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Paisagens Patrimoniais e Artes Na América Latina

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PAISAGENS PATRIMONIAIS E

ARTES NA AMÉRICA LATINA

José Arilson Xavier de Souza


Christian Dennys Monteiro de Oliveira
Otávio José Lemos Costa
Alessandro Dozena
Neusa de Fátima Mariano (Orgs.)
© Copyright 2022 by UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO
Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.
Todos os direitos desta edição reservados aos autores e à EDITORA UEMA.

Paisagens Patrimoniais e Artes na América Latina

EDITOR RESPONSÁVEL
Jeanne Ferreira Sousa da Silva

CONSELHO EDITORIAL
Alan Kardec Gomes Pachêco Filho • Ana Lucia Abreu Silva
Ana Lúcia Cunha Duarte • Cynthia Carvalho Martins
Eduardo Aurélio Barros Aguiar • Emanoel Cesar Pires de Assis
Emanoel Gomes de Moura • Fabíola Hesketh de Oliveira
Helciane de Fátima Abreu Araújo • Helidacy Maria Muniz Corrêa
Jackson Ronie Sá da Silva • José Roberto Pereira de Sousa
José Sampaio de Mattos Jr • Luiz Carlos Araújo dos Santos
Marcelo Cheche Galves • Marcos Aurélio Saquet
Maria Medianeira de Souza • Maria Claudene Barros
Rosa Elizabeth Acevedo Marin • Wilma Peres Costa

Diagramação: Paul Philippe


Arte da capa: Rosiane Bastos

P149 Paisagens patrimoniais e artes na América Latina [recurso eletrônico] / organizadores, José Arilson
Xavier de Souza ... [et.al.]. – São Luís: EDUEMA, 2022.

298 p.:il. color.

Livro eletrônico

Inclui bibliografia ao final dos capítulos.

ISBN: 978-85-8227-272-5 (e-book)

1.Paisagens. 2.Geografia. 3.Artes. I.Souza, José Arilson Xavier de. II.Oliveira, Christian Dennys Monteiro de. III.
Costa, Otávio José Lemos. IV.Dozena, Alessandro. V.Mariano, Neusa de Fátima. VI.Título.

CDU: 911.52/.53:[7.047:304.2](8)
SUMÁRIO
PRÓLOGO.............................................................................................................................. 06
Cristina T. Carballo.
APRESENTAÇÃO................................................................................................................ 10
Tiago Vieira Cavalcante.

PARTE 1. ARTE-PATRIMÔNIO EM SABERES EDUCACIONAIS

AFETOS DO GRAFFITI: CÓDIGOS DE TERRITORIALIZAÇÃO DO


URBANO EM SOBRAL/CE................................................................................................ 13
Vicente de Paulo Sousa; Nilson Almino de Freiras.
CARNAVAL (PÓS)PANDÊMICO NA AMÉRICA DO SUL: ESPAÇOS,
TEMPOS E NOVAS VIRTUALIDADES........................................................................... 26
Christian Dennys Monteiro de Oliveira; Emanuel da Costa Pereira; Raynara Ferreira da Silva.
EXPRESSÕES SONORO-ESPACIAIS RELACIONADAS ÀS COMUNIDADES
DO TAMBOR BRASILEIRAS.............................................................................................. 39
Alessandro Dozena.
PATRIMÔNIO E IDENTIDADE CULTURAL: O CASO DO CHAMAMÉ NA
REGIÃO DE FRONTEIRA BRASIL E PARAGUAI....................................................... 51
Camila Benatti; Rafael Henrique Teixeira-da-Silva; Patrícia Statella Martins.
MAPAS AFETIVOS: A PERCEPÇÃO DA PAISAGEM NO ENTORNO DO
CAMPUS DO ITAPERI......................................................................................................... 60
Otávio José Lemos Costa.
O AGIR COMUNICATIVO DESENVOLVIDO NA TERTÚLIA LITERÁRIA
DIALÓGICA E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO DE
GEOGRAFIA........................................................................................................................... 67
Francisca Linara da Silva Chaves; Rosalvo Nobre Carneiro.
O PATRIMÔNIO ALIMENTAR BRASILEIRO NA ABORDAGEM
GEOEDUCACIONAL: COMER E APRENDER............................................................ 78
Silvia Heleny Gomes da Silva.
RAIZ FARINHA BEIJU: PATRIMÔNIO ALIMENTAR QUILOMBOLA NA
TELA......................................................................................................................................... 90
Leonardo Pinheiro; Patrícia dos Santos Pinheiro.
PARTE 2. MANIFESTAÇÕES IMAGÉTICAS E MATERIAIS DO
SAGRADO

SÃO JOSÉ DE RIBAMAR, MARANHÃO: PAISAGEM E CHÃO REZA VELA...... 99


José Arilson Xavier de Souza.

A PAISAGEM DA JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE: IMAGEM E


PEREGRINAÇÃO INTERNACIONAL............................................................................ 108
Antonio Jarbas Barros de Moraes.
CUERPO-TERRITORIO, MEMORIA E IMAGEN: EN TORNO A LA
DESTRUCCIÓN DEL CRISTO GUERRILLERO........................................................ 120
Carolina Vogel; Carlos Luciano Dawidiuk.
MUNDOS DA VIDA EM MOVIMENTO: A MALHAÇÃO DO JUDAS OU
DANÇA DE CABOCLOS NA AMERICA LATINA....................................................... 132
Rosalvo Nobre Carneiro; Fábio Rodrigo Fernandes Araújo.
DISCUSSÕES INTRODUTÓRIAS À IDENTIFICAÇÃO DE UMA REGIÃO
CULTURAL DA DANÇA DE CABOCLOS NO ALTO OESTE POTIGUAR/RN
..................................................................................................................................................... 144
Wellington Vinícius de Almeida; Rosalvo Nobre Carneiro.
TORIBIO ROMO: CONSTRUCCIÓN Y ALCANCE TERRITORIAL DE UNA
DEVOCIÓN............................................................................................................................ 156
César Eduardo Medina Gallo.

A FESTA DO DIVINO COMO RESISTÊNCIA E COMO UTOPIA........................ 167


Neusa de Fátima Mariano.
ETNODOC HOMENS, DEUSES E SANTOS NA VILA DE ITAÚNAS:
RELATOS DE EXPERIÊNCIA............................................................................................ 179
Maria Aparecida de Sá Xavier.
PARTE 3. TERRITORIALIDADES PLURAIS NA ARTE LATINO-
AMERICANA
UMA EXPERIÊNCIA DE PAISAGEM: INTERVENÇÕES URBANAS COMO A
EXPRESSÃO DE UMA CONDIÇÃO RIZOMÁTICA.................................................. 194
Pablo Raniere Medeiros da Costa.
O RAP COMO FERRAMENTA DE COMPREENSÃO DO ESPAÇO
LATINOAMERICANO........................................................................................................ 204
León Denis Ferreira Xavier; Guilherme da Silva Borges.
A ARTE-GEOGRAFIA DAS IMAGENS: SOBRE O LUGAR E A MEMÓRIA
NAS FOTOGRAFIAS DO PROJETO “SERRINHA LUZ E CORES” ...................... 215
Marcos Antônio da Silva Ferreira.
O CHORO ENQUANTO UM TRAÇO CULTURAL TRANSFRONTEIRIÇO:
ENTENDENDO A FRONTEIRA PLATINA ATRAVÉS DA ARTE.......................... 224
Lucas Bezerra Gondim.
ETNIZACIÓN DIFERENCIA: LA CONSTRUCCIÓN DE UNA
‘COMUNIDAD NEGRA’ CON BASE RACIAL DIVERSA EN EL NORTE DEL
CAUCA…………………………………………………………………………..........…….. 234
Tulio Andrés Clavijo Gallego.

CARTOGRAFIA DE UMA VOZ DO SUL ...................................................................... 244


Maria Aparecida de Sá Xavier.

ARTE NAS MÃOS: A GEOGRAFIA COM AS MULHERES CAMPONESAS NO


CEARÁ E EM TOCANTINS (BRASIL)............................................................................ 255
Alexandra Maria de Oliveira; Maria Aline da Silva Batista; Thaysslloranny Batista Reinaldo.
METODOLOGIA COMPARTILHADA E ANTROPOLOGIA FÍLMICA: O
DOCUMENTÁRIO POESIA E RESISTÊNCIA............................................................. 264
Vicente de Paulo Sousa; Nilson Almino de Freitas.
AFETOS E MÉTODOS: FILME SINAL FECHADO, HORA DO SHOW, HORA
DO TRAMPO........................................................................................................................... 274
Jocilene Ramos Bastos; Nilson Almino de Freitas.
POSFÁCIO: PAISAGENS PATRIMONIAIS E ARTES NA AMÉRICA
LATINA.................................................................................................................................... 285
Jacquicilane Honório de Aguiar; Jesica Wendy Beltran Chasqui; Marcos da Silva Rocha.

NOTAS BIOGRÁFICAS....................................................................................................... 287


PRÓLOGO

Un río que no cesa de cantar…


Atahualpa Yupanqui

Esta imagen sonora del río sintetiza magistralmente nuestro vínculo con el paisaje cultural. Y
nos da la posibilidad de iniciar esta obra como un canto a la vida de mujeres y hombres de nuestra
tierra. Parafraseando a Atahaulpa, el paisaje que no cesa de cantar. Aquí encontraremos geógrafas y
geógrafos ocupados en temas diversos y con debates que interpelan a la ciencia desde el paisaje y la
cultura.
En esta propuesta se relata la tierra vivida y se intentan recuperar las raíces de paisajes
profundos. Tan profundos que apelamos a trabajos de un complejo ADN cultural que rescatan
lenguajes ancestrales de cosmogonías omnipresentes, como, también, lenguajes y marcas urbanas
mutadas a diario por producciones culturales de manufactura social diversa.
Prologar esta obra colectiva es un placer terrenal para una geógrafa bastante confundida y
con pocas certezas, eso sí, siempre inquieta. Por ese motivo me da alegría acompañar este esfuerzo
intelectual colectivo, tan audaz como curioso. En este camino se expresan geografías contenidas en
ideas, imágenes, sonidos, recuerdos sonoros, palabras y narraciones que transmiten ritmos de un
mundo cultural latinoamericano deslumbrante de colores y espacios multiformes, que componen
un mosaico inspirado en cuerpos y emociones que pocas veces tienen voz.
Hoy somos testigos de un mundo regional que resiste desde lo local a la abrazadora máquina
de la globalidad cultural, con adaptaciones, fusiones, hibridaciones e inclusive innovaciones frente
a estas imposiciones de lo único. Rescatar las artes irruptoras de la vida contemporánea como
patrimonios emergentes nos abre la puerta a tesoros impensados desde la otredad, la diversidad y los
linajes e identidades que se recomponen a diario en el espacio cotidiano, aquel que llamamos nuestro
lugar, del lugar de pertenencia. ¿Somos una geografía cultural emergente? ¿O más bien somos
una construcción crítica de nuevos espacios sociales que reclaman, en este mundo homogéneo, la
singularidad de nuestro propio paisaje? Quizás en este proyecto editorial seamos ambas y mucho
más…
En esta exploración geográfica nos une el conocimiento, un conocimiento que pone énfasis
en el paisaje que nos proporciona identidad territorial como constructo espacial; donde la mirada de
análisis empírico ofrece resultados para debatir y reflexionar sobre este desborde de manifestaciones
culturales como territorialidades que coexisten en un (des)orden social.

6
En este sentido, el conocimiento científico no acepta un conocimiento inmutable, sino que
cuestiona el significado de los resultados de la investigación empírica y sus posibles interconexiones
para construir el mundo conocido (SAUTU, 2003). Y podríamos decir más: también cuestiona sus
formas de abordaje.
Es oportuno recuperar, en este marco, la misión del Observatorio Paisagem, Patrimônio y
Artes Latino-Americanas (OPPALA). OPPALA nació con una visión de debate abierto sobre las
producciones culturales, a través de innovadores sentidos del paisaje como categoría de análisis,
que incluye la pluralidad del patrimonio y de las artes. OPPALA recupera el paisaje de los sentidos.
Paisajes atravesados por sentimientos, emociones, corporalidades y sudores. Y es allí donde nos
reencontramos con los intersticios espaciales que proporcionan rupturas e irrupciones de las miradas
impuestas por un otro.
El territorio va adquiriendo diversos significados instrumentales en los autores que nos
acompañan en este proyecto colectivo. El territorio, como tal no conoce de fronteras, y nos invita
a generar preguntas sobre la memoria, lo sagrado y la experiencia sensorial como realidades que
amalgaman y se fusionan entre sí, dando sentido existencial a la vida y a la muerte. El legado de
Chico Buarque, con su sublime poesía, nos ilustra e ilumina la oscuridad urbana despojada del
sentido social, de la angustia moderna hecha carne en los cuerpos como el territorio del trabajo y
del olvido:

Subiu a construção como se fosse máquina


Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico

Seus olhos embotados de cimento e lágrima…

En este texto múltiple de ideas, ponemos música y letra a los paisajes del sertão o de la gran
ciudad, recorremos carnavales y fiestas religiosas, danzas, entre tantas otras formas. No debemos
olvidar las manifestaciones plásticas y de multimedia que contienen resistencias a las actuales
estructuras sociales. El legado cultural regional está aún presente en las comunidades, a veces
como prácticas naturalizadas, a veces como recreaciones con adaptaciones al mundo presente. Estas
expresiones son traídas desde el análisis espacial por recientes generaciones de investigadoras e
investigadores que contribuyen al conocimiento desde el diálogo de saberes.
En el año 2021 se realizó el II Encuentro de OPPALA, en plena pandemia del COVID-19, en
formato virtual. Con sede en la ciudad de Fortaleza, el evento fue organizado por los laboratorios

7
de geografía de la UFC (Universidade Federal do Ceará), la UECE (Universidade Estadual do
Ceará) y la UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte). Este encuentro retomó viejas
y nuevas preguntas con el propósito de continuar poniendo el énfasis en nuestra diversidad cultural,
que es mucho más de lo que vemos a simple vista; estas realidades son constructoras de espacios y
paisajes que tienen como protagonistas a nuestros lugares de arraigo y convivencia.
La estructura de la obra pretende ofrecer al lector tres caminos posibles de diálogos abiertos
que indagan sobre lo que llamamos geografías de paisajes, patrimonio y artes, en coordenadas
latinoamericanas. Geografías de territorios marginales que ofrecen una diversidad de producciones
culturales.
La primera parte, “Arte-patrimônio em saberes educacionais”, contiene ocho capítulos que
ilustran y territorializan carnavales pospandemia, identidades, patrimonios, música, literatura y
educación, entre los principales núcleos.
La segunda, “Manifestações imagéticas e materiais do sagrado”, desarrolla en ocho capítulos
discusiones que territorializan cuerpos de fe y creencias en diversos escenarios culturales de identidad
tan profunda como sentida por comunidades que recurren a esos lazos solidarios y sagrados para
resolver el complejo mundo cotidiano.
Finalmente, la tercera parte, “Territorialidades plurais na arte latino-americana”, reúne nueve
trabajos que rescatan diversas manifestaciones emergentes que abordan e interpelan al cine, al
trabajo de la mujer, a la fotografía, a nuevos ritmos urbanos que confrontan, a través de sus propios
paisajes, estructuras sociales dinámicas y resilientes.
Para dejar paso al desarrollo del trabajo, traigo las palabras de Paul Claval (2003), quien
elocuentemente nos plantea que el enfoque cultural que se ha desarrollado en geografía en estos
años se basa en la idea de que todo pensamiento es contextual. En esta oportunidad, las visiones
sacuden ruidosamente las estanterías del pensamiento clásico y colocan las miradas en actuales
contextos territoriales que nos interpelan con nuevas preguntas, con nuevos paisajes. En palabras de
Atahualpa, el paisaje como el río que no cesa de cantar…

Profa. Dra. Cristina T. Carballo


CDT-Universidad Nacional de Quilmes

8
Referencias

BUARQUE, C. Construção [canción]. In: Construção, 1971.

CLAVAL, P. Géographieculturelle, culture des géographes. In: Conférence de Paul Claval à


l’École Normale Supérieure de Lyon, Géoconfluences, février 2003, republiée en avril 2018.
Disponible en: http://geoconfluences.ens-lyon.fr/informations-scientifiques/dossiers-thematiques/
remue- meninges/paul-claval/.

KLIMOVSKY, G. Las desventuras del conocimiento científico. Una introducción a la


epistemología. Buenos Aires: A-Z Editorial, 1997.

SAUTU, R. Todo es teoría: objetivos y métodos de investigación. Buenos Aires: Lumiere.


YUPANQUI, A. (2017) “Un Rio Que No Cesa De Cantar” [documental]. Disponible en: https://
www.youtube.com/watch?v=P2NVj_G2GGY.

9
APRESENTAÇÃO

Eduardo Galeano (2017) entendeu a América Latina como a região das veias abertas, por
se tratar de uma parte do mundo em que tudo virou capital. No passado, capital Europeu. No
presente, capital Americano... Chinês. Para Galeano, perdemos, mas outros ganharam – e, até onde
conseguimos saber, continuam ganhando. Perdemos os frutos da terra, suas riquezas e minerais,
perdemos os homens e sua capacidade de trabalho e mesmo de pensamento. Perdemos, enfim,
recursos naturais e humanos fundamentais. A Geografia, aliás, como ciência, em princípio e,
sobretudo, de Estado, foi de grande valia na elaboração da narrativa civilizatória que pilhou tantas
riquezas. Mas o que nos reserva o futuro? Difícil uma resposta, mas nos concentrarmos nos caminhos
deste livro talvez nos ajude a pensá-la.
Por um lado, pelo caminho do patrimônio, identidade e memória parecem tecer um
pensamento primordial, uma geografia em ato (DARDEL, 2011), especialmente quando o patrimônio
é entendido para além de sua institucionalidade. Institucionalidade, diga-se de passagem, herdeira
dos parâmetros e ditames europeus. Um patrimônio que se sobrepõe às regras do Estado caminha
em direção a tombamentos afetivos, apropriações autênticas, prenhes de significados, próximos ao
cotidiano e ao anseio do povo (ARAGÃO e CAVALCANTE, 2020). Não é isso, essa maneira de
apropriação do espaço, que podemos esperar dos carnavais, malandros e heróis latino-americanos,
para usarmos uma expressão de Roberto DaMatta (1979)? São festas, práticas religiosas e mesmo
modos de lidar com a diversidade dos nossos alimentos, dos nossos modos de comer e beber, que
permeiam e caracterizam a nossa geografia continental. Geografia que extrapola a imagem do mundo
ocidentalizada, tão habitual à globalização pasteurizada encarada por todos nós.
Por outro lado, os caminhos da arte, de uma arte também geográfica – pois o espaço a atravessa
e a transborda –, colocam em relevo expressões humanas e criativas de lugares diversos, compondo
paisagens singulares. Não é a paisagem uma forma de nos apresentarmos? De dizer a que viemos?
E mais que isso, de nos situarmos em um mundo dito nosso? Evidentemente, uma geografia da
arte precisa desver o mundo para sair do habitual, desformar o mundo para repará-lo com outros
olhos, como nos ensina o poeta pantaneiro Manoel de Barros (2015). Uma arte entendida como
extravasamento do nosso ser-estar-no-mundo implica essa (re)criação constante da vida; ritual
técnico-estético expresso em grafites, fotografias, obras literárias, expressões musicais e imagens
fílmicas, entre tantas outras criações humanas.
Tudo isso para dizer-lhes que os caminhos deste livro, entre patrimônios e artes latino-
americanas, perscrutam muito das discussões de(s)coloniais tão evidentes nas epistemologias atuais,
porque conformam uma geografia próxima dos anseios das gentes e das penúrias da terra. Voltar-
se para dentro do continente, depois de por tanto tempo olhar para um suposto Éden à Leste,

10
é desafiar-se também ontologicamente e (re)conhecer espacialidades e geograficidades íntimas,
geografias pessoais, de modo a construir outras imagens do mundo, imagens mais diversas, plurais.
Mas antes de todas essas discussões, podemos nos lembrar de John K. Wright (2014), que
já na metade do século XX nos incitava que, mesmo diante de um planeta já totalmente mapeado,
vasculhássemos pelas geografias do dia a dia, aquelas não aparentes no mapa, aquelas que rasuram
a ideia moderna de ciência, porque presentes nas mentes e corações das pessoas... as geografias
incógnitas da América Latina.
Cabe ao leitor, instigado pelas leituras deste livro, aceitar o desafio de trilhar os caminhos aqui
desbravados elaborando novos mapas.

Prof. Dr. Tiago Vieira Cavalcante


Universidade Federal do Ceará - UFC

Referências

ARAGÃO, R. F.; CAVALCANTE, T. V. Patrimônio cultural religioso na cidade de Juazeiro do


Norte - Ceará - Brasil e a tese de tombamento afetivo em geografia. GEO UERJ, v. 1, 2020.

BARROS, M. de. Menino do mato. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro.
Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

GALEANO, E. As veias abertas da América Latina. Trad. Sérgio Franco. Porto Alegre, RS:
L&PM, 2017.

WRIGHT, John K. Terrae incognitae: o lugar da imaginação na Geografia. Geograficidade,


Niterói, v. 4, n. 2, p. 4-18, 2014.

11
PARTE 1

ARTE-PATRIMÔNIO EM
SABERES EDUCACIONAIS
AFETOS DO GRAFFITI: CÓDIGOS DE TERRITORIALIZAÇÃO DO URBANO EM
SOBRAL/CE

Vicente de Paulo Sousa


vicentypsousa@hotmail.com
Nilson Almino de Freitas
nilsonalmino@hotmail.com

Considerações Iniciais

Esse trabalho faz parte da pesquisa com o mesmo título, que aborda o trajeto dos artistas do
graffiti pela cidade, cuja territorialização dos espaços se dá através da impressão de suas marcas nos
espaços públicos e privados da cidade1. Essa arte tem expressão em Sobral, cidade localizada no
interior do estado brasileiro do Ceará, assim como na maior parte dos núcleos urbanos do mundo
todo. Andando pela cidade é possível ver diversas manifestações expostas em muros, fachadas,
pontes, metrô etc. Desde fevereiro de 2021, já vínhamos registrando em fotografia algumas das
obras expostas pelos muros da cidade, acompanhados dos artistas. Mesmo antes disso, na dissertação
de mestrado de um dos articulistas e nas atividades de produção compartilhadas de trabalhos em
fotografia e audiovisual produzidos pelo Laboratório das Memórias e das Práticas Cotidianas -
LABOME, da Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA, em companhia de alguns coletivos de
jovens que atuam no campo da promoção da cultura Hip Hop e da poesia Slam na cidade de Sobral,
tivemos a oportunidade de conhecer a trajetória de alguns artistas locais do graffiti2.
Hoje, é possível perceber o graffiti dialogando com outras linguagens dentro de uma mesma
paisagem, cujos espaços são de grande circulação pela população e de cuidados por parte do poder
público. A olhos mais atentos, é notório ver também a especificidade de traços dos artistas, além de
suas assinaturas (tags) nos muros e outros equipamentos públicos.
De alguma forma, estamos o tempo todo sendo apresentados a formas de comunicações
que nos desafiam a ler o mundo ou, pelo menos, nosso contexto social mais específico através de
linguagens, signos, códigos, rabiscos, desenhos, fotografias etc., que sinalizam dinâmicas textuais e

1 O referido projeto é conduzido por Vicente de Paulo Sousa e foi aprovado no Programa de Pós-graduação em Antropologia
da UFRN no final de 2021.
2 O Laboratório das Memórias e das Práticas Cotidianas (LABOME) é um arquivo público de documentos orais e visuais, de
apoio à investigação científica, vinculado ao Curso de Ciências Sociais do Centro de Ciências Humanas (CCH) da Universidade
Estadual Vale do Acaraú (UVA). As produções do LABOME podem ser acessadas através do link: https://linkin.bio/labome_uva.
A dissertação mencionada é de Vicente de Paulo Sousa e pode ser acessada no link: http://www.uvanet.br/mag/documentos/dis-
sertacao_3e480e92d6817114f0b0b38dc52bbf98.pdf.

13
culturais que nos afetam diretamente. O afeto deve ser entendido como uma agência provocativa
que pode tirar o indivíduo de sua zona de conforto e promover uma transformação no seu modo
de pensar e agir. Contudo, não tem relação somente com a emoção e o sentimento. É um devir,
como diria Deleuze (1997), atravessando e desordenando qualquer forma de definição rígida de
uma identificação substantiva e estável do desejo e da agência individual. No contato com a arte,
as pessoas se afetam de diversas formas, com forças e potências distintas, gerando reações diversas.
Este capítulo mostra a impressão das marcas dos artistas do graffiti a partir de fotografias e a
relação dessa arte com os lugares como forma de territorialização artística nos espaços públicos da
cidade, bem como seus afetos. Entendemos o conceito de lugar influenciados por Certeau (2007), que
o define do ponto de vista do usuário, como um desejo de identificação de propriedades específicas
ao espaço praticado. No caso aqui exposto, vamos entender o usuário por meio das fotografias de
suas artes, o que tem implicações metodológicas que vamos discutir posteriormente neste trabalho.
Para nós, essa definição complementa questões sobre territorialização aqui em debate, tendo como
foco a imagem fotográfica como agente e a arte como forma de comunicação dessa territorialização,
em busca do desejo de identificação de propriedade para o lugar onde a arte foi elaborada.

Graffiti: notas bibliográficas

O graffiti vem do italiano graffiare, cujo significado está atrelado a riscar, “é a denominação
dada às inscrições feitas em paredes desde o império romano”, designa, também, “marca ou inscrição
feita num muro/parede” (OLIVEIRA CAMPOS, 2009, p. 16).
Existe uma diferença entre graffiti e pichação. Para Gitahy (1999) as duas técnicas utilizam
o mesmo suporte para suas expressões, a cidade: “uma das diferenças entre o graffiti e a pichação
é que o primeiro advém das artes plásticas e o segundo da escrita, ou seja, o graffiti privilegia a
imagem; a pichação, a palavra e/ou a letra.” (GITAHY, 1999, p. 19). Ainda assim, Lassala (2010)
chama atenção da diferença existente entre pichação e pixo. A primeira seria uma expressão mais
genérica para a manifestação escrita nos muros, incluindo protestos políticos e declarações diversas.
O pixo é também pichação, mas utiliza uma gramática própria, fazendo questão de estar no lugar da
transgressão. Quer marcar sua assinatura no campo da subversão e é perfeitamente compreensível
dentre os seus pares que dominam sua codificação.
No caso do graffiti, há uma diversidade de estampas visuais espalhadas por toda a cidade de
Sobral, com uma variação espacial bastante diversificada. Em alguns locais, é possível perceber artes
que retratam personalidades memoráveis contribuindo com a paisagem. Em outros, a transgressão
e a crítica social prevalecem.
Por outro lado, vemos também a diversidade de estilos do graffiti nos locais mais inusitados,
até mesmo em locais onde o trânsito é pouco frequente, como imóveis abandonados, ruínas, pilastras
14
de pontes etc. Esse modelo está mais conectado aos estilos mais livres, que são mobilizados pelos
próprios artistas, que se sentem mais independentes para expor seus desejos através dessa arte, tais
como o Free Style10, Wild Style11 etc.
Assim como os outros objetos da arquitetura citadina, essas linguagens também fazem
parte da paisagem. Oliveira Campos (2009) pontua que “é esta cidade contemporânea, saturada
de significados e polifónica, que abriga o graffiti como elemento indissociável do seu cenário.”
(OLIVEIRA CAMPOS, 2009, p. 15).

O graffiti na paisagem urbana de Sobral: afetos, posicionamentos e trajetos territoriais

Sack (1986) declara que a territorialidade “é uma estratégia humana para afetar, influenciar
e controlar” (SACK, 1986, p. 3), ou seja, é uma espécie de marca pessoal ou grupal que remete às
suas práticas, códigos, linguagens etc. No caso do graffiti, alguns espaços são territorializados pelos
artistas, que deixam, através de sua arte, marcas, assinaturas e códigos próprios de sua personalidade
e visões de mundo, imprimindo, portanto, territorialidades visuais que também passam a definir
um lugar pautado em seus desejos.
As territorialidades são construídas no contexto da atuação dos agentes com um lugar
específico. Fixar um pensamento e agir sobre um lugar desejado e disputar com outros desejos,
são formas de territorializá-lo, dando-lhe uma faceta que agrega, além de outras variáveis, uma
identidade, um modo particular de existir, definindo-o, portanto, como lugar geográfico.
O território como espaço vivido, movimento, tensão e enquanto defesa de uma identificação
para com um lugar, não acarreta somente uma dimensão geográfica específica, mas incute nas relações
sociais e simbólicas, assim como nas agências artísticas da cidade. O território é uma construção e
ação, o lugar é desejo, percepção e apropriação simbólica, marcado, sobretudo, por agenciamentos,
ações sociais elaboradas visando uma finalidade. É, no caso do graffiti, também, resistência.
Resistência que teria três sentidos, como nos estimula a pensar Krenak (2019). O primeiro (1)
seria o sentido da busca pela autonomia, sem dependência. O segundo (2), o sentido da subjetivação
da experiência, ressaltando o respeito a sua diferença enquanto agente social. O terceiro, o sentido
de luta por uma humanidade em que a diversidade e a tolerância sejam o foco de sua construção.
No final das contas, a resistência é contra a proposta de uma humanidade homogênea, padronizada,
intolerante à diversidade cultural e social.
Sobral é uma cidade média que tem fluxos de migração que fazem com que as manifestações
culturais sejam diversas e, em muitos casos, entram em conflito na definição do que é próprio aos
diferentes lugares da cidade, provocando resistências que o graffiti expõe em seus muros. Ao olhar
mais atento é possível perceber pelas tags e crews uma diversidade de artistas que assinam obras em
15
todos os cantos da cidade. Desse modo, os artistas agenciam territorializações que deixam sinais
de seus trânsitos pela cidade; e não só isso. Eles deixam também suas impressões sobre questões
sociais de seu tempo, mensagens de rebeldia e paz, e definição de lugares. Parecem ecos de mentes
inquietas, expressões de sujeitos que acionam essa arte para manifestar seus afetos. Por outro lado,
resistem a manifestações de rejeição por parte dos moradores. Existem tensões nos seus esforços de
territorialização do lugar. Marcar o território não é resultado de um consenso social.
Como forma de territorialização na busca de definição de lugares, a arte e os artistas parecem
querer ser vistos por toda a cidade, ser all city, ou seja, “ser all city significa, como o título indica, estar
presente e ser reconhecido por toda a cidade” (OLIVEIRA CAMPOS, 2009, p. 40).
Por isso, os artistas ão querem fazer sua arte em espaços internos ou fechados. O que querem
é ocupar as ruas a partir da expressão em muros e fachadas de prédios. É nesses espaços que eles
expressam seus sentimentos, sejam eles de crítica, afetos e/ou também de divulgação artística.

Os afetos na arte do graffiti

As imagens, sejam elas os desenhos grafitados, sejam as fotografias – e isso de forma mais
geral – nunca estão desvinculadas de interesses e questões mais amplas. Elas comunicam, são uma
linguagem clara e eficaz no compartilhamento de visões de mundo, opiniões, sentimentos e afetos.
São, de algum modo, resistência, como já dito.
Samain (2012) acredita que toda imagem provoca questionamentos, sendo que a própria
imagem “é portadora de um pensamento, isto é, veicula pensamentos.” (SAMAIN, 2012, p. 22).
É justamente isso que exploramos no trajeto deste capítulo: o que as imagens do graffiti pensam?
Nosso contato com essas fotos das artes pelas ruas suscitou diversas inquietações sobre o porquê
dessas artes em lugares específicos.
As imagens a seguir nos ajudaram a pensar essa relação de afeto e territorialização entre graffiti
e o lugar, e/ou outras situações dos artistas com as realidades de nosso tempo.
Dito isso, queremos dizer que as impressões remetidas pela imagem são frutos de nossa
percepção e leitura sobre as obras mostradas, tendo como fio condutor a arte, o lugar e o contexto
histórico e social atual, dado que elas também nos afetam.

16
Figura 1 – Heróis da ficção saudando os heróis que nunca deixaram de trabalhar na pandemia de covid 19

Fonte: Vicente Sousa. Acervo: Laboratório das Memórias e das Práticas Cotidianas – LABOME.

Contextualizando essa arte com o lugar, cabe ressaltar que ela está situada numa parte central
da cidade, bem ao lado do hospital de campanha montado para receber as pessoas infectadas por
covid 19. É o Hospital Dr. Francisco Alves. O cone de sinalização que aparece no canto inferior
direito está justamente na calçada do referido hospital para estabelecer uma espécie de limite entre o
trânsito das pessoas e as imediações do equipamento de saúde, com o objetivo de distanciar e evitar
os transeuntes de possíveis contaminações.
O artista responsável pela obra é Tiaguim Tavares, e a arte exposta no muro nos faz perceber
valores afetivos para com trabalhadores que, assim como os profissionais de saúde, não pararam suas
atividades durante o período da pandemia de covid 19; e que, ao contrário de outros profissionais,
quase não são mencionados e homenageados como trabalhadores essenciais para que nós pudéssemos
ficar em casa sem outras preocupações.
Aqui, o artista inverte os papéis, torna os verdadeiros heróis, os da vida real, dignos de reverência
por homens e mulheres com supostos [super] poderes inventados pela ficção. São trabalhadores
homenageados na imagem: a mulher gari, o entregador de delivery, o vigilante, o guarda de trânsito
e os profissionais da saúde que não tiveram a escolha de ficar em casa se resguardando da, por vezes
letal, possível contaminação.

17
Entendemos que não foi casualidade do artista escolher essa arte, nem tampouco a escolha do
lugar, ao lado do hospital, como se quisesse, além de homenagear esses profissionais, os afetarem
cada vez que passarem por ali, ou mesmo olharem lá do hospital para esse lado da rua e se sentirem
motivados com a homenagem do artista.
Nesse sentido, as vezes nos deparamos com imagens e frases que parecem contestar o sistema
e suas engrenagens. Percebemos isso de forma mais pontual nos espaços da periferia da cidade de
Sobral. Mas pontuamos também a presença de agenciamentos nesses lugares através da arte, como
forma de consciência de classe, querendo contribuir tanto com o embelezamento dos espaços mais
esquecidos pelo poder público nos quais residem, bem como a crítica aos mecanismos de poder
hegemônicos.
A imagem seguinte nos faz refletir sobre essa consciência e manifestação dos artistas enquanto
sujeitos e atores sociais que, através da arte, engajam-se e elaboram opiniões sobre questões sociais
e políticas que lhes afetam diretamente.

Figura 2 – Arte feita pela Amantes da Arte Proibida-AAP Crew num beco do bairro Pedrinhas

Fonte: Vicente Sousa. Acervo: Laboratório das Memórias e das Práticas Cotidianas – LABOME.

18
Essa arte, localizada em um beco de bairro que abriga moradores pobres da cidade, traz uma
frase que elucida uma crítica a uma versão corrente de que ali seria um lugar propício à violência.
Admite que existe o “fuzil”, mas que a violência maior acontece por aqueles que controlam o estado.
“Fé em Deus” que, de acordo ao contexto, significa amor, o que parece ser um desejo implícito. É
como se quisessem dizer que periferia não é só violência, é arte, é amor, é, também, beleza. Esse
beco bem estreito tem os dois lados das paredes grafitados, com uma mistura de cores, letras e
figuras que dão um contraste magnífico ao lugar.
Outra percepção que salta aos olhos nessa arte é o rosto da pessoa negra. Os negros dos bairros
periféricos e pobres do Brasil são os que mais têm suas vidas ceifadas pelo braço violento do Estado
através de sua necropolítica. É comum aparecerem notícias nos veículos midiáticos e nas falas dos
moradores da cidade a associação entre periferia e violência. A pobreza e a fome são acompanhadas
pela violência, ao menos é essa associação que é feita por muitos. De fato, isso existe. Entretanto,
há uma imagem que é causada por um efeito espiral espetacularizado em notícias (MACHADO,
2004), formadas por alguns grupos de pressão que criam versões dos fatos que são agenciados pelo
que se convencionou chamar de “opinião pública”, criando um pânico moral que é reproduzido
no cotidiano da cidade, fazendo com que a periferia, onde a maior parte da população negra mora,
seja vista como lugar da degradação humana. A resistência, a resiliência, a solidariedade, também
presentes nesses lugares, não são lembrados na lógica da criação do pânico moral.
Esse tipo de imagem que faz relação direta entre violência, periferia e população negra,
repercute nos instrumentos de políticas públicas de segurança e assistência, justificando ações
também violentas por parte do estado contra a periferia. A ideia é de que aqueles que “não são
controlados” ou controláveis, merecedores de atos violentos, simbólicos ou físicos sobre seus
corpos. É a isso que Mbembe (2018) chama de necropolítica.
Essa arte no muro, pelo contrário, faz-nos lembrar disso que é esquecido: resistência,
resiliência e solidariedade, além de um vínculo com o amor divino. Valoriza também o rosto negro
que critica o estado violento. A assinatura, resquício do estilo do pixo, ajuda a fortalecer a imagem de
transgressão, já que é uma escrita que se propõe promover a resistência contra um sistema opressor.
Aqui, os artistas também nos dão boas-vindas ao bairro como forma de quebrar o pânico que
algumas pessoas ainda têm em frequentar o lugar. Pela frase impressa, é como se dissessem para as
pessoas que o inimigo não é o pobre da periferia. Na periferia tem o fuzil, mas o medo maior que
devemos ter é do próprio poder instituído, que tem o status da legalidade para eliminar os corpos,
especialmente os corpos negros.
Interessa declarar que, para a obtenção dessa fotografia, tivemos a colaboração de um dos
artistas pertencentes à AAP Crew, Alex Snoop, que gentilmente nos levou até esse local para nos

19
apresentar essa arte. De algum modo ficamos na reflexão do porquê da escolha do artista em nos
mostrar a arte desse lugar, já que ele mora nesse bairro e foi um dos artistas responsáveis por essa e
outras que estão naquelas paredes. São reflexões que, na perspectiva do artista, certamente importam
para o entendimento do fazer artístico, dado que é uma forma de expressão sobre a indignação de
como seu lugar é tratado.

Figura 3 – Graffitis na Margem Direita do Rio Acaraú, bairro Dom Expedito

Fonte: Vicente Sousa. Acervo: Laboratório das Memórias e das Práticas Cotidianas – LABOME.

Outro exemplo do graffiti e a relação de afeto dos artistas com o lugar está no mural da Figura
3. Para situar-nos geograficamente, os desenhos estão do lado direito do Rio Acaraú. Essa parte em
Sobral é conhecida como Margem Direita, e está no bairro Dom Expedito, periferia da cidade.
Nessa margem do rio é muito comum ver lavadeiras, canoeiros, pescadores e até mesmo
pessoas tomando banho. Percebe-se que a relação das pessoas com o rio é intensa. O lugar faz parte
não só da paisagem, mas há, acima de tudo, afecções, sentimentos de pertencimento; é como se o
rio o e os moradores dali estivessem numa ligação intrínseca, essencial.
Ao visualizar as imagens feitas nesse mural, logo captamos a relação do morador com o rio, e
o sentimento de pertencimento e/ou formas de perceber a cidade na visão dos próprios artistas que
fizeram as artes.
20
Dito isso, pontuamos que, apreciando o extenso mural, é impossível não notar que ali estão
retratadas as relações que os moradores, especialmente aqueles ao lado do rio e do bairro, têm com
o lugar. São imagens das lavadeiras, de pescadores com suas redes, de peixes, aves que habitam por
ali, mulheres com lata d’água na cabeça, o canoeiro, mulheres banhando crianças, e até as imagens
da vegetação que lembram às plantas aquáticas.

Figura 4 – Arte: canoeiro, homem com peixes, lavadeiras, etc.

Fonte: Vicente Sousa. Acervo: Laboratório das Memórias e das Práticas Cotidianas – LABOME.

Não muito diferente desse mural da Margem Direita, percebemos, também, na Margem
Esquerda, no bairro Pedrinhas, que os artistas também seguiram a mesma conotação afetiva com
o Rio Acaraú. Nessa parte da Margem, chamada de Parque Aurélio Pontes, cujo processo de
urbanização foi concluído em 2020, outro extenso mural expõe diversas artes feitas como parte
dessa ação de embelezamento do lugar.
Com aproximadamente 600 metros de extensão, essa parte da orla do rio recebeu toda uma
estrutura de iluminação de led, quadra poliesportiva, playground, paisagismo e academia, além de
uma via de circulação em piso intertravado.
21
Desse lado do rio, assim como na Margem Direita, no bairro Dom Expedito, os artistas
imprimiram suas artes em diálogo afetivo mais uma vez com o Rio Acaraú, pois as imagens ali
estampadas retratam e lembram seres que habitam o rio, a vegetação aquática, atividades humanas
que são intrínsecas das pessoas que ali moram, desde o passeio público até ações cotidianas nas águas
do rio.

Figura 5 – Arte: “EFEITOS DE AFETO”

Fonte: Vicente Sousa. Acervo: Laboratório das Memórias e das Práticas Cotidianas – LABOME.

Essa imagem da Figura 5 faz parte do mesmo conjunto entre as margens do rio. Mas, antes
de comentar diretamente sobre ela, gostaríamos de chamar atenção para um aspecto. Uma questão
importante a ser considerada nessa viagem pelo graffiti, especialmente por esses que mostramos
aqui, é que existem influências externas aos desejos e agências dos artistas que acabam afetando
sua produção. Existe, nos termos de alguns artistas, uma distinção entre o “trampo comercial” e
o trabalho “vandal”. Essa distinção caracteriza a ambiguidade dessa arte. O primeiro se refere aos
contratos firmados com agentes financiadores, já seja o estado, já seja a iniciativa privada. Os artistas
precisam se manter financeiramente e acabam, por isso, submetendo-se aos crivos dos desejos
estéticos e ideológico dos contratantes. Por outro lado, a arte “vandal” é onde a liberdade criativa do
artista está mais subordinada aos seus desejos, entretanto, sem abandonar complementa a ideia de
que, com o “vandal”, pode divulgar sua arte e facilitar outros contratos.
22
No caso da Figura 2, por exemplo, a faceta contestatória da expressão artística teve mais
liberdade de ser mostrada, justamente porque, apesar de ter pedido autorização do dono do terreno
para desenhar no muro, o artista não precisou condicionar sua prática a uma “encomenda” que
baliza a estética de sua arte. No caso do conjunto mostrado entre as margens do rio, trata-se de
um “trampo comercial” que se inseriu a um certo controle do contratante, no caso, a Prefeitura de
Sobral, que, direta ou indiretamente, fez com que as transgressões e contestações ficassem mais
implícitas nessa obra. Quando a imagem frisa a expressão “efeitos de afeto” devemos entender que
nela está contida essa relação de contrato, apesar de não ser uma via de mão única de imposição
radical em que o contratado não tem controle sobre os desejos de como fazer sua arte. Assim, a
elaboração da arte “vandal” não está totalmente desvinculada da lógica comercial da arte, já que
encontramos alguns artistas que, sem o “rolé vandal”, não ficam conhecido e, com isso, acabam não
obtendo contratos.
De qualquer forma, o afeto não é uma via de mão única. O efeito do afeto não é controlável
completamente por nenhum dos membros envolvidos na relação. Ele promove sinergias que se
espalham rizomaticamente e ganham caminhos diversos. O peixe de madeira é uma das “rodas”
de uma bicicleta, que tem um hélice na outra extremidade. Esta é controlada por um ser híbrido
que busca seu caminho no azul das águas, entre as flores e plantas. O rio Acaraú, sobre o qual as
diferentes artes expostas nas suas margens referenciam, não parece ser o rio de fato, já que as artes
estão situadas em trechos que forma um lago perene artificial, criado por uma barragem que fica
situada na parte de baixo de uma das pontes que dá acesso ao centro da cidade de Sobral. O lago
tem fama de ser poluído e, em conversa com alguns pescadores e lavadeiras, é comum a reclamação
de quanto suas atividades foram prejudicadas em função da poluição. Mesmo assim, é a imagem
de canoeiros, lavadeiras, pescadores, plantas e animais que são ressaltadas pelos artistas, provocando
reflexões sobre questões ambientais presentes exatamente nesse trecho. Nesse caso, a contestação
não se perdeu. Pelo contrário, ganhou mais sutileza. É uma contestação que chama atenção para
problemas ambientais. A questão é: “como seria maravilhoso se o rio fosse limpo! Seres mágicos
apareceriam!”.

Considerações finais

Entendemos que fotografia não é mera ilustração de passagens culturais, muito menos pode
ser resumida à interpretação textual aqui apresentada. Estamos cientes de que ela “(...) pode trazer
(...) um novo horizonte, mais sensível, a partir do qual será inclusive possível a elaboração de um
discurso mais próximo de nossos universos de pesquisa” (NOVAES, 2021, p. 8). Para além de uma
combinação de resultados de tecnologias, a imagem fotográfica, de acordo com Samain (2012), não
23
é exatamente um sujeito, mas está para além de um objeto: “(...) ela é o lugar de um processo vivo,
ela participa de um sistema de pensamento. A imagem é pensante” (SAMAIN, 2012, p. 158). Assim,
a imagem também pensa, afeta e age no nosso corpo.
Portanto, pensar os códigos de territorialização do urbano a partir de imagens fotográficas
dessas artes do graffiti nos possibilitou, além de rever as artes grafitadas pela cidade, elaborar certas
reflexões sobre elas. Entretanto, as reflexãos não se esgotam neste texto. As imagens registradas,
de algum modo, estabeleceram conosco um diálogo, uma interação, aguçaram nossas percepções
e análises entre arte, afeto e lugar; é uma agência de territorialização. Portanto, não é uma
territorialização que parte somente do artista ou dos demais agentes individuais e institucionais
envolvidos em um processo que tem relação com as disputas pela definição de lugares. A própria
imagem tem a sua agência de construção de sentidos.
Os afetos envolvidos na territorialização são múltiplos, rizomáticos. O pesquisador não dá
conta de todos. Ele precisa fazer escolhas e se conformar com as interpretações contextuais que
remetem aos elementos que ele seleciona para análise. Nesse caso, cabe entender a pesquisa como
um processo contínuo e uma viagem constante pelo universo da imaginação criativa.

Referências

CAMPOS, Ricardo M. de O. All City: graffiti europeu como modo de comunicação e transgressão
no espaço urbano. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 52, n. 1, p. 11-46, 2009.

CERTEAU, Michael. A invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2007.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. 1995-1997. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Rio
de Janeiro: Editora 34, 1997.

GITAHY, Celso. O que é graffiti. São Paulo: Brasiliense, 1999. (Coleção Primeiros Passos).

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

LASSALA, Gustavo. Pichação não é Pixação. 1ª ed. São Paulo: Altamira, 2010.

MACHADO, Carla. Pânico moral: para uma revisão do conceito. Interacções. Santarém: Escola
Superior de Educação do Instituto Politécnico de Santarém, n. 7, p. 60-80, 2004.

MBEMBE, Achile. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São
Paulo: N-1 Edições, 2018.
24
NOVAES, Sylvia C. Por uma sensibilização do olhar: sobre a importância da fotografia na formação
do antropólogo. GIS-Gesto, Imagem e Som, São Paulo, v. 6. n. 1, p. 1-10, 2021.

