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CENA VI

(Sala de Werneck. Está enchendo um copo. Presentes também o dr.


Peixoto e Lígia. Edgard aparece por fim. Senta-se.)

WERNECK
(para Edgard) — Você já sabe de tudo?

EDGARD
(que ia começar) — De fato.

PEIXOTO
(interrompendo) — Contei o caso, por alto.

WERNECK
— Bem. Portanto, você sabe que a moça. A moça que sofreu o
acidente. Foi um acidente. Assim como um atropelamento, uma
trombada. Pois a moça é minha filha. Quer dizer, você
trabalha pra mim, e ela é a filha de quem manda em você. Isso é
importante. A filha de quem manda em você. Entendido?

EDGARD
— Sim, senhor.

WERNECK
(com uma satisfação brutal) — Gostei da inflexão. Um “sim, senhor”
bem, como direi.

D. LÍGIA
(vivamente) — Um momento. Com licença. (para Edgard, com sofrida
ternura) Você é um rapaz novo, de forma que. Meu filho! Houve o que
houve com minha filha, mas ela é a menina mais pura. Tinha acabado
de chegar do colégio interno. Posso dizer que, até aquela ocasião,
nunca foi beijada por nenhum homem. Posso jurar! Juro por tudo!

WERNECK
— Lígia, estamos perdendo tempo!
D. LÍGIA
(na sua histeria de puritana) — Não havia menina mais virgem!

WERNECK
— Exato. Exato. Uma menina que, ainda hoje. Ainda hoje. Se você
perguntar, digamos: — onde é a praça Mauá? Ou a rua do Ouvidor.
Não sabe. Mas vamos ao. Como é, Peixoto? Ah! Você trabalha há 12
anos, ou mais, na companhia.

EDGARD
— Onze anos.

PEIXOTO
— Entrou antes de mim.

WERNECK
— Onze anos. E começou de baixo. Veio do nada. Qual foi mesmo o
seu primeiro posto lá?

EDGARD
— Auxiliar de escritório.

WERNECK
(num berro triunfal) — Mentira!

D. LÍGIA
(atônita e repreensiva) — Que é isso?

WERNECK
(exultante) — Mentira, sim! É mentira! Você começou como contínuo.
Contínuo! (para Peixoto)Não foi como contínuo?

PEIXOTO
— Contínuo.

EDGARD
(atônito) — Realmente, eu!
WERNECK
(brutalmente) — Contínuo! Contínuo! Portanto, não se esqueça: —
você é um ex contínuo! Põe isso na cabeça!

D. LÍGIA
(num apelo) — Você está humilhando o rapaz. (trêmula,
para Edgard) Ela gosta de parecer má, mas é só aparência.

PEIXOTO
(para d. Lígia) — Ah, o Edgard sabe! Sabe! (Werneck anda de um

lado para outro, empunhando o copo de bebida.)

WERNECK
(numa cínica ressalva) — Com licença. Eu insisto porque. Não é uma
humilhação gratuita. Absolutamente. Interessa a mim que você seja
um ex contínuo pelo seguinte: — porque o ex contínuo dará valor ao
dinheiro, à posição, à classe de minha filha. Por exemplo: — eu vou
lhe dar um título de sócio do Country Club. Quanto custa, Peixoto,
quanto custa um título de sócio do Country?

PEIXOTO
— Dois mil contos.

WERNECK
— Pois é. Dois mil contos. Para um excontínuo é alguma coisa. Dois
mil e quinhentos contos! Eu quero. Quero que você se sinta inferior à
minha filha.

D. LÍGIA
(atarantada) — Meu marido é muito franco. Assim você até
ofende. (Edgard ergue-se.)

EDGARD
— Posso falar?
WERNECK
— Um momento. Senta, rapaz. (Edgard obedece.) Ainda não
acabei. Você vai se casar com a minha filha. Eu teria preferido
que a menina fosse viajar. Desse uma volta pelos Estados
Unidos. Mas minha mulher fez drama. Quer o casamento. Vá lá.
Sabe como é: — separação de bens!

EDGARD
— Aliás, se eu me casar. Se, realmente, eu.

WERNECK
— Não ouvi.

