Cino Verbo
Cino Verbo
Cino Verbo
verbo
INICIAÇÃO
Os Ardentes Caminhos
Fica vindo na cabeça:
Cachorro
Cachorro
Ave
Cão
Pássaro
Cachorro
Você vem:
Te vejo já do outro lado
do lago
aspirando a umidade,
toda a umidade proveniente
das cascatas centenárias
do sentimento de Deus.
Você vem:
Aspira o aroma da minha pele
com o teu longo focinho branco
e eu aliso o veludo
das tuas esguias orelhas.
Você senta
na relva rochosa, ao meu lado esquerdo.
À tua esquerda, senta-se a Morte.
Ah! Não nos fale mais dos dias encantados...
Você irrompe
o vácuo terreno
com a tua voz tão terna
em francas palavras
proferindo a tua ária
árida de emoção
tênue com a seiva
do êxtase estético.
O elemento volúvel de si
de núcleo esquivo
porém alcançável –
O Pássaro:
Berrando os conhecimentos inauditos
Honrando a natureza dos caminhos da razão
Puríssima?
Ah, Âmbar!
Não me fale mais dos dias encantados.1
Não se cansou já dos ardentes caminhos?
E neste dia Âmbar ergueu uma pá...2
em vez de observá-la para ver se
entraria em ação
E dia seguinte partiu de seu antro3, indiferente a tudo que era fami-
liar, evitando pressão moral, igual a vários outros jovens cães mise-
ráveis. Mas este Cão estava tão entediado e perturbado que se enca-
minhou à Morte como a um terrível e fatal embaraço. “Não” tendo
amado humanos – porém, ardente! – sua alma, seu coração e toda
sua força foram treinados em estranhos, tristes erros. A partir dos
seguintes Sonhos – seus amores! – que lhe vieram na cama ou na rua,
e da sua sequência e consequências, doces considerações religiosas
podem ser derivadas.
Tudo isso faz com que a melhor maneira de ler esta pequena obra
laica, ou pagã, sobre uma irrupção satânica na ordem de uma per-
sonalidade canina buscando a divindade, seja seguindo os “fatos”, a
“trama”, bem como os sujeitos e objetos, de um lado ao outro através
da nossa Ponte, demorando na página o mínimo possível. Ao menos,
assim Nos parece.6
“Eu...”10
referências bibliográficas
A Morte
A luz agora, não do sol,
Abaixo, para os grandes penhascos de âmbar.
Esplendor, como o esplendor de Hermes,
E então saiu do mar para o lugar de pedra.11
Na outra cidade
logo te acolhe em morada um outro animal-família, este centenário
empesteada, de pés pouco vastos
e você sabe que isto manter-te-á acordada.
E às três da madrugada
o animal irmão da mãe que te parira
desacordado faz dias, partira.
Teima teima, há dez anos que os dias são idênticos. Nem perto quer o
alento dos sóis, também assim dispensa o Vento. E teima teima, há
dez anos que os dias são idênticos. No sofá, chia-se. Na duração da
mortalidade das horas, infindas, ante os canais abertos e as missas,
estes decerto contribuindo no proliferar das daninhas na tua fronte –
toda a Fauna e qualquer Flora, devoradas. Às penas tinha salvas as
memórias robustas dos refinadíssimos tempos de plenitude material:
Nunca quis casar não
Mas tinha vários pretendentes
Um deles foi pra guerra
Ah mas eu não queria fazer negócio com ele não
Queria me levar pro Sertão ele dizia
Mina vamos vai vai vai
E eu vou fazer o que lá no Sertão?
Ah Mina vamo lá vamo lá
Ah mas eu não vou, não
Lourdes era despachada e se queria
Andar a cavalo
Ia falar com o prefeito e ele dizia
Vai Lourdes vai vai vai
Oh Mina vê se você sossega e fica
Aqui em Bananal
Ah não, não vou ficar aqui, não
Outrora quis ir pro Sertão
Mas que que você vai fazer lá Mina
No Sertão, é só mato
Ah mas eu quero ir
Quero ver como é o negócio lá
E a gente ficava de prosa
Sentados na porta da igreja
Eu esperava o padre passar, ia atrás dele
Oh Mina vai embora, vai vai vai
Eu não, eu quero ficar.