SACK, Robert David. Territorialidade humana: sua teoria e história. Cambridge: Cambridge
University Press, 1986.

SAMAIN, Etienne. As peles da fotografia: fenômeno, memória/arquivo, desejo. Visualidades,


Goiânia v.10, n.1, p. 151-164, 2012.

SAMAN, Etienne. Como pensam as imagens. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.

25
CARNAVAL (PÓS)PANDÊMICO NA AMÉRICA DO SUL:
ESPAÇOS, TEMPOS E NOVAS VIRTUALIDADES

Christian Dennys Monteiro de Oliveira


cdennys@gmail.com
Emanuel da Costa Pereira
emanuel13556@hotmail.com
Raynara Ferreira da Silva
ferreiraraynara@alu.ufc.br

Introdução: Tinha uma Pandemia no Meio das Passarelas Carnavalescas...

A ideia aqui é fazer uma digressão, desviando-nos, em certo modo, da pesquisa que se
encontra em andamento sobre as Paisagens Patrimoniais das Urbes Carnavalesca, a qual trata do
mapeamento de cidades onde o carnaval se destaca como patrimônio cultural latino-americano.
Tais paisagens estão presentes no Brasil e países vizinho, com suas marcas alegóricas e teatrais (sejam
físicas ou narrativas), indicando a expressividade de uma herança cultural advinda do processo
colonial ibérico. Além disso, nas últimas décadas elas são promovidas como símbolo de identidade
local/nacional, conforme o peso político, a estratégia econômica e a representatividade internacional
de seus eventos. Boa parte deles, interrompidos ou readaptados às situações da Crise Sanitária da
Pandemia do vírus Sars-Cov2, que impuseram protocolos para conter o avanço da doença, de março
de 2020 em diante. Isso nos levou a considerar o período carnavalesco de 2021 como pós-pandêmico.
Gostaríamos aqui de fazer um voo panorâmico sobre o que ocorreu com as Urbes que vínhamos
estudando.

Os Elementos alegóricos trabalhados no Projeto das Urbes Carnavalescas (CNPq
Proc.305812/2019-0) lidam com campos simbólicos indispensáveis no desenho da identidade
cultural de um festival complexo como o Carnaval. São eles a ancestralidade (e seus vínculos
mítico-religiosos), a humorística (indicativa da sátira e do caos advindo do campo político-turístico)
e cibernética (força modernizante diretamente ligada à perspectiva midiático-científica). Todos
diretamente relacionados aos estudos da teoria geográfica dos vetores simbólicos e patrimoniais, que
vem sendo composta por Oliveira (2007; 2014) e outros pesquisadores do Laboratório de Estudos
Geoeducacionais e Espaços Simbólicos (LEGES/UFC).
Assim, foi possível iniciar um processo metodológico de caracterização das festividades
nos países do continente, coletando fatores representativos dessas três (3) alegorias. A intenção
vem sendo compilar os principais fatos documentados sobre os festejos, em estudos acadêmicos,
reportagens jornalísticas ou veiculações em sites e redes sociais. Uma quarta alegoria disruptiva,
26
a micareta experimental, poderia ser investigada em função da carnavalização de eventos externos
ao Carnaval. Mas, seu desenho depende de estratégias empíricas de consulta, o que demanda a
retomada do estudo em outros projetos mais localizados.
Tal processo foi significativamente alterado no ano de 2021, quando novas ondas da Pandemia
não permitiram as edições tradicionais dos eventos carnavalescos, embora criassem indicativos para
alternativas no interior ou à margem dos protocolos sanitários, o que apontou uma expectativa
otimista para a retomada das festividades em 2022. Dessa forma, o que será objeto de observação
em fase posterior do estudo principal, justamente porque passamos a compreender que tal “desvio”
das políticas sanitárias pode se incluir nos desafios para a 3ª alegoria em destaque: ou seja, as tecno-
invenções de se fazer Carnaval, demandando mais e mais estruturas do ciberespaço para realizá-lo.
A projeção metodológica do estudo visa a construção de representações sintéticas dos
Carnavais das Urbes (oferta patrimonial), junto aos seus principais centros de demanda turística,
o que passamos a veicular em mapas cognitivos, conforme estudos de Alexandra Okada (2008),
porém chamados pelo neologismo de ideomapas (mapa de ideias), capazes de mostrar demandas,
ofertas e relações esquemáticas entre estas cidades.
De que maneira as relações carnavalescas, de turismo e patrimônio, em países como Chile,
Peru, Colômbia, Uruguai, Bolívia... e Brasil, em 2021, podem ser consideradas? Formariam elas
paisagens patrimoniais de que natureza? Seus elementos de identidade cultural estariam sob ameaça
maior diante dos protocolos que impedem ou desestimulam aglomerações coletivas? Um conjunto
de questionamentos podem aflorar desta “tempestade de problemas”, que tornou as celebrações
de urbes como Recife, Oruro, San Juan de Pasto, Arica ou Montevidéu bens patrimoniais que
ameaçam a disseminação da Covid19. Por isso, parodiando o poema No meio do Caminho, de Carlos
Drummond de Andrade, desenvolvemos esta reflexão – um desvio contextualizado – em três (3)
partes: um segundo item trata dos fundamentos desta teatralidade carnavalesca latina que molda a
investigação na perspectiva vetorial da Geografia cultural.
Na sequência, trabalhamos as imagens alegóricas do patrimônio carnavalesco a partir das
metáforas teatrais do figurino visual do mascaramento; afinal, as máscaras da festa de momo foram
impedidas pelo contexto das máscaras dos protocolos sanitários – algo que implicou a permanente
acusação das folias (programadas ou clandestinas) como responsáveis pelo alto contágio, apesar dos
incentivos às edições virtuais dos festejos. E no 4º item, faremos um panorama de alguns eventos
que foram suspensos em 2021, incluindo tendências, conforme o caso, para as atualizações em
2022. Por fim, buscamos alguns indicativos, a título de conclusão, capazes de correlacionar, ainda
que em termos de questionamento, a falta dos eventos e o aumento das desigualdades socioculturais
nas localidades.

27
Teatralidade Carnavalesca Latina: Vetores simbólicos do mapeamento alegórico

O contexto da Pandemia em si é um largo problema. Porém, o estudo aqui observa paralelos


mais específicos da suspensão de práticas e evento do/no Ciclo Carnavalesco, que ocorreram entre
dezembro e fevereiro de 2021. Como reverter tal suspensão? O objetivo desta breve investigação
é, portanto, apresentar como se deu a adaptação dos festejos para as redes de transmissão online.
Também, perguntarmo-nos: quais dificuldades e desafios atravessam os Carnavais, Andinos
e Platinos, regionalmente falando, na expressão de sua patrimonialidade? E no caso do Brasil, é
possível articular tais experiências para as versões do evento em 2022 e nos anos subsequentes?
Considerando as consequências administrativas do prolongamento da Pandemia, frente ao
impacto da mais recente variante do Sars-CoV-2 (denominada de ômicron), torna-se mais lógico
responder as questões a partir da realidade brasileira. Todas as versões dos carnavais brasileiros foram
associadas ao intenso risco de proliferação dos contágios de Covid-19, impondo o impedimento
oficial da festa em todo o país, no início de 2021. E repetindo medidas semelhantes nas semanas
que antecedem o Carnaval de 2022, tanto para o carnaval de rua (blocos, associações, bandas etc.)
quanto para os desfiles e apresentações em ambientes controlados. Isso denota, nos dois casos, uma
leitura hegemônica dos Eventos Carnavalescos (organizados ou espontâneos) como um fenômeno
social “dispensável”; por isso, mesmo distante das políticas culturais, educacionais e econômicas,
direcionáveis à administração do patrimônio turístico, um fazer clandestino da festa vem sendo
mantido, dentro e fora do ciclo carnavalesco (meses de janeiro/fevereiro). Tais elementos nos levam
a refletir a força teatral e religiosa do Carnaval como espaço de experimentação de uma latinidade,
ainda pouco compreendida em suas potencialidades socioespaciais.
O Carnaval, nos países sulamericanos, multiplicou sua natureza ritual para favorecer a
construção de identidades nacionais ou regionais. Chamorro Perez (2020), tratando das festividades
andinas no norte do Chile, considera a festa como confluência dos ritos de fertilidade do mundo
agrário em sua resistência moderna e urbana. Em um debate mais voltado às tradições uruguaias,
embora bem correlacionado às heranças ibéricas, Vidart (2014) explora a densidade de mitologias
pagãs que remodelaram todos os cerceamentos cristãos e coloniais para prover as urbes carnavalescas,
como Montevidéu, de combinações alegóricas inventivas muito peculiares. Os jogos brincantes
dos Reinados de Momo, antecedendo o período quaresmal, fornecem ao tempo carnavalesco um
campo ilimitado de experiências de convivência em sociedades desiguais, escravistas, desejosas das
estruturas europeias modernas e amarradas por tradições oligárquicas e étnicas em um só tempo-
espaço.
As decodificações do espetáculo burlesco (grotesco e satírico), de inversões e reinvenções
alegóricas discutidas por Mikhail Bakhtin (1895-1975) em seu clássico A Cultura popular na

28
Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, encaminha-nos a uma lógica teatral
para inúmeros tipos de festas, que reconstituímos como carnavais contemporâneos do nosso
subcontinente. Tal lógica de um teatro alterno, multifacetado, inclusivo de formas, mas subordinado
aos cortes patrimoniais, não abandonou seu lastro de uma utopia tão cristã quanto pagã nos palcos-
templos que reúnem as artes poéticas, musicais, plásticas e performáticas. Essa reutilização do urbano-
ritual para os festejos de um Rei Momo (com suas cortes e loucuras) corresponde ao fortalecimento
da agregação do socioespacial (LATOUR, 2012) pela composição de tradições e expressões rituais,
cujo ponto de culminância é a paisagem patrimonial em suas densidades e significados coletivos
(ANDREOTTI, 2013).
Mas por que associar, neste evento tão artificialmente multifacetado, o predomínio analítico
da teatralidade devocional? A observação seletiva das urbes carnavalescas nos sugere uma ideia de
palco-plateia ritual, em que uma ontologia primitiva das cenas cotidianas abre espaço para um tempo
poético, como efervescência das artes burlescas. Seguimos aqui o raciocínio técnico-estrutural de
Patrice Pavis em Análise dos Espetáculos: teatro, mímica, dança-teatro, cinema (2008), a fim de pensar o
espetáculo como jogo vetorial de intencionalidades e as investigações filosóficas de Jorge Dubatti,
em O teatro dos Mortos: introdução a uma filosofia do teatro, 2016). Do primeiro, adotamos o temor
vetor para pensar a força das composições simbólicas que, em tensões polarizadas, impulsionam
os campos simbólicos mais representativos do passado (mítico-religioso), do presente (midiático-
científico) e do futuro (político-turístico) nas representações dos lugares e seus patrimônios.
Antes de tratar da correspondência alegórica que esta investigação tem despertado – mesmo
diante das interrupções sanitárias vigentes –, vale a pena fazer emergir a resposta sobre o porquê
do privilégio teatral na aproximação entre arte e patrimônio carnavalesco. Após relembrar que “a
palavra grega theatron denota a ideia de espaço-lugar, de territorialidade e por extensão de convívio e
reunião” (2016, p. 20), Jorge Dubatti (2016) nos permite conectar valores carnavalescos aos grandes
desafios das identidades sociais, como as representações da latinidade. Diz ele:

O teatro é um acontecimento que produz entes; e em seu acontecimento se relaciona ao


menos três sub acontecimentos: o convívio, a poiesis e a expectação. Em sua dinâmica complexa
o teatro produz, ao mesmo tempo, entes efêmeros, entre os quais o que estudaremos como
“corpo poético” [...] A teatralidade é anterior ao teatro e está presente em praticamente toda
a vida humana. Consiste na relação dos homens por meio de óticas políticas ou política do
olhar [...] para a filosofia do teatro, é apenas um uso possível da teatralidade. (DUBATTI,
2016, p. 42-44)

A associação geográfica entre os festejos carnavalescos e patrimônio urbano no espaço


latino encontra-se corporificada (poética e teatralmente) pelas alegorias da triangulação

29
ancestralidade⬄humorística⬄cibernética, que, nas folias continentais, representam os vetores simbólicos
no tempo devocional predominante da festa. A ancestralidade, como vetor do passado, convoca os
espíritos guardiões das origens rituais, que, de uma forma ou de outra, “compreendem” a invocação
de um período pré-quaresmal, onde tudo ou quase tudo é permitido. Na humorística, a força deste
espírito é corporificada de forma delirante, satírica, grotesca e caótica; a brincadeira assume o lugar
litúrgico com suas fantasias mágicas. O que na ancestralidade era respeito e temor, torna-se indicativo
de liberdade e humor incondicional. Mas o terceiro vértice dessa relação agrega um projeto cultural
de identidade e desenvolvimento técnico. Os carnavais encontram a alegoria cibernética mediante
os enquadramentos monumentais dos espetáculos. Sambódromos, circuitos de desfiles, trios
cenográficos, uma parafernália de palcos itinerantes cria a cibernética – quase hollywoodiana – do
Carnaval como experiência das telas. O Quadro 1 agrupa este conjunto de variações seguindo
conforme o estudo vetorial. Politicamente, faz uma expectação com limitados convívios e poética
duvidosa.

Quadro 1 – Vetores e Alegorias Carnavalescas destacadas


VETORES ALEGORIAS DA Características teatrais no Carnaval Situação diante da
SIMBÓLICOS TEMPORALIDADE Pandemia
Mítico-Religioso ANCESTRALIDADE Reconhecimento das entidades espirituais e Interrupção geral
(Tempo Passado) tradicionais, ligadas à proteção dos festejos com adiamentos e/ou
restrições
Midiático-Científico CIBERNÉTICA Grandes monumentos, praças e palcos para os Redução ao espaço
(Tempo Presente) desfiles, habitualmente ligados às estratégicas virtual
técnicas de controle
Político-Turístico HUMORÍSTICA Maior indicativo de envolvimento da/na Manutenção
(Tempo-Futuro) festividade como brincadeira, sátira e inversão clandestina em festas
dos valores sociais paralelas
Ético-Estético MICARETA Realização fora de época ou carnavalização de (demanda estudo)
(Tempo Exterior) EXPERIMENTAL eventos festivos
Fonte: Elaboração dos autores (2022).

Aqui, iniciamos uma leitura mais contextualizada do tempo de suspensões e/ou ruptura com
as tendências contemporâneas da festividade carnavalesca. Uma situação emergencial também
promoveu abalos nos carnavais andinos (da Colômbia, Peru, Bolívia, Equador e Chile) e platinos
(Uruguai, Argentina, Paraguai, além do Brasil). Seria então possível considerar, pelas demais
experiências do teatro carnavalesco sulamericano, que essa 3ª fonte de alegorias acumulou estruturas
on-line para liderar os futuros festejos?

Alegorias Patrimoniais na identidade festiva: bases da resistência

Iniciamos a discussão das alegorias patrimoniais como base em uma geografia do patrimônio e
cultura carnavalesca (OLIVEIRA, 2007), associando a lista de urbes latinas e platinas, sua correlação
30
às regionalidades sulamericanas e a questão da identidade étnica e nacional, que indiretamente
evoca a latinidade carnavalesca. Sempre lembrando que tal latinidade agrega heranças resultantes
das tensões culturais emergentes no período pós-colonial.

Figura 1 – Urbes Carnavalescas e suas regionalidades subcontinentais

Fonte: Elaboração dos autores (2022).

Os procedimentos utilizados para realizar o mapeamento cognitivo dos carnavais típicos da


América Latina foram baseados em fatores constituintes do estudo geográfico do patrimônio, que
dizem respeito às práticas e saberes da vida social, que são manifestados através da realização destas
celebrações e que interagem com o lugar, formando um panorama amplo passível de pesquisa. Tal
amplitude sintetizada na Figura 1, permitiu-nos registrar em 9 (nove) urbes carnavalescas – até
agosto de 2021 – o predomínio dos problemas da suspensão da festa passada e indefinição sobre a
próxima edição dos carnavais. Apesar de tudo isso, os elementos que caracterizam cada patrimônio
carnavalesco (essenciais no mapeamento alegórico das urbes), permanecem ativos, presencial ou
virtualmente, nas diferentes expressões teatrais da festa. Poéticas, plásticas, fantásticas, sonoras,
místicas, todas as artes formam um complexo motivacional da liturgia de cada evento, relacionando
culturalmente grupos de visitantes e visitados. Na visita do tempo-espaço carnavalesco, patrimônio
e turismo se entrelaçam.

31
Dentre os entrelaçamentos selecionados durante a observação e mapeamento destas
festividades, é importante ressaltar a noção de interação dos povos e grupos sociais para com a
natureza e sua historicidade. Reapropriando o lugar patrimonial, tais procedimentos formam
sentimentos de identidade regional/nacional (FONSECA, 2005) como marca coletiva em todos
os países estudados. O mapeamento conceitual dos carnavais latinos – em ideomapas radiais e
processuais, como exemplificaremos adiante (OKADA, 2008) – evidenciam uma força identitária,
cuja execução ou suspenção de suas celebrações redimensiona as heranças das civilizações andinas,
platinas e afrodescendentes.
Este valor da identidade é importante para a compreensão de processos que ocorrerem ao
longo do tempo e, em especial, durante os últimos dois anos, nos quais transcorreram situações
em que o processo tradicional da celebração é rompido por circunstâncias que impedem a sua
realização. Ora, quando a necessidade de conservação do patrimônio e a noção de identidade são
ameaçadas, o velho Entrudo, a forma colonial de agressiva brincadeira como carnaval esculachado
(FERREIRA, 2005), coloca-se como uma alternativa de resistência contra a falta de regulação por
parte do Estado. Esse processo é coincidente com a formação histórica das celebrações, que em
muitos casos era marginalizada, repudiada e monitorada pelas classes dominantes.
Conforme o exposto, o mapeamento necessita de aspectos lógicos que facilitem a pesquisa
e a construção do mapa de ideias, mesmo que não exista nenhum método pré-estabelecido para
realizar estas operações; afinal, cada localidade apresenta os seus fatores unitários e suas diferentes
formas de celebrar, haja vista os contextos históricos e geográficos da combinação simbólica
específica. Portanto, utiliza-se um mecanismo de compreensão integrada que funciona a partir de
uma relação fundamental na lógica de motivações geográficas e socioeconômicas das festividades
carnavalescas: a oferta patrimonial e a demanda turística. A lógica da demanda/oferta corresponde a
uma economia política da cultura, sem a qual não conseguimos operacionalizar a necessidade de
investimentos exponenciais no setor, nos próximos anos (BRAGA, 2017; SILVA, 2013). Tem sido
por essa correlação que cidades marcadamente carnavalescas podem contextualizar bens culturais,
na perspectiva dos seus principais demandantes: as capitais ou metrópoles nacionais. Aqueles centros
urbanos capazes de sintetizar os maiores desafios territoriais do país e, paradoxalmente, desassistir as
questões patrimoniais prementes da vida nacional. A seguir, tratemos das limitadas iniciativas para
se conviver com tal desassistência, considerando 4 (quatro) urbes carnavalescas acompanhadas em
suas decisões pelos canais de mídia e redes sociais.

32
Mapeando carnavais sulamericanos em 2021 em espaços virtuais

Para o presente estudo das interrupções das festividades em 2021 e seus desdobramentos
possíveis em 2022, direcionamos a observação para além das alegorias patrimoniais, procurando
registrar as reportagens que noticiaram debates, declarações de gestores e cobertura do período
festivo nas nove cidades mencionadas. Sendo que, no caso brasileiro, Recife e Olinda foram as
urbes para as quais voltamos maior atenção. Afinal, tínhamos recolhido imagens e depoimentos de
ambas na versão 2020 dos festejos de Momo, discutindo a perspectiva funcional desta proposta de
mapeamento para interpretar as fragilidades democráticas contemporâneas (OLIVEIRA; ARAÚJO;
FERREIRA, 2021).
Agora o acesso virtual passou a ser a fonte principal da memória, depoimentos e, mais
especificamente aqui, do recorte jornalístico na seleção dos exemplos tratados. Utilizaremos como
partida, inicialmente, os exemplos de San Juan de Pasto (Colômbia) e Oruro (Bolívia), pois suas
ofertas patrimoniais configuram inclusive importância internacional. Ambos os carnavais foram
protegidos na lista de Patrimônio Imaterial da Humanidade da UNESCO. Depois, na Região
Platina, polarizada pela demanda turística de Buenos Aires, vamos abordar informações sobre as
festividades de Gualeguaychú (Argentina) e Montevideo (Uruguai). A exemplo de outros países
andinos, Colômbia e Bolívia apresentam uma predominância mestiça graças as suas raízes indígenas,
ibéricas e africanas. Raízes estas que influenciam diretamente as celebrações religiosas e a teatralidade
das negociações carnavalescas.
O caso de San Juan de Pasto (província colombiana de Nariño) expressa uma originalidade,
contudo, é realizado na virada do ano, ainda no ciclo natalino. Seu “Carnaval de Negros y Blancos”
aprimora tradições pré-colombianas, apresentando rituais excêntricos que incluem o “Carnaval da
Água” – o lançamento de água nas casas e nas ruas para iniciar o clima festivo; o “Desfile do Ano
Velho”, figuras satíricas representando celebridades e sempre acompanhadas de músicas e danças
que remetem à cultura local. Já nos primeiros dias do ano novo, os dias de “Canto da Terra”, “Família
Castañeda”, “Negritos” (e suas manifestações de tolerância étnica) e “Desfile Magno” produzem seus
momentos mais apoteóticos. Não obstante, em 2020/2021 tudo foi afetado pelas políticas sanitárias;
já no ano seguinte, uma programação foi adaptada para lidar com as restrições protocolares1.
Em 2021, as oficinas coletivas de exibição e transmissão das artes carnavalescas e a grande
diversidade de visitantes tiveram que ser reconfiguradas. Foram estabelecidas limitações por decretos
governamentais com o objetivo de combater a transmissão do Covid-19, o que redirecionou a forma
de celebrar a festa. Com as interrupções, todos os eventos e atividades passaram a ser realizados
de forma online articulando organizadores (“Cuerpo Carnaval”) e apoiadores nas mídias sociais,

1 Vide site: https://carnavaldepasto.org/programate/.

33
mas os tradicionais desfiles continuaram sendo executados, mesmo que de forma restrita. Tal
cenário perdurou até 2022, conforme pode ser observado pela programação no Youtube, Facebook
e Instagram.
Em sintonia com o período mais convencional, o “Carnaval de Oruro” é a maior celebração
boliviana que remete aos tempos ancestrais, sendo declarada como Obra Mestra do Patrimônio da
Humanidade pela UNESCO (2008), sendo, entretanto, inteiramente cancelada em 2020. Com mais
de 200 dançarinos dos tradicionais grupos de dança populares da festividade falecidos vítimas da
Covid-19, o cenário que se tinha era de luto e desânimo. Considera-se refletir, contudo, que apesar
das tradicionais diabladas, danças históricas que representam as celebrações dos povos indígenas e
são acompanhadas de ritos sacramentais, com fantasias e máscaras. Elas fazem menção às entidades
diabólica das cerimônias devocionais à Virgem de Socavón (Candelária, em 2 de fevereiro). Diante
dos protocolos, em 2021, tais ritos foram adaptados ao ambiente virtual, mas devem retornar em
2022, justamente por pressões que ligam a cultura patrimonial com a economia local.2
Observando agora a América Platina, em Gualeguaychú (província de Entre Ríos) o maior
carnaval argentino, “Carnaval del País”, foi cancelado em 2021, por decisão unanime dos próprios
agrupamentos carnavalescos. Contudo, para 2022 toda programação vem sendo restabelecida nas
datas do ciclo carnavalesco, conforme o site oficial do evento 3 com apenas algumas trupes autorizadas
a desfilar. Algo muito similar ao que tem sido vivenciado nas tradições uruguaias, em Montevidéu,
entre 2021 e 2022.
No 1º ano, assembleias e grupos responsáveis buscaram alternativas, mas as celebrações foram
canceladas. Já para o ano seguinte, após o falecimento do ex-presidente do Uruguai, Tabaré Vazquez,
os organizadores e o governo da capital anunciaram (já realizam efetivamente) o retorno com 100%
da capacidade do evento, com limitados indicadores de protocolos sanitários compatíveis.4
Os casos de suspensão e retomada com planejamento duvidoso se multiplicam. Mas, para
destacar aqui como integram a oferta patrimonial com demanda turística, trazemos, no caso chileno,
Arica e Santiago. Os festejos de Arica são conhecidos como “Carnaval Con la Fuerza del Sol” e foram
convertidos em eventos online por duas edições seguidas5. A celebração é um evento que ocorre
há mais de 20 anos e demarca a grandiosidade construída em uma região de disputas seculares com
os países vizinhos (CHAMORRO PÉREZ, 2020). Nele, as performances apresentadas possuem
repertórios culturais como a música, a dança e o teatro, os quais são constituintes da memória
corporal, que simultaneamente vincula-se social e afetivamente às tradições folclóricas da sociedade
2 Acesso da reportagem através do link: https://eldeber.com.bo/escenas/confirman-realizacion-del-carnaval-de-
oruro-2022_258971.
3 Acesso para o site oficial do evento através do link: https://www.carnavaldelpais.com.ar/.
4 Acesso da reportagem através do link: https://montevideo.gub.uy/noticias/cultura/volvio-carnaval.
5 Vide: https://www.muniarica.cl/actividades/noticias/6809 https://www.aricaldia.cl/carnaval-con-la-fuerza-del-sol-2021-va-
-si-o-si-anuncian-que-evento-sera-realizado-online/.
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Aimará. Duas organizações – Federação Kimsa Suyu e Confraternidade de Bailes Andinos Inti
Chamampi – realizou inclusive um cerimonial – um Pawa – como oferenda e pedido de proteção
frente a falta do carnaval presencial nos dias 11, 12 e 13 de fevereiro 6. Tal fato indica uma oferta
patrimonial em dívida. Mas como fica a demanda turística neste caso?

Figura 2 – Ideomapa integrado dos carnavais chilenos

Fonte: elaboração dos autores – acervo LEGES (2021).

Considerando a frágil projeção do Chile como país de tradição carnavalesca, houve


oportunidade de observar a demanda turístico-cultural da capital, Santiago; assim como seus fatores
de rearranjos para visitas integradas aos festejos de Momo (Figura 2). Encontramos informações
sobre o “Carnaval Sin Fronteras”, evento que vinha ocorrendo na década de 2010 e pretendia se
tornar um marco de valorização do pluralismo cultural e inclusão de comunidades migrantes.
Uma discussão correlata foi formulada por Francisca Muñoz (2018) na constituição de referências
inclusivas variados tempos (ao longo do ano) e espaços (bairros diversos), e compromissos políticos
na democratização efetiva da cultura carnavalesca. Infelizmente, não foi possível obter informações
sobre as tentativas (se é que existiram) de adaptação dos desfiles no biênio 2021/2022 e seus vínculos
com as demais nacionalidades e etnias latinoamericanas. Isso favorece o reforço das ligações
processuais com Arica (Figura 2) e ampliam os desafios sobre as transformações patrimoniais em
um país que mais recentemente optou por eleger um governo progressista e reformular sua carta
constitucional.
6 Acesso da reportagem através do link https://www.muniarica.cl/actividades/noticias/7624.
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A Título de Conclusão: Menos Carnaval = Mais Segregação social!

Os casos andinos e platinos descritos anteriormente não só denotam o posicionamento


desigual das políticas culturais dos países sulamericanos, como também indicam a fragilidade
socioeconômica de cada região em operar questões patrimoniais no plano das prioridades nacionais.
A questão de saúde pública no arrefecimento da Pandemia de Covid19 orientou protocolos de
distanciamento social devido a uma trágica segunda onda de contágios, com elevada letalidade.
Este era um pano de fundo para mostrar, já em 2021, que as festas carnavalescas precisam – assim
como outras diversas manifestações culturais públicas – de alternativas, presenciais e remotas,
politicamente negociadas com as associações culturais. Não chegamos a investigar tal movimento
nos países vizinhos. Porém, o exemplo das lacunas do carnaval brasileiro nas urbes de Recife,
Salvador e Rio de Janeiro (para citar as grandes praças carnavalescas atlânticas) evidenciam uma
total incapacidade de gestão das festividades. Ensaios, preparativos, atividades em espaços públicos
ou privados mediante a proximidade dos dias de carnaval, são alvo constante dos discursos morais:
“sabemos que os carnavais requerem aglomerações sem qualquer necessidade para esse momento...
portanto melhor suspender ou cancelar”. Algo que não vale para nenhum outro setor da vida
econômica tão ou mais proporcionadora de aglomerações, incluindo práticas esportivas e de lazer
comunitário.
Como resultado, temos um processo de ampliação das segregações, que tornam as
manifestações culturais tidas como profanas, ou seja, algo a ser destinado aos espaços clandestinos da
ordem social. Dessa forma, em que medida tal clandestinidade, indiretamente imposta, corresponde
aos alargamentos das formas de segregação, empobrecimento e desemprego?
Seria necessário avaliar os carnavais latino-americanos em comparação ao desemprenho
econômico das urbes de demanda turística e oferta patrimonial para aferir a hipótese levantada
nesta questão. Afinal, existe em qualquer evento considerado clandestino – festejos à revelia das
autorizações e incentivos lícitos dos poderes públicos ou privados – um misto de abuso de poder
e necessidade de sobrevivência coletiva. E para quem acompanha a manutenção de reiterados
conformismos, na gestão das ciências humanas aplicadas, as festas carnavalescas sulamericanas
precisariam alcançar outro status de compromisso acadêmico com as sociedades. Não há qualquer
sentido em desamparar a necessidade patrimonial dos carnavais por ignorância sobre o complexo
laboratório ético, artístico e social que eles representam.
Por isso, enquanto programas de estudos de memória, amparo técnico, sistematização de
projetos e fomento às cadeias produtivas, ecológicas e associativas não emergerem nas universidades
e institutos de pesquisa, uma (pós)pandemia do patrimônio carnavalesco não se instaurará. A
mentalidade – fora raras ações por exceção – se mantem pré-pandêmica, pré-moderna, lotada de

36
pré-conceitos; e, consequentemente, distante dos sistemas educativos qualificados e dos centros de
debate político e midiático.
Isso nos leva a concluir, neste breve ensaio, que o carnaval latino-americano, em seus
espaços e tempos (pós) pandêmicos, não considera a seu favor as novas virtualidades encontradas
nas redes sociais e sistemas de orientação, gestão e transmissão cultural disponíveis. Tal fator o
mantém com a mesma e terrível lógica segregacionista dos países do futuro que o reinventaram na
contemporaneidade da questão patrimonial.

Referências

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BAKHTIN, M. A cultura popular na idade média e no renascimento: contexto de François


Rabelais. Trad. Yara Frateschi, 4ª ed. Brasília: EDUNB, 1999.

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sentidos. Revista Extraprensa, 14(1), 2020, p. 46-63. Disponível em: https://doi.org/10.11606/
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2016.

FERREIRA, F. Inventando Carnavais: o surgimento do Carnaval Carioca no Sec. XIX e outras


questões carnavalescas. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2005.

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e-impacto-del-movimiento-carnavalero-en-Santiago-de-Chile-actual-181112.pdf. Acesso em: 10
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37
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VIDART, D. Tiempo de Carnaval. Uruguay: Ediciones B., 2014.

38
EXPRESSÕES SONORO-ESPACIAIS RELACIONADAS ÀS COMUNIDADES DO
TAMBOR BRASILEIRAS

Alessandro Dozena
sandozena@gmail.com

Introdução

A diversidade cultural brasileira possibilita que consideremos as manifestações culturais


em suas complexidades, expressas territorialmente por diferentes modos de vida. Tais modos de
vida estruturam sonoridades a partir de suas dimensões regionais, que dialogam e se nutrem das
características identitárias presentes nas distintas formações sonoro-espaciais brasileiras, estando
intrinsecamente conectadas a elas pela estruturação de territórios musicais. Por sua vez, a riqueza
cultural brasileira se expressa de várias maneiras. Na musical, ela se revela vigorosa, a ponto de fazer
o país ser reconhecido mundialmente como um celeiro de compositores (as), intérpretes e grupos
musicais.
Outra importante evidência dessa robusteza é a transformação, nos últimos anos, de dimensões
musicais brasileiras em dimensões patrimoniais, registradas como Patrimônio Cultural do Brasil
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)1. As densas formações sonoro-
espaciais brasileiras2 trazem em seu bojo elementos oriundos das distintas matrizes étnico-raciais
brasileiras. Por isso, constatamos que o Brasil profundo e complexo ainda segue desconhecido,
inclusive por grande parcela dos pesquisadores (as).
Ao considerarmos a ideia das formações sonoro-espaciais brasileiras, dialogamos com a
noção de caleidoscópio, um artefato ótico que consiste em um pequeno tubo cilíndrico, no qual há
pequenos fragmentos coloridos de vidro ou de outro material, cuja imagem é refletida por espelhos
dispostos ao longo do tubo, de modo que, quando se movimenta o tubo ou esses pedaços, formam-
se imagens coloridas múltiplas, em arranjos simétricos (HOUAISS, 2001).
As manifestações culturais brasileiras, assim como o caleidoscópio, dispõem-se em um
ordenamento diferenciado, embora se entreliguem por elementos comuns. Usando essa metáfora,
temos que as manifestações que ocorrem em distintos contextos territoriais do Brasil compõem
os seus “vidros coloridos”, que podem apresentar, conforme o movimento dos processos sociais,
combinações múltiplas e articulações complexas. Assim sendo, diversos patrimônios culturais são
1 Sobre isso consultar: http://portal.iphan.gov.br/mg/noticias/detalhes/5283/levantamento-das-matrizes-tradicionais-do-forro.
Acesso em maio de 2021.
2 Embora a inspiração evidente para o uso do termo formação espacial provém da formulação de Milton Santos (1978), a
proposição de formação sonoro-espacial não se vincula a perspectiva de análise espacial no sentido do materialismo histórico e da
dialética marxista.

39
combinados e retrabalhados em um constante processo de incorporação e diálogo negociado em que
é possível visualizar a miscigenação e os regionalismos como meios pelos quais todos os processos
de comunicação se produzem.
O objetivo de nossa contribuição é apresentar essa diversidade de formações sonoro-
espaciais brasileiras3 pelo viés das comunidades do tambor4, para que possamos demonstrar que elas
transitam entre códigos de comunicação espaciais, que incluem rituais de rua, costumes, linguagens,
comportamentos, músicas, danças, gestos e comemorações coletivas.

Um panorama das comunidades do tambor brasileiras

Os tambores estão presentes em todas as grandes festas populares brasileiras, inserindo nesse
contexto o carnaval nas diferentes regiões do país ou mesmo outras manifestações festivas como
o Boi-Bumbá em partes do Nordeste e da região amazônica, a Congada no Sudeste, as Folias de
Reis no Sudeste e Nordeste, o Boi de Mamão no Sul, o Maracatu no Nordeste, as Cavalhadas no
Centro-Oeste, entre muitas outras manifestações festivas5.
Em todas elas, os tambores incorporam o jogo do real com o simbólico, fornecendo uma
característica profana ou sagrada aos mitos, transportando-os para outros espaços e tempos. No
Brasil, diversas heranças culturais são combinadas e retrabalhadas em um processo constante de
incorporação e diálogo negociado, no qual é possível visualizar miscigenações e regionalismos como
os meios pelos quais todos os processos de comunicação são realizados.

3 Intencionamos desenvolver essa noção em outro momento, em virtude da necessidade de maior extensão de páginas para
a sua formulação e abordagem complexa, sobretudo no que se refere à sua aplicação diante da multiplicidade de manifestações
culturais brasileiras.
4 A definição de comunidades do tambor foi cunhada pelo pesquisador Paulo Dias, ao defini-las como aquelas que “representam
distintas formas de expressão dos negros no Brasil surgidas em resposta às conjunções histórico-sociais peculiares em que
evoluíram as populações afrodescendentes. Não obstante suas especificidades, essas comunidades do tambor compartilham quase
sempre dos mesmos atores sociais e de um universo espiritual comum. E uma parte essencial desse universo comum é o ritmo,
um certo repertório de padrões rítmicos que se reproduz, em diferentes conjuntos instrumentais, através do imenso território
do Brasil e das Américas negras, criando laços simbólicos de parentesco com a África distante. Linhagens rítmicas que, mais
resistentes ao tempo que qualquer palavra ou canto, atualizam-se a todo instante pelas mãos que tocam e pelos pés que dançam”
(DIAS, 1999, p. 42).
5 Para maiores informações sobre essas manifestações culturais, consultar: http://portal.iphan.gov.br/

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Figura 1 – Expressões Sonoro-Espaciais relacionadas às Comunidades do Tambor no Brasil 6

Fonte: Elaborado por Alessandro Dozena e Matheus Soares Ferreira, 2021.

Essa diversidade de expressões sonoro-espaciais evidencia dimensões rítmicas plurais, sendo


que os indivíduos transitam entre códigos ritualizados de comunicação, que incluem rituais de
rua, danças, comportamentos pessoais e sociais, gestos e comemorações coletivas. A história dessas
expressões está diretamente vinculada aos batuques de terreiro, a exemplo do samba e sua presença
em todo território brasileiro. O samba estabeleceu historicamente identificações e configurou
hábitos culturais, ainda que seu modo de produção, circulação e consumo tenha sido muito alterado
até alcançar a sua configuração atual; quando este atinge a plenitude das possibilidades de apropriação
enquanto recurso comercial, narrativo e estético7.
Esmiuçando-se as expressões sonoro-espaciais relacionadas às comunidades do tambor

6 Aqui são elencadas algumas expressões mencionadas em nosso texto. Temos ciência de que existem muitas outras.
7 Sobre essa dimensão, sugerimos o documentário: Samba à Paulista: fragmentos de uma história esquecida (Filme-Vídeo). São Paulo:
Escola de Comunicação e Artes / Pró-Reitoria de Cultura e Extensão da Universidade de São Paulo, 2007. 3 partes. Igualmente,
o livro autoral: A geografia do samba na cidade de São Paulo. São Paulo, PoliSaber, 2011.

41
brasileiras em suas dimensões sagradas, é interessante notar que muitas delas se revelam nos traços
musicais dos candomblés, na medida em que:

Traços musicais peculiares aos candomblés Jêje-Nagô, como as escalas de cinco notas
(pentatônicas), permanecem praticamente restritos às casas de culto, enquanto o som dos
Candomblés Congo-Angola, junto com os batuques e cortejos de origem banto, participam
de um universo melódico e rítmico extra-religioso conhecido e reconhecível publicamente
por todo o Brasil, entre os quais se coloca o samba. (DIAS, 1999, p. 44).

Do mesmo modo, as expressões sonoro-espaciais rurais ganharam especificidades quando


inseridas no contexto urbano, acompanhando as alterações que sem distinção afetaram a cultura
afrobrasileira, entre elas, as atualizações nos ritmos e instrumentos utilizados nos rituais religiosos e/
ou festivos. Em todos estes eventos, os batuques de terreiro sempre tiveram uma função primordial:

Os batuques de terreiro hoje dançados por todo o Brasil têm suas raízes nos eventos com
dança e música que promoviam os escravos fixados na zona rural principalmente - fazendas,
engenhos, garimpos – mas também em algumas áreas urbanas, realizados nos poucos
momentos de lazer de que dispunham. Os batuques marcam a presença da cultura banto,
trazida pelos africanos vindos de Angola, do Congo e de Moçambique para diferentes
rincões do Brasil. São formas vivas dos Batuques o Carimbó paraense; o Tambor de Crioula
do Maranhão, o Zambê do Rio Grande do Norte e o Samba de Aboio sergipano. Em Minas,
celebra-se o Candombe8, no Vale do Paraíba paulista, mineiro e fluminense, o Jongo ou
Caxambú; na região de Tietê, em São Paulo, dança-se o Batuque de Umbigada, entre muitas
outras manifestações. Sem falar dos primos estrangeiros, como o Tambor de Yuca cubano,
ou o Bellé da Martinica, em tudo semelhantes aos nossos batuques. (DIAS, 1999, p. 43).

Cabe aqui precisar que, ainda atualmente, os batuques de terreiro ocupam uma posição
marginal na sociedade brasileira. Sabe-se que, neles, revela-se uma continuidade entre o caráter
sagrado e o profano, o que possibilita um trânsito entre ambos e a alteração dos papéis sociais
conforme os diferentes contextos sócioespaciais implicados:

Desde sempre condenados pela Igreja como permissivos e temidos pelos patrões como
perturbadores da ordem social, a maior parte dos batuques de terreiro mantêm-se marginais,
ainda nos dias de hoje, em relação à sociedade dominante, excetuando-se aqueles que
conseguem uma penetração no mundo do turismo e do espetáculo – é o caso do Tambor
de Crioula e do Carimbó. Com a vinda das populações negras para as cidades, essas danças
ancestrais passaram da roça às periferias urbanas. Conservando seu caráter intra-comunitário,
8 Esta manifestação cultural acontece em um remanescente quilombola na comunidade do Açude, na Serra do Cipó em Minas
Gerais. O ritmo é dado pelo instrumento tambu, que é afinado na fogueira antes do início das festas, que são realizadas princi-
palmente em louvor a Nossa Senhora dos Rosários. Acreditamos que um interessante estudo seria buscar elementos similares
presentes no Candombe brasileiro e no uruguaio. Para maiores detalhes, ver o documentário “Candombe do Açude: Arte, cultura
e fé”, dirigido por André Braga e Cardes Amâncio, 2004, 27 min.

42
ainda hoje se realizam à noite em terreiros pouco iluminados ou em barracões fora das
cidades. As fronteiras tênues entre o sagrado e o profano ainda caracterizam algumas dessas
rodas, assim como o segredo contido nos versos da cantoria desorientam os que vêm de fora.
(DIAS, 1999, p. 43).

Um caminho interessante de reflexão a respeito da marginalização dos batuques de terreiro,


estrutura-se em torno das manifestações culturais ritualísticas que se enquadram em um tempo de
não trabalho9. Nessa concepção, uma roda de samba, por exemplo, pode respeitar seu tempo, seu
calendário; não obedecendo, com isso, ao calendário oficial, e pode, por isso, dificultar uma possível
apropriação pela Indústria Cultural ou do Turismo.
Nesse contexto, um detalhamento revela que muitas cidades brasileiras se configuraram
historicamente como importantes epicentros da convergência de fragmentos da cultura
afrolatinoamericana, que até hoje emerge exemplarmente nas escolas de samba e nas rodas de samba
que acontecem com destaque nos bairros marginais. Esses fragmentos ganham significado através
do tambor, do corpo e da voz:

Assim, foram se agregando em mosaico as muitas memórias afetivamente conservadas.


De um lado, o terreiro: o ritmo dos tambores de mão, a cantoria improvisada dos velhos
batuques como o Caxambu carioca e o Samba-de-Roda baiano, a ritualidade dos cultos
como a Cabula e a Macumba, a malícia corporal dos jogos como a Pernada e a Capoeira. De
outro, a rua: os Cucumbis cariocas, os Ranchos de Reis baianos, os Maracatus nordestinos, as
Congadas mineiras, todas aquelas danças de cortejo características das festas deambulatórias
do Catolicismo Popular, trazendo porta-bandeiras, reis e sua corte, mascarados, baianas,
baterias de tambores portáteis percutidos com baquetas. E o gosto pelo colorido, pelo brilho
e pelo luxo, que finca raízes no Barroco Católico da Península Ibérica, e uma disposição
peculiar em alas a compor o grande desfile processional. (DIAS, 1999, p. 45).

Segundo Nei Lopes (2005), os cortejos de “reis do Congo”, na forma de congadas, congados
ou cucumbis (do quimbundo kikumbi, festa ligada aos ritos de passagem para a puberdade),
foram influenciados pela espetaculosidade das procissões católicas do Brasil colonial e imperial,
constituindo-se a base impulsionadora da formatação dos maracatus, dos ranchos de reis
(posteriormente carnavalescos) e das escolas de samba – que surgiram para legitimar o gênero que
lhes forneceu a essência. O autor (LOPES, 2005) acredita que, nas escolas de samba, o samba foi
institucionalizado, organizado e legitimado como a principal expressão de poder das comunidades
negras brasileiras.
As escolas de samba foram instituídas a partir da incorporação da organização europeia dos
desfiles carnavalescos, representados notadamente pelos corsos. Junto com esta adaptação negociada,
deu-se a amplificação do reconhecimento social do samba. Por isso, podemos atestar que o samba
9 Aqui, não nos referimos ao tempo livre de trabalho, expresso pelas férias, feriados e finais de semana.
43
permeou historicamente muitas relações sociais, tendo sido, da mesma forma, por elas moldado. Em
termos musicais, guardou uma dimensão que vai além de sua letra e ritmo, expressando também a
visibilidade e o orgulho da população negra.
Em razão mesmo desse papel funcional, as escolas de samba surgiram contendo uma
função social voltada à expressão das tradições musicais afrobrasileiras em uma sociedade que não
possibilitava grandes oportunidades aos negros (as). Neste contexto, notamos a imensa diversidade
de gêneros musicais distribuídos em todas as regiões brasileiras, que se coligam com danças, festas
e musicalidades, já que:

O Brasil continua refletindo a grande miscigenação racial e cultural de sua história e


absorvendo e modificando continuamente novas ideias e estilos. Um bom exemplo disso
é a longa e rica tradição da forma musical mais famosa do Brasil: o samba. (MCGOWAN e
PESSANHA, 1998, p. 19, tradução nossa10).

É interessante notar que, com relação ao elemento festivo, o Brasil não é “o país do carnaval”,
como se lê ou se ouve com frequência, mas um país de “muitos carnavais”, com influências iniciais
portuguesas, modificadas ulteriormente a partir dos elementos culturais africanos e indígenas.
Vale mencionar que a nossa grande festa popular, o Carnaval, pode sugerir, à primeira vista,
a falsa idéia de uniformidade. Mas, na realidade, observamos carnavais coloridos e espontâneos,
com ritmos e instrumentos musicais variados, danças e figurinos multifacetados, em uma incrível
proliferação de danças, carnavais de rua e desfiles. De cidade em cidade, de região em região, as
diferenças entre esses carnavais se estabelecem.
Ao refletirmos sobre as comunidades do tambor brasileiras e as interfaces existentes com as
comunidades do tambor latinoamericanas, notamos que há conexões permanentes abrangendo o
presente e o passado da população latinoamericana, que evidenciam processos de vínculos entre o
global e o local em contextos territoriais específicos.
Cada uma das comunidades do tambor está ligada a uma face/fase singular no âmbito do difícil
processo de assimilação das populações afrodescendentes à sociedade latinoamericana, caracterizado
pela tensão constante entre elementos da cultura europeia, ressignificados pelo modo de pensar
africano e a atitude de resistência cultural; tendendo à manutenção de conjuntos de conhecimentos
africanos em contextos espaciais diaspóricos.
Nesse sentido, uma dimensão ainda pouco explorada pelos autores (as) da Geografia brasileira
e internacional refere-se à síncope ou sincopa como um elemento musical, igualmente relacionado
às dimensões e condições espaciais. Em Música, a síncope se manifesta como um padrão rítmico em
10 Brazil has continued to reflect the great racial and cultural miscegenation of its history, and to continually absorb and modify
new ideas and styles. A good example of this is the long and rich tradition of Brazil’s most famous musical form: samba. (original).

