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Cino Verbo

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Cino

verbo
INICIAÇÃO

Os Ardentes Caminhos
Fica vindo na cabeça:
Cachorro
Cachorro
Ave
Cão
Pássaro
Cachorro

Por qual razão,


Âmbar? Explica-me.

Você vem:
Te vejo já do outro lado
do lago
aspirando a umidade,
toda a umidade proveniente
das cascatas centenárias
do sentimento de Deus.

Você vem:
Aspira o aroma da minha pele
com o teu longo focinho branco
e eu aliso o veludo
das tuas esguias orelhas.

A espinha arqueada na carcaça magra.


E as tuas axílas de pele macia e rósea,
tão finas.
E uns pequenos olhos, tão fundos,
âmbar.

Você senta
na relva rochosa, ao meu lado esquerdo.
À tua esquerda, senta-se a Morte.

Ah! Não nos fale mais dos dias encantados...

Você irrompe
o vácuo terreno
com a tua voz tão terna
em francas palavras
proferindo a tua ária
árida de emoção
tênue com a seiva
do êxtase estético.

Ei-lo lá, o pêndulo constante cinético.


E no entanto, sobretudo e abaixo
a tua palavra de cerne:
a Ponte.

Você então me conta duns corredores abertos


irregulares
pelos quais marchara uns dias atrás:
No breu seco da noite, avistara cavalos
estáticos
no breu seco da noite:

Vasto espaço para a marcha!


Tucanos marchando no véu celeste,
Carcará meditando sobre a rocha.

Você levanta, de súbito


apressa as patas por entre os arbustos, cheirando.
Mija o teu mijo canino, alegre assim
e senta outra vez, ereto:
Contar-lhe-ei:

Suas planagens de suprema precisão


por sobre as cadeias montanhosas
cadeias vaporosas
e os dez mil membros estirados
dessa vegetação reticente
saudando-me.

Seus gritos, agudamente arcaicos


cheios de pedra e lava – em Si
revelam a sabedoria
plena
num plateau
de ventanias inteligíveis.
E você... que abriga no estômago
um aviário furioso
deveria olhar-lhes o voo:

O elemento volúvel de si
de núcleo esquivo
porém alcançável –

O Pássaro:
Berrando os conhecimentos inauditos
Honrando a natureza dos caminhos da razão
Puríssima?

Seus percursos calculados


em divína erudição
nada corrupta, nunca pedante,
afiada como a nobre mente:
o Sem-Nome.

Ah, Âmbar!
Não me fale mais dos dias encantados.1
Não se cansou já dos ardentes caminhos?
E neste dia Âmbar ergueu uma pá...2
em vez de observá-la para ver se
entraria em ação

Rebis disse a seu filho... como já havíamos em outro lugar


registrado/disse: cuidado com o seu fascínio
Mas, por outro lado, pensou que
lhe faria um favor pondo-o na comissão, se e era o que queria
e carecia mesmo de cair nas fossas comuns, assim aprenderia
alguma espécie para onde as coisas tendem a retornar
no Meio
ou vertical ou horizontal
e tendo-o seduzido à Sua imagem, a ele que se deixou seduzir,
nada faria para retê-lo

Que logo caiu e rolou ao longo de um corredor de 10 mil pés


e cessou com um fragor de vitrais
(inquebrável como o demonstrou)
e com a indagação: O QUE ESTÁ VINDO?
“Vou dizer-lhe o que está vindo
A Coniunctio está vindo
algo prematuro mas eficaz
para objetivo imediato
as coisas têm fins (ou objetivos) e começos. Saber
o que precede e o que segue
ajudará a sua compreensão do processo
vide também Epictetus e Sirius Canis Major.

E dia seguinte partiu de seu antro3, indiferente a tudo que era fami-
liar, evitando pressão moral, igual a vários outros jovens cães mise-
ráveis. Mas este Cão estava tão entediado e perturbado que se enca-
minhou à Morte como a um terrível e fatal embaraço. “Não” tendo
amado humanos – porém, ardente! – sua alma, seu coração e toda
sua força foram treinados em estranhos, tristes erros. A partir dos
seguintes Sonhos – seus amores! – que lhe vieram na cama ou na rua,
e da sua sequência e consequências, doces considerações religiosas
podem ser derivadas.

Mas, esse bizarro sofrimento possuindo uma autoridade problemáti-


ca, é preciso sinceramente ter esperança que esta Alma, perdida por
entre todos nós e que, ao que parece, quer a Morte, encontre neste
momento consolações sérias e será digno!

Se parecer se vangloriar demais4, sua desculpa é que alardeia para a


humanidade, e não para si mesmo; que seus defeitos e incoerências
não afetam a verdade do que diz. Apesar de muita hipocrisia e fingi-
mento – joio que acha difícil separar de seu trigo, mas que lamenta
como todo mundo – , esse Cachorro irá agora respirar e se esticar
à vontade, de tanto alívio que isso traz ao seu sistema físico e moral;
e decide que não vai se tornar o advogado do Diabo, ou de Deus,
só por humildade. Vai se empenhar para falar a favor da Verdade.
Ah! Essa Ponte, sua eterna travessia. Parecia apropriado, seguindo a
lei da correspondência dos lados, ter o Ofício da Palavra como coro-
ado meio de clamar o Sem-palavra. Disse: “Não sou nenhum animal
eleito, menos ainda sou anjo feito. Possuo nem dádiva alguma que
a qualquer irmão não constitua. Apenas reopto, aurora pós aurora,
por penetrar o Mistério, porta traz porta”. Mas o pôr-me em obra
através de Âmbar, a que avessos nos levaria eu não sabia. Era o Cão a
flanar atrás do próprio rabo, prenhe dos tênues elementos psíquicos.
Juntos, éramos a utopia do ponto de convergência, pensei,

A jovem de olhar brilhante e pele desbronzeada5


O belo corpo de quase vinte anos que devia estar nu,
E que, a fronte rodeada de cobre, sob a lua
Adorou, na própria pele, um Gênio desconhecido,
Impetuoso em doçuras virginais,
E negras, orgulhoso de seus primeiros caprichos,
Semelhante aos jovens mares...

Entanto, que ambicionasse ser um sui generis demiurgo Cão, também


guerreava contra servir ao Outro. Seu outro, fosse Lobo, em Si os dois
encerrava. Mas Eu, a Ele servi! E isso foi pena. Para os meus outros e,
em fins, para as suas próprias penas. Pois, durante que acumulando os
canídeos poderes em seu centro, os abeirados meus experimentassem
sentir da sua branca febre silvestre somente tal desbalança endiabrada.
Fosse ruim, ora benção...: não se haveria o crescer sem essa putre-
fação.

Tudo isso faz com que a melhor maneira de ler esta pequena obra
laica, ou pagã, sobre uma irrupção satânica na ordem de uma per-
sonalidade canina buscando a divindade, seja seguindo os “fatos”, a
“trama”, bem como os sujeitos e objetos, de um lado ao outro através
da nossa Ponte, demorando na página o mínimo possível. Ao menos,
assim Nos parece.6

No meio, não apenas no meio do caminho7


Mas em todo o caminho, num bosque escuro, num espinheiro
No limite de um lamaçal, onde não há base segura aos pés
E ameaçado por monstros, luzes extravagantes
Arriscando encantamento. Não me faça ouvir, Âmbar,
Da sabedoria dos velhos cães, mas de sua loucura,
Seu medo do medo e do frenesi, seu medo da possessão,
De pertencer a Outro, ou a Outros, ou a Deus.
A única sabedoria que podemos esperar adquirir
É a sabedoria da humildade: a humildade não tem fim.

Mas se você seguir este processo8



Moral?
não uma quantidade de signos, mas o signo único
etcetera
mais sempre Arte
e de Arte de volta ao Si mesmo.

Lembra-te, filho da Terra9, que aquele que afronta o Desconhecido


se encaminha para a ruína.
Os espíritos hostis, figurados pelo Lobo, esperam pela emboscada.
Os espíritos servis, figurados pelo Cão, escondem suas traições sob
vis adulações.
Observa, escuta – e aprende a calar-te
para então falar-se.

“Eu...”10

O que fica longe quando se pensa?


referências bibliográficas

1. Os dois últimos versos deste poema são referência direta aos


versos-refrão do primeiro poema escrito por Stephen Dedalus,
no Retrato do artista quando jovem, James Joyce.
2. Adapt. de enxerto do Canto LXXVII, Os cantos, Ezra Pound
3. Adapt. de enxerto de Desertos de Amor, Arthur Rimbaud.
4. Adapt. de enxerto Walden, H. D. Thoreau.
5. Adapt. de versos de A. Rimbaud citados por Pasolini em uma das
enunciações de Teorema.
6. Adapt. de enxerto da presentação de Teorema, por Pasolini.
7. Adapt. de enxerto de East Coker II, N. 2 dos Four Quartets, T. S. Eliot.
8. Excerto de Canto LXXXV, Os cantos, Ezra Pound.
9. Axioma do Arcano 18 (A Lua ou O Crepúsculo) do Tarot Egípcio Kier.
10. Excerto do Canto LXXIX, Os cantos, Ezra Pound.
PRIMEIRA PARTE

A Morte
A luz agora, não do sol,
Abaixo, para os grandes penhascos de âmbar.
Esplendor, como o esplendor de Hermes,
E então saiu do mar para o lugar de pedra.11

A Morte acomete o sentimento do Bicho e o do Humano.


À sua esquerda para manter-te sempre grave – sempre
a tensão da sobrevivência da verdade.

E rente assim à tua partida
um animal irmão da mãe que te parira
desacordado faz dias, te tira o sorriso besta
– se não tirar, as Águias virão arrancar-lhe os olhos.

Na outra cidade
logo te acolhe em morada um outro animal-família, este centenário
empesteada, de pés pouco vastos
e você sabe que isto manter-te-á acordada.

Se fosse ela privada da visão, você pensa,


pois já tem os olhos como fendas,
à esquerda deveria ela ter um Cão!

E, grave assim, teu rabo não abana mais outra vez:
A sua presença hei de honrar
o vocábulo sempre cortês
mas nunca em cerimônia.

E às três da madrugada
o animal irmão da mãe que te parira
desacordado faz dias, partira.

E às três da tarde do mesmo dia


chegado à casa da tia-bisavó Mina
ei-lo Vira-lata contemplando a centenária:

Ai ai ai... você se cantarola ao meu lado direito.


Deu agora pra suspirar? me pergunta
Ai ai ai a tua ária dúbia...
Ao mesmo tempo alívio e lamúria.

A vida é essa mesma, você repete: uns vão e outros ficam.


Você ficou: e me conta de Lourdes, tua irmã verônica que se já se foi.

Teima teima, há dez anos que os dias são idênticos. Nem perto quer o
alento dos sóis, também assim dispensa o Vento. E teima teima, há
dez anos que os dias são idênticos. No sofá, chia-se. Na duração da
mortalidade das horas, infindas, ante os canais abertos e as missas,
estes decerto contribuindo no proliferar das daninhas na tua fronte –
toda a Fauna e qualquer Flora, devoradas. Às penas tinha salvas as
memórias robustas dos refinadíssimos tempos de plenitude material:
Nunca quis casar não
Mas tinha vários pretendentes
Um deles foi pra guerra
Ah mas eu não queria fazer negócio com ele não
Queria me levar pro Sertão ele dizia
Mina vamos vai vai vai
E eu vou fazer o que lá no Sertão?
Ah Mina vamo lá vamo lá
Ah mas eu não vou, não
Lourdes era despachada e se queria
Andar a cavalo
Ia falar com o prefeito e ele dizia
Vai Lourdes vai vai vai
Oh Mina vê se você sossega e fica
Aqui em Bananal
Ah não, não vou ficar aqui, não
Outrora quis ir pro Sertão
Mas que que você vai fazer lá Mina
No Sertão, é só mato
Ah mas eu quero ir
Quero ver como é o negócio lá
E a gente ficava de prosa
Sentados na porta da igreja
Eu esperava o padre passar, ia atrás dele
Oh Mina vai embora, vai vai vai
Eu não, eu quero ficar.
Ficada, três vezes seguidas recorda Mina, revés do tempo em suspiros,
o vasto apartamento em Poços. Outras tantas, do revés em lamentos,
se repete na lembrança da sua vasta casa na Dr. Neto de Araújo, que
tinha um vasto quintal, dizia, que me obrigaram a sair da minha casa,
tinha quinze metros o meu quintal, porque todo mundo morreu e eu
não podia ficar lá sozinha.

A vida é essa mesma: uns vão, outros vêm.


E veio-lhe o Cão, ainda que você tenha dito ser indiferente aos Bichos,
– Nunca confieis em quem seja indiferente aos Bichos –,
Este que chegou-lhe junto da estiagem; que trouxe-lhe a tosse.

Ao lado, um grande casaréu é destelhado


e temo que seja em breve demolido:

Temo a iminente demolição


por ainda não conhecer
de todo
o poder que jaz num Canídeo.

Desde que cheguei


a casa é destelhada
e a estiagem nos ataca –
temo pela tua mina centenária.
Outra tarde Mina disse
não saber nem mesmo onde está
e tossiu: Jesus me leva logo para o Céu.

Da cadeira do piano espiei-a


tremendo discreto os bigodes
pensando se a injuriava
tal cuidadosa mineiração
– a Canina indagação –
cogitando se agravava sua vida
o pontiagudo faro
do Animal que ela, nem sabendo, abrigara.

Então você se cantarola la-rá, la-rá, la-rá lá-lálá


E te fito severo, receoso de ser Bicho demais
Mas não, mas sim: – se sou Cachorro devo ser Ponte

e temo muito ter vindo para levar-te.



A vida é essa mesma: uns vão, outros ficam
Mas o quão delicado há de ser o meu ladrar?
E se você quiser partir devo tomar-te?
E se quiser ficar te faço Âmbarlate?
Pois te cansaste já de ficar cantando só
Lá lá lá – é demasiado humana, a vejo:
Do meu outro lado há um terço e não
Sei se nele mijo, ou se ergo aos céus
seus véus.

Pois essa é a minha canção. Eu canto assim a minha modinha:12



Au-au, au-au, auuuuuu...

E com muito zelo, desvelo


o piano ao qual você recusa o aproximar
– há dez anos que os dias são idênticos –
ponho em lânguidas teclas lânguidas notas
minhas alvas patinhas as muito langorosas
por um longo momento
à parte deste tempo
a dedicar-lhe mórbida minuta...

Que finaliza por extrair do poço franco


o meu verde e veemente pranto
temeroso do perigo, o com-sem risco
e furtivo, refugío
a minha besta no cômodo de lumens
onde em perpétua semana habito com o grito
cinza da avenida, uns ornamentos vaidosos e
a imagem da Maria, intocável, pregada sobre
a estreitíssima cama num sinistro holograma.

E ali pouso as plumas recolhidas


acanhadas da vigente liverdade
que firmemente prezo, a venero
mas que pode bem assassinar-te?
No mais, simples mente, porque
também em justo voo desejo lançar-te.

Na casa da senhora, como um grande pássaro gris azulado


voando até as molduras do teto e
arrastando a asa nas sombras da noite.13

Injustos calçados, luxuosas âncoras.


Mina performa apenas débeis rasantes –
tomados por desvário. Ei-lo um:

Urge a anciã garganta ressequida e são convocados os médicos, os


“Sábios” falastrões em jalecos. Exame de Lebres, tais curtos doutores.
Raro bebe Água; por isso saliva escasso – Bah! todo bom Bicho sabe...
E pulam fora da cova. Raio de visita, e nem te levantaram do teu trono.
Mas pelo resto do dia, repetiu: O homem veio aqui – ele me carregou.
Te carregou pra onde, Mina? Pro outro lado da sala. Senhores, o voo!
Aos braços dum fantasma de jaleco você se entrega, dele se recorda
ao resto das trevas, mas esta bela Ponte que ao teu voar eu construo,
toda costurada em ossos e gramíneas, você não enxerga: Sabe quem é
esse Cão, não sabe, dona Mina? Eu, não. Sei que está aqui porque não
tem onde ficar, mas eu não conheço ele não.

Todavia, uma única:


Humilhado, me selo.
Mas logo, inevitável, libero:

O Animal nunca está em desacordo consigo mesmo.14

Lúgubre entardecer, de tão morno delirante inverno: já lhe veio a


primaera? Vasta cadela! O desgraçoso telefonema me floresce dela, da
tia que de perto esta morada vigia; diz com eufêmicos cuidados que,
acabado o prazo duma semana, esse Cão busque abrigo noutra casa,
porque com aquela frágil rotina, oh miserável sina! muito se preocupa
toda a família; – qual família, a querem em vida! que a amam! assim
como ela ama suas velhas coisas. Façamos todas as caretas imagináveis,
e deixem-nos em paz com todo o seu amor: a Morte nos urge atenção
à sua necessidade: este langor.
Explico à senhora: o diabo vige dentro do Cão,
os crespos do Cão – ou é o Cão arruinado, ou o Cão
dos avessos.15

Três horas depois era breu no externo


e já se preparava o supremo sermão da Majestade.

Eramos três, à mesa:


A Cuidadora da noite
O Cão
E Centenária Guilhermina.
Mamávamos de três xícaras o mingau.

A vida é essa mesma: Mina, por entre ásperas tosses, se engasga na


leitosa papa até que todo o seu crânio de escassa pelagem se faz roxo,
gélido deserto enegrecendo. No pavor glacial eram mãos e patas pro-
curando abrir espaço no peito de pele fina, dela que já pairava na
tangente, oxigênio nenhum penetrando-lhe a faringe, já emitindo
os sons horripilantes da travessia, – e que elegância!, que mesmo
sem nada pondo pra dentro, ela punha pra fora os seletos versos:

Estou morrendo
Eu não aguento
Estou morrendo.
A vida é essa mesma: Animal e cuidadora arrastando-lhe os passos
trêmulos na mira do trono ou sofá – hávia dez anos que os dias eram
os mesmos –, ela no esforço de acessar vez última o fôlego, ao mes-
mo tempo que já se atirava ao colo urgente da barca para Cérbero,
ao ir, com Cão. A face vagarosamente empalidecia e à medida que
o respirar lhe era devolvido, o seu azar! a língua ia versando com
dificuldade o seu clamor de despedida:

Estou morrendo
Eu não aguento mais
Essa vida
Não é vida
Eu quero ir para a minha casa
Lá na Dr. Neto de Araújo
Jesus por favor me leva para casa.

