Saussure - Leitor de Platão
Saussure - Leitor de Platão
Saussure - Leitor de Platão
1 Mestre em Linguística pela Pontifícia RESUMO: Neste trabalho, propomo-nos a fazer um estudo que coloca em relação a teoria da alteridade, elaborada por Platão no diálogo Sofista, e
Universidade Católica do Rio Grande do a teoria do valor linguístico apresentada no Curso de linguística geral (CLG) de Ferdinand de Saussure. Partimos da hipótese levantada por Oswald
Sul.
E-mail: thomas.rocha@acad.pucrs.br Ducrot de que, ao desenvolver a noção de valor linguístico, Saussure aplica ao estudo da linguagem o que Platão disse sobre as Ideias. Profundo
conhecedor da filosofia clássica, Ducrot encontrou, na teoria do valor linguístico, a fundamentação que o lançou na pesquisa linguística e que hoje
conhecemos pelo nome de Semântica Argumentativa. Segundo Ducrot, na teoria da alteridade concebida por Platão encontramos a origem filosófica
da teoria saussuriana do valor. Nossa intenção é, partindo de um estudo minucioso do diálogo Sofista e do CLG, circunscrever a concepção de
diferentes conceitos que, por sua vez, pertencem a diferentes campos do conhecimento: a filosofia e a linguística. Dessa forma, é de uma perspectiva
epistemológica que nos colocamos. Foi através desses textos que Ducrot pode relacionar a ideia de alteridade com a noção de valor, ao encontrar,
em ambas, a ideia de “oposição” como constitutiva das entidades a serem analisadas. De modo que, ao investigar e aprofundar a noção de valor,
tentamos explicitar as influências filosóficas que fundamentaram o conceito desenvolvido pelo linguista genebrino.
Palavras-chave: Alteridade; Valor linguístico; Platão; Saussure; Ducrot.
ABSTRACT: This article aims to address the nexus between the theory of alterity developed by Plato in his Sophist dialogue and the theory of linguistic
value introduced by Ferdinand de Saussure in his Course in General Linguistics (CGL). It departs from the hypothesis raised by Oswald Ducrot that
Saussure, by developing the notion of linguistic value, applies in the study of language what Plato stated about ideas. Ducrot–an expert in classical
philosophy–draws in the linguistic value theory to develop the branch in linguistic studies known as argumentative semantics. According to Ducrot,
it is possible to find the philosophical origin of Saussure's theory of value in Plato's theory of alterity. The article intends to draw on a detailed study
on the dialogue between Sophist and CGL to circumscribe concepts belonging to different fields of study: philosophy and linguistics. Thus, it aims an
epistemological perspective. By the means of the aforementioned works, Ducrot set a nexus between the idea of alterity and the notion of value by
finding in both the idea of “opposition” as constitutive of the issues under analysis. Through the investigation and the deepening of the understanding
on the notion of value, it tries to reveal the philosophical influences under the concept developed by the Genebrian linguist.
Keywords: Alterity; linguistic value; Plato; Saussure; Ducrot.
É importante destacar que estamos relacionando a produção de autores No entanto, a Atenas dos séculos V-IV a.C. está no seu apogeu e o lógos
separados por mais de vinte séculos de história. Separados pelo tempo e por ocupa um lugar central: para existir como cidadão é preciso saber falar. O que
línguas muito distintas, não podemos falar de termos ou definições comuns se evidencia com o privilégio concedido aos sofistas, sábios que ensinam a
a ambos. Contudo, podemos falar de princípios ou ideias que permeiam a arte de bem falar aos aprendizes ricos da cidade. Para os sofistas, “o valor do
construção teórica desses autores e que nos permitem elucidar aspectos discurso é absoluto, a “verdade” é o que ele diz e, portanto, é relativa. Discurso
comuns, relativos às condições de emergência de cada uma das obras. e verdade se identificam, subordinando-se esta àquele, e, desse modo, está
Na primeira parte, dedicamos algumas palavras ao contexto no qual o garantida a verdade de tudo o que é dito” (NEVES, 1987, p. 38-39).
diálogo Sofista foi escrito, compreendendo seu lugar na obra platônica e, ao Nesse sentido, o discurso sofístico não é um discurso do ser, não é um
mesmo tempo, dando um destaque especial à construção do que chamamos discurso filosófico. Ao contrário, a atividade sofística por excelência é a
hoje de teoria da alteridade. Na segunda e última parte, adentramos na retórica, de modo que ao discurso cabe somente a função de persuadir, de
obra do linguista genebrino, focalizando nossa atenção na teoria do valor produzir a aparência de grandeza, de verdade, de justiça e de força de uma
linguístico, na tentativa de encontrar elementos que remetam a uma possível causa. “Não importa ter razão e defender uma causa justa, mas importa saber
influência do pensamento de Platão na linguística desenvolvida por Saussure. fazer ver como justa a causa que o discurso defende” (idem, p. 39).
Ainda de acordo com Neves, em decorrência da natureza de sua atividade,
1 Ser o que os outros não são: a alteridade de Platão os sofistas criam a ideia da superioridade, da autonomia do lógos: “o que é dito
Nas palavras de Rogue, a “filosofia platônica nasce de um escândalo” é o que é pensado, e o pensamento se reduz à linguagem” (1987, p. 42). Em
(2011, p. 7), o da morte de Sócrates em 399 a.C. Toda a obra de Platão outras palavras, como não há distância entre a linguagem e seu objeto, não se
(427? a.C.-347? a.C.) é posterior a essa data. Em seguimento ao seu mestre, vislumbra a necessidade de se investigar uma verdade para além da palavra,
Platão retoma uma investigação cujo objetivo final é encontrar a combinação sendo, portanto, impossível enunciar o falso. Nesse contexto, “não é apenas a
entre o lógos2 e as coisas. Segundo a mitologia grega, a linguagem é um linguagem que se encontra desviada; é o próprio ser, do qual não se sabe mais
dom divino que foi concedido aos homens para dizer o ser e as coisas o que dizer, se ele é um ou múltiplo, até mesmo se existe” (ROGUE, 2011, p. 10).
essencialmente como elas são: É justamente esse desvio do discurso, do lógos, que Sócrates não aceita. O
fundamento da filosofia socrática é recusar o aviltamento do discurso, numa
Falar é dizer o ser, é refletir o kósmos, tal como ele é, por meio do instrumento
que os deuses nos deram para este fim. Como a linguagem reflete as coisas tais busca incessante pelo lógos justo, íntegro, que seja a expressão do próprio ser
como elas são, uma ação injusta nunca seria louvada, o verdadeiro nunca seria das coisas. Pois quem puder definir apropriadamente a justiça, por exemplo,
confundido com o falso, a aparência nunca levaria vantagem sobre o ser. (…) O
lógos dizia as coisas assim como eram, e os homens tinham apenas de confiar
será necessariamente justo, porque ao compreender a definição, ninguém
nele (ROGUE, 2011, p. 9). poderia cometer uma injustiça. Exatamente por recusar os belos discursos,
que não dizem nada sobre o ser, mas que tanto encantavam os atenienses,
2 Embora o termo grego lógos possa abranger uma série de noções (definição, proposição, palavra, etc.),
os autores aqui citados adotam a acepção que o relaciona à ideia de linguagem e/ou discurso. Sócrates foi condenado à morte.