44
que um som é proferido na parte fraca de um compasso ou tempo, delongando-se e deslocando-se
pela parte forte do compasso ou tempo subsequente. Sobre a síncopa, Milani (2018) afirma:

O ritmo não pode ser concebido sob o ponto de vista matemático, pois a linguagem é
recheada de síncopes típicas da música brasileira e de heranças africanas, com a presença
de ostinatos, melodizações percussivas, dilatações e contrações através das agógicas marcadas
pelo compositor, que dinamizam o tempo. (MILANI, 2018, p. 132).

Para Sandroni (2001, p. 19), “alguns musicólogos viram na síncope uma característica
definidora não apenas do samba, mas da música popular brasileira em geral”. Já para Mário de
Andrade (2013, p. 20) “as síncopas europeias, desenvolvidas pelos afroamericanos, nos deram o
principal da prodigiosa riqueza rítmica que em nossa música se manifesta”. Sobre as origens da
síncopa, Andrade (1965) esclarece que:

No ritmo nada persiste de garantidamente afronegro. Mas a síncopa, empregada


sistematicamente, é, no caso, de sistematização negra. Os autores discutem às vezes se ela é
de origem negro africana ou negro americana. É problema de grande complexidade, que o
autor, por deficiência de documentação, se sente incapaz de esclarecer. (ANDRADE, 1965,
p. 184).

Mais do que um elemento musical presente nos ritmos musicais brasileiros, a síncopa
também se manifesta em outros países latinoamericanos11, relacionando-se com os tambores e o
papel central no que se refere às expressões musicais. A síncopa emitida no toque dos tambores
reverbera-se nos movimentos e nos corpos dançantes que cantam e improvisam em resposta ao
cantador (a) solista.
Como destacamos em Dozena (2012), podemos ampliar essa reflexão se considerarmos que
a temática da corporeidade está diretamente associada com a temática da musicalidade, que, por sua
vez, relaciona-se com a riqueza de sons provenientes dos cantos, dos rituais religiosos e da dança.
Desse modo, a musicalidade pode ser vista como um álibi para se atingir alguns princípios geográficos,
sobretudo ao constatarmos que as letras e as sonoridades trazem consigo uma historicidade que usa
metáforas importantes para a problematização de conceitos e a desconstrução crítica de preconceitos
socialmente estabelecidos.
Essa musicalidade pode ser trazida ancestralmente pelas coletividades, atendendo não somente
às vontades de reprodução material e às necessidades de sobrevivência, mas, também, expressando
muitas especificidades culturais que efetivamente mobilizam e animam os agrupamentos sociais,
11 Para a análise da síncopa em outros países latinoamericanos, sugerimos a consulta do livro organizado por Martha Ulhôa,
Música popular na América Latina: pontos de escuta. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005.

45
ao mesmo tempo em que revelam uma história não oficial, a qual passa a ser contada pelas ruas e
bairros das cidades latinoamericanas.
Por sua vez, as identidades com base territorial, forjadas por aspectos da musicalidade, trazem
conexões com padrões passados e presentes de povoamento, migrações, etnicidades, heranças
musicais, modos de vida e condições socioeconômicas. A grande questão é a de se atentar para o
fato de que, além de um corpo fisiológico, existe um corpo social, criador de uma musicalidade que
se verifica na existência individual e coletiva.
Há muitas evidências de que algumas habilidades sensóreo-motoras dos sujeitos são ativadas
nesta construção de identidades de base territorial. Um exemplo claro no âmbito musical é a própria
estrutura rítmica e melódica que emerge como uma construção do processo de representação
social, uma representação estabelecida cultural, ideológica e tecnicamente. Claramente, existem
características de territórios específicos que oferecem pré-condições às novas ideias musicais. Até
mesmo alguns instrumentos musicais são criados conforme as condições propiciadas pelos lugares,
condições retomadas e reverberadas a partir do repertório cultural próprio de cada agrupamento
social.
Dialogando com o pensamento de Merleau-Ponty (1999), podemos considerar que o corpo
constrói processos de identificação entre o mundo pessoal e o mundo público e, na interação com
o outro, reafirmam-se ou mesmo se descobrem alguns aspectos das próprias expressões identitárias.
Assim sendo, pelo próprio ato de dançar ou tocar, o corpo articula uma linguagem que coloca os
sujeitos em grupos territorialmente localizáveis, os quais guardam relações ancestrais nas quais a
experiência corporal fixa o território na existência, na medida em que o corpo é o ser no território.

Considerações finais

As comunidades do tambor são fundamentais para as mudanças que almejamos para o


nosso país e o bem-estar que elas são capazes de produzir em nós. No contexto pandêmico atual, a
esperança emerge como um projeto de vida, a esperança do verbo esperançar: animar-se, estimular-
se, esperancear-se (HOUAISS e VILLAR, 2001). Nela, as musicalidades brasileiras se expressam
como um respiro consolador. Acreditamos que uma importante ação a ser feita consiste na inserção,
cada vez mais intensa, de conteúdos valorizadores da cultura popular nos currículos das escolas e
das universidades brasileiras. No caso do ensino superior, isto tem acontecido, principalmente,
pela presença da disciplina de Geografia Cultural, que evidencia a relevância dos temas culturais na
formação dos bacharéis e licenciados em Geografia.
As abordagens (des)coloniais12 igualmente têm trazido a relevância não somente do
12 Sobre esse tema, sugiro a leitura de Haesbaert, Rogério. Território e descolonialidade: sobre o giro (multi) territorial/de(s) colonial na

46
pesquisar sobre, mas do pesquisar com as comunidades. Essa contextualização pode permitir a
real compreensão da complexa teia de sociabilidades e ações políticas presentes nas manifestações
culturais brasileiras, em suas diferenças, em seu movimento e em suas inflexões. As manifestações
culturais são educativas e têm a capacidade de ampliar a consciência cidadã, além de contribuir com
os projetos vindouros de país.
Como buscamos destacar nas linhas precedentes, as comunidades do tambor constituem um
importante patrimônio latinoamericano, manifestado por uma resistência pautada em universos
rítmico-musicais diversos coligados a movimentos comunitários que se territorializam de modos
igualmente distintos. Os tambores são acionados não somente em contextos festivos e religiosos, mas
igualmente em expressões com um caráter político; a exemplo das ocupações territoriais ou ações
relacionadas à demarcação, reconhecimento e titulação de territórios pertencentes às comunidades
negras. A multiplicidade de tambores nos países da América Latina, ao mesmo tempo em que os
diferenciam em regionalidades rítmicas13, os conectam pelos ritmos, danças e cantos.
Guardadas as idiossincrasias, as habilidades musicais estão associadas a toda uma dimensão
imagética e memorial, propagada geracionalmente. A formação de mantenedores da reminiscência
musical de cada localidade estará garantida na medida em que as danças, passos, gingas, suingues,
percepções rítmicas e melódicas forem perpetuamente reproduzidas pelos tocadores, brincantes,
cantantes e dançantes.
A particularidade dos tambores nos países latinoamericanos relaciona-se com as matrizes de
sua configuração em cada contexto territorial específico. Por outro lado, em todos os casos, notamos
que eles são os portadores de sons ancestrais, conectando as atividades entre si e comunicando cada
contexto com o continente africano; sendo venerados pelos seus praticantes na medida em que
efetuam a conexão com as entidades do mundo espiritual.
Tal conexão igualmente envolve as técnicas de construção dos tambores ancestralmente
reproduzidas e que vem normalmente acompanhadas de um enorme respeito pelas matas de onde
as madeiras provenientes de espécies nativas são retiradas. As distintas técnicas de elaboração dos
tambores revelam ao mesmo tempo a particularidade de cada comunidade do tambor14.
Buscamos promover uma reflexão aberta sobre a porosidade existente entre as comunidades
do tambor latinoamericanas, um exercício que visa colocar em movimento o diálogo com os
(as) pesquisadores (as) de outros países. Nossa proposição pretendeu articular as reflexões sobre
as comunidades do tambor presentes no Brasil com as discussões sobre patrimônio, destacando

América Latina. CLACSO - Ciudad Autónoma de Buenos Aires, 1a ed, 2021.


13 Essa ideia se relaciona diretamente com a definição geográfica de Região Cultural, sendo aqui caracterizada pela semelhança
encontrada nos aspectos rítmicos, em regiões particulares.
14 Independentemente das especificidades das comunidades do tambor, nelas há normalmente a presença e o uso de três tam-
bores, no Brasil também denominados de “tambus”. Todos eles apresentam qualificações e empregos musicais particulares, são
confeccionados com madeira, e trazem couro de animais no lado em que são percutidos.

47
o fato de que as musicalidades são portadoras de discursos sociais e dispositivos promotores de
experiências de individualização e coletivização social; além de evidenciarem que os processos de
produção musical se conectam com os processos comunitários locais.
Intentamos igualmente colocar em movimento o exercício da desconstrução de uma ciência
geográfica afeita às regras e padrões normativos que limitam o entendimento dos sons como
linguagem espacial15, aqui motivados pela reflexão sobre as comunidades do tambor.
Essa reflexão é mais um movimento na quebra do “muro” construído ao longo dos séculos
XIX e XX, na medida em que reaproxima a Geografia de nossa experiência de mundo e da dimensão
sensível e existencial daquilo que nos constitui, considerando-se que as sonoridades são vetores
acústicos de nossa imaginação.
Temos assim o intuito de escutar e ver a Geografia permeada pelo ritmo, pelas melodias,
pela emoção e pela sensibilidade ao compreender as musicalidades como constituintes do espaço
geográfico, manifestando-se e, ao mesmo tempo, fundando lugares, paisagens, territórios e regiões.
Ao considerar o diálogo entre Geografia, música e sons, questionamos o primado do visual na
Geografia, inclusive ao se abordar as questões patrimoniais.
A consolidação deste importante campo já reúne significativa contribuição teórica, analítica
e interpretativa de espacialidades e processos engendrados pela produção, pela difusão, pelo vivido
musical e pela compreensão dos imaginários a ele associados. As lutas políticas das comunidades
do tambor ainda são imensas. No Brasil, instituições como a Fundação Palmares, subalterna do
Ministério da Cultura, e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) têm
realizado um relevante trabalho no sentido da valorização dos “territórios negros” brasileiros.
A necessária ampliação das políticas públicas direcionadas às comunidades do tambor torna-se
premente. A resistência por elas colocada está pautada no contraponto estabelecido pela memória e
experiência histórica das comunidades. O presente texto esquadrinhou uma perspectiva que valoriza
as experiências, conhecimentos e entendimentos das comunidades do tambor. Estas evidenciam
concepções próprias, historicamente herdadas, que abrangem outros horizontes do pensar, do ser e
do vir a ser.

15 Esse tema é abordado em Dozena (2019).

48
Referências

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Fontes, 1965.

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42, 2019. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/article/
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repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/71821.

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v.6, n.2, p. 215-228, 2012.

HAESBAERT, Rogério. Território e descolonialidade: sobre o giro (multi) territorial/de(s)


colonial na América Latina / Rogério Haesbaert. - 1a ed. - Ciudad Autónoma de Buenos Aires:
CLACSO, 2021.

HOUAISS, A. e VILLAR, M. de S.  Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Elaborado


no Instituto Antonio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Portuguesa. Rio de Janeiro:
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Uberlândia, n. 50, p.1-11, jul, 2005.

MCGOWAN, C.; Pessanha, R. The Brazilian Sound: Samba, Bossa Nova, and the Popular
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MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

MILANI, M. Prelúdios Tropicais:Tons e Sons de Guerra-Peixe. In. AZEVEDO, Furlanetto, B.

49
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SANDRONI, C. Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio


de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; UFRJ, 2001.

SANTOS, Milton. Por uma Geografia Nova. São Paulo: Edusp, 1978.

50
PATRIMÔNIO E IDENTIDADE CULTURAL: O CASO DO CHAMAMÉ NA REGIÃO
DE FRONTEIRA BRASIL E PARAGUAI

Camila Benatti
camila.benatti@uems.br
Rafael Henrique Teixeira-da-Silva
rafael.henrique@unesp.br
Patrícia Cristina Statella Martins
martinspatricia@uems.br

Introdução

A música é uma expressão artística e cultural que atua como um importante mecanismo na
construção dos laços sociais, identitários e de pertencimento. O estilo musical Chamamé é oriundo
da província de Corrientes, na Argentina, e se difundiu para outros países, como Paraguai, Brasil e
Uruguai.
O Chamamé se tornou uma importante tradição cultural da região de fronteira de Mato
Grosso do Sul e Paraguai, e faz parte do cotidiano dos habitantes dessa zona fronteiriça. Nesse
sentido, o presente estudo busca compreender esta prática cultural na área de fronteira de Mato
Grosso do Sul, que acabou por se irradiar para outras cidades desse estado brasileiro.
Para cumprir esse objetivo, foram realizadas pesquisas bibliográficas em livros, periódicos,
teses e dissertações, bem como em sites e documentos institucionais, com o intuito de compreender
o contexto histórico e geográfico do Chamamé, e entender os laços identitários e de pertencimento
formados a partir dessa tradição.
Essa sistematização e análise permitiram observar como o Chamamé se impõe de maneira
presente nessa área de fronteira e, ainda, como a sua valorização e reconhecimento – enquanto
importante legado, expressão e saber cultural particular dos povos e indivíduos que vivem nesses
sítios –, perpetuam-se nos modos de vida e na identidade cultural dos sul-mato-grossenses.
Desse modo, o capítulo está estruturado em 5 (cinco) partes fundamentais, sendo: 1.
Introdução; 2. Identidade cultural no contexto de fronteira; 3. O Chamamé na fronteira Brasil e
Paraguai; 4. Considerações finais; e 5. Referências Bibliográficas.

Identidade cultural no contexto de fronteira

Os espaços de fronteira são uma realidade social, econômica e cultural que, de acordo com
Raffestin (2005), são mais do que um fato geográfico. Nesse sentido, a fronteira é calcada por
51
identidades específicas, que são expressas ora pelo encontro de culturas, tradições e costumes comuns,
ora pelo desencontro de particularidades econômicas, políticas e administrativas (FEDATTO, 2005).
Portanto, os espaços fronteiriços são marcados por territorialidades que coexistem e que,
em dados momentos, se divergem. Desse modo, coabitam culturas e sociabilidades que formam os
elementos e identidades particulares das áreas de fronteira.

A fronteira, portanto, é bem outra coisa e a história não pode ser interpretável sem ela, pois
as sociedades sempre foram definidas pelas fronteiras que elas traçam. Elas acompanham
os movimentos dos povos e marcam as grandes viradas nas transformações das civilizações.
(RAFFESTIN, 2005, p. 12).

Para Raffestin (2005), a fronteira deve ser entendida de maneira geográfica (espaço-temporal),
social e biológica (bio-social), a partir de 4 pilares: diferenciação, tradução, relação e regulação. Sob
essa ótica, é relevante salientar que as fronteiras são essenciais para se compreender a história e as
transformações da sociedade humana.
As fronteiras são consideradas, muitas vezes, por um viés negativo, sendo vinculadas ao
tráfico de drogas, à prostituição, violência e violações dos direitos humanos. Todavia, o governo
brasileiro tem criado programas durante as últimas décadas que visam retificar essa interpretação,
como o Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira – PDFF. O PDFF foi criado em 2004
com o intuito de consolidar a economia, a diversidade, a cultura e potencialidades locais das zonas
fronteiriças (BRASIL, 2009).
As pesquisas sobre fronteira devem levar em consideração a formação identitária e cultural das
populações locais que vivem nessas regiões, com o objetivo de valorizar e fortalecer suas expressões
e tradições culturais. De acordo com Banducci Jr. (2011, p. 10), “as fronteiras compreendem redes
de relações e de influências sociais, culturais e políticas que transcendem os espaços locais para
abranger contextos nacionais e internacionais mais amplos”.
Nesse sentido, Grimson (2000) afirma que as fronteiras são marcadas por limites e conflitos
que acabam por ser impostos em seus territórios. Essas contradições e harmonizações são específicas
e se perpetuam em questões culturais, religiosas, políticas e sociais que devem ser preservadas e
reconhecidas.
Segundo Martin (2005), a identidade cultural é impactada pelas relações sociais e históricas
de um lugar. Essa realidade torna as identidades fragmentadas, contraditórias e híbridas (HALL,
2006; CANCLINI, 2013). Esse hibridismo, envolvido por intercâmbios culturais diversos, ressalta-
se no contexto das áreas de fronteira, onde se mesclam tradições e costumes de países e etnias.
Hall (2006) afirma que as identidades são plurais e constituídas por múltiplos elementos
através de práticas, discursos e valores culturais. Nesse sentido, a identidade cultural de um povo é

52
formada por suas tradições, histórias, modos de vida e mitos que, de acordo com Le Bossé (2013),
desempenha um papel importante na formação da consciência dos indivíduos e grupos. Desse modo,
as percepções e identidades são construídas e projetadas em suas representações e compreensões dos
lugares (LE BOSSÉ, 2013).
Na conjuntura das faixas de fronteira, essas identidades são em alguns momentos harmoniosas,
e em outros conflituosas. Portanto, as territorialidades presentes no território fronteiriço revelam
a identidade dos lugares e dos indivíduos que o compõe, por meio de expressões e atitudes que
são internas e inclusivas; ao mesmo tempo que os limites ali existentes estabelecem aquilo que o
pertence e o que o exclui (LE BOSSÉ, 2013).
Sob essa ótica, é importante analisar nessas áreas como os grupos apreendem a comunidade
vizinha e como esta está inserida na formação das diferenças e similaridades que formam essas
características e relações identitárias. Essa perspectiva sobre a identidade nas zonas fronteiriças pode
ser compreendida a partir da visão geopolítica traçada por Dijkink (1996, p. 11), o qual observa que
“as relações que um lugar específico tem com outros lugares, implica um sentimento de segurança
ou de insegurança, de vantagem ou desvantagem, e/ou implicando ideias de missão coletiva relativa
à política estratégica”.
Assim, é preciso apreender que as fronteiras são fenômenos marcados pela história da
sociedade humana, sendo locais que vivenciaram e perpetuam conflitos de dimensões diversas. Por
isso, pode-se dizer que fronteiras são portadoras de heranças, tradições e expressões culturais únicas
que se eternizam nas memórias de seu povo.

O Chamamé na fronteira Brasil e Paraguai

Segundo Crozat (2016), a música é onipresente e uma importante testemunha das


transformações de práticas culturais. Nesse sentido, a música se torna um vetor da “construção da
identidade dos indivíduos e grupos” e da experiência dos lugares (CROZAT, 2016, p. 13). A música
e o estilo musical estão ligados ao visual, à imagem: como a dança, as paisagens e a vestimenta.
Assim, não existe a música sem a imagem, que é o que a conecta com as questões históricas e sociais
(CROZAT, 2016).
Sob essa conjuntura, o objeto de estudo do presente capítulo é o estilo musical Chamamé.
Este é oriundo da província de Corrientes, na Argentina, que se difundiu para outros países, como o
Paraguai, Brasil e Uruguai (Figura 1). O Chamamé se tornou uma importante expressão identitária
nas faixas de fronteira desses países, fazendo parte do cotidiano dos habitantes que ali vivem.

53
Figura 1 – Argentina, com destaque para a Província de Corrientes

Fonte: Equipe BeefPoint. Disponível em: https://www.beefpoint.com.br/argentina-confirma-foco-de-aftosa-em-


corrientes-27592/.

A Figura 1 apresenta uma representação da Argentina, com destaque para a Província de


Corrientes. Como é possível observar, Corrientes está localizada na linha de fronteira com três
países, sendo: Paraguai ao norte (separado pelo rio Paraná), Brasil e Uruguai (demarcados pelo rio
Uruguai), a nordeste e a sudeste, respectivamente. Perante esse contexto geográfico fronteiriço, é
possível compreender a irradiação da tradição do Chamamé para esses países limítrofes.
De acordo com Higa (2010), a palavra chamamé tem origem guarani, que significa “improviso”,
algo feito às pressas. O estilo musical nasceu a partir da influência da Polca paraguaia, criada no
Paraguai no século XIX, com raízes campesinas e que possui como principal característica o uso do
acordeon (HIGA, 2006). Desse modo, o termo chamamé surge na década de 1930, por meio da canção
“Corrientes Poty”, gravada pelo músico Samuel Aguayo na gravadora RCA Victor, em Buenos

54
Aires. Com o intuito de aumentar as vendas e difundir o gênero musical, o dono da gravadora criou
o termo Chamamé para designá-lo. Assim, o estilo musical se tornou referência na região norte da
argentina, especificamente na Província de Corrientes (HIGA, 2006; 2009).
Sendo a música indissociável do visual (CROZAT, 2016), o Chamamé agrega elementos
como a dança, as vestimentas, a festividade típica popular e o canto (Figura 2). Assim, o Chamamé
representa a união de países e povos distintos, associando particularidades artísticas guaranis,
afroamericanas e europeias (UNESCO, 2020).

Figura 2 – Estilo musical Chamamé

Fonte: Site Repórter Rio Grandense. Disponível em: https://www.reporterriograndense.com.br/2019/04/as-origens-do-


chamame.html.

No que diz respeito sobre a difusão do Chamamé no estado de Mato Grosso do Sul, segundo
ARCA (1993), essa intermediação acontece por meio do Paraguai. O estado brasileiro possui 12
municípios1 localizados na linha de fronteira com o Paraguai, tendo uma extensão de 1.517 km de
linha divisória com esse país (Figura 3). Entretanto, o Chamamé extrapola a faixa de fronteira do
estado, chegando até a capital, Campo Grande.

1 Municípios do estado de Mato Grosso do Sul que fazem fronteira com o Paraguai: 1. Corumbá – formando uma tríplice
fronteira: Brasil, Bolívia e Paraguai; 2) Antônio João; 3) Aral Moreira; 4) Bela Vista; 5) Caracol; 6) Coronel Sapucaia; 7) Japorã;
8) Mundo Novo; 9) Paranhos; 10) Ponta Porã; 11) Porto Murtinho; e, 12) Sete Quedas.

55
Figura 3 – Mapa do estado de Mato Grosso do Sul

Fonte: Site Geo Geral / Banco de dados demográficos. Disponível em: https://geogeral.com/h/m/b/brms.html.

O Chamamé faz parte da cultura sul-mato-grossense, possuindo, inclusive, uma data


comemorativa, dia 19 de setembro, Dia Estadual do Chamamé, decretado pela Lei n. 3.837 de 2009.
Na cidade de Campo de Grande acontece também anualmente o Festival Cultural do Chamamé de
Mato Grosso do Sul (Figura 4), que integra comunidades e artistas do Brasil, Paraguai, Argentina
e Chile.

Figura 4 – Festival Cultural do Chamamé de Mato Grosso do Sul

Fonte: Dourados News. Disponível em: https://www.douradosnews.com.br/noticias/festival-cultural-do-chamame-de-ms-


comeca-amanha/1113595/.

56
O estilo musical está presente no cotidiano da população do Estado, ratificado, sobretudo,
pela sua influência e singularidades fronteiriça. Nas cidades que estão situadas na faixa de fronteira,
a tradição do Chamamé se mostra mais evidente, sendo experienciada em diferentes formas de usos
e vivências.
O Chamamé faz parte da vida das pessoas, sendo ouvido diariamente nas rádios regionais,
presente, também, nas festas familiares e nas festividades locais. Ele se encontra na experiência dos
lugares fronteiriços de Mato Grosso do Sul, marcando as construções identitárias territoriais de
quem ali vive.
O Chamamé é reconhecido internacionalmente e, ao ser compreendido como importante
tradição da união de países e povos distintos, o gênero musical foi consagrado pela UNESCO como
Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade em 2020 – com inscrição vinculada ao seu país de
origem, Argentina. Analogamente, ao se estabelecer como uma representação simbólica dos sul-
mato-grossenses, o mesmo foi registrado também como Patrimônio Cultural Imaterial do estado,
no Livro de Registro dos Saberes, pela Lei n. 15.708 de 2021.
Ao ser reconhecido enquanto patrimônio cultural, o Chamamé passa a ser agente construtor
da identidade no estado de Mato Grosso do Sul e nos países onde se estabelece como uma tradição
e saber cultural. É através do patrimônio que os indivíduos se conectam com o seu passado, criando
identidades múltiplas por meio de memórias individuais e coletivas. Desse modo, o Chamamé,
enquanto patrimônio cultural imaterial, exerce um papel crucial na representação simbólica e nos
laços de pertença nessas regiões.
O Chamamé se impõe, assim, como um importante legado e expressão cultural de Mato
Grosso do Sul, principalmente nas cidades que compõem a faixa de fronteira com o Paraguai.
Todavia, o estilo musical é parte integrante dos saberes particulares dos povos e indivíduos que
vivem nesses sítios, o qual se perpetua nos modos de vida e na identidade cultural dos sul-mato-
grossenses.

Considerações finais

A música é uma expressão artística universal, a qual atua como importante vetor de construções
dos laços sociais, culturais e identitários. Sob essa luz, o presente estudo procurou compreender o
estilo musical Chamamé enquanto prática cultural na área de fronteira de Mato Grosso do Sul. É
importante salientar que essa manifestação artística acabou por se irradiar a outras cidades deste
estado brasileiro
Nesse sentido, o Chamamé representa a união de diferentes países e etnias, agregando
características artísticas guaranis, afroamericanas e europeias. Sua tradição pode ser observada
57
na Argentina (país de origem), Paraguai, Brasil, Uruguai e até mesmo no Chile. O Chamamé se
difundiu no Mato Grosso do Sul por meio do Paraguai, cujo país possui uma extensa linha divisória
fronteiriça com o esse estado.
Além do estilo musical, o Chamamé possui elementos particulares, como as vestimentas, a
dança, o canto e a festividade local. O gênero foi reconhecido como patrimônio cultural imaterial
de Mato Grosso do Sul em 2021, sendo registrado no Livro de Registro dos Saberes. Essa expressão
está presente no cotidiano da população sul-mato-grossense, fazendo parte de confraternizações
familiares, festas populares, programas de rádio e de TV. A importância do Chamamé pode ser
testemunhada também no Festival Cultural do Chamamé, um evento de cariz internacional, que
acontece anualmente na cidade de Campo Grande, capital do Estado.
Nesse sentido, acredita-se que o Chamamé atua como importante ator na construção da
história e cultura sul-mato-grossense, principalmente na região da faixa de fronteira. Assim, a
presente investigação pretende contribuir para a discussão dessa tradição cultural e artística tão
relevante, com o objetivo de fortalecer o Chamamé enquanto legado histórico da população sul-
mato-grossense.

Referências

ARCA. Revista da divulgação do Arquivo Histórico de Campo Grande/MS, n. 4, 1993.

BANDUCCI JR., Álvaro. Turismo e fronteira: integração cultural e tensões identitárias na divisa do
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Desenvolvimento da Faixa de Fronteira – PDFF. Brasília: Secretaria de Programas Regionais – SPR,
2009.

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Seno Alves. In: DOZENA, A. (org.). Geografia e música: diálogos. Natal: EDUFRN, 2016.

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de. (org.). Território sem limites: estudos sobre fronteiras. Campo Grande: Editora UFMS, 2005.

UNESCO. El Chamamé es Patrimonio Cultural de La Humanidade. 2020. Disponível em: https://


es.unesco.org/news/chamame-es-patrimonio-cultural-humanidad.

59
MAPAS AFETIVOS: A PERCEPÇÃO DA PAISAGEM NO ENTORNO DO CAMPUS
DO ITAPERI

Otávio José Lemos Costa


otavio.costa@uece.br

Introdução

A presente investigação permeia a imaginação geográfica, cujos propósitos conceituais


firmam-se nas proposições teóricas que almejam dar relevo à interpretação dos fenômenos
socioespaciais, quer estejam associados a uma perspectiva da natureza, quer estejam atrelados às
práticas da educação patrimonial, cujos elementos discursivos indicam um processo que envolve a
percepção da paisagem, de lugares ou territórios simbólicos pelas quais uma construção identitária
é sempre presente. Torna-se possível, portanto – e colocamos aqui a proposta para este projeto –,
o entendimento das representações do patrimônio rural, contextualizando na seara da imaginação
geográfica.
Sendo assim, a análise dos símbolos presentes na paisagem que conforma a região em torno
do Campus do Itaperi da UECE torna-se uma tarefa que, em primeiro momento, buscaremos criar
uma sistemática de decodificações, decompondo as formas simbólicas numa série de significados.
Entendemos que o simbólico presente em uma paisagem nos permite também um êxodo conceitual,
pelo qual buscaremos uma exegese à luz de outras disciplinas, muito embora a semiologia já tenha
afirmado não haver maneira de se ler símbolos. Assim, construiremos a leitura de uma paisagem
urbana, tomando como esteio a Geografia Humanística, que discute categorias tais como paisagem
e lugar, categorias estas que se aproximam do indivíduo na perspectiva do familiar, do espaço vivido
e mediada por símbolos (TUAN, 1983).
Para a realização da pesquisa, utilizamos os mapas afetivos, os quais foram definidos por
Lynch (1998) de imagens públicas. Entendemos que a imagem não é individual, uma vez que
cada indivíduo cria a sua própria. A tarefa de elaborarmos mapas afetivos consistiu na realização de
procedimentos pelos quais as pessoas adquirem, codificam, armazenam, recordam e decodificam
as informações sobre lugares e atributos de fenômenos dentro de um determinado espaço urbano.
A presente proposição envolveu também o dimensionamento das relações entre paisagem e
memória, pelas quais vem se transformando, já há algum tempo, num campo privilegiado de estudos
e pesquisas nas mais diversas áreas do conhecimento. Do ponto de vista das ciências humanas, a
História empreende uma discussão mais antiga, e, conforme Meneses (1997), o campo de problemas
a descoberto é muito vasto. Apenas para nos atermos ao ângulo da História, poderiam ser apontadas
muitas questões cruciais que contam com uma bibliografia inexistente ou insatisfatória.
60
Assim, o presente trabalho busca esteio numa pesquisa que está centrada no indivíduo que
observa a paisagem, ou seja, o olhar para uma paisagem simbólica que está associada aos afetos; e
nessa relação buscamos desenvolver nossa investigação. A proposta de enveredar pelo território dos
afetos, articulando com o olhar perceptivo dos moradores que moram no entorno do Campus do
Itaperi, são reveladores de elementos que integram histórias, contradições, saberes, emoções e até
mesmo elementos sensitivos como cores, ruídos, odores, elementos estes eivados de um simbolismo
que se objetiva em uma determinada paisagem.
No âmbito da geografia, ciência em que o conceito de paisagem é amplamente utilizado,
procuramos entender a relação entre paisagem e memória trilhando pela perspectiva da Geografia
Cultural (COSTA, 2003). Neste contexto, a paisagem faz parte da realização humana, eivada de um
significado pleno no seu sentido fenomenológico. Assim, pretendemos estabelecer a relação entre
paisagem e memória na qual está assentada a geografia da percepção, bem como a existência de um
conjunto de significados que estruturam a paisagem segundo o próprio sujeito e que refletem uma
composição mental resultante de uma seleção plena de subjetividades.

Mapas afetivos: uma compreensão simbólica para o entendimento da paisagem

Quando olhamos para determinadas paisagens, muitas vezes negligenciamos o sentimento


da afetividade, talvez porque muitas vezes são paisagens que se impõe aos sujeitos, e assim isolamos
o sentimento afetivo. Sabemos que o fenômeno da afetividade constitui uma dimensão psicológica,
que abrange de modo complexo e dinâmico o conjunto de emoção e sentimento. Nesse sentido,
o ser humano sente a alteração no corpo pelas modificações emocionais, existindo, também, um
sentido subjetivo, o qual dá um valor às experiências emocionais vividas. Entendemos, portanto,
que as mediações simbólicas permeiam as atitudes pessoais em relação aos lugares de afetividade
e reencontro. Assim, são consideradas imagens, e, no dizer de Eliade (1996, p. 13), “evocam a
nostalgia de um passado mitificado”
Como uma dimensão do psiquismo, a afetividade faz com que seja conferido um sentido
especial às vivências e às lembranças. A afetividade afeta sensivelmente os nossos pensamentos,
dando-lhes forma, matiz e conteúdo. Na nossa maneira de entender, cognição e afetividade se
completam entre si, formando um todo não divisível. Assim, pensamos a partir daquilo que sentimos
e sentimos a partir daquilo que pensamos.
O conceito de mapa afetivo se apresenta no presente texto como uma forma de enunciar
sentimentos e afetos aqui vivenciados através de processos de mediação socioespacial. A possibilidade
de entendimento da paisagem e territórios como múltiplos processos que envolvem temporalidades,
percepções e apropriações do espaço, os quais desencadeiam memórias e discursividades – de sentidos
61
atribuídos e construídos, todos antagônicos, convergentes, parasitas, consensuais e conflitantes
–. Isso permite a reflexão sobre a dimensão simbólica do que é intangível num espaço físico
constituído como um campo de disputas agenciado por redes de dimensões espaciais e culturais.
Nesse sentido, Silva (2008) nos alerta para que determinadas formas de mapeamentos participativos
abram possibilidades de leitura de paisagens e territórios.
Para trilharmos o entendimento do olhar dos moradores que vivem no entorno do Itaperi,
buscamos o esteio teórico no conceito de afeto baseado em Spinoza. Ele opta por referenciar toda
e qualquer alteração, tanto positiva quanto negativa desta potência, e também para as paixões,
como sendo um sentimento que ordena posteriormente esse afeto de acordo com sua ocorrência
passiva diante da realidade, requerendo em seu estatuto uma forma inadequada de conhecimento.
(SPINOZA, 2013)
Assim, observamos que as dimensões de afeto podem ocorrer de maneira plural em nossas
vidas. Inicialmente, adotamos a ideia de afetos bons e ruins. Afetos bons são todos aqueles que
trazem algo de positivo. Um bom exemplo de afeto positivo é o amor. Muito próprio de nós, seres
humanos, ao amar alguém, conseguimos perceber o significado de gostar-de, sem a necessidade
de algo em troca. Nesse sentido, buscamos ver que o esteio teórico em relação aos afetos ganha
horizontalidades e verticalidades, dada as percepções de que eles são fundamentais nas determinações
da existência humana. Assim, identificamos uma polivocalidade na qual se observam iniciativas que
se propõem compreender e intervir em diferentes realidades, considerando os afetos como campo
de investigação na seara socioemocional. Podemos observar que em diversos setores como o da
educação, saúde, política, geografia, sociologia, entre outros, a dimensão do afeto está presente além
dos estudos em psicologia. Se observa, cada vez mais, a narrativa dos afetos, sobretudo quando se
desenvolve trabalhos voltados para a díade: homem-meio ambiente.
Bonfim (2010) nos chama atenção quando afirma que “a racionalidade ético-afetiva é
experienciada pelo citadino quando no seu encontro com a cidade, ocorre um movimento criativo-
dialético que vai do universal (ético-humano) à singularidade individual” (BONFIM, 2010, p. 51).
Dessa forma, entendemos que a cidade, aqui, neste estudo, compreendida como escala de bairro,
configura-se como o lugar que enceta um sentimento de afetividade que poderá ser funcional ou
simbólica. A dimensão funcional representa a materialidade do lugar e que estabelece a natureza
do movimento, ora encorajando, ora inibindo esse movimento. A dimensão simbólica se expressa
através da intermediação entre o sujeito e o ambiente. Aqui, a distância métrica não é levada em
conta, pois o conteúdo simbólico, o experienciado, o cotidiano é o que mais importa para estabelecer
a distância afetiva do sujeito com aquilo que o cerca. Dessa forma, é nessa perspectiva de olhar para
uma paisagem simbólica que referenciamos a paisagem próxima ao conceito de lugar, através do

62
apego, do sentimento de pertença, ou seja, o attachment que forja uma relação afetiva entre o sujeito
e o lugar.

A análise do real

Consideramos que uma maneira de conceber o real, ou seja, uma forma de conceber o
espaço e suas manifestações concretas devam ser entendidas como um texto. Fazer a leitura de
uma paisagem urbana, por exemplo, é compreender os significados textuais contidos na paisagem
humana. Desse modo, o reconhecimento de formas simbólicas espaciais associadas a uma paisagem
vernacular vai muito além das representações estabelecidas por instrumentais cartográficos ou pelos
aspectos aparentemente formais que eles podem expressar.
Assim, propomos fazer uma leitura dessa paisagem, não apenas em parâmetros cartográficos,
mas adentrando-nos por suas geografias particulares, pois entendemos que a paisagem é construída
cotidianamente, expressando tanto nossas utopias, como os limites que nos são postos, sejam eles
no âmbito de um meio ambiente natural ou, ainda, através de uma explicação da paisagem cultural.
A paisagem vernacular identificada através do Campus do Itaperi elenca um conjunto de
geosímbolos, que, no entendimento de Bonnemaison (2002, p. 26), corresponde “a uma estrutura
simbólica de um meio, de um espaço”, em que o geosímbolo oferece um sentido ao mundo ou
ainda a espiritualidade do lugar.
Portanto, compreendemos que existe uma dimensão simbólica que constitui o mundo vivido
– este é o lugar pelo qual se se desenvolve a afetividade. Esse território é, portanto, um fenômeno
da experiência concreta do espaço: é o encontro entre uma área e os indivíduos em uma associação
inalienável entre espaço (objetos) e uma estrutura de significados (sujeitos).
A relação entre os moradores e a paisagem indica não apenas algo institucionalizado,
reconhecido ou reconhecido por sua importância histórica ou valor arquitetônico, mas também
como patrimônio que representa a memória do lugar, ou seja, aquele que contém o vernáculo da
paisagem, enunciando não apenas a história oficial ou as paisagens tradicionais. Portanto, a análise
das paisagens vernaculares, identificadas, por exemplo, através de simples construções, oratórios,
entre outras, torna-se importante como valor simbólico. O dizer de Luchiari (2001) nos permite
identificar um sujeito oculto da paisagem, ou seja, o modo de produção que impregna as práticas
sociais e faz surgir ou organizar territórios.
A análise de um espaço simbólico no qual as formas simbólicas espaciais se estruturam como
texto, enseja um conjunto de práticas metodológicas que estão relacionadas à proposição do problema,
formulação dos objetivos e delimitação do trabalho de campo. Assim, o processo de investigação
do real envolve uma tessitura cuja interpretação enseja uma construção de significados; e, em um

63
sentido amplo, talvez se aproximando de uma etnogeografia, pois, segundo Claval (1989), o interesse
por essa temática torna-se relevante, dado que o mundo que nós estudamos é moldado pela ação dos
homens e se encontra marcado por seus saberes, seus desejos, sendo também objetivado por suas
aspirações. Nessa concepção, a etnogeografia convida a refletir sobre a diversidade dos sistemas de
representação e de técnicas pelas quais os homens agem em suas diversas formas de intervenção e
modelam o espaço à sua imagem em função de seus valores e de suas aspirações (CLAVAL, 1997,
p. 114).
Privilegiamos o contexto etnogeográfico para ampliar nossa leitura e interpretação da paisagem
a ser investigada. Admitindo que a construção e consolidação de determinadas manifestações
de uma paisagem cultural, seja em uma escala local ou regional, incorporam vertentes que estão
direcionadas para a definição de área cultural. Neste sentido, como propõem Wagner e Mikessel
(1962, p. 5), “o primeiro passo essencial na geografia cultural é uma investigação sobre a distribuição
passada e presente de características das culturas que constitui a base para o reconhecimento e
delimitação de áreas culturais”. Assim, a abordagem que é dada neste projeto estabelece prospecções
que buscam a compreensão dos significados na qual os elementos de uma paisagem vernacular e
suas manifestações concretas e simbólicas produzem desdobramentos que são observados através de
comportamentos e práticas espaciais.
Privilegiamos, ainda, a pesquisa qualitativa, pois, na tentativa de entender a representação
sócioespacial de um espaço simbólico, objetivamos também compreender e decodificar os seus
significados, traduzindo e expressando o sentido dos fenômenos que regem as manifestações
culturais presentes em paisagem cultural. Entendemos que o simbólico dos lugares nos remete ao
conceito de paisagem vernacular. Tal conceito está explicitado no conjunto de representações tanto
das paisagens antigas quanto atuais, expressas através dos saberes e fazeres do homem. Conforme
De Certeau (1994, p. 161) “sua estranheza torna possível uma transgressão da lei do lugar, mantendo
uma relação, entre o visível e o invisível, o material e o imaterial constituindo em variantes que
retratam projeções simbólicas e narrativas”.
Para efeitos de análise utilizamos a metodologia utilizada por Bonfim (2010), que criou um
método que envolve a dimensão dos afetos. Essa metodologia, inclusive, serviu de base para estudos
sobre percepção ambiental na seara da geografia cultural, tendo servido de pilar metodológico para
algumas pesquisas sobre o próprio Campus Universitário do Itaperi1. Nesses estudos, mostra-se
que o componente afetivo se torna valorativo como análise a ser desenvolvida para um entendimento
da paisagem a partir do olhar daqueles que vivem em seu entorno. Assim, Bonfim (2010) procura,
através da dimensão dos afetos, desenvolver uma metodologia expressa através de metáforas e
desenhos que irá conformar o que chamamos de mapas afetivos.
1 Ver: SILVA, S.H. G.; BONFIM., Z. A. C. e COSTA, O. J. L., 2019.

64
Considerações Finais

Ao fazermos uma discussão em torno de uma paisagem, buscamos no presente texto focar no
princípio da cidadania. Dessa forma, buscamos interagir com grupos da sociedade, aqui representados
por moradores que habitam o entorno do Campus do Itaperi e que diariamente vivenciam um
cotidiano que sofre mudanças significativas, influenciando diretamente nas relações socioespaciais.
Entendemos que as demandas no presente projeto permeiam uma ação-transformação e
identificação das formas simbólicas espaciais numa paisagem particular, fazendo com que as pessoas
envolvidas desenvolvam a prática de uma educação patrimonial, aqui relacionada ao processo de
apropriação, por acrescentar importantes aportes com relação a um patrimônio construído.
Assim, quando realizamos um olhar para uma paisagem vernacular envolvendo moradores
que habitam em torno de um campus universitário, percebemos que, além das representações
sociais presentes, existe ainda uma polivocalidade que se opera através dos sentidos atribuídos, bem
como pela riqueza das formas que caracterizam suas manifestações. Sentidos e formas aqui que são
ressignificados a partir de olhar de cada morador, revelados através de metáforas que expressam
sentimentos e afetos.
Dessa forma, procuramos utilizar a metodologia dos mapas afetivos como uma forma de
representação socioespacial atrelada à memória e percepção das pessoas que vivem em torno do
Campus Universitário do Itaperi, da Universidade estadual do Ceará-UECE, sendo, portanto, uma
prática cultural que envolve coletividades e territórios como protagonistas e mediadores de um
mundo vivido.

Referências

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Afetivos de Barcelona e São Paulo. Fortaleza: Edições UFC, 2010.

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CLAVAL, Paul. As Abordagens da Geografia Cultural. In: CASTRO, Iná Elias de; GOMES, Paulo
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Bertrand Brasil, 1997.

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Cultura, UERJ, RJ, n. 15, p. 33-40, 2003.

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ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaios sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo:
Martins Fontes, 1991

LYNCH, Kevin. A imagem da Cidade. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1997.

LUCHIARI. Maria Teresa D. Paes. A (re)siginifcação da paisagem no período contemporâneo. In:


CORRE, R. L, C. e ROSENDHAL, Z. (Orgs.), Paisagem, imaginário e espaço. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2001.

MENEZES, Ulpiano T. B. de. A crise da memória, história e documento: reflexões para um


tempo de transformações. In: SILVA, Z. L. (org.). Arquivos, patrimônio e memória. São Paulo,
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SILVA, R. H. A. Cartografias urbanas: construindo uma metodologia de apreensão dos usos e


apropriações dos espaços da cidade. Visões Urbanas – Cadernos PPG-AU/UFBA, 2008.

SILVA, Silvia H. G.; BONFIM., Zulmira A. C. e COSTA, Otávio. J. L. Paisagem, fotografia e mapas
afetivos: um diálogo entre a geografia cultural e a psicologia ambiental. Geosaberes, Fortaleza, v.
10, n. 21, p. 1-22, 2019.

SPINOZA, Baruch de. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. 2ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2013.

TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: DIFEL, 1983.

WAGNER, Philip e MIKESSEL, Marvin W (orgs.). Readings in Cultural Geography. Chicago:


The University Press, 1962.

66
O AGIR COMUNICATIVO DESENVOLVIDO NA TERTÚLIA LITERÁRIA
DIALÓGICA E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO DE GEOGRAFIA

Francisca Linara da Silva Chaves


linarachaves@hotmail.com

Rosalvo Nobre Carneiro


rosalvonobre@uern.br

Introdução

A literatura nos é apresentada na vida escolar logo quando adentramos na Educação Infantil
por meio dos contos de fadas e fábulas. Nessa fase, a leitura é realizada por nossos professores, que
nos contam histórias fantásticas presentes nos livros, estimulando a nossa curiosidade para conseguir
lê-los de tal maneira que, quando isso não é possível por meio das palavras, torne-se viável através
das imagens que permeiam suas páginas.
No entanto, para alguns, esse encanto vai se gastando no decorrer dos anos, dando lugar
a outras prioridades, que, devido à imersão do sujeito num mundo altamente tecnológico, opta
por usar seu tempo com os celulares, vídeo-games etc. Dessa forma, por um lado, a literatura vai
perdendo sua influência ao competir com outros suportes interativos, mas, por outro, acaba se
tornando mais acessível por meio dos livros digitais, que podem ser lidos em diversos aparelhos.
Diante dessa realidade, nós, enquanto sociedade e também a escola, como instituição
responsável pela formação de crianças, jovens e adultos, precisamos buscar alternativas que possam
despertar no sujeito o prazer e a curiosidade pelos livros literários, explorando todo o conhecimento
contido nas obras. Pensando em nossa área de formação acadêmica, a Geografia, acreditamos que
a literatura tem muitas contribuições a oferecer, tendo em vista as experiências humanas que são
relatadas em suas narrativas, que, mesmo sendo fictícias, possuem uma base de conhecimentos que
sustenta o enredo criado.
Tendo como ponto de partida a pesquisa que estamos desenvolvendo no Programa de Pós-
Graduação em Ensino (PPGE) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN),
pretendemos, por meio deste artigo, abordar a contribuição das tertúlias literárias dialógicas através
do desenvolvimento da competência comunicativa na aprendizagem geográfica. Com relação aos
objetivos específicos, buscamos: (i) explanar os princípios que sustentam as tertúlias literárias
dialógicas, realizando uma aproximação com a teoria habermasiana; (ii) contextualizar e analisar

67
obras literárias que poderiam ser utilizadas em uma tertúlia literária dialógica nas aulas de Geografia;
(iii) sugerir uma proposta de aplicação da tertúlia literária dialógica nas escolas de Ensino Médio.
Em nosso artigo, utilizamos procedimentos da pesquisa bibliográfica, pois esta se fundamenta
na leitura e análise de trabalhos desenvolvidos acerca do tema que abordamos, ou seja, envolve
fontes secundárias, além de caracterizar também uma pesquisa documental, tendo em vista os livros
literários analisados, que trazem, mesmo que de modo fictício, vivências humanas localizadas em um
determinado tempo e espaço, configurando documentos passíveis de investigação científica indireta.
Para Gonsalves (2001, p. 32), “[...] a noção de documento corresponde a uma informação organizada
sistematicamente, comunicada de diferentes maneiras (oral, escrita, visual ou gestualmente) e
registrada em material durável”.
Subsequentemente, as demais seções estruturam-se da seguinte forma: começamos abordando
a metodologia da tertúlia literária dialógica, destacando sua aproximação com a teoria habermasiana;
em seguida, partimos para a leitura e análise das obras literárias escolhidas, no caso, A menina que
roubava livros e A culpa é das estrelas, por último, apresentamos uma proposta de aplicação da tertúlia
com as obras citadas e um roteiro de leitura para auxiliar os alunos.