A vida é essa mesma: A Cuidadora para ela repetia enquanto abomi-


návelmente quase ria: Não fala isso não Mina, que papai do céu não
gosta. E a isto se erguiam as orelhas de Âmbar, que entristecia rogan-
do em secreto: Vem querida, a liberta dessa sina! do pai de quem fala
esta ignara. Ladro: este aí eu o sento no centro do réu. Eu tomo dele o
bastão. Bastão é de Aves! Você já olhou, vez sequer, para o verdadeiro
Céu? Ou, ainda, já esticou tuas inúteis orelhas na direção das angéli-
cas melodias emitidas pelas aves cânoras? Ah... – já as Viste?!
É assim vista
a Morte em vossa família:
Vastas casas, tias, sinas rasas
e o amor pela mina
em vida a Mina trancafia.

Ladro: que nesse vosso pai a Morte não confia – e somente Ela
Poderá responder aos teus clamores: com a sua não-sabedoria.
Ladro: com Ela fortifico o embrião do verbo enlaçador de mundos.

Achaste um ninho mais macio que cunnus


Ou achaste melhor repouso
Traz teu ano de morte um rebento mais rápido?
Penetraste mais fundo na montanha?16


As emoções rodopiavam enquanto no vácuo eram congeladas. No
entorno da cena Âmbar; as suas cabeças desmortais. Uma mirando
Terror, outra mirando Piedade, paralisadas ante a quase tragédia pela
qual haveria de se responsabilizar, não preciso motivo mais grave que
sua presença Animal. Cabeça, apoiada sobre o ombro da senhora com
seu não-peso, absorvendo-lhe todo o peso. Passado o choque, o sen-
tir depurou-se suspenso como que em êxtase. Salvaguardada a Morte
dela no peito-cão, espécime de fleuma instalava-se entre os batimentos
cardíacos, dando-lhe o aval para a sua emancipação. Certo modo
coroava-se a sua ambígua verdade Cãn... – Era a Morte que agora
amava; e quanto ao Amor, agora parecia-lhe que atrapalhava.

Aves compartilhava Poder com suas patas. De outra história se recor-


dava:

Que viveu um dia um animal-família


Cão ao lado do qual este Cão crescera
Mas que não movi do sentimento nem um único pelo
Quando depois de quase duas décadas dele a canina vida perecera.

Pequeno fiel, em sua alvorada ladrava às gaivotas. Por sobre o relvado


dos mares, enquanto o veleiro contornava ilhas. Que, mesmo em
velho, desbaratava-se nas audaciosas iras com os de grande porte.
Pelo tártaro perdera da boca as presas, a língua pendendo afora –
inda assim ria, ria e caía do equilíbrio perdido. Turvo via em espessa
neblina, e o coração amíude lhe falhava: num natal até cessara. De
valente ao inerte, indagava-se do porquê de seu prevalecer se para
absoluta letargia. Mas horrível artifício seria tomar-lhe a decisão que
ao Cão de todo pertence.
Era que o animal-família,
filho da mãe que te parira,
via que esta profundo sofria: e ficava.
O sentimento acomete a Morte do Humano e a do Bicho:
À sua esquerda a manter-te sempre grave – sempre
a tensão da sobrevivência da verdade.

Pois sendo também Cão, àquele velho não ergueria qualquer


filantropia. Nem o egoísmo de mantê-lo nou o egoísmo de levá-lo;
da velhice sua, a marcha de todo lhe cabia. Prevalecia na amarra de
uma ternura úmida, e por isso não devia a ele ser emprestado serviço
– só partiria findo o seu nobre Servir emocional. Servir emocional.
Cão, alforria às patas que por sobre a Ponte entremundos marcham,
besta alguma presentear-te-á. Ah? A ponte que intencionei construir
à velha fintava Servir, fintava até a filantropia. Era que Servia a nada
mais que o enaltecer do verbocão, a sua sede de poder. Olhava a
barca, verde e vermelha no azul, lado ao Portal.

Dissolveu-se a bruma sepulcral


Todos respiravam de acordo:
A vigia retoma suas levianas dispersões,
O Vira-lata segue no forno.

A centenária devidamente enovelada


Na cama palrea a ermo:
Com os que verdadeiramente palream,
Ou com o seu papai mesmo.
O Cão exalando os fortes odores
Ensopado da afogueada emoção:
De um lado para o outro medita,
Reavalia a sua função.

Equilibra-se duas patas num lado


As restantes asas noutro:
Oferecer-se à velha em sono,
Ou deixar o seu caso solto?

Repente ululara, algum esvoaçar pela sala. Asas de vidro chilre-


avam, eram signos sombrios, sem cor. No oco, ribombos aba-
fados e silvos sustenidos em diálogos, e soube: a dianteira es-
querda, suspensa, em alerta. Pousava no tênue e não havia mais
dúvida: sua marcha, imune. Sua Obra era então mais sutil do
que pensava –, ouvido isto, de pensar cessara. Era mesmo o aval,
era mesmo a Senhora que me bradava do templo livre.

Adentrada dela a escura alcova, onde a rodeavam os espectros


susurrantes. Os pelos neve arrepiados, os bigodes tremeliques.
Na cova ela jazia serena: Ai, ai, ai... Enquanto sentia meu vulto
cândido aproximando-se que logo lhe tocava as frígidas mãos.
Com a delicadeza dum real selvagem, eu lati-lhe: Te agrava a
companhia daquele Cachorro? diz-me se quer que ele se vá Em-
-Boa-Hora. Replicou-me: Ah não, ele é tão bonzinho, ele tem
paciência comigo...– E os fantasmas, em redor, abanando seus
vastos rabos.
Sua Morte, prolongada à desértica espera. Minha sorte, essa fremente apatia
de fera. Não precisava de minhas patas, ela. E fremiam, eram pássaros do
tamanho de insetos, conduzindo os passos cães ao leito de teias, não ao
dela mas ao só próprio, onde iria refocilar enquanto o pelo níveo secava
dos cantos funerários. E encastelei-me da Morte perto.

Que, morto, tem ainda a mente intacta!
Este som veio no escuro
Primeiro deves seguir a trilha
para o inferno.17

É no nascer quotidiano do Sol


a Boahora do Cão:
Avigorado, ditando o Sem-Palavra
Qual escriba-canário em silêncio ladrava.
Elevando os ouvidos às Maritacas, centenas!,
Âmbar late até findar-se em apinhadas laudas.

É no falecer quotidiano do Sol
a Boahora do Cão:
Na espraia dos cânticos sinos
Sobre dos edifícios os cimos
Anunciantes da minha passagem!,
Alo-me ao parque para correr minhas alvuras.
Vou Em-Boa-Hora, fujo de novo, as pulgas brandem dos membros
libertos. Tropeço nas garras não aparadas mas tenho nas asas o rubro
encantamento. As faíscas da volátil marcha errante queimam minhas
patas, querem partir para os confins da terra. “Vamos! Vamos!”
grita o coração e flagro o astro flutuante, à direita pendurada a flama
em fulgores. No pairar descendente, tingindo de vermelho o manto
d’Água. E, no rastro dos fios inflamados, vi o Biguá, secando seus
pretos braços, louvando. Ele também arrebatado – também sem a
Fala. Assim feito ele, ergui bico e fucinho ao silvo mudo da Boahora.

Nos telhados é negra a marca de sua asa


E a marca esvai-se com seu grito.
Cego que era, uma sombra, no inferno
Tão ciente que os homens carnudos sabem menos do que ele,

Antes que chegues ao fim de sua trilha.


Sabedoria, a sombra de uma sombra,18

Mas deves navegar em sua busca


Sabendo menos que bestas entorpecidas.

referências bibliográficas

11. Excerto do Canto XVII, Os cantos, Ezra Pound


12. Adaptação de enxerto do Retrato do artista quando jovem, James Joyce.
13. Excerto de “Bottom”, Iluminuras, Arthur Rimbaud
14. Ideia explorada em Animais quase sábios, animais quase loucos, do filósofo
italiano Mario Perniola
15. Adapt. de enxerto de Grande Sertão: Veredas, João Guimarães Rosa.
16. Excerto do Canto XLVII, Os cantos, Ezra Pound
17. Excerto do Canto XLVII, Os cantos, Ezra Pound
18. Excertos reorganizados (versos fora de ordem) do Canto XLVII, Os cantos,
Ezra Pound
SEGUNDA PARTE

O Sexo
Há uma Claraboia:

Claraboias eu nunca havia visto...

Pode bem ser a emergente libertação do aviário!

O aviário encontrava-se
No todo desconsolado, sabe-se bem.
Quando em raro levado para o alto dos morros era
Satisfeito, tanto que sua bucólica movimentação libidinosa era
Saciada, no ato de olhar os voos por sobre a relva seca:
Encantava-se-lhe.
Nos litorais era também, no pouco, amansado:
Nos clitorais
Olhando os horizontes
Do longe
Os irmãos.

Parecia satisfação, que era cômodo –


Parecia um ovo.
Ovo rompe e vem Rebis:

Rebis sauda Âmbar, célebres vindas!


Ao germe terrestre na busca da senda
Só aberta a fenda quando finda
A iminência sanguínea, a luta Canídea:

Primeiro imaginada, depois no corpo


Primeiro Eu
Depois o Outro?

Ovo rompe e quem lhe fala é Rebis:


Há um poder sibilante, em escamas
Desde o núcleo do Sexo, no assoalho pélvico
Onde no fundo pousam as perpétuas chamas...

Há sim a Claraboia: no teu hímen – o teu pênis.


Teu Verbo rompendo-se
enquanto no sublime você inflama.

Marcha! filho das ovóides cascas


Vai escalonando a tua Fala com o Vento de Rebis.

A luz entrou na caverna. Io! Io!


A luz baixou caverna adentro.
Esplendor sobre esplendor!
Com o forcado entrei nestas colinas:
Que a relva cresça do meu corpo.19
Este poder de primatas, este ígneo poder de coelhos e porcos
Seu gemido não escapa às arapucas, constitui-se dos labirintos
que tem o dom da cura
que tem o domínio das feras?20

Enroscado tantas vezes em seu cóccix e no seu Cóccix


que gosta é de sibilar
que por vezes esquece o caminho.

E ao léu, fitando a cala vociferosa, no súbito galga o teu latido.


Correndo me vem o teu dialeto ardente – o teu sempre vidente, que sei
os teus passos eletrizados nas pontes do labirinto – para o nosso alívio.
Um porta foi lacrada, para este mundo os olhos cerrados: nem luz senão
a tua, que bem que breu, e em branco te expecto com as pálpebras
da janela bem fechadas, pois nem mesmo Eles poderiam espiar-nos.

Você vem:
a alta cama escala
olha os olhos nem mais âmbar
negras as pupilas dilatadas
e baba: com as quatro patas
cerca-me e baba:
na minha face

E a tua baba eu deixo
escorrer
adentro na minha
cala
e nas narinas adentra
o cheiro das virilhas
rosas molhadas

Repente você recua
para com os elegantes
caninos rancar-me
o branco que me cobre
a fenda

Você pressiona:
o alvo peso
duma pata sua
contra a minha vulva
fervendo-a

E confronta
o fucinho ante a brasa
umidecida a três dedos
de distância – e bufa
com teu ar afogueado

Da fonte o fluido quase
me evapora
e então, transborda
uma gota da lava prata
me foge

E eu rogo aproxima-te
ao que você me surpreende
num só salto com
a vara pulsante
sobre a minha cara

Qual cadela, a lingua afora...

Eu já riacho nascente
E você ainda nem entracte...

Ah! dos teus Ardentes


Caminhos não me baste.

Mais outra vez te rogo


por favor me mete logo
onde já faisco o teu fogo
o teu Verbo, dá-me todo

E você espreme
contra as abas a saliva
e fundo afunda a tua
Sagrada Língua

Possuídos nós cruzamos


Animais-anjos
A tua flama, as minhas
Mamas
Leite, escamas
Cinogemido, ovo partido
Uivurramos, e no centro
Da ponte encontramos:
Do forno – o Ouro.

E Faz-me o estro dizer novas formas em novos corpos mudadas...21

Foi essa a muita vez primeira em que vivi no tacto a vulvamente. Fer-
voroso prazer auto-suficiente, o que nasce não é filhote e nem é nada
gozo o que vaza do recipiente: apenas inteira e pura mente. Âmbar!
é gênio e é louco, que pôs em mim o teu Logos: entendo aos poucos.
Foi para mim qual padre no teu sacro ato de acasalar-me? Ei-me que
galgo pela ponte, plena, do teu dialeto agora fluente, e sacrifico o sexo
pelo Sexo que é apenas este mais velado estro...


...Mas seguinte aurora narrei em grave semblante, na vergonha dos ví-
cios do léxico, por vezes fátuo palavrório, as ascosas imagens vistas
no sonho:

Inda não sei porque chorara,


Esboçado o assédio do Tigre,
Forte, qual represa liberada,
Por uma guria safada e triste.

Em algo assemelhava tal ultraje


Com o sacro feito da véspera?
Besta humilhando a pura alteza
Assim me fizera de nojo trépida.

Cena seguinte veio salvar-me:


A Vaca, simples olhos rurais!
Com ela eu nadava celebrando
As nossas libertações animais.
Ei-la que canto, Cão, encanto...
Ária para Cinomorfo pelo Fogo Originário:

Rogo um rogo e do alto do morro


Os vejo pairar e pairando parolam
De grave assunto, que com muita
Atenção posso ousar decodificar:

Sobre o aviário mesmo –


Os Homens e as Mulheres em cativeiro.

Rogo um rogo e do alto do morro


O que jaz na planice eu revejo:

Sobre a quadra, dura rede; do teto baixo mesmo, inda se possa ver o
céu.
Sob o teto, o mundo qual jardim zoológico. E nas celas, vos segregam

Leão com leoa


Patrão com patroa
E ficam: tranquilos, sedados – quando em quando fornicam.

Mas o Tigre, solilóquio-penitência,


Com suas listras vivas dobrando-se
Enquanto em círculos perpétuos: ao menos.
Também as macacas com as macacas,
Também os macacos com os macacos,
E ficam: tranquilos, sedados – enquanto que tanto fornicam.

Ouvi uma canção daquela espécie.


Pantera obesa estendida ao meu lado
As moças só falavam de foder,
As bestas só falavam de comer,
Todos pesados de sono.
Moças fodidas e obesos leopardos,
Sonolentos leões com a tisana de Circe,
Moças em transe com a tisana de Circe.22

Mas o Tigre, solilóquio-penitência...

E o aviário urra ira, as frontes franzidas, perguntam: Cane, e adesso


cosa hai da dire?

Já que aí, outro lado das grades, nós sabemos, tuas orelhas pontiagu-
das miram esquerdireita, têm captação privilegiada daquilo que eles
discursam nos celestes.

Mas o Côndor, majestade, trancafiado.


E lamento, me relembro:
Aves não cantam mesmo em cavernas...

Observo o voo dos inda salvos, sobre as quatro tento compreendê-los,


pois no que os sei, algo seus monólogos grupais hão de clarear-nos.
E, enquanto há bruma, lanço-vos o indagar retomado:
Che cos’è la libidine?

A orgia e a camaradagem dos homens me eram proibidas.


Vais ver, berrarei pelas ruas. Quero me tornar louco de raiva.23

Para o Inferno com este zoológico!


Dos pares que se amparam de espelhos
Troca complemento suplemento e pentelhos
Os casais... e os carnais...
Bons pralazeres, bom gozo-a-todos, bom pique-cega...
Para o Inferno com este zoológico!
Do amor, genuíno encontro de almas penadas – no afeto
tantas ceifadas?!
Do sexo, usufruto das camadas erógenas – no desejo
a torpe do mistério?!


E urrava ira também esse Cão em autofinta de brabo, sobre
O inferno da animalidade pervertida pela razão precária –
Não se deixe seduzir! Não se deixe enganar!
Não se deixem envolver! Não se deixem arrastar
Não se deixe distrair... Não se deixem desviar...24

Que Aves não têm mãos para dar umas às outras


Entanto planam nos mais impecáveis duetos.
Mas que dueto? que vez não foi, desviado, fintando retidão:

Enquanto o teu cachorro sofria


Súbita epilepsia, longe
Eu, numa dor da fronte
Tomo com o remédio um gole
Da birra que não bebo, dum outro
Em dissimulada, sutil mas afrontosa rebeldia
E a tua cusparada reagente
Enferma de ainda sarcástica
Condena o meu Bicho o meu bicho:

É animal se deitando no colo do mundo


Abrindo sua barriga para os coiotes
Que com o precedente te querem
Enfiar no sexo exposto os dentes.

Mas o que é que este sexo tem a ver com isso, digo
Que se trata de Sexo, não deste tipo de libido...

Tenho no estômago um aviário furioso, eu repito


Que às más vezes o mantenho preso, constrangido
E às melhores, no explendor, faço o Sexo comigo.
Ora se misturam os tipos, somos humanos e também bichos
Mas sobretudo humanos? e é por isso? que possíveis anjos?
Anjos do bom, anjos do mau: anjos do meio, da ardente nau.
Percebe isto! que à besta física não me limito. E nem hei
De ser menos Bicho por culpa dos tolos serem apenas bichos.
Vê isto! senão vem requerer minha chama a ter só contigo;
E nem tende piedade, eu me digo, por estes pensamentos decaídos...