EDGARD
— Eu acho que a separação de bens é o justo, o normal. E eu
também prefiro.

WERNECK
(com sarcasmo hediondo) — Prefere nada!
Conversa!
(Edgard põe-se de pé.)

EDGARD
— Mas o senhor!

WERNECK
— Senta, rapaz. Essa obsessão de ficar de pé. Separação de bens,
mas você vai ganhar alto. A mesma coisa. Não faz diferença.

D. LÍGIA
(revoltada) — Você fala como se estivesse comprando um genro! E eu
não admito. Não admito que você trate o casamento de sua filha. A
filha menor, a caçula. Como se fosse toma lá e dá cá. Casamento é
outra coisa. É um sacramento.

WERNECK
(com um humor não isento de simpatia) — Lígia, não atrapalha! É
gozado. Eterna mania. Lígia, que você seja grã-fina está certo.
D. LÍGIA
— Eu não sou grã-fina.

WERNECK
— A mulher pode ser grã-fina. O homem é que não pode ser grã-fino.
Lígia, o homem tem que ser macho! Pelo amor de Deus!

D. LÍGIA
(quase chorando) — Se você continuar assim, eu me retiro.

WERNECK
(divertindo-se grosseiramente) — Ora, meu Deus!

D. LÍGIA
(para os outros) — Ela é boa!

WERNECK
— Acha que eu faço barulho quando como!

D. LÍGIA
(desesperada) — Vou lá pra dentro. Com licença. (Sai d. Lígia. Para
um momento na porta. Volta-se como se fosse xingar o marido.)

D. LÍGIA
(soluçando) — Você é boa!

(Werneck faz uma reflexão em voz alta, com certa melancolia.)

WERNECK
— Caso sério, a minha vida!

(Werneck vira-se para Edgard, com súbita cólera.)

WERNECK
(para Edgard) — E você que quase não fala. Tudo sai de você aos
bocadinhos como titica de cabra. Fala, rapaz!
(Edgard põe-se de pé.)

EDGARD
— Vou falar, sim!

WERNECK
— Mas senta!

EDGARD
— Escuta aqui. E você também, Peixoto. (para Werneck) Você. Você
não é doutor, não. E você. Olha! Eu não vou me casar com sua filha.
Não vou, não! E saio do emprego. Você enfie os 11 anos, a
estabilidade! E fique sabendo. Sou um ex-contínuo. E você um filho da
puta!
(num berro maior) Seu filho da puta!

(Quarto do dr. Werneck. Edgard chega.)


WERNECK
— Entra, Edgard, entra!

EDGARD
— Boa tarde, dr. Werneck.

WERNECK
(rindo com seu humor brutal) — Como vai a frase?

EDGARD
— Não ouvi.

WERNECK
— Ó rapaz! A frase que você descobriu. Do Otto! Não é Otto?

EDGARD
— Otto Lara.

WERNECK
(exultante) — Acho ótima. Impressionante. E olha aqui. Sabe que o
Peixoto anda espalhando a frase pra todo o mundo? Está fazendo o
maior sucesso. Agora os grã-finos se cumprimentam assim, de uma
calçada para outra, aos berros: “Fulano! O mineiro só é solidário no
câncer!”

EDGARD
(na sua cólera contida) — Dr. Werneck, vamos falar sério?

WERNECK
— Estou falando seríssimo!

EDGARD
— Vim aqui como homem.

WERNECK
— Antes de mais nada, Edgard. Aquilo que houve entre nós dois foi,
como o brasileiro diz, um mal-entendido. O brasileiro é
cínico pra burro. Vamos pôr uma pedra.

EDGARD
— Voltei para o emprego, há dez dias. E não estou satisfeito.

WERNECK
— Bolas! Vem cá, rapaz. Você se queixa de quê?

EDGARD
— Lá na companhia, não me dão nada pra fazer. Eu não faço nada!
Não tenho função, dr. Werneck!

WERNECK
— Foi ordem minha!

EDGARD
— Ordem sua?

WERNECK
— Minha!

EDGARD
— Por quê?
WERNECK
— Ó Senhor! Edgard, presta atenção!

EDGARD
(violento) — Assim eu não quero! Não aceito!