Conforme Rogue, esse “esforço de definição, de reaplicação da linguagem convencionalistas, representados por Hermógenes, creem que a linguagem
ao ser, que Platão empreende seguindo a Sócrates, vai levá-lo a esse momento tem origem no poder de julgamento dos homens.
fundamental que é a constituição do dualismo ontológico” (2011, p. 12-13), Na verdade, conforme Neves nos explica, o problema central do diálogo
isto é, a ideia de que há dois níveis distintos de realidade, o sensível e o assenta-se em um terreno mais amplo que o da linguagem. “No fundo, é o
inteligível. problema da essência do homem, sua relação com a natureza. A natureza
De um lado, o mundo sensível, aquele que podemos apreender pelos (phýsis) e o que o homem faz (nómos) não são entidades absolutas,
sentidos, o mundo material. De outro lado, o mundo inteligível, aquele configurações fixas e estanques” (1987, p. 46). Em oposição à tese de
que só podemos apreender pelo raciocínio, pela inteligência, trata-se do Protágoras, que afirma que o homem é a medida de todas as coisas, Platão
mundo mental, metafísico. As formas inteligíveis, as Ideias, “são realidades sustenta que as coisas existem por si mesmas, de acordo com sua essência
imutáveis e universais, independentes dos intelectos que as percebem” natural, ou seja, “há nas coisas em si mesmas uma certa firmeza, uma essência
(BRISSON; PRADEAU, 2010, p. 59). As formas inteligíveis (eîdos ou idéa) permanente, que não depende de nós e de nosso modo de vê-las. Há, pois,
são a causa, a origem, o modelo das coisas sensíveis, que, por sua vez, não um eîdos, uma “ideia” das coisas” (idem, p. 46). As palavras de Paviani são
passam de imagens. Imagens que ganham uma existência própria: dizer esclarecedoras quanto a isso:
uma coisa não é mais necessariamente dizer o que é. Consequentemente,
Platão definitivamente é um essencialista. As coisas e as ações possuem uma
o lógos é “separado” da realidade. A dissociação entre a linguagem e as essência. O nome é uma mimesis fonética do objeto, mas deficiente. No entanto, a
coisas é o que permitirá a Platão eleger a linguagem como objeto de inves- solução do problema da verdade sobre a justeza dos nomes não é explicitada por
tigação. Platão. Sua posição está presente na teoria do eîdos implícita do início ao fim do
diálogo. Por isso, o verdadeiro tratado sobre a linguagem não é o Crátilo, mas o
Contrapondo-se à concepção sofística que apregoa que a linguagem só Sofista e passagens do Parmênides e outros diálogos da maturidade (1993, p. 43).
conduz a si mesma e, assim, basta falar para dizer verdade, “Platão apresenta
uma concepção filosófica segundo a qual a linguagem conduz a alguma coisa Significa que o exame que Platão faz da linguagem não se restringe à
que não ela mesma e, portanto, o discurso pode dizer ou não dizer verdade” investigação da relação entre o nome e a coisa, mas passa à verificação da
(NEVES, 1987, p. 45). Os diálogos platônicos que colocam em questão o relação entre o lógos e a ousía. E é justamente no Sofista que a investigação
problema da linguagem são especialmente o Crátilo e o Sofista. deixa de centralizar-se na nominação, e a função de mimese se atribui ao lógos.
Em geral, os comentaristas das obras de Platão elegem o Crátilo como Estamos, portanto, diante de dois modos diferentes de interpretar a relação
o texto básico do pensamento grego sobre a linguagem. Nesse diálogo, que se estabelece entre discurso e ser: “(i) o que é é independente do que se diz
encontramos a discussão em torno de duas teses opostas: os “naturalistas” dele ou (ii) o que é é apenas aquilo que se diz que ele é” (SOUZA, 2009, p. 15).
versus os “convencionalistas”. Segundo Camara Jr. (2011, p. 24), os De um lado, defendendo a interpretação (i) estão Parmênides e
naturalistas, representados por Crátilo, defendem a ideia de que a linguagem Antístenes; de outro, defendendo (ii) estão os sofistas, representados por
se impõe aos homens por uma necessidade da natureza, enquanto que os Górgias e Protágoras. Para os sofistas é impossível transmitir o conhecimento
por meio do discurso, enquanto que para Platão o ser é anterior ao De acordo com Paviani (1997), o tema geral do Sofista “consiste na
discurso que, como vimos, diz o ser das coisas, pois as coisas são como são, tentativa de dizer, positivamente, quem é o sofista para, negativamente,
independentemente da opinião ou de elementos circunstanciais. Estas duas caracterizar o filósofo” (p. 941). Dessa forma, “um se mostra ‘dialeticamente’
interpretações delimitam o cenário em que o Sofista foi escrito. no outro” (ibidem, p. 938) e o tema acaba por se transformar numa questão de
Segundo Cordero (1993, p. 19), o título do diálogo é mais ambíguo do que investigação das relações entre o ser e o não-ser, entre as Formas inteligíveis
parece. Isso porque conhecendo a rivalidade existente entre os filósofos e os e o mundo sensível.
sofistas, não se pode esperar de um diálogo platônico intitulado Sofista nada
Estrangeiro: Estamos, meu caro amigo, realmente empenhados numa
mais nada menos do que uma severa crítica à sofística. De fato, encontramos investigação muito difícil, pois a matéria de aparecer e parecer, mas não ser,
uma série de definições (seis ou sete) que contestam, denunciam e até e de dizer coisas, mas não verdadeiras – tudo isso é agora, como o foi sempre,
motivo de muita perplexidade. Sabe, Teeteto, é sumamente difícil compreender
ridicularizam a postura e conduta dos sofistas. Todavia, mais importante
que forma de discurso um indivíduo deveria usar para dizer que realmente há
do que isso, encontramos, no Sofista, uma sistematização das questões a falsidade e, ao dizê-lo, não se envolver em contradição (Sofista, 236e).5
ontológicas tradicionais na busca de uma síntese que ultrapasse as aporias
e revele uma nova concepção do ser. Compreende-se, desse modo, a razão Ao buscar uma definição que apreenda o verdadeiro núcleo da atividade
do subtítulo do diálogo: “Sobre o Ser”. sofística, o Estrangeiro e Teeteto (seu interlocutor direto) deparam-se com
Assim, a busca pela definição do sofista, proposta por Sócrates3 no início a imperiosa necessidade de “uma reflexão sobre as aparências, sobre o
do diálogo, levará o Estrangeiro de Eleia a uma profunda investigação da estatuto dos fenômenos, sobre a verdadeira realidade das coisas, isso é,
noção de ser com o intuito de desmascarar a sofística. Na opinião de Cordero sobre o ser” (CORDERO, 1993, p. 21). O objetivo de Platão é encontrar uma
(1993, p. 17), trata-se de um verdadeiro manifesto em defesa da filosofia. A definição que revele que o sofista não passa de um falsário, um enganador.
filosofia está doente. Um fosso intransponível separa o sensível do inteligível. Entretanto, um obstáculo se apresenta: o axioma de Parmênides segundo o
“A identidade pura dos inteligíveis” está isolada, separada do todo, “lá no alto qual o não-ser não existe.
do céu” (ROGUE, 2011, p. 93); é preciso, portanto, superar essa ruptura. “A
Estrangeiro: Porque essa afirmação6 implica a hipótese audaciosa de que o
tentativa de separar tudo de tudo o mais não só é sinal de mau gosto, como não-ser existe, pois se assim não fosse a falsidade não poderia vir a ser. Mas o
também indica que uma pessoa é completamente inculta e não filosófica” grande Parmênides, meu rapaz, do tempo em que éramos crianças até o fim
de sua vida, nunca deixou de protestar contra isso e repetiu continuamente
(Sofista, 259e)4.
tanto em prosa quanto em verso: Nunca te submeta ao pensamento de que –
disse ele – o não-ser é; Mas mantém tua inteligência afastada dessa senda de
3
investigação (Sofista, 237a).