A tertúlia literária dialógica e sua aproximação com a teoria habermasiana

Em meio a um contexto turbulento de fim da ditadura na Espanha, no ano de 1975, educadoras


e educadores progressistas, inspirados em iniciativas educativas libertárias, criam a tertúlia literária
dialógica, que teve início na escola de Verneda, no distrito de Sant-Martí (FLECHA e MELLO,
2005). Desde o contexto de sua criação, as tertúlias têm ganhado espaço no campo educativo, sendo
reconhecidas hoje como Atuação Educativa de Êxito (AEE) pela comunidade científica internacional
(GARCÍA; CARRIÓN; GONZÁLEZ, 2013).
A base que dá sustentação às tertúlias é a aprendizagem dialógica, conceito elaborado a
partir das contribuições de Paulo Freire, na área da educação, e Habermas, no âmbito da sociologia
(FLECHA e MELLO, 2005): o primeiro, com relação às suas discussões a respeito do diálogo; o
segundo, por meio de sua teoria do agir comunicativo, destacando a importância de estabelecer uma
comunicação que objetive o entendimento entre os membros, ao invés de relações de coação ou
intimidação dos sujeitos.
No Brasil, as tertúlias já são implementadas em algumas escolas, possuindo apenas uma
pequena mudança quanto à nomenclatura, aqui conhecida como tertúlia dialógica literária, designação
que segue os mesmos princípios estabelecidos em sua criação. É uma iniciativa desenvolvida pelas
comunidades de aprendizagem, em que os centros educativos que se disponibilizam a participar
recebem capacitação e materiais de leitura.

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Existem sete preceitos que norteiam a realização da tertúlia, a saber: diálogo igualitário,
inteligência cultural, transformação, aprendizagem instrumental, criação de sentido, solidariedade e
igualdade de diferenças (FLECHA e MELLO, 2005). Por meio do seguimento de cada um deles, é
possível estabelecer uma troca saudável, em que os alunos poderão exteriorizar seus pontos de vista
e sentimentos com relação à obra lida.
Por ter o caráter dialógico como aspecto crucial, a tertúlia se baseia nos atos comunicativos,
em que há presença de sinceridade por parte dos participantes que expõem seus argumentos, que,
juntamente com seus colegas, chegam a consensos a respeito do que está sendo debatido, sem
qualquer tipo de coação (SOLER e FLECHA, 2010), já que os alunos são os principais protagonistas
nesse momento.
Ao introduzir sua fala, o aluno utiliza aquilo que Habermas (2012) denomina de pretensão
de validade, que poderá ser aceita pelo ouvinte, rejeitada ou adiada, mas que, em todo caso, será
necessário fundamentar com base em razões que demonstrem o porquê de seu posicionamento.
Dessa forma, quando o ouvinte opta por não aceitar o que foi dito, ele deve apresentar argumentos
que possam respaldar sua fala para ter seu posicionamento validado.
Essa metodologia faz com que o aluno desempenhe um papel central, levando em conta
que o mediador na sala de aula, o professor, está ali para conduzir as falas e estabelecer a ordem de
participação dos integrantes na tertúlia, de modo que os alunos protagonizem a cena, destacando
trechos e expondo interpretações acerca do que foi lido. Nessa atividade, o professor estabelece
correspondências entre as falas, busca entendimentos quando houver opiniões divergentes e semeia
o respeito entre os colegas.
Com a realização das tertúlias, os alunos têm a oportunidade de ler obras literárias que
julgam de difícil compreensão e, em conjunto com seus colegas, mediante o compartilhamento de
pontos de vista, desenvolvem sua competência linguístico-discursiva, desconstruindo, assim, alguns
preconceitos em torno da capacidade de interpretação de obras complexas por parte de pessoas que
não possuem nível de escolaridade superior.
A ampliação da competência comunicativa refletirá não só nos momentos de encontro para
debate da obra, mas também em sala de aula e fora dela, afinal, a escola estará formando jovens capazes
de argumentar em público, participando de ações que possam contribuir com o desenvolvimento da
comunidade em que estão inseridos, do ambiente de trabalho em que atuam ou do meio acadêmico
a que se dedicam.
Segundo García, Carrión e González (2013), as tertúlias proporcionam transformações
cognitivas e sociais que impactam na vida da própria pessoa que está participando do encontro, na
instituição que está promovendo a realização dessa atividade e também no entorno social e familiar.

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Os atos comunicativos dialógicos utilizados na tertúlia se diferenciam dos atos de poder, pois
incluem em sua base a sinceridade e o respeito às opiniões, sem haver coações (PULIDO e ZEPA,
2010). A linguagem é, dessa forma, a força principal que rege as ações estabelecidas entre os sujeitos
participantes, não existindo, entre eles, alguém visto como mais ou menos qualificado para realizar
apontamentos.
Esses atos comunicativos são subsidiados pela teoria do agir comunicativo de Habermas
(2012), em que as falas do sujeito, para serem validadas, devem estar ancoradas no mundo objetivo,
subjetivo ou social, sendo passíveis de críticas por parte dos demais participantes da interação, que,
através da organização das falas e em coletividade, poderão constituir um entendimento e orientar
suas ações.
Portanto, percebe-se que:

Participando de estos actos, las personas van transformando su propia visión de la realidad,
ampliando su punto de vista a través de las contribuciones que escucha de sus compañeros
y compañeras, y también de las suyas propias. Las personas participantes reflexionan sobre
‘lo que se habla y cómo se habla en las tertulias’, favorece a su vez su implicación en debates
públicos u otros movimientos sociales, incluso en sus relaciones personales. (PULIDO e
ZEPA, 2010, p. 303).

Ou seja, os atos comunicativos desdobrados na tertúlia propiciam um certo empoderamento


aos participantes, que se sentem capazes de opinar em diversas esferas de suas vidas, lapidando suas
visões de mundo e até mesmo de si mesmos, reconhecendo-se como sujeitos aptos a formular e
expor produtivamente suas observações. Inferimos que as interações proporcionadas nessa atividade
impactam diretamente no mundo da vida dos sujeitos participantes por meio de processos de
entendimento que refletem no mundo objetivo, no mundo social e no mundo subjetivo, apontados
por Habermas (2012).
Ao se disporem a participar, os alunos corporificarão seus saberes mediante exteriorizações
fundamentadas em pretensões de validade. Essas pretensões equivalem à afirmação de que as
condições que asseguram a verdade do que foi dito tenham sido cumpridas (HABERMAS, 2012),
ou seja, estejam de acordo com a obra lida pelos membros da tertúlia, dando a oportunidade de que
os demais possam aceitar, rejeitar ou adiar tal exteriorização, levando em consideração sempre o
princípio do respeito.
Na escola, o agir comunicativo se manifesta através da ação educativa, em que se obtém um
entendimento mínimo entre os alunos, que, com o tempo, será transformado em entendimento
máximo a partir do momento que eles desenvolverem a competência linguística, possibilitada
pelos conhecimentos adquiridos, experiências vivenciadas e proporcionadas pela instituição escolar.
70
Não obstante, é importante frisar que os alunos já possuem essa competência, mas cabe à escola
aperfeiçoá-la, para, assim, emancipar o aluno (LONGHI, 2005).
Deduzimos, desse modo, que o aluno não conhece suficientemente as regras do agir
comunicativo, mas, a partir do momento que ele consegue dominá-las por intermédio do professor,
torna-se linguisticamente competente (LONGHI, 2005), passando a sentir o desejo de compartilhar
convicções, visões de mundo, observações e opiniões.
É mediante essa prática pautada no agir comunicativo que o educador se torna democrático,
o que, nas palavras de Freire (1996), significa não se negar ao dever de reforçar a capacidade crítica
dos alunos e suas curiosidades durante o exercício da docência. Na tertúlia, cumprindo o papel de
mediador dos encontros, o professor estará contribuindo para que os alunos possam manifestar suas
impressões e inquietações a respeito do texto lido.

Um olhar geográfico acerca das obras A menina que roubava livros e A culpa é das estrelas

Depois de começarmos a investigar o universo literário sob uma ótica geográfica, já não
conseguimos ler uma obra sem nos ater aos detalhes, às questões trazidas pelo escritor que, muitas
vezes, por desatenção, deixamos passar despercebidas. Através desse olhar aguçado, percebemos,
a Geografia se faz viva na narrativa. Nessa perspectiva, fizemos a releitura de duas obras literárias,
ambas de escritores estrangeiros que tiveram grande repercussão em nosso país. As obras em foco
são: A menina que roubava livros, do escritor australiano Markus Zusak, e A culpa é das estrelas, do
canadense John Green.
A obra de Zusak (2011) foi publicada pela primeira vez no ano de 2005. Em sua biografia, o
autor relata que a inspiração para o cenário se deu por causa das memórias guardadas pelos seus avós
na Alemanha nazista e na Áustria. Inserir, nesse cenário, uma menina que roubava livros, justifica-se
pela importância que as palavras tinham naquela época em que o conhecimento era bastante temido.
Nessa obra, algo que chama a atenção do leitor, em um primeiro momento, é a excentricidade
de sua narradora, que é a própria morte. Ela descreve a vida de cada um dos personagens, destacando,
nesse processo, as vítimas que se encarrega de buscar, vendo seu trabalho dificultado pela guerra
devido ao grande número de pessoas que morrem todos os dias.
A protagonista da trama é Liesel Meminger, uma menina que inicia o livro com nove anos de
idade. Logo no primeiro capítulo, ela passa por uma experiência traumática ao perder o irmão mais
novo. Em meio à guerra e à pobreza, a única saída encontrada por sua mãe é a de entregar os filhos
para um casal com condições mais favoráveis. Contudo, apenas um deles (no caso, Liesel) chega
vivo a seu novo destino.
É na rua Himmel que Liesel vive momentos especiais ao lado de seus pais adotivos, que, embora
alemães, não concordam totalmente com o regime nazista imposto pelo Führer. É justamente esse

71
ponto que desencadeia situações de conflito ao longo da história, além de momentos marcados pelo
medo, dado o acolhimento de um judeu num regime político em que este sofre duras perseguições.
Em virtude das circunstâncias precárias em que vive, Liesel não é alfabetizada, mas isso não
diminui sua vontade incessante de aprender a ler. Com ajuda de seu pai adotivo, começa a conhecer
as palavras e seus significados, o que desencadeia o roubo de livros, incluindo aqueles proibidos por
serem contra os ideais de Hitler.
O cenário é delimitado pela escassez de alimentos, preconceitos raciais, preconceitos
religiosos e intolerância, que se intensificam ou suavizam conforme o lado que esteja ganhando
ou perdendo a guerra. Também é mostrada uma distinção entre aqueles que, mesmo pertencendo
ao partido nazista, possuem realidades socioeconômicas diferentes. Dessa forma, “[...] a repartição
da população em camadas com acentuadas diferenças de renda, de consumo, de nível de vida etc.
faz com que, em um mesmo espaço, apareça uma variedade de resultados relacionados com os
diferentes aspectos da realidade social” (SANTOS, 2004, p. 40).
Isso é retratado na obra, principalmente, quando Liesel menciona a localização da casa do
prefeito, que se encontra no ponto mais elevado da cidade, diferenciando-se de todas as demais
tanto em relação aos aspectos físicos quanto aos econômicos, considerando o fato de que sua mãe
trabalha como lavadeira de roupa, sendo a esposa do prefeito sua cliente.
Por meio dos conflitos ocasionados pela guerra, percebemos a forte presença de uma
geopolítica mundial, que nos permite entender a influência do poder autoritário do líder nazista
Adolf Hitler, que não media esforços para conquistar territórios e eliminar as raças que julgava
inferiores, propagando ideais deturpados e ferindo os direitos humanos.
O segundo livro ao qual nos propomos reler traz uma abordagem mais atual, que se concentra
numa visão adolescente de pacientes que lutam contra o câncer. Os dois personagens principais,
Hazel e Augustus, possuem respectivamente 16 e 17 anos. Hazel tem o diagnóstico de câncer de
tireoide com metástase no pulmão. Já Augustus tem sua perna atingida por um osteossarcoma,
motivo gerador de uma amputação.
A obra foi publicada pela primeira vez no ano de 2012 e ganhou adaptação para os cinemas dois
anos depois, em 2014. A história se passa em uma cidade real, denominada Indianápolis, localizada
em Indiana. Por vezes, é ressaltado aspectos ligados ao tempo, clima e relevo característicos desse
lugar, que influenciam diretamente na vida de seus habitantes, contribuindo para mudanças no
estado de espírito dos moradores.
Também notamos um sentimento de afeição e identificação por alguns lugares, como o
Holliday Park, que desperta uma lembrança experienciada pela personagem Hazel ainda na infância,
além de ser um parque bastante conhecido pelos habitantes de Indianápolis. Um simples balanço
no quintal de casa, sem muito significado para os outros, em Hazel desperta lembranças de uma
infância que ela mal pôde desfrutar:
72
[...] O balanço ainda estava lá, ervas daninhas brotando da pequena vala que eu havia criado
com os pés ao me impulsionar cada vez mais alto quando era bem novinha. Lembrei do dia
em que papai trouxe para casa o kit de balanço da Toys ‘R’ Us e montou aquele aparato no
quintal com a ajuda de um vizinho [...]. (GREEN, 2012, p. 77).

O ponto alto da narrativa ocorre quando Hazel e Augustus embarcam em uma viagem para
Amsterdã, com o objetivo de conhecer o autor do livro favorito deles. Ao chegarem na cidade, Hazel
vê suas expectativas correspondidas, pois relata que é da maneira que havia imaginado:

Aconteceu tudo de repente: saímos da estrada e vimos as casas geminadas da minha


imaginação repousando precariamente sobre os canais, bicicletas onipresentes, e cafés
anunciando: SALÃO DE FUMO. O táxi passou por cima de um canal e eu pude ver, do alto
da ponte, várias casas flutuantes atracadas. Não se parecia em nada com os Estados Unidos
da América. Parecia uma pintura antiga, só que real — tudo dolorosamente idílico à luz da
manhã —, e eu pensei em como seria maravilhosamente estranho morar num lugar onde
quase tudo havia sido construído por pessoas mortas. (GREEN, 2012, p. 98).

Nessa fala, observamos que a personagem faz referência ao caráter histórico da cidade
de Amsterdã, ao relatar que muitas das construções existentes foram produzidas por pessoas já
falecidas. Santos (2006) utiliza o termo rugosidade para se referir ao que fica no passado, de forma
cristalizada por meio do espaço construído ou de paisagens, que podem aparecer de maneira isolada
ou em arranjos. É sobre essas rugosidades, tão importantes para a história e cultura local, que os
personagens se reportam durante esse momento da narrativa.
Uma das rugosidades mais exploradas no livro é o local onde Anne Frank e sua família se
escondem durante a Segunda Guerra Mundial: um anexo situado no escritório em que seu pai
trabalhava. Essa rugosidade permanece até hoje presente na paisagem de Amsterdã, mas com uma
nova função: foi transformada em um museu, onde os turistas podem visitar cada um dos cômodos.
Feita essa breve explanação, percebemos várias correspondências entre as obras literárias citadas
e a ciência geográfica, tendo em vista as questões sociais, econômicas, físicas, políticas e culturais
abordadas, além de conceitos como paisagem, lugar e rugosidades espaciais, que possibilitam ao
leitor construir conhecimentos sobre temas geográficos.

Proposta de aplicação da tertúlia literária dialógica no ensino de Geografia

Diante das discussões acerca das tertúlias literárias dialógicas e das obras lidas e analisadas,
trazemos uma proposta de aplicação da tertúlia direcionada ao público do Ensino Médio. As turmas
serão definidas com base na abordagem que o professor deseja realizar ao adotar uma das duas obras

73
literárias sugeridas. Como toda e qualquer atividade desenvolvida em sala de aula, a tertúlia precisa
ser planejada para ocorrer da maneira esperada, então, alguns passos iniciais são necessários para que
o objetivo seja alcançado (Quadro 1).

Quadro 1 − Planejando a tertúlia


Etapas Procedimentos
Escolha do livro literário Selecionar o livro que será debatido nos encontros. A escolha pode ser feita
juntamente com os alunos, através de sugestões de títulos trazidos pelo professor.
Frequência de ocorrência Delimitar a ocorrência dos encontros, isto é, se serão semanais, quinzenais ou
mensais. A definição ficará a cargo do professor, adequando a sua rotina de acordo
com a quantidade de aulas que possui por semana.
Horário e duração Determinar o horário em que acontecerão os encontros e a sua duração. Tanto
podem ocorrer durante o horário da aula quanto em um contraturno, depende da
disponibilidade do professor e dos alunos. A duração poderá ser de 1 a 2 horas.
Organização da sala Organizar o local em que ocorrerá o encontro. De preferência, é importante dispor
as cadeiras em círculo para que todos vejam uns aos outros, sem que ninguém tome
a frente.
Delimitação dos capítulos Estabelecer a quantidade de capítulos que serão lidos para cada encontro. A
quantidade pode variar de acordo com o tamanho do capítulo, no caso de serem
longos ou curtos.
Organização das falas Todos os alunos deverão participar da tertúlia. Dessa forma, o mediador deverá
levar uma folha em que possa anotar a ordem das falas, assim como as inscrições
daqueles que desejarem contribuir com o relato do colega, que poderão ser feitas
após a exposição de um grupo de cinco alunos. Também é necessário delimitar o
tempo para que o aluno faça o exercício da palavra, de modo igualitário, podendo
restringir-se a 10 minutos.
Conteúdo das falas Os alunos devem pautar suas falas no livro que está sendo debatido, podendo trazer
até dois trechos para compartilhar e comentar com os colegas.
Fonte: Os autores (2021).

Após a organização de todas essas etapas e tendo em mente os objetivos desejados com a
execução dessa atividade, o professor poderá entregar aos alunos um roteiro (Figura 1) para auxiliar
no decorrer da leitura. O roteiro conta com recursos visuais, auditivos, audiovisuais e curiosidades
acerca de elementos que aparecem na obra, proporcionando, assim, uma experiência mais profunda
de leitura.

74
Figura 1 – Roteiro de leitura

Fonte: Os autores (2021).

75
O QRcode é uma ferramenta que faz parte do universo dos alunos e tem se intensificado cada
vez mais, servindo para diversas atividades. Sendo assim, a utilização deles proporciona o contato
do aluno com a tecnologia através do uso do seu celular, que já se faz tão presente em sua rotina,
mas que agora será utilizado com o objetivo de aprendizagem, além de gerar curiosidade para saber
o que está por trás desse código.

Conclusão

A comunicação é uma necessidade humana, tendo em vista que o homem é um ser social. Mas
em sala de aula, quase sempre nos deparamos com alunos que raramente se manifestam. Diante disso,
surge a necessidade de buscar metodologias que possam impulsionar a participação, proporcionando
um ambiente interativo, cujos integrantes se sintam livres para expor seus argumentos.
É por meio dessa observação que abordamos a metodologia da tertúlia literária dialógica,
mostrando suas potencialidades para o ensino, contribuindo para um trabalho interdisciplinar,
envolvendo literatura e Geografia. Apoiados no agir comunicativo postulado por Habermas
(2012), acreditamos contribuir também com o desenvolvimento da competência comunicativa dos
estudantes, fator capital em toda prática educacional.
Seguindo os princípios elencados na tertúlia, promovemos um ambiente igualitário em que
alunos e professores se veem num mesmo patamar, fundado no respeito e na solidariedade. A leitura
coletiva proporciona uma ligação entre os sujeitos participantes envoltos em um mesmo cenário,
que, por sua vez, podem apresentar diferentes visões acerca dos fatos narrados, influenciados pelas
experiências e conhecimentos que possuem.
Portanto, trabalhar Geografia e literatura na Educação Básica por meio da realização das
tertúlias literárias dialógicas, muito contribui com a aprendizagem, com a contextualização dos
conteúdos e com a ampliação de habilidades comunicativas, favorecendo o desenvolvimento da
autonomia dos alunos e diminuindo receios quanto ao direito de fala em sala de aula.

Referências

FLECHA, R.; MELLO, R. R. Tertúlia Literária Dialógica: compartilhando histórias. Presente!


revista de educação, Salvador-BA, n. 48, p. 29-33, 2005. Disponível em: https://bit.ly/3rCTnrp.
Acesso em: 04 ago. 2020.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25ª ed. São Paulo:
Paz e Terra, 1996.
76
GONSALVES, E. P. Conversas sobre iniciação à pesquisa científica. Campinas-SP: Alínea,
2001.

GREEN, J. A culpa é das estrelas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012.

GARCÍA, R. F.; CARRIÓN, R. G.; GONZÁLEZ, A. G. Transferencia de tertulias literarias


dialógicas a instituciones penitenciarias. Revista de Educación, Madrid, n. 360, p. 140-161, 2013.
Disponível em: https://bit.ly/3rD9mWD . Acesso em: 02 ago. 2020.

HABERMAS, J. Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social.


Tradução de Paulo Astor Soethe. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

LONGHI, A. J. A ação educativa na perspectiva da teoria do agir comunicativo de Jurgen


Habermas: uma abordagem reflexiva. 2005. 165 f. Tese (Doutorado) − Universidade Estadual de
Campinas, Faculdade de Educação, Campinas, 2005. Disponível em: https://bit.ly/3JkrgDz. Acesso
em: 30 mar. 2021.

PULIDO, C.; ZEPA, B. La interpretación interactiva de los textos através de las tertulias literarias
dialógicas. Revista Signos, Valparaíso, v. 43, n. 2, p. 295-309, 2010. Disponível em: https://bit.
ly/34sGZS8. Acesso em: 03 mar. 2021.

SANTOS, M. Por uma geografia nova: da crítica da geografia a uma geografia crítica. 6ª ed. São
Paulo: Edusp, 2004.

SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4ª ed. São Paulo: Edusp,
2006.

SOLER, M.; FLECHA, R. Desde los actos de habla de Austin a los actos comunicativos. Perspectivas
desde Searle, Habermas y CREA. Revista Signos, Valparaíso, v. 43, n. 2, p. 363-375, 2010. Disponível
em: https://bit.ly/3HEjfJh. Acesso em: 05 ago. 2020.

ZUSAK, M. A menina que roubava livros. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Intrínseca,
2011.

77
O PATRIMÔNIO ALIMENTAR BRASILEIRO NA ABORDAGEM
GEOEDUCACIONAL: COMER E APRENDER

Silvia Heleny Gomes da Silva


silviaheleny@gmail.com

“Patrimônio é tudo o que criamos, valorizamos e queremos pre-


servar: são os monumentos e obras de arte, e também as festas,
músicas e danças, os folguedos e as comidas, os saberes, fazeres e
falares. Tudo enfim que produzimos com as mãos, as ideias e a
fantasia”.
Cecília Londres

Introdução

O presente texto tem como objetivo refletir sobre o patrimônio alimentar a partir do debate
geográfico. Utiliza-se da Geoeducação, também denominada de Educação Patrimonial Geográfica,
enquanto perspectiva teórica e metodológica para a discussão que aqui se delineará.
Parte-se do pressuposto, como mencionado no título do texto, que o patrimônio alimentar
brasileiro pode proporcionar conhecimento geoeducativo através do comer e aprender – ações tão
necessárias cotidianamente. Pela boca não se entra apenas o alimento em si, mas ele é simbolizado
anteriormente pela cultura de um grupo que o transforma em comida, e, portanto, participa da
construção das suas identidades individuais e coletivas. Segundo Cosgrove (2012, p. 236) “[...] a
geografia está em toda parte, reproduzida diariamente por cada um de nós”. Portanto, no ato da
alimentação existem saberes geográficos, históricos, políticos, ambientais, sociais e culturais que a
demarcam como parte constituinte e fundamental da vida das pessoas. Saberes estes transformados
em uma infinita combinação de sabores Brasil adentro.
Falar de patrimônio não diz respeito somente aos já consagrados monumentos, prédios
e objetos históricos que conformam o constructo do bem cultural de natureza material. Mas
extrapola essa compreensão quando convoca a pulsante imaterialidade patrimonial existente em
todos os cantos e lugares desses brasis, costurados a partir da sua diversa riqueza étnica expressa em
inúmeras manifestações culturais. Pela lente da alimentação, tem-se uma instigante perspectiva a ser
aprofundada geograficamente para compreender a potência dos patrimônios alimentares brasileiros
pela abordagem geoeducacional.

78
O território nacional e a alimentação: o caso do IPHAN e do INPI

Atualmente, no Brasil, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)


e o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) são dois importantes órgãos que tecem
um importante debate acerca da temática da alimentação no território nacional. O primeiro pela
perspectiva de patrimônio cultural e o segundo pela perspectiva da indicação geográfica.
Vale ressaltar que o IPHAN é uma autarquia federal do governo brasileiro vinculada ao
Ministério do Turismo, como também é responsável pela preservação e divulgação do patrimônio
material e imaterial do país. O INPI também é uma autarquia federal do governo brasileiro vinculado
ao Ministério da Economia, sendo responsável, todavia, por gerir o sistema brasileiro de concessões
(patentes, marcas etc), dentre elas a indicação geográfica que liga um produto ou serviço ao seu local
de origem.
É por essa linha de raciocínio que esta reflexão se desenha. Tanto o IPHAN quanto o INPI se
utilizam de classificações que localizam a alimentação e suas dinâmicas dentro do território nacional
a partir de práticas e produtos alimentares.
Como dito anteriormente, é pela perspectiva do patrimônio cultural que o IPHAN trabalha,
sendo definido como “um conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação
é de interesse público”, segundo o Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 19371. Para se referir
ao patrimônio cultural é preciso aceitar sua abrangência temática, a colaboração de distintos campos
do saber e suas múltiplas concepções. É um assunto que continuamente está em pauta por causa
da crescente patrimonialização de bens culturais brasileiros. Estes sofrem interferência de políticas
internacionais como as advindas da Organização das nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura (UNESCO), que é referência do tratamento da temática aqui elencada, principalmente
pela montagem da extensa listagem do patrimônio da humanidade, pulverizado nos mais diversos
lugares do mundo. Referência essa que desperta a curiosidade das pessoas, as motiva a viajar, a
consumir, a aprender e a ter pertencimento por algo que é reconhecido oficialmente como sendo
seu também, seja no seu bairro ou cidade, ou até em outro continente além-mar. Na figura 1 tem-
se um esquema gráfico para representar a divisão do patrimônio cultural segundo o IPHAN.
A partir do exposto, faz-se a seguinte pergunta: onde está a alimentação? Essa é uma indagação
pertinente para começar a compreender o universo alimentar dentro do entendimento do IPHAN.
Ela é concebida como algo de natureza material ou imaterial? É híbrida? Afinal, ela convoca
materialidades e imaterialidades. Essas são questões importantes de serem levantadas para descobrir
a vastidão temática que o patrimônio cultural suscita.

1 Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/126 . Acesso em: 10 fev. 2022.

79
Figura 1 – Divisão do Patrimônio Cultural (IPHAN)

Fonte: Elaborado pela autora (2022).

O patrimônio cultural material é protegido pelo processo de tombamento, onde passa a ser
fiscalizado pelo IPHAN, que verifica as condições de conservação, além de registrá-lo em algum dos
Livros do Tombo, que é subdividido em Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico;
Livro do Tombo Histórico; Livro do Tombo das Belas Artes; e Livro do Tombo das Artes Aplicadas.
O patrimônio cultural imaterial é protegido pelo processo de salvaguarda, que registra práticas
sociais apropriadas por grupos históricos e que passam de geração a geração, compondo sentimento
de identidade e continuidade. O Decreto-lei n° 3.551, de 4 de agosto de 20002, instituiu o Registro
de Bens Culturais de Natureza Imaterial e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial
(PNPI). Os patrimônios imateriais estão listados nos Livros de Registro, que se subdivide em:
Livro de Registro dos Saberes; Livro de Registros das Celebrações; Livro de Registro das Formas de
Expressão; e Livro de Registros dos Lugares.
Tanto os patrimônios materiais como os patrimônios imateriais são averiguados pela
metodologia de pesquisa desenvolvida pelo IPHAN chamada de Inventário Nacional de Referências
Culturais (INRC)3. É por ele que informações são levantadas, estudadas e organizadas para o
possível tombamento ou salvaguarda de um determinado bem cultural.
Os patrimônios imateriais ligados à alimentação se referem aos processos/ofícios e não aos
produtos alimentares em si, apesar destes serem parte integrante dos processos que lhe dão origem.
De bens culturais registrados pelo IPHAN relativos à alimentação existem seis, conforme relação
abaixo:
2 Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/606. Acesso em: 10 fev.2022.
3 Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/685/. Acesso em 10 fev. 2022.
80
Bens Registrados Relativos à Alimentação (IPHAN)

• Ofício das Baianas de Acarajé (2004);


• Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas, nas regiões do Serro, da Serra da Canastra e
Salitre/Alto Paranaíba (2008);
• Sistema Agrícola do Rio Negro (2010);
• Modo de Fazer Tradicional da Cajuína do Piauí (2014);
• Tradições Doceiras da Região de Pelotas e Antiga Pelotas (2018);
• Sistema Agrícola Tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira (2018).

Todos esses bens culturais listados são considerados, portanto, Patrimônios Culturais do
Brasil, tendo, por isso, potenciais elementos de discussão e aprendizagem geográfica. Quando se
come, por exemplo, um acarajé com cajuína, é toda uma ancestralidade que se está pondo ao alcance
da boca, das mãos e do aprender. Estar atento a essas redes de ligações que extrapolam o alimento
em si é o que se quer enfatizar durante o presente texto.
Referente ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), ele trabalha a alimentação
pela perspectiva da indicação geográfica, através de produtos alimentares que possuem a Indicação
Geográfica Protegida (IG ou IGP). Dentro dessas IGs tem-se duas principais divisões, que são: as
Indicações de Procedência Reconhecidas (IP), que traz o nome geográfico do local como referência
de extração, produção ou fabricação de um determinado produto; e as Denominações de Origem
Reconhecidas (DO), que traz o nome geográfico do local como referência das qualidades específicas
de fatores naturais e humanos no resultado do produto. Na análise do Quadro 1 é possível ter essa
divisão melhor demarcada através de exemplos, esses são apenas alguns.
Quadro 1 – Produtos com IGs de Procedência e de Origem (INPI)
Indicações de Procedência (IP) Denominações de Origem (DO)
Região de Mara Rosa (GO): Açafrão Costa Negra (CE): Camarões marinhos
Pelotas (RS): doces tradicionais de confeitaria e de Manguezais de Alagoas (AL): Própolis
frutas vermelha e extrato de própolis vermelha
Região do Cerrado Mineiro (MG): café Litoral Norte Gaúcho (RS): Arroz
Vale do Submédio São Francisco (PE/BA): uvas de Mamirauá (AM): Pirarucu manejado
mesa e manga
Paraty (RJ): aguardentes tipo cachaça e Ortigueira (PR): Mel de abelha - Apis Mellífera
aguardente composta azulada etc
Rio Negro (AM): Peixes Ornamentais Terra Indígena Andirá-Marau (AM/PA): Waraná (gua-
raná nativo) e pães de waraná (bastão de guaraná)
Maués (AM): Guaraná Região de São Joaquim (SC): Maçã Fuji
Fonte: Elaborado pela autora (2022).

81
A listagem dos produtos com IGs4 é bem maior do que o exemplo trazido no Quadro 1
listado acima. Para os produtos com IP existem cinquenta e um (51), já para os produtos com DO
existem dezoito (18). Todos eles referentes a produtos alimentícios nacionais. Contudo, na extensa
lista desenvolvida pelo INPI entram produtos de outras nacionalidades e ramos econômicos, o que
aumenta a quantidade de itens. Porém, eles não foram levados em consideração para o presente
estudo, pois o interesse é pelos chamados patrimônios alimentares brasileiros.
Vale lembrar que toda essa movimentação alimentar no território nacional está alicerçada a
questões culturais e econômicas, que acabam por criar dinâmicas socioespaciais locais e que são
exportadas para outros estados, regiões e até países. O INPI estimula junto do Serviço Brasileiro de
Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) movimentações cada vez maiores desses produtos
alimentícios que recebem selos, permitindo-os entrar em comercializações dentro e fora do mercado
nacional.
Esses produtos alimentícios incorporam valores culturais na localidade onde são produzidos
e os levam também para fora dela por meio de mercadorias com selos que garantem ao consumidor
um produto de qualidade e que é bem visto pelo comércio. O vai e vem de saberes e sabores
ultrapassam fronteiras.
O que diferencia uma Indicação de Procedência (IP) de uma Denominação de Origem
(DO) é o fato da primeira se referir mais a uma reputação que uma localidade tem na produção
de algum item alimentar ou não; e a segunda está mais atrelada a uma relação profunda com o
território, principalmente pelas qualidades específicas de elementos do meio ambiente e humanos
que resultam em um produto com características singulares.

Patrimônio e cultura alimentar

Constatou-se que os órgãos federativos citados anteriormente junto a outras tantas instituições
movimentam a cultura, o turismo, a economia e a educação, pois informações e mercadorias
são trocadas, bem como influências culturais advindas de passeios e viagens. A todo momento a
alimentação está em pauta na vida cotidiana.
Nesse sentido, o patrimônio alimentar brasileiro se mostra variado e repleto de conhecimentos
que falam de lugares, pessoas, ambientes, culturas e da prática da vida. Segundo Corona, Matta e
Suremain (2019), entende-se por patrimônio alimentar:

O patrimônio alimentar compreende o conjunto de elementos materiais e imateriais


das culturas alimentares considerado por uma sociedade ou grupo como uma herança
compartilhada, como um bem comum. Está inclusive praticamente todo relacionado à

4 Disponível em: https://www.gov.br/inpi/pt-br/servicos/indicacoes-geograficas/pedidos-de-indicacao-geografica-no-brasil.


Acesso em 10 fev. 2022.

82
alimentação: os produtos agrícolas – brutos e transformados -, as receitas e livros de receitas,
as técnicas e habilidades, os modos à mesa, as manufaturas e tecnologias alimentares, as
formas de consumo, a sociabilidade e o simbolismo alimentar. (BÉSSIÈRE e TIBÈRE,
2010; LABORDE e MEDINA, 2015 apud CORONA; MATTA; SUREMAIN; 2019, n.p.
tradução da autora).

A partir do exposto acima, é pertinente afirmar que um patrimônio alimentar só se cons-


trói se uma base cultural existir antes. Ou seja, é preciso que os sujeitos criem relações culturais e
simbólicas com os alimentos para que os patrimônios alimentares existam. A cultura alimentar se
faz pertinente e necessária na discussão do patrimônio. Afinal, ela deriva de memórias individuais e
coletivas, de sentimentos de pertencimento e valores socioculturais, de hierarquias e classificações a
partir do domínio, poder e crença.
Montanari (2004) diz que:

Comida é cultura quando produzida, porque o homem não utiliza apenas o que encontra na
natureza (como fazem todas as outras espécies animais), mas ambiciona também criar a
própria comida, sobrepondo a atividade de produção à de predação. Comida é cultura quando
preparada, porque, uma vez adquiridos os produtos-base da sua alimentação, o homem os
transforma mediante o uso do fogo e de uma elaborada tecnologia que se exprime nas
práticas da cozinha. Comida é cultura quando consumida, porque o homem, embora podendo
comer de tudo, ou talvez justamente por isso, na verdade não come qualquer coisa, mas
escolhe a própria comida, com critérios ligados tanto às dimensões econômicas e nutricionais
do gesto quanto aos valores simbólicos de que a própria comida se reveste. (MONTANARI,
2004, p. 16, grifos do autor).

A comida, portanto, comunica histórias, geografias, sentimentos, percepções de mundo, va-


lores, identidades e, principalmente, culturas. Por isso, pode-se afirmar que a cultura alimentar é
muito mais que um conceito que fala de ingredientes e modos de preparo dos alimentos, mas re-
presenta todo o funcionamento de uma sociedade que se quer viva, forte e perpetuada. A alimenta-
ção se transforma, absorve e nega influências culturais de acordo com a mudança da sociedade. Ela
oscila conforme os interesses políticos e econômicos do mundo. Sua ausência se evidencia através
do fenômeno da fome e sua abundância está revestida de ideologias de respeito ou desrespeito à
natureza, tanto pela agroecologia como pelo agronegócio. A geopolítica dos alimentos dinamiza o
mundo desde o princípio da humanidade, seja pela prática do escambo ou pela negociação das com-
modities nas bolsas de valores.
A cultura alimentar se expressa também nas distintas paisagens do espaço geográfico. Con-
sequentemente, essas paisagens são produto dessa cultura, formando o que Sauer (2012) chama de
paisagem cultural; essa que é produto da ação do homem na paisagem natural, a fim de satisfazer as
suas necessidades e desejos. Assim, a paisagem cultural apresenta como sustento o processo que lhe
fabrica, a função que lhe dá finalidade e a forma que lhe representa visivelmente (SAUER, 2012).

83
O Ceará no enfoque da cultura alimentar e do patrimônio gastronômico

Sendo assim, cultura alimentar e paisagem cultural estabelecem relações intrínsecas. Como
exemplo recente do debate sobre a cultura alimentar, no estado do Ceará houve um grande avanço
nesse sentido. No dia 6 de agosto de 2021, o governador Camilo Santana sancionou duas leis
importantes para a cultura cearense. A primeira diz respeito à instituição da Chancela da Paisagem
Cultural do Ceará, que objetiva candidatar a Chapada do Araripe5 como Patrimônio Cultural e
Natural da Humanidade junto à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO). A segunda lei institui a Política Estadual da Gastronomia e Cultura Alimentar
do Ceará e cria o Programa Ceará Gastronomia.
Ambas as iniciativas representam um passo importante para a cultura cearense. Segundo a
matéria do Governo do Estado do Ceará (2021)6:

Com a aprovação da Política Estadual da Gastronomia e da Cultura Alimentar será possível


salvaguardar o Patrimônio Gastronômico do Estado do Ceará em toda a sua diversidade e
origem, bem como os modos de fazer e os saberes relacionados à cultura alimentar, de forma
a garantir a preservação das tradições locais como um dos aspectos de desenvolvimento da
gastronomia, cultura material e imaterial de grupos familiares, indígenas, quilombolas,
comunidades de matriz africana ou de terreiro, pescadores artesanais, aquicultores,
maricultores, silvicultores, extrativistas, suas cooperativas e associações e demais povos e
comunidades tradicionais. (GOVERNO DO ESTADO DO CEARÁ, 2021).

A proposta é boa, contudo, é preciso estar atento aos interesses dos agentes e processos
envolvidos nessa iniciativa, que traz embutida em si objetivos mercadológicos para o setor do turismo
de serra e gastronômico, que não deixa se voltar para a prática de um turismo de massa. Fazer o
contraponto a essas questões é fundamental para uma boa execução e manutenção do projeto, para
que as comunidades sejam participantes e não coadjuvantes.
De acordo com Chuva (2012):

[...] a noção de patrimônio cultural não é desinteressada. E, por isso mesmo, não se trata de
descobrir uma noção verdadeira, pois ela não é única. Trata-se de explicitar a noção em uso e
as divisões que ela provoca, considerando as lutas de representação que remetem a diferentes
apropriações dessa mesma noção. (CHUVA, 2012, p. 163-164).

5 É uma formação rochosa e sítio paleontológico que abriga uma floresta nacional, uma área de proteção ambiental e um
geoparque (área protegida e considerada patrimônio geológico) que está presente na divisa dos estados do Ceará, Pernambuco e
Piauí, no território brasileiro.
6 Governador sanciona lei que institui a Chancela de Paisagem Cultural do Ceará e lei da Política Estadual da Gastronomia e Cultura
Alimentar do Ceará. Disponível em: https://www.ceara.gov.br/2021/08/06/governador-sanciona-lei-que-institui-a-chancela-de-
paisagem-cultural-do-ceara-e-lei-da-politica-estadual-da-gastronomia-e-cultura-alimentar-do-ceara/#:~:text=Com%20a%20
aprova%C3%A7%C3%A3o%20da%20Pol%C3%ADtica,das%20tradi%C3%A7%C3%B5es%20locais%20como%20um. Acesso
em: 24 fev.2022.

84
Salvaguardar o patrimônio gastronômico do estado do Ceará, que se enquadra como um
patrimônio cultural, anuncia a “[...] atribuição seletiva de valores (artístico, histórico, paisagístico,
etnográfico, etc.) a artefatos ou práticas sociais” (ARANTES, 2010, p. 52). Cabe aqui a reflexão sobre
o desafio para se conhecer as multiplicidades que conformam esse dito patrimônio gastronômico,
que é plural por sua própria natureza. Como apontado por Chuva (2012) e Arantes (2010), ao se
definir o que é patrimônio, faz-se escolhas que selecionam certos elementos e se ignoram outros. O
desafio é justamente este, atribuir valores que não segreguem a riqueza da diversidade.
Nogueira (2015) contribui nesse pensamento sobre a patrimonialização quando diz:

Em resposta a uma demanda social voltada para o passado, o ato de patrimonializar passa
então a designar todo o processo de atribuição de valor e significado a bens e práticas
culturais que são identificados e reconhecidos segundo os interesses específicos dos grupos
de identidade. (NOGUEIRA, 2015, p. 40).

Para tanto, atribuir valores e significados perpassa pelas subjetividades e sensibilidades das
pessoas. A abordagem interdisciplinar para esse processo de patrimonialização, nesse sentido, faz-
se mais que necessária como uma forma de acolher as diferenças que constituem essa tecelagem
coletiva que o patrimônio imaterial convoca. O reconhecimento desse patrimônio gastronômico
pluralizado tem que vir de dentro para fora, ou seja, daqueles que o dão corpo na prática do cotidiano
(as comunidades), e que irão permitir que os de fora (os agentes interessados) tenham a experiência
em profundidade e afetivamente. Afinal, “todos os homens compartilham atitudes e perspectivas
comuns, contudo, a visão que cada pessoa tem do mundo é única e de nenhuma maneira fútil”
(TUAN, 2012, p. 338).
Conforme Rocha (2017), parafraseando a concepção de Johnson e Baumann (2015), afirma
que:

[...] a noção de paisagem alimentar, nos termos de Johnson e Baumann (2015), concebida
como uma construção da dinâmica social que relaciona comida a lugares, pessoas,
significados, processos materiais e práticas, implicando um vínculo dinâmico entre cultura
alimentar (gosto, significado) e materialidade alimentar (estrutura social, paisagem física,
ecologia), como contribuição para o entendimento do que vem conformando a alimentação
em nossos dias e ecoando em contexto migratório. (JOHSON e BAUMANN, 2015 apud
ROCHA, 2017, p. 647).

Relacionar a cultura alimentar, em suas mais variadas expressões e manifestações, com as


paisagens alimentares, contribui com o entendimento da própria amplitude que a discussão sobre
o patrimônio gastronômico cearense convida. Portanto, “os homens comem como a sociedade
os ensinou” (FRANCO, 2010, p. 26). E nessa sociedade tão heterogênea, existem muitas formas

85
de comer e inumeráveis receitas e culinárias mundo a fora e Ceará a dentro. A cultura alimentar
assim como o patrimônio é um campo de disputas, e a paisagem vai revelar tais imbricamentos que
acometem as feições do espaço geográfico. Enquanto isso, os saberes e sabores são praticados nas
cozinhas mais equidistantes e centrais, com gosto de fava de Redenção, dos temperos de Mulungu,
do café de Guaramiranga, da cajuína de Beberibe, das cachaças e licores de Viçosa do Ceará, do
queijo coalho de Jaguaribe, do maracujá de Ubajara, dos aspargos de Icapuí, do baião com pequi do
Crato, do caldo de mocotó e carne de bode do Juazeiro do Norte, da moqueca de Aquiraz, da carne
seca de Aracati e de todas as outras rotas possíveis e passíveis de saberes e sabores.

Geoeducação alimentar: possibilidades e desafios

Para Oliveira (2015, p. 34) “geoeducação corresponde ao exercício de envolvimento de uma


coletividade, com seu espaço coletivo peculiar (simbólico), visando efetivo aperfeiçoamento da
aprendizagem valorativa”. No que se refere aos patrimônios alimentares, compreender as dinâmicas
socioespaciais que os alimentos criam e interrelacionam com várias dimensões geográficas do
cotidiano vivido e percebido, evidencia que o processo geoeducativo proporciona e amplia os
saberes atinentes ao universo que é composto de pessoas, culturas alimentares, paisagens, lugares,
significados e simbolismos.
Dessa forma, é possível criar um ensino e uma aprendizagem geográfica a partir do estudo da
alimentação, sendo a Geoeducação um caminho interessante a ser percorrido. Os exemplos trazidos
a partir do IPHAN e do INPI são apenas um pontapé para uma perspectiva de análise e pesquisa que
se faz rica e atraente para um entendimento mais amplo da geografia e da própria vida que a tece.
Perante uma alimentação cada vez mais globalizada, industrializada e manipulada por
empresas multinacionais através de produtos ultraprocessados, aprender sobre o que é “daqui”
e o que constitui as identidades locais e regionais alimentares do Brasil é uma oportunidade de
valorização cultural brasileira. O processo geoeducativo pretende isto: envolver uma aprendizagem
significativa e valorativa através da experiência geográfica sobre um determinado assunto que
possibilite conexões e movimentações conceituais.
Quando se fala de alimentação, se fala de cultura, história, geografia, arte, ciência, política,
economia, ambiente, fala-se da vida cotidiana praticada por milhões de pessoas. Proporcionar uma
Geoeducação ou uma Educação Patrimonial Geográfica pelo foco alimentar é permitir que conexões
sejam feitas para ampliar o entendimento de mundo com vistas à transformação social. Construir
sistemas alimentares mais sustentáveis, controlar a publicidade alimentar destinada ao público
infantil, juvenil e adulto, estimular o consumo de alimentos provenientes da agricultura familiar
porque proporcionam saúde e bem-estar não são ações utópicas, mas completamente possíveis de
acontecer.
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Segundo o Guia Alimentar para a População Brasileira (2014), que é um importante
documento destinado à discussão da alimentação brasileira:

[...] instrumentos e estratégias de educação alimentar e nutricional devem apoiar pessoas,


famílias e comunidades para que adotem práticas alimentares promotoras da saúde e para que
compreendam os fatores determinantes dessas práticas, contribuindo para o fortalecimento
dos sujeitos na busca de habilidades para tomar decisões e transformar a realidade, assim
como para exigir o cumprimento do direito humano à alimentação adequada e saudável.
É fundamental que ações de educação alimentar e nutricional sejam desenvolvidas por
diversos setores, incluindo saúde, educação, desenvolvimento social, desenvolvimento
agrário e habitação. (BRASIL, 2014, p. 23).