(Âmbar mente pra mim. Aquele Sexo era mesmo o sexo e era mesmo
o bicho. Além, do humano o lixo, vaidade em conspícuo... – Que o
fogo transmudado no originário não carece de frívolas rebeldias.)


Feliz quem destinou o devido lugar
a seus animais e ‘desmatou’ sua mente!
Pode usar seu cavalo, bode, lobo, quaisquer animais,
e não ser um asno para com todos os demais!

Cada homem cuida dos porcos e é seu pastor,


mas é também aquele demônio açulador
a levá-los a uma impetuosa raiva e piorá-los.25
Mas Bicho é Deus sem nem tentar porque não crê.
Thoreau cita puritanos, assim como eu mas
É pelo este crer que as gentes se matam
E é por este crer que matam o Bicho?
Não desmatai...

E no Zoo
Ei-lo Cão em brasas
Marchando perante as jaulas,
Ruminando a respeito deste seu enclave,
Pensando se haveria chave – e neste instante qualquer
Faísca atiçar-lhe-ia numa revolta injuriosa:

Qual canídeo feroz destroça-


Ria todas as causas.

Repente escutara graves parolagens
Vindas dum canto por sobre as grades
Era um corvo de tão preto azul cuspindo
Seu sedutor manifesto de libertinagem

Que falava também do amor e das paixões ardentes


Para os quais eu me cegava, eu negava o ver

E a mim eu não dizia


Acalma-te, Âmbar...
Que com este cinismo assim, nomeando verdades
Não te enxergas ou ao verdadeiro Outro –
Pois aquele, este não era:
Aquele nada era senão arapuca para a tua fera.

O sol está no ombro do arqueiro


na cabeça do corvo pela aurora
Engrossa o gelo. Racha a terra. E os tigres agora procuram seu

par.26

E foram três horas em debate com aquele corvo


Que mamava nos seus tóxicos uns seguidos doutros
De venetas sobre utopias, sobre os bons arroubos da lascívia –
– Esperanças de vitória dos desamados que jazem na escória, eu
Pensava e não pensava: boas besteiras nos propõe essa história
Mas auscultava estes ecos pelos salões das minhas renúncias
Durante que no céu já manso se findava a tarde e planavam
Como naus douradas umas nuvens de luz encharcadas
O que fazia com que a rebeldia figurasse plasticamente abençoada
E no tanto que arfafa a treva em meus poços de ensejada selvageria
A indócil continência dissolvia, nessa penumbra que eu construía.
Era muita noite era muito dia!
E pensava o corvo que a isto um brinde se merecia
À glória dessas calorosas vias, tão e tão frias...
Mas o que eu via: era daquilo a que não me permitia o criado brilho.
Tudo aquilo que, aos avessos, a treva faz crer que se quer. Mera...
Via de fuga das pensei amarras que pensei serem o que me encolhia.
Mais nenhum som. Meu tato sumiu. Ah!27
Olhos de corvo olhos de cão e não vi que no súbito vinha o vil furacão
Mas o vinho! O vinho não. Não era de todo um suco tão nobre...
Não mais do que o meu oxigênio-castração?
E tornara o tornado a açoitar a mente do coitado
Coitado não, que não se tende piedade desse cão –
Tornado: quer você agora vir pregar o celibato? Celibato? Além
O asceta embasbacado?
Cuidado: É o fogo que cresce com o seu condenado.27
Cão, sedento do que os poderes desiluminados têm a lhe falar...

Ó lince, vela o meu fogo Ó lince, vela este pomar

Estamos aqui à espera da aurora


e da próxima aurora
por três noites entre linces. Por três noites

no bosque de carvalho
e as vinhas estão espessas em seus galhos
nenhuma vinha sem flor,

lince algum sem laço florido
Melíade alguma sem jarro de vinho
esta floresta chama-se Melagrana

Ó lince, sustém o sabor de minha sidra


Mantém no claro sem nuvem.28

O Bicho não se deve entorpecer! já é dos loucos o mais


Grave dever manter a jura sem descanso, as gemas em seu pêlo,
As sacras plumas pentear... – meu grêlo?
O faço coberto de gelo. Mas, aqui, a proteção é inútil.

Três Bichos me fitam, são eles:


Gazela, Gafanhoto, Galinha

Mais outros me desfilam:


Guepardo, Golfinho, Gorila.

E lhes sugo o sangue, e eles todos se embebedam do meu



Três Aves me berram:
Alma-de-gato, Maritacas, Bacurau-da-telha.

Diabo! Não conseguem suspender o silvo?29


Angélicos estes Bichos confudidos de bichos, quisera eu tê...
Estava sendo um covarde ante o álcool dourado que faz suar?30
Eis – A silenciosa revoada anunciando a queda da abóbada.
O corvo me olha que nem mais ele, vejo por sobre, vejo só a mim.
Sei não sei essa treva, enquanto ruge o vento rubro
Olhamos e desolhamos e

(não posso enxergar através do meu romantismo.)

Ó lince, guarda meu vinhedo


enquanto a uva infla sob a folha
Este fruto tem flama dentro dele.31

Tem flama o tornado,


esse relâmpago no meu coração.
Pode entender esse teu vil estorvo,
em afogueado pássaro-cão?
Domesticado por si mesmo,
humano que é,
cinomorfo-tão-não-são!
Tanto que venera os hades inteligíveis
da besta glabra e crua
Mais que os bichos todos lhe chamam
de volta para a rua.
Este corpo despuritano se
protege a si
nos seus isolados jejuns:
Em verdade apavorado é
dos horrores comuns.
Qual vaidoso retiro
em função do teu espírito!

Pois que faísca assim levanta?


a salvação dum indivíduo
armado de si contra o coletivo.


Qual frígido temor tão precioso que lhe valha inusável ouro? Em lou-
vor à débil mente do divino é que eles matam os Bichos. Éh!... Já mis-
turava tudo numa grande bola de pelo, o vórtex inteiro. E pior, tinha
meu silvo-latido viciado em fazer rimar os seus versinhos. Não só era
que, supondo-se contrário assim aos outros bichos, não ficava dema-
siado obstinado? Já o era – mas os venenos! Não era que precisava
deles, para ingredientes? E que devia experimentar de tudo para então
poder a tudo vencer? A todos convencer – era o que!

Os tolos se iludem com armas e veneno


Cada qual diferente, costumes diferentes
mas uma raiz nas equidades
vigor, tranquilidade, não uma bateria de regras
Orgulhos vulgares, débeis dissociações.32

É uma desavença, nessa minha balança:


Não os meus Ares áridíssimos
a ponto de drenar a fonte d’Águas
Águas, Bichos!
Todos os vossos nichos –
Águas, bichos, e lixos.
Lixos sempre há
Vindos cínzeos por todas as frentes –
A sarna sempre vai acometer as gentes.
Mas a fera se modera:
São mesmo tênues
as relvas da nossa Terra.

Agora se pulavam, turvos, os pinguins nos falsos lagos à nossa volta


Agora trovejava, bravo, no vasto lago sobre nossas cabeças animais
Corvo não era mais pássaro: era eu, sombra, lado a Âmbar, sombra
E ciscávamos juntos, breu e eu, uns amendoins agridoces no chão
largados.
Era muita hora, quando a Cotia revelou-nos
O ninho de ovos verdes do Casuar – e isto era só mais um motivo
para libertinar.
Caía forte chuva quentefria como a minha asa preta
As verdadeiras setas solunares, a esta altura da noite!
Enquanto desrumávamos.
E eu sabia: quis, porque queria (vi também Quero-Queros...).
Assoviei, em solene cumplicidade à fleuma negra
E a Harpia uivava – e o Pavó ressoava com os seus refluxos
Que ressoaram comigo, ou assim eu havia pensado, quando
Arrotei, em solene cumplicidade
Após o primeiro Gole.

Ali é a dança das bassáridas


Ali estão centauros
Sua cela é levada por dez leopardos.33

Corvos nem há, nessa nossa terra. Para ver.


Corvo e Cão, bebemos. Três garrafas do vinho de nem linces
Durante que a madrugada rugindo, num sinistro eco pelo vale
Onde nem estávamos, mas ali era vale, um vale que nos bebia
Invisíveis no Zoo enquanto os leões rodopiavam;
Os Gatos ferais corriam soltos como no sempre;
Os Macacos-aranha fornicavam nas ilhotas, em volta
de São Francisco de Assis, todo cagado de bosta de Biguá.
Acordados de seus sonhos, Rinocerontes chafurdavam na lama rubra.
O Corvo corria feito uma cobra a quem dada pés,
O Cão relinchava envolto em asas endiabradas.
Alados, desmoderados, cantando os cantos de cada
uma daquelas aves confinadas:
Decerto não possuiam chave alguma nem sequer a força para findar de
vez com aquela férrea estrangulação de Bichos. Mas as salutavam um
mínimo – e elas riam indivínas enquanto seus breus arrancavam, por
elas, os corações anegralhados e os amassavam numa desreluzente
bola de sangue.
Meu Breus!
Que eu pensei ser um terceiro, andrógino, angelical-diabólico.
Já que as aves, cores todas, batiam suas asas – não importava
se em vão. E vi, pensei ver auréolas na minha dança indivídua,
que o outro nem mais Outro era, era minha máscara facínora!
Puro e Impuro num berço fornicavam, pensei... E pus,
naquele berço de eggoísmo o infante coração.
De Cão, de cobre, do suco da bile, do suco dos cerebelos
E sobre turva ponte não rodopiava o cântico do meu Sexo sexo
Mas confudido o Verbo, desviado, nem Vaca mugia o simples:
Da claraboia libidinosa a Obra pura desvirtuada para a volúpia
Em detrimento do Cão o verdadeiro Outro, como luz, eu Lobo
Ou o contrário. Não sombra com sombra.
Entanto de si garagalhava o Cão, lembrando-se dos Homens
do Deus, do Amor, de todas as mentes a Mente
E que estava por excessiva cautela é que demasiado gente, mas
Agora criava altares não ao seu Bicho mas ao bicho inerente
Em pensar que assim o aviário, libertinado, voaria mais alto.
‘e basta’.

É tudo que há; prolongue o alento animal,


Mas, gente (V.), em frente e acreditem neles.
SETE: Livre-se de frívolos alicerces.34

E de três horas, cochilei. Na balsa de madeira desiluminada.

Sonhei que: ultrapassando.


O portão para a ladeira
que para a mansão levava.
Uns templinhos improvisados
bem fajutos e enfirulados
para pequenos bichos:
Lagartas, frutinhos e inseto-
mamíferos? Mexia.
Logo aparecia, vindo velóz.
Correndo Komodo, rente-chão
lagarto-cão, negro
escamado e duro, todo.
Felicíssimo que era pesado
quando pulava, celebrando.
Enquanto eu subia a ladeira.
Vinha rasteja-saltando inda
que era um pouco desconfiado,
e eu admirando. As governantas
e o caseiro também olhando diziam
concordavam que era lindo mesmo
E eu tentando.
Captar uma imagem onde evidente
a duplicidade desse cão
que era lagarto mesmo.
Adentrávamos, para a porta
para a escada, brancafria
E eu tentando.
Conquistar sua maior confiança,
cumplicidade: ele vinha não-vinha.
Eu abaixada, permitindo-o vir-mesmo.
Vinha Komodo-Kão, lambendo
a minha cara, olhos nariz e boca
e muito dentro da boca
E eu deixando.
Era condição, para amigos.
Sua cumplicidade, sagrada:
eu deixava. Duras escamas lagartas.
Era preto quase roxoazul
e pensei que: sentindo.
Perguntava-lhe nós vamos ser
como duplos inteiros fundidos?
Replicava-me (telepático)
sim você vai brincar comigo
como brincam os filhotinhos.
Era fácil.
Subíamos, a escada qual gatos.
No do meu pai, o quarto eu
fechava a porta, só ele eu
e eu pensava: sentindo.
Via, pousados. No alto da prateleira
eram Três Urubus.
Mostrava ao Bicho (sabendo)
E eu tentando.
Não era fácil.
Segurá-lo para protegê-lo.
Tinha medo: de qualquer risco.
Mais de egoísmo, eu sentindo, que não
eu não podia perdê-lo.
Ele querendo tanto. Eu deixava
ir atrás indo, esgueirando, para
os Urubus pulando
do quarto para fora, para
os fundos do Jardim.
E eu pensando enfiados
no mato só eu ele.
Para os urubus. Late
o despertador
(Ave).


Foram três minutos de plena desconfusão até saber o que era pelo o
que era penas. Vinham aos poucos os raios até a Água Funda. Pinica-
va o meu rabo a desjustiça ao amém, pinicava aquela madeira sem luz.

Comei carne de cachorro. Este é o mês das fortificações.


Os hibernantes vão para suas cavernas.
As peagens reduzidas, agora os gaviões, dizem, tornados
ostras
na aurora em Hydra, o gelo começando

O faisão mergulha no Houai (água grande)

e transforma-se numa ostra.35

Mas era feito, sabendo


que a grande desbalança não se faz num dia
nem para um só dia de “louvor”.

Esticando as canelas queimadas, qual Guará, do fogo imaginário


Desembarquei da madeira sonolenta rente à ilhota
Exalando o aroma do gosto da selva nem celeste.
Eu, erramos um pouco em redor para ter correndo fluindo
o sangue horrível.
Um brusco esvoaçar, na árvore sob a sombra da qual passávamos
E nossas cabeças sub-animais acima miraram:
Quais sólidos vultos, eram. Três Urubus.

E urubus havia, nessa nossa terra, para muito ver.


Logo empestearam. Onde quer carne houvesse, e carne havia
para muito ver, há de ser
que eles estejam.
E era feito, percebendo
que os cantos salutares os haviam convocado, os mestres dos densos
ares
Indicando vermes naquele embaraçoso lugar.
Mas se incumbiam de limpar?
Eram, em verdade que pensei juro, o passe
para as pazes com a Carne.
Venenos, a tisana de Circe:

E o Cão seguindo na guia das suas asas as mais torpes.


Pazes tinha que ser assim, dos princípios o desastre?!

Pois quase estourava a aurora:

O Cão, sabendo
Iria Em-Boa-hora.
Além estava oculto o arco-íris.36

E uma voz, detrás do mundo, estava chamando:37


– Alô Âmbar!
– Aí vem o Álvido!
– Âmbar-lates, Âmbar-chilreos!

Vou aonde ele vai, é preciso:38


O Cão está em toda a parte.

Agora, ante o nome do artífice fabuloso39


Na Boa-hora, sem muitos pensares
E sozinho com seus cínicos falares...

Que falei de mão amiga!


Uma vantagem é que posso rir...
E me será lícito possuir a verdade em uma alma e um corpo.40

Desvirtuado? Arruinado e dos avessos
Que a nenhum Outro a minha Boahora me apontava.
Estava indo muito bem a Obra. Que não podia perder tempo
Com qualquer desvio, com qualquer uma outra troca.
Justo o cão, dos homens o melhor...
Por mais nobres fossem as intenções para com Humanos
Por menos.
As armadilhas do mundo eram os seus caminhos de pecado. Cairia.
Ainda não tinha caído, mas haveria de cair silenciosamente, em
dado instante. Não cair era dificílimo; e sentia o lapso silencioso da
sua alma tal como estaria dentro de um dado instante a vir, caindo,
caindo, mas ainda não caída, ainda sem cair, mas prestes a cair.41

E o Cão tem ordem de seguir o caminho dele


Tem licenca para campear...?!42

Ido ao campear
transiente foi ao lar
para ver
Com seu comportamento cão
que não cão duraria.

Arre, ele está misturado em tudo...42


referências bibliográficas

19. Excerto do Canto XVII, Os cantos, Ezra Pound.


20. Excerto do Canto XVII, Os cantos, Ezra Pound.
21. 1º verso do Livro I das Metamorfoses, Ovídio.
22. Excerto do Canto XXXIX, Os cantos, Ezra Pound.
23. Excerto de “Mau sangue”, Temporada no inferno, A. Rimbaud.
24. Versos reorganizados do poema Contra a sedução, Bertolt Brecht.
25. Tradução autoral de um excerto de John Donne citado por H. D.
Thoreau, em Walden.
26. Excerto de Canto LII, Os cantos, Ezra Pound.
27. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
28. Canto LXXIX, Os cantos, Ezra Pound.
29. Canto LXXIX, Os cantos, Ezra Pound.
30. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
31. Canto LXXIX, Os cantos, Ezra Pound.
32. Excerto reorganizados de Canto XCIX, Os cantos, Ezra Pound.
33. Excerto de Canto LXXIX, Os cantos, Ezra Pound.
34. Excerto do Canto XCIX, Os cantos, Ezra Pound.
35. Excerto do Canto LII, Os cantos, Ezra Pound.
36. Excerto do Canto LII, Os cantos, Ezra Pound.
37. Excerto de  Retrato do artista quando jovem, J. Joyce.
38. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
39. Excerto de Retrato do artista quando jovem, J. Joyce.
40. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
41. Excerto de Retrato do artista quando jovem, J. Joyce.
42. Excertos de Grande Sertão: Veredas, J. Guimarães Rosa.

TERCEIRA PARTE

Deus, Ave, Amore


Ergo a pata esquerda ao consultório celeste:
Até onde vai a tua justiça, Ave-mestre?
Tão frígidamente corrompida no falho esganiçar dos ladridos.