As personagens do diálogo são Teodoro, Sócrates, um estrangeiro de Eleia e Teeteto.
4 Com relação às citações do diálogo Sofista de Platão: os números indicam a página da edição referencial
de Henri Estienne (Stephanus), as letras (a, b, c, d, e) remetem ao parágrafo a que se faz menção. 5 As citações do diálogo Sofista foram retiradas da seguinte edição: PLATÃO. Diálogos I: Teeteto (ou Do
Conforme Santos (2012), essa edição (Paris, 1578) constitui referência obrigatória de qualquer edição, conhecimento), Sofista (ou Do ser), Protágoras (ou Sofistas). Tradução, textos complementares e notas:
em grego, ou tradução contemporânea dos diálogos, oferecida ao público. Esse modo de citar Platão Edson Bini. Bauru, SP: Edipro, 2007.
facilita e agiliza a consulta a outras traduções. 6 Isto é, afirmar que se pode enunciar o falso.
Assumindo o axioma eleático como verdadeiro, o sofista não pode ser ao Estrangeiro e seu interlocutor. Se a investigação sobre o não-ser não os
considerado um falsário, visto que não se pode dizer o que não existe. “Platão impediu de chegar a uma contradição, será preciso rever o que se sabe sobre
põe à prova essa tese... e não encontra nada para criticar!” (CORDERO, o ser:
1993, p. 23), pois falar de alguma coisa que não é equivale a dizer nada.
Esse raciocínio implica a ideia de que só seria possível dizer, de uma coisa, Estrangeiro: Mas talvez nossas mentes estejam em idêntica condição no que
toca também ao ser. É possível que pensemos que dispomos de clareza quanto
aquilo que ela é. Por outro lado, segundo Souza (2009), dizer o que uma coisa a esse termo e que compreendemos quando é empregado, embora fiquemos
é envolve um outro problema, que a autora chama de argumento contra a confusos com a expressão não-ser. Mas talvez, na realidade, compreendamos
possibilidade da predicação: igualmente pouco de ambas essas expressões (Sofista, 243c).
Não se pode dizer que A é B, porque A é diferente de B e, portanto, não é B. Na busca por uma compreensão mais adequada sobre o ser, Platão
Ao predicar B de A eu digo, desta coisa A, aquilo que ela não é, e dizer o que “examina rigorosamente as soluções propostas por todos os sistemas
uma coisa não é é dizer o falso. Então, de uma coisa A, eu só posso dizer que é
A. Não há, pois, nenhuma afirmação verdadeira que não seja uma tautologia, filosóficos” (CORDERO, 1993, p. 22), inclusive o dele até aquele momento.
mas tautologias não informam nada sobre o ser de uma coisa (SOUZA, Conforme Souza (2009), uma mesma compreensão de ser e não-ser perpassa
2009, p. 19). as teorias filosóficas que Platão analisa. Para Parmênides, representante da
filosofia eleata, ser assume o significado de ser idêntico. “Os sofistas, por sua
Sendo assim, Platão se vê diante de um paradoxo: ao afirmar que o sofista vez, quando argumentam que o lógos não diz o ser, o fazem considerando o
“possui uma arte, por assim dizer, de produzir aparências, ele facilmente ser do mesmo modo que ele é entendido por Parmênides, uno e separado”
se aproveitará de nossa pobreza terminológica para executar um contra- (p. 105). “Eles não viram que o que é isolado degenera e morre” (CORDERO,
ataque, distorcendo o sentido de nossas palavras, ou seja, atribuindo a elas 1993, p. 25).
o sentido contrário” (Sofista, 239d). Faz-se necessário, portanto, encontrar Até então, a filosofia encarava a realidade existente como “uma espécie
um lugar para os produtos da atividade sofística: as cópias, as imagens, as de “coisa” (mesmo “ideal”), como um “objeto” que é preciso definir ou
imitações, as ilusões. descrever, cujo número e qualidades são apreensíveis e exprimíveis”
A constatação a que chegam, o Estrangeiro e Teeteto, é a de que a imagem (ibid., p. 22). O ser era visto como “uma entidade absoluta (simples ou
“é uma outra coisa confeccionada semelhante à coisa verdadeira” (Sofista, múltipla), total, cuja negação é inconcebível, já que o não-ser não pode
240a). Mas, o que é semelhante, “ainda que não realmente seja, realmente é” existir” (ibid., p. 22). É preciso, portanto, “torná-los melhores do que são”
(idem, 240b). “Parece realmente que o não-ser de algum modo enredou-se (Sofista, 246d), levando-os a reconhecerem uma nova concepção de ser, um
no ser, o que é muito estranho e absurdo” (id., 240c). “É claro que é absurdo”, ser que leva as realidades (corpórea ou incorpórea, sensível ou inteligível)
é preciso “reconhecer que, de um certo modo, o não-ser é (existe)” (id., 240c). a se combinarem, a se mesclarem, um ser que se torna uma verdadeira
Como o ser pode conviver com seu contrário? Um novo desafio se impõe potência:
Estrangeiro: O que sugiro é que tudo aquilo que possui potência de qualquer Dois outros gêneros surgem, o Idêntico (o Mesmo) e o Diferente (o
espécie, quer para produzir uma mudança em algo de qualquer natureza, quer
Outro). Após essa minuciosa análise, Platão descobre, em contraposição à
para sofrer o efeito da mais ligeira causa mesmo no mais ínfimo grau, ainda
que o seja numa única oportunidade, é. Estabeleço como definição do ser que tese de Parmênides, que “o não ser de cada ser é uma realidade que se lhe
ele é nada mais nada menos que potência (Sofista, 247e). opõe, isto é, o não ser é o outro (a Diferença) fragmentado entre os seres
segundo a reciprocidade da sua relação” (PAVIANI, 1993, p. 47). É essa
É justamente a definição do ser como “potência de produzir ação ou sofrer potência de comunicação com outras Formas, outras realidades, que permite
ação” (Sofista, 248c) que permite que as realidades se misturem, e é devido que alguma coisa constitua sua essência: “toda coisa é, de fato, o mesmo
a essa mistura que as coisas são. No entanto, a sequência da argumentação que ela própria, e diferente das outras; eis seus limites, isto é, sua essência”
leva Platão a um novo impasse: não se pode admitir que todas as coisas (CORDERO, 1993, p. 25).
sejam capazes de mútua combinação. Do contrário, deveria se admitir, por Dentre os dois novos gêneros, o Diferente (Outro) se destaca, pois
exemplo, que o movimento se combine com o repouso, mas isso é impossível. “possui uma natureza absolutamente singular, que o distingue radicalmente
“Porque, nesse caso, o movimento estaria em repouso e o repouso estaria dos anteriores, e que faz dele, por assim dizer, o gênero dos gêneros e o
em movimento” (Sofista, 255a). Diante desse impasse, Platão empreende o fundamento de todos os outros (DUCROT, 2009, p. 10):
inventário dos gêneros supremos:
Estrangeiro: Portanto, é necessário que estabeleçamos a natureza do diferente
Estrangeiro: Como, portanto, concordamos que alguns gêneros mesclar-se- como um quinto gênero entre aqueles nos quais selecionamos nossos exemplos.