Nesse sentido, a abordagem geoeducacional pela via da alimentação contribui com o debate
sobre a educação alimentar e nutricional e seus desdobramentos sobre a vida das pessoas. Promover
educação, saúde e desenvolvimento social, tal como proposto pelo Guia Alimentar mencionado
acima, é um belo e pertinente caminho pelo qual a Geografia pode contribuir enormemente. Nos
espaços educativos formais e informais, a alimentação sempre se faz presente, tal como a geografia,
e aproveitar essas oportunidades para debater e construir conhecimentos constitui um verdadeiro
ganho social.

Conclusão

Ouvir, tatear, cheirar, ver e degustar as possibilidades dos patrimônios alimentares é reconhecer
a sua infinita pluralidade, dado que o patrimônio é vivo (POULOT, 2009). Por isso, construir uma
postura cidadã crítica perante o que a indústria de alimentos manipula e vende continuamente como
a melhor opção de consumo, faz-se um desafio possível de ser realizado no cotidiano. Os indivíduos
não podem e nem devem ser reduzidos a meros consumidores sem identidades, histórias, geografias
e pertencimentos.
É sobre esses elementos de conexão com a vida, com a ancestralidade e com a cultura que
a abordagem geoducacional alimentar se propõe. Como mencionado por Barcellos (2017, p.
42): “o gosto está no suco das coisas. O suco é o saber das coisas. Saber é extrair o suco”. Assim,
pode-se concluir que pela alimentação as possibilidades de saberes, sabores e aprendizados se faz
interessante, pertinente e estimulante. E a Geografia, enquanto ciência relacional, permite abrir
inúmeras perspectivas para a compreensão do mosaico multicolorido que é o espaço geográfico. É
preciso extrair o suco das coisas para aprender.
Portanto, como disse Dardel (2015, p. 6) “[...] a experiência geográfica, tão profunda e tão
simples, convida o homem a dar à realidade geográfica um tipo de animação e de fisionomia em que
ele revê sua experiência humana, interior ou social”. A discussão aqui proposta foi um carinhoso
convite para essa experiência através dos patrimônios alimentares brasileiros.
87
Referências

ARANTES, Antonio Augusto. A salvaguarda do patrimônio cultural imaterial no Brasil. In: Inovação
cultural, patrimônio e educação. BARRIO, Ángel Espina, MOYYA, Antonio, GOMES, Mário
Hélio (Orgs.). Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Massangana, 2010.

BARCELLOS, Gustavo. O banquete de psique: imaginação, cultura e psicologia da alimentação.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

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Departamento de Atenção Básica. – 2. ed., 1. reimpr. – Brasília: Ministério da Saúde, 2014.

CHUVA, Márcia. Por uma noção de patrimônio cultural no Brasil. Revista do Patrimônio. Rio
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CORONA, Sarah Bak-Geller; MATTA, Raúl; SUREMAIN, Charles-Édouard de. Los contornos
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DARDEL, Eric. O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva,
2015.

Documentário “Expedição Gastronômica” | TV O Povo e Canal Futura |, 2019. Disponível


em: https://www.youtube.com/watch?v=4ZiyL-u6KZU&ab_channel=ViniciusAugustoBozzo.
Acesso em: 24 fev. 2022.

FRANCO, Ariovaldo. De caçador a gourmet: uma história da gastronomia. São Paulo: Editora
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para saber mais / Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; texto e revisão de, Natália
Guerra Brayner. – 3ª ed. -- Brasília, DF: Iphan, 2012.

MONTANARI, Massimo. Comida como cultura. São Paulo: Editora Senac, 2004.

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OLIVEIRA, Christian Dennys Monteiro de. Geoeducação das representações religiosas. Revista
Mercator, 2015.

88
POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente, séculos XVIII-XXI: do
monumento aos valores. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

ROCHA, Carla Pires Vieira da. Paisagem alimentar sob os fluxos globais: alimentação e estilos de
vida de imigrantes transnacionais em Amsterdã. Razón y Palabra. v. 21, n. 96, p. 643-659, 2017.

SAUER, Carl O. A morfologia da paisagem. In: CORRÊA, R. e ROSENDAHL, Z. (orgs.).


Geografia cultural: uma antologia. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012.

TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Tradução:
Lívia de Oliveira. Londrina: Eduel, 2012.

UNESCO. Patrimônio imaterial no Brasil/ Maria Laura Viveiros de Castro e Maria Cecília
Londres Fonseca. Brasília: UNESCO, Educarte, 2008.

89
RAIZ FARINHA BEIJU: PATRIMÔNIO ALIMENTAR QUILOMBOLA NA TELA

Leonardo Pinheiro
leonardopinheirocontato@gmail.com

Patrícia dos Santos Pinheiro


patriciasantspinheiro@gmail.com

Introdução

Entre os anos de 1980 e 2010 assistimos a mudanças sensíveis na relação do Estado Brasileiro
com as suas minorias étnico raciais, processo que também foi visualizado em outras regiões da América
Latina com a elaboração de constituições que procuram contemplar os diferentes grupos sociais de
seus respectivos países (VAN COTT, 2000). O debate também se deu no campo do patrimônio,
que a partir da ampliação da mobilização de movimentos sociais articulados à sociedade civil (que
já vinha da década de 1970), pressionaram o Estado no reconhecimento estatal do patrimônio
imaterial brasileiro, indo, assim, além do patrimônio de pá e cal, ou seja, materializado em grandes
estruturas coloniais. Abre-se a processos mais inclusivos, como de conhecimentos tradicionais,
práticas culturais, manifestações artísticas, muitas delas sem registros escritos e, também, distantes
de uma valorização ampla da sociedade (FREIRE, 2005).
Dentre as questões que emergem, podemos apontar para a pouca representação de expressões
afrobrasileiras entre bens culturais reconhecidos e, quando ocorre, a essencialização de certas
práticas tradicionais, como se não passassem por reinvenções. De modo a respeitar a diversidade
social e cultural do Brasil, o patrimônio pode ser visto em sua relação com a construção identitária,
a história, o reconhecimento de diferentes manifestações culturais e seus guardiões.
Um dos inúmeros elementos que compõem o rico patrimônio cultural brasileiro é a
alimentação, que abordaremos aqui a partir de práticas quilombolas, registradas em audiovisual
em projetos de pesquisa e extensão na comunidade quilombola de Mituaçu, na Paraíba1. Esse
patrimônio se expressa em saberes renovados e moldados coletivamente de geração em geração,
da produção ao consumo, com posição relevante das mulheres para a manutenção da segurança e
soberania alimentar familiar e comunitária.
1 Projeto de extensão Histórias de Quilombo, atualmente vinculado à PRAC (CCHLA/UFPB), coordenado por Aina Azevedo
e Patrícia Pinheiro. Projeto de pesquisa Práticas e conhecimentos quilombolas na Paraíba e no Rio Grande do Sul: experimenta-
ções de extensão, ensino e pesquisa etnográfica com materiais sensíveis (Edital Universal Cnpq 2018), vinculado à Unila.

90
Para o presente texto, apresentaremos uma das atividades realizadas em Mituaçu, a produção
do filme Raiz Farinha Beiju2 (2021), seguido de algumas reflexões sobre o uso de imagens junto a
comunidades quilombolas.

O encontro com Mituaçu

As comunidades quilombolas brasileiras são afetadas por diversas metamorfoses, que vêm
desde o processo colonial, chegando ao mundo contemporâneo com transformações decorrentes
do crescimento urbano atual: poluição, expropriação de terras, dificuldade de acesso aos meios
de produção, exploração da força de trabalho, situações de preconceito e racismo, necessidade de
migração em busca de trabalho, entre outros.
Apesar desses elementos estruturais dificultadores da soberania e segurança alimentar em
comunidades quilombolas do Brasil – como Mituaçu, município do Conde, no litoral sul da
Paraíba, uma das 44 comunidades auto-reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares no estado
–, pequenas lavouras para autoconsumo e para comercialização em pequena escala de variedades
de milho, feijão, batata, mandioca, abóbora (ou jerimum), entre outros, compõem a produção de
roçados e lavouras. Os quintais e jardins são povoados de plantas medicinais, verduras e frutíferas e
a criação de animais e a pesca também é significativa. Por vezes, a complementação se dá por meio
do trabalho em lavouras de monocultivos, como a cana e abacaxi, atividades que têm em comum o
regime de trabalho precarizado e que perduram até os dias atuais.
Saindo da produção agropecuária e entrando nas cozinhas, o leite de coco percorre diversos
preparos, como peixes, vários tipos de caranguejo, camarão fresco, canjica e bredo; e a casa de farinha,
menos numerosa, mas sempre ativa, é um espaço de verdadeira transformação da macaxeira em
beiju, tapioca ou farinha. Apesar dos momentos de comida escassa, de trabalhos precários, os
quilombos também são locais do desenvolvimento de refinados conhecimentos sobre a produção
e a alimentação, ressignificados atualmente como referências que influenciam ações coletivas e
fortalecem o território.
Registros das práticas e memórias quilombolas em Mituaçu têm sido feitos pelo projeto
Histórias de Quilombo desde 2017 em parceria com a escola municipal Ovídio Tavares de Morais,
localizada no interior da comunidade, culminando em filmes etnográficos, ensaios fotográficos e
uma coleção etnobotânica em curso, mostrando também a formação e reconfiguração do território

2 Créditos do filme: Direção: Patrícia Pinheiro. Registros e entrevistas: Aline Paixão, Patrícia Pinheiro, Nayanne França, Ga-
briel Vidal da Silva, Irenilze Roberto da Paixão. Entrevistados: Edielson Souza de Lima, Laurenice Bezerra da Silva, Marcone
Xavier da Silva, Marinilze da Silva Ferreira, Sebastião P. Borba, Sophia Teixeira, Nivaldo Vidal. Edição e finalização: Leonardo
Pinheiro e HP Rodrigues. Apoio: Pamin - Patrimônio, Memória e Interatividade, UFPB Arandu - Laboratório de Antropologia
Visual UFPB, Escola Ovídio Tavares de Morais, PRAC – CCHLA/UFPB e CNPq. Ver: https://www.youtube.com/watch?v=Ja-
QDbrUvfSo.

91
quilombola3. As ações se pautam no diálogo com a Antropologia Visual e da Imagem, e se propõem
a estimular atividades e produzir conteúdo de educação formal e não formal para as relações étnico-
raciais, em consonância com a Lei 10.639/2003.
Com isso, a elaboração do filme Raiz Farinha Beiju ocorreu com relatos sobre estratégias
quilombolas de segurança e soberania alimentar ao percorrer roçados, lavouras, quintais, cozinhas
e, finalmente, a casa de farinha, que nos mostram um caminho para perceber a forma como a
biodiversidade é cultivada criativamente e valorizada na busca de um bem viver nesses territórios
ao longo do tempo.
Mituaçu tem mantido suas práticas agropecuárias voltadas à produção de alimentos para
subsistência e comercialização em baixa escala, com práticas que, em boa medida, dialogam com
cuidados com a manutenção dos territórios, como em outros territórios negros brasileiros (SANTOS
e GARAVELLO, 2016), apesar dos frequentes ataques às matas, mangues e rios que circundam e
protegem a comunidade (PINHEIRO e PAIXÃO, 2019).
Figura 1 – Cartaz do filme Raiz Farinha Beiju, 2021

Fonte: Elaborado por Leonardo Pinheiro, 2021.


3 No site www.antropoeticas.com/histórias-de-quilombo é possível acessar esses materiais.

92
O filme Raiz Farinha Beiju reúne imagens sobre o processo de produção e consumo da
macaxeira na comunidade. Parte do curta está composto de entrevistas e outra parte de uma farinhada
promovida pela Escola, cujo objetivo era mostrar às crianças o seu processo de beneficiamento.
Ainda, o filme aborda como o espaço da única casa de farinha, ainda em funcionamento no
local, mantida pela família de Nivaldo Vidal, é ou foi utilizado. Junto com estudantes quilombolas
de educação de Jovens e adultos (EJA) e do ensino infantil, percorremos os tortuosos e pouco
lineares caminhos da memória, com relatos sobre a diferença entre a mandioca e a macaxeira, e os
processos de transformação destas em farinha, beiju, goma e outros.

A farinhada como uma recuperação do tempo

Vemos a casa de farinha ao longe, no fundo do quadro. Seu Sebastião anuncia: “a casa de
farinha, a chegada da casa de farinha”; e Marcone completa: “antiga casa de farinha.”. Eles foram os
principais interlocutores nas primeiras apresentações da comunidade à equipe do projeto, ainda em
2017.

Figura 2 – Imagem desfocada de Marcone na Casa de Farinha, utilizada como um dos cartazes do filme, com a
sobreposição do título

Fonte: Elaborado por Leonardo Pinheiro, 2021.

Nos aproximamos passo a passo, a câmera na mão balança com nosso caminhar. O mato
tomou conta dos arredores do que antes era um local de frequente movimento para a comunidade.
A cantiga popular dedilhada no violão ao fundo nos acompanha e marca, lenta, nosso deslocamento.
“Mandei fazer uma casa de farinha, bem maneirinha que o vento possa levar....”. Em um corte
seco nos aproximamos, agora mais perto vemos melhor a estrutura de tijolos à vista, a sombra que
carrega a câmera nos denuncia, mostra nossa presença ali naquele espaço antes vazio. Então com um
zoom in seguido de um corte seco estamos lá dentro.
93
Era o fim de uma manhã quente de caminhada, saindo da escola que ficava na época no coração
da comunidade e chegando ao Sítio, onde está a casa de farinha. Lá é considerada a extremidade final
da comunidade, sem saída por terra, com o fim da estrada de chão que demarca também o ponto
final do único ônibus que atende o local. Do Sítio, vemos o rio Jacoca, que faz a fronteira dessa parte
da comunidade com outro quilombo, o Gurugi.
Na casa de farinha, seu Sebastião nos explica onde ficava o cocho, onde era deixada a massa,
onde era feita a peneira e onde era o forno. Marcone descreve como a mandioca é moída, a ligação
da polia com o motor que gira as engrenagens que moem a raiz, fazendo a massa. Ele move a
alavanca que deveria empurrar a mandioca em direção a estas engrenagens, simulando para a câmera
o processo e então, em um match cut, cortamos para Nivaldo na mesma posição, no mesmo lugar,
moendo a farinha, e neste momento se produz uma dobra no tempo por meio do dispositivo da
montagem cinematográfica. A casa de farinha ganha vida, enche-se de gente, que em um processo
coletivo e constante materializa a memória da comunidade em relação à farinha de mandioca.
Ouvimos então uma voz de criança – é Sophia nos explicando este processo, o que nos antecipa a
transmissão de saber e as formas de aprendizado que se darão ao longo do filme.
Depois da fala de Sophia somos levados para o roçado, e quem toma a palavra é Marcone,
que se torna a partir de então o principal narrador do filme. Filho de Mituaçu, Marcone começa
sua narrativa pela história da mandioca e seu uso até os dias de hoje. Enquanto vemos imagens da
colheita, ouvimos sua voz que explica a diferença entre mandioca e macaxeira. Com essa deixa
somos levados de volta ao presente: a casa de farinha hoje, vazia.
Agora vemos Marcone, está ao lado de Seu Sebastião, ele fala do passado.

Antigamente aqui em Mituaçu, em quase todo canto tinha...[Eram] umas três casas de
farinha aqui… tinha mais, não tinha, não? Tinha mais. Umas cinco casas de farinha aqui
funcionando direto. Aí depois o pessoal acabaram com a cultura da mandioca, é mais macaxeira
agora e quase ninguém faz mais farinha.

A partir desse momento, voltamos novamente ao fluxo temporal distorcido pela recuperação
da memória, vemos a mandioca sendo descascada, lavada, picada e moída, o fogo sendo aceso no
forno, a massa sendo passada no pano para então ser prensada, peneirada e assada. Neste percurso
ouvimos as vozes da professora Marinilze, de Marcone e de Nivaldo.
Nesses relatos, a referência de intensidade do passado, quando havia quase uma dezena de
casas de farinha na comunidade e a produção era muito intensa, molda a ideia de menor atividade
do presente, que dá certo ar de melancolia em algumas falas.
Marcone parte do lugar da memória: a farinha é tanto alimento quanto fonte de renda para

94
comunidade. Também fala do trabalho de seus pais e do processo coletivo de produção. Marinilze,
por sua vez, compartilha da perspectiva da memória e vai além, trazendo a importância de transmitir
este conhecimento para as crianças e adolescentes da comunidade, desde seu lugar na escola local.
Por fim, o depoimento de Nivaldo reforça a importância de manter a tradição viva. Ele fala do seu
presente, de como a macaxeira é importante para seu sustento e de sua família, que permanecem
mantendo a casa de farinha em atividade.
De Nivaldo é a última imagem que vemos desse espaço-tempo deslocado, recuperado.
Enquanto em um plano médio ele nos olha com o saco de farinha sobre ombros, diz-nos: “de vez
em quando eu faço uma farinhadazinha, reúno a família. Tem que manter a casa de farinha viva, pra
não deixar ela morrer né”. O plano se estende no silêncio depois de suas palavras e então cortamos.
Em uma pan vemos a casa de farinha agora vazia, assim o filme acaba.

Imagens partilhadas: escritas do fim ao começo

Raiz Farinha Beiju faz parte de um grande acervo de imagens do universo da comunidade
quilombola de Mituaçu. Acervo este que passa pela relação com a terra, com o rio, com o
pertencimento, com a trajetória, com a memória, com o afeto e com o que foi sendo construído ao
longo dos anos em que o projeto Histórias de Quilombo atuou junto à comunidade, havendo já
gerado o filme Gramame, um rio de história (2018). Em meio a esse extenso material, fruto de oficinas,
conversas, entrevistas e passeios de barco, diversas linhas narrativas se atravessam, dando indícios da
história, da memória e das práticas da comunidade. O processo da farinhada era uma dessas linhas
que encontramos na pesquisa dentro do material gravado, atravessada pela relação com a terra, o
roçado, o trabalho e a alimentação: havia um filme pulsando naquelas imagens. A partir daí começa
o processo de roteirização em que dialogam montagem, direção e roteiro, borrando-se funções,
umas nas outras, num processo mútuo de sensibilização ético-estético-político de trabalho com as
imagens.
Dentro dessa linha narrativa da farinhada, começamos então a buscar as sequências que
formariam a estrutura do filme. Para isso, partimos em um primeiro momento de uma estrutura
linear de acontecimentos, acompanhando todo o processo desde a colheita da mandioca, passando
por todas as etapas de seu processamento em farinha, desde ser descascada, moída, passada no pano
para tirar a goma, prensada, tirada a manipueira, peneirada, assada e também a feitura do beiju. A
partir dessa sequência de imagens a montagem ganhou um direcionamento: tínhamos um início,
meio e fim que poderíamos agora então deslocar como melhor ao filme conviesse. É nesse momento
em que a comunidade volta ao filme, só que desta vez como realizadores ao invés de personagens.

95
Imagens que vêm e vão; trocas cinematográficas

Por mais que possuíssemos este extenso acervo de imagens, sentíamos que faltava algo ao
filme, pois suas imagens despertavam perguntas, provocações, pediam espaço. Porém, em meio
à pandemia de COVID-19 em que nos encontrávamos, não era possível retomar gravações
presenciais naquele momento. Começamos, então, a pedir aos próprios membros da comunidade
que produzissem essas imagens e nos mandassem excertos, falas e depoimentos sobre sua relação
com aquele espaço, suas memórias, e a centralidade que a casa de farinha possuía. E nesse processo
recebemos uma gama de sons e imagens que fizeram possível a finalização do curta-metragem,
tendo em vista uma perspectiva prática-epistemológica de produção de imagens que abriga um fazer
conjunto, uma realização cinematográfica aberta à interpelação do mundo em si.

Os filmes documentários não são somente abertos para o mundo: eles são atravessados,
furados, transportados pelo mundo. Eles se apresentam de uma maneira mais forte que eles
mesmos, maneira que os ultrapassa e, ao mesmo tempo, os funda. (COMOLLI, 2008, p.
170)

Nesse processo colaborativo, contamos com núcleos familiares distintos. Por um lado,
Gabriel, de 12 anos, ajudou a filmar novamente a mesma casa de farinha com seu avô Nivaldo e
sua mãe, Nayanne, que também é professora da escola local e se comunicava conosco por meio de
aplicativos de mensagens instantâneas para a complementação de entrevistas. Do mesmo modo,
Mirian e sua irmã Marinilze compuseram a dupla de câmera e entrevistada em um relato sobre a
atuação da escola no aprendizado prático da transformação da macaxeira no dia da farinhada, com a
mobilização de todo corpo docente na ação.
Sophia, aluna da escola, e Irenilze, acompanhadas de Aline Paixão – que é sobrinha de
Irenilze e também uma das antropólogas fundadoras do projeto em Mituaçu –, compuseram
outro núcleo familiar que fez registros, desta vez em áudio, para a composição final. Com isso,
houve uma descentralização na direção do filme, que foi fruto de montagens e desmontagens do
cotidiano que nos foi apresentado, mais do que a realização de um roteiro preconcebido. Seguimos
com a perspectiva de não conduzir com rigidez essa etapa de registros, feita entre esses núcleos de
moradores, alternando práticas e falas sobre práticas.

Considerações finais

As experiências registradas no filme Raiz Farinha Beiju fazem parte de um olhar sobre o
patrimônio enquanto processo dinâmico, complexo e conflituoso de manter vivo e dar sentido a
modos de fazer, memórias coletivas e seus guardiões do presente. Em uma arte de prestar atenção, e não
96
somente de registrar e expor, a casa de farinha instiga memórias de sofrimento, relacionando uma
multiplicação da farinha ao tempo da escassez de outros produtos. Concomitante a isso, eles lembram
de parentes e momentos alegres de trabalho coletivo e união comunitária. As ressignificações, usos e
apropriações atuais da casa de farinha estão em aberto nas experiências que cabem ou não no futuro
almejado ou possível.
Sobre a ideia de patrimônio, fruto de constantes releituras, portanto vivo, cabe destacar a
necessidade de “romper com uma concepção retrospectiva, para adotar uma concepção prospectiva,
em que o objeto da perda não está atrás de nós, para ser conservado, mas adiante de nós, a ser
salvaguardado” (TURRA MAGNI e PINHEIRO, 2019, p. 60).

Referências

COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder. A inocência perdida. Cinema, televisão, ficção, documentário.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

FREIRE, Beatriz. O inventário e o registro do patrimônio imaterial: novos instrumentos de


preservação. Cadernos do LEPAARQ, v. II, n. 3. Pelotas, RS: Editora da UFPEL, 2005.

PINHEIRO, P.; PAIXÃO, Aline. Quando a desterritorialização vem do rio: a poluição do rio
gramame na comunidade quilombola de Mituaçu, PB. Vivência: revista de antropologia, v.1, p.15-
34, 2019.

SANTOS, K. M. P. dos; GARAVELLO, M. E. de P. E. Segurança alimentar em comunidades


quilombolas de São Paulo. Segurança Alimentar e Nutricional, v. 23, n. 1, p. 786-794, 2016.

TURRA MAGNI, C.; PINHEIRO, P. S. MASSACRE DE PORONGOS: contribuições da imagem


na patrimonialização de bens intangíveis In: CHIANCA, L.; PINHEIRO, P. S (orgs). Veredas do
Patrimônio: Políticas contemporâneas e desafios da experiência.1 ed. v.1. João Pessoa: Editora da
UFPB, p. 49-62, 2019.

VAN COTT, D. L. Democratization and constitutional transformation. In: The friendly


liquidation of the past: the politics of the diversity in Latin America. Pittsburgh: University of
Pittsburgh, 2000.

97
PARTE 2

MANIFESTAÇÕES IMAGÉTICAS
E MATERIAIS DO SAGRADO
SÃO JOSÉ DE RIBAMAR, MARANHÃO: PAISAGEM E CHÃO REZA VELA

José Arilson Xavier de Souza


arilsonxavier@yahoo.com.br

O chão corresponde a uma parte essencial da superfície terrestre na qual assentamos o acontecer
da vida. Ele pode ter feições naturais ou artificiais. Nele, finca-se morada, é possível caminhar, e é
pelas suas possibilidades que se estabelece as bases para um imaginável voo. O homem desenvolveu
magnificas formas de voar, de deslocar-se do chão, e, também de cima, o chão é paisagem.
No nível do fenômeno aqui abordado, o chão teria um sentido aproximado dos espaços
material, telúrico e construído, como proposto por Dardel (2011), de maneira em que se reconhece:
“há uma experiência concreta e imediata onde experimentamos a intimidade material da ‘crosta
terrestre’, um enraizamento, uma espécie de fundação da realidade geográfica” (DARDEL, 2011, p.
16). Ainda seguindo a perspectiva desse autor, porque inscreve possibilidades e anseios humanos,
o chão – solo sustentador da vida – pode ser lido como uma das formas que congregam a paisagem
geográfica.
É paisagem o chão. Parece que ainda não demos a devida atenção para essa questão. A
descrição da paisagem feita pelos geógrafos tem valorizado outras formas naturais e humanas, como
a vegetação, o relevo, a agricultura, a cidade; se comparado ao chão pela leitura mais inclinada
ao ecumênico, ao mítico, que tem no habitar a Terra uma experiência sublime, expressão que
transborda a fertilidade do solo pela ótica econômica e, mesmo tocando no aspecto social, reside no
campo espiritual (CLAVAL, 2014). Percebendo assim, a Terra que é chão é raiz, libera a imaginação
criativa, tem conotação sagrada.
Referir-se às palavras acima funciona como prelúdio para chegarmos à paisagem e ao chão de
São José de Ribamar, no Maranhão, uma cidade-santuário marcada pela devoção católica popular
a São José de Ribamar. Ali, a narrativa religiosa anuncia que um grande milagre teria dado cabo
à devoção, ao que resumimos: no contexto da colonização brasileira por parte dos portugueses,
um capitão português, em meio a uma tempestade, após ter se desviado de sua rota, esteve prestes
a naufragar em plena baía de Guaxenduba – hoje chamada de baía de São José. Tendo invocado
a intercessão de São José, o navegador e a sua tripulação viram a tempestade cessar. Grato pela
providência do Santo, aquele navegador decidiu erguer em terras maranhenses, naquelas que se
tornariam “terras de Ribamar”, uma ermida de frente ao mar (REIS, 2001; MIRANDA, 2015).
Tratamos, pois, de uma cidade que abriga o santo padroeiro do Estado do Maranhão – São
José de Ribamar –, que, por razões relacionadas ao período chuvoso na região, realiza os seus festejos

99
em março – como posto pelo calendário da Igreja Católica em referência a São José – e, também, até
com mais vigor, em setembro, mês este que, em 2021, estive para caminhar e fotografar o seu chão
votivo. Explico.
Eu fui um dos autores da Exposição Floorscapes#21, vinculada ao Observatório do Espaço
Público da Universidade Federal do Paraná, de curadoria do Professor Alessandro Filla Rosaneli.
Este foi um trabalho que teve como preparação parte do ano de 2021, com reuniões virtuais e devida
fundamentação teórica, oportunidade na qual formou-se um grupo de interessados em caminhar,
auscultar e registrar paisagens dos chãos do Brasil – prisma da iniciativa. Traduzindo a noção de que
do chão colhemos uma ideia de quem somos, o Professor Alessandro funcionou como uma espécie
de alargador dos horizontes temáticos então problematizados.
Neste ensaio, portanto, o que pretendo é espelhar o projeto pelo qual contribui com a
Exposição, evitando tecer extensos comentários a respeito do seu conteúdo imagético, e me detendo,
especialmente, sobre o processo de captura das imagens e da caminhada e escrita do texto apresentado.
Por ora, ainda faço duas ressalvas. Na primeira, esclareço que esta comunicação científica, para
além do que já foi colocado, não tem a pretensão de se aprofundar no tocante à história espacial
da devoção em Ribamar – como também se conhece a cidade –, e, por conseguinte, não utilizarei
de outros registros fotográficos (por exemplo, imagens do santo, do santuário e da cidade), senão
aqueles do próprio projeto: Reza Vela2.
Para discorrer sobre o entendimento temático envolvido e o porquê do nome do projeto, preciso
fazer três importantes considerações. 1ª) Há anos desenvolvo pesquisas relacionadas a espaços de
cunho religioso católico-popular, sendo que mais recentemente São José de Ribamar se tornou uma
cidade-fenômeno de interesse para mim; 2ª) Chão votivo era o tema inicial que minha cabeça levou
pelos pés quando fui a campo no contexto do Floorscapes. Portanto, num tempo qualificadamente
festivo, ao chegar na cidade de Ribamar, logo fotografei variadas marcas devocionais que encontrei
pelo chão, tais como rosas, moedas, fitas com simbologia do santo, um boné esquecido da noite
anterior, pequenas tiras de papel com nomes que pareciam ter sido revestidas em ação de graça,
folder tratando de turismo religioso, entre outras; 3ª) Reza Vela é uma música da banda carioca O
Rappa3, de cujo trabalho sou fã, música que me veio à mente ao intuir que as marcas das velas eram
o que mais me tocava naquele chão.
Isso posto, atribuir o nome e os sentidos artísticos da música ao projeto equivaleu reconhecer
a potência de sua letra, palavras que, de início, sem perceber, cantei comigo mesmo enquanto
caminhava:
1 Ver em: https://www.observatoriodoespacopublico.com/floorscapes-expo-2.
2 Ver em: https://www.observatoriodoespacopublico.com/fs2-jos%C3%A9.
3 Assim esclareci isso na Exposição: Nota de reza pé: o título desta exposição e as frases em negrito da mesma fazem referência à
música “Reza Vela”, da banda O Rappa.

100
A chama da vela de reza
Direto com o santo conversa
Ele te ajuda, te escuta num canto
Coladas no chão as sombras mexem
Pedidos e preces viram cera quente
Pedidos e preces viram cera quente

A fé no sufoco da vela abençoada


No dia dormido o fogo já não existe
Eles saíram do abrigo, são quase nada
A molecada corre, corre, ninguém tá triste
A molecada corre, corre, ninguém tá...

Se tudo move, é, e o prédio é santo


Se é pobre, mais pobre fica
Vira bucha de balão ao som de funk
E apertada a tua avenida
A cera foi tarrada, não se admire

Se tudo move, se o prédio é santo


Se mais pobre, pobre fica
Vira bucha de balão ao som de funk
E aperta tua avenida [...].
(Marcelo Lobato/Rodrigo Vale/Marcelo Falcão/Marcos Lobato/Lauro Farias/Xandão - O Rappa, Cd
O silêncio que precede o esporro, Reza vela, 2003).

Como se pode presumir, a música não era nova para mim. O que eu também já conhecia
era o terreno da caminhada desenvolvida, iniciada na Avenida Gonçalves Dias, percorrendo o
santuário, praça e monumento de São José, findando no entorno do velário daquele complexo
sagrado. Foi prazeroso caminhar investido do significado que o Floorscapes impunha. Caminhar
como que a tentar desvendar o meu tema de projeto. E creio que foi mesmo na qualificação desse
caminhar, imbuído de uma vontade corporal e espiritual para com a paisagem (BESSE, 2006), que
o tema do projeto foi surgindo, fazendo-me perceber um mundo de pensamentos encarnado num
sensível quadro espacial, que pode acomodar dor, porém, pode ser significado como fonte de alegria
(THOREAU, 2012). Emprestar ao chão texturas dos pensamentos meus me fez afluir este sentir.
Nessa experiência de caminhada, que no relógio durou cerca de três horas, entre aqui e ali,
inclinando volta e meia o olhar, acompanhado por olhares curiosos, empunhando um aparelho
celular a fim de o chão fotografar, eu tinha consciência de que estava num espaço onde as pessoas
necessitavam de afagos com sabor de mistério, percebendo e valorando aquele meio como um
lugar bom de estar (TUAN, 1980). Como naquelas brincadeiras de criança quando se encontra
um objeto escondido por um amigo, caminhando e parando, eu sabia que a coisa do tema que eu
procurava encontrava-se por perto, mas não sabia bem o que era. Cera era o que era, ora quente, ora
fria, nova, envelhecida. Velas cruas, duras, rugas de uma paisagem religiosa.

101
Estamos próximos a pôr os olhos no projeto. Até lá, adianto que não se avistará velas acesas,
fato curioso também para mim quando notei que, já decidido pelo tema, a seleção que fazia dos
meus registros não continha chamas. Incide que descartar as fotografias nas quais as velas pegavam
fogo significava assumir que as asceses que eu queria representar tinham no sagrado do fogo
uma condição não mais visível, algo que o vento apagou, o tempo levou, mas não silenciaram.
Mesmo sabendo que no contexto do Cristianismo o fogo representava elo entre homem religioso
e divindade, combustível excitante, um aquecedor das almas (TURNER e TURNER, 1978),
inconscientemente, deva ter havido da minha parte uma tentativa de aproximar a poética existencial
da paisagem que eu buscava senão esconder, não mostrar (COLLOT, 2013). Vela e luz.
.
......
....
........
.....
.....
.....
.....
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Reza vela
Figura 1 – Vela desfraldada

Fonte: José Arilson, Set., 2021.

102
No asfalto, rezava a vela para o alto. Já diminuída, a vi ao caminhar pelas terras de São José de Ribamar, cida-
de de mar, amor ao padroeiro do Maranhão, Grande Ilha de São Luís: chão de Sãos.
Vendo, imaginei os dramas humanos queimados pela chama no topo da vela que o vento do mar acabara de apa-
gar. Quase topo a velinha. Topo, Topós, “Topofilia”, Tuan na Geografia e aquelas pessoas enlaçadas pelo lugar
sagrado. É festa. Tornou-se mito o português que aqui navegou.
Ah meu Deus, que pecado eu teria cometido...

Pedidos e preces viram cera quente


Figura 2 – Vela cera

Fonte: José Arilson, 2021.

Em meios fios, já frios, pedidos pisados correm com o tempo. O quão ali tem de gratidão e dor, Thoreau? “Ca-
minhando”, eu sei, encontrarei pensamentos e eles me tomarão como um pé atrás do outro ganham o mundo.
“Outros mundos” acontecem aqui, Claval:

103
O fogo já não existe ali, saíram do abrigo
Figura 3 – Meio vela

Fonte: José Arilson, 2021.

Seres vagueiam nos segredos da noite, vidas e florescimentos. Pingam vela em Ribamar. Pingos da vela de
Tarkovsky. Rezar é como caminhar: é preciso “querer, querer”, Besse, Petrarca e a montanha não removida.
Haja chão e carvão para, riscados, superar a si mesmo.
Assim é

A fé no sufoco da vela abençoada no dia dormido


Figura 4 – Velas São José de Ribamar

Fonte: José Arilson, 2021.

Careri, nem sempre acordado, caminhei e parei, sentindo o vento toca a gente, carente de milagre: estética do
pisar e se perder nas paisagens da Ilha. No tempo devido, cheguei ao velário do Santuário. Lá tinha velas e as
palavras para terminar esta viagem-exposição. Autor desconhecido. Leia sem imaginação. Impossível. Eu vou
104
indo, porque assim é a vida... (reticências Sãos passos mágicos). De graça,

Direto com o Santo conversa


Figura 5 – Carta desvelada ao Santo

Fonte: José Arilson, Set., 2021.

Há a marca da Canção Nova – grande e midiática comunidade católica brasileira – na folha


de papel cujo devoto assinalou, em 30/09/2021, seus agradecimentos ao “nosso São José”. Entre
eles, agradece “pela cura do covid-19”, vírus-motivo pelo qual os festejos em São José de Ribamar
ocorreram com os devidos cuidados. Cuidadoso também era o tal devoto que nunca vi. Não
pensemos que aquela folha de agenda era uma folha qualquer. Miremos na sua parte inferior e
leiamos a reflexão do dia: “Se tivéssemos a Palavra de Deus sempre no coração, nenhuma tentação
poderia nos afastar de Deus e nenhum obstáculo poderia nos desviar no caminho do bem”. Eis um
recorte do pronunciamento do Papa Francisco feito durante o 1º domingo de quaresma em 2017,
tempo em que o vírus causador da COVID-19 ainda não nos atormentava.
A despeito do que apontei sobre não comentar a imagética do projeto, por que então o fiz com
referência a sua última imagem? Respondo. A ousadia em direcionar olhares para esta substância se
deu na intenção de, como num pequeno experimento, falar daquilo que Cosgrove (2012, p. 221)
chamou de “mágica real da geografia – o sentido de maravilhar-se com o mundo humano, a alegria
de ver e refletir sobre o mosaico ricamente variado da vida humana e de compreender a elegância
105
de suas expressões na paisagem humana”. E, como nos ensinara Dardel (2011), quis lembrar que
a realidade geográfica comporta irrealidades. A paisagem seria então um portal extremamente
convidativo para tanto. Pode ter sido vã a tentativa, ou talvez nem exista a geografia enxergada,
contudo, pelo menos foi imaginada. Penso que as maravilhas do mundo são regadas à imaginação e,
graciosamente, fazem valer paisagens.
Andar num terreno com o olhar por demais fixado à frente ou até mesmo o fazendo flexível
aos lados e vigilante à retaguarda, nos fará pisar o chão e não enxergar a paisagem que sob os pés nos
passa. É como se o processo educacional de caminhar e parar e sentir o mundo se fizesse um tanto
deficitário (CARERI, 2017), e logo pelo chão, tão variado em vida humana. É como se os diálogos
com a cidade, por exemplo, fossem relegados de insignificâncias. E o são; até que a imaginação nos
leve os pés à cabeça e a leve pelo mundo (interior e exterior), como que numa brincadeira de criança
levada por si mesma para além da segurança do lar.
Com efeito, escutar como os grilos, pelas pernas, como nos apontara Manoel de Barros
(1999) em a Gramática Expositiva do Chão, pode nos proporcionar a graça de alcançar pensamentos
e enxergar uma geografia menos ordinária do que o dia. E isso não tem a ver com deixar de fazer
uma geografia combatente. Tem a ver com fazer uma geografia ardente. Se “a geografia está em toda parte”
(COSGROVE, 2012), ela arde e urge para e em cada um de nós. A poesia combate o mundo lhe
pondo em frente ao espelho, e na maioria das vezes para lhe fazer um desconhecido, ainda que seja
num movimento insistente, por muito ignorado, que apaga e acende feições, que nem na cena da
vela de Tarkovsky, em Nostalghia (1983).
Portanto, por fim, e por tudo que foi dito até aqui, quiçá este ensaio transmita a mensagem
contrária de que não se deva abaixar a cabeça nas situações de vida. Dizendo de outro modo: para
um crente, não pode ser vergonhoso aquilo que se faz aos olhos e aos pés de São José de Ribamar.
Algo misterioso pode surgir dali. E mais: ir à casa do santo, se sentir em casa e ali acender vela diz
não só da conversa direta com a divindade, também define uma potente geografia. E que paisagem!
Que chão!
Que lugar...

Referências

BARROS, Manoel. Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Record, 1999.

BESSE, Jean-Marc. Ver a terra: seis ensaios sobre a paisagem e a geografia. São Paulo: Perspectiva,
2006.

106
CARERI, Francesco. Caminhar e parar. São Paulo: Editora Gustavo Gili, 2017.

CLAVAL, Paul. Uma, ou algumas, abordagem(ns) cultural(is) na geografia humana? In: Espaços
culturais: vivências, imaginações e representações. SERPA, Angelo (Org.). Salvador: EDUFBA,
2008.

CLAVAL, Paul. Epistemologia da geografia. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2014.

COLLOT, Michel. Poética e filosofia da paisagem. Rio de Janeiro: Editora Oficina Raquel,
2013.

COSGROVE, Denis Edmund. A Geografia está em toda parte: cultura e simbolismo nas paisagens
humanas. In: ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato (Org.) In: Geografia cultural:
uma antologia. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2012.

DARDEL, Eric. O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva,
2011.

LOBATO, Marcos; VALE, Rodrigo; FALCÃO, Marcelo; LOBATO, Marcelo; FARIAS, Lauro;
XANDÃO. Reza vela. In: O Rappa. O silêncio que precede o esporro. Rio de Janeiro: Warner
Music Brasil, 2003. 1 CD. Faixa 2.

MIRANDA, Antônio. Lenda de São José de Ribamar. São José de Ribamar, MA: Paróquia de
São José de Ribamar, 2015.

NOSTALGHIA. Direção de Andrei Tarkovsky. Rússia/Itália. 1983. (123 min.).

REIS, José Ribamar Sousa dos. São José de Ribamar: a cidade, o santo e sua gente. São Luís, 2001.

THOREAU, Henry David. Caminhando. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.

TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo:
Difel, 1980.

TURNER, Victor; TURNER, Edith. Image and pilgrimage in Christian culture. New York:
Columbia University Press, 1978.

107
A PAISAGEM DA JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE: IMAGEM E
PEREGRINAÇÃO INTERNACIONAL

Antonio Jarbas Barros de Moraes


jarbasgeografia@gmail.com

Introdução

O objetivo deste artigo foi de discutir a paisagem a partir das Peregrinações Internacionais,
que, baseadas nas experiências religiosas, enunciam regimes culturais/espaciais das imagens. A
fenomenologia ajudou na compreensão das imagens possíveis do papado na Jornada Mundial da
Juventude, neste caso, do papa em exercício, Francisco, e da passagem do evento no Rio de Janeiro/
RJ, em 2013, projetada na direção de uma comunicação dos significados mídia-eclesiásticos mundial.
Para tanto, foram feitas revisões bibliográficas, buscou-se matérias e fotografias disponíveis
nos portais de notícias, que ajudaram a perceber o evento para além das celebrações via canais
digitais. Em suma, foi possível incitar o imaginário, partindo do que dispõe a Internet, especialmente,
relacionado ao Papa na JMJ, percebendo o cruzamento de imagens ditas diurnas (do sagrado) com
noturnas (mundanas), destaque proponente da obra de Durand (1989).
O contexto reflexivo admite uma paisagem percebida por meio dos significados da cultura,
que ascende para uma possível implementação das contribuições à Geografia da Religião ou por
que não dizer de uma Geopolítica da Religião? Trata-se do interesse pelos sentidos ampliados da
religião que motiva o peregrino a caminhar, não restrito à dimensão sacramental, satisfazendo as
suas ligações com a Terra, que na fenomenologia crítica de Dardel (2011) é a geograficidade. Assim,
escapamos parcialmente de uma universalização que encerra e cristaliza a abordagem geográfica,
ampliando o escopo empírico da geografia para a experiência virtual.

O Espaço Fenomenológico da Imagem

A Jornada Mundial da Juventude (JMJ) é instituída pelo papa João Paulo II, celebrada pela
primeira vez em 1986, em Roma. Em 1987, a segunda versão da jornada, aconteceu na Argentina.
E a mais recente, no tempo deste escrito, no contexto da pandemia de Covid-19, acontecerá, em
2022, na cidade de Lisboa – Portugal. Desde então, inúmeros fiéis percorrem em peregrinação os
cinco continentes (OPUS, 2019). Um dos símbolos, o eclesiástico, criado pelo clérigo católico, é a
Cruz da Jornada Mundial da Juventude, que percorre, em peregrinações, os países organizadores
dos encontros (KRAKOW, 2016).
Esta abordagem é particular às Peregrinações Internacionais a partir da JMJ/Rio de Janeiro, de
2013. Mas não encaramos este tempo-espaço como a única situacionalidade, pois influi outras
108
temporalidades para além daquele tempo de efervescência festiva. Após sua criação, esta peregrinação
implica continuidade, que vêm percorrendo países, fora do continente europeu, e, sem dúvidas,
tem despertado a curiosidade de pesquisadores da geografia. Isso não anula um posicionamento
político, pelo contrário, esse ainda é necessário na jornada.
Uma pesquisa documental nos ajudou a imergir na compreensão das imagens, – fotografias e
notícias –, que vão ao encontro das intenções associadas à função social/simbólica do espaço (SILVA e
MENDES, 2013). Com base nesse enfoque, é enfático as possibilidades de compreensão geográfica
do conjunto de elementos simbólicos que se articulam para expressar uma narrativa terrena a partir
dos movimentos culturais, manifestados, inclusive, pela rede de Internet.
Isso constitui o imaginário nas articulações simbólicas que identifica os sujeitos espaciais
pelas suas interrelações. É também visto a partir dos processos que agem em sentidos contrários
àqueles que são direcionados internamente pelas forças do organismo “pulsos” e as “coerções”,
direções sociais do mundo interno. Esta indefinição é o sentido da imaginação tentando encontrar
compreensões para a existência humana. Trata-se de um importante motor do imaginário que produz
a imagem que se coloca à disposição do corpo (DURAND, 1989). Os símbolos são ascensionais,
isto é, são aqueles que elevam o homem para o alto, na busca por Deus, mas não se ajustam, estão
em constante enfrentamento na vida terrena: “estes símbolos rituais são meios para atingir o céu”
(DURAND, 1989, p. 90).
Assiste-se, desta forma, à verticalização dos impulsos corporais, à elevação do corpo na
postural e na potência. É o isomorfismo do corpo implicando proximidade com a religião, em
preservando a vinculação corpo-religiosidade. Por isso, o corpo é isomorfo da geografia, ele se põe
a sentir a excitação do mundo que se coloca na lateralidade da condição concreta (direita, esquerda,
diagonal, baixo, cima...), ideia orientada por Durand (1989), e na simbólica cristã da verticalização
(na montanha, escada, ar e outros). Em suma, ascende para o corpo sentido e o sentido do corpo sem
necessariamente haver uma presença tátil, pois a existência das coisas é conservada no “horizonte da
vida” que nunca se realiza por completo, mas que se realiza a cada instante; é, antes de determinações,
permanência incompleta (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 121).
O dinamismo corporal implica problema da experiência imaginada. Em Merleau-Ponty
(1990, p. 179) é a percepção que se apresenta “a cada momento como uma re-criação ou uma re-
constituição do mundo”. Então o horizonte aberto pela percepção, na ascensão ao mundo superior,
mostra-se como uma maneira particular de ser e fazer (n)o espaço. É pelos sentidos que o acesso
ao mundo é possível, pois eles abrem as camadas de significado das coisas no espaço, e dão vazão
às experiências sensoriais concebidas no plano irrefletido das imagens – aquilo que se deveria ter
imaginado.