Ah!... Esses Cantos lhes soam abstratos


Quando não inaudíveis, se ainda percebidos...
Pouso pesado sobre as quatro
De alarde logo recolho uma rente o corpo, apontando
Para a Senda, mantenho-me firme estátua
Aérea estátua
Sobre três, sobre a tênue:
Marcho imóvel sobre a Ponte.
Enquanto a espinha o Fogo esquentando, ouço já os Chilreares.
Olho para os montes, penso nos seus nomes:
As Mulheres e os Homens.
Dever majestoso e árduo sacrifício
Para vós, traduzir esse complexo dialetto
As alvinegras frequêcias dos sonidos graveagúdos
Fazem sanguíneos os meus tímpatos sensíveis
E que profundidade que atingem e de volta ecoam
Os diversos pios eletrónicos
Que notas! que nem há notas, se houvesse seria fácil
Mas repasso, dou Vida e Morte para repassar, esforço-me
Desde o sempre vos servindo tantos serviços, ah de todos os tipos...
povveri uomini.
Inda nunca fosse esperado que captassem de todo
Não apenas por se tratar duma tradução – sabe-se
As problemáticas envoltas nesta labuta: sois cheios de teorias para
isto.
Entanto tal risco tomo de todo o grado: estas plumas diabas
Que em meio aos pelos levo e honro, meros germes, gemas
Da incessante observação do pairar celeste
Dolorida escuta da onipresente linguagem: e por isso
A precisão da equivalência que emito é de sublime fidelidade.

Mas cala um pouco, que é também


só cachorro
e a tua simplíssima faina
por tantas vezes falha.

Por esta fenda em vossos robustos tetos


entra o feixe e para ele fito
e então
vos Digo:

Sou Cinomorfo sacro


sacro para ninguém além da própria sacra Morte –
Morte sacra à Vida.

Marchando errante, certeiro através
do absurdo sobre o qual não hei de saber
não do modo de vossas cabeças ovóides
o buscarem saber: Não hei de saber
não porque me é ignoto – verdadeiramente o sei de todo:
A verdade do absurdo repousa cabriolante em cada canto
da minha carcaça, essa tomada
por pulgas e por sarna
assim como no mais esguio dos meus Pensamentos
escrúpulosos que são.
O não haver de saber é em si e precisamente
o infortúnio do absurdo
e nem mesmo o vejo infortúnio:
Enquanto em Pontes célebres & fúnebres
tudo é Sumo.

Sigo através da Senda:

Primeiro ladro, ladro alto do mastro:


Aprendei a fazê-lo quando bem quiserdes.
Sinto coçar as bestas que sempre me acometem
mas que não me são dilema
e ponho-me a correr:
Aprendei a correr para onde bem quiserdes.
Corri, Cão em plumas
para Uma temporada na Alcova.

Antes, se bem me relembro, minha vida era um jardim ao qual todos


os corações convocava, por onde todos os venenos corriam. Principal-
mente o horrível gargalhar do idiota.

Um dia, sentei o Amor em meus joelhos. E achei-o parvo.


E injuriei-o.43
Armei-me contra a piedade.

Fugi
(Roguei para que compreendessem, se o pudessem,
o salto mudo do Animal
quer-ser-feroz)

Para câmara estreita onde só cama e prateleira,


arranjei de brinde uma mesa, a porta fechada para os dias de lá
e de janelas duas frestas do vidro mais grosso que há
em textura e nebula:
Nada entrando senão o murmúrio cínzeo da Santa Cecília
às vezes a viola do baiano
e, na sorte, os assovios do Chopim-do-brejo
também na sua alcóva, detrás dessa porta
e das redes desses prédios.
Grosseiramente fiz de oráculos frios livros,
vez em quando de dentro saíam as fotografias que lá se imiscuíam:
Ah! a Família. Cazzo! o Amor.
Que língua eu falava mesmo?
Ei-me Alcova, da geada empesteada
que vim para de todos escapar-me e só
na impura mente empoleirar-me.
Há muito pendendo da cabeça miríades
de brotos prenhos de seus floresceres;
Há muito proliferando, dos germes
sufocando, os ingredientes essenciais,
as ferramentas decodificantes, a mim eficientes
mas espalhadas em meio a tantos outros, venenosos
essas frágeis mineirações dos ardentes, dos elementos perigosos;
Para pôr em Obra uma honra dos veros ouros? dos loucos! Socorros...

Fugi, à Boahora.

E estava mesmo para a revolução


Era como Animal em solene eficiência
os movimentos quentefrios de emoção
nessa tanta vitalidade exuberante.
Era Cipreste e era Pio
em pleno contentamento ininterrupto como Rio
ao mesmo tempo a superfície imóvel do Lago sibilante
Mesmo na alcova não sibilando tanto
mas sim, constante
E assim se ia indo, qual
um enorme pássaro gris azulado, apenas que avermelhado.

Pássaro há das cores as todas: o paraíso inteiro em tons combinados


assomados às sinfonias arcangélicas
As permutações das notas do Mistério compondo Música
que, escutassem-na as gentes, o mundo talvez
não fosse farto assim de dementes.

Mas Há uma boa parte de vocês que não


cairá nesse truque.

ao dialeto de meus encantares...


& os taoístas saem para espantar demônios

Do céu, terra e de coisas sem sombras,


Liquide o palavrório e não creia neles.
Melhor o envenenamento físico do que a lavagem cerebral.
A cobiça defrauda isso
Alguns querem mais do que podem ter em vida
e sobem a colina em busca de beócios.

Bhud: Homem por negação.


Mas o Primeiro Clássico deles: que o coração fosse firme.

Zelar pelo controle,


Mas viver como flores refletidas,
como luar,
livre de todas as possessões nos afetos
porém, como diz Chu, egoísta.

“Continuarás hiena etc...”,


repete o demônio que me orna de amáveis flores de ópio.

“Gagne la mort com todos os seus desejos,


com todo o seu egoísmo e todos os pecados capitais”.44

E três noites seguidas me alertaram os Lumens Róseos


E terceira noite era já muita hora, que as setas por vezes urgem:

Primeira vez aqui no Hospital Samaritano, Cachorro? Sim


Segue alguma religião, Cachorro? Não
No pavor da agúda dor, tinha se-me deitado mirando o alto
Enferma a cabeça foi obrigada a fixar-se para a esquerda
Pelo pescoço desgraçado de cachorro, tomado pelo nervo
Em advertência:

Que a Morte te acompanha deste lado, Cão


nunca te esqueça.
O que foi que eu fiz, para que não me atento?
Somos acompanhados no fundo do Pensamento.

Desvanesceu-se-me como a entregar-se-me a urgentes vapores


Tenso e lento.

Deitado de costas, contraindo os músculos da barriga, dilatando a


caixa toráxica onde vai e vem o animal assustado a que chamamos
coração, inflava cuidadosamente os pulmões, reduzia-se consciente-
mente a não mais do que um saco de ar que se equilibrava com as
forças do céu.45

E do hospital até o branco hospitalar da alcova caminhara torto


atravessando o preto chuvoso, a cabeça rebaixada, o preto morto
Deliroso
O Mar
Rosa, róseo
O Amor
Ao Próximo?
O teu tumor no joelho, do não saber Amar
Igual ao Igual
E de tamanha fleuma
A minha merecida contratura muscular?

– A vida dura, a brutalização simples, –

levantar, o punho seco, a tampa do caixão, sentar-se, sufocar-se.46

Era a maldição correta, as Águas iradas subindo que não tinha escape:

Neste mês o Inferno manda

junto do Celeste
O nível do Lago atinge o cimo
nesta Noite
De Touros nadando alucinados
sob Netuno.
No entorno Vênus satírica
rodopiando
Vêm as tempestades noites
trovejar Ondinas
Enquanto que a Lua
no seu gozar
Enchentes faz de mim
pura bulha.

Era esta alcova uma vera ova? Vero aquário que sufoca de tanto Ar!
Pretensiosamente examinando meus pobres peixes
Pobres de puros e a esmo
Diferentemente do Cão falastrão que
Desapercebe-se daquilo de que se alimenta:
De p peixes?
Que nem carne como, mas Peixes? ou de mais fracos silvestres.
Que Ave, esta. De rapina ou marinha, seja o que for, sendo Fragata
– os Pterodátilos da nossa era –, não ouso, de todo
Mergulhar na água salgada: tomo dos Atobás o que pescaram, dignos.
Cachorro! Talvez mais dignidade tivesse, fosse como antes – mais
Lobo.
O Lobo de Lumens, o seu Outro Ilumens!... Para o qual os olhos
fechara:
Outra vez a desbalança lhe cegara, esta que se desfaz num só dia de
glória
Da sombra a glória, Âmbar breu, negando par
à luz da sua história?

E outra putrefação já se fazia no Animal assustado.

Também um alguém que passou a noite no ar

pego nas amarras.


Rochedo solitário de gaivota

quem pode, de qualquer modo, ficar n’água!47

Âmbar autoconfinado, agora do não-pranto asmático


Em seu interior fossilizadas bonitas algas, anêmonas desapaixonadas
Que mirava suas esguias orelhas na direção oposta dos torvelinhos
Ou desviava a atenção para a ventania enquanto fazia finta fóssil
Que com fins de captar o que flutuava turvo drenava rios
Impedia que alcançassem mar.
Âmbar, fixando as grandezas solilóquias, esquecia-se do amar.
Que nele acreditei, vi somente o que ele via.
Parecia preciso, e em vidro analisamos a frio o dessentimento.
Quem é? Eu, não. Mas, sob tudo, sob a máscara cadela, hiena, etc.
Era o pavor destas Águas que lhe conduziam na sua cena:
Melhor mestro os poderes via ventos solipsos, do que por este
córrego – por onde me afogo nas águas de outro; onde eu perco
meu precioso Ar!
Pelo e penas desejados impermeáveis no seu vaidoso esquema,
Âmbar
E hoje eu não mais posso respirar.
Busco bocejo, exteriorar o denso
Mas nem urubu: são profundidades de urubu não ir. Altitude
avessa.
E engasgo-me de pôr os passarinhos raciocínios para carregar
meus poços fora-chão.
Que não lhes cabe este peso, que mesmo se trata de outro reino:
Diverso tipo de calma requerem da alma
os movimentos de esfera aquosa.

Águas, Águas, pessoal por demais!


Ares, Ares, os inalcançáveis ideais!

E precisava bravias guelras para enxergar


através do emergente maremoto.

Que a vaga de cristal se eleve à onda do dilúvio.48

Hoje trovejante, cínzeas rajadas


Nesta noite relâmpagos assustam as manadas...
Aves molhadas empenhando-se em drenar as suas Falas
Enxugar o Ar muito umidecido para a manhã...
E Cães! mimetizandos vastos silvos
Mas precisando também de beber dos raros líquidos
A seiva soterrada na cega.

Hoje trovejante, a alcova sufocante
Nesta noite de asfixiosa urgência eu retorno
Ao balneário natal, onde canta o bravio Mar!... para enfrentar
o Amor.

Ao cruzar a Baía irisou o meu despertar, com despertar do dia, o Arco.
Para este sorria: era bom! estar perto das vagas. Eu não mais
respirava. E respirei no abraço da irmandade, dos felinos caseiros, o
bairro gasto. Mas, na praça, contemplei a Solidão que encardia essa
branca carcaça. Não a lavaria. Nos trajes mesmos, Água alguma me
levaria essa febre!

Mas Este Mar... Este Mar não escorre por minhas faces...49

E cascateei.

Fui ao Bestiário Angelical para ter com uma singela família, deuses
Bichos que me acolhiam! Saudei: o Papagaio Visnuk – intergálacti-
co, o Gato Pio tímido, o Galgo gênio Sophia, e o Anjo Cinza – a
Regina. Bichos ou bichos, ouvi: Aí se vendeu pro camarada. Eu não
o faria! E no seguinte dia estive com a outra família. Era Água, era
Água Fria quando deixei a sessão para inspirar o lúgubre poente
ante a mureta e vi três aviões decolarem, duas aves marinhas em
repouso, e um peixe remexer a superfície. Ser-me-ia como Koi – Ó,
nobre carpa japonesa! Nadaria, árdua, rio acima até o cimo da maior
montanha. E sangrenta, tendo atingido o vero pico, faria-me no de-
sornado Dragão Dourado... Mas retornada à sessão, questionaram-
-me confudidos os amores: onde estava, Cinomorfonada-são?! …
No céu, estava no céu, pelos deuses!

Penas impermeáveis, não senti quando começaram a cair
vagarosamente as gotas do Inferno.
Eu tinha sido condenado pelo arco-iris. A Boahora
era minha fatalidade, meu remorso, meu verme;

A Boahora! Seu dente, doce à morte, me advertia
ao canto do Galo, – ad matutinum, ao Christus venit,
– na cidade mais sombria.50

Cane, para antes de íntegro, mais putrefação.


Finisce così, comincia così, si chiude così...
Aqui, Coniunctio inferiori.
Desíntegro ao: sol de tua origem – Canis lupus, o verdadeiro selvático.
Era esse o seu Amado, com quem parear refutava, acegado de si no si
mais baixo.

Ante todos os poderes rebelado, nem Deus


Nem Homem ou o que nos une Amore
E Bicho? bicho
E não pôde desvelar com seu verbo o seu Male
Dizer: estou enfermo, não mais enxergo ou: estou é com medo
daquilo que penso que desejo.

Aqui, como consequência, mortificatio


E veio em tamanha violência, não notado o que abaixo pulsando,
Cão querendo sem Lobo ser Lobo e virado no mais demente louco
Diabo: este mesmo animal possuir-te-á.
Assim que te entorpecer-te, juro-te,
Esta mesma besta te tomará pelo outro lado.

E foi que não deu diferente, sangrou: na mais torpe pensada Boahora
O rotto desdém do Cão ébrio pelo Amado, foi
A traição da gêmea fauna em cinza –
Uma muda emboscada ao espírito
E veio
Canis lupus verdadeiro
Recobrando a punhalada.

Aqui, como consequência, separatio


E por dias as canídeas almas descônjuges em grave luta sanguinária.

O desdomesticado em antártica greve correndo


Círculos covardes com a garganta dilacerada
Pelas presas furiosas dum Canis lupus em afogueada mágoa.

Borbulhavam no mesmo forno, em temor o amor tergiversado


Uma metade d’Água evaporada, a outra congelada –

Coniunctio, no árido dilúvio


em que Um ao Outro findavam a raça.

A concha do céu fechou-se sobre a pérola


e os mentirosos no quai em Siracusa
ainda desafiam Odysseus
sete palavras para uma bomba
Muito potentes, podem de novo juntar alguém
como as duas metades de um selo ou uma vara de
medição?51

E em meio à guerra arrastei-me ao Mar


o Mar, que amava como se ele fosse me lavar
de uma impureza52
o Mar, amarelo de sol
laranja da emoção suja
envergonhada inda que pura
e olhava: sem trama nem bulha
a trupe, manada de Fragatas
indo com as correntes.

De onde surgem não se vê:


Vêm da nuvem – ar e água num filho intocável
Rodopiam com as espirais das trevas volúveis
que logo dissipam
e as dispersam.

Fazem a Festa no Céu


e num repente há
nada.

Para onde vão não se vê:


Indo-se com as correntes
sem alarde nem piedade.

Vejo o rosa dum lado


e do outro o vindouro aguaceiro
que será também rosa
só depois que for negro.

Ó estações, ó castelos
que alma é sem defeitos?53


neste mês são os pássaros
com olfato amargo e odor de queimadura
o cervo deixa caírem seus chifres
o gafanhoto está ruidoso
Tépido vento está vindo, o grilo clama no muro

O guardião de peixes vai agora atrás de crocodilos


Para pegar todos os grandes lagartos, tartarugas, para vaticínio,
tartaruga-do-mar.54
A cabeça congelada, petrificada em Âmbar, precisava de descobrir
como retornar ao estado líquido. Como compreender, sem raciocínio,
o que era sentido. E encontrei-me com um písceo amigo, dos poucos
que guardava. Por novo vaticínio ou mera confirmação, embora
sem grandes pretensões, fomos ver o Aquário. Âmbar desejava, da
contemplação do confinamento daquelas puras espécies aquáticas,
absorver algum entendimento ou justificativa para as possessões
humanas, defendidas ou não pelos louvores tidos, certos ou não,
por Amores.

“Quando o Poder do Amor


vencer o Amor pelo Poder...” haverá?

E Cavalos-marinhos a pairar fantasmagóricos


rente a superfície
do Mar
Daquele jeito assombroso que se movimentam
Imóveis.
Através da bruma marítma em direção a Netuno.
Aqui, um Buda entristecido levita para onde pode:
No limite dos confins.

As Águas-vivas nem sistema, só espectro. Puras-vidas são


os seus tentáculos em crina.
A Moreia-onça: boquiaberta de estresse.

A Anêmona, se desrespirando, está bem.



As Arraias batem suas águas-asas: são os anjos.

O Tubarão: vi sua cloaca. Seu corpo é bronze e seus olhos


são o meu Medo do mais puro sentimento.

E Tartaruga-marinha nenhuma vi – mas comprei uma


de pelúcia para ti.

Saídos, demos graças à Ave – fazia ainda sol e tinhamos nossa


liberdade. Que era triste, éramos tão humanos e num nosso tanto
privilégio e vantagem. E, amigos, Pássaro-cão e Peixe-cão ante o
poente junto ao músico da rua, pudemos concordar sobre uma lei
do Mistério:

Ave alguma canta o seu Canto só.

Os que creem que os animais têm soluços de tristeza, tratem de contar


a minha queda e o meu sono. Eu não posso me explicar mais do que o
mendigo com seus contínuos Pater e Ave Maria.55

“Isto vai te isolar da terra”56
E nova fuga urgia, o que urgiu a porfia numa nova pacífica tentativa.
O suposto alento prometido pelo mormaço que acalentava aquele dia
Não foi capaz de derreter a grossa camada de gelo entre Canídeos
Mesmo na esperança nutrida pela Garça esperançosa, vista
Com uma canela pronta a dar um passo ante ao Lago, mas estática
E cena logo após fora vista tendo dado o seu jeito, sobre uma tábua
Flutuava satisfeita com a solução prática.

Mesmo que como Garça otimista eu me tenha nutrido de esperança


Canelas repousando dentro da barca encontrada na fímbria do pântano
De madeira que talvez pudesse ser iluminada – pelo Caráter?
E cena logo após tenha sido entregue por um Anjo Pardo um remo
E com este poderia levar-nos talvez ao centro do Lago onde talvez
fosse quente o suficiente.
Mas você chegou escudado pelo mais rígido casco

Sentou-se de costas para o Lago
E à distância duma década inevitável
Jogou-me na cara o conteúdo da sua garrafa d’Água
Negou aproximar-se da carne dita podre de cachorro
E se foi, cético da minha alma.

