é
trazida ao campo de reflexão: e se pudéssemos trazer os mortos de volta à vida? É isto
que a tecnologia propõe: a vida após a morte. No episódio, a personagem Martha é casada
com Ash e estes se mudam para uma casa no campo, distantes da “cidade grande”. Ash é
aficionado por tecnologia e, desde o início, a série ressalta o apego do personagem ao seu
smartphone, aparelho a qual ele utiliza para compartilhar sua vida, “pedaços” de sua
rotina, beirando à desatenção e desconexão com o mundo ao redor. Um dia após a
mudança, Ash falece em um acidente com a van que estava dirigindo. Martha, sozinha,
sem Ash, descobre-se grávida e, após pensar a respeito, decide, relutante, experimentar
um serviço online que permite que os sujeitos estabeleçam contato com a pessoa falecida.
O programa responsável por tal façanha reúne todos os perfis online da personagem
espalhados nas redes sociais, compondo um retrato, um traço distintivo a partir de seus
fragmentos virtuais, e, assim, o programa cria um “novo” Ash. De forma gradativa o
sistema recria a personalidade, enviando mensagens apenas verbais, com palavras e
expressões que o próprio falecido utilizava em suas interações. Com autorização de
Martha, o programa acessa vídeos e áudios de Ash, para que possa recriar sua voz e se
comunicar verbalmente com seu “criador” em ligações telefônicas.
A personalidade virtual que tenta recriar o homem falecido não se limita a
responder de forma aleatória, mas, molda-se, e a partir de um sistema baseado na
inteligência artificial, a “criatura” busca se desenvolver e saber mais sobre o sujeito que
este deveria “representar” e sobre as coisas que a cercam, afim de alcançar uma
naturalidade humana, substituindo carne-e-osso. Ao longo da narrativa, por meio de
conversas verbais com a “duplicata”, Martha se apega àquele “Ash”, atualizando-o sobre
sua gravidez e se permitindo, cada vez mais, a acreditar que aquele é seu falecido marido.
Em determinada altura do enredo, o “homem-virtual” a informa sobre o terceiro nível
deste serviço de “reconstituição”: um corpo, físico, composto por fibras, retalhos, corpo

68 | P á g i n a
sintético a qual pode fazer “download” da consciência de Ash, trazendo-o de volta à vida,
apesar de ser em uma perspectiva fictícia, artificial. Martha adquire o corpo com a
empresa e segue às instruções. Assim, traz à vida seu marido morto, a partir de um
manequim sintético, pedaços brancos encaixotados (como um produto que chega da loja
deve ser) (sequência de fotogramas 42, 43 e 44)21 que, ao final, adquire quase totalmente
a fisionomia, aparência, de Ash (45, 46 e 47)22. Alguns pequenos detalhes como cor do
cabelo e pintas são incorporados a partir das sugestões da própria Martha, afim de se
aproximar o máximo possível do “verdadeiro” Ash, mesmo nas pequenas características
genéticas que o tornava “singular”, “único”.

Figura 42: O manequim de "Ash" encaixotado

21
Os fotogramas se referem à obra cinematográfica Black Mirror (2013), respectivas: figura 42: 25:24
minutos; Figura 43: 25:25 minutos e Figura 44: 25:26 minutos
22
Os fotogramas se referem à obra cinematográfica Black Mirror (2013), respectivas: figura 45: 31:44
minutos; Figura 46: 31:45 minutos e Figura 47: 31:46 minutos

69 | P á g i n a
Figura 43: O manequim de "Ash" encaixotado

Figura 44: O manequim de "Ash" encaixotado

70 | P á g i n a
Figura 45: Martha com o Ash artificial

Figura 46: Martha com o Ash artificial

71 | P á g i n a
Figura 47: Martha com o Ash artificial

Para nós, a grande questão do criador é a sua motivação para a criação.


Frankenstein, tanto em Penny Dreadful como na obra literária de Shelley, almeja a
superação da morte para que não tenha mais que lidar com ela. Uma vez que perdeu
pessoas importantes como sua mãe, tia, seu cão, enfim, Frankenstein se esforça para
interromper o ciclo que causa dor e, assim, cria a vida, a qual também se torna dolorosa.
Essa nova vida, no entanto, não vive. E este aspecto da integração da tecnologia, elevada
à sua máxima potência, é muito bem representada nesta série televisiva, pois Martha não
sabe lidar com a ausência, a morte de um ente e, assim, tenta substituí-lo por uma
máquina. O programa que traz Ash de volta, recolhe os pedaços perdidos, costura, faz
uma colcha de retalhos, assimila, cria algo novo, uma vida (mesmo que superficial,
sintética, que não vive de fato) que vêm da morte e o método utilizado reflete o
“progresso”, algo que está além do homem – o mundo novo que tenta se sobrepor ao
mundo “velho”. Martha mutila-se, substitui não os membros físicos, retalhando-os e
remanejando-os, mas se fere emocionalmente, tapando buracos para que não precise lidar
com eles. Ao decorrer da série, em determinada altura, Martha decide não continuar a
convivência com o “protótipo” de seu falecido companheiro porque ele não apresenta
sentimentos, emoções, trata-se de uma casca, um produto, para cobrir lacunas. O androide
também falha com os traços comportamentais que Ash possuía e, agora, em forma de
máquina, não possui.

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Figura 48: Filha de Martha visita o androide Ash

Figura 49: Filha de Martha visita o androide Ash

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Figura 50: Filha de Martha visita o androide Ash

Ao final do episódio, somos levados ao futuro. Vemos o fim que Martha resolve
dar à sua criatura: escondê-la no sótão e, durante os fins de semana, permite que sua filha
possa vê-lo (sequência de fotogramas 48, 49 e 50)23. E lá vive seu androide, sua criatura,
no campanário, castelo, teatro, enfim, na casa de seu criador, escondido como um de seus
temores. E é disto que se trata esta criatura: esconde-se ali, longe e perto de seu criador,
sob controle, representando não o pecado como em Frollo, não a apoteose de
Frankenstein, mas o luto. A dor da morte que não deve ser sentida, a qual a era da
tecnologia, que substitui a vida, oferece para àquele que se reconhece em Victor
Frankenstein.

23
Os fotogramas se referem à obra cinematográfica Black Mirror (2013), respectivas: figura 49: 46:51
minutos; Figura 50: 49:52 minutos e Figura 50: 49:53 minutos

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