109
Nas ligações terrenas, o homem empenha-se em fugir simbolicamente do tempo e da morte.
A decisão de fuga diz respeito à busca pelo bem-estar humano, por vez, na vida religiosa, revelando
o insistente empenho pela sacralização da vida terrena – imagens diurnas. Já a decisão de ficar e se
deleitar com a vida mundana, complementar à primeira, mas que não se resguarda dos prazeres, não
se tem pressa sacramental – imagens noturnas. Nessa visão durandiana, a imagem é transcendental
e menos autêntica do ponto de vista do plano fotográfico, revelando-se o drama e a fantasia que
orienta as sociedades. O estudo foi feito nessa ótica, embora o fenômeno visualizado seja de um
tempo passado e que aconteceu no presente – tempo ou instante da narração –, quando se debruça
no material pesquisado (DURAND, 1989).
Aqui, a imaginação é aguçada pela percepção incompleta, retorno às representações imagéticas,
em suma, nos registros fotográficos, sobre o Papa na JMJ, disponíveis na rede. Reconhecendo a
imensidão de registros fotográficos, recorre-se a uma redução fenomenológica que ajuda a suspender
a densidade técnica, para perceber imagens a partir de uma situação geográfica. Inspirado na percepção
de Merleau-Ponty (1999), o essencial é, antes, uma reflexão institucionalizada, um movimento
aberto ao mundo que revela um horizonte vivido e de possibilidades geográficas inesgotáveis.
Além da revisão do conhecimento ou do pensamento geográfico, apresenta-se uma geografia
pouco interessada em uma apreciação de área delimitada – o insistente “objeto” de estudo. A
realidade geográfica está “oculta e pronta a se revelar” (DARDEL, 2011, p. 34), avessa à sucessão dos
acontecimentos do cotidiano, até porque a irrealidade deste real, que está relativizando a objetividade
e a subjetividade, simbolizará um retorno a um saber misterioso ou não saber. É, por enquanto, uma
tentativa de abordar o sentido de habitat nas coisas e pela sua ligação com o entorno, externalizando
as ligações com a Terra. Isso se refere à geograficidade, significada pelos inúmeros comportamentos
sedentos, o cenário das vivências nômades, o imaginário em situação afastada ou desencantada de
uma experiência habitual.
Com a dificuldade de estabelecer uma linearidade para uma metodologia em geografia possível
a partir da imagem, colaborando com o vigor acadêmico, lembra-se que, ainda que brevemente, este
trabalho é influenciado pela fenomenologia. No entanto, não temos condições de retornar à filosofia
na sua densidade teórico-metodológica para discutir na íntegra a fenomenologia, talvez porque
fosse impossível não possuir uma ideia conclusiva. Este empenho tem razão de ser na busca pela
compreensão empolgante no ato de pesquisar. Assim, a imagem se revela tanto na condição técnica,
a fotografia, quanto no imaginário, a percepção. Dessa forma, a condição imagética constitui uma
tendência a permanecer aberto aos modos de ser em geografia.
A pesquisa propõe, além de promover uma compreensão das Peregrinações Internacionais
originadas da JMJ, contribuir com a Geopolítica da Religião, reunindo fenômenos projetados
na direção do mundo na sua condição material, continentes e países, e imaginativas do

110
simbolismo religioso. Esta metodologia em geografia apresenta a possibilidade de compreender
desconstruídamente o aspecto simbólico-peregrino-internacional do espaço e paisagem.

Da Paisagem à Imagem da Peregrinação Internacional

A paisagem é um convite à liberdade criativa da imaginação. Constitui o comportamento da


sociedade e os significados com inúmeras dimensões, desde econômicas a políticas. A partir dessa
noção, os geógrafos realizam movimentos de interpretações dos desígnios humanos por meio das
suas manifestações religiosas. Em virtude dos inesgotáveis patamares de significados, esse empenho
se complexifica (COSGROVE, 2012). A compreensão espacial da paisagem não pode esquecer
de mostrar que, além da estética ou morfologia, possui temporalidade, cronológica ou espacial,
demandando irrupções ou instantes da imaginação, ou representações da realidade estudada, ou o
tempo da percepção e da narração (DURAND, 1989).
Na pandemia de Covid-19, iniciada no 11 de março de 2020 (OMS, 2020), o peregrino está
na condição exclusiva de peregrinar virtualmente. Ao direcionar seu corpo à tela da televisão, celular
ou computador, aceita uma realidade distante do espaço sagrado, mas não do simbolismo que o
envolve. Entretanto, erodindo a barreira da distância, a religiosidade é virtualizada antes mesmo da
pandemia, admitindo a vida peregrina que se internacionaliza pelas imagens virtuais, demonstrando
representações daqueles que buscam renovar a sua fé. Qualquer temporalidade da imagem evoca
inúmeros significados, por isso fazemos apenas algumas interpretações, sem recomendar rígidos
encerramentos.
Segundo a acepção de Dardel (2011), o silêncio comunica mensagens com aberturas na
paisagem para dimensões atemporais. Pela interpretação, a imobilidade que temporaliza cada
paisagem pode se mostrar singular e apreendida como “fator secreto da Terra”, aspirando o
inesperado. A presença humana na paisagem, menos ou mais objetiva, mostra-se aos olhos, ao
tato e aos outros sentidos. “Circunspecta e atarefada”, implica uma profundidade e temporalidade
revestida ocasionalmente, o que nos permite manifestar um sentimento contínuo.
A paisagem é sem permanência porque “é a manifestação do movimento interno do mundo”
(BESSE, 2011, p. 119). É com o “ser paisagem” que conseguimos atravessar o olhar. A condição
de existência é questionada por essa perspectiva, afinal, não é uma idealização de alcance comum
ou uma totalidade coletiva, mas “uma limpidez de uma relação que atravessa a carne e o sangue”
(DARDEL, 2011, p. 31).
A paisagem se difere da totalidade puramente humana, como o olhar cartesiano para
montanhas, vales e santuários, sem abandonar essas marcas espaciais. É a unicidade avultada pelo
empenho na busca por um sossego do peregrino, que motivados pelo frenesi do evento, não se

111
importando com o bem-estar instantâneo. Dessa forma, a intenção peregrina atravessa a dimensão
da escala nacional-internacional em direção a uma espécie de realização pessoal.
“Para que o peregrino alcance um lugar sagrado, ele deve abandonar as fronteiras seguras do
lar e atravessar espaços desconhecidos” (TUAN, 1979, p. 89, tradução nossa)1. A liberdade que o
liga à vida religiosa é central ao sagrado e periférica ao cotidiano. Assim, neste contexto, o sagrado
também é possível graças à transcendência das práticas tradicionais e inerentes, exclusivamente, aos
templos. Apesar da ambiguidade do sagrado, as experiências religiosas cruzam limites, marcando a
amplitude do peregrinar, como, por exemplo, da casa ao santuário. Paradoxalmente, o peregrino, ao
passo que teme impedimentos socioeconômicos, busca sua plenitude ou satisfação à luz dos seus
impulsos.
Isso se refere aos desígnios da subjetividade, das experiências e dos significados alcançados em
curso pelo peregrino, pouco preocupado com a distância espacial, como aquele que no seu caminho
faz geograficidade. Souza (2018, p. 54) enfatiza que “o peregrino religioso admite um caminhar e um
caminho que envolve diretamente codificações sagradas de sua criação”. Criar e deixar são verbos
intrigantes na vida do peregrino. No que defendemos, diz respeito aos significados manifestados
institucionalmente. Esses são mais eclesiais – subjetivamente falando –, e criados pelo peregrino
que internacionaliza suas intenções ao deixar sua rotina para peregrinar na direção de um mundo
particular.
O outro, não menos importante, é a renúncia à casa, ao conforto do lar, por desejar novos
horizontes religiosos. Com isso, não se quer afirmar que se abandone a vida pretérita, mais que
isso: é se permitir o envolvimento maleável em direção ao sagrado. As criações e os envolvimentos
dos sujeitos da pesquisa (peregrinos internacionais), despertaram para a compreensão produzida
no trabalho. Tuan (1979) alerta para a limitada capacidade científica de compreensão dos mistérios,
e por isso omitimos a tensão entre o transcendente e o cotidiano, que contrai o mundo. Assim,
optamos pela dimensão simbólica, abrangendo o retorno às representações.
Intercedemos pela geografia de um reflexo sobre o destino da humanidade, dando atenção
ao que contam as imagens fotográficas e as das notícias, despertando o imaginário dos significados
geográficos da paisagem. Não nos interessou interpretar o conteúdo integral deste material. Nesse
sentido, a verbete encerra a soma do criar livremente, formando uma triparti que atrai o “entre” da
geografia em ato ou a geograficidade com a imagem, por isso não é um ponto final, mas sim a largada.

1 Texto original escrito pelo geógrafo Yi-Fu Tuan: TUAN, Yi-Fu. Sacred Space: Exploration of an Idea. In: BUTZER, K.
(org.). Dimension of human geography. Chicago: The University of Chicago/Departamento of Geography, 1979.

112
A Paisagem da Peregrinação Internacional: Apreciações da Imagem Papal na JMJ/Rio

Eis o desafio do imaginário. Este é sinalizado pelo caminho internacional, que leva o peregrino
a novas aventuras pelo desconhecido, produzindo seus meios de contemplação ao sagrado por
vias diurnas e noturnas ou diurnas-noturnas. A mensagem em rede comunica uma condição de
vivenciar a fé online. Trata-se de um exercício de olhar telas de televisores, celulares e computadores,
e imaginar a vinculação com a JMJ de modo performático e significativo.
É possível conceber uma reputação do sagrado e moderações coletivas, evidenciando-se a
existência consecutiva na paisagem. A condição imagética disposta na Internet incita o surgimento
de outras irrupções do sagrado. O sagrado não é somente a aproximação com o centro físico dos
santuários, catedrais, capelas e estátuas, mais que isso, é caminhar em direção a um envolvimento
místico. É, no entanto, uma sequência temporal-espacial que se evade da satisfação do sagrado clérigo
com a situação na vida peregrina intramundana. A atemporalidade da prática humana cultural de
peregrinar virtualmente – orar online – permite à cultura acrescentar, antes de qualquer medição, a
contagem localização e mensuração – sentidos quase sempre silenciosos às realizações humanas.
“O deserto – vazio e silencioso – é seu estágio apropriado”: categorias nas quais Tuan (p. 88, 1979,
tradução nossa) situa o sagrado. Desfruta-se dos instantes individuais como a virtude do caminhar
do peregrino, que, buscando pelo fim dos desertos, angústias e medos, espacializa e especializa, à
sua maneira, a proteção. Sobre os reflexos da dedicação, viver a fé, no sentido apresentado, é uma
constante de participação das práticas relacionadas aos cultos. O vazio é um requisito que reivindica
a qualidade emotiva da fé por estar em peregrinação. O embalo das emoções, referenciando Paul
Claval (2010), é um fator determinante que já mostra o simbolismo inspirado nos passos da “mãe”
de Deus. Essa plenitude evidencia um fator de proteção, conduta incansável e assemelhável a quem
protege.
A transcendência tem uma força que incentiva a busca pelo sagrado. Também, demonstra
inquietude sobre a variação de si, ainda que não esteja envolvida assiduamente. A mensagem mariana,
seja ela clerical (Via Papa) ou pagã (Outras denominações de renovação), quer um destino de um
personagem diferente ao de qualquer ser humano. A vinda do Papa para o Rio de Janeiro/Brasil é
acompanhada de sucessivas medidas cautelares para evitar tumultos, que vão desde a escolha de
dois carros especiais, – o Papa Móvel (Figuras 1 e 2) –, modelo criado pela marca alemã Mercedes-
Benz e encomendado pelo Papa anterior, Bento XVI (CANÇÃO NOVA, 2013), possibilitando um
contato próximo as pessoas. Além disso optou-se pela criação de corredores isolados para o veículo
percorrer as avenidas cariocas, e, ainda, instalações de grandes palcos na praia de Copacabana para
realização de missas ao ar livre.

113
Figuras 1 e 2 – Papa Móvel e Trajetos de Peregrinações

Fonte: Portal de notíciais G1, 20132.

Diante desse discurso positivo que se mostra na paisagem e aos sentidos revelados no
imaginário geográfico, concebe-se um imaginário geopolítico que vai ao encontro do fato percebido
e, de uma maneira geral, efetuam-se posicionamentos críticos das imagens eclesiásticas, junto a
um ordenamento midiático. Isso em nada diminui a necessidade de perceber a engenharia do
automóvel papal. Os elementos da experiência humana e, em particular, o branco que evidencia
a universalização da imagem diurna, a cor que simboliza a paz clerical, e o modelo especial que
conduziu Vossa Santidade pela cidade, diferindo de qualquer tipo de carruagem.
As duas ilustrações anteriores: do veículo com toques requintados de nobreza, que, apesar
de advogar uma proximidade com o público (Figuras 3 e 4), é para uso exclusivo do clero católico.
Ainda, o itinerário representado pelo corredor cultural do Rio de Janeiro, o seleto trecho, tem
um forte apelo turístico-carioca, afinal, por ele é possível se deparar com a Biblioteca Nacional, o
Museu de Belas Artes, o Teatro Municipal, a Câmara Municipal e a Catedral Metropolitana de São
Sebastião. As duas perspectivas estéticas dão conta da intencionalidade católica-internacional de
mostrar um saudosismo institucional por intermédio da monumentalidade do país que sediou a
Jornada.

2 Ver mais nas notícias dos links: http://glo.bo/3IV8txO; e http://glo.bo/3JWyChf.

114
Figuras 3 e 4 – Papa Móvel na Ruas do Rio de Janeiro e beijo do Papa em criança

Fonte: Daniel Ramalho / Terro e infoescola3/ Silvia Izquierdo/AP (G1)4.

O engajamento corporal restrito ao veículo desnuda uma imagem diurna atravessada pela
noturna. Afinal, ao se colocar em questão a categoria proteção, tem-se um conglomerado de ações
que circundam a locomoção do Papa. Todavia, os serviços de segurança nacional acompanham o
clero desde Roma.
Já a utilização do termo segurança em relação às chamadas “imagens diurna e noturnas”,
em conformidade com Durand (1989), fazem referência ao fato de que apesar da imersão no
sagrado, ascendente para a vida religiosa, não se despensa uma organicidade ligada o bem-estar do
pontífice. O custo da ação é uma aproximação limitada, haja vista que o veículo precisa chegar a
algum altar. A demanda oriunda deste processo ora fabula o imaginário religioso, influenciado pela
presença encarnada e santificada, ora aflige, já que as mãos estendidas (como se pode ver em uma
das fotografias anteriores), não significam que se possa tocá-las e tampouco fazer o comboio tardar
em chegar ao destino estabelecido
Também, é preciso lembrar que a mistura de imagens não acontece apenas por essas duas vias
de sujeitos espaciais envolvidos na festa, seja o clero ou os peregrinos, afinal, estamos tratando de
um grande aglomerado urbano cuja rotina foi influenciada pela presença do evento. A demarcação
dos caminhos de peregrinações teve efeitos diversos, dado que satisfez o empenho sacramental do
peregrino (inter)nacional, ao posso que causou constrangimentos na cidade. Fecharam-se bairros,
avenidas e ruas em prol da passagem peregrina. Por outro lado, desacelerou a mobilidade daqueles
que só quiseram fazer suas peregrinações diárias – como ir ao trabalho e ir ao shopping. A Peregrinação
Internacional, face à sua “estadia passageira”, consoante a Lukermmen (1964, tradução nossa), ocasiona
uma experiência sagrada, essencial para existência humana, redirecionando as práticas cotidianas
para o sagrado mais oficial e para a mundaneidade que irrompe este primeiro (Figuras 4 e 5).

3 Link da fonte: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/papa-francisco-no-brasil/jornada-mundial-da-juventude-injetou-r-


-12-bilhao-na-economia-do-rio,58ef4d8ebd520410VgnCLD2000000ec6eb0aRCRD.
4 Link da fonte: https://g1.globo.com/jornada-mundial-da-juventude/2013/fotos/2013/07/fotos-papa-francisco-beija-criancas-
-em-visita-ao-brasil.html.

115
Figuras 4 e 5 – Missa de Encerramento na Praia de Copacabana e Self com o Papa na JMJ/Rio

Fonte: Jesuitasbrasil, 20135 / Selfieblog, 2013 6.

É inegável que a jornada teve um impacto social, alguns já citados anteriormente, mas não se
pode esquecer do financeiro – fator sobre o qual não iremos nos adentrar quantitativamente agora –,
que, todavia, teve forte rebatimento nos cofres públicos, nas empresas locais, nas vendas ambulantes,
no Vaticano e no turismo (MINISTÉRIO DO TURISMO, 2013). Tais impactos podem ser
considerados ambíguos, isto é, positivos e negativos ao mesmo tempo. Esse paradoxo eclodiu após
a jornada, pois parece mudar o olhar sensível sobre a qualidade objetiva que ficaram nas fotografias
– oficiais e selfs –, desvelando outras imagens. O projeto corpóreo adotado nas experiências com o
sagrado, nos escritos de Souza (2018) e Rosendahl (2008), manifesta ideias de espaço e paisagem
pelas posições dos corpos (MERLEAU-PONTY, 1999). A posição plural é aquela no plano da visão
e a dos registros fotográficos objetiva o modo de ver; e a experiência perceptiva presume um modo
de ver à deriva, ativado pelo plano imagético documental e imaginativo.
A antonomásia da cidade maravilhosa, característica particular que identifica a capital carioca,
fez caber peregrinos de todas as partes, os quais não se comportam exclusivamente mediante os
ditames católicos. Ao invés de uma imagem restrita à vida religiosa, da sacralização clerical, como
ocorreu com o papado de São João Paulo II, o Papa Francisco foi lançado na Jornada com a ideia de
reformar o catolicismo. Em certa medida, parece perseverar algumas práticas oficiais: a simbólica do
beijo em crianças, tocar nos fiéis e celebrar as festividades ao ar livre. No entanto, o sujeito, apesar
de espacial e transcendental, não é puro, pois é afetado pelos seus impulsos corporais no que tange
à relação dele com os objetos alcançados pelos sentidos, conseguindo, assim, acessar o mundo por
intermédio das ligações terrenas e do retorno ao percebido (DARDEL, 2011; MERLEAU-PONTY,
1999).
A adequação da figura papal ao tempo da jornada, ocasiona uma presença corpórea na paisagem,
fazendo coexistir temporalidade com significações. O tempo do click fotográfico é também o do
evento. No entanto, o tempo da fotografia é o tempo do imaginário. Neste imaginário, a imagem é
a qualidade expressa pela realização do corpo no mundo, seja de uma ideia reformista que permite
5 Link da fonte: https://bit.ly/3wTSDkO.
6 Link da fonte: https://www.selfieblog.net/noticias/selfie-do-papa-francisco/.

116
uma seleta aproximação aos fiéis ou de uma tentativa de viver a atualidade das técnicas modernas de
aparições. Nas lições de Dardel (2011), é uma condição de ser-com, ou seja, circulação naquilo que é
humano, criando a realidade geográfica.
Ainda conforme a imagem papal, se a paisagem carioca expressou e significou a jornada,
a igreja conseguiu barganhar seus interesses com diferentes ordenamentos internacionais. Isso
não serviu estritamente para fazer novas estádias, afinal, já se faz esse processo por outras frentes
clericais, como na difusão da imagem de Nossa Senhora de Fátima pelo mundo, mas para fazer
a Peregrinação Internacional ser constituída de um horizonte geopolítico religioso de permanências
tanto na juventude quanto na projeção das funções simbólicas, sejam elas de ordem política e/
ou sacramental aqui apresentadas brevemente, que justificam a existência da jornada. Em poucas
palavras, a percepção sobre a situação imaginária da jornada não dispensou uma compreensão plural
da geografia ligada à imagem do mundo religioso.

Considerações finais

Fez-se um esforço para compreender a paisagem a partir de algumas fontes primárias a respeito
da Peregrinação Internacional, mais especificamente sobre o caso da Jornada Mundial da Juventude, no
Rio de Janeiro, em 2013. Em outros termos, recorreu-se a algumas revisões bibliográficas, buscando
informações de portais de notícias e fotografias.
Ao refletir sobre a paisagem, Besse (2014, p. 105) propõe que “desistamos da procura do lugar
e caminhemos”. Refere-se aos impulsos do peregrino no espaço sem esquecer que rotas e caminhos
são provisórios e secretos, não estáveis. Essa é uma abertura para se conceber, a partir do imaginário
das peregrinações, significados das experiências religiosas.
Diante da fragilidade da geografia científica, que muitas vezes repousa nas leis invariáveis,
portanto objetivas, no ideal universal, buscou-se contribuir com um caminhar envolvido na “maneira
como desperta uma consciência geográfica” (DARDEL, 2011, p. 83), influenciada pelos regimes
noturnos-diurnos da imagem, sublinhando a atitude humana que supera a firmeza existencial dos
fatos. Assim, a presença humana é vital, pois é dela que lançamos o “ponto de vista” para a condição
física ou biológica; é a partir dela que o destino ganha sentido, inclusive, para produzirmos uma
compreensão ciente de outras apreciações no futuro.

117
Referências

BESSE, Jean-Marc. Ver a Terra: seis ensaios sobre a paisagem e a geografia. Tradução de Vladimir
Bartalini. São Paulo: Perspectiva, 2014.

CLAVAL, Paul. Terra dos homens: a geografia. Tradução de Domitila Madureira. São Paulo:
Contexto, 2010.

COSGROVE, Denis. A Geografia está em toda parte: cultura e simbolismo nas paisagens humanas.
In: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDHAL, Zeny (Org.). Geografia cultural: uma antologia.
Rio de Janeiro: EDUERJ, 2012.

DARDEL, Eric. O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica. Tradução de Werther


Holzer. São Paulo: Perspectiva, 2011.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa: Presença, 1989.

HISTÓRIA DAS JMJ. OPUS Dei, São Paulo, 2019. Disponível em: https://opusdei.org/pt-br/
article/historia-das-jmj/. Acesso em: 28 dez. 2021.

HISTÓRIA DAS JMJ. RS21, São Paulo. 2016. Disponível em: https://www.rs21.com.br/jmj-
historia-jmj/. Acesso em: 27 dez. 2021.

JMJ atrai milhares de jovens ao rio de janeiro. Ministério do turismo, Brasília, 19 Jul. 2013.
Disponível em:https://bit.ly/35pVPt1. Acesso em: 2 dez. 2021.

LUKERMANN, Fred. Geography as a Forma Intellectual Discipline and the Way in wich it
Contributes to Human Knowledge. Canadian Geographer, v. 8, n. 4, 1964.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução de Carlos Alberto R.


de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

OMS afirma que COVID-19 é agora caracterizada como pandemia. Paho, Washington, 11 Mar.
2020. Disponível em: https://bit.ly/3wORlaM. Acesso em: 22 dez. 2021.

PAPAMÓVEL chega ao rio de janeiro para a JMJ rio 2013. Canção nova, São Paulo, 16 jul. 2013.
Disponível em: https://bit.ly/3NDHAST. Acesso em: 16 dez. 2021.

ROSENDAHL, Zeny. Os caminhos da construção teórica: ratificando e exemplificando as relações


entre espaço e religião. In: ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato (Org.) Espaço e
Cultura: Pluralidade Temática. Rio de Janeiro, EDUERJ, 2008.

SILVA. Juniele Martins.; MENDES, Estevane de Paula Pontes. Abordagem qualitativa e geografia:

118
pesquisa documental, entrevista e observação. In: Pesquisa qualitativa em geografia: reflexões
teórico-conceituais e aplicadas. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2013.

SOUZA, José Arilson Xavier. A Geograficidade no Caminhar de peregrinos. Geograficidade,


UFF, RJ, v.8, Número 1, 2018. Disponível em: https://bit.ly/3IW7rlt. Acesso em: 18 set. 2020.

TUAN, Yi-Fu. Sacred Space: Exploration of an Idea. In: BUTZER, K. (org.). Dimension of
human geography. Chicago: The University of Chicago/Departamento of Geography, 1979.

119
CUERPO-TERRITORIO, MEMORIA E IMAGEN: EN TORNO A LA
DESTRUCCIÓN DEL CRISTO GUERRILLERO

Carolina Vogel
carolinavogel@yahoo.com.ar

Carlos Luciano Dawidiuk


luchodawidiuk@yahoo.com.ar

Exordio
En la Semana Santa de 1973 llegó al santuario de altura del Abra de Punta Corral, localidad de
Tilcara (Jujuy), una figura de Cristo esculpida por el artista Edmundo Diego Villarreal. En ella había
plasmado las facciones de su hija, Ana María Villarreal, militante del Partido Revolucionario de los
Trabajadores-Ejército Revolucionario del Pueblo (PRT-ERP) y esposa de su líder, Mario Santucho,
ejecutada ilegalmente en la masacre de Trelew el año anterior. También había representado heridas
de bala que aludían a su fusilamiento (Figura 1).

Figura 1 – Edmundo Diego Villarreal junto a la escultura del Cristo Guerrillero en 1973

Fuente: Imagen extraída de Machaca, 2011, p. 70.

Esta imagen religiosa, a la que muchos comenzaron a llamar el “Cristo Guerrillero”, suscitó
el rechazo de autoridades del gobierno y de los militares que buscaron impedir su entronización.
Por este motivo, algunos fieles que la habían resguardado en sus hogares decidieron finalmente,
junto al párroco del lugar, emplazarla en aquella mencionada capilla remota, ubicada en los cerros
120
y a la que solo es posible acceder a pie por un camino dificultoso. Fue trasladada “de noche y en
silencio, sin ceremonias que llamaran la atención de la iglesia y el gobierno” (MACHACA, 2011, p.
77), allí donde los peregrinos la contemplaban cada año.
Sin embargo, en el mes de abril del año 1995, poco más de veinte años después de su llegada al
santuario del Abra, donde efectivamente había quedado al amparo de posibles agresiones, la escultura
apareció violentamente atacada a martillazos, arrancada de su cruz y decapitada. Su cabeza nunca
apareció y tampoco se sabe quién perpetró el ataque, pese a que algunos habitantes sospecharon de
actores vinculados a la dictadura de 1976. Este hecho significó un duro golpe para los feligreses,
sobre todo para aquellos que se ocupaban de cuidar la capilla y quienes habían cuidado del Cristo
ante las incipientes amenazas que obligaron a guarecerlo en la altura.
La imagen fue reemplazada por una nueva, ya despojada de los atributos que generaban
divisiones en la comunidad religiosa. Los restos de la figura profanada permanecen hoy en un museo
ubicado junto a la capilla de Tilcara y buena parte de los vecinos no conocen o prácticamente no
recuerdan estos hechos. Aunque muchos otros, que forman parte activa de la comunidad religiosa
o vinculados a diferentes agrupaciones políticas, mantienen vivo su recuerdo desde perspectivas y
significaciones diferentes.
Ahora bien, es necesario notar que dicho acto violento no solo implicó la destrucción de una
obra de arte e imagen sacra, pues afectó directamente a lo que ella representaba simbólicamente en
el imaginario de la comunidad, pero también en torno a su corporalidad y vitalidad (MITCHELL,
2017). Por eso, si concebimos el espacio no como algo externo a los sujetos, sino como un producto
y productor de la realidad social (LEFEBVRE, 2013), podemos situar a las imágenes como agentes
relevantes de esa construcción.
En este sentido, podemos afirmar que la importancia de esa escultura no solo se debe a su
carácter de imagen sagrada, sino también a que se emplazaba en la capilla que los tilcareños habían
dedicado a la Virgen de Copacabana del Abra de Punta Corral, igualmente tallada por Villareal en
1972, después de la conflictiva separación de la peregrinación que durante décadas habían compartido
en aquel espacio con los habitantes de la localidad vecina de Tumbaya y cuya raíz se remonta hasta
la época incaica.
La relevancia de la peregrinación, en la que la mayoría de los pobladores (y de un gran número
de localidades vecinas) participan cada Semana Santa, más allá incluso de su adscripción religiosa,
radica en que es, primordialmente, un proceso territorial en el que se dirimen aspectos culturales e
identitarios. En este sentido, concebimos el territorio como un espacio significado por las prácticas
sociales y culturales objetivadas (CARBALLO, 2009), cuyos límites se fijan materialmente y dentro
de los que rige un orden jerárquico y político. Así, como sucede con la figura central de la celebración,

121
la Virgen, es posible concebir al Cristo Guerrillero como un geosímbolo (BONNEMAISON,
2004), dado su carácter de marcador espacial y su poder para significar el espacio y contribuir a la
construcción de identidades.
Al mismo tiempo, creemos que es posible entender esta escultura como un “cuerpo-territorio”.
Si la imagen es “una peculiar y paradójica criatura, tanto concreta como abstracta, tanto una cosa
específica individual como una forma simbólica que abraza una totalidad” (MITCHELL, 2017, p.
17), debemos añadir que, en este caso particular, también se trata de un cuerpo. Y este, en tanto
construcción social, da cuenta de límites, convenciones y resistencias, dotado de una expresión y
conformado por partes a cubrir como las zonas erógenas o que muestra como el rostro o los ojos
se convierten en un “cuerpo escénico” (MATOSO, 2008), al igual que cualquier otro de carne y
hueso. Por este motivo, sostenemos que la destrucción de esta figura no puede reducirse únicamente
a un ataque iconoclasta, sino que impacta directamente en la construcción de las relaciones de la
comunidad tilcareña con el espacio y la memoria.

La construcción del espacio sagrado

En las localidades vecinas de Tilcara y Tumbaya se celebra la Semana Santa con peregrinaciones
hacia dos santuarios de altura del área de Punta Corral, ubicada en la sierra de Tilcara entre los dos
departamentos homónimos a los respectivos pueblos, ambas dedicadas a advocaciones de la Virgen
de Copacabana. Aunque el escenario espacial está escindido por diversas disputas que se dieron en
torno a la potestad de la imagen de bulto, las celebraciones se articulan ritual y geográficamente de
manera complementaria (GUDEMOS, 2015).
En la construcción de este espacio sagrado en procesión se reactualizan tanto el origen de la
devoción como las tensiones que llevaron al desdoblamiento de la festividad. El culto a la Virgen
de Copacabana y la peregrinación en esta área se remontan a su aparición milagrosa ante el pastor
Pablo Méndez en lo que hoy es Punta Corral, en 1835. La edificación de una capilla en el lugar el
milagro, en 1899, se puso bajo la jurisdicción de Tumbaya, creada ese mismo año. Pero en 1917,
cuando la capilla de este pueblo se quedó sin sacerdote, la peregrinación adoptó un itinerario que
duraría varias décadas: el ascenso de la Virgen se realizaba desde Tumbaya para luego descender hacia
Tilcara. Finalmente, después de una larga historia de tensiones, en 1971 la procesión se dividió en
dos, la imagen comenzó a descender a hacia Tumbaya y los tilcareños iniciaron la construcción un
santuario, ahora bajo su jurisdicción, en el Abra de Punta Corral. Dos años después, entronizaron
a una nueva imagen de bulto propia, la Virgen de Copacabana del Abra de Punta Corral, esculpida
por el mismo Villareal.1
1 Aunque existen diversos trabajos sobre estas peregrinaciones, los primeros testimonios sobre su origen y el conflicto entre las
localidades pueden consultarse en Cortázar (1965) y Lafón (1967). Para un análisis histórico y antropológico se recomiendan los

122
De este modo, podemos destacar algunos aspectos relevantes que hacen a la configuración
de esta práctica peregrina y del espacio en el que se desarrolla. En primer lugar, vale recordar que
la Virgen, luego de su aparición ante el pastor Méndez, se materializó en una piedrita que este
halló al retornar al lugar del milagro y que luego guardó en la imagen de bulto. Las piedras tienen
un especial sentido en la cosmovisión andina, ya que el hallazgo en los senderos de los cerros
con alguna forma peculiar se considera de buen augurio y un regalo de la Pachamama a modo de
protección, multiplicación y cuidado. En este sentido, la Virgen de Copacabana, como Madre Cerro,
guarda una especial relación con las montañas, que en la cosmovisión andina se identifican con los
wakas, lugares sagrados donde viven los antepasados y con los que las comunidades establecen un
estrecho vínculo para pedir y agradecer por las cosechas, entre otras cosas. De ahí las abundantes
representaciones en la iconografía colonial que muestran a esta advocación como “Virgen-Cerro”
(GISBERT, 1994, p. 62), denotando la pervivencia de creencias ancestrales en el culto mariano.
El emplazamiento de santuarios en los cerros nos remite a la rápida resignificación del
culto a las wakas, sumamente extendido en tiempos incaicos, frente a la campaña de extirpación
de idolatrías en la época colonial (OCHOA y OTERO, 2018), hecho que da cuenta de la espesura
espaciotemporal de estas prácticas peregrinas, como de su hibridez cultural. Pero esta conversión
en las prácticas simbolizadas en las que la naturaleza ocupa un lugar central se acopló también a
la “cristianización del paisaje” (COSTILLA, 2014, p. 125) que había comenzado entre los siglos
XI y XII en Europa, tendenciando el impulso de la descentralización de los lugares urbanos de
peregrinación y favoreciendo la cristianización de las comunidades rurales.
Como en muchas otras manifestaciones católicas en la región andina, pueden divisarse
elementos simbólicos en los que se entrelazan el pasado prehispánico con los de la fe cristiana. En
este sentido, la sacralidad del lugar de altura no solo está dada por el emplazamiento de la capilla,
sino que el cerro mismo se constituye como una entidad sagrada por estar habitado por los achachilas,
espíritus tutelares y protectores de los pueblos que encarnan la presencia de los antepasados, a
quienes se debe pedir permiso para subir.
Por otra parte, esos procesos de larga duración se articulan con otros más recientes, vinculados
a la separación de las peregrinaciones y a la constitución de la procesión tilcareña como un elemento
central para la reafirmación de la identidad local. En el camino hacia el santuario se construye el
espacio como una gran urdimbre de deseos, promesas, creencias, afectos y hasta tensiones e intereses
contrapuestos y articulados en tiempos, y espacios que trascienden el presente y se reactualizan en
formas proxémicas, emocionalidades y musicalidades (GUDEMOS, 2015).
Dichas formas de proxemia, propias de un catolicismo popular y andino, dan lugar a
la constitución de un espacio íntimo a partir de la relación que se establece entre los fieles y la
trabajos de Zanolli, Costilla y Estruch (2010), Costilla (2014) y Machaca (2011).

123
corporalidad de las imágenes. Así, por ejemplo, los peregrinos se disponen a “tomar la gracia” al
tocar o acariciar el manto de la Virgen o los pies del Cristo y sus heridas. También puede suceder
que sea la advocación quien toque al devoto, como en el acto de “ser pisado” por una virgen o santo,
que consiste en pasar de rodillas por debajo de las andas o de la urna en la que se encuentran y
apoyar la cabeza en ellas.
Estas relaciones tan cercanas con las advocaciones prefiguran asimismo la configuración
espaciotemporal de la vivencia de los fieles que logran palpar a la divinidad mediante la imagen y
del vínculo afectivo que con ella se establece. De este modo, se brinda el marco para una experiencia
heterocrónica y heterotópica (FOUCAULT, 1999) en la se entrecruzan tradiciones ancestrales y
prácticas religiosas del catolicismo andino, cuya performatividad ritual las reactualiza y las pone al
servicio de la construcción de la identidad tilcareña, y del vivir cotidiano de una fe en una espacialidad
híbrida y en constante movimiento.

Destruir una imagen, transformar el espacio

Al entender el espacio desde la concepción trialéctica que proponen Lefebvre (2013) y


Soja (1996), es decir, como un producto y al mismo tiempo productor, devenido del movimiento
constante, simultáneo y complejo entre la espacialidad del mundo material producido socialmente,
la forma en que lo conceptualiza y en que las relaciones de producción le imprimen un diseño y un
orden a través del control sobre el conocimiento, los signos y los códigos y la dimensión experiencial
o empírica que opera conjuntamente con/en estos dos, queda claro no solamente que no se trata
de algo vacío, dado, cerrado o determinado. También, los procesos mediante los cuales se significa
poseen una densidad y dinámica en su producción que hace imposible o inútil encerrarlos en una
imagen estática. Es decir, cualquier modo de situar o ubicar espacialmente algo resulta por lo menos
pobre si solo se trata de establecer o determinar un solo punto en ese mundo material o, más bien,
en sus representaciones dominantes, porque el espacio es también tiempo, es movimiento.
En este sentido, Lindón (2017) señala que los sujetos elaboran internamente el mundo
externo en una relación dinámica con el espacio, puesto que la comprensión que hace de los lugares
“constituye una forma de movimiento” que incorpora “procesos de cognición espacial de un
entorno que es múltiple” (2017, p. 110). En estos, dichas comprensiones devienen en acciones que
los sujetos dotan de significados, valores y memoria, ya que los lugares en los que se inscribieron
semantizan su trayectoria biográfica (LINDÓN, 2017). Esos saberes internalizados no solo existen
en las personas como una capacidad de agencia individual, sino que son disposiciones encarnadas
en ellas como “co-agencia respecto a encadenamientos de acciones” (LINDÓN, 2017, p. 111).
Así, los movimientos corporales de un habitante se imbrican con saberes de otros y permiten que

124
todos “participen en secuencias de acciones, que en última instancia son formas de colaboración
encarnadas” (LINDÓN, 2017, p. 112).
De ese modo, y en relación a la perspectiva espacial, corpórea y de la memoria que hemos
venido desarrollando en torno a la figura del Cristo Guerrillero, es preciso recordar el doble registro
en el que operan las imágenes, tal como se desprende de la distinción propuesta por Mitchell (2017)
entre picture e image, que en castellano conviven bajo un único concepto de “imagen”. Así, puede
decirse que “la picture es la imagen más el soporte; es la apariencia de la imagen inmaterial en un
medio material” (MITCHELL, 2017, p. 118). En este sentido, la escultura se presentaba como
un “vector de memoria” (ROUSSO, 2012, p. 7) que podía dar cuenta de rasgos de la memoria
colectiva, como así también operar en ella mediante los vínculos que mantenía con otras narrativas
e imágenes, en las que se yuxtaponían el imaginario católico y el andino con la historia reciente de
la Argentina signada por la violencia política y las prácticas genocidas. Pero también se configuraba
como un “vector espacial-territorial”, ya que la que situaba materialmente en un imaginario híbrido
en el marco de la práctica peregrina y de formas proxémicas frente a un cuerpo en el que, a su vez,
convivían el de Cristo y el de una guerrillera, Ana María Villareal.
Podemos afirmar, entonces, que el ataque perpetrado contra la figura del Cristo Guerrillero
significó mucho más que un mero mensaje político.2 Es decir, podemos pensar en que la agresión
no solo estaba dirigida hacia la imagen crística para despojarlo de los atributos que mantenían viva
la memoria de un pasado que resultaba incómoda y peligrosa para algunos.
Creemos que essa acción violenta contra la imagen tuvo también como objeto central destruir
la memoria de la propia Ana María. Podemos notar una correspondencia con una constante en los
actos iconoclastas realizados en diferentes contextos históricos y geográficos: la acción de eliminar
la expresión animada y cualquier rasgo que le infiera a la imagen la individualidad y la personalidad
(FREEDBERG, 2017). La decapitación de la escultura y la desaparición de la cabeza apuntaron a
extirpar de la imagen aquello que le confería un significado y una presencia disruptiva. Es interesante
notar que entre los entrevistados que recuerdan el caso, el rostro del Cristo evoca tanto a la hija del
escultor y a su historia trágica, como a la época en que circulaban guerrilleros en la región.
Asimismo, la eliminación del gesto corporal conferido por las manos y pies no solo buscan
afectar la capacidad de acción de la imagen, sino también aquello que expresa en ella un sentido
interior (FREEDBERG, 2017). De este modo, la importancia de la destrucción del cuerpo radica
tanto en la extirpación de la corporalidad de la personalidad que (re)presenta, como también afectar

2 Algunos de nuestros entrevistados han sugerido que el ataque iconoclasta tuvo lugar en 1995 con el objetivo de amedrentar
a quienes se ocupaban de los preparativos para la conmemoración del vigésimo aniversario del golpe militar de 1976. Aunque
nadie se atrevió a señalar la autoría concreta de ese acto, varios comparten sospechas en torno a personajes locales vinculados a la
represión ejercida en esos años oscuros y/o a la participación en los servicios de inteligencia al momento del acontecimiento, que
profesaban un profundo anticomunismo.

125
directamente el sentimiento de empatía que la figura podía suscitar en los fieles. Por ello, el ataque
a la imagen puede proyectarse al de los cuerpos de los propios fieles que establecían toda una serie
de relaciones afectivas y proxémicas con ella.
Además, a diferencia de otros actos iconoclastas perpetrados en la zona,3 este implicó una
doble profanación del espacio sagrado. Es decir, no solo se violentó el santuario de altura que
cobijaba la escultura, que había terminado allí tras las disputas que la marcaron desde su aparición,
sino que también se violó el propio espacio del cerro que la resguardaba, hiriendo profundamente
su sacralidad devenida de la pervivencia de la inmemorial cosmovisión andina.

Alcances y límites de la iconoclasia: la imagen superviviente y la memoria

La destrucción de la imagen instaló inmediatamente el debate en la comunidad religiosa en


relación a si la escultura debía ser restaurada o reemplazada. Luego de la convocatoria del escultor
Alfredo Yacussi en mayo de 1995 por la Comisión de la Virgen, para consultarlo sobre las posibles
decisiones a tomar respecto a la imagen, terminó triunfando la postura de realizar una nueva figura.
Así, el artista santafesino invitado por los fieles trabajó durante cuarenta días en la casa histórica
donde habían velado al General Juan Galo Lavalle, el mismo lugar donde se había presentado la
figura anterior que iba a ser sustituida. La reluciente escultura, elaborada en madera de algarrobo
negro, con rasgos marcados indígenas y emplazada una cruz de cardón, fue presentada ante la
comunidad el 26 de junio de 1995. Durante varios días, siguiendo una antigua tradición, el pueblo
pudo depositar en el hueco de la espalda de la imagen y en el interior de la cruz sus peticiones,
oraciones y coplas (MOLINARI, 2012). Un mes después, fue ascendido al santuario de altura para
ocupar el lugar del destruido, donde permanece hasta hoy.
Es interesante reparar en que esta nueva escultura, aunque fue bautizada oficialmente con el
nombre de “El Señor del Abra de Punta Corral”, fue conocida también como “Cristo de la Unidad”.
Más allá de las intenciones del autor, y tratándose de una obra que se gestó son la interacción
constante de la comunidad, no deja de ser significativo que este último título vino a actuar como un
punto de sutura en torno a las divisiones que atravesaban al pueblo.
En este sentido, es necesario atender también a que el reemplazo de la figura está vinculada a
un evento traumático. Como señalamos antes, el ataque a la imagen puede considerarse como una
afrenta directa a la comunidad, que establece una relación “empática” (FREEDBERG, 2017, p. 56)
con ella. Por ello resulta revelador que muchos fieles sugirieron sepultar la escultura, tratándola
3 La mayoría de los entrevistados recuerda de manera muy vívida dos hechos recientes, relacionados con dos estatuillas de
Cristo de bronce. El primero, fue sustraído del atrio de la iglesia de Tilcara en agosto de 2015. Cinco meses después, fue hallada
en el Río Grande. Presentaba signos de violencia resultado del esfuerzo para arrancarla de su cruz. El otro fue robado de la entrada
del pueblo vecino de Maimará en diciembre de 2017 y también hallado una semana más tarde en los márgenes del mismo río. En
este caso, había sido decapitada.

126
como un cuerpo real. Sin embargo, desde la iglesia se decidió conservar los restos, primero, bajo
una mesa en el coro del templo (MOLINARI, 2012), y, finalmente, en una vitrina en el museo
de la capilla de Tilcara (Figura 2). Esto contribuyó a su olvido e invisibilización, ya que, si bien el
acceso al lugar es libre, no se abre a menos que alguien lo requiera. Eso lleva a que no se suela recibir
muchas visitas, permaneciendo cerrado el recinto la mayor parte del año.

Figura 2 – Cristo Guerrillero mutilado, expuesto en el museo de la capilla de Tilcara

Fuente: Fotografía de los autores. Tilcara, noviembre de 2021.

Por otra parte, el rápido reemplazo por el Cristo de la Unidad no permitió vivenciar a la co-
munidad el impacto del vacío causado por la destrucción del Cristo Guerrillero y dar lugar así al
afianzamiento del sentimiento de pérdida y afectación a la totalidad del cuerpo social. Al encontrar-
se en el lugar de peregrinaje con una advocación con rasgos andinos, cuyo sentido apelaba a la unión
del pueblo, en oposición al carácter conflictivo evocado por la denominación de “guerrillero”, los
fieles no experimentaron la ausencia de la imagen destruida, contribuyendo así al olvido de la his-
toria de Ana María Villareal corporizada en el rostro de aquel Cristo.
De este modo, debido a varias entrevistas y al deseo de parte los fieles de dar sepultura al
cuerpo mutilado, el impacto de la noticia de la profanación del templo y de la destrucción de la fi-
gura fue muy profundo. Fue vivida por muchos como una pérdida y como una herida en la propia
comunidad. Sin embargo, el reemplazo no dio lugar a ningún proceso de elaboración del episodio
traumático, ni hubo trabajo de duelo. Por ello puede decirse que, al evitar hacer notoria la falta
como producto de una pérdida histórica (LACAPRA, 2005), se afectó también el carácter creativo
de la memoria de orientar la imaginación de un futuro posible para la comunidad en relación a lo
sucedido y a la significación de la propia imagen.
Por este motivo, nuestros entrevistados solo recuerdan los detalles que mantenían una rela-
ción estrecha con la parroquia en el momento de la agresión y que aún participan activamente en
la parroquia, o bien otros vinculados a agrupaciones políticas. Casi todos los jóvenes entrevistados,
que desconocían lo acontecido, decían tener una vaga idea formada a partir de algún relato oral de

127
sus parientes o confundían el hecho con los otros sucedidos que mencionamos antes. Por otra parte,
entre quienes recuerdan el suceso, los religiosos tienden a interpretar la acción iconoclasta como un
ataque a la fe y a la comunidad de devotos, mientras que los que no están vinculados a la esfera de la
iglesia tienden a atribuirle un claro sentido político. Todo esto da cuenta de la efectividad, en cierta
medida, de la destrucción de la imagen como forma de ataque a la propia memoria de la comunidad.
Pero dicha victoria sobre la memoria no fue total. La figura asesinada ha retornado también
como “imagen superviviente”, en el sentido que propone Didi-Hubermann (2009), al retomar el
concepto de Nachleben (“supervivencia”) con el que Aby Warburg refería a la capacidad de retorno
de las imágenes y a su poder de transmisión del pathos, como síntoma de lo que puede entenderse
como un trauma no elaborado, del retorno de lo reprimido, o la presencia de un tiempo retroactivo
o anacrónico. Así, el regreso de la destrucción del Cristo Guerrillero ha cobrado diferentes formas,
por ejemplo, en las imágenes de las ermitas4 confeccionadas para la peregrinación hacia el Abra de
Punta Corral en Semana Santa.
Estas imágenes se constituyen en una arena de negociación y materialización de la memoria
y de la identidad de la comunidad, puesta en narración/mostración del pasado frente a los límites
que el devenir histórico ha impuesto para dar de sentido al hecho en el presente. Así, en una de las
ermitas construida por la familia Vega nos encontramos con la representación del Cristo mutilado
y con un brazo aun colgando de la cruz (Figura 3). A esta se le había añadido cartel que rezaba:
“¿Dónde está tu hermano? Una voz desde su sangre grita desde la tierra hasta mi”. Ella propone una
configuración realista del hallazgo de los restos de la escultura mutilada. Sin embargo, el sentido
eminentemente político de esta imagen reside en las alusiones del texto añadido en la parte superior.

Figura 3 – Fotografía de la ermita de la familia Vega sobre la mutilación del Cristo Guerrillero

Fuente: Imagen extraída de Amara, v. 5, n. 7, p. 30, 2012.

4 Las ermitas son una especie de cuadros que las familias tilcareñas construyen cada año con materiales efímeros de la naturaleza.
Se sitúan en la capilla del pueblo y en el camino al santuario de altura, en los calvarios. Muestran tanto escenas referidas a La
Pasión de Cristo como iconografías de otras devociones locales, pero también atravesadas por la cosmogonía andina (LANZA;
ACOSTA, 2021).