Só então cascateei a poluição de meu cerebelo


Sentada sobre o casco azul daquela barca velha
No que rapidamente reapareceu o Anjo Paulo
Estendendo o seu remo outra vez
Impedindo-me de baixar a cabeça cachorra
E então Paulo captou, Paulo disse: o Amor
de Deus a gente vai ter sempre – o mais importante.
Mas e aqui na Terra,
quer ficar sozinho?

Ave alguma canta o seu Canto só.


O guarda do lago a apanhar juncos


para levar grão às feras que ireis sacrificar
aos Senhores das Montanhas
Aos Senhores dos grandes rios.
Agora é o tempo das cigarras,
o gavião oferta pássaros aos espíritos.
Come cachorro e o prato está fundo.57

A ventania era discreta mas presente nas correntes sobre a água


No que concedi às mãos de Paulo qual Caronte o remo
Para levar-nos até Cerbero do outro lado, enquanto o poente.
Durante o caminho flutuado apareciam os brotos estrelados
Desciam banhando-nos com seu pólen.

Paulo me contava sobre a falta d’água em Sergipe


Que seria à sede deles a suprema riqueza, uma Lagoa dessas
de cujas águas nós desdenhamos mas onde
Paulo nada intacto nas noites em claro, privilegiado
do seu não-saber: prévia benção que se perde no apreender.

Suja? Não mais do que o nosso Ser – que nem Bicho quer, Paulo ri
do Urubu que de todo o podre come, menos do podre de humanos.

E me conta de sua mãe que um dia achou de pular a cerca


E do Gavião que um dia caiu do ninho na sua frente
E da mãe dele que descida em resgate te olhou dizendo
que sabia do seu bom coração

Pegou no bico o filho e levou-o de volta para o ninho


Ninho de Gavião que é ninho feito bem feito ni rocha dura
E de lá te ficou olhando
A mãe do filho que um dia veio a ser seu amigo, todo os dias
Dado de comer sobre o telhado da sua casa, o Gavião Gabriel
Feito do Deus o mensageiro
Aí eu se apeguei a ele, aí eu se encantei
Que voava livre e voltava
Feito do Deus o mensageiro.

Roeduras de ratos e bicadas de pássaros: litígios,


rato de pinho e gato de carvalho, esquilo para você,
pardal, pássaro de cânhamo, roeduras de ratos e abelheiros
correm para a lei sem causa;58
Tive de viajar, distrair os feitiços reunidos no meu cérebro.59

Diziam que ela podia fazer baixar os pássaros das árvores,


coisa deveras imperial; mas infernizou
o palácio

“e serei maldito” disse Confúcio:60

Na travessia noturna entre as cidades fugídias, sentou ao meu lado no


sono
Ancião das tribos de Cam, os olhos brancos de vidro
Inconveniente observando-me incessante a escrita
E perturbada lhe pergunto: O que é há? – E recebo
Nas mãos hesitantes um amuleto
Espécime de escorpião, era Quíron, e disse
Que eu tinha grudada em mim uma baga –
Baga salinas murmurrava Baga salinas e eu pensava nos Mares
Segredava Baga salinas escorpião era a mesma que tinha o Hitler
Por isso a respiração me falhava e eu pensava em como poderia
extrair do coração esse tumor de ódios.

Quando despertei em meio à madrugada mirando a janela


Sereno susto me fez pensar que ainda no sono quando vi aquele manto
De estrelas correndo sobre os escuros vastos campos
Elas enormes e baixas como eu nunca antes havia visto como
o Céu no interior da Montanha.

Eram duros, sólidos os astros eternos


Pendurados e correndo à velocidade da travessia eterna
E supliquei para que me rendessem os celestes.

Sim, tenho a vista fechada à vossa luz. Sou um animal.


Bebi o vinho não tributado, da fabrica de Satã.61

E vi a forma absurda
Nos montes por detrás das cidades transientes
Geométrica em 5 pontas de luzes, 3 vermelhas em cima e 2 brancas
embaixo
E uma estatueta de Cristo na cidadela, que seguiu quando a cidadela
sumiu.
No breu contínuo da travessia, humilde lua minguante iluminava
O largo Paraíba do Sul.
E o manto...

O coração... os membros...

Me jogo nas patas dos cavalos!


Ah!...62
Como alguém que nada contra a corrente numa noite escura,
faltam-me sinais para calcular exatamente o grau de deriva.63

E em Novahora fecho a porta de gelo sem janelas para asfixiar-


me desta sentença de encarceramento que, por cautela, sigo
pronunciando contra mim mesmo. Agora, renuncinando aos
pensares extravolúveis da aérea razão cachorra, permito que a
Água inunde, imunde, esta alcova como a maré do dilúvio.

Pois pensava que esta seria a Boahora de estar a transcrever


impensáveis éclogas à beira dos declives das colinas ou entre as
veredas das planices, embeber-me da alucinação dos solilóquios
dos ciprestes solitários, da ave tagarela dos íngremes rochedos,
ou até da Vaca pairando no pasto, o que teria ela a dizer?

Entanto aqui estão as minhas patas, transferindo para a singela


alvura das páginas a cadência malsadia do coração em geada
– eu estou aparvalhada. Observando uma silenciosa beleza na
limítrofe iluminação deste cômodo amaldiçoado; pelas duas
frestas de grosso vidro, o ambiente se clareia e se escurece.

O sol venta mas aqui não entra. Posso já sentir a vindoura
síncope agúda que me atacará novamente a espinha: o tumor a
baga o ódio a contratura. A sentença continua revogável. Mas
meus ouvidos seguem débeis – estou fora do mundo e não sinto
saudade dele. O meu tato não reaparece.
Esperava fruir a inquieta segurança de um animal que se tranquiliza com
a modéstia e a obscuridade do covil que escolheu para viver. Enganei-
me e acertei-me. Essa existência imóvel borbulhava no mesmo lugar; o
sentimento de uma atividade quase terrível engrossava como as águas
de um rio subterrâneo, um veio de água negra sulcando as entranhas de
uma vasta e imutável superfície.64

Âmbar se abismava nessas visões como um cristão que meditasse sobre


Deus.

“É claro que afogaríamos, antes que pudessemos ter a habilidade de


Asas.”

A água o levava como um cadáver tão indiferentemente quanto o faria


com uma braçada de algas.
Imerso em sua carne, aí redescobria o elemento aquoso.65

Debatia com e debatia-me entre


O argumento das nobres ambições! defendidas pela dialética aviária:
Era toda a papelada onde descritos os direitos solipsistas da criatura


Dois pássaros voando ou
na outra mão
uma mão:
fluido desafio à aposta dos calculistas
o deslizamento da gota translúcida que escorria
inexplicavelmente em sentido oblíquo pela vidraça.66

Sua indisponibilidade – canídea! – para a mais fiel cumplicidade


ou, por outro cão instinto, a incorrompível devoção à humanidade?

E nos buracos da rede em que me selei nesta cidade


ponho, demente, o bico alagado, meus olhos inábeis
E ergo, miserável, esta minha pata a qualquer Ave
rogando pelos chilreares duma improvável equidade

Mas nada me diz este Vento que não se contradiga
quanto à compatibilidade das nossas belas pilastras
com os meus arídos, egoísticos ares.

Na primeira noite sonhei: com o canídeo pré-histórico monstruoso


cruzando o meu caminho na zona portuária do balneário natal. Ele
passou marchando velóz e eu, que estava indo para a direção oposta,
esqueci de qualquer dever humano para segui-lo; era preciso.67 – E eu
corri quando percebi que por descaso o tinham atirado ao Mar, e
logo vi um vulto semi-humano atirando-se à água para resgatá-lo.
Desci a escadaria até o nível do mar levando nos braços a oferenda:
imenso peixe eu estendia aos braços de um semi-deus encharcado. Já
abraçados e boiandos, o bárbaro tipo gaulês me contava sobre os amores
antigos, os imortais enigmas. Rápido! Existem outras vidas? 68 Mas
os deveres humanos me chamavam insistentes, aos que tive de
ceder, não mais podia fazê-los esperar; – e deixei o Mistério velado.

Se tenho gosto, é quase só


Pela terra e pelas pedras.
Meu almoço é sempre o Ar
A rocha, o carvão, o ferro.

O Lobo uivava sob a folhagem


A cuspir as belas plumas
Da sua ceia de aves não selvagens:
Como ele eu me consumo.69

Marchava o deserto enfermo dos dias, pela Santa


Cecília sobre os frágeis fios dupla-face.
Dentro da carcaça os rios pedregosos batento
Sinos ante o risco dos meus saltos sem base.
Ou afundava na alva maca da alcova.
Nas veias pregada a bolsa de soro
Que me nutria da culpa pela Boahora.

Essa...
Não podia ser a Boahora. Não pareciam poder
associar-se a ela os enegrecidos olhos que gravitavam
enquanto movediço langor me anulava os pensares.
E na cruz erguia o animal inebriado, quebrador das juras,
corrompente dos princípios em juvenil ignorância
que esbravejava contra as promessas libertárias do desejo
e que na Hora do sempre teste lançou-se
à armadilha precariamente mascarada.

Isso só metade via.

No secreto preservava o altar para a sua besta,


besta dita cruel como a sua paterna, a sua nunca trégua,
uma vingança eterna.

Mas Âmbar,
Eu – nós
Contra todos Eles, os poderosos?
Mas Tu, um Ele, te põe de poderoso,
Me possuiu em prometer-me que juntos triunfaremos este Fogo.

Assim tu te libertas
Das humanas querelas
Dos impulsos comuns!
Tu voas de acordo.70
E contemplava horrorizada o negro borbulhar no recipiente.


Vocês humanos fizeram do amor uma enorme impostura: Entretanto,
que outro nome dar a essa flama que ressuscita como Fênix de suas
próprias cinzas?

Pois certos corpos, irmão Âmbar, refrescam como a água,


e nos conviria indagar por que são os mais ardentes que o fazem.71

E pois com as canelas a esvoaçar


Retornei, no cinza, à morada da centenária
para uma visita de afinidade para com a tangente.

Agora novamente Mina


falando de temores em abstrato,
para o seu volátil amigo72 – Âmbar
Que naquele dia ela estava
Estou aqui ainda empesteada
Mas estava alegrete
No que se pôs a cantar seus
Lará, lará, lará-rá-lará-lálá

E seguiu repetindo estórias não antes contadas:


Nunca quis casar não
Mas tinha vários pretendentes
Ele lá eu cá
Tô ótima assim:
Sem casamento
Passeei a beça, fui até
Jerusalém
Semana passada eu fui lá
Lá no Rio lá, na Santa Cecília
Tomei alguma coisa aqui aí quis ver
As minhas gentes
Eu sou filha de Maria de lá
Mas não gosto de lá, não
Aí voltei. Ai, ai, ai...
Eu fiquei muito tempo dentro do vapor
Eu sei que a Lourdes era muito despachada
Ficava andando no vapor pra lá pra cá pra lá
O chefe do vapor falava a senhora está perdida?
Dizia estou perdida onde é que eu estou?
A senhora está no vapor e queria levar ela pra
Lourdes dizia eu não, eu vou sozinha, pode ficar aí
Eu sei que viajei muito, a maior parte
Foi de vapor, é gostoso
Que fica muito tempo na água

Mas eu quis ir lá ver onde meu pai e minha mãe
Casaram
Aí eu fiquei sentada na praça com o padre
Ele me contando
Na porta da igreja cantando
Mas a Lourdes era despachada e não dava
Não dava confiança à ninguém
Fazia o que entendia
Lalá, lalá, la-lá lalá lalá

Você gosta de andar?


Então anda daqui-lá
Anda e volta
Lalá, lalá, la-lá lalá lalá lalá
Fiquei cansada de só falar lalá
O cachorro falava? Hahahahaha
Ai meu Deus do céu
A lourdes era muito despachada
– Eu sou a Lourdes – Você é Lourdes?
E ficou aqui olhando pra mim
Pra quê? Não tinha de tá namorando?
Lará, lará, la-lalá lalá lalá
Ai meu Jesus amado
Antes rir, do que chorar
Antes rir – do que chorar
E a Lourdes despachada no vapor
Pra lá pra cá pra lá la-lá la-lá.
E pois com as canelas anestesiadas depois de tocar
Nova ária lúgubre para Mina no seu piano intocável
Tendo visto o quadro da barca vermelha fora & verde dentro na água
azul
Esbarrei o peito morto em caixas verdes pelas ruas
Lati para os outros cães, vi os pombos pastando no brejo de Pinheiros
E alguém me pediu atenção ao índice brasileiro de casamento infantil
Ao que sucedeu o escoar de uma memória secular, quando em Gion

Pequena Chiyo que tinha muita água na sua personalidade


Água, que sempre encontra fendas por onde cair
cuja sina não pode ser detida
Depois a velha gueixa que morreu violento no rio entre rochas
Quando fugindo de seu Danna-san e Pisou na cauda do Tigre.

Vai, canção, certamente podes ir


Para onde te apraz
Pois és tão elaborada que esses teus preceitos
Que esses teus preceitos
Serão louvados pelos teus intérpretes,
Estar com outros não é teu desejo.73

E não é o teu desejo não estar com outros


Aos outros é a canção dos outros ao teu coração
Mas estes Cantos encontrados na fonte das tuas cães cordas
Não são mestrados na garganta – são silenciosos como o Peixe
Ou dos escombros marinhos o enfermo escorpião letrado e mudo.

Nada invés voo? Não grita ainda... – Mas fala como Cachorro:

Ouçam!...
Tenho todos os talentos! – Não há ninguém aqui e há alguém:
não gostaria de espalhar meu tesouro. Farei ouro, remédios.74

Porque se Aves não cantam mesmo em cavernas


O Chopim-do-brejo era o meu único igual.
Enviei Maritacas da Santa Cecília até a Gávea
Para contar-te as verdades – mas elas não trouxeram sinal.

E todo dia descendo da alcova para respirar na praça


Um pequeno e descabelado Cão, de pé
no banco onde as gentes se sentam: isto diz tudo.
Comparando, era bosque. Olhava o vento a correr pela graça.
O singelo passarinho a esporrar uma lagarta contra o chão,
Cada cão tendo o seu mendigo.

Os Pardais saltitando hilários e os Bem-te-vis


Alternando assento nas estátuas.

E toda vez subindo para a alcova metendo a fuça na rede


Um vislumbre do vasto nos céus e Deus
Ainda me sopra a face. Ó Ventos, dizendo:
Dos ardentes caminhos não terá escape.

Mas noto que meu espírito adormece. Se estivesse bem acordado


sempre, a partir desse momento, chegaríamos logo à verdade,
que poderia nos rodear com os seus anjos chorando!...

– Se estivesse sempre desperto,


eu navegaria em plena sabedoria!...

Ó pureza! pureza!75


E fulgurante aguaceiro tomava o cenário, enquanto
Na apatia, indiscerníveis eram a cólera o orgulho a culpa e quem dirá
o Amor: era um concerto de infernos.

Satã, farsante, queres me diluir com teus feitiços.

Me queixo. Me queixo.76

Ora, mas esse dilúvio veio foi Em-Boa-Hora...
Não deixa de me fazer surpreendida, o súbito
Cântico irrompendo das geleiras, qual cuspido
Da boca do primeiro Peixe o fogo da Boahora.

O esbelto Arco-iris
Não me obrigará a ser belo.

Alçou desde o cimo para cima o fucinho


As escamas as asas o rabo a barbartana
E quando sublevo aberto o berreiro brûlante
Arfantes os silvo-latidos ululam a flama.

Os Insetos e as Flores
Jamais crucificar-me-ão.

Ah! voltar a vida!


Lançar os olhos sobre nossas deformidades!

Aquele veneno, aquele beijo mil vezes maldito!77


Na altura imunda as emoções se cancelavam uma a uma –
os pulmões eram flores ressecadas pelo odor insustentável do enxôfre
e até o gargalhar do idiota tinha retornado.
A alcova proliferava em vermes, como a tigela de três dias,
E a ponta do nariz não se podia enxergar.

Uma voz comprimia meu coração gelado: “Fraqueza ou força:


te voilà, é força. Não te matarão mais, por já seres cadáver.”78

Basta! Eis a punição. – Marchar!


Onde vamos? ao combate? Sou fraco!79


E abandonei aquele covil dentre tanta água que quase não percebi
quando cheguei, de uma vez por todas,
ao Mar.

Voa como no ar calmo


“qual uma seta, e sob mau governo
qual uma seta”

Ver a luz jorrar,

ou seja, para sinceritas


da palavra, envolvente.80
A chuva teve a duração da eterna travessia, e mais
Quando esqueci as bagagens no bagageiro ainda chovia e
Ainda chovia quando pensei que você tinha arranjado nova companhia
E quando eu pedalei em alta velocidade em baixo oxigênio para
Chegar no pântano de odores repelentes onde assombravam morcegos
Pois seguiu chovendo quando você chegou e fomos para o deque
A chuva teve a duração da ineterna porfia, e mais.

Seus olhos de Lobo estavam mansos de aceitação ou de exaustão


Como sempre foram. Meus olhos de Cão estavam mansos de bulha e
Pavor, como na sombra são. Mas eu vi: nossas tábuas de madeira
Afastando-se lentamente enquanto o meu cauteloso ladrar se esforçava
Em dizer de meus motivos que iam longo perdendo os sentidos
E quando enquanto nosso canino abraço pousou grandiosa Garça cinza
Ao nosso lado, eu vi, eu beijei o seu lábio, e você chorou do fardo.