WERNECK
(furioso) — Eu te aumentei o ordenado. Quatro vezes! Você, fique
sabendo, não é um funcionário qualquer. Você é meu genro, meu
futuro genro. Não precisa trabalhar.

EDGARD
(incisivo) — Dr. Werneck!

WERNECK
— Fala!

EDGARD
— Eu não quero ser “o genro”. Quero trabalhar. Eu sei que o pessoal
lá.

WERNECK
— Não dá bola!

EDGARD
— O pessoal fala de mim. Nas minhas costas, diz o diabo. E eu me
sinto mal. Passo o dia todinho sem fazer nada.

WERNECK
— Faz o seguinte: não vai lá. Fica em casa. Vai só receber, pronto.

EDGARD
— Eu não sou o Peixoto!

WERNECK
— Engano. No Brasil, todo mundo é Peixoto.

EDGARD
— Eu tenho caráter!

WERNECK
Você tem caráter? Tem?

EDGARD
— Tenho!

WERNECK
— Pois então escuta. Quero esse casamento. De qualquer maneira.
Vou fazer contigo uma experiência que eu fiz com o Peixoto. Você diz
que não é Peixoto. Vou testar teu caráter. É um teste. (Werneck corre
para a mesa. Apanha um livro de cheque. Escreve. Depois, passa o
cheque para Edgard.)

WERNECK
— Toma!

EDGARD
— O que é isso?

WERNECK
— Cheque. Ao portador. Lê a quantia. Lê.

EDGARD
(atônito) — Cinco milhões de cruzeiros!

WERNECK
— Pra ti, rapaz! De mão beijada. Cinco milhões de cruzeiros.

EDGARD
— Mas por quê? A troco de quê?

WERNECK
(excitadíssimo) — É o teste! (muda de tom, caricioso, melífluo) O
mineiro só é solidário no câncer, Edgard! Cinco milhões! É só passar
no banco!
EDGARD
— Cinco milhões!

WERNECK
(arquejando de fúria) — É teu o dinheiro. Mas se você tem caráter. E
eu acredito. Se você tem caráter, rasga o cheque. Tão simples! Rasga
e depois atira na minha cara o papel picado. Ou você é Peixoto, não
passa de um Peixoto!

EDGARD
(baixo e atônito) — O mineiro só é solidário no câncer. (Edgard vira-
se. Werneck sai pelo lado oposto. Edgard caminha e para diante de d.
Lígia.)

D. LÍGIA
(sôfrega) — Meu filho, eu estava esperando você.

EDGARD
— Ah, como vai a senhora?

D. LÍGIA
— Falou com meu marido?

EDGARD
— Acabei de conversar.

D. LÍGIA
— Eu sei que você. Não é? Você fará minha filha feliz. Você é bom. E
graças. Tive muita sorte com as minhas filhas. Tanto a mais velha,
como a menor. Você é bom. Você gosta muito de minha filha?

EDGARD
— Naturalmente.

WERNECK
— Você até que teve muita sorte. Minha filha continua pura. Tão pura
que nem alma tem. A alma vem com o tempo, vem depois.

-
(Palácio do dr. Werneck. Este joga cartas com d. Lígia. Werneck fala
com irritação e pena.)

WERNECK
— Fala! Lígia, não perde tempo.

D. LÍGIA
— Você se faz de má! Quero um casamento simples.

WERNECK
(tirando uma carta) — Pinoia! Oito de paus!

D. LÍGIA
(continuando) — Cerimônia íntima. Civil e religioso; em casa.

WERNECK
(atento às cartas) (com humor feroz) —Quer dizer que você me acha
boa?

D. LÍGIA
(com certa impaciência) — Está ouvindo?

WERNECK
— Sei. Casamento simples.

D. LÍGIA
— E sem vestido de noiva.

WERNECK
(olhando a carta) — Valete. (mudando de tom) Sem vestido de noiva
por quê?

D. LÍGIA
— Ora!

WERNECK
— Mas claro!

D. LÍGIA
— Depois do que houve não seria decente!
WERNECK
— Mas ninguém sabe!

D. LÍGIA
— Deus sabe!

WERNECK
— Deus não se mete. Aquele médico, aquele. Resolvia a situação.
Mas você pensa que toda noiva é cabaço.