ão entre si, enquanto outros não se mesclarão, e alguns se mesclarão com (...) E diremos que permeia a todos, uma vez que cada um deles é diferente dos
poucos e outros com muitos, e que nada há que impeça alguns de se mesclarem demais, não por razão de sua própria natureza, mas porque partilha da forma
universalmente com todos, prossigamos com nossa discussão investigando ou ideia do diferente (Sofista, 255e).
não a totalidade das formas ou ideias, com o que ficaríamos confusos entre
tantas, mas apenas algumas, fazendo uma seleção das consideradas as mais
importantes (Sofista, 254c). Como veremos na próxima parte, esse papel constitutivo da alteridade
subjaz de tal modo ao estruturalismo saussuriano7 que “ser estruturalista,
Platão inicia a análise a partir do Ser, do Movimento e do Repouso, no estudo de um domínio qualquer, é definir os objetos desse domínio
examinando suas várias naturezas e detendo-se em sua capacidade de mútua uns em relação aos outros (...). Admite-se, assim, que algumas de suas
combinação:
7 A expressão “estruturalismo saussuriano” é aqui utilizada com base na caracterização dada por Ducrot
às reformulações introduzidas no estudo da Linguística pelo linguista genebrino Ferdinand de Saussure.
Estrangeiro: Com certeza, os mais importantes gêneros são precisamente Referimo-nos, especialmente, à organização inerente a toda língua, a qual Saussure denomina sistema
os que mencionamos, a saber, o próprio ser, o repouso e o movimento. [...] E, (seus sucessores falam de estrutura), cujos elementos não têm nenhuma realidade independentemente
ademais, dois deles – segundo dizemos – não podem mesclar-se. [...] Mas o ser de sua relação com o todo (ver o verbete “saussurianismo” no Dicionário Enciclopédico das Ciências da
Linguagem (2010, p. 25-29), cf. referências bibliográficas). Para uma caracterização mais abrangente do
pode mesclar-se com ambos, uma vez que ambos são. [...] Assim, cada um deles “estruturalismo saussuriano” ver DUCROT, Oswald. Estruturalismo e linguística. Trad. José Paulo Paes.
é diferente dos dois restantes, mas idêntico a si mesmo (Sofista, 254d). São Paulo: Cultrix, 1970.
mútuas relações não são uma consequência da sua natureza, mas que elas a realidade, há uma mistura de ser e de não-ser, pois toda coisa é o que é, mas
constituem” (DUCROT, 1987, p. 67). também é tudo o que ela não é” (CORDERO, 1993, p. 60). As palavras do
É importante registrar que, após investigar a natureza dos principais Estrangeiro ressaltam essa realidade:
gêneros, Platão finda sua pesquisa com o inventário dos cinco gêneros (Ser,
Estrangeiro: Não nos limitamos, contudo, a mostrar que as coisas que não são
Movimento, Repouso, Mesmo e Outro) por considerá-los suficientemente são. Indicamos, inclusive, o que é a classe do não-ser, uma vez que mostramos
representativos da relação existente entre as Formas. Além disso, eles que a natureza do diferente é e está distribuída em pequenos fragmentos
entre todas as coisas que são nas suas relações recíprocas. Ousamos dizer,
se mostram úteis para explicar a existência do não-ser, visto que o não-
ademais, que cada parte do diferente, que é contrastada com o ser, é realmente
ser é definido como o diferente, o outro, a alteridade: “Assim, no que exatamente não-ser. (Sofista, 258e)
toca ao movimento, o não-ser necessariamente é, estendendo-se isso a
todos os gêneros, uma vez que em todos a natureza do diferente opera A definição do não-ser como alteridade é o que permite a Platão
de tal maneira a tornar cada um diferente do ser e, portanto, não-ser” contestar o axioma de Parmênides e estabelecer a relação entre discurso e
(Sofista, 256e). não-ser: “consideramos que o não-ser era um dos gêneros do ser, permeando
Sendo assim, conforme Neves, “cada um dos gêneros pode corretamente todas as coisas que são. [...] Portanto, o próximo passo é indagar se ele se
ser chamado não-ser, e, ao mesmo tempo, pelo fato de participar do ser, mescla com a opinião e o discurso” (Sofista, 260b). Pois, “se não se mesclar
cada um deles pode ser chamado ser” (1987, p. 56), de modo que se pode com eles [a opinião e o discurso], resultará necessariamente que tudo é
concluir que, “relativamente a cada um dos gêneros, o ser é multiplo e o não- verdadeiro; mas se houver mescla, serão gerados a falsa opinião e o falso
ser é numericamente infinito” (Sofista, 256e). No entanto, “quando dizemos discurso” (idem, 260c). Logo, “se existe falsidade, existe engano. [...] E se
não-ser nos referimos, suponho, não a algo que seja o oposto do ser, mas existe engano, tudo necessariamente estará doravante repleto de cópias,
somente a algo diferente” (ibidem, 257b), portanto, “quando nos disserem semelhanças e aparições” (id., 260c). Assim, Platão encontra uma explicação
que o negativo significa o oposto, discordaremos. Somente admitiremos que para os enunciados falsos e, agora, o sofista pode ser acusado de enganador,
a partícula não indica algo diferente das palavras às quais serve de prefixo, falsário, ilusionista.
ou melhor, diferente das coisas às quais os nomes que se seguem à negação Analisar a natureza do discurso é, portanto, a última tarefa que se impõe,
são aplicados” (ibid., 257c). visto que é preciso “perceber com clareza sua participação com o não-ser.
É precisamente no que diz respeito à negação que, segundo Cordero, Munidos dessa percepção, poderemos demonstrar que a falsidade é (existe)
Platão é revolucionário: “a negação não significa ‘contradição’ (ou oposição); e, uma vez conquistada essa demonstração, será aí que prenderemos o
ela significa ‘diferença’. Uma coisa (um fato, um estado de coisas) negada é sofista” (Sofista, 261a).
uma realidade diferente daquela que se negou. Ela é, no entanto, tão real Ao estabelecer o discurso como um dos gêneros do ser, “afinal, se dele
quanto seu equivalente ‘positivo’” (1993, p. 56). Relacionando o não-ser fôssemos privados, seríamos privados da filosofia, o que constituiria o
com a questão da negação, Platão institui o primado da alteridade: “em cada supremo desastre” (Sofista, 260a), Platão desenvolve uma teoria enunciativa,
tal qual Cordero (1993, p. 61-62) nos explica na “Introdução”. Segundo ele, a ao modelo teórico de pensadores como Aristóteles, Galileu e Condillac8,
teoria platônica da enunciação é uma aplicação, ao domínio da linguagem, de enquanto outros mencionam uma provável influência da sociologia de
sua nova concepção do ser como potência de comunicação, da relação entre Emile Durkheim e da filosofia positivista9. A contribuição de comparatistas
as categorias da realidade e o não-ser como alteridade. e neogramáticos é indubitável e, segundo Faraco (2011), os trabalhos
Para Paviani (1993), encontramos no Sofista, o discurso determinado do estudioso alemão Humboldt e do linguista americano Whitney foram
pela relação entre o nome e o verbo. O significado da proposição provém fundamentais para a construção da ideia da língua como um sistema de
dessa ligação. O que torna um discurso verdadeiro ou falso é o fato dele se signos independente (imanência).