128
Esas mismas palabras había pronunciado el padre Eloy Roy en una controvertida misa de
la Semana Santa de 1988, en la que, ante la presencia algunas madres de Plaza de Mayo, coronó
con un paño blanco a la Virgen Dolorosa, emulando el pañuelo de dichas heroínas, antes de salir
en procesión por el pueblo. Tanto en su mensaje como en ese acto, que parte de la comunidad
religiosa interpretó como una provocación, el clérigo sacralizó la imagen de las madres y de sus hijos
desaparecidos, al mismo tiempo que identificó a Cristo con la figura de un revolucionario asesinado
por “poner en peligro la estabilidad de la religión y del Estado” (ROY, 2012, p. 31), comparándolo
con quienes lo habían imitado en el pasado reciente de la Argentina.
Este acontecimiento catalizó la expulsión del sacerdote al año siguiente por parte de
la jerarquía eclesial jujeña, después de ser acusado por sectores reaccionarios de la sociedad de
“comunista” y “apátrida” (MACHACA, 2011, p. 18). Roy, párroco comprometido con la Teología
de la Liberación, que se había dedicado a organizar y fortalecer las “comunidades de base” desde
1983, fue reemplazado por el sacerdote Guillermo Dress, encargado de desmantelar su obra. Así, en
la ermita citada, puede notarse la superposición de los tiempos y densidad de sentidos en torno a la
figura del Cristo Guerrillero y a las implicancias de su destrucción.
La otra imagen alusiva al acto iconoclasta, corresponde a la de una ermita construida por
la familia Méndez en el año 2016 (Figura 4). En esta, si bien se da cuenta de la mutilación,
llamativamente se le repone un rostro. A diferencia de la anterior, esta representación apela a una
configuración más simbólica. Además de la reposición del rostro, que ya no guarda relación con el
del Cristo Guerrillero (de hecho, su autor se refiere a la imagen como el “Cristo mutilado”), en su
composición se observan otros elementos de sutura del pasado traumático, como son los ángeles
que se dirigen a restituirle sus brazos o la figura del Papa Francisco, la capilla tilcareña y un manto
en la base que representan la unidad del pueblo en la fe católica.

Figura 4 – Ermita de la familia Méndez en el año 2016 sobre el Cristo Guerrillero mutilado

Fuente: El tribuno, https://www.youtube.com/watch?v=3xY90LnLd7I.

129
Así, aunque el rostro, semejante al de representaciones crísticas tradicionales, imparte nueva
vida a la imagen como reparación del acto iconoclasta, borra la memoria del gesto de Ana María
Villareal de los posibles sentidos disidentes que podrían construirse en diálogo con ella. Mientras
tanto, el cuerpo que fue territorio de lucha, punto de intersección de acciones pasadas, del presente y
de la imaginación del futuro, permanece guardado y vedado a la vista de los pobladores, disputándose
entre el olvido y la esperanza de la restitución de la memoria.

Referencias

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130
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131
MUNDOS DA VIDA EM MOVIMENTO: A MALHAÇÃO DO JUDAS OU DANÇA DE
CABOCLOS NA AMERICA LATINA

Rosalvo Nobre Carneiro


rosalvonobre@uern.br

Fábio Rodrigo Fernandes Araújo


fherodoto@gmail.com

Introdução

A queimação do Judas Iscariotes ocupa um lugar destacado em países da América Latina,


compreensiva no contexto da colonização europeia e católico-cristã. Essa prática humana e social
espacializada com a colonização europeia desde o século XVI, difundiu-se regionalmente e
localmente, com momentos de expansão, retração, proibição e até mesmo tem deixado de existir em
muitos casos. A década de 1990 parece ter sido um momento de impulso dessa tradição em diversos
lugares, tanto no Brasil quanto em outros países.
Nesse contexto, malhar ou queimar enquanto ações instrumentais, carrega-se de um
simbolismo cultural e religioso, mas também econômico e político. Em todos os casos, a dimensão
espacial vem junta. É, todavia, por meio das funções básicas do agir comunicativo para a reprodução
do mundo da vida que a queimação do Judas se mantém e se renova pelo seu compartilhamento
intersubjetivo. Nas palavras de Habermas (2012b):

Sob o aspecto funcional do entendimento, o agir comunicativo se presta à transmissão


e à renovação de um saber cultural; sob o aspecto da coordenação da ação, ele possibilita
a integração social e geração de solidariedade; e, sob o aspecto da socialização, o agir
comunicativo serve à formação de identidades pessoais. (p. 253, grifos do autor).

Na pequena cidade de pouco mais de 5.000 habitantes, denominada de Major Sales, localizada
no interior do estado do Rio Grande do Norte, chama-nos a atenção, de início, o hibridismo
cultural entre uma tradição popular e religiosa, sendo compreensível esse fato desde o ponto de
vista da formação histórica, social e espacial brasileira de base colonial, europeia e católica. Nesse
cenário, a queimação do Judas se funde com uma dança rural chamada de dança de Caboclos,
geralmente associada à festa e ao agradecimento das farturas agropecuárias e da época chuvosa no
sertão nordestino do Brasil.
Dito isso, algumas questões parecem-nos pertinentes: há relação nos países latinoamericanos
entre a dança de caboclos e a queimação do Judas? Como se diferenciam ou se aproximam os
132
mundos da vida pelas tradições culturais, pela integração social e pelos processos de socialização
humana? Essa produção simbólica do espaço mediante o agir comunicativo encontra-se em via de
produção material pela colonização do mercado e do poder político?
Por conseguinte, o espaço enquanto mundo da vida (CARNEIRO, 2021) compõe-se de
experiências comuns em relação a tradições, na qual indivíduos socializados em grupos humanos de
referência podem se autorrepresentar perante o público durante as festividades e garantir a própria
continuidade do saber de fundo garantidor da queima do Judas. Sinalizam-se, com isso, os modelos
culturais, as ordens legítimas e a integração social, assim como a formação das personalidades que
conformam as estruturas do mundo da vida (HABERMAS, 2002). Esse mundo se constitui como
um lugar transcendental em que falantes e ouvintes se encontram e enquanto um reservatório de
autoevidências e de convicções em que os participantes de determinada comunicação lançam diante
de processos cooperativos de interpretação (HABERMAS, 2012b).
Considera-se como operacionalização do estudo, o universo da manifestação cultural
popular-religiosa da queimação de Judas em países de língua espanhola da América Latina. Foram
investigados nos repositórios digitais de produção acadêmica Periódicos CAPES, Redalyc, Scielo,
Dialnet, Google Acadêmico, Microsoft Acadêmico e BDTD. Os descritores de busca nos repositórios de
produção acadêmica foram “queima do Judas”, “Judas”, “dança de caboclos” e “caboclos”.
Desse modo, analisou-se a queima do Judas em um artigo sobre a dimensão jurídica em
Chongos Bajo – Peru. Um de caracterização etnográfica nas localidades de Potrerito e La Cañada –
Venezuela; um que contextualiza a queima em Iquique – Chile; um que referencia a representação
psicológica em Montevidéu – Uruguai; um de associação com o festival do Burro, em San Antero –
Colômbia. Um de descrição em Barreal del Heredia – Costa Rica; e, por fim, um artigo de reflexão
no campo da Geografia Cultural em Luján – Argentina. Como anteriormente mencionado, Major
Sales, no interior do Rio Grande do Norte, nosso campo empírico de pesquisas serve como espaço
de comparação por sua especificidade na confluência entre a dança de Caboclos e a queimação do
Judas.
Destarte, tem-se a intenção de verificar as relações entre a reprodução das estruturas do
mundo da vida da Malhação de Juda em países da América Latina com a dança de Caboclos. Ao
mesmo tempo, busca-se analisar os processos diferenciados de reprodução simbólica do espaço e de
colonização pela reprodução material via mercado e poder político.
A escrita está contida em 5 seções: a primeira, as considerações inicias; a segunda, acerca
da origem e difusão da malhação de Judas pela América Latina com a colonização do século XVI;
a terceira, subdivide-se em dois tópicos: inicialmente, comentam-se as diferenças e semelhanças
do mundo da vida em seus componentes simbólicos da tradição, seus ritos e saberes válidos

133
socialmente, dos grupos sociais de dança e seus mecanismos de integração social, e da constituição
das personalidades caboclas; em seguida, expõe-se os processos de avanço da lógica do mercado e
dos Estados municipais sobre o mundo da vida e sua cultura popular-religiosa; e a quinta, apresenta
as considerações finais do trabalho.

Surgimento e reprodução da tradição latino-americana da malhação de Judas

Nieves Hoyos (1950) e Zacarés (2018) recordam que a ancestralidade da malhação de Judas
é atribuída à colonização ibérica, iniciada a partir do século XVI em toda a América Latina. Dessa
forma, executa-se, em todo caso, pelo julgamento e a exumação de malefícios como princípio de
contiguidade simbólica nas comunidades latinoamericanas.
A malhação de Judas tem como características em comum na América Latina, conforme
Nieves Hoyos (1950): ser instituída a partir de cerimônias sacrificiais no fogo, do Boneco que
representa Judas, traidor da confiança de Cristo; ter em suas variações, formas e conteúdo de
culturas cristãs de ameríndios, africanos ou populações imigrantes de outras nacionalidades; sua
diferenciação a partir de rituais carnavalescos de antecedência europeia; e ser realizado, na maioria
das vezes, durante a Semana Santa.
A queima do Judas é espacialmente difundia, ainda que não uniformemente, na Venezuela,
no sentido de ela estar presente tanto em espaços rurais, como, também, nos espaços urbanos
periféricos. Nesse país sua entrada se deu a partir das ilhas Canárias, em Potrerito e La Cãnada,
próximos geograficamente, bem como é situada pelos atores políticos e suas formas de assegurar a
representatividade local da tradição (ANDRADE, 2007).
Em Chongo Bajo, no Peru, a ascendência dessa manifestação cultural é associada a uma espécie
de territorialização rural dos mecanismos de proteção aos imaginários de identidades peruanas, em
se tratando de ordens e normas de valor moral das comunidades (GUTIÉRREZ, 2014). De acordo
com afirmações de Zecca (2008), a quema del Judas, em Barrel del Heredia, Costa Rica, tem sua
constituição também nas tradições comunitárias de seus habitantes, como, por exemplo, a festa do
padroeiro (São José de Uloa) ou as atividades de ano novo.
Nas análises de Cuneo (2006), a queima de Judas uruguaia é postulada a partir das tradições
coloniais hispano-portuguesas em referência ao nascimento de Cristo (Natal), com o objetivo de
representar, pelo boneco de Judas, personagens satíricos, odiados ou amados no Uruguai.
Em San Antero, na Colômbia, cidade localizada no distrito de Córdoba, a festividade é praticada
desde 1925, quando o ator local Remigio Maza, lembrando da morte e ressureição de Cristo, como
também da traição de Judas, decidiu, a partir disso, promover uma queima que introduz o “burro”
para levar o traidor para seu destino. Essa tradição foi reafirmada em San Antero a partir de 1987,
134
após período de ameaças à festa em torno da ascensão de guerrilheiros e narcotraficantes na região
(MORA, 2017).
Na reflexão de Giop (2019), a queima do Judas de Luján, na Argentina, foi instituída pelo
museu de história da cidade, a partir da década de 30, com a finalidade de evidenciar o imaginário
colonial local. A sua consecução era mediada pelo ator local Enrique Udaondo. Por outro lado, após
sua interrupção durante a ditadura militar na Argentina (1976-1983), a queima foi restabelecida em
2010 com o apoio do governo municipal. A reprodução da tradição argentina é consignada à esfera
política no contexto do turismo monetizado pelo seu passado colonial, seja pelos desfiles, músicas
ou ícones construídos a partir da religiosidade cristã.
Em Iquique, Chile, a queima é idealizada a partir de 1933 por Don Jorge Munoz. Após sua
morte, ela continua com seus herdeiros até a década de 1960. Porém, durante o governo ditatorial
de Pichonet (1973-1989), a tradição não foi mais implementada pelos moradores da cidade, sendo
retomada somente na década de 1990 pelo grupo filhos de Iquique, com o “Centro de Hijos de
Iquique”.
Esses percursos históricos dão conta da antiguidade da tradição em cada país, mas, ao mesmo
tempo, a datação de, aproximadamente, um século nesses casos analisados. Isto é, trata-se de
tradições criadas no início do séc XX, as quais tiveram períodos de consolidação e declínio, e, ao
mesmo tempo, de revigoramento, como no fim da década de 1980 e após 1990.
No interior dessas dinâmicas, os mundos da vida tiveram continuidade pela transmissão do
saber cultural válido, mas também sujeito a renovações. Cultura, solidariedade e personalidades
encontram expressão espacial, no campo ou na cidade, e também em processos diferenciados de
colonização pela lógica mercantilista e do poder que visa administrar a tradição da queima do Judas.

Mundos da vida e colonização sistêmica da queimação do Judas

Os processos temporais anteriormente descritos informam apenas parcialmente a realidade


espacial dessa tradição que mistura, originalmente, dança e religiosidade, incorporando, em seguida,
o político e o econômico. De manifestação artístico-cultural, garantidora de reprodução do mundo
da vida por via linguístico-simbólica, elementos externos e sistêmicos são incorporados pela via da
racionalização instrumental, ao modo de uma colonização que segue por outros meios.
Em termos habermasianos, e num nível elevado de generalização, a colonização do mundo
da vida tem lugar nos seguintes casos:

Quando as formas de vida tradicionais estiverem desmanteladas a ponto de os componentes


estruturais do mundo da vida (cultura, sociedade e personalidade) poderem se diferenciar.
Quando as relações de troca entre os subsistemas e mundo da vida estiverem reguladas
por meio de papéis diferenciados (para o emprego de locais de trabalho organizados, para
135
a demanda de economias domésticas privadas, para as relações do cliente de burocracias
públicas e para a participação formal no processo de legitimação). Quando abstrações reais,
que permitem disponibilizar a força de trabalho dos empregados e mobilizar os votos dos
cidadãos eleitores, forem aceitas pelos interesses em troca de compensações conformes ao
sistema. Quando tais indenizações – de acordo com o padrão do Estado social – são financiadas
pelo incremento do crescimento capitalista e canalizadas para os papeis do consumidor
e do cliente, nos quais vêm se alojar as esperanças privatizadas de autodeterminação e de
autorrealização, extraídas do mundo do trabalho e da esfera pública. (HABERMAS, 2012b,
p. 640).

Considerando que a linguagem comunicativa em atos de fala garante, em contextos de


mundos da vida, a reprodução simbólica da sociedade, o dinheiro e o poder se implantam de modo
invasor nas esferas das interações sociais, reduzindo, desse modo, o espaço do agir comunicativo
pela difusão do agir instrumental.
O agir comunicativo é entendido como uma interação social entre, ao menos, dois sujeitos
capazes de fala e ação que, ao estabelecerem uma relação interpessoal, buscam entendimentos
recíprocos, ao passo que no agir instrumental esses dois mesmos sujeitos se orientam pelo êxito
pessoal diante de avaliações de efetividade de suas intervenções no mundo (HABERMAS, 2012a).
Nesse âmbito, luzes podem ser lançadas a esse processo pela comparação das tradições em
cada país latinoamericano, considerando-se as estruturas simbólicas do mundo da vida, isto é, a
cultura, a sociedade, em sentido estrito, e a personalidade. Assim:

A cultura constitui o estoque ou reserva de saber, do qual os participantes da comunicação


extraem interpretações no momento em que tentam se entender sobre algo no mundo.
Defino a sociedade por meio das ordens legítimas pelas quais os participantes da comunicação
regulam sua pertença a grupo sociais, assegurando a sua solidariedade. Interpreto a
personalidade como o conjunto de competências que tornam um sujeito capaz de fala e de
ação – portanto, que o colocam em condições de participar de processos de entendimento,
permitindo-lhe afirmar sua identidade. (HABERMAS, 2012b, p. 252-253, grifos do autor).

Portanto, do ponto de vista da estrutura cultural, implica em identificar seus espaços e


itinerários simbólicos, ou seja, suas paisagens patrimoniais; do ponto de vista da estrutura social-
normativa, a existência de grupos sociais diretamente vinculados à manutenção e renovação da
tradição; e do ponto de vista da estrutura de personalidade, compreender como a socialização
humana e a socialização pelo espaço acontecem no meio da cultura.
Essa interpretação se verificaria parcial ou incompleta se não acrescentarmos à análise do
mundo da vida a consideração do mundo do sistema, tentando captar como o poder político do
Estado e o poder econômico do Mercado se apresentam em cada lugar. As demandas do dinheiro,
das necessidades econômicas ou as demandas do Estado. As necessidades políticas, portanto,
hibridizam-se com as demandas de liberdade da Sociedade.
136
Trata-se de duas lógicas de produção do espaço, ou seja, de um lado um espaço que se produz
enquanto mundo da vida e, do outro, em que sua produção se realiza enquanto mundo do sistema.
Razões não redutíveis umas às outras, isto é, razão comunicativa e a razão instrumental, são a chave
da explicação.
Estar posta, desse modo, escolhas entre colonização e descolonização, entre integrar-se às
regras ônticas do agir técnico dominador ou integrar essas às normas de ação deônticas do agir
libertador e emancipador. Um “sentimento paradoxal” se gera entre os iquiquenõs, o qual revela a
autoconsciência diante de processos de colonização de seu mundo da vida:

Por um lado, eles sentem que a vida muda e muda para melhor. Eles têm acesso a bens que
antes nem sonhavam em possuir. Mas, por outro lado, alertam que tudo o que obtêm é à
custa de sua identidade cultural e da perda daquela comunidade da qual tanto se orgulham.
Eles têm a cidade que sempre quiseram, mas sentem falta da comunidade que sentem que
estão perdendo.1 (JIMÉNES, 2007, p. 71, tradução nossa).

O Uruguai destoa, no entanto, como algo “surpreendente” frente às outras formas tradicionais.
Nas palavras de Cuneo (2006), em estudo entre 1992 e 1996, o judas é queimado no nascimento
de Jesus e não na sua morte, assim como representa personagens queridos e admirados, vivos ou
mortos, a exemplo de desportistas como Julio Perez2, confirmando um estudo de Ramón Paradella
de 1953. Essa conclusão se depreende das pessoas continuadoras dessa tradição, a saber, segundo
ambos os estudos, as crianças e os jovens.

A reprodução simbólica dos mundos da vida espaciais da queimação do Judas

Em Iquique, no Chile, há uma reatualização da tradição na década de 1990 mediante um


resgate do passado por um sentimento de purificação cultural diante dos “afuerinos” e simbolizada
na queima do Judas enquanto ato de justiça popular contra a aristocracia local. Espacialmente, o
mercado público deu lugar ao bairro, que, por sua melhor “estrutura geográfica”, constituiu-se,
além dessas formas simbólicas, do itinerário simbólico ao modo de uma procissão do Judas, em
carro, e seguindo de bandas típicas (JIMENEZ, 2007).
No Uruguai, em sua capital, Montevidéu, o Judas representa personagens queridos e
idolatrados – anteriormente mencionados –. Ainda, o ato da queima é recepcionado como fator de
boa sorte ou de azar quando se pedem esmolas nas ruas da cidade (CÚNEO, 2006). Uma tradição
mantida por crianças e jovens, e incentivada por familiares, parece inserir-se em contextos culturais
1 Por un lado, sienten que la vida cambia y cambia para bien. Tienen acceso a bienes que antes ni siquiera soñaban con poseer.
Pero, por otro lado, advierten que todo lo que obtienen es a costa de su identidade cultural y de la pérdida de esa comunidad de
la que tanto se enorgullecen. Tienen la ciudad que siempre desearon, pero extrañan la comunidad que sienten que van perdendo.
(Original)
2 Jogador da seleção uruguaia no campeonato mundial de futebol de 1950, campeã diante da seleção brasileira no Maracanã.

137
cristãos associados à pobreza, o que induz à prática de pedir esmolas valendo-se da fé. Por outro
lado, não se mencionam festas ou danças.
Em relação à Venezuela, a queima do Judas se espalha pelas regiões rurais dos Andes,
tanto Centro quanto Oriental, mas é nas cidades de Potrerito e La Cañada, em espaços urbanos
de centralidade popular, que se verifica algumas distinções relevantes. Contida a Semana Santa,
o ponto alto é o domingo de Páscoa. Na primeira cidade, há procissão pelas ruas e praças, num
itinerário marcado pela festa, pela música e pela bebida. Em ambas as cidades a queimação é na
rua e em forma humana de círculo dos grupos sociais, as famílias e seus “primos”, a comunidade
de parentes, porém, não sanguíneos. Em La Cañada, os bonecos representam somente a figura de
Judas, enquanto que em Potrerito fazem referência a personagens políticos (ANDRADE, 2007).
Nos dois casos, não há menção a grupos de dança ou grupos sociais específicos que organizam e
mantêm a centralidade social da reprodução da tradição, pois toda a comunidade se envolve.
Na Costa Rica, em Barreal del Heredia, localizada no cantão de Heredia, essa festividade
é realizada no domingo da ressureição, após a missas das 20 horas, ainda que a Igreja proíba. A
comunidade como um todo participa da queima, sendo uma tradição eminentemente familiar e de
vizinhanças, assim, nomeiam-se as pessoas durante a leitura do testamento. O boneco, no entanto,
é fabricado pelos homens, não se identificando a presença feminina. A festa é realizada em frente
ou nos arredores do salão comunal da Igreja e mediante a “conformação geográfica” do lugar, sem
quadrantes que integrem o desenvolvimento das procissões (ZECCA, 2008).
Do ponto de vista da materialidade do espaço, não se produziu em termos de tradição, uma
espacialidade, nem pelas formas e muito menos por itinerários: “En cambio, en la quema de Judas,
no hay uma disposición establecida, como tampouco um lugar definido, el caul antes era frente ao
salón comunal; es decir, la calle o si se prefere la plaza [...] ahora es em qualquer lugar y a altas horas
de la noche” (ZECCA, 2008, p. 59).
Diferentemente dos casos anteriores, Chongos Bajo é uma comunidade rural do Peru. A
queima do Judas inicia na Sexta-Feira Santa com a dança das “Varonadas” ou “dança dos varões”,
encarregados de sepultar Jesus, e segue no Sábado de Aleluia com as “Morenadas”. Essa comunidade
faz a introdução dos bonecos, desde o norte e sul da localidade até a praça, sendo esses fabricados à
semelhança de pessoas incestuosas e adulteras da localidade. A tradição se mantém, assim, por meio
da sanção simbólica da comunidade perante seus indivíduos, por isso na dança a identidade precisa
ser preservada pelos trajes, máscaras e silêncio (GUTIERREZ, 2014).
Depreende-se, com isso, que essas comunidades vivem profundamente no estágio
convencional de desenvolvimento da consciência moral dos indivíduos, no qual “[...] a manutenção
das expectativas da família, grupo ou nação do indivíduo é percebida como algo digno de valor em

138
si mesmo, sem levar em consideração as consequências imediatas e óbvias” (HABERMAS, 2016, p.
111).
De outro modo, considerando que esses mundos da vida, responsáveis pela manutenção e
renovações das tradições, da garantia da solidariedade e da socialização, encontram-se, sobretudo, a
partir da década de 1990, em processos de colonização pelo sistema. Contudo, cabe esclarecer esse
último conceito:

O conceito habermasiano de sistema é restrito, limitando-se à economia e ao “poder


administrativo”. A ciência, a religião, a arte, a educação e parcialmente o direito, assim como
a política nas “formas democráticas de formação da vontade” (poder comunicativo), não
constituem sistemas, mas sim níveis reflexivos da reprodução simbólica do mundo da vida.
(NEVES, 2006, p. 74).

Nesse sentido, na cidade de Luján, Argentina, pode-se dizer que o evento é articulado
geograficamente, primeiro pelo São João e, depois, pela Semana Santa. Porém, em todo caso,
mediado pela dimensão política do passado colonial. Desde 1930, por iniciativa do seu museu
histórico, ocorreu a comemoração, no dia de São João, na praça Belgrano em frente à Basílica
Nacional de Nossa Senhora, com a queima de uma réplica do Cabildo (unidade administrativa
do período colonial). Há um itinerário simbólico, um desfile de fantasias, marcha da cavalaria e
personagens gaúchos pelas ruas Almirante Brown e 9 de Julio, que foram acessadas por meio de
formas simbólicas, como a Basílica e o Cabildo (GIOP, 2019).
Em San Antero, na Colômbia, figura o Judas sentado no burro, tornando-o personagem
central. Representação da vida laboriosa do povo, incorpora na Semana Santa o discurso ecológico
de sua preservação. Surgida da miscigenação de espanhóis, negros e índios, esses elementos
demográficos marcam a festividade por grupos de dança de fandangos e sextetos, em itinerários ou
desfiles pelas ruas da cidade (MORA, 2017).
Desse modo, descrevem-se e analisam-se os casos em que ora o poder administrado colonizou
o mundo da vida e produziu materialmente ou simbolicamente o espaço, ora em que o poder
econômico se faz presente. Em todo caso, a lógica da racionalidade instrumental se implanta e busca
afastar as razões comunicativas e substituir a linguagem como meio de integração social pelos meios
não linguísticos do poder ou do dinheiro.

A colonização sistêmica pelo mercado ou pelo estado municipal

Percebem-se três situações bastante destacadas: a da colonização efetiva, a da colonização em


processo e a da ausência de colonização numa categorização pensada para este estudo com base nas
realidades analisadas.

139
Nas palavras de Lara Júnior e Santos Lara (2017), colonização do sistema sobre o mundo da
vida refere-se à penetração da racionalidade instrumental e seus mecanismos de integração funcional,
o dinheiro e o poder, nos espaços ocupados pela razão comunicativa até a sua substituição. Nesse
âmbito, independente da Igreja Católica, que se manteve ausente de apoiá-la – ainda que se verifique,
após anos de declínio, o levante dessa tradição urbana na Plaza Arica, bairro de Iquique –, não há
mais autonomia da manifestação popular e do grupo que organiza a festa frente à estrutura política
e à prefeitura e seus recursos, os quais suplantaram os agentes econômicos e os comerciantes de
origem na organização (JIMENEZ, 2007).
Em Luján, a partir de 2010, a queima do Judas se associa à Semana Santa após sua origem
relacionada ao São João, e comemora-se a Páscoa Colonial, isto é, uma festividade organizada pela
Prefeitura com a intenção de se reconstruir o espaço pela dimensão turística das tradições coloniais
da cidade. Assim, profissionais específicos, representantes da secretaria de cultura e até o intendente
municipal constituem o novo grupo organizador. Nesse sentido, e em comparação com as demais
tradições analisadas, valoriza-se a ideia de cidadania, o que revela o conteúdo político da festa
mediante a reprodução da tradição pela participação das famílias e da visitação turística.
Paralelamente, inicialmente pensada para simbolizar a valorização do trabalho duro, o ardil, a
queima do Judas, incorpora em sua nova etapa, pós 1987, a ideia do festival como festival do burro,
assim como uma competição de grupos de dança e música nos desfiles. Ao lado de variáveis do
mercado, o poder administrado se vale da renovação cultural para financiá-la e incluí-la em suas
políticas de governo (MORA, 2017).
Essa realidade também foi verificada para o Brasil, na cidade de Major Sales, mediante o
festival dos caboclos na década de 1990 pelo poder público local, com premiações e competições
entre grupos de dança, além da apresentação de grupos de forró para atrair a população regional
(CARNEIRO, 2020).
Do ponto de vista do mercado, por sua vez, com base em Gabriel (2007), percebe-se em
Potrerito e La Cañada a inserção da competitividade no interior da comunidade: a disputa pelo
melhor boneco do Judas. Esse indício pode ter ocasionado, passada mais de uma década do estudo,
a ampliação e institucionalização da racionalidade instrumental e a reprodução simbólica dessa
tradição pela lógica do mercado ou do poder.
Em outro sentido, em Chongos Bajo, a tradição que visa manter a solidariedade da comunidade
é cada vez mais objeto de conflito interpessoal e exigente de intermediação do poder judiciário
diante da demanda por direitos dos implicados na festa, isto é, das pessoas tomadas como Judas
(GUTIERREZ, 2014). Não se trata de incluir, ainda, a colonização como elemento dispostos, pois
incluímos nesta seção, por agora, o papel ambivalente do poder judiciário. Nesse caso, aparece
como garantidor da solidariedade de um mundo da vida neutralizado, pois, para Habermas (2002),
140
O mundo da vida que serve de pano de fundo é curiosamente neutralizado quando se trata
de vencer situações que caíram sob imperativos do agir orientado para o sucesso; o mundo
da vida perde sua força coordenadora em relação à ação, deixando de ser fonte garantidora
do consenso (p. 97).

De todas as situações analisadas, a tradição de Montevidéu relacionada às crianças e jovens


mantém o processo de produção simbólica do mundo da vida via o agir comunicativo, isto é, pela
tradição passada linguisticamente, oralmente e, praticamente, pelos próprios familiares. Assim
também é o caso de Barreal de Heredia, mantida pelas famílias e vizinhanças. Nesse sentido, não há
intermediação política, nem tampouco avanços do mercado sobre o mito e o rito sobre seus mundos
da vida compartilhados.

Considerações finais

A partir do exposto, verificou-se que apenas em Major Sales a dança de Caboclos está
diretamente associada à queimação do Judas. Nos demais países, há uma presença constante da
dança, da música e da festa sobre outras denominações, como dança das Varonadas (ou dança dos
varões) e a Dança das Morenadas em Chongos Bajo, no Peru, como também a dança de fandangos
e a de sextetos em San Antero na Colômbia.
Desde a difusão ibérica pela colonização europeia, iniciando no século XVI, essa tradição é
difundida espacialmente pelos países, mas com uma centralidade rural ou de urbano-periféricas.
Nesse sentido, é preciso aprofundar os estudos a fim de constatar suas devidas dimensões espaciais,
assim como a sua dinâmica, isto é, sua existência, declínio, até mesmo extinção, e renovações
contemporâneas. Nesse âmbito, observou-se que a tradição da queimação do Judas se realiza quase
sempre sem o apoio da Igreja Católica, inclusive com proibições. Talvez por isso seja uma festa que,
de modo geral, celebra-se na Semana Santa, na morte de Cristo, como também se tentou realizar
no Natal, no seu nascimento.
Por sua vez, em países onde houve ditadura militar e avanço de grupos de guerrilheiros e
grupos de narcotráfico, observou-se interrupção da festividade por algum período. Todavia, destaca-
se que em vários casos, no final da década de 1980 e, sobretudo, a partir de 1990, observou-se um
revigoramento da Queimação do Judas, parecendo indicar que novas estratégias são lançadas por
seus organizadores para manter viva a tradição. São exemplos: San Antero, na Colômbia, Iquique,
no Chile, e Major Sales, no Brasil.
Para concluir, é imprescindível aprofundar a discussão e realizar estudos empíricos que
possam contribuir para compreender de modo mais efetivo a espacialidade latinoamericana da
Queimação do Judas e a existência de grupos sociais que a compartilham, sejam eles originários do
campo ou da cidade.
141
Referências

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Revista de Artes y Humanidades Única, ano 8, n. 18, p.232-258, 2007.

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caboclos em Major Sales/RN. Boletim Paulista de Geografia - BPG, v. 2, p. 82-98, 2020.

CARNEIRO, Rosalvo Nobre. Espaço como mundo da vida e a teoria do agir comunicativo. Revista
da ANPEGE, v. 16, p. 44-58, 2021.

CÚNEO, Pablo. La quema de Judas: um estudo psicossocial. Relaciones, n. 271, p. 1-9, 2006.

GIOP, Marcos. Quemando al judas: la fiesta como evento geográfico. Revista Huellas, v. 23, n. 2,
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GUTIÉRREZ, Selene Torres. Sanción simbólica em la fiesta de semana santa: Quema de Judas.
KUNTUR – Revista de Investigacion Cientifica da UDAFF, ano 2º, n. 2, p. 41-46, 2014.

HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. São Paulo: Editora


Unesp, 2016.

HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo


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HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo v.1: racionalidade da ação e racionalização


social. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a.

HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo v.2: sobre a crítica da razão funcionalista. São
Paulo: WMF Martins, 2012b.

JIMÉNEZ, Bernado Guerrero. Quemar al traidor, quemar al afuerino: la quema de Judas en


Iquique, Chile. Revista Austral de Ciencias Sociales, n. 13, p. 69-77, 2007.

LARA JÚNIOR, Nadir; SANTOS LARA, Andrea Paula. Identidade: colonização do mundo da
vida e os desafios para a emancipação. Psicologia & Sociedade, v.29, p. 1-10, 2017.

MORA, Carlos Ángel Arboleda. Festival del burro em San Antero: la quema de Judas. Revista
Cuardernos del Caribe, n. 24, p.77-92, 2017.

NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. O Estado Democrático de Direito
a partir e além de Luhmann e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

142
ZACARÉS, Ignacio Latorre. Rito y pervivencia de los Judas en la meseta de Requena-Utiel y pueblos
del Cabriel. OLEANA, n. 32, p. 361-382, 2018.

ZECCA, Marya Zapparoli. La quema de Judas: uma manifestacion de la religiosidade popular em


Heredia. Revista Reflexiones, v.87, n. 1, p. 53-61, 2008.

143
DISCUSSÕES INTRODUTÓRIAS À IDENTIFICAÇÃO DE UMA REGIÃO
CULTURAL DA DANÇA DE CABOCLOS NO ALTO OESTE POTIGUAR/RN

Wellington Vinícius de Almeida


wellingtonalmeida@alu.uern.br

Rosalvo Nobre Carneiro


rosalvonobre@uern.br

Introdução

A influência e a intensidade com que uma tradição cultural se reproduz no espaço geográfico
é tão marcante, que se costuma identificar uma região a partir desta – uma região cultural. Com
relação à constituição desta última, Brum Neto e Bezzi (2009, p. 19) postulam que “através da
cultura a região é, então, representada. De modo geral, indica distinção e pressupõe um recorte
espacial delimitado mediante critérios culturais específicos”. São esses critérios que marcam a
maneira unitária e contínua que uma região cultural apresenta.
Esta região parte da cidade de Major Sales, no estado do Rio Grande do Norte, na qual surgiu
a dança de caboclos, por volta de 1924, na residência do senhor José Berto da Silva. Desde então
seria passada para seu filho, João Berto, e posteriormente para seu neto, Francisco de Assis Silva
– Mestre Bebé (NASCIMENTO, 2017). Em 1990 ocorreria o primeiro concurso de caboclos da
cidade, até então criado pelo médico Dr. Pio X Fernandes (ARAÚJO e AZOUBEL, 2020).
É válido destacar a distinção entre dança de caboclos e malhação de Judas, na qual esta teria
surgido na península Ibérica e trazida para o Brasil ainda no período colonial (AZZI, 1978). Já
por volta do século XVIII, o pintor francês Jean-Baptiste Debret representaria em suas obras a
malhação do Judas em um de seus quadros (TUTUI, 2014). Sobre o termo “caboclo”, esse pode ser
conhecido por se referir ao homem do campo, mestiço (CASCUDO, 1972) e indígena, até o final
do século XVIII (NASCIMENTO, 2017).
Pesquisou-se, entre julho e setembro de 2021, em Blogs, Facebook, Instagram e YouTube para
localizar os municípios em que a tradição se fizesse presente por meio de grupos de caboclos. Foi
realizada uma entrevista presencial no município de Major Sales no dia 21 do mês de setembro.
Também se aplicaram dois questionários via Google Forms para mestres de Luís Gomes e Riacho de
Santana.
Sendo assim, para manter a ética, o respeito e o direito dos participantes pela escolha de
não se identificarem, foram utilizadas as seguintes denominações para os mestres e integrantes da

144
pesquisa: Informante 1 para Major Sales; Informante 2 e 3 para Luís Gomes; e Informante 4 para
Riacho de Santana.
A pesquisa tem como objetivo geral identificar a constituição de uma região cultural a partir do
município de Major Sales (Rio Grande do Norte) relacionada à difusão da manifestação simbólica
da dança de caboclos ou malhação de Judas a partir do ano de 1990.

Região Cultural e o Mundo da Vida

Discute-se a constituição de uma região cultural tendo como base as estruturas simbólicas do
mundo da vida e os imperativos do mundo do sistema. É sempre difícil reconhecer uma região que
esteja harmonicamente constituída a partir de todos os elementos do espaço geográfico, porém, nesse
tipo específico de região, o foco é a cultura. Habermas escreve que “a cultura constitui o estoque ou
reserva de saber, do qual participantes da comunicação extraem interpretações no momento em que
tentam se entender sobre algo no mundo” (HABERMAS, 2012, p. 252-253).
Logo, entende-se que essas relações entre as esferas do social e cultural, constituídas e criadas
pela tomada de ação das pessoas, criam características próprias ao espaço geográfico vivenciado. E
com isso, ao passo em que caracterizações como essas se diferenciam daqueles localizadas em outros
espaços, ocorre uma identificação de área.
No intuito de conceber a região, Gomes (2000, p. 67) diz que “para compreender uma região
é preciso viver a região”. Em tal afirmação Gomes dá voz aos indivíduos que vivem na região, às suas
experiências compartilhadas juntamente com as tradições culturais que envolvem os grupos sociais.
Serpa (2013, p. 172) indica que a região “integraria espaços sociais e lugares vividos”. Isso reforça
a ideia de Gomes no que tange as vivencias das pessoas – fatores determinantes para a criação de
identidades.
Na região cultural, “o foco da investigação é a cultura, a partir de um ou mais traços culturais
– etnia, língua, religião, costumes, valores e práticas produtivas, entre outros” (CORRÊA, 2008, p.
14). Percebe-se, assim, o diferencial único da região cultural, haja vista que esta não está relacionada
somente a características voltadas para fatores econômicos, políticos ou naturais. A intenção principal
está voltada para o social.
Sobre essa relação, entre pessoas e lugares, Nóbrega (2015, p. 118) nos diz que “esse ponto
ocupado no espaço revela grandes conteúdos sentimentais que aferem, a cada recorte de terra o grau
de lugar, por isso é o espaço em que as pessoas se reconhecem”. Logo, nesse espaço de reconhecimento,
aferindo um lugar para o grupo social, estariam os atores sociais produzindo conhecimentos
formulados por acúmulo cultural, estabelecendo, com isso, uma série de características únicas para
o processo de identificação que constrói a ideia de lugar.

145
O mundo da vida é estruturado pela cultura, sociedade e personalidade (HABERMAS, 1990).
Isso está integrado aos três pilares com que as movimentações culturais da dança de caboclos ou
malhação de Judas se reproduzem. Nesse caso, a cultura agrega toda gama de saberes dispostos em
uma sociedade formada pelas personalidades dos atores que nela convivem, compartilhando seus
saberes de forma intersubjetiva.
Há uma confluência entre o mundo da vida e o do sistema na reprodução cultural. Isso
ocorre tendo em vista que as formas simbólicas também podem ser criadas ou influenciadas pela
economia e pela política. Isso está ligado ao que Corrêa (2007, p. 7) chama de “polivocalidade”, na
qual as formas simbólicas assumem significados distintos, podendo esses estarem voltados para as
relações políticas ou econômicas. Além do mais, “o político e o econômico são germinações que se
interconectam” (CORRÊA, 2014, p. 28).
Neste contexto, em 2020 ocorreria a XXX edição do concurso de caboclos. E além disso,
também ocorreria o I Concurso Regional de Major Sales – Malhação de Judas. Ambos não ocorreram
devido à Pandemia da COVID-19 causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2). Isso mostra a
importância que essa cultura alcança neste município, fazendo-o criar um evento com dimensão
regional e que claramente demonstra potencial de imagem e influência.
A configuração deste festival regional a partir de grupos de dança de caboclos existentes no
entorno de Major Sales indica uma difusão desta tradição para outros municípios. Especialmente a
partir de 1990, com o primeiro concurso de caboclos na cidade, esta tradição até então restrita à zona
rural e depois à zona urbana local, ganha reconhecimento estadual e regional, provocando processos
de ampliação do mundo da vida compartilhado por esta tradição.

A região cultural da dança de caboclos realmente existe?

Diante dos nossos achados em várias fontes de pesquisa documental, bibliográfica e trabalho
de campo, foi possível identificar a região cultural da dança de caboclos ou malhação de Judas do
Alto Oeste Potiguar, exposto no mapa da Figura 1.

146
Figura 1 – Mapa da região cultural da dança de caboclos

Fonte: Criado pelos autores, 2021.

Primeiro, buscou-se informações sobre o surgimento da tradição nos municípios em questão.


Sobre Luís Gomes, o Informante 2 (2021) disse que “a dança dos caboclos surgiu através das danças
indígenas” na qual o Informante 4 (2021) de Riacho de Santana disse que os “Grupos de amigos se
juntavam na semana santa e saiam pedindo esmolas nos sítios e rua”.
Reitera-se a fala do Mestre Bebé quando indicou a origem da tradição à ligação com as
danças indígenas observadas pelo seu avô (SANTOS, 2018). Além disso, Cascudo (2001) aponta os
traços de origem indígena, uma vez que parte dos materiais utilizados na confecção das vestimentas
advêm da natureza.
Quando indagados sobre a partir de quais anos surgiram os grupos de dança de caboclos em
suas cidades, o Informante 2 e o Informante 3 (2021) de Luís Gomes indicaram os anos 70 e 80,
respectivamente. Já em Riacho de Santana, o Informante 4 (2021) indicou a década de 90. O último
caso indica compatibilidade com o surgimento do concurso de caboclos em Major Sales, sendo
possível indicar a importância deste para o surgimento de grupos de caboclos na região.
Sobre isso, o mestre de Major Sales, quando indagado sobre a possível influência desta no
surgimento de grupos de caboclos em outros municípios, disse que:

Tem cidade aí que aprendeu nós indo pra lá, a muitos anos atrás [...] então sempre nunca
deixou de num ir caboclo em Tenente Ananias e lá eles foram se espelhando [...] no grupo

147
daqui de Major Sales [...] agora, Rafael Fernandes tem um sobrinho meu que era caboclo da
minha turma, foi ensinar lá... (INFORMANTE 1, 2021).

Sendo assim, foi por meio da linguagem em seu modo comunicativo que essa tradição foi se
originando e desenvolvendo em outros municípios. Essa afirmação se confirma quando perguntado
sobre a existência de grupos de caboclos mais antigos que os de Major Sales em outras cidades,
sendo respondido pelo mestre: “que eu saiba, não. Que eu saiba não tem” (INFORMANTE 1,
2021).
Em Luís Gomes já havia grupos de caboclos antes mesmo de 1990, mas, a partir do Concurso
de Caboclos de Major Sales, “as pessoas passaram a gostar mais dos caboclos e assim aumentaram
os grupos de caboclos” (INFORMANTE 2, 2021). Porém, o Informante 4 de Riacho de Santana
indicou que não houve essa influência, haja vista que, mesmo antes do concurso, “já havia turmas
que saiam pra pedir e fazer a malhação do Judas” (INFORMANTE 4, 2021).
Foram repassadas duas perguntas para aferir sobre a relação dos entrevistados para com a
tradição. Quando perguntado como haviam conhecido a dança de caboclos e o porquê de participar
da tradição, responderam:

Eu já nasci dentro da cultura [...] e daí foi passando de geração em geração e hoje estou
mantendo viva a tradição dos caboclos. Participo por amor a cultura, desde de criança que eu
participo e quero manter essa tradição (INFORMANTE 2, 2021). Quando eles passavam
pedindo na porta de casa, eu criança ficava com medo, de toda aquela zoada de gritos, música
e chocalhos (INFORMANTE 4, 2021).

Essas falas indicam um forte pertencimento desses atores sociais para com a tradição. Percebe-
se a identificação do sujeito com a dança de caboclos, na qual esta ocorre pelas interações em
sociedade (HALL, 2006). Os mestres, ao se depararem, enquanto crianças, com a tradição repassada
pelas antigas gerações, acabam criando um vínculo que se fortalece à medida em que estes atores
sociais intensificam suas relações intersubjetivas no seio familiar e social em sentido amplo.
Sobre essa perspectiva, Woodward (2000, p. 19) nos diz que “a cultura molda a identidade
ao dar sentido a experiência”. Isso se torna perceptível no momento em que os indivíduos se
deparam com as tradições culturais ainda no ceio familiar, construindo um senso identitário a partir
das suas experiências no espaço geográfico. Logo, essas experiências se tornarão um acúmulo de
conhecimento à própria cultura vivenciada.
Com relação à presença desta tradição na educação, há em Major Sales o Ponto de Cultura,
carinhosamente intitulado de “Pontinho de Cultura, deixe a criança brincar”. No local são
desenvolvidas várias atividades artísticas, desde a criação de produtos audiovisuais, perpassando por
oficinas artísticas, criação de espetáculos, palestras informativas à população etc. (NASCIMENTO;
ARAÚJO; CARNEIRO, 2017).
148
Um outro exemplo é a praça de eventos da cidade, a qual é conhecida como “Arena Cabocla”
em cujo local se realiza o Concurso de Caboclos (SANTOS, 2018). Além dessa, também há
itinerários. Exemplo disso é o “Arrastão Cultural dos Caboclos”, constituído por uma passeata em
fileiras organizadas pelas turmas de caboclos, cujo percurso inicia-se na sede da prefeitura da cidade
e vai até a residência do prefeito desta (CARNEIRO, 2019).
Sobre essas formas simbólicas, físicas ou não, Corrêa (2007, p. 8-9) nos diz que são “constituídas
por fixos e fluxos, isso é, por localizações e itinerários”. Nesse contexto, afirma-se que Major Sales
apresenta esses dois tipos de formas simbólicas. A praça e o Ponto de Cultura representam dois
locais fixos, constituídos por formas físicas estáticas, mas que ganham sentido a partir dos fluxos,
ou seja, dos atores sociais que compõem esses lugares, inclusive, por meio do itinerário de Arrastão
Cultural dos Caboclos.
Sobre as ligações com o mundo do sistema, também foram perguntados aos participantes das
duas cidades se haviam patrocínios por parte dos estabelecimentos da cidade ou mesmo se houve
algum incentivo econômico por parte do poder público, como a prefeitura do município. Nesse
sentido, houve um consenso em relatar que alguns estabelecimentos ajudavam financeiramente,
como: “quando era pra fazer as roupas algumas pessoas ajudavam com patrocínio, mas não era
muita coisa” (INFORMANTE 4, 2021).
Segundo o Informante 2 e Informante 3 de Luís Gomes, a prefeitura concede uma ajuda de
custo para os grupos de caboclos que participam do evento que há na cidade. Em Riacho de Santana
ocorre algo semelhante, sobretudo para ajudar a confeccionar o figurino, tal como o Informante 4
diz: “ficava indo na prefeitura atrás de dois rolos de (tnt) pra confeccionar as roupas, fazer e pagar
por ela feita” (INFORMANTE 4, 2021).
Essas duas últimas perguntas tratam especificamente daquilo que Habermas (1990) vai
chamar de Agir Estratégico, cuja linguagem é conduzida por meio de coerções. Este tipo de agir está
diretamente ligado ao mundo do sistema, sobre o qual se sabe que tem o dinheiro como uma de
suas linguagens. Porém, o “dinheiro” se faz relevante para a manutenção da tradição da dança de
caboclos, haja vista que o material utilizado para a confecção, antes retirado da natureza, agora é
produzido pelo mercado, sendo este uma das estruturas do mundo do sistema.
Todavia, a reprodução das formas simbólicas não ocorre somente sob a ótica do mercado
(dinheiro), mas sendo viabilizada por outro pilar do mundo do sistema: o poder político. É a partir
deste que ocorre a normatização da tradição, como, por exemplo, por meio dos concursos em que
se buscam o embate coreográfico entre grupos de caboclos. A normatização ocorre levando-se em
conta que o concurso não surge a partir de uma ação comunicativa entre os grupos de caboclos, mas
sim das ações do Estado – poder político.