D. LÍGIA
— Essas expressões!

WERNECK
— Você sempre com essa mania de ser honesta. Ninguém é
honesto. (com humor feroz) — Você é a última honestidade que eu
conheci! Hoje, já se reconstitui a virgindade. Você não quer, paciência.
Mas esse Edgard.

D. LÍGIA
(interrompendo) — Bom menino!

WERNECK
(com sarcasmo) — Bom menino! (muda de tom)Outro dia, eu soube
que esse sujeito.

D. LÍGIA
(escandalizada) — Olha!

WERNECK
— Sujeito sim. Esse sujeito tomou um porre. Deu show. E me
contaram que ele berrava. Ouve, Lígia. Berrava: — “O mineiro só é
solidário no câncer!” Uma besta! Um pulha!

D. LÍGIA
— É o seu genro!

WERNECK
(furioso) — Está bem. Não quer vestido de noiva? Que mais?
D. LÍGIA
— Pelo amor de Deus, não repita mais. Essa frase! A frase do mineiro!

WERNECK
— Vá lá! Vá lá!

D. LÍGIA
—Eu tenho a impressão que vou morrer breve. Não duro muito.

WERNECK
(com jocunda ferocidade) — Vai chorar outra vez?

D. LÍGIA
(arrebatada) — Vou! Vou chorar! Graças a Deus ainda choro! Ainda
sei chorar! E o seu mal é que você não chora! (com mais força) —
Você devia chorar!

WERNECK
(num riso cruel) — Boa piada!

D. LÍGIA
— Antes de morrer, quero ver minha filha casada. Quero saber que
minha filha é uma menina igual às outras. Igual a todo mundo. Normal.
Graças a Deus, Tereza é feliz no casamento. Quero que Maria Cecília
seja feliz como Tereza!

(Palacete da Gávea. Werneck, bêbado, fala para os grã-finos.)

WERNECK
— Bem. É o seguinte. Vamos fazer uma brincadeira. (vozes. Risos)

2°- GRÃ-FINO
— Pergunta quantas vezes ela traiu o marido.

WERNECK
(com voz forte) — Ana Isabel! Qual foi o seu michê mais baixo?
ANA ISABEL
— Não me lembro.

WERNECK
(possesso) — Responda, Ana Isabel! Não admito pudores. Você
pertence a uma família formidável. Não interessa. Tem que dizer tudo.
Qual foi o seu michê mais baixo? O mais baixo?

ANA ISABEL
(violenta e esganiçada) — Setenta e cinco cruzeiros!

WERNECK
— Por que os quebrados?

ANA ISABEL
— O sujeito deu tudo o que tinha, 75 cruzeiros!

WERNECK
— Onde foi?

ANA ISABEL
(frenética) — Agora eu vou dizer tudo! Tudo! (ofegante) Foi em
Brasília. Na inauguração. O rapaz trabalhava numa obra. Descalço.
Imundo.

WERNECK
— Silêncio! Vamos ouvir a analisada! (para Ana Isabel) Escuta! (para
os outros) Calem a boca! (para Ana Isabel) E agora, responda, Ana
Isabel, rápido, sem pensar. (aos berros) E qual foi o seu maior michê?

ANA ISABEL
(feroz) — Duzentos e cinquenta contos.

WERNECK
(num humor brutal) — Duzentos e cinquenta contos ou cruzeiros?

ANA ISABEL
(esganiçada) — Contos! Contos! Duzentos e cinquenta contos!
WERNECK
— Pra que tanto, Ana Isabel?

ANA ISABEL
(com ardente seriedade) — Eu tinha uma conta de 250 contos. Na
costureira. Então, fui ao sujeito e pedi.

2°- GRÃ-FINO
— Quem é o cretino! O nome do cretino!

ANA ISABEL
(furiosa) — Olha aqui. Vamos parar com essa palhaçada. Ou, então,
eu paro e não falo mais!

WERNECK
— Não chateia, Alfredinho! Conta! Pode contar, Ana Isabel!

ANA ISABEL
(sofrida) — O sujeito disse que dava. E que eu
fosse buscar o cheque no apartamento. Fui, voltei com o cheque.
Duzentos e cinquenta contos por uma hora. Nem por uma noite. Uma
hora! Eu descobri o michê na inauguração de Brasília!