Ficada, três vezes seguidas recorda Mina, revés do tempo em suspiros,
o vasto apartamento em Poços. Outras tantas, do revés em lamentos,
se repete na lembrança da sua vasta casa na Dr. Neto de Araújo, que
tinha um vasto quintal, dizia, que me obrigaram a sair da minha casa,
tinha quinze metros o meu quintal, porque todo mundo morreu e eu
não podia ficar lá sozinha.
Estou morrendo
Eu não aguento
Estou morrendo.
A vida é essa mesma: Animal e cuidadora arrastando-lhe os passos
trêmulos na mira do trono ou sofá – hávia dez anos que os dias eram
os mesmos –, ela no esforço de acessar vez última o fôlego, ao mes-
mo tempo que já se atirava ao colo urgente da barca para Cérbero,
ao ir, com Cão. A face vagarosamente empalidecia e à medida que
o respirar lhe era devolvido, o seu azar! a língua ia versando com
dificuldade o seu clamor de despedida:
Estou morrendo
Eu não aguento mais
Essa vida
Não é vida
Eu quero ir para a minha casa
Lá na Dr. Neto de Araújo
Jesus por favor me leva para casa.
Ladro: que nesse vosso pai a Morte não confia – e somente Ela
Poderá responder aos teus clamores: com a sua não-sabedoria.
Ladro: com Ela fortifico o embrião do verbo enlaçador de mundos.
As emoções rodopiavam enquanto no vácuo eram congeladas. No
entorno da cena Âmbar; as suas cabeças desmortais. Uma mirando
Terror, outra mirando Piedade, paralisadas ante a quase tragédia pela
qual haveria de se responsabilizar, não preciso motivo mais grave que
sua presença Animal. Cabeça, apoiada sobre o ombro da senhora com
seu não-peso, absorvendo-lhe todo o peso. Passado o choque, o sen-
tir depurou-se suspenso como que em êxtase. Salvaguardada a Morte
dela no peito-cão, espécime de fleuma instalava-se entre os batimentos
cardíacos, dando-lhe o aval para a sua emancipação. Certo modo
coroava-se a sua ambígua verdade Cãn... – Era a Morte que agora
amava; e quanto ao Amor, agora parecia-lhe que atrapalhava.
O Sexo
Há uma Claraboia:
O aviário encontrava-se
No todo desconsolado, sabe-se bem.
Quando em raro levado para o alto dos morros era
Satisfeito, tanto que sua bucólica movimentação libidinosa era
Saciada, no ato de olhar os voos por sobre a relva seca:
Encantava-se-lhe.
Nos litorais era também, no pouco, amansado:
Nos clitorais
Olhando os horizontes
Do longe
Os irmãos.
Você vem:
a alta cama escala
olha os olhos nem mais âmbar
negras as pupilas dilatadas
e baba: com as quatro patas
cerca-me e baba:
na minha face
E a tua baba eu deixo
escorrer
adentro na minha
cala
e nas narinas adentra
o cheiro das virilhas
rosas molhadas
Repente você recua
para com os elegantes
caninos rancar-me
o branco que me cobre
a fenda
Você pressiona:
o alvo peso
duma pata sua
contra a minha vulva
fervendo-a
E confronta
o fucinho ante a brasa
umidecida a três dedos
de distância – e bufa
com teu ar afogueado
Da fonte o fluido quase
me evapora
e então, transborda
uma gota da lava prata
me foge
E eu rogo aproxima-te
ao que você me surpreende
num só salto com
a vara pulsante
sobre a minha cara
Eu já riacho nascente
E você ainda nem entracte...
Foi essa a muita vez primeira em que vivi no tacto a vulvamente. Fer-
voroso prazer auto-suficiente, o que nasce não é filhote e nem é nada
gozo o que vaza do recipiente: apenas inteira e pura mente. Âmbar!
é gênio e é louco, que pôs em mim o teu Logos: entendo aos poucos.
Foi para mim qual padre no teu sacro ato de acasalar-me? Ei-me que
galgo pela ponte, plena, do teu dialeto agora fluente, e sacrifico o sexo
pelo Sexo que é apenas este mais velado estro...