referir a alguma coisa. Uma sequência de nomes ou de verbos, sem associação Porém, antes de pensarmos em possíveis influências, é preciso
entre eles, não forma um discurso. É preciso, portanto, reunir o nome e o reconhecer que o pensamento de Saussure representa uma grande mudança
verbo. “O discurso não enuncia simplesmente uma coisa, mas enuncia, de no campo dos estudos linguísticos. Suas concepções abriram espaço para a
uma coisa, algo existente em relação a ela. Unindo um nome e um verbo, construção de uma verdadeira ciência da linguagem, cujo verdadeiro e único
o falante liga um agente a uma ação, registrando nos sinais (o discurso) objeto de estudo, a língua, passou a ser considerado em si mesmo e por si
a comunhão existente nas coisas representadas por esses sinais (262e)” mesmo. Além de demonstrar que a “língua poderia (e deveria) ser tratada
(NEVES, 1987, p. 56). Sendo assim, todo discurso pode ser verdadeiro ou exclusivamente como uma forma (livre das suas substâncias)” (FARACO,
falso, o discurso verdadeiro é aquele que diz de alguém o que é tal como é, 2011, p. 28), Saussure nos mostra que a língua se constitui a partir de um
e falso o que enuncia “o Outro como sendo o Mesmo, e o que não é como “jogo sistêmico de relações de oposição – funcionando este jogo de tal
sendo” (PAVIANI, 1993, p. 49). modo que nada é num sistema linguístico senão por uma teia de relações de
O diálogo Sofista nos apresenta, portanto, uma teoria da alteridade, oposição” (idem, p. 28).
como Ducrot ressaltou, que também se encontra no discurso. “Pensar que Embora reconhecendo o caráter fundador do “gesto epistemológico
sou este ou aquele é sempre imaginar alguém que me vê como este ou como saussuriano”, Faraco (2011) afirma que essa formulação é resultado do
aquele, e cujo olhar me constitui, (...) e se a língua é, antes de mais nada, o trabalho de linguistas precedentes, que já desenvolviam uma concepção
terreno onde afronto outrem, não nos surpreenderemos com o fato de a de língua como um todo organizado. Isto é, segundo o autor, um “senso de
realidade linguística ser, como viu Saussure, fundamentalmente opositiva” sistema autônomo” já permeava o trabalho de alguns linguistas ao longo do
(DUCROT, 2009, p. 11). século XIX. O próprio Whitney, por exemplo, ao considerar a língua como
uma instituição social, insistindo no caráter arbitrário dos signos e, com isso,
2 Ser o que os outros não são: a alteridade em Saussure 8 Ver MOUNIN, George. Saussure: presentación y textos. Barcelona: Editorial Anagrama, 1969 e BOUQUET,
Simon. Introdução à leitura de Saussure. São Paulo: Cultrix, 2000.
Colocar Saussure e Platão em relação não é muito usual nos estudos 9 Ver CULLER, Jonathan. As ideias de Saussure. São Paulo: Cultrix, 1979 e LODER, Letícia L. & FLORES,
colocando “a Linguística em seu verdadeiro eixo” (SAUSSURE, 2012, p. 116), explicitamente abstratas” (2009, p. 59-60). Isso explicaria a presença de
conquistou o reconhecimento de Saussure. expressões como “entidades concretas”, “objeto de natureza concreta”, etc.,
Por outro lado, sem desmerecer a visível influência de estudiosos como que não correspondem à ideia, claramente exposta nos Escritos de linguística
Whitney (talvez o mais admirado por Saussure), nós acreditamos que o geral (doravante ELG), de que a língua não é matéria, não tem substrato10.
princípio que norteou as formulações do linguista genebrino (o princípio No entanto, conforme os editores Bouquet e Engler (2004) afirmam,
que faz da língua “um sistema do qual todas as partes podem e devem no prefácio aos ELG, o conjunto das reflexões saussurianas, comumente
ser consideradas em sua solidariedade sincrônica” (SAUSSURE, 2012, chamado de linguística geral, estende-se a três campos do saber11, entre os
p. 128)), está apoiado em reflexões filosóficas anteriores. Na verdade, muito quais se vislumbra uma “especulação analítica sobre a linguagem”, (2004,
anteriores, mas que deixaram marcas em toda a cultura ocidental e levantam p. 12), qualificada, diversas vezes, pelo próprio Saussure como filosófica.
temas até hoje debatidos. Referimo-nos à teoria platônica da alteridade, Essa fundamentação filosófica da reflexão saussuriana, aparentemente
apresentada no diálogo Sofista. fragmentada no CLG, aparece com bastante vigor nos ELG, sobretudo nos
Na primeira parte deste artigo, procuramos mostrar como Platão manuscritos que compõem a primeira parte intitulada “Sobre a essência
desenvolveu uma teoria da alteridade que, nas palavras de Ducrot, “ainda dupla da linguagem”. Nesse conjunto de documentos encontramos uma
não deixa de causar espanto aos que querem lê-la bem e cuja necessidade ideia que Saussure ressalta insistentemente, resumindo-a ao que chama
a Linguística moderna vem redescobrindo desde Saussure” (2009, p. 10). de “princípio das OPOSIÇÕES, ou dos VALORES RECÍPROCOS, ou das
Agora, nossa intenção é explicitar que a afirmação encontrada no CLG, de que QUANTIDADES NEGATIVAS e RELATIVAS que criam um estado de língua”
“na língua só existem diferenças” (SAUSSURE, 2012, p. 167), fundamenta-se (SAUSSURE, 2004, p. 27).
na ideia segundo a qual a essência do diferente (do Outro) permeia a todos Contudo, no presente trabalho, não adentraremos no que se poderia
os signos, “uma vez que cada um deles é diferente dos demais, não por razão chamar de “pensamento puro” do mestre genebrino, proveniente do seu
de sua própria natureza, mas porque partilha da forma ou ideia do diferente” próprio “punho”. Os manuscritos de Saussure, apresentados nos ELG, ainda
(Sofista, 255e). não eram conhecidos quando Ducrot tomou contato com a obra saussuriana,
À primeira vista, pensar que a construção de um conceito tão significativo nos anos de 1960. Por isso, vamos explorar a teoria do valor linguístico,
na reflexão saussuriana, como é o caso do valor linguístico, possa ter uma encontrada sobretudo nos capítulos III, IV e V da segunda parte do CLG.
fundamentação filosófica, notadamente metafísica, pode parecer paradoxal. Para compreendê-la é preciso situá-la no complexo aparato conceitual
A preocupação em garantir um estatuto científico ao estudo da língua saussuriano. Só então poderemos associá-la à teoria da alteridade de Platão.
poderia ter afastado Saussure de uma abordagem baseada em pressupostos
10 Ver DEPECKER, Loïc. Compreender Saussure a partir dos manuscritos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
filosóficos. Segundo Normand, “a ideologia científica da época, que limitava 11 Os três campos do saber mencionados pelos editores são: 1º epistemologia; 2º especulação analítica; 3º
ao dado diretamente observável o domínio do pesquisador e não via reflexão prospectiva sobre uma disciplina. Para saber mais sobre os três campos do saber da linguística
saussuriana, além do Prefácio aos ELG, ver BOUQUET, Simon. Introdução à leitura de Saussure. São
na abstração senão a especulação filosófica, opunha-se às formulações Paulo: Cultrix, 2000.