WERNECK
É o seguinte. Isso aqui é psicanálise. De galinheiro, mas é. Para a
mulher, a psicanálise é como se fosse um toque ginecológico — sem
luva! Outra mulher!

VELHA
(exaltadíssima) — Eu também quero! Eu preciso falar!

WERNECK
— Deita!

VELHA
(desatinada) — Em pé!

WERNECK
— Silêncio! (para a velha) — Em pé, vá lá. Começa.
VELHA
(como uma louca) — Meu marido estava morrendo. Eu era mocinha. E
adorava meu marido. Foi o meu único amor. Estava morrendo. De
câncer. Câncer no sangue. No quarto, eu caí com ataque. Meu primo,
que aprendia judô, me carregou no colo. Meu marido já estava com o
cheiro da morte. Eu chorava, gritava. Meu primo me levou para o
quarto do lado. E, de repente, eu tive vontade de trair. Trair o homem
que eu amava. Trair antes que ele morresse. Fui eu que beijei meu
primo na boca! Eu! Enquanto meu marido morria, eu mesma puxava
com as duas mãos o decote! Abria assim, o decote!
(aos soluços) — Eu traí e amava! A saia era justa.

WERNECK
Quero dizer o seguinte. Estou dando adeus. Adeus à minha classe, ao
meu dinheiro. Estou me despedindo. Portanto, hoje vale tudo! Tudo!
(Edgard e Peixoto no alto da escada.)

EDGARD
— Vamos embora!

PEIXOTO
— Já me viu. Sabe que nós estamos aqui. Tem prazer. Prazer que os
dois genros vejam. Está representando para nós.

EDGARD
— Adeus.

PEIXOTO
— Não acabou. Tem mais. Ouve essa. Está ouvindo?

(Embaixo, Werneck fala ainda.)

WERNECK
— Vocês vão ver um show. É um crime sexual. Eu mandei apanhar
três meninas. Uns anjos, mocinhas, de família. Garotas que não
sabem nada. Purinhas. Vêm com os namorados. Estão estourando aí.
E os namorados vão fazer tudo, aqui, tudo. Vamos ver um crime
sexual, crime sexual. Autêntico. O negócio é assim. Vamos preparar
os namorados. Vamos entupir os namorados de maconha. E aqui,
dentro desta sala, eles vão caçar as pequenas. Isso é crime?
Pergunto e já lhes respondo: Vocês não acreditam no poder
econômico? Vou indenizar, compreendeu, pai, mãe, as pequenas.
Tapo a boca da família, rapaz. O negócio dá em nada.
(Em cima, Edgard e Peixoto.)

EDGARD
— E nós vamos cruzar os braços?

PEIXOTO
— É com essa família que você vai se casar!

EDGARD
(desesperado) — Não vamos fazer nada?

PEIXOTO
— Não. Nada.
EDGARD
— Peixoto, escuta. Eu não estou brincando, Peixoto. Se fizerem isso.

PEIXOTO
— Espera e verás.

EDGARD
— Mas escuta. Se fizerem isso, eu desço. Juro!
Desço e mato esse velho.

PEIXOTO
— E teu casamento?

EDGARD
— Mato! Mato! (muda de tom)Meu casamento?

PEIXOTO
— Sim, com a Maria Cecília.

EDGARD
— Mas é um crime! Um crime sexual!
PEIXOTO
(quase com ternura) — Nós vamos assistir. Apenas assistir. Apenas
olhar.

NO TAXI.

RITINHA
— O senhor, por obséquio. Pelo amor de Deus. Quero ir mais
depressa. Por favor, o senhor corre. São minhas irmãs. O senhor
compreende. E talvez eu não chegue a tempo.(Edgard correndo pela
noite e gritando.)

EDGARD
— Eu não podia evitar. E fugi. Fugi pra não ver. Enquanto eu não
rasgar o cheque, eu sei que vou aceitar tudo, até o fim. Tudo. Mas eu
sei. Sei que não terei coragem. Não vou rasgar, não vou queimar,
nunca! (De novo, com os grã-finos. Gargalhadas. Entra Ritinha,
correndo.)