...Mas seguinte aurora narrei em grave semblante, na vergonha dos ví-
cios do léxico, por vezes fátuo palavrório, as ascosas imagens vistas
no sonho:
Sobre a quadra, dura rede; do teto baixo mesmo, inda se possa ver o
céu.
Sob o teto, o mundo qual jardim zoológico. E nas celas, vos segregam
Já que aí, outro lado das grades, nós sabemos, tuas orelhas pontiagu-
das miram esquerdireita, têm captação privilegiada daquilo que eles
discursam nos celestes.
Mas o que é que este sexo tem a ver com isso, digo
Que se trata de Sexo, não deste tipo de libido...
E no Zoo
Ei-lo Cão em brasas
Marchando perante as jaulas,
Ruminando a respeito deste seu enclave,
Pensando se haveria chave – e neste instante qualquer
Faísca atiçar-lhe-ia numa revolta injuriosa:
no bosque de carvalho
e as vinhas estão espessas em seus galhos
nenhuma vinha sem flor,
lince algum sem laço florido
Melíade alguma sem jarro de vinho
esta floresta chama-se Melagrana
Qual frígido temor tão precioso que lhe valha inusável ouro? Em lou-
vor à débil mente do divino é que eles matam os Bichos. Éh!... Já mis-
turava tudo numa grande bola de pelo, o vórtex inteiro. E pior, tinha
meu silvo-latido viciado em fazer rimar os seus versinhos. Não só era
que, supondo-se contrário assim aos outros bichos, não ficava dema-
siado obstinado? Já o era – mas os venenos! Não era que precisava
deles, para ingredientes? E que devia experimentar de tudo para então
poder a tudo vencer? A todos convencer – era o que!
Foram três minutos de plena desconfusão até saber o que era pelo o
que era penas. Vinham aos poucos os raios até a Água Funda. Pinica-
va o meu rabo a desjustiça ao amém, pinicava aquela madeira sem luz.
O Cão, sabendo
Iria Em-Boa-hora.
Além estava oculto o arco-íris.36
Ido ao campear
transiente foi ao lar
para ver
Com seu comportamento cão
que não cão duraria.
Fugi, à Boahora.
Era a maldição correta, as Águas iradas subindo que não tinha escape:
junto do Celeste
O nível do Lago atinge o cimo
nesta Noite
De Touros nadando alucinados
sob Netuno.
No entorno Vênus satírica
rodopiando
Vêm as tempestades noites
trovejar Ondinas
Enquanto que a Lua
no seu gozar
Enchentes faz de mim
pura bulha.
Era esta alcova uma vera ova? Vero aquário que sufoca de tanto Ar!
Pretensiosamente examinando meus pobres peixes
Pobres de puros e a esmo
Diferentemente do Cão falastrão que
Desapercebe-se daquilo de que se alimenta:
De p peixes?
Que nem carne como, mas Peixes? ou de mais fracos silvestres.
Que Ave, esta. De rapina ou marinha, seja o que for, sendo Fragata
– os Pterodátilos da nossa era –, não ouso, de todo
Mergulhar na água salgada: tomo dos Atobás o que pescaram, dignos.
Cachorro! Talvez mais dignidade tivesse, fosse como antes – mais
Lobo.
O Lobo de Lumens, o seu Outro Ilumens!... Para o qual os olhos
fechara:
Outra vez a desbalança lhe cegara, esta que se desfaz num só dia de
glória
Da sombra a glória, Âmbar breu, negando par
à luz da sua história?
Mas Este Mar... Este Mar não escorre por minhas faces...49
E cascateei.
Fui ao Bestiário Angelical para ter com uma singela família, deuses
Bichos que me acolhiam! Saudei: o Papagaio Visnuk – intergálacti-
co, o Gato Pio tímido, o Galgo gênio Sophia, e o Anjo Cinza – a
Regina. Bichos ou bichos, ouvi: Aí se vendeu pro camarada. Eu não
o faria! E no seguinte dia estive com a outra família. Era Água, era
Água Fria quando deixei a sessão para inspirar o lúgubre poente
ante a mureta e vi três aviões decolarem, duas aves marinhas em
repouso, e um peixe remexer a superfície. Ser-me-ia como Koi – Ó,
nobre carpa japonesa! Nadaria, árdua, rio acima até o cimo da maior
montanha. E sangrenta, tendo atingido o vero pico, faria-me no de-
sornado Dragão Dourado... Mas retornada à sessão, questionaram-
-me confudidos os amores: onde estava, Cinomorfonada-são?! …
No céu, estava no céu, pelos deuses!