Como sabemos, Saussure estava “muito insatisfeito” e “preocupado” com Diante de tantas dualidades13, o objeto de estudo da Linguística se
os rumos que a Linguística parecia tomar, entre a Gramática Comparativa apresenta como um “aglomerado confuso de coisas heteróclitas” (SAUSSURE,
e o movimento dos neogramáticos. O método comparativo, segundo o 2012, p. 40), de modo que “é necessário colocar-se primeiramente no
linguista genebrino, “acarreta todo um conjunto de conceitos errôneos, terreno da língua e tomá-la como norma de todas as outras manifestações
que não correspondem a nada na realidade e que são estranhos às da linguagem” (ibidem, p. 41). A delimitação do objeto de estudo se dá
verdadeiras condições de toda linguagem” (SAUSSURE, 2012, p. 34). Quanto simultaneamente ao estabelecimento de uma metodologia, que permita
aos neogramáticos, embora tenham o mérito de “colocar em perspectiva analisá-lo em si e por si mesmo, visto que a língua é “um todo por si e um
histórica todos os resultados da comparação, e por ela encadear os fatos princípio de classificação” (SAUSSURE, 2012, p. 41) ou seja, “um sistema que
em sua ordem natural” (ibidem, p. 35-36), não conseguiram esclarecer conhece somente sua ordem própria” (ibid., p. 55).
problemas fundamentais em torno dos fatos da língua. Nessa definição de língua evidencia-se a posição epistemológica que
Assim, entre as tarefas da Linguística elencadas por Saussure, estão a apregoa a anterioridade do ponto de vista em relação ao objeto de estudo:
de delimitar-se e definir-se a si própria. Para atingir esse objetivo, tornava- “é o ponto de vista que cria o objeto” (SAUSSURE, 2012, p. 39). Afinal,
se imprescindível estabelecer um aparato metodológico que fosse capaz de dada a peculiaridade da língua, a Linguística, diferentemente de outras
dar conta do fenômeno linguístico em toda a sua complexidade. De modo ciências, como a Física ou a Biologia, não lida com um objeto dado, um
que, seja qual for o ponto de vista que se adote para estudar o fenômeno conjunto de coisas evidentes, pelo contrário, “não há nenhuma entidade
linguístico, ele “apresenta perpetuamente duas faces que se correspondem linguística que possa ser dada, que seja dada imediatamente pelo sentido;
e das quais uma não vale senão pela outra” (SAUSSURE, 2012, p. 39). Eis aí nenhuma que exista fora da ideia que lhe pode ser vinculada” (SAUSSURE,
um princípio que permeia todo o conjunto de ideias e definições que marcam 2004, p. 23).
a teoria saussuriana: o princípio da essência dupla da linguagem12. Segundo Dito de outro modo, a língua não é um objeto material, não é subs-
Benveniste, esse princípio determina que: tância, “a língua não comporta ideias nem sons preexistentes ao sistema
linguístico, mas somente diferenças conceituais e diferenças fônicas
Tudo na linguagem tem de ser definido em termos duplos; tudo traz a marca e resultantes desse sistema” (SAUSSURE, 2012, p. 167). Considerando que
o selo da dualidade opositiva: dualidade articulatória/acústica; dualidade do
som e do sentido; dualidade do indivíduo e da sociedade; dualidade da língua as entidades linguísticas não se apresentam por si mesmas ao linguista,
e da fala; dualidade do material e do não-substancial; dualidade do “memorial” “é necessário colocarmo-nos diante do ato individual que permite recons-
(paradigmático) e do sintagmático; dualidade da identidade e da oposição;
tituir o circuito da fala” (ibid., p. 43), ato que pressupõe pelo menos
dualidade do sincrônico e do diacrônico, etc. (BENVENISTE, 2005, p. 43).
13 Esse conjunto de dualidades presente na teoria saussuriana levaram Bagno (2011) a desenvolver uma
12 Princípio
que muitas vezes foi interpretado de maneira equivocada, na perspectiva das “dicotomias” crítica ao que chama de “platonismo linguístico”. Segundo ele, a filosofia dualista de inspiração platônica
saussurianas, que põe em pura oposição dualidades que estão estreitamente ligadas e que se implicam exerceu (e exerce) uma “pesada” influência sobre os estudos da linguagem, sobretudo na definição das
mutuamente. “dicotomias” saussurianas.
dois indivíduos para que se realize. Esse sistema de “diferenças” está, de língua. É somente na sincronia14 que se pode apreender o funcionamento
portanto, indissociavelmente ligado à fala (ou discurso), que o precede do sistema. Logo, partir do sistema implica adotar uma diretiva metodológica
historicamente e sem a qual não poderia ser apreendido pelo lin- que exclua, no estudo da língua, a consideração de elementos externos: sejam
guista. eles históricos ou sociais. Assim, poderíamos comparar o sistema linguístico
Por outro lado, é a língua que permite que “a fala seja inteligível e saussuriano a uma máquina, sendo que o valor constitui e se constitui no
produza todos os seus efeitos” (SAUSSURE, 2012, p. 51), pois se confi- funcionamento das engrenagens que compõem a máquina. Abordadas fora
gura como “um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo das relações próprias ao sistema, as entidades linguísticas “não passam de
corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos” elementos materiais desprovidos de significação” (idem, p. 50).
(ibid., p. 41). Nesse sentido, é a coletividade que cria o sistema linguístico Para Saussure, a língua é um sistema de signos. O signo, por sua
e estabelece os valores que possibilitarão a comunicação. Esses vez, também tem uma natureza dupla, pois é constituído de duas faces
valores, que determinam o funcionamento da língua, são acionados, relacionadas entre si, e inseparáveis, o significante e o significado. Trata-se de
ativa ou passivamente, em nossa mente através de uma “faculdade de uma ligação arbitrária e, mais uma vez, nos valemos da leitura de Normand,
associação e de coordenação” (SAUSSURE, 2012, p. 44) que “desempe- que afirma:
nha o principal papel na organização da língua enquanto sistema”
(idem, p. 44). aplicar [...] o princípio do arbitrário é afastar, na descrição, qualquer ponto
A ideia de sistema remete, invariavelmente, à ideia de um grupo ou de vista diretor, e, em primeiro lugar, o do signo como representante de uma
ideia. [...] Partir do arbitrário é também afastar o sujeito falante em suas
conjunto de elementos, materiais ou ideais, que coordenados entre si particularidades e em sua vontade de significar, pois o signo só é arbitrário
funcionam como uma estrutura organizada. Segundo Normand, Saussure porque é social, imposto por regras que ninguém pensa discutir (NORMAND,
adota o termo sistema, que, como vimos, já era utilizado pelos linguistas, em 2009, p. 69-70).
“de uma ordem interna” (ibid., p. 71), “uma ordem de puros valores” (ibid., O segundo fato, relativo à complexidade da noção valor, corresponde
p. 72). O valor linguístico resulta, portanto, da presença de outros signos, ao chamado valor in praesentia e associa ao valor interno (in absentia),
tanto no eixo associativo (paradigmático) quanto no eixo sintagmático. Por proveniente do arbitrário da língua, um valor proveniente do fato sintagmático
isso, a noção de sistema implica a de relação e da noção de relação decorre (BOUQUET, 2000, p. 268). É na combinação desses dois fatos que Saussure
a noção de valor. vê a essência do fato semântico.
A noção de valor é extremamente complexa na obra saussuriana (de Com efeito, Saussure reconhece a complexidade da proposta e vê nela
fato, trata-se de uma teoria do valor) na medida em que coordena dois um verdadeiro paradoxo: “de um lado, o conceito nos aparece como a
fatos, eles mesmos complexos. Segundo Bouquet (2000), o primeiro fato contraparte da imagem auditiva no interior do signo, e, de outro, esse mesmo
(o do valor in absentia) faz corresponder termo a termo a relação que signo, isto é, a relação que une seus dois elementos, é também, e de igual
apontamos anteriormente, ou seja, a teoria do valor e a teoria do arbitrário. modo, a contraparte dos outros signos da língua” (SAUSSURE, 2012, p. 161).