Ainda chovia enquanto o seu pranto, e eu não entendia o meu manto


De gelo, degelo não vinha, longe ainda, eu não entendia o quanto
Era triste, era terrível, meu Verbo decantou e não sobrou nada, eu via
Que eu verdadeiramente não mais via. Não sabia mais falar!
E eu te segui quando você quis partir, e ainda chovia quando
Você se escondeu na sua toca verde, e eu lá debaixo fiquei olhando
E para cima segui olhando.
E ainda é vida! – Se a danação é eterna!81
Um cão que quer se mutilar está condenado, não é?

O grito do meu coração estava quebrado


E os flocos pluviais dardejavam no Ar
Como cardumes correndo da maligna rede
Todo esse fulgor sendo fruto do Amar.

Os lumens róseos atiravam no peito de gelo


Que velava-me entre os diabólicos ruídos
E pelo revés ventavam as rajadas celestes
Qual estelares manadas em galopes fugídios.

Mantive o fucinho erguido acimae mirando


Estático enquanto me transpassavam velozes
As duas faces da tragédia – que são a piedade
E o terror – a clamar o êxtase dos atos atrozes.

As trevas me enxarcavam de sôfregas ideias


A mim, de pé sob a fenda laranja dum poste
Ao qual jurei não abandonar-te àquela noite
De geada mental – que tal frio devia ser meu.
Pingando em langue encostei a serpente invertida da espinha no tronco
Do qual caiu, na sopa dos meus cabelos, uma beneplácita barata.
Pois a chuva teve a duração da eterna madrugada, e mais
Mas por nada eu deixaria aquele mangue, ar embrumado n’águas
E nem a generosidade do vazio me era permitida, ting desassossegado
Que os torvelinhos da fleuma ofuscavam dos deuses os sussuros

Modo que assim, no deserto da sua rua, passei as horas mirando


Ora o verde da toca à mim proibida, ora o cinza da pedra na sina.

Ainda chovendo às quatro quando o frio não me concedia nem cochilo


Quadrupede molhado escalei a porteira e abriguei-me como gato
Nos degraus da escada, não do seu andar, no debaixo, e ali dormitei.

De manhã tinha o olhar tão perdido e o aspecto tão morto,


que os que encontrasse teriam podido não me ver.82

Mas você me viu, quando ao farejar meus rastros ainda frescos


Desceu à rua, pelo elevador, e aos teus sons eu te sabia, ao que desci
Imunda e alagada, para o seu espanto – como estava lindo
Naquela manhã! Eu tremendo disse: que você não estava só, no frio.

Conheço ainda a natureza? Conheço a mim mesmo?


Recebi no coração o golpe da graça. Ah! Não tinha previsto isso.
Terei as torturas da alma quase morta no bem,
de onde sobe a luz severa como dos círios fúnebres.83
E caminhando para meu antro cachorro,
recolhi um bendito gato neném, cinza como era aquele dia,
e tão pequeno que evidenciava Deus.
Hibernei os restantes dias de inferno junto aos felinos,
fogo selado pelo Lince,
Aguardando o calor ingaratido como um vegetal desnutrido.

Até que a grama azul fique amarela


e as folhas amarelas flutuem no ar.84

Por tal crime, por tal erro por séculos repetido, mereci minha fraqueza
atual. Aos que creem que os mortos têm maus sonhos85, trato de contar
o meu sono em Âmbar:

À noite nadou conosco nas águas oníricas grandiosa Tartaruga-


marinha. Não fazia sentido seu comportamento, ela nos afrontando
com seu bico, ao mesmo tempo que nos atirava seus ovos – o que
parecia uma tentativa desesperada de preservar a sua espécie. Disso
nos esquivávamos assustados, segurando no deque de madeira. Que
intencionava, lançando sobre nós seu invencível e robusto corpo de
réptil? – Ó, Crosta Terrestre! de nem todos os abalos sísmicos nos
aliviasse: imóveis e imperturbados forem seus lagos, o solo não cessará
de transmudar-se... – Ó incorrompível Casco de Tartaruga! Fazia-me
contemplar os tempos verdes: na mente tinha a nossa matilha de dois.
Erguemos templos nupciais de manso êxtase
Fizemos da fuga desta terra a nossa jura
Da conquista das mais nebulosas alturas
Do mistério dos formigueiros e das colmeias
Em dueto

Eu pensava tu com o teu escárnio sagitário


Eu com meu discurso pacifista incendiário
Senza “fammi fare” – e facciamo insieme.

Assim confiamos a aliança aos braços voláteis


Da eternidade: como fazem os Papagaios
Em dueto
Num belo e exótico espécime de ingenuidade
Propriamente este, o do bom selvagem
E arriscamos nossas três carcaças ao fundo
Deste lago: a nossa calma proverbial
Salvaguardou-nos de muitos terrores comuns.

Pois quando em primevo convidei-te


Os olhos em despudorada coragem
A erguer-se de seu casco: você veio!
Esticou esse pescoço lagarto
E enfeitiçou-me
Com o seu semblante sereno terramar.
E quando vi-te além casco
Que era Lobo
Me apercebi também Cachorro.
Desde, terramar transitamos:
Desde, nós fomos todos os Animais!
E juntos nadamos.

Mas os que pensam a espécie humana


Insuperávelmente Animal, talvez
Verão que algo monstruoso nos separa:
Tomemos o livre-arbítrio do usufruto
Das vossas majestades essências ferais
– valiosa cartela de redenção, aos sábios
& mero catálogo da beleza, aos acegados –

Podemos optar por dedicar-nos


Ao cultivo de nossas jubas
Ao alimento de nossa manada
Ao exercício das nadadeiras
Ao engrossamento dos latidos
E até ao aperfeiçoamento de nossas asas.

A abertura infinitiva dos leques é a nossa bendita maldição.


Mas no deque de madeira vi
Conosco sentado o grande Amor:
Ele arde intácto no fundo do poço
Abaixo da grossa camada de gelo
Só o suficiente para não derretê-lo...

Que protege esta chama d’água?


Incorrompível casco, a nossa
Centenária Tartaruga terramar
Centenários movimentos tectônicos
Enquanto ela no seu perpétuo nadar...

É a maldita benção:
Mesmo vista a Morte
O Bicho nunca teme a Vida
Precioso ver não vendo: para além da elástica sina.


...mil vezes maldito!
Minha fraqueza, a crueldade do mundo!
Meu deus, piedade, esconde-me, – Estou oculto e não estou.86
Refocilar-me nesta lama lírica
após a ressaca das tempestades
no deserto entre nós imiscuido...

Prantear a sua cólera recobrada


na minha carne rendida
à nossa treva triste...

Havia sorvido a bola de fogo


A traverso la foglie
Sua vara gerou deus em meu ventre
Eu engoli a flama.87

Mas tergiversado em ódio o deus


pois neste mês o inferno ainda manda
e a cabeça do seu centauro rancoroso
batendo na porta do meu útero morto
fazia-me lastimar o amor enfermo mostrando osso

AMOR, ido como raio


durando 5000 anos.
Cessará o cometa de mover-se
ou as grandes estrelas atadas num local!
Deus est anima mundi,
animal optinum
et sempiternum.88

Justo eu, chafurdando


ladainhas chorosas em vermes, às
Águas, águas! Pessoal por demais
Ares, ares! Os inalcançáveis ideais...

Justo cão, lágrimas piedosas, o


Animal eterno mangiando le erbacce dell’uomo.

Que pensava “O amor não me inspira ao Verbo grandes feitos”


mas tem a Lua como a alça do balde, arco da sua fonte –
AMOR, os róseos fulgores que encantam a canídea ponte.

Tão abandonado que ofereço a não importa que


imagem divina os impulsos para a perfeição.89

E lembrei de acautelar-me com a piedade.


Um Cão que quer se mutilar está mesmo condenado!
Mas vejamos sem vertigem a medida da minha inocência90, enquanto
Vem Hátor presa dentro da caixa boiando à tona da onda
Carregando consigo os enigmas do amor & do desejo
Pois há uma vertigem! e vertigem como essa eu nunca havia visto:
São as abissais bifurcações, aos tontos olhos dicotômicos
A cauda rosa fumegante que levou-me, ébria da sua linda cor, para
Novamente abaixo da sua janela, a imaginar o que fazia detrás dela.

Cão recostado no muro


Os trajes mesmos, com
Odor forte do xixi
que viera com o meu gozo
E o seu, encolerado leite que bebi
Pois tive mesmo a sua sede
nadando no Rosa.

Entanto não serei mais capaz de pedir o reconforto de uma flagelação. Não
me creio indo para um casamento com Jesus Cristo por sogro. E quanto à
felicidade estabelecida, doméstica ou não... não, não posso. Sou dissipado
demais, fraco demais.91

Mas você me contou que esteve


nadando com golfinhos em algum mar
e contou no mais suave sorriso caramelo
brilhando dessa sauna botânica que emana
dos seus longos pelos dourados, ó Canis lupus
E com meus olhos de Cão admirei
a rara Flor no breu do Pântano, essa aura
precioso suco de rubis & esmeraldas
quando mesclam os raios das nossas bestas
mesmo a tua agora desconfiante da minha, ó Canis lupus

verde do poço da montanha


brilhou dos olhos sem máscara no espaço em meia
máscara

Aquilo que amas muito sempre fica,


o resto é ralé.92

CÃO, ido como enguia


correndo a 3km por minuto.
Cessará o seu centro de oscilar-se
ou o grande pêndulo sobrevoado!

Nos conspícuos montículos sobreviventes


do meu orgulho, procurava arrancar as daninhas
para vê-lo nu, para confrontar a sua genuinidade.

Nem mesmo um companheiro? Cala-te, mas cala-te!


E ladrava o Canto do Divino Egoísmo:
Com quem será
que o Vira-lata vai parear?
Com suas próprias penas, apenas, e ai de quem as segurar.

Os equívocos que me passam, magias, os falsos perfumes, músicas pueris.


– E dizer que tenho a verdade, que vejo a justiça: possuo um julgamento
são e moderado, estou pronto para a perfeição... Orgulho.

Senhor, tenho medo. E sede, tanta sede!93 – Do rosa, do rosa!

Comprazendo-se na dor
dos heróicos furores
o Bicho desonra seus Amores.

A formiga é um centauro em seu mundo de dragões.


Põe abaixo tua vaidade, não foi o homem
Que fez coragem, que fez ordem, ou fez graça,
Põe abaixo tua vaidade, digo põe abaixo.94
Aprende o teu lugar com o verde universo
No ciclo da invenção ou arte autêntica
Tu és um cão exausto embaixo do granizo,
A pega inflada sob um sol incerto,
Metade preta metade branca
Nem diferes asa de cauda
Põe abaixo tua vaidade

Quão míseros teus ódios


Criados na falsidade,
Põe abaixo tua vaidade,
Precoce em destruir, mesquinho em caridade,
Põe abaixo tua vaidade
Digo põe abaixo.

Mas

Procura ela razão para um afeto, muitas vezes fero


Que é tão soberbo em se chamar Amor
Quem o nega ora pode ouvir o vero
Pelo qual falo aos sábios neste agora:95

Com as patas descalçadas beirando o sal


O raciocínio cão tem mais clareza
Ou são pescadas discretas profecias
Na mira turva do atenuado horizonte –
Gosto quando o céu e o mar
assumem a mesma cor, hoje
manto metálico e úmido
como o dorso de uma foca96
sob o raio dilatado dos sóis.

Gosto de ver esses corpos


as resilientes setas negras
as suas pensantes cabeças
mirando esquerdireitas
raciocionando como o Sábio.

Gosto quando o topo do morro


ganha o halo cinza esfumaçado
adornado das mil setas em vôo
em solene honra aos terrais.

Gosto de ver essas trupes


reunidas para a ceia píscea
se azafamando em círculos
sobre a espuma dos deuses líquidos.

Decerto vejo dois cachorros nessa praia


e oro a eles, que correm um atrás do outro,
para que creia nos olhos com que te olho –
do Amor! o verdadeiro olho...
Mas meus miolos caninos no incerto vento
são entregues ao que a Ave dará, seja dado
eu Cão contigo na ilha, ou só largado ao mar
do Tempo! o verdadeiro templo...

Eu bem podia ser a criança no cais


atirando-se aos vapores, às nais
de tanto olhar nos horizontes as suas
chaminés aventureiras da Boahora
ou da deriva, perdidas n’água afora
a arriscar todos os meus anos ao oceano.

Eu bem devia partir, à todos sumir


e só assim imploraria por quem Amo.

orgulho do seu olho


como na verdade tinha, e perdurável
o imenso pavão aere perennius97
Mas penso cego é quem não vê
a serenidade do caos a esmo
no festim voluptuoso da Natureza

Ó ventos, ó mares
nos desertos campos alguns pomares...

Penso sábio é quem pode ver


desacelerada a marcha das manadas ardentes
flagrar em camera lenta a corrida das correntes

Ó rios, ó faunas
nas fendas mais escuras ainda há algas...

Vejo na abóbada dessa toca


e nas quatro paredes circundantes
rolando a película da maratona ininterrupa
a velocidade por dez mil dividida

Ó corredores, ó escadarias
nos apartamentos às vezes pradarias...

Ó ventiladores, ó telhas
nas varandas eles acendem as centelhas...
E os músculos do guepardo esticando
como o desabrochar dos crisântemos

ou como no conselho do jovem para


procriar e se casar (ou não)
conforme você preferira encarar

Os olhos, desta vez meu mundo,


Porém passam e olham pelos meus
entre minhas pálpebras
mar, céu, poço
alternam-se
poço, céu, mar.98

Na vigília do esfíngico visor de linces


cresce o broto verde do manso êxtase
Por onde, qual solitário plâncton luminoso, vêm

Atravessando o troar dos relvados
as vermelhas águas asas da Arraia
planando na mais vagarosa das revoadas.

A generalização lhes escapa, um cachorro branco não


é, vamos dizer, um cachorro como um cachorro preto
Não ocorre, Romeu e Julieta, infelizmente...99
Só, quem sabe, Cão e Lobo, felizmente...
E alguma claridade às suas ideias:

Se alcançasse latir de acordo com os silvos que o embeveciam


o Verbo, sozinho, esvoaçaria a verdade! E cancelariam-se
quaisquer considerações dualísticas no respeito do seu Amor.

Mas muito havia dado de comer ao verme, empesteando-se


dos demoníacos temores para com as possessões humanas.
Não mais conseguia louvar mãos – já só podia imaginar asas.

No menos, que temia, sabia: o seu rabo entre as pernas


a pedra de gelo seco na garganta azul
que ia desemplumando de não-uso: tudo isso via.

E podia jamais falar – este Verbo que queimaria


de frio qualquer criatura que amasse
e com crua cruel geada tendo ofendido às tripas

O veríssimo Amor não poderia ter reação diferente


que a desistência, que o supremo nojo, que o desapontado
abandono: já não tinha isto mesmo acontecido?

Exceto que não pelo Verbo, mas pelo verbo


comprimido no poder da sua limitrofia amaldiçoou os atos.
Cão, virado, deu as costas para seu de-sangue-o-abeirado;

Ó Canis lupus!

Um Lobo é mesmo o Cão verdadeiramente livre. Invejava-o.


E tanto endeusava correr só, largado, nas asas próprias.
Entanto tinha o ladrar imudecido no tremor, temeroso
de ter o seu Amor ido morto e matava-o.

Hoje, só, só praguejava no silêncio escribacanídeo.

Pairar, parole!

Ponha agora gelo na sua casa de gelo,


o grande concerto dos ventos
Chama as coisas pelos nomes.

Tilinta, tilinta, duas línguas? Não.


Mas à palavra com exatidão,
contra o ranger dos dentes (incisivos
superiores)
chih, chih!100

Disse, quando esbarramos no prado flutuante da noite:


Estou procurando palavra com a qual resumir a nossa imensa dor

Disse:
Tártaro

Mas se fui eu que caí, que fazia você também ali?


Boiando nas chamas do Flagetonte – não,
você já havia escapado.
Não.

Tão doloroso um Coniunctio, grandes cães no


grande sangue –

A aliança que te arrastou comigo ao triste mundo


Ou que me arrastou contigo ao triste mundo
Ou onde nos encontramos por Necessidade.

E as cicatrizes da minha queda ardiam mais na sua pele


Enquanto Maat dedilhando
A Harpa da justiça, pena de pavão sobre a sua cabeça
À imagem da água caindo nos abismos
preenchendo os lugares baixos e seguindo em frente
Touro, Leão, Anjo d’água e a Águia, disse
Ó ventos vindouros, ó cântaros cantantes
Que apenas irisem o meu Canto estas trevas
Que me rodeiam – que não me ceguem

E se bocejo, isto é bom sinal
A treva me cerca, mas não mais me enlaça nenhum mal

Mas cruzando arcos com a rajada do voo oscilante


Repousei na areia ainda molhada quando
Pousou à minha frente enorme Fragata
Disse-me: não vá te vender ao camarada.

Xô, demônio!
Quem era esse anjo? que eu abraçava a asa.

eleva palavra-flama bate-chibata


& nenhum toque de decência em sua conduta
mera finta com uma barretada
che yang ti jen

um fraco fluir ou um fluir liu


um arroz martelo de gatilho pai lui para ruína101
Sendo afogueado o seu drama, o bichano só
exercendo meio-personagem de si mesmo
No solene solilóquio tentando só
encenar todo o bestiário do sentimento.

Bo... diz o cane rotto de quem desejei


fazer l’unico amante
Jorrar na terra o seu mau-bom sangue
extraído na raiz da fauna de bestas aladas.

Mas O lince, meu amor, meu lindo lince102

Este era um santo, não mentia por negligência


muito menos por embuste
Ajustando o tom de suas palavras
como segue a água rumo à roda do moinho.103

Dá-me saliva de linces, a cura do tumor segredado por linces


Palavra covarde do cão rebelado para além do silêncio de linces
Salva a flama de dentro do fruto velado por linces, para poder
Cão Amar enquanto ladra e, além, ladrar ao Amado a vera Fala.