AURORA
(rouca de desespero) — Ritinha!

RITINHA
— Larga a menina, Alírio!

WERNECK
— Quem é você?

RITINHA
(ofegante) — Eu sou irmã. Irmã dessas meninas. São direitas. Juro.
Meninas de família.

WERNECK
— Mas eu pago!

RITINHA
— Pelo amor de Deus. Minhas irmãs são menores.

WERNECK
(feroz) — Eu pago!
RITINHA
(desesperada) — Eu fico no lugar de minhas irmãs. Fico. Se minhas
irmãs.

WERNECK
(repetindo, com mais força) — Eu pago!

RITINHA
(gritando também) — Se minhas irmãs saírem virgens daqui vocês
podem fazer tudo comigo. O que quiserem. Tudo!

WERNECK
(exultante) — Ninguém vai sair daqui. Nem você. Você também vai
entrar no brinquedo.

RITINHA
(segura pelo Werneck) — Indecente!

WERNECK
(dominando-a, com a sua voz e a sua fúria) — Sua vaca! Eu estou me
despedindo. Estou dando adeus. Adeus às minhas empresas, aos
meus cavalos! Nós vamos morrer. Tudo vai morrer. Mas antes, me
xinga! Me dá na cara!

(Cena na casa da Gávea. Sozinhos, Ritinha e Werneck. Ritinha,


sentada no chão, em trapos.)

RITINHA
(soluçando no seu ódio) — Você vai morrer, vou te matar!

WERNECK
(triste e paciente) — Escuta.

RITINHA
(ofegante) — Vou te dar um tiro. Essas meninas. Era tudo o que eu
tinha na vida.
WERNECK
— Quer me ouvir?

RITINHA
(sem ouvi-lo e como se falasse para si mesma) — E eram virgens. Eu
caí na putaria para que elas, ao menos, elas, se casassem,
direitinho. (pondo-se de gatinhas, como uma cadela enfurecida) E
vocês! Vocês defloraram! (soluçando) — Eu não tenho mais nada na
vida!

WERNECK
— Eu dou dinheiro. Dinheiro grande!

RITINHA
(enlouquecida de ódio e esganiçadíssima) — Eu quero minhas irmãs
virgens!

WERNECK
(berrando) — Sua besta! Eu te dou as tuas irmãs virgens, pronto. Dou!

RITINHA
(atônita) — Virgens?

WERNECK
(furioso) — Cala a boca! Mania! (muda de tom) Eu tenho um médico.
Médico fabuloso. E faz isso com um pé nas costas.

RITINHA
— Isso o quê?

WERNECK
— Ganha um dinheirão, o sujeito, restaurando virgindade. Ele faz um
retoque, no local. Uma costurazinha, dá uns pontos. Coisa à toa. E a
pequena sai mais virgem do que entrou!

RITINHA
(num desespero maior) — Vocês arrebentaram minhas irmãs!

WERNECK
— Nada disso. Sangrou porque é natural. É isso mesmo. Mas olha. A
hemorragia já parou. Mandei levar tuas irmãs em casa, de automóvel.
O médico já foi pra lá. Está lá. Ritinha, quero ser bom com você, com
suas irmãs. Elas vão se casar. E o marido não vai perceber tostão de
coisa nenhuma. Eu me responsabilizo. Na noite do casamento. O
negócio vai sangrar até mais. Você vai ver.

CENA XI

(Casa de Werneck. D. Lígia, vestida para dormir, à espera do marido.


Werneck chega da farra hedionda. Saturado de abjeção.)

WERNECK
— Acordada?

D. LÍGIA
(doce) — Te esperando, meu amor.

WERNECK
(com um humor triste) — Quer dizer que eu sou amor de alguém?

D. LÍGIA
— Meu.

WERNECK
— Ainda?

D. LÍGIA
— Sempre.

WERNECK
— Lígia, eu queria que você me dissesse. Dissesse, agora, neste
momento, que eu sou boa.

D. LÍGIA
(na sua emoção contida) — Você é boa,
(Werneck escorrega ao longo do corpo da mulher. Agarrado às suas
pernas, repete.)

WERNECK
— Eu sou boa, Lígia, eu sou boa!

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