Resumidamente, o autor afirma que a noção de valor recobre cinco fatos, Substituindo os termos conceito e imagem auditiva por significado e
pertencentes a duas categorias. significante, respectivamente, Ducrot (2006) resume o paradoxo da seguinte
A primeira categoria abrange o valor interno do signo que, por sua vez, maneira: de um lado, o significado e o significante são constituintes internos
compreende três aspectos: 1º – o significante responde pelo seu significado do signo, inseparáveis um do outro, e um só existe por causa do outro. De
(o significado é o valor desse significante); 2º – o significado responde pelo outro lado, o signo, a saber, a relação que os constitui um e outro, só é o
seu significante (o significante é o valor desse significado); 3º – significante conjunto de relações que os unem com os outros signos da língua, isto é, com
e significado respondem simultaneamente um pelo outro (o significante e outras relações significado-significante.
o significado são simultaneamente o valor um do outro (BOUQUET, 2000, Os signos são, assim, as engrenagens da complexa máquina que é a
p. 258). língua. Ou, em vez de engrenagens, poderíamos pensar nos signos como
A segunda categoria do valor in absentia corresponde ao valor sistêmico peças de um jogo, exatamente como Saussure faz ao comparar o jogo da
do signo. O valor sistêmico abarca o valor sistêmico fonológico e o valor língua a uma partida de xadrez: “uma posição de jogo corresponde de perto
sistêmico semântico. Nesse caso, não estamos diante do vínculo arbitrário a um estado de língua. O valor respectivo das peças depende da sua posição
entre dois objetos dessemelhantes unidos por um vínculo de necessidade no tabuleiro, do mesmo modo que na língua cada termo tem seu valor pela
como vimos acima, mas “do arbitrário do vínculo multidimensional entre oposição aos outros termos” (SAUSSURE, 2012, p. 130).
um objeto e todos os outros objetos da mesma natureza, ou seja, todas as Como podemos observar, “a oposição, para Saussure, é constitutiva
unidades significantes e todas as unidades significadas que constituem a do signo da mesma forma que a alteridade é, para Platão, constitutiva das
classe à qual pertence esse objeto” (BOUQUET, 2000, p. 236). O valor interno ideias” (DUCROT, 2009, p. 10-11). Há inúmeras passagens no CLG em que se
e o valor sistêmico que conjugam-se para formar o valor in absentia formam afirma, recorrentemente, a importância do “princípio de diferenciação”, que
apenas uma parte do valor semântico de um signo. na língua “tudo é oposição”, que seu funcionamento não passa de um “jogo
das oposições linguísticas” (SAUSSURE, 2012, p. 169), enfim, que na língua É preciso, portanto, determinar que princípios fundamentam os signos
“tudo se reduz a diferenças” (ibid., p. 177). e suas relações. Ou seja, impõe-se a necessidade de delimitar a natureza
Mais do que isso, Saussure concebe a essência do signo como das entidades linguísticas (os signos) e de compreender o mecanismo de
potencialmente relativa. O signo é essencialmente em virtude de seu caráter suas relações. Segundo Saussure, dois princípios dominam toda a questão:
associativo com outro(s) signo(s): “o que haja de ideia ou de matéria fônica “1º – A entidade linguística só existe pela associação do significante e do
num signo importa menos do que existe ao redor dele nos outros signos” significado; se se retiver apenas um desses elementos, ela se desvanece”
(SAUSSURE, 2012, p. 167-8). É por isso que os signos são valores, pois a noção (SAUSSURE, 2012, p. 147); “2º – A entidade linguística não está completa-
de valor supõe a existência de uma relação: tanto aquela que reune, no signo, mente determinada enquanto não esteja delimitada, separada de tudo o que
um significado e um significante, quanto aquela que faz dele (o signo) parte a rodeia na cadeia fônica. São essas entidades delimitadas ou unidades que
do sistema, cujo valor surge, justamente, da oposição com outros signos. se opõem no mecanismo da língua” (ibid., p. 148).
Para Platão, vale lembrar, é a possibilidade de comunicação com outros Devemos observar que a ideia de alteridade subjaz aos dois princípios.
seres, com outras formas, que permite que alguma coisa seja, que constitua Na realidade, esses princípios estão estreitamente relacionados, ambos se
sua essência. De fato, a palavra essência deriva do verbo latino esse, ‘ser’. implicam mutuamente. No entanto, para facilitar nossa leitura, vamos analisá-
Reconstituindo a argumentação desenvolvida na segunda parte do CLG, los separadamente. O primeiro remete à natureza do signo linguístico: o
dedicada à Linguística sincrônica, podemos verificar em que medida a teoria arbitrário “laço que une o significante ao significado” (SAUSSURE, 2012,
do valor se fundamenta no princípio que Platão descobre em sua investigação p. 108) que nos permite “compreender por que a língua não pode ser senão
sobre o ser: a alteridade. um sistema de valores puros” (ibid, p. 158). É a relação entre dois elementos
Inicialmente, Saussure afirma que o objeto da Linguística sincrônica geral distintos que constitui sua essência. Um significado sem significante ou
é “estabelecer os princípios fundamentais de todo sistema idiossincrônico” um significante sem significado não valem nada, não são uma entidade
(SAUSSURE, 2012, p. 145). Mas, quais são esses “princípios essenciais” sem linguística. “Na língua, como em todo sistema semiológico, o que distingue
os quais “não se poderiam abordar os problemas mais especiais da estática, um signo é tudo o que o constitui. A diferença é que faz a característica, como
nem explicar os pormenores de um estado de língua” (idem, p. 145)? A faz o valor e a unidade” (ibid., p. 169).
resposta vai surgindo ao mesmo tempo em que se constata que fazer a O segundo princípio, por sua vez, nos faz pensar na ideia do signo em sua
Linguística de um estado de língua “apresenta dificuldades bem maiores” totalidade, inserido no sistema e, portanto, apto a ser delimitado em razão
das que a linguística histórica enfrenta, pois a Linguística15 “se ocupa de do que o rodeia e a ele se opõe. Num primeiro momento, Saussure sugere
valores e relações coexistentes” (idem, p. 145). uma aproximação dessa entidade linguística à noção de “palavra”, mas acaba
por renunciar à ideia, sobretudo pelas dificuldades de definição do que seja
15 Aquio termo Linguística deve ser compreendido como sinônimo de linguística sincrônica (estática exatamente uma palavra e pela incompatibilidade da mesma com o que
ou de um estado de língua). Vale lembrar que, para Saussure, é somente na sincronia que se pode
apreender o funcionamento do sistema. se busca distinguir. Assim, quando “uma ciência não apresenta unidades
concretas imediatamente reconhecíveis, é porque elas não são essenciais” ultrapassa sua identidade conceitual ou material. O que se revela, não ao
(SAUSSURE, 2012, p. 151). Por isso, é necessário “escapar às ilusões” (ibid., olhar despretensioso do usuário da língua, afinal as entidades da língua “não
p. 156) e, a despeito da “importância capital das unidades”, é “preferível se apresentam por si mesmas à nossa observação”, mas, ao olhar do linguista,
abordar o problema pelo aspecto do valor, que é, a nosso ver, seu aspecto é que, na língua, “todos os termos são solidários e o valor de um resulta
primordial” (ibid., p. 157). somente da presença simultânea de outros” (SAUSSURE, 2012, p. 161).