Penas impermeáveis, não senti quando começaram a cair
vagarosamente as gotas do Inferno.
Eu tinha sido condenado pelo arco-iris. A Boahora
era minha fatalidade, meu remorso, meu verme;
A Boahora! Seu dente, doce à morte, me advertia
ao canto do Galo, – ad matutinum, ao Christus venit,
– na cidade mais sombria.50
E foi que não deu diferente, sangrou: na mais torpe pensada Boahora
O rotto desdém do Cão ébrio pelo Amado, foi
A traição da gêmea fauna em cinza –
Uma muda emboscada ao espírito
E veio
Canis lupus verdadeiro
Recobrando a punhalada.
Ó estações, ó castelos
que alma é sem defeitos?53
neste mês são os pássaros
com olfato amargo e odor de queimadura
o cervo deixa caírem seus chifres
o gafanhoto está ruidoso
Tépido vento está vindo, o grilo clama no muro
Suja? Não mais do que o nosso Ser – que nem Bicho quer, Paulo ri
do Urubu que de todo o podre come, menos do podre de humanos.
E vi a forma absurda
Nos montes por detrás das cidades transientes
Geométrica em 5 pontas de luzes, 3 vermelhas em cima e 2 brancas
embaixo
E uma estatueta de Cristo na cidadela, que seguiu quando a cidadela
sumiu.
No breu contínuo da travessia, humilde lua minguante iluminava
O largo Paraíba do Sul.
E o manto...
O coração... os membros...
Ah!...62
Como alguém que nada contra a corrente numa noite escura,
faltam-me sinais para calcular exatamente o grau de deriva.63
Essa...
Não podia ser a Boahora. Não pareciam poder
associar-se a ela os enegrecidos olhos que gravitavam
enquanto movediço langor me anulava os pensares.
E na cruz erguia o animal inebriado, quebrador das juras,
corrompente dos princípios em juvenil ignorância
que esbravejava contra as promessas libertárias do desejo
e que na Hora do sempre teste lançou-se
à armadilha precariamente mascarada.
Mas Âmbar,
Eu – nós
Contra todos Eles, os poderosos?
Mas Tu, um Ele, te põe de poderoso,
Me possuiu em prometer-me que juntos triunfaremos este Fogo.
Assim tu te libertas
Das humanas querelas
Dos impulsos comuns!
Tu voas de acordo.70
E contemplava horrorizada o negro borbulhar no recipiente.
Vocês humanos fizeram do amor uma enorme impostura: Entretanto,
que outro nome dar a essa flama que ressuscita como Fênix de suas
próprias cinzas?
Nada invés voo? Não grita ainda... – Mas fala como Cachorro:
Ouçam!...
Tenho todos os talentos! – Não há ninguém aqui e há alguém:
não gostaria de espalhar meu tesouro. Farei ouro, remédios.74
Me queixo. Me queixo.76
Ora, mas esse dilúvio veio foi Em-Boa-Hora...
Não deixa de me fazer surpreendida, o súbito
Cântico irrompendo das geleiras, qual cuspido
Da boca do primeiro Peixe o fogo da Boahora.
O esbelto Arco-iris
Não me obrigará a ser belo.
Os Insetos e as Flores
Jamais crucificar-me-ão.
Por tal crime, por tal erro por séculos repetido, mereci minha fraqueza
atual. Aos que creem que os mortos têm maus sonhos85, trato de contar
o meu sono em Âmbar:
É a maldita benção:
Mesmo vista a Morte
O Bicho nunca teme a Vida
Precioso ver não vendo: para além da elástica sina.
...mil vezes maldito!
Minha fraqueza, a crueldade do mundo!
Meu deus, piedade, esconde-me, – Estou oculto e não estou.86
Refocilar-me nesta lama lírica
após a ressaca das tempestades
no deserto entre nós imiscuido...