Diz-me linces examine os medrosos em suas ilhas trovejantes
Examine o que dizem, os aversos ao flagrar dos levantes –
Tapam os ouvidos! Esquivos ao troar dos verdadeiros Amantes

Mas se tal pluma, como floco soprado por Urano, encontrou


a palma da sua pata ou mão ou sua naba de cabra abençoada
Sem a humilde bravura de Animais
Precioso ver-não-vendo
Vai na sombra da máscara de gentes fugir correndo
Qual!

“um animal” ele disse “que tenta ocultar o


som das suas passadas”

Tem ainda a mente intacta


Mas perder a fé numa colaboração possível
Erguer o muro de marfim
ou ficar imóvel enquanto o coral se ergue,
ao passo que o peixe se aproxima
ou a boca da baleia
como um céu aguado como oceano
escorrendo com ardósia líquida104

Eis a punição – marchar!105


Onde vamos? À senda d’Água: sou forte
E se seguir bem desperto, me coroará a nau ardente
seu capitão?

Linces, linces diz-me


Desça uns degraus nessa sauna, está muito próximo da caldeira
No vapor examina partículas
Perseguindo o espírito indomável, seu posto e sua coroa.

Justo o cão! que devia ser contente em honrar


dos bastidores, servir ao Mistério
sem grande evidência.

E quando ergui o palavrório aos lobos olhos,
recebi o golpe nos joelhos e no coração outra vez o golpe da graça.

Disse: fala, que preciso reconhecer-te além máscara


Palavras de langor bem peneiradas

tal qual o olhar de um animal tragando luz


ou correr para buracos de rato106

Disse: sou assim, sou Cachorro


Disse: Cachorro? Não é Cachorro, minha “fiel”
É gente.

E disse: E eu sou Corvo


E imitou uma Galinha.

Dando rar risada, ó Canis lupus, que me destrava.

Ah, Âmbar! ao longo dos corredores de pedra do seu inferno vemos:


Os Tico-ticos e a relva, queimados pela sua langue.

plus j’aime le chien107

Que posso eu fazer?


Se pecas, Âmbar, seus delírios
estão no fóssil da minha alma

Que posso eu fazer?


Se tenho de sombra a sua carcaça.

Mas, cão, não posso ser prisioneiro da minha razão.

Disse: Deus. Quero a liberdade na salvação. Como obtê-la?

Os gostos frívolos me deixaram.108 Vejo que a Natureza não é


um espetáculo de bondade. Adeus quimeras, ideais, erros,109 o
cinismo segredado debaixo das pegadas...

Que o amor seja a causa do ódio,


algo está deformado.110
Eis
Que atiramo-nos à cama
tendo acasalado em ampla ternura, os grandes cães no
grande forno

Escalamos a colina flutuante, as frontes colidindo e


quando chegamos a uma ponte de tábuas estreitas e enlodadas
eu fiz-nos estagnar no meio da travessia para contemplar, muda
e inacessível, a beleza do tênue eterno – sob nós era o abismo.

Disse-me ante-sonho:

o Animal que pára em meio selva para


ebriar-se dos encantos estelares acima
será visto
pelo animal que compartilha do encanto mas está mesmo
é com fome
e será, sem que se aperceba porque é tão lindo o céu, será
enrabado?

Estagnados, enquanto outras pessoas desejando cruzar a ponte comigo


se enfuriavam. Disse um: que egoísmo prepotência etc, e dei-lhe na cara
a cachorra cusparada, para o teu espanto. Um indignado disse na sua
direção: com esse comportamento dela você deve se ferir muito! O que
foi replicado com: você nem imagina,
Depois o indignado quis fotografar-nos naquele momento, disse que
eu era mais bela do que as Nereidas. Ma va bene che per cui io sono
incatenada alle roche?

E teve inicio uma movimentação libinosa entre casais frustrantemente


mal estruturados. Um dos indivíduos observava fixamente a sua própria
imagem no espelho enquanto no Sexo, durante o que nós o observávamos
com certa pena. Num acordo, olhamo-nos:

Eis
Que atiramo-nos à cama
para acasalar em ampla ternura, os grandes cães
no grande forno.

Cada qual diferente, costumes diferentes


mas uma raiz nas equidades,
& fé na palavra.

Mas a beleza não será folia

Embora meus erros e fracassos fiquem sobre mim.

Se o amor não está na casa nada existe.

Não se ouve a voz da fome.111


O vento faz curvar até mesmo o capim –
Por que haveria um cão de empinar-se sobre as duas
patas traseiras?

E cada disparo das brasas vespertinas tornava


Mais claro donde vinha o estado da fleuma, essa apatia
Cão refutando poder maior do que o seu próprio, fingia
que não o via.

Confessar-se em erro sem perder a retidão


Uma leve luz, como a de vela
para levar de volta ao esplendor112

Mas eu lamentava como a sua palavra tinha verdadeiramente mais


retidão do que a minha, eu que perante a vastidão deste poder tremia

Amore!

E eu derramei mais lágrimas do que Deus jamais poderia ter pedido,113


depois de você ter desfiado a minha máscara de pretensa perfeição.

Pois este cão, este cão não quer aceitar nenhuma forma de submissão...

...ma anche, si non lo voglio, tutto questo non mi metterà


contro tutto e contro tutti?114
Ah, Âmbar! A raiz da culpa é a comparação dos lados, enxergai
Que para ter um divíno, há de ter um amaldiçoado...
Quer domar o poder do grande, bem como se vê por ele domesticado...

Ah, Âmbar! Ante o Sem-nome supõe-se


encarregado da humanidade, dos animais mesmo?115

O lobo agora oferece seu sacrifício.


Arroz novo com vossa carne de cachorro.116

Socorro! Zéfiros de neve... Socorro! Animais da savana...


Pelo Amor de Deus, forniquem
E apresentem-me ao seu Filhote Dourado:
Na Sua Palavra me tornarei.

O verão começa a soprar a gema morna sobre


E a raposa está andando sobre
o gelo muito fino.

Para cruzar a grande água, sete penas de Fragata levadas nos bolsos
Mas estava o fogo brilhando por sobre a água
Por isso não havia relacionamento
Wei chi, a claridade deve ser o alicerce do esforço
Fogo sob água, fazendo-a ferver
E seria a Boahora do degelo, o Cocite me liberaria, pata por pata...

Pois compreendi: Amor de Cão é Fogo


e este Fogo é o Cão.

“Uma pena que os poetas hajam usado o símbolo e a metáfora


e ninguém aprendesse nada com eles
por seu falar em figuras.”117

Disse lobo qual lince, que eu estava a me esconder atrás da imageria.


Digo cão qual ave, que se eu estivesse a construir castelos no ar, não
seria trabalho perdido, pois é ali mesmo que devem estar.118
Agora, eu colocaria-lhes os alicerces.

Perdoe-me... Digo cão qual gente


Que está chegando a Boahora desse cão calar.
Não me fale mais dos dias encantados, Âmbar,
enquanto não puder me falar quem é
este Tu, meu Amado,
e não lhe perguntarei
O porquê, apenas
M’amour, m’amour
o que é que eu amo e Que perdi meu centro
onde está? lutando com o mundo.119

Dois ratos e a mariposa, meus guias –


Ter ouvido a farfalla arfando
como em rumo a uma ponte sobre mundos.120

Sob a noite sob a sétima casa vi Âmbar


através do espelho d’água com Le Chien Terrible:


Andávamos os nossos passos encantados ao longo dos largos canais imun-
dos. Quando passamos pelos ignaros militares da marinha com seus fuzis
apontados, você desbocou em precisos versos, na língua inglesa, pelo mo-
tivo que seja, sobre a inutilidade das balas perdidas, em rosa, róseo o amor
desperdiçado, Ó poderes! E seguiu em falares. Marchávamos em gêmeas
cadências, observando coloridas na água as antigas edificações geminadas,
transpassando pessoas como a fantasmas. Seguiu os caminhos de seu dialeto
enternecido como que enfeitiçado pelos ares húmidos das ruas; ia louvan-
do os chuviscos que respingavam em nossos rostos enquanto cruzávamos
as pontes, de canal em canal. Como enchiam-me de róseos fulgores as suas
palavras de prata! Em plumas douradas! E eu lhe dizia Você dá-
-me até a vontade de chorar! ao que seus olhos, os cristais dos rios
do mundo, me respondiam com recíproca doçura: É porque eu te
amo! Nossas danações, encantadas. E desafiada pela água, te agar-
rei as espáduas; – eu atirei-nos ao canal. Senti o frio mortal nas
nossas mesmas barrigas enquanto voávamos, e nós nos seguráva-
mos os quatro-braços enquanto afundávamos velóz ao fundo. As
coloridas edificações iam junto caindo, pútridas, em musgos verdes
e fezes. Disse: Eu nos levaria à infinda profundidade! E a isto você
ria, demônio bem humorado: quer é trepar comigo lá no fim do
mundo! E seguíamos afundando, levitando águabaixo.

Num repente estávamos, os pequenos corpos, em imensas prate-


leiras de velhíssimas estantes com objetos de vidro na poeira dos
séculos. Esbarrando nos pequenos copos de chope eles caíam – e
quebravam. Endiabrados eu e você, no gargalhar do idiota. Logo
víamos vindo os militares para acabar com nosso festim além tú-
mulo e séculos. Sou fraca! que até tentei esconder-me na poeira.
Mas você ficou de pé, com o seu semblante blasé, na espera do
inevitável. E levaram-nos, com os fuzis apontados. Ele, iria preso
e perpétuo. Ma ela, iria quase-presa. – A ele pelos pés na cabeça
–. Separados, no choro infantil do animal assustado, você e eu.

Eu esperava o automóvel penitenciário numa praça junto de


outras mulheres que falavam de poesia. Recitavam parvos ver-
sos e diziam que nós mulheres precisávamos parar de temer,
e de pensar que a poesia não pode ser rasa, que tem que ser
profunda e erudita. De nada me interessava esse assunto. Lem-
brava da nossa sentença, e desaguava violentamente. Sentado
do outro lado do pátio com outros penitentes, você também
aguardava. Chegado, enfim, o automóvel, eu corria para a sua
bondade – ó a sua divindade, o terrível abraço de despedida.
Feito a criança apavorada, você recuava agaixado, um caran-
gueijo no chão de areia, chorando. Súbito se transmudava numa
pequena africana de olhos branco-vidro enfeitiçados, segreda-
va-nos que nós poderiamos ainda ter o nosso casamento, se ao
menos pudéssemos... – reconhecer um ao outro em próximo
encontro, era o que ficava dito sem dizer, no que ela era inter-
rompida pela censura dos anciões da sua tribo de Cam. E, com a
censura, a sua fala rápidamente se camuflou em latidos de Cão.

O Cão Branco desembarcou. O canhão! E me chega a sua em-


barcação, ou te chega a minha embarcação. No convés, estendi-
do sobre o chão, é o seu corpo enfermo apodrecendo em aban-
donada febre. Meu precioso amor! que te enlaço com meus bra-
ços fracos e você me morde, feróz, o pescoço. De tanta amargura
encolerado, me tira o sangue e grita embriagado da decepção:
todos esses anos, e nenhuma cura! E pranteando me levantei,
a camisa ensanguentada, para dar espaço à curandeira, que, rá-
pido, pelo Amor, rápido, o medicasse antes que fosse tarde. E
parece que eu não sabia quem era que estava para morrer, era eu
ou era ele, pois saía da sala dizendo que era hora de falecer, não,
eu não podia mais esperá-lo, que o chamassem para rumarmos,
juntos, em direção à nossa morte no Mar.
Âmbar! Não te cansaste já dos flutuantes caminhos?

Diz linces
Que eu cultivo o Cão, o sabichão terrible, o semi-deus d’águas & ares
Porque meu olho só Vê não vendo
Eu que só Sou não me se sendo
E o que havia dito Paulo no lago eu me recordo

Agora diz linces


Que cultivo meu Tu, no etéreo tantos Amados
mas na terra eu refuto o Amado?

Seus desígnios como um só
directio voluntaris, como senhor do coração
os dois sábios unidos
nada importa a não ser a valia do afeto
boca, o sol é a boca de deus121

E você vem:
Te vejo já no outro lago nossos lagos, o oceano!

Não mais posso dar voltas sobre o vosso lar


Primeiro cerne, depois alburno a respeito do par.

Lá você estava:
Te vi, do outro lado do templo.
No soar dos cânticos sem-palavra, a grande música d’água regava uma
nova espécie de Boahora. Minha mente alagada escalava os murais
banhados no ouro ideal. Nós, no debaixo, nos bancos de madeira –
olhos verdes procurando o leito um do... Na arca, que criatura per-
petuaria-se só? O arcangélico andrógino? Este não conhece a morte,
este não toca, como o Bicho, com os dedos, o Amar. Enquanto aqueles
anjos, flavos, flanavam vaidosos suas asas, as nossas asas ave-canídeas
se pensavam.

Teu olhar incendiou meu coração humano.


Meu coração te deu até mesmo a vontade.122

Ia desfilando a ninfa loura ao longo do corredor que nos dividia. Ten-


do ela passado, encontraram-se os breus de nossas pálpebras, dilatan-
do-se. Pude ver dos gansos os compridos pescoços se partindo como
espadas, sanguíneos. Dei Cani a negra guerra psicológica, um ao outro
anulando com presas envenenadas, pelo matrimônio da una nature-
za. Bellica pax, vulnus dolce, suave malum. Oito patas correndo pela
muralha, e a beleza horripilante da putrefação é inevitável pedra a ser
manejada pelo Bicho.


Subindo duma ponta a outra dos oceanos
Vão demandando altura os fumos do louvor.122
Tu, ó fascinação do serafim expulso?122

Todos os casais da barca diluviana, vi: os pólos se cancelando


ferozmente. Louva-deuses jorrando seus sangues verdes. Mul-
ticoloridas jóias minerais também ganharam garras, perfuravam
umas as outras como fossem cupins. E nas abóbadas os santos
se protegiam com alvos escudos contra a fumaça negra que es-
calonava, mas que depois, só depois de tragada, se faria Rosa.
Âmbar, anjo amotinado, que pensa você de sua écloga, que, da
raíz dos prados meus, deseja erguer-se aos jardins celestes, es-
quecendo, porém, no terrestre o meu Amado?

Meu sôfrego clamor e meus lúgubres cânticos


Erguem-se dum altar de eucarísticas chamas122


Canis lupus! que me fitava do outro lado deste estrago. Neguei-
-o, Amor, neguei-o: apavorado de ver-me destes poderes um es-
cravo. Entretanto o verdadeiro cárcere me foi esta mônada em
solipso, tu, nada-tu, Âmbar! que acabou sendo seduzido pelo
fogo de modo tão totalitário, das patas tuas não permitias tê-lo
tirado. O fogo roubado que, abafado pelo Vento, verdadeiro
poder incapturável, logo te afogou no lago. Ah! e eu pensava
parear contigo: vejo que não passa de mim mesma – sem o di-
víno amigo.
Durante o sacrifício as minhas mãos levantam
O cálice dourado a transbordar repleto121

Canis lupus familiaris! que naquele instante vi sendo levado na bar-


ca. Saudações dos anfitriões – demônios o acolhiam com graça, riso
e baba. Um convidado está vindo: Onde ele deve se sentar? O que
se aduzirá a esta alvura? Dê um jeito nessa espinha arqueada, nessa
carcaça magra... Eu chorei o seu luto, Âmbar, pois esforçava-me
para perdoar-te, como as Aves o haviam feito. Elas chilreavam, di-
ziam: Passai pelo Rio. Voltarás.


A pródiga expressão do teu corpo indolente
Todavia retém meu langoroso olhar!122

Isso passou. Hoje sei saudar o Amor.123


O canto sensato dos anjos se ergue do navio salvador:
é o amor divino. – Dois amores! posso morrer do amor terrestre,
morrer de devotamento.124

Dos ardentes caminhos tenho com clareza que não saberia descansar.
Bem como de seus lábios carnudos, ó Canis lupus.
E hoje na minha vida na minha toca de gatos
sombra laranja entre verde e vermelho nas arestas
Feras como sombras no meu espelho,
uma cauda peluda a espanar sobre o nada.125
Bacurau anunciando o ponto de mutação espreita nas palmeiras
A Cigarra proclama o bafo estival de feras.

Vem o sol, entra no antro de felinos com incenso


Agora sem medo de qualquer escravidão
sem medo de nenhum felino lá da selva.
Protegido com meus linces
dando uvas aos meus leopardos.125
Antibióticos para essa giardia, o bálsamo de linces.

À medida da sua compreensão a flama desce ao fundo do lago


Camadas de gelo agora não mais do que uma fina folha de prata
Quando estivermos nadando nas termas douradas uivaremos juntos
E assistiremos, do centro, à ópera da vagarosa evaporação deste lago

Verde rumor de bainhas étereas,


áridas formas no aether.125

Coniunctio findará num filhote di cane celeste,


pareado só de ouro e linces.
Azul é o verbo que concilia os supremos amores
Rosa o pequeno dragão fumegante que nos ronda
Verdes são minhas patas oferecendo-te bálsamo às dores
E as tilintantes criaturas, incolores, indicam-nos a senda quase pronta.
Nenhum meio-anjo, nenhum meio-animal
nem meia-pessoa: não lhe causarei mais um mal.

Veio o vasto turquesa estival, agora o degelo fará seu espetáculo


As raposas observam na beira do Cocite
enquanto suas sinas clareiam ao soar do báculo.
O Verão traz de volta o uivo do Carcará
E na telha firme eu clamo pelo istmo
por onde ele marchará trazendo nas asas o grande Amor.

E eu nunca pensara antes que havia


uma história de pássaros
embora conhecesse tantos

Para me dar conta
da história dos pássaros
foi preciso ver

A história dos urubus, que
é praticamente a mesma história dos homens
que têm cães que morrem
atropelados
em frente à porta de casa.126

Na unidade dos urubus


os enamorados sublimam
e plasmam
seu amor de Aves
no amor das divindades

assim o fazem
os Condores, os Grous,
a maior parte
das Aves, bem como o fazem
os Cavalos-marinhos
que na morte do Amado esperam
imóveis, a sua morte chegar,
e a Salamandra-de-dorso-vermelho.