É a noção de valor que permite, finalmente, interligar os dois princípios Assim como para Platão, “cada coisa é idêntica a ela mesma, mas ela também
elencados acima. A teoria do valor, que, segundo Normand, “ocupa o lugar é diferente (ou “outra”) das outras” (CORDERO, 1993, p. 60), para Saussure
mais importante no Curso” (2009, p. 64), é apresentada no capítulo IV da “o mecanismo linguístico gira todo ele sobre identidades e diferenças, não
segunda parte, intitulado O valor linguístico. O valor intervém em todas as sendo estas mais que a contraparte daquelas” (SAUSSURE, 2012, p. 154).
dimensões do signo: cada uma das faces do signo, significado e significante; Ora, trata-se mais uma vez de reconhecer que “a língua [...] não pede mais
e o signo em sua totalidade. que a diferença” (SAUSSURE, 2012, p. 166). Ou melhor, “que na língua só existem
Abstraindo a indissolúvel união entre significado e significante, a análise diferenças” (ibid., p. 167). O que Saussure ressalta com essas afirmações é que
do valor em seu “aspecto conceitual” apresenta-se sempre condicionada à o mais importante no estudo da língua são as relações, as combinações entre os
ideia constitutiva da diferença, da alteridade: “Quando se diz que os valores elementos que a compõem e o valor decorrente dessas relações, pois, “assim
correspondem a conceitos, subentende-se que são puramente diferenciais, como o jogo de xadrez está todo inteiro na combinação das diferentes peças,
definidos não positivamente por seu conteúdo, mas negativamente por suas também a língua tem o caráter de um sistema baseado completamente na
relações com os outros termos do sistema. Sua característica mais exata é oposição de suas unidades concretas” (SAUSSURE, 2012, p. 152).
ser o que os outros não são” (SAUSSURE, 2012, p. 164, grifo nosso). O mesmo Cabe, por fim, determinar como funcionam as relações que fundamentam
acontece quando se analisa a “parte material” do valor: “é evidente, mesmo o mecanismo da língua. Segundo Saussure, “as relações e as diferenças
a priori, que jamais um fragmento de língua poderá basear-se, em última entre termos linguísticos se desenvolvem em duas esferas distintas” (2012,
análise, em outra coisa que não seja sua não coincidência com o resto” (ibid., p. 171): estamos adentrando na especificidade das relações sintagmáticas
p. 165, grifo nosso). e associativas.
Porém, acreditamos que a separação entre o valor conceitual e o valor As relações sintagmáticas se estabelecem a partir do encadeamento
material surge apenas pela necessidade de descrição. A oposição que nos dos termos no discurso. Em razão do caráter linear da língua, os termos se
parece fundamental surge na consideração do signo em sua totalidade. É combinam e “se alinham um após o outro”, recebendo o nome de sintagmas:
aqui que a teoria do valor parece tomar a dimensão que Saussure realmente
queria ressaltar: “o que haja de ideia ou de matéria fônica num signo importa O sintagma se compõe sempre de duas ou mais unidades consecutivas (por
exemplo: re-ler, contra todos; a vida humana; Deus é bom; se fizer bom tempo,
menos do que existe ao redor dele nos outros signos” (SAUSSURE, 2012, sairemos etc.). Colocado num sintagma, um termo só adquire seu valor porque se
p. 167-8, grifo nosso). A verdadeira natureza das unidades linguísticas opõe ao que o precede ou ao que o segue, ou a ambos (SAUSSURE, 2012, p. 171-2).
A noção de sintagma, tal como colocada no CLG, suscita uma certa dúvida Finalmente, é o conjunto das relações sintagmáticas e associativas
quanto à sua inserção no domínio da língua, uma vez que a frase, “tipo por que constitui e determina o mecanismo da língua. São essas relações de
excelência de sintagma” pertence à fala. É uma questão que permanece “solidariedade recíproca” (SAUSSURE, 2012, p. 177) que conferem sentido
em aberto. No entanto, uma resposta parece aflorar na continuidade da à língua. O valor de um signo é determinado a partir do funcionamento
argumentação. A sintagmatização ocorre na linearidade da fala, pela escolha simultâneo dessas duas formas de relação. É o laço que une um signo a
do sujeito falante, mas sujeita às regras impostas pela língua: “cumpre outro que constitui seu valor e que faz dele um signo. É na interseção do
atribuir à língua, e não à fala, todos os tipos de sintagmas construídos eixo associativo com o eixo sintagmático que invocamos “todo um sistema
sobre formas regulares” (SAUSSURE, 2012, p. 173). Sem dúvida, uma latente, graças ao qual se obtêm as oposições necessárias à constituição do
referência à analogia. De qualquer maneira, essa questão foge por demais ao signo” (ibid., p. 179). Segundo Ducrot, trata-se, afinal, da “ideia, evidente
nosso tema. desde que nos disponhamos a considerá-la, de que um objeto só pode ser
A questão que se impõe aqui é que, nas relações sintagmáticas “o todo descrito em relação a outros objetos, e que não há, se tomarmos as palavras
vale pelas suas partes, as partes valem também em virtude de seu lugar no ao pé da letra, nenhum sentido em visualizá-lo ‘em si mesmo’” (1987, p. 67).
todo” (SAUSSURE, 2012, p. 177), de modo que os agrupamentos sintáticos E, assim, fechamos nossa reconstituição sobre a argumentação
se constituem com base em “um vínculo de interdependência; eles se desenvolvida por Saussure, ao longo da segunda parte do CLG, tendo como
condicionam reciprocamente” (idem, p. 177). É o princípio da alteridade foco a teoria do valor. Nessa perspectiva, “o valor de uma palavra – ou seja, sua
platônica que, mais uma vez, se sobressai. Princípio que também se destaca realidade linguística – é o que a opõe às outras palavras. Indo mais longe, é a
nas relações associativas. de se opor às outras. Seu ser é ser outro” (DUCROT, 2009, p. 11). Conhecendo
As relações associativas evocam elementos ausentes do discurso, se profundamente a filosofia de Platão, Ducrot percebeu, na teoria do valor
estabelecem na memória e “fazem parte desse tesouro interior que constitui linguístico, o papel constitutivo da alteridade, tal como foi apresentada no
a língua de cada indivíduo” (SAUSSURE, 2012, p. 172). “Uma palavra qualquer diálogo Sofista:
pode sempre evocar tudo quanto seja suscetível de ser-lhe associado de
Se o Movimento é diferente do Repouso, não é porque o Movimento possui em
uma maneira ou de outra” (ibidem, p. 175), ou seja, diferentes aspectos do
si mesmo tal ou qual característica positiva que podemos perceber quando o
signo podem produzir uma série de relações entre significados ou entre consideramos isoladamente, característica que se revelaria diferente daquelas,
significantes. É o que sugere a figura da página 175 (SAUSSURE, 2012): a igualmente positivas, que possui o Repouso. Ao contrário, a diferença entre o
Movimento e o Repouso é constitutiva dessas mesmas noções. O Movimento é
palavra ensinamento surge “como o centro de uma constelação”, da qual aquilo que ele é, pelo fato de que ele é outro, diferente do Repouso, do Mesmo...
convergem termos, de “número indefinido” e de “ordem indeterminada”, etc. (DUCROT, 2009, p. 10).
que se associam em razão de identidade lexical (ensinar, ensinemos) ou
conceitual (aprendizagem, educação), como também, termos que se associam Essa percepção, de certo modo, foi o que permitiu a Ducrot desen-
à identidade do significante (elemento, desfiguramento, lento, armamento). volver uma teoria linguística que hoje conhecemos como Semântica
Recebido em 20/10/2015.
Aceito em 28/01/2016.