Entanto não serei mais capaz de pedir o reconforto de uma flagelação. Não
me creio indo para um casamento com Jesus Cristo por sogro. E quanto à
felicidade estabelecida, doméstica ou não... não, não posso. Sou dissipado
demais, fraco demais.91
Comprazendo-se na dor
dos heróicos furores
o Bicho desonra seus Amores.
Mas
Ó rios, ó faunas
nas fendas mais escuras ainda há algas...
Ó corredores, ó escadarias
nos apartamentos às vezes pradarias...
Ó ventiladores, ó telhas
nas varandas eles acendem as centelhas...
E os músculos do guepardo esticando
como o desabrochar dos crisântemos
Ó Canis lupus!
Pairar, parole!
Disse:
Tártaro
Xô, demônio!
Quem era esse anjo? que eu abraçava a asa.
Disse-me ante-sonho:
Eis
Que atiramo-nos à cama
para acasalar em ampla ternura, os grandes cães
no grande forno.
Pois este cão, este cão não quer aceitar nenhuma forma de submissão...
Para cruzar a grande água, sete penas de Fragata levadas nos bolsos
Mas estava o fogo brilhando por sobre a água
Por isso não havia relacionamento
Wei chi, a claridade deve ser o alicerce do esforço
Fogo sob água, fazendo-a ferver
E seria a Boahora do degelo, o Cocite me liberaria, pata por pata...
Andávamos os nossos passos encantados ao longo dos largos canais imun-
dos. Quando passamos pelos ignaros militares da marinha com seus fuzis
apontados, você desbocou em precisos versos, na língua inglesa, pelo mo-
tivo que seja, sobre a inutilidade das balas perdidas, em rosa, róseo o amor
desperdiçado, Ó poderes! E seguiu em falares. Marchávamos em gêmeas
cadências, observando coloridas na água as antigas edificações geminadas,
transpassando pessoas como a fantasmas. Seguiu os caminhos de seu dialeto
enternecido como que enfeitiçado pelos ares húmidos das ruas; ia louvan-
do os chuviscos que respingavam em nossos rostos enquanto cruzávamos
as pontes, de canal em canal. Como enchiam-me de róseos fulgores as suas
palavras de prata! Em plumas douradas! E eu lhe dizia Você dá-
-me até a vontade de chorar! ao que seus olhos, os cristais dos rios
do mundo, me respondiam com recíproca doçura: É porque eu te
amo! Nossas danações, encantadas. E desafiada pela água, te agar-
rei as espáduas; – eu atirei-nos ao canal. Senti o frio mortal nas
nossas mesmas barrigas enquanto voávamos, e nós nos seguráva-
mos os quatro-braços enquanto afundávamos velóz ao fundo. As
coloridas edificações iam junto caindo, pútridas, em musgos verdes
e fezes. Disse: Eu nos levaria à infinda profundidade! E a isto você
ria, demônio bem humorado: quer é trepar comigo lá no fim do
mundo! E seguíamos afundando, levitando águabaixo.
Diz linces
Que eu cultivo o Cão, o sabichão terrible, o semi-deus d’águas & ares
Porque meu olho só Vê não vendo
Eu que só Sou não me se sendo
E o que havia dito Paulo no lago eu me recordo
E você vem:
Te vejo já no outro lago nossos lagos, o oceano!
Lá você estava:
Te vi, do outro lado do templo.
No soar dos cânticos sem-palavra, a grande música d’água regava uma
nova espécie de Boahora. Minha mente alagada escalava os murais
banhados no ouro ideal. Nós, no debaixo, nos bancos de madeira –
olhos verdes procurando o leito um do... Na arca, que criatura per-
petuaria-se só? O arcangélico andrógino? Este não conhece a morte,
este não toca, como o Bicho, com os dedos, o Amar. Enquanto aqueles
anjos, flavos, flanavam vaidosos suas asas, as nossas asas ave-canídeas
se pensavam.
Subindo duma ponta a outra dos oceanos
Vão demandando altura os fumos do louvor.122
Tu, ó fascinação do serafim expulso?122
Canis lupus! que me fitava do outro lado deste estrago. Neguei-
-o, Amor, neguei-o: apavorado de ver-me destes poderes um es-
cravo. Entretanto o verdadeiro cárcere me foi esta mônada em
solipso, tu, nada-tu, Âmbar! que acabou sendo seduzido pelo
fogo de modo tão totalitário, das patas tuas não permitias tê-lo
tirado. O fogo roubado que, abafado pelo Vento, verdadeiro
poder incapturável, logo te afogou no lago. Ah! e eu pensava
parear contigo: vejo que não passa de mim mesma – sem o di-
víno amigo.