Com esguias orelhas ouvi


desde
O Carcará (a meditar
sobre a rocha), o Bacurau-da-telha
(assombrando nossas janelas),
até o Alma-de-gato
(que nos surpreendeu com sua cauda
num carnaval)
Disse: Eu é mesmo
com um Outro
no canto uníssono do par

Não importa quão longe eu possa ir


nessa vida sem Tu ou nenhum outro.


...coruja e alvéolo
Não é uma obra de ficção127
nem também de um só humano

Pequenos pássaros cantam em coro


Há um imperativo na raiz disso
não o poder de um só humano
Através do alto-baixo, secura e umidade128

E às vezes, num repente em hipótese alguma


previsto ou calculado, o Céu
fica solenemente maior:

É a Boahora
O seu retorno
Ou mais precisamente
A repetida revelação da sua continuidade, com a qual se pode
contar sempre, especialmente
quando pelo seu clarão não se espera – e mantém-se a marcha.
Mas a qual nos abandona furtivamente, animal de intelecto
selvagem que é, na presença do eu impondo seu demiurgo pessoal
e tomando por garantida a sua cumplicidade; assim deixando-nos
sós, como bem quisemos!

Ah! a Boahora...
o seu caráter fugídio,
que as mãos de rebeldes anjos por vezes apanham – apenas para
tê-las, no instante em que mais alto a ostentarem, perfuradas
pelo líquido ácido corrosivo às patas de qualquer criatura
ambiciosa em demasia.

Não negarei: cão, cheguei a deduzi-la dádiva da minha graduação
em autosuficiência; das minhas régias maneiras para com o meu
próprio castelo. Porém, fazer suposições sobre a Boahora é o
mesmo que cortejar o desastre.

Assumirei: cão, enganei-me sobre a natureza das asas, das Aves,
da Boahora ela mesma.

Ladro: Cão, vomito agora os peixes que comi deixando faminto


o seu Amado.
Ah! Âmbar...

Como está o trevo junto à jaula do gorila


com quatro folhas
Quando oscila a mente em lâmina de grama
a pata dianteira da formiga te salvará
odor e sabor como sua flor tem a folha do trevo129

A Boahora gruda em seu pêlo quando você passa através dela em


pleno respeito,
Aí está a sua Boavontade: quando não a cobiça a boca babando avaro,
mas só louva:
Ó, santíssimo mel das Abelhas, ó amendoim dos Esquilos-vermelhos.

Ah! mas os seus joelhos, Âmbar,


não puderam ajoelhar-se...
e adoeceram.

Desejo crer que todo Cão sabe abaixar a cabeça quando convém. Não
por submissão, mas por reconhecimento ao sistema em não há divina
autoridade mais do que de todos os autos a divindade –

e isso nos gritam, concordes,


os Gaviões.
Esagerati!
Ecco, non gli poi dare un pò di considerazione che s’allargano subito.130


Mas é a verdade, caro Cane
que somente isto vuole di noi questo Dio
& ognuno di noi è Dio: Amore?

Assim falara o vulto errante


Como a estátua sombria do revés
Uiva o tufão nas dobras do seu manto
Como um cão do senhor ulula aos pés.131

São os róseos fulgores, vindo selvagens como anjos


Enquanto nós dois somos levados na barca, Âmbar,
por sobre a Ponte.

Mas essa é a história de pássaros


já de há muito urmanizados
pois a história dos pássaros132
Pássaros
como os cães
Cães
só conhecem os Cães dos Matos, os Pássaros Dourados
De tanto, que
pássaros feitos cães
cães feitos Ícaros
– como nas suas palavras, Canis lupus:
com seus ossos quebrados em função de suas asas líquidas.

Mas o verbo
Verbo
de tanto que
Eu feito Outro
– na Ponte, somos todos qual Canis lupus familiaris:
seu ladrar por milênios de civilizações permeado por todas as vozes.

Agora rendido, evaporado lago etéreo boiando,


contornando os cipós,
Será fisgado o Grande Peixe
com disciplina e coragem para levá-lo à terra?

É Peixe Grande, o
Grande Amor

Percebe a Fragata engessada, que arrasta a asa na harpa


que toca a sineta
que tem – comigo! – as suas sete penas perseverantes
que exalam entorpecente odor de pássaro molhado.

Disse mergulha com os Atobás –


nas águas do supremo terrestre
estão refletidas o celeste.

Disse vou
aprender a nadar e entre guelras vou
uivar como a mais completa Ave
para que meu Canto alcance acariciar
cada dente ferido limpar o seu pêlo
da peste com que te impregnei cuidar
para que lambamo-a até que brilhe!

Disse é
deste modo que se fazem do esterco
de cobras os luminescentes remédios.

Ó lince, sê muitos
de pêlo malhado e orelhas agudas.

Ó lince, teus olhos tornaram-se amarelos,


com pêlo malhado e orelhas agudas?133
De joelhos
Na cama, dado salto de dentro do sonho, donde escutava por enigma
o ralhar inexaustivo dum pássaro desesperado mas não o via, e vi que
o veria
De joelhos
Na cama, só a cabeça espiando para fora da janela e procurando
vi
num braço da Areca-bambu à frente o bulhento e volumoso Sabiá
exibindo com fervor o interior de sua garganta, diretamente
para a minha humilde janela.
De joelhos e olhos
desconfundidos ainda procurava entender o porquê de todo esse
alarde logo assim pela manhã
justo e só assim pela manhã, ele me corrigiria
mas fazia dias que eu não conseguia despertar
à Boahora da aurora, lamentavelmente.
De joelhos olhos e coração
desamaldiçoados, no instante em que, por nada, tombei um pouco
visão
para a direita e a tive fogosamente congelada pelas garras enormes
pousadas no ferro do parapeito.
E com meus olhos de cão ressuscitantes, escalando
as suas canelas selvagens, dando nas suas coxinhas malhadas carijós,
e então no seu peitoral sublime,
e finalmente no par de amarelos olhos
intrépidos, Ó deus Gavião!
Meu Deus disse de joelhos
Enquanto o Sabiá mantinha a heróica trilha de fundo,
desmedida vociferação numa provável tentativa de afastar o deus
do seu provável ninho cheio de ovos sabiás. E eu mantinha
os olhos boquiabertos no corpo daquela diindade – que me viu
e me vendo me olhou os olhos adentro, com os épicos amarelos
como o vero guerreiro celeste inabalável, figura colossal
que por um infindo minuto lançou seus raios ao meu despertar
e voou, nobremente rendido ao apelo materno.
Meu Deus vi e soube
aquilo tendo se alojado no centro do meu cerne, aquele ouro de rapina
como que concedido, não roubado no indigno
por mãos injustas e humanas, mas as garras impiedosas
de gavião tomando Fogo do ninho de fogos, sem ferir
a teia da justiça natural.

E foi no Solstício de Verão


que me veio esse profeta de algum promontório feral.
Justo Gavião Gabriel
o amigo de Paulo, o guarda do lago e do barco.

Eu trouxe a grande bola de cristal;


quem pode levá-la?
Podes penetrar no grande bálano de luz?134
QUE PÁSSAROS eram aqueles?
Indicando a correta maneira de relacionar-se com elementos
Vivendo com meus linces de olhos amarelos como os do mensageiro.

Disse: a verdadeira grandeza é aptidão de possuir o poder


e não usá-lo.135

Aquele foi o levante


Agora vem ocaso
Após o degelo, as águas de meu rio aumentaram num nível jamais vis-
to, inundando os planaltos ressecados, memorávelmente expulsando
de seus esconderijos (à beira, por entre as raízes dos salgueiros) todos
esses meus ratos almiscarados.136

O dia sido passado na carcaça paralizada, agora sem nome,


sem contornos, efeitos da visita do selvagem alado;
seu Canto suspendido para observação –
Agora também o Verbo suspendido para observação.

Arrancou uma frase do seu tesouro e a disse para si próprio,


brandamente:
– Um dia de nuvens listradas vindas do mar.

Saiu da ponte trêmula para a terra firme, de novo.137


E chegada ao Mar vi
o poente ninar aquele dia em vasto e doce Rosa.
Fumegante um dragão, carinhoso, seu hálito estival de flores –
a Sálvia do Sábio.

Usando das patas ou mãos ou asas perfumei-me


com a água tingida de céu. Espalhei-a como pomada
sobre o peito em cicatrização e a garganta
E sentei-me para assistir a siesta, sono veranil de feras –
o berço de Fragatas.

No que veio, correndo


à velocidade da sombra uma Cadela Ocre.
Sem intenção de freio, só
freiada pelo choque com a minha carcaça indefinida
que por fim ria – no garagalhar do Verdadeiro.

Era a Boahora

E retornei à toca para examinar meus pergaminhos.


Novamente é tudo “paradiso”


um bonito e tranquilo paraíso
sobre os matadouros,
e alguns em ascensão
antes do levantar vôo,
para “ver de novo”
o verbo é “ver”, não “andar por andar”
i.e. coere com perfeição

mesmo que minhas notas sejam incoerentes.

Muitos erros,
uma pequena retidão,
para perdoar o inferno dele
e meu paradiso.138

QUE CÃO era esse agora?


Ressuscitado porque melhor
o cão vivo do que o leão morto.139

Te saúdo, Canis lupus, a sua Boahora tendo-o feito singrar para a toca
onde tem resguardo, lá onde pode descansar. Mas contigo nos sendo,
vou ao seu encontro nos prados velado; – desejo retornar a seu corpo
como ao bosque paradisíaco de que me tenha perdido Sigo a nau de
linces, alamedas de linces, em linces possuo a guia para o caminho
de volta. Giro as esguias orelhas, para ouvir sinal da sua frequência.
Ao seu peito de sangue brilhoso faço a reverência do Animal ao seu
Amado. Envio com as pombas, por sobre as ondas frescas e com as
correntes fluviais, para você os bálsamos verdes, as gemas rosas.

E canta hoje um Animal Novo, inomeável


Eco de Rebis, Catdog
Que em pequena chamava Gabriel o animus:140 e enamorava-me.
Hoje tive Âmbar, Le Chien Terrible
Tive Zênon, Stephaneforos...
Tive a você – sempre tenho a Você
Mesmo que nada tive: tudo isso fui.
Palavra: Amado.
Hoje torno-me, através do Verbo que sibila nas Pontes,

o Vôo dos Amantes.

Todos os Anjos e todos os Animais, disse:


Se é, sê-lo-á.141

E ADeus – Amor de Ave:



Veio ao lago no breu a alva pomba cintilante
tremeluziu sobre a minha cabeça.
Eu! Que tinha me dado por mago ou anjo, dispensado de toda moral,
à superfície da terra, com um dever a buscar, e a realidade rugosa a
estender.

Afinal pedi perdão por ter me nutrido de mentira. Prossigamos.142

Tentei escrever o PARAÍSO143


Porém hoje creio ter terminado o relato do meu inferno.144

Em-Boa-hora, permaneci
Ante o Cálice as Penas
Na minha mesa Labradorita refletindo Auroras Boreais
Aqui onde fusiona a centelha verde na vermelha
Em distância próxima o ciciar dos longos dedos
Das palmeiras! não muito selvagens, mas sempre
Il Lupo mi ha detto in Firenze: Il sole mi ha detto
che li animali e piante non sono mai cattivi.

O dia é branco, há glória


Em liquefazer tudo que é denso
Ajoelho-me em graça – ao Vento
O vazio no centro – onde faço obra:
Hoje sou Canis lupus e familiaris.
Era o inferno;
o antigo, de que o filho do homem abriu as portas.145

Não se mova
Deixe falar o Vento
esse é o Paraíso.146

CRA-CRA-CRA-CRA-CRRRRRRR!
CRA-CRA-CRA-CRA-CRRRRR!

WROU, WROU-WROU, WRAUUUUUUUUUUUUU....!

FUI, FUI, FIU-FIIIIIU! IA! IA! IA! IA! IA! CHIIIH! CHIIIH!
referências bibliográficas

43. Adaptação da primeira página de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.


44. Excerto do Canto XCIX, Os cantos, Ezra Pound.
45. Excerto de A obra ao negro, Marguerite Yourcenar.
46. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
47. Excerto de Canto XCV, Os cantos, Ezra Pound.
48. Excerto de Canto XCV, Os cantos, Ezra Pound.
49. Excerto de poema de Patrícia Galvão (Pagu), “Natureza morta”.
50. Excerto e adaptação de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
51. Excerto do Canto LXXVII, Os cantos, Ezra Pound.
52. Excerto e adaptação de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
53. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
54. Excertos misturados do Canto LII, Os cantos, Ezra Pound.
55. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
56. Excerto de Canto LXXXI, Os cantos, Ezra Pound.
57. Excerto de Canto LII, Os cantos, Ezra Pound.
58. Excerto do Canto XCIX, Os cantos, Ezra Pound.
59. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
60. Excerto de Canto LXXX, Os cantos, Ezra Pound.
61. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
62. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
63. Excerto de A obra ao negro, Marguerite Yourcenar.
64. Excerto de A obra ao negro, Marguerite Yourcenar.
65. Excerto de A obra ao negro, Marguerite Yourcenar.
66. Excerto de A obra ao negro, Marguerite Yourcenar.
67. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
68. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
69. Excerto de “Fome”, Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
70. Excerto de “A Eternidade”, Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
71. Excerto de A obra ao negro, Marguerite Yourcenar.
72. Excerto de Canto LXXXI, Os cantos, Ezra Pound.
73. Excerto de Canto XXXVI, Os cantos, Ezra Pound.
74. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
75. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
76. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
77. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
78. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
79. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
80. Excerto de Canto XCIX, Os cantos, Ezra Pound.
81. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
82. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
83. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
84. Excerto de Canto XCIX, Os cantos, Ezra Pound.
85. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
86. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
87. Excerto de Canto XXXIX, Os cantos, Ezra Pound.
88. Excerto de Canto XCV, Os cantos, Ezra Pound.
89. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
90. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
91. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
92. Excerto de Canto LXXXI, Os cantos, Ezra Pound.
93. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
94. Excerto de Canto LXXXI, Os cantos, Ezra Pound.
95. Excerto de Canto XXXVI, Os cantos, Ezra Pound.
96. Excerto de Canto XXIX, Os cantos, Ezra Pound.
97. Excerto de Canto LXXXIII, Os cantos, Ezra Pound.
98. Excerto de Canto LXXXIII, Os cantos, Ezra Pound.
99. Excerto de Canto XXXVIII, Os cantos, Ezra Pound.
100. Excerto de Canto LII, Os cantos, Ezra Pound.
101. Excerto do Canto XCIX, Os cantos, Ezra Pound.
102. Excerto de Canto LXXIX, Os cantos, Ezra Pound.
103. Excerto do Canto XCIX, Os cantos, Ezra Pound.
104. Excerto do Canto LXXX, Os cantos, Ezra Pound.
105. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
106. Excerto do Canto __, Os cantos, Ezra Pound.
107. Excerto do Canto CXVI, Os cantos, Ezra Pound.
108. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
109. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
110. Excerto do Canto CX, Os cantos, Ezra Pound.
111. Excerto do Canto XCIX, Os cantos, Ezra Pound.
112. Excerto do Canto CXVI, Os cantos, Ezra Pound.
113. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
114. Excerto da confissão de Pedro para O Hóspede, Teorema, filme
de Pier Paolo Pasolini.
115. Excerto da Carta do Vidente, A. Rimbaud para Paul Démeny.
116. Excertode Canto LII, Os cantos, Ezra Pound.
117. Excerto de Addendum para C, Os cantos, Ezra Pound.
118. Excerto de Walden, H. D. Thoreau.
119 Excerto de Notas para CXVII et seq., Os cantos, Ezra Pound.
120. Excerto de Notas para CXVII et seq., Os cantos, Ezra Pound.
121. Excertos misturados de Canto LXXVII, Os cantos, Ezra Pound.
122. Excertos do primeiro poema de Stephen Dedalus, Retrato do artista
quando jovem, James Joyce.
123. Adaptado de excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
124. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
125. Excertos misturados de Canto II, Os cantos, Ezra Pound.
126. Excerto de Poema Sujo, Ferreira Gullar.
127. Excertos misturados do Canto XCIX, Os cantos, Ezra Pound.
128. Excerto de Canto XCIX, Os cantos, Ezra Pound.
129. Excerto de Canto LXXXIII, Os cantos, Ezra Pound.
130. Frei Ciccillo (Totò) para os Gaviões, em Uccellacci e uccellini, filme
de Pier Paolo Pasolini.
131. Excerto de “Pedro Ivo”, IV, de Espumas flutuantes, Castro Alves.
132. Excerto de Poema Sujo, Ferreira Gullar.
133. Excerto de Canto LXXIX, Os cantos, Ezra Pound.
134. Excerto do Canto CXVI, Os cantos, Ezra Pound.
135. Excerto do Hexagrama 34 (“O Poder do Grande”) em “A Filosofia
do I Ching”, de Carol K. Anthony.
136. Excerto de Walden, H. D. Thoreau.
137. Excertos de Retrato do artista quando jovem, James Joyce.
138. Excerto do Canto CXVI, Os cantos, Ezra Pound.
139. Eclesiastes 9:4.
140. De C. Jung.
141. O velho Johnny para o Sr. Dedalus sobre o seu filho, Retrato do
artista quando jovem, James Joyce.
142. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
143. Excerto de Canto CXX (o último), Os cantos, Ezra Pound.
144. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
145. Excerto de Uma temporada no inferno, A. Rimbaud.
146. Excerto de Canto CXX (o último), Os cantos, Ezra Pound.
CINOVERBO
foi escrito por Gabre Valle,
com ilustrações da autora no interior
e pintura de capa de Pedro Barassi,
composto por Joana Pires
e impresso na gráfica 99
em Junho de 2019

c dos autores

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