Durante o sacrifício as minhas mãos levantam
O cálice dourado a transbordar repleto121
Dos ardentes caminhos tenho com clareza que não saberia descansar.
Bem como de seus lábios carnudos, ó Canis lupus.
E hoje na minha vida na minha toca de gatos
sombra laranja entre verde e vermelho nas arestas
Feras como sombras no meu espelho,
uma cauda peluda a espanar sobre o nada.125
Bacurau anunciando o ponto de mutação espreita nas palmeiras
A Cigarra proclama o bafo estival de feras.
assim o fazem
os Condores, os Grous,
a maior parte
das Aves, bem como o fazem
os Cavalos-marinhos
que na morte do Amado esperam
imóveis, a sua morte chegar,
e a Salamandra-de-dorso-vermelho.
É a Boahora
O seu retorno
Ou mais precisamente
A repetida revelação da sua continuidade, com a qual se pode
contar sempre, especialmente
quando pelo seu clarão não se espera – e mantém-se a marcha.
Mas a qual nos abandona furtivamente, animal de intelecto
selvagem que é, na presença do eu impondo seu demiurgo pessoal
e tomando por garantida a sua cumplicidade; assim deixando-nos
sós, como bem quisemos!
Ah! a Boahora...
o seu caráter fugídio,
que as mãos de rebeldes anjos por vezes apanham – apenas para
tê-las, no instante em que mais alto a ostentarem, perfuradas
pelo líquido ácido corrosivo às patas de qualquer criatura
ambiciosa em demasia.
Não negarei: cão, cheguei a deduzi-la dádiva da minha graduação
em autosuficiência; das minhas régias maneiras para com o meu
próprio castelo. Porém, fazer suposições sobre a Boahora é o
mesmo que cortejar o desastre.
Assumirei: cão, enganei-me sobre a natureza das asas, das Aves,
da Boahora ela mesma.
É Peixe Grande, o
Grande Amor
Disse vou
aprender a nadar e entre guelras vou
uivar como a mais completa Ave
para que meu Canto alcance acariciar
cada dente ferido limpar o seu pêlo
da peste com que te impregnei cuidar
para que lambamo-a até que brilhe!
Disse é
deste modo que se fazem do esterco
de cobras os luminescentes remédios.
Ó lince, sê muitos
de pêlo malhado e orelhas agudas.
Era a Boahora
Muitos erros,
uma pequena retidão,
para perdoar o inferno dele
e meu paradiso.138
Te saúdo, Canis lupus, a sua Boahora tendo-o feito singrar para a toca
onde tem resguardo, lá onde pode descansar. Mas contigo nos sendo,
vou ao seu encontro nos prados velado; – desejo retornar a seu corpo
como ao bosque paradisíaco de que me tenha perdido Sigo a nau de
linces, alamedas de linces, em linces possuo a guia para o caminho
de volta. Giro as esguias orelhas, para ouvir sinal da sua frequência.
Ao seu peito de sangue brilhoso faço a reverência do Animal ao seu
Amado. Envio com as pombas, por sobre as ondas frescas e com as
correntes fluviais, para você os bálsamos verdes, as gemas rosas.
Em-Boa-hora, permaneci
Ante o Cálice as Penas
Na minha mesa Labradorita refletindo Auroras Boreais
Aqui onde fusiona a centelha verde na vermelha
Em distância próxima o ciciar dos longos dedos
Das palmeiras! não muito selvagens, mas sempre
Il Lupo mi ha detto in Firenze: Il sole mi ha detto
che li animali e piante non sono mai cattivi.
Não se mova
Deixe falar o Vento
esse é o Paraíso.146
CRA-CRA-CRA-CRA-CRRRRRRR!
CRA-CRA-CRA-CRA-CRRRRR!
FUI, FUI, FIU-FIIIIIU! IA! IA! IA! IA! IA! CHIIIH! CHIIIH!
referências bibliográficas
c dos autores
#105