149
Nesse contexto, tem-se alguns exemplos, como Luís Gomes e Major Sales. Na primeira se
realizou, em 2019, o “IV Festival de Caboclos de Luís Gomes”, que distribuiu uma premiação de
R$ 3.000 para os três primeiros colocados. Além disso, a prefeitura municipal disponibilizou uma
ajuda de custo para os grupos de caboclos que participaram do evento (LUÍS GOMES, 2019).
Sobre a realização dessas ações, indica-se que “a integração sistêmica é um tipo de diferenciação
segmentária que flui por meio das relações de troca e estratificação das esferas de poder, criando
dois níveis de diferenciação do Sistema, o econômico e o estatal” (BETTINE, 2021, p. 81). Essa
diferenciação se dá a partir do momento em que esse mundo do sistema se instala no mundo da vida
e interfere na sua ação comunicativa baseada na busca pelo entendimento. Todavia, é válido ressaltar
que por vezes há uma confluência entre esses sistemas.
A reprodução dessa tradição cultural em Major Sales está atrelada às ações do poder
político. Isso ocorre a partir do primeiro concurso de caboclos – malhação de Judas, desde 1990
(NASCIMENTO, 2017). O principal fator para que isso ocorra é a premiação em dinheiro do
concurso e o apoio econômico concedido pela prefeitura da cidade aos grupos de caboclos. Ambos os
fatores geram um espírito de competitividade nos participantes, que, até certo ponto, são motivados
pela premiação do concurso (CARNEIRO, 2019). Desde sua criação, este evento segue alterando as
estruturas da tradição da dança de caboclos no município. Fato este relatado pelo mestre Bebê, que
disse:

O concurso mexeu, vamos dizer assim, no figurino, depois começou a mexer na pisada, no
trupe [...] não dá mais tempo de ir nos canto, o povo cobra demais, de nós ir nos sítio, mas
devido ao concurso [...] não dá mais tempo. Porque antes do concurso nois brincava, não
tinha esse problema da criatividade, de originalidade, não tinha essa história de critérios, cada
um fazia seu figurino, se enfeitava de uma maneira que quisesse. (SANTOS, 2018, p. 39).

Isso ocorre pelo fato de que o concurso acaba estabelecendo normas para regularizar a
participação dos grupos de caboclos, bem como a criação de critérios que os avaliem na competição.
Resumindo, há uma padronização destes. Como salienta Carneiro (2019, p. 90), os grupos “seguem
um roteiro, elaborado anualmente pela prefeitura municipal”.
Essa crítica é reforçada por outro mestre da cidade, quando diz que, “vamo acabar com esse
itinerário, esse itinerário tá me atrapalhando, tá me atrapalhando a minha tradição. Minha tradição é
brincar caboclo na semana santa” (INFORMANTE 1, 2021). Essas falas traduzem insatisfação para
com algumas mudanças ocorridas na tradição desde 1990.
Porém, destaca-se a importância dos eventos na manutenção da tradição, que, embora
venha sendo ressignificada pelas normas do poder político, ajudam na sobrevivência dos grupos de
caboclos. Além dos eventos, o Próprio Ponto de Cultura, em Major Sales, impulsiona a reprodução

150
da tradição, uma vez que surge por meio da iniciativa pública do Estado. Em suma, o poder público
é o responsável por manter os eventos em que participam os grupos de caboclos.
A maneira como a manutenção da tradição é conduzida indica que as formas simbólicas
ganham um sentido político, que muitas vezes buscam a reafirmação do passado, das tradições e
das próprias identidades territoriais (CORRÊA, 2014). Isso torna-se perceptível, sobretudo, em
Major Sales, pelo cuidado para com a história da tradição, uma vez que esta é sempre contada pelas
diferentes formas simbólicas espaciais. Todavia, até mesmo o concurso contribui para a reafirmação
da identidade.
Logo, a própria reafirmação da identidade pode estar ligada às ações de poder, como salienta
Silva (2014, p. 91) ao escrever que, “quem tem o poder de representar, tem o poder de definir e
determinar a identidade”. Isso torna-se verdade ao reconhecer que a representatividade da tradição
é mantida, em partes, pelas ações políticas da prefeitura, cujos grupos de caboclos encontram-se
normatizados segundo as regras do concurso. Essas relações de poder confluem conjuntamente
com as relações comunicativas dos atores sociais que participam da tradição, em que ambos se
reorganizam no espaço geográfico.
Além desses três municípios, confere-se outros cuja pesquisa documental ajudou a descobrir
a existência de mais grupos de Dança de Caboclos ou Malhação de Judas, além daqueles já
mencionados aqui. Alguns exemplos mais expressivos são os municípios de Tenente Ananias, que
tem um Festival de Caboclos, cuja primeira edição é datada em 2013 (TENENTE ANANIAS VIP,
2013). No município de José da Penha, o destaque fica para a turma de caboclos localizada na vila
de Major Felipe, próxima à cidade (NOSSA JOSÉ DA PENHA, 2015).
Já em São Miguel, a malhação do Judas é seguida por outras festividades na Semana Santa,
como por exemplo as encenações da Santa Ceia e da Via Sacra (SÃO MIGUEL, 2017). Quanto ao
ato de malhar o Judas, este ocorreu de outra maneira, na qual os bonecos assumiram a imagem de
políticos malhados (SÃO MIGUEL, 2017). Também foi possível encontrar vídeos na plataforma
YouTube de algumas turmas de caboclos desses municípios, como Tenente Ananias (2018)1 e Paraná
(2018)2.
Supõe-se que a existência de grupos de caboclos nessas cidades citadas acima seja bem recente,
dado que se percebe que não há documentação da tradição ou mesmo alguma estrutura cultural que
organize os grupos ou eventos. Além disso, reitera-se o que o Informante 1 disse quando percebeu
não poder identificar grupos mais antigos que o seu. Quando perguntado sobre a partir de que anos
começou a receber convites para apresentações em outras cidades, respondeu: “os convites começou
de 2000 pra cá” (INFORMANTE 1, 2021).

1 https://youtu.be/P0Maem6a9Bg.
2 https://youtu.be/SS8FxOzFtcY.

151
Essas falas reforçam a hipótese da pesquisa sobre a influência de Major Sales no surgimento
desses grupos de caboclos. Logo, esta região cultural se desenvolveu a partir dos códigos culturais
que identificam a tradição da dança de caboclos. Esses podem considerar a religião cristã católica
da qual surge a malhação de Judas, além da própria tradição festiva que se encontra consolidada no
município de Major Sales.

Considerações finais

O trabalho em questão não pretende “bater o martelo” sobre a constituição da região cultural
da dança de caboclos, pois, de forma empírica, sabe-se sobre a existência de grupos de caboclos em
vários municípios da Região Geográfica Imediata de Pau dos Ferros, além de cidades no estado da
Paraíba que estão próximas da divisa com o estado do Rio Grande do Norte.
A pesquisa confirma a existência de grupos de caboclos em várias cidades da região alto-
oeste. Logo, é possível afirmar sobre uma existência de uma “região cultural embrionária” em seus
primeiros passos. Essa região não se encontra constituída no espaço geográfico, pois ela vem se
formando a partir da existência de grupos de dança de caboclos ou malhação de Judas, mantendo-se
alguma ligação no passado com Major Sales.
Todavia, é preciso mais tempo e equipamentos para uma pesquisa mais intensiva, com
atividades em campo, algo que não foi possível em decorrência da Pandemia da COVID-19 (SARS-
CoV-2). Após o período pandêmico, espera-se dar continuidade à pesquisa, mas, agora, com a volta
das atividades realizadas no período da Semana Santa, destaca-se a volta dos concursos e uma maior
interação em campo. Com esta volta, será possível estudar novos municípios que venham a integrar
esta região cultural embrionária.

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Petrópolis: Editora Vozes, 2014.

155
TORIBIO ROMO: CONSTRUCCIÓN Y ALCANCE TERRITORIAL DE UNA
DEVOCIÓN

César Eduardo Medina Gallo


cesar_gallo87@hotmail.com

Introducción

El culto a Toribio Romo se forma dentro de un contexto histórico y cultural muy particular. Se
identifica desde el proceso colonial del territorio denominado Nueva Galicia, que posteriormente, al
formarse México, una parte de éste se reconoció como la región Altos de Jalisco. En ella se establece
una sociedad europea que se mantiene y se arraiga a la religión católica como eje rector de la vida
cotidiana y la conformación del tejido social. Dentro de este escenario se presentó un conflicto
ideológico que involucró al Estado mexicano y a la Iglesia católica y, por ende, a la población antes
mencionada, denominado La Cristiada. Durante este conflicto, Toribio Romo es asesinado y la
población local toma las “reliquias”, conformando un culto popular en torno a ellas.
Así se mantuvo la situación hasta que la Iglesia católica toma para sí el culto y lo oficializa
en el año 2000. A partir de ese momento, el conocimiento del santo se extiende en la región y en
los estados que comparten el pasado histórico de la Cristiada, que coincide con los estados que
presentan los índices de migración más altos hacia Estado Unidos. En ese contexto, el alcance
territorial del culto crece al reconocerse a Toribio Romo como el santo patrono de los migrantes.

Territorio y prácticas religiosas desde la Geografía

La importancia del estudio de los fenómenos religiosos desde la perspectiva geográfica queda
de manifiesto en la necesidad de tomar en cuenta todos los elementos que se ven involucrados
en la expresión de dichas prácticas, en las distintas estructuras que entrelazan la vida social del
ser humano y su materialización en el espacio. La visión del mundo y el espíritu de una religión
tienen conexiones importantes con la manera en que los creyentes entienden e interactúan con los
entornos naturales y culturales en que habitan. En este sentido, es de gran importancia entender los
complejos vínculos que tiene la religión con las demás dimensiones de la vida social y su relación
con la espacialidad de lo que se denomina sagrado. Al entender el espacio como una construcción
social vinculada a la naturaleza espacial de la sociedad humana, la dimensión espacial de la sociedad
constituye el soporte de esta formulación: “[…] el espacio es una construcción social que, al mismo
tiempo, pertenece al mundo material productivo, al mundo mental simbólico y al mundo de la
comunicación y el leguaje. Es discurso, es representación y es materialidad” (ORTEGA, 2000).

156
Las creencias religiosas a menudo influyen en la construcción social del espacio. De igual
manera, la religión ha sido un factor clave de esta construcción social y la interpretación política del
territorio. Al respecto, Carballo (2009) expresa, al intentar definir al territorio, que se debe partir de
la noción de espacio:

[…] el territorio sería el espacio apropiado y valorizado por los grupos sociales. Que el
territorio sería la materia prima o más precisamente la realidad material preexistente a toda
práctica social. El espacio se caracterizaría entonces por su valor de uso, por lo que el territorio
sería la resultante de la apropiación y valorización del espacio mediante la representación y
el trabajo. (p. 25).

El territorio no se construye simplemente con la ocupación de un grupo, esto no es


suficiente, sino que el componente relacional es el que justamente posibilita el acceso al proceso de
construcción territorial. Es entonces “el territorio un espacio apropiado, ocupado y dominado por
un grupo social para asegurar su reproducción y satisfacer sus necesidades vitales, que pueden ser
tanto materiales como simbólicas” (CARBALLO, 2009, p. 28). La misma autora expone que esta
apropiación-valorización puede ser de carácter instrumental-funcional o simbólico-expresivo. Para
la primera, existe una relación utilitaria del espacio centrada en las relaciones económicas, políticas
y sociales o, en otras palabras, de producción. Mientras que para la otra, se enfatiza el papel del
territorio como una sedimentación simbólico-cultural del espacio.
La organización del territorio sagrado implica una dinámica espacial específica. En el territorio
en construcción, se inserta el espacio que puede ser sagrado y en ese caso es como un elemento
que caracteriza y dimensiona la diversificación del lugar, dando significado a lo simbólico. Es así
que las creencias religiosas y los cultos no escapan a la necesidad de contar con el espacio para su
reproducción y crecimiento; el territorio y sus fieles se convierten en objeto de poder para muchas
iglesias y cultos.

Formación de la territorialidad religiosa cristiana y su reproducción en América

Durante el siglo IV, los obispos católicos comenzaron a trasladar los huesos de los mártires,
víctimas de las persecuciones de los siglos anteriores, desde las catacumbas hacia los hermosos
templos construidos ex profeso para contenerlos. Los cuerpos de los mártires, de los eremitas y de
los obispos se convirtieron en reliquias y las tumbas que los contenían se volvieron santuarios de
peregrinación, lugares donde se tocaban el cielo y la tierra (RUBIAL, 1998). Con la adquisición de
santos y demonios, la Iglesia puso las bases para la integración de una religiosidad cristiana popular.
El mundo festivo cristiano suplantaba con su santoral y sus celebraciones las antiguas fiestas paganas
157
del ciclo agrícola y estacional, facilitando la inmersión del nuevo culto en la vida cotidiana de las
comunidades (RUBIAL, 1998).
El centro de estas manifestaciones fueron las reliquias; no había iglesia en Europa que no
poseyera dientes, uñas, huesos, cabellos, gotas de sangre o trozos de vestido de los santos. La
promoción que la iglesia hacía al culto de los santos y a sus reliquias, y la liturgia que se generó
alrededor de ellos favoreció el acercamiento de los fieles a la institución. Gracias a los santos, se
estableció un puente entre las religiones antiguas y el nuevo monoteísmo; el politeísmo pagano
encontró su sucesor en el santoral cristiano. Así, la implantación del cristianismo en América y
el sometimiento a él de las civilizaciones indígenas dieron a la iglesia la posibilidad de poner en
práctica la experiencia acumulada en siglos, aunque propiciaron también el nacimiento de nuevas
situaciones en los campos del sincretismo religioso.

Conformación socio-cultural de la región Altos de Jalisco

La tradición occidental del culto a los santos y vírgenes fue rápidamente adoptada en tierras
del Nuevo Mundo y dicha herencia incluía una fuerte veneración por las imágenes, las reliquias,
las visiones y los milagros (GÁLVEZ, 1996). La iglesia católica fue de suma importancia para la
fundación de la Nueva Galicia y la unificación de la región centro-occidente. Los frailes franciscanos,
al mismo tiempo que evangelizaban la zona, influyeron en la historia y la cultura, alimentando a
los habitantes de una conciencia regional y sentimientos de superioridad (DE LA TORRE, 2002).
En Los Altos de Jalisco, se trata de mantener y continuar una religión trasladada del Mediterráneo
a una región de la Nueva Galicia. Así, las estructuras eclesiásticas preceden cronológicamente, en
este caso, a las estatales, dando la configuración social, política, económica y cultural de la sociedad.

Contexto histórico-político para la formación del culto a Toribio Romo

Después de la revolución de 1910, comenzaron los intentos para desconocer la personalidad


jurídica de la iglesia (DE LA TORRE, 2002 apud GUZMÁN, 2002). En el estado de Jalisco, en
julio de 1918, se intentó llevar a cabo un artículo que consistía en la idea que sólo debería haber un
sacerdote por cada 5000 habitantes, previamente registrado ante la Secretaría de Gobernación. Estas
limitaciones a la iglesia aceleraron el conflicto a fines de 1926 hacia la lucha armada. El 4 de febrero
de 1926, el arzobispo Mora y Río, de México, declaró al periódico El Universal: “el episcopado,
clero y católicos, no reconoceremos y combatiremos los artículos 3, 4, 27 y 130”. El presidente
Calles interpretó lo de “combatir” como un reto al gobierno y en respuesta expulsó a sacerdotes
extranjeros, cerró escuelas y conventos, a su vez la iglesia reaccionó con la suspensión del culto
público (DE LA TORRE, 2002 apud GUZMÁN, 2002).
158
En este contexto se inicia el conflicto Cristero en los Altos de Jalisco. Fábregas (1986) enuncia
que dicho conflicto debe entenderse como el enfrentamiento entre una oligarquía regional y otra
orientada hacia el Estado Nacional, así como plantea que el conflicto religioso era una cortina de
humo que no permitía ver el enfrentamiento entre ambos grupos por el control del poder. Entre la
jerarquía eclesiástica y el Estado hubo varios intentos de “arreglos” al conflicto armado. La iglesia
quería deslindarse de toda responsabilidad en el movimiento armado, mientras que los gobernantes
querían conservar la superioridad jurídica. Desde el tiempo de los “arreglos”, que solucionaron el
conflicto cristero, los jerarcas eclesiásticos “olvidaron” hechos sucedidos prohibiendo la consulta de
archivos o destruyendo los documentos que tuvieran algún tipo de información relevante (VACA,
1998). Sin embargo, los ex cristeros mantuvieron en la memoria colectiva la historia popular y el
conflicto a pesar de la oposición de las autoridades eclesiales.
En algunos poblados de los Altos de Jalisco se preserva una memoria mitificada de su pasado
cristero, manteniéndose viva la Guardia Nacional Cristera cuyos miembros (ex cristeros, sinarquistas
y laicos católicos) se ocupan de mantener viva la memoria manteniendo visibles los restos de los
cristeros (DE LA TORRE, 2002).
Una de las manifestaciones de la religiosidad popular es el culto a los santos, los cuales son
vistos como intermediarios entre el poder supremo y la vida cotidiana. Los santos oficiales están
en catedrales e iglesias principales; ya los santos no oficiales o populares están relegados a lugares
secundarios o informales (MANDIANES CASTRO, 1989 apud GUZMÁN 2002). Guzmán resalta
que Toribio Romo, antes de ser santificado, ya era venerado con independencia de las decisiones
oficiales.
En el caso de Toribio Romo (Figura 1), el culto en torno a él se da dentro del contexto del
conflicto cristero, quien es asesinado por tropas federales el 25 de febrero de 1928 en una hacienda
de Tequila, Jalisco. Las reliquias se fueron configurando desde los primeros momentos después de
su muerte. Los pobladores de Tequila empezaron a recoger con algodones la sangre del padre “que
aún chorreaba de las heridas de las balas con que lo mataron” (ROMO, 2000). Veinte años después
del asesinato del padre Toribio, en 1948, los familiares consiguieron trasladar los restos a la capilla
de Santa Ana de Guadalupe, donde se encuentra actualmente. En este lugar se exhiben, en vitrinas,
las reliquias del santo: las ropas ensangrentadas del mártir; el libro La liturgia de las horas, la Biblia, los
algodones ensangrentados, su rosario y su morral (DE LA TORRE y GUZMÁN, 2010.). En 1992,
la Santa Sede beatificó a 25 mártires, entre ellos Toribio Romo. Posteriormente, serían canonizados
en el año 2000.

159
Figura 1 – Imagen de Toribio Romo

Fuente: www.santotoribioromo.com.

En relación con lo anterior, y debido a que la región de los Altos de Jalisco presenta una alta
migración – siendo de las más importantes del país en este sentido – se han generado relatos en
torno a este sacerdote que ayuda a las personas a superar la frontera tanto de manera documentada
como indocumentada. A partir de ello, cada fin de semana el santuario a Toribio es visitado por
millares de mexicanos que trabajan al otro lado de la frontera. En un solo domingo, se dan cita hasta
diez mil peregrinos en busca del santo que intercede para ayudar a pasar la frontera. Todos han oído
testimonios milagrosos, que multiplican el mito del santo pollero.

Alcance territorial del culto a Toribio Romo

El trabajo de campo fue parte fundamental para el desarrollo de la investigación, la cual se


efectuó en la localidad de Santa Ana de Guadalupe, que pertenece al municipio de Jalostotitlán, en
la zona central de Los Altos de Jalisco. La técnica principal que se usó es la entrevista, ya que ésta
focaliza la información a manera de preguntas abiertas y cerradas que se dirigen a las personas de
interés para la pesquisa. Además de considerar la base teórica e histórica revisada previamente, para
tener clara la línea temática se realizaron distintos formatos de acuerdo con la persona a quien fue
dirigida.
Durante los días de trabajo, se llevaron a cabo un total de 105 entrevistas, destacándose: la
procedencia geográfica, los destinos antecesores y posteriores de la visita al santuario, la recurrencia,
el motivo por el cual visita el lugar, cual es la movilidad que realiza en la localidad y el itinerario
que ellos realizan durante su visita a la localidad, así como la autoclasificación de la persona en tres
distintos actores: turista, peregrino o visitante.
160
Complementariamente, se realizaron ejercicios alternativos con la finalidade de ampliar el
panorama sobre la procedencia de los visitantes al santuario, primeramente, la revisión de la sala
dedicada a los exvotos, en donde se obtenían los siguientes datos: nombre de la persona, fecha,
breve descripción del milagro y procedencia (algunos sin especificar). El segundo ejercicio fue
la revisión y registro de placas de los automóviles que arribaron al santuario durante los días de
trabajo, la cual brindó una información importante para la pesquisa – además de la observación del
comportamiento de los visitantes. A partir de eso, se eligieron puntos estratégicos de observación
en la localidad. Toda la información anterior ayudó a determinar el alcance territorial del culto,
de acuerdo con los desplazamientos de los creyentes a la localidad. Para su mejor observación, se
representa cartográficamente lo mencionado en tres escalas: municipal, nacional e internacional.
Para el caso de las procedencias municipales, la Figura 2 muestra los orígenes desde
municipios cercanos geográficamente al santuario, de estados que colindan con Jalisco (donde se
encuentra el santuario). Como se observa, se identifican desplazamientos dentro del propio estado,
principalmente de la región de Los Altos, donde Lagos de Moreno presenta el dato más alto y
uno de los más importantes de los cuales se obtuvo registro; la ciudad de Guadalajara presenta un
dato fuerte de procedencias, donde se registró el mayor número de personas que se desplazaron al
santuario.
Posteriormente, en el interior del estado de Guanajuato se tiene una alta concentración de
municipios que muestran datos de viajeros hacia el santuario; el caso de la ciudad de León es también
relevante, ya que es el segundo con mayor procedencia después de Guadalajara, y el número de
municipios de este estado solo es superado por Jalisco. También se tiene una cantidad importante de
procedencias de municipios pertenecientes al estado de Aguascalientes, manteniendo similarmente
el número de personas que proceden de cada uno de ellos. Ya sobre Guadalajara y León, no se
consiguieron datos relevantes.
De acuerdo con los demás datos, se obtuvieron registros de municipios pertenecientes a
Zacatecas, San Luis Potosí y Michoacán, donde la cantidad de personas no es tan alta como los
municipios anteriores; en ese sentido, el mayor número de procedencias de escala local y regional
se ubica entre la región de Los Altos y los municipios cercanos tanto de Jalisco como de Guanajuato.

161
Figura 2 – Procedencias municipales al santuario

Fuente: Autoría propia, elaborado con información obtenida en campo, abril 2014.

En el mapa siguiente se muestra la procedencia nacional (Figura 3). En ese sentido, el dato más
fuerte es Jalisco que se relaciona con Guadalajara, que, al hacer la recopilación de registro de placas de
vehículos, se consiguió registrar el mayor número de viajeros.

Figura 3 – Procedencias nacionales al santuario

Fuente: Autoría propia, elaborado con información obtenida en campo, abril 2014.

162
Posteriormente, se aprecia que Guanajuato resalta como el segundo estado con mayor registro
de procedencias con un 53% de los datos recopilados, y en el caso de los vehículos que arriban a la
localidad, se mostró un gran número de autos particulares. También, tuvo una presencia fuerte en
las entrevistas realizadas y se contactó con un buen número de personas que vienen de dicho estado.
El siguiente dato con una presencia fuerte de viajeros, sobresaliendo como un dato inesperado
respecto a lo observado en el mapa de procedencias municipales referentes al Estado de México.
El Distrito Federal, Aguascalientes y Michoacán son las entidades que presentan las siguientes
cantidades fuertes de registros: entre 10 y 15, con una presencia importante en las entrevistas,
también en las placas de automóviles y en los exvotos. El siguiente grupo de datos los conforman
los estados de Querétaro, Sinaloa y Zacatecas, que aparecieron como procedencias en las entrevistas
que se realizaron. Zacatecas es uno de los principales estados de donde arriban tours que posicionan
a Santa Ana de Guadalupe como uno de los destinos significativos. En el caso de las placas de
vehículos también aparecieron todos éstos y en los exvotos Sinaloa y Zacatecas aparecieron como
procedencias importantes.
Hidalgo y San Luis Potosí figuraron como datos en las entrevistas, donde se tuvo contacto con
personas procedentes de estos estados. Finalmente, los estados de Colima, Puebla, Nayarit, Coahuila,
Nuevo León y Tamaulipas aparecen como procedencias. Aunque los registros son menores, dan la
impresión de que el culto se ha expandido, favoreciendo los consecuentes desplazamientos a Santa
Ana desde Guadalupe.
En lo relacionado a la mayor expansión del culto a Toribio Romo, es claramente reconocido
encontrar registros que sobrepasan la escala nacional, convirtiéndose, portanto, en internacionales,
como resultado del proceso de migración. Esta situación se posibilita debido a que las personas
que se han establecido en Estados Unidos siguen manteniendo lazos con sus lugares de origen y, al
migrar una nueva persona o familia, se establecen cercanos a sus parientes que, en algunos casos,
acaban haciendo con que se formen barrios de paisanos en las ciudades de destino. En la Figura 4
se muestran las procedencias internacionales, provenientes todas desde los Estados Unidos. Como
se puede observar, el estado de California es el que muestra el dato más alto, debido a que es el
principal destino de los mexicanos al migrar al país del norte.
Los estados que tuvieron el segundo mayor registro son Texas y Georgia. En las entrevistas
se tuvo contacto con personas que viven en Georgia, siendo en aquel momento su primera visita
al santuario. También mencionan que se habla mucho de Santa Ana en su lugar de residencia, así
como en el registro de los exvotos, donde aparecen como datos importantes.

163
Figura 4 – Procedencias internacionales al santuario

Fuente: Autoría propia, elaborado con información obtenida en campo, abril 2014.

Illinois y New Yersey aparecen como los siguientes en contar con mayor número de registros.
Eso sucede porque la migración de los mexicanos ya no se limita a los estados que comparten la
frontera con México, sino que se ha ido extendiendo hasta la costa este de Estados Unidos y, con
ello, el culto a Toribio Romo.
Posteriormente, Michigan, Missouri y Wisconsin comparten el mismo número de registros,
los cuales se obtuvieron en la revisión de los exvotos. En ellos se explica el vínculo con Toribio Romo
y el agradecimiento por ayudar en el cruce de la frontera; esto puede considerarse con un vínculo
con el fenómeno migratorio. Finalmente, Nevada también aparece con registro de procedencia. Se
contactó en las entrevistas con personas que visitaron el santuario, siendo estas procedentes de este
estado. De igual manera son originarios de Jalisco y actualmente radican en Estados Unidos.

Conclusiones

En la realidad histórica no existe ninguna religión individual, sino, únicamente, religiones de


grupos humanos. Lo que sí es individual es la religiosidad, el particular modo y medida de participar
en la religión que, respecto al individuo, se halla preconstituida y es supraindividual.
Se identifican tres elementos principales que se ubican dentro de la religión: en primer lugar,
la divinidad, el ente superior; el culto a dicha divinidad y las prácticas que se efectúan para demostrar el
culto. La tradición occidental del culto a los santos y vírgenes fue rápidamente adoptada en tierras

164
del Nuevo Mundo y dicha herencia incluía una fuerte veneración por las imágenes, las reliquias, las
visiones y los milagros. La beatificación de mártires en 1992 y la canonización de éstos en el 2000,
tal es el caso de Toribio Romo, se presenta como una estrategia por parte de la jerarquía católica para
resignificar su participación en el conflicto cristero y deslindarse de toda responsabilidad.
En todo este contexto se presenta un crecimiento en la expansión geográfica del culto,
que, en sus inicios, durante el conflicto cristero, se genera popularmente, donde las prácticas y la
experiencia son locales. El crecimiento pasa a ser loca, después regional y posteriormente nacional,
especialmente entre aquellos que comparten un pasado histórico marcado por el conflicto cristero
y por quienes comparten una profunda tradición religiosa católica, como es el caso del centro-
occidente de México.
Los procesos migratorios han fomentado aún más el crecimiento del culto a Toribio Romo,
por los movimientos del campo a las principales ciudades del país y, más tarde, hacia Estados Unidos.
Los migrantes actualmente han definido a Toribio Romo como su santo patrono, lo que posibilita
que los desplazamientos aumenten en escala geográfica, favoreciendo al aumento del alcance que
tiene el santuario de Santa Ana de Guadalupe, llegando, con eso, a escala internacional.

Referencias

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prácticas religiosas. Buenos Aires, Argentina: Prometeo Libros, p. 19-42, 2009.

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Revista Estudios del Hombre. Vol. 25, p. 107-127, 2010.

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165
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OROZCO, J. El negocio de los ilegales: ganancias para quién. Guadalajara, México: Instituto
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ROMO, R. Santo Toribio Romo. Biografía completa del santo, 2000.

RUBIAL, A. Cristianismo-paganismo. La Iglesia ante la religiosidad popular en la Edad Media y


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religiones. México: Colección seminarios, Facultad de Filosofía y Letras, UNAM, 1998.

SANTO, Toribio Romo. Toribio Romo González (1900-1928) [online], 1998. Disponible en:
http://www.santotoribioromo.com. Acceso en: 19 abr. 2016.

VACA, A. Los silencios de la historia: las cristeras. México: El colegio de Jalisco, 1998

166
A FESTA DO DIVINO COMO RESISTÊNCIA E COMO UTOPIA

Neusa de Fátima Mariano


neusa@ufscar.br

Introdução

No caminho por mim trilhado há mais de dez anos com pesquisas relacionadas à Festa do
Divino na Geografia tem havido a cada dia um desafio diferente e uma descoberta constante, diante
não só de sua diversidade na forma de realização das festas, mas também no enfoque da abordagem.
Nesse processo de investigação das várias festas – algumas realizadas no Brasil, mais
especificamente no estado de São Paulo – foi possível constituir um conjunto de elementos que
contribuíram para reflexões teóricas que comunicam, através da tradição, a resistência à lógica do
mundo globalizado; e não só: anunciam e reivindicam também a utopia. Neste sentido, o ponto
principal de abordagem no presente texto é compreender a Festa do Divino Espírito Santo para
além da tradição popular de um catolicismo rústico, e, muito menos, como folclore. Trata-se de
compreender uma festa que tem seus pilares na história bíblica e preceitos católicos, e que traz algo
mais do que o teatro, os autos de representação e as alegorias.
A hipótese é de que a Festa contém a potencialidade de transformação da sociedade, uma vez
que revela contradições socioespaciais, luta de classes e clamor por justiça. A Festa ocupa as ruas
onde manifesta suas necessidades de ordem prática e espiritual: distribui alimentos (considerados
sagrados), acolhe os aflitos e doentes numa comunhão de solidariedade e pede por bênçãos a toda a
humanidade. A Festa do Divino se realiza no coletivo, no popular, e não fecha as portas a ninguém:
todos podem participar, independentemente da sua condição social, de etnia, de gênero etc.
Como a utopia do Espírito Santo é antiga e passou pela representatividade em autos do Império,
celebrada desde a Idade Média, o seu sentido mais profundo foi se amalgamando pelas gerações,
na história do mundo e se fazendo tradição. Portanto, o conceito de resíduo é trazido como uma
das bases de reflexão teórica e se conecta à práxis cotidiana, como bem apresenta Lefebvre (1967).
Esta, por sua vez, é imbuída de potencialidades criadoras, reiniciando o devir que se aparenta no
seu nível residual já esgotado. É uma reviravolta, e quase que um ressurgimento, mas num outro
nível, daquilo que aparecia como estagnado e já sentenciado no fim de sua existência. Isso porque os
fenômenos materializados e expressos no cotidiano carregam o germe da transformação e quiçá da
emancipação da sociedade ou das potencialidades da utopia. Lefebvre (1967, p. 63) explica ainda que
o conceito de práxis envolve o possível, o inesgotável: “a praxis, no sentido preciso, seria, portanto, o
‘real’ humano, com a condição de não ser separado nem da história e das tendências históricas, nem
do possível. Toda praxis se situa em uma história; é criadora de história”.

167
Vale esclarecer que faz parte da história, dentre tantos elementos/momentos, a luta de
classes que, na disputa por territorialidades (do material ao simbólico) evidencia os espaços de
representação (que carregam o espaço vivido) entrelaçados às representações do espaço. Os espaços
de representação, ainda no mergulho do pensamento de Lefebvre (2000), apresentam-se ligados aos
“subterrâneos” da vida, espaços de seus usuários que tentam modificá-lo pela imaginação, como,
por exemplo, através das artes. Eles entram em confronto (embate) com as representações do espaço
(espaço concebido dos planificadores) envolvidas com a ordem, com a tecnocracia e com as relações
de produção.
Para Lefebvre (1967, p. 66), a mudança da vida cotidiana vem com a “retomada dos ‘momentos’,
dos ‘resíduos’, a arte deixando de ser um fim em si bem como atividade especializada e autonomizada
para tornar-se meio da transformação do quotidiano e instrumento da vida ‘real’”. Nesse sentido,
compreende-se a Festa do Divino Espírito Santo como um espaço de representação que traz em si
o resíduo (ou os resíduos) de potencial transformação da sociedade, uma vez que, ao ser uma festa
popular, apesar das contradições que envolvem instituições, como a igreja, o poder público e, em
muitos casos, a elite da localidade, reivindica um futuro promissor e anuncia a utopia ao perpetuar a
tradição. A utopia, vale esclarecer, é aqui compreendida como algo com potencialidade do vir-a-ser,
assim como anunciou Löwy (1987, p. 12):

O pensamento utópico é o que aspira a um estado não-existente das relações sociais, o que
lhe dá, ao menos potencialmente, um caráter crítico, subversivo, ou mesmo explosivo. O
sentido estreito e pejorativo do termo (utopia: sonho imaginário irrealizável) nos parece
inoperante, uma vez que apenas o futuro permite que se saiba qual aspiração era ou não
“irrealizável”.

Para uma melhor compreensão sobre essas reflexões é preciso uma apresentação sobre os
fundamentos do Espírito Santo na Bíblia, na teoria de Joaquim de Fiori, e no Império do Divino
em Portugal. Posteriormente será abordada a Festa do Divino no Brasil, apontando algumas
especificidades para, em seguida, apresentar a reflexão acerca das resistências a partir dos espaços de
representação e a utopia que carregam. Elegemos, nesta apresentação, as festas paulistas realizadas
em Laras (distrito de Laranjal Paulista), em Mogi das Cruzes e em São Paulo, a fim de tratar das
diferenças do festar e, ao mesmo tempo, da manutenção de suas bases devocionais e utópicas.

Os pilares da devoção ao Divino

O Espírito Santo, no catolicismo, é a terceira pessoa da Santíssima Trindade – a primeira é o


Pai e a segunda é o Filho. Conforme a Bíblia, Ele aparece no princípio como o sopro de Deus, que
dá vida, a Ruach (do hebraico). Pode-se dizer que temos uma primeira base de fundamentação sobre
a origem do Espírito Santo.
168
Jesus Cristo, por sua vez, que fora concebido pelo poder do Espírito Santo (BÍBLIA, Lucas,
1, 25-34) já nasce com a Ruach dentro de si e, em Pentecostes (50 dias após Jesus ter ressuscitado, na
Páscoa cristã), ele a doa a todos, como está escrito na Bíblia Sagrada (Atos 2, 1-4):

Chegou o dia de Pentecostes e estavam todos reunidos naquele mesmo lugar. De repente
veio do céu um barulho que parecia o de um furacão: invadiu toda a casa onde estavam
reunidos. Então lhes apareceram línguas como se fossem de fogo, que se dividiram e
pousaram sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar
em outras línguas, conforme o Espírito os impelia a que se exprimissem.

Uma pomba branca representa o Espírito Santo, pois foi nessa forma que Ele anunciou a
Maria o nascimento de Jesus, bem como também apareceu no batismo de Cristo. A cor vermelha
simboliza as línguas de fogo, manifestação do Divino Espírito Santo ao alcance de todos. É essa,
portanto, sua representação primordial: a bandeira vermelha com a pomba branca ao centro, como
mostra a Figura 1.

Figura 1 – Bandeiras do Espírito Santo

Fonte: MARIANO, N. F. (2016).


Algumas bandeiras trazem representadas os sete dons do Espírito Santo em forma de raios. Outras carregam também fitas
coloridas para que os devotos façam nós que simbolizam pedidos e/ou agradecimento por alguma graça alcançada.

Vale dizer que algumas bandeiras trazem sete raios, que representam os sete dons do Espírito
Santo, atribuídos por Isaías (BÍBLIA, Isaías, 11, 2) e reconhecidos pela Igreja, como registram as
Constituições do Arcebispado da Bahia de 1707 (VIDE, 1853). São eles: sabedoria, entendimento,
conselho, fortaleza, ciência, piedade (ou caridade) e temor a Deus. Em algumas localidades, as
Bandeiras carregam fitas com sete cores diferentes, sendo que cada uma delas representa um dom.1
1 Em Mogi das Cruzes (SP), por exemplo, cores específicas são atribuídas aos dons: azul – sabedoria; prata – entendimento ou
inteligência; verde – conselho; vermelho – fortaleza; amarelo – ciência ou conhecimento; azul escuro – piedade; roxo – temor a
Deus.

169
O fato é que o Espírito Santo, antes privilégio de alguns poucos, em Pentecostes torna-se
democrático e todos podem senti-lo, independentemente de qualquer característica. Antes, apenas
alguns personagens bíblicos, tal como Sansão, que derrotou um leão (BÍBLIA, Juízes, 14, 6), são
preenchidos pelo Espírito Santo, compreendido como um dom para resolver um problema. Com a
Sua descida, em Pentecostes, não há escolhidos e o dom se faz presente em todos.
Uma segunda base estaria em Joaquim de Fiori, um abade italiano que viveu entre os séculos
XII e XIII. Conforme Lefebvre (1983), a teoria de Fiori é a de que o mundo estaria dividido em três
Eras: a do Pai (o tempo da Lei), a do Filho (o tempo da Fé), e a que estaria por vir, a do Espírito Santo
(o tempo do Júbilo). Conforme Bloch (2006, p. 64) detalha:

O primeiro estágio é o do Pai, do Antigo Testamento, do temor e da lei conhecida. O segundo


é o do Filho ou do Novo Testamento, do amor e da Igreja, que está dividida em clérigos e
leigos. O terceiro estágio, que está por vir, é o do Espírito Santo ou da iluminação de todos,
numa democracia mística, sem senhores nem Igreja. O primeiro Testamento favoreceu o
caule, o segundo a espiga, o terceiro produziu o trigo.

Passando o período do medo e dominação do Pai, a Era do Filho anuncia o que seria o
Terceiro Testamento da Bíblia, com a realização da utopia do Espírito Santo. Nesse tempo, não
haveria diferenças sociais, mas iluminação espiritual. Seria a Era do Espírito Livre, ou seja, livre de
pecado no plano físico e material ou, melhor dizendo, na vida real (BLOCH, 2006).
Esse Novo Mundo não viria de forma isolada da história anterior, mas carregaria no processo
de transição elementos antecedentes que passariam a ser mais bem compreendidos com o tempo.
Haveria, portanto, um processo de emancipação da sociedade. Ainda segundo Bloch (2006), o abade
Fiori teria recomendado a realização de festas pentecostais envoltos em princípios sociais e cristãos.
Talvez por conta dessa recomendação, acontece, dentre outras atividades solidárias, a distribuição de
alimentos durante a Festa do Espírito Santo.
Vale observar que parte dos franciscanos se tornaram joaquimita ao difundir as ideias de
Joaquim de Fiori, como bem destaca Julieta Andrade (1992), que percebeu a realização de Festas do
Espírito Santo por onde os franciscanos passaram no estado de São Paulo.
Talvez a utopia da Terceira Era tenha dado origem aos autos do Império do Espírito Santo
em Portugal, popularmente tida como protagonista2 a Rainha Santa3 Isabel, esposa de D. Diniz
(séculos XIII e XIV). Ela era seguidora dos ensinamentos de Francisco de Assis e de Clara, tanto
que, após a morte de seu esposo, passou a se vestir com um hábito da segunda ordem franciscana

2 À Rainha Dona Isabel é atribuída a popularização das homenagens ao Espírito Santo, embora haja bastante controvérsias com
relação a essa afirmação, pois documentos históricos indicam que os autos do Império teriam sido iniciados antes mesmo de seu
nascimento (GANDRA, 2014).
3 A Rainha Dona Isabel foi canonizada em 1625 pelo Papa Urbano VIII.

170
(CONFRARIA, 2012). O fato é que ela era muito caridosa, tendo lhe sido atribuídos alguns milagres,
como o das moedas que se transformaram em rosas.

Um dia a Rainha Santa Isabel fora ao mosteiro de Santa Clara [a-Velha] visitar as suas freiras,
levando consigo algum dinheiro, para beneficiar os pobres, que em toda a parte lhe apare-
ciam. Ao entrar no pátio, encontra casualmente el-Rei seu esposo, que andava visitando
obras.

D. Dinis nota a surpresa da santa Rainha, e percebe que ela se esforça por esconder alguma
cousa que leva ao regaço [...]. Pergunta-lhe: “Que levais aí?” [...] “_Rosas” [...] Descobrindo
o que levava, a Rainha Santa Isabel mostrou a seu esposo [...] rosas fragrantíssimas, que lhe
pejavam o regaço. (CONFRARIA, 2012, p. 22-23).

A Rainha teria mandado erguer em Alenquer, por devoção, a primeira Capela do Espírito
Santo e, em Pentecostes, teria coroado um mendigo e lhe atribuído poderes de rei, inclusive o
de soltar presos da cadeia. Esse mendigo seria a representação do Império do Espírito Santo, em
que a compaixão e o amor reinariam sobre a Terra. Por isso o cetro e a coroa são representações
importantes durante a Festa.
Como era costume, segundo Esperança (1656-1721), ela não só teria ofertado como
recomendado o banquete aos pobres (os bodos), hoje representado pelo pão, pela carne e, também,
pelo vinho. Essa prática se espalhou por Portugal e pelas Ilhas dos Açores e Madeira. Depois, seguiu
para os países colonizados pelos portugueses, bem como foi reforçada nas comemorações com as
imigrações açorianas para o Brasil ao longo dos séculos, principalmente no Maranhão e em Santa
Catarina.

As Festas

Pentecostes sempre fez parte do calendário litúrgico. No Brasil, temos registros de


homenagens ao Divino Espírito Santo desde o período colonial, sendo uma tradição que chegou
com os portugueses.
Com o intuito de realçar diferenças no modo de fazer a festa, apresentamos alguns destaques
nas três localidades já anunciadas na Introdução:
a) Distrito de Laras (município de Laranjal Paulista): Festa com o Encontro das Canoas no
Rio Tietê. Uma das canoas representa o “santo de casa”, que vai receber o Divino Espírito Santo,
representado pela Irmandade do Divino na outra canoa que chega. Ao se cruzarem, rojões são
disparados e balões coloridos voam pelo céu; é o ponto alto da Festa (Figura 2). Aqui, a homenagem
ao Espírito Santo remonta à promessa de uma senhora para acabar com a febre amarela que assolava
a região no final do século XVIII. Por isso, iniciou-se uma peregrinação da imagem do Divino,

171
para abençoar as comunidades nos bairros rurais mais próximos às margens do Rio Tietê. Após
a febre cessar, a população formou a Irmandade do Divino, que conta essa história por meio dos
versos cantados pela Folia do Divino durante o período festivo, que dura cerca de um mês. Aqui
não há representações de um Império do Espírito Santo ou referências portuguesas atribuídas à
Rainha Dona Isabel, dado que todo o ritual da Festa se pauta na territorialidade vivida, alimentando
a memória coletiva.4

Figura 2 – Encontro das Canoas no Rio Tietê, distrito de Laras

Fonte: MARIANO, N. F. (2016).


A Irmandade do Divino Espírito Santo está vestida de azul e a Irmandade do padroeiro de Laras, São Sebastião, está
de branco. O encontro das duas Irmandades significa que o Espírito Santo chegou no distrito e está sendo recebido
pela sua população.

Há, obviamente, outros momentos importantes na Festa do Divino de Laras, como o ritual
dos amortalhados, quando a Irmandade abençoa, com a Bandeira do Divino, as pessoas deitadas
enfileiradas na rua, cobertas com um lençol, numa representação dos que morreram de febre
amarela, mas que renascem com a passagem do Espírito Santo, agradecendo pela graça alcançada.
b) Mogi das Cruzes, município de origem colonial e que hoje faz parte da Região Metropolitana
de São Paulo. Aqui, a Festa do Divino traz bem forte as referências de Portugal: o Império, grande
altar coberto montado na praça em frente à igreja e aberto à visitação dos devotos à imagem do
Divino; e o Imperador e a Imperatriz, representados por crianças que portam o cetro e a coroa.
A Festa dura dez dias, com missas (novena), visitas da Folia do Divino nas casas, montagem de
subimpérios (altares menores) para o Divino em escolas, universidades, prefeitura, residências, sede
da rádio e da TV locais.
4 Para saber mais, ler Mariano (2014).
172
Grandes empresas do município patrocinam a Festa diante da organização da Associação
Pró-Festa do Divino, fundada em 19945. Nesse momento, a tendência é pensar na Festa como
um grande espetáculo, visto a logística organizacional e financeira que ela comporta. Mas, sob um
olhar mais cuidadoso, percebe-se a presença e a força do popular comandando a Festa e resistindo à
cooptação de alguns de seus elementos como mercadoria. Nesse contexto, pode-se falar também do
tempo de dedicação à Festa e o cotidiano do trabalho regulado pelo tempo da produção. Uma forma
de resistência pode ser encontrada na Folia do Divino, que há muito tempo percorre os bairros por
um período razoavelmente longo anterior à Festa, levando a bandeira do Divino para abençoar as
casas. O processo de urbanização trouxe a regulação do trabalho assalariado e a impossibilidade
de os homens da Folia se dedicarem integralmente a essa prática. No entanto, a Folia continua
peregrinando, mas de forma mais simples, passando por casas previamente agendadas, no centro de
Mogi das Cruzes e somente à noite – no tempo livre do trabalho –, mantendo a tradição e a razão
de ser do grupo.
Há, ainda, mais um momento de resistência, que é um cortejo chamado Entrada dos Palmitos,
realizada na véspera de Pentecostes. Nele estão presentes as representações do Império, de grupos
como Congadas, Marujadas e Moçambiques, das escolas e de catequeses das igrejas. Há, ainda,
carros de bois, charretes e cavaleiros que vêm espontaneamente da zona rural à cidade (Figura 3),
tal como fizeram seus antepassados, e quantitativamente sempre surpreendem a Associação Pró-
Divino, uma vez que precisa organizar certa infraestrutura para receber e acomodar os animais.

Figura 3 – Entrada dos Palmitos

Fonte: MARIANO, N. F. (2016).


Carros de bois carregam crianças na Entrada dos Palmitos. A rua é decorada com ramos de palmeiras, uma forma de
representação das origens da Festa do Divino de Mogi das Cruzes, quando a população do meio rural aproveitava o
período festivo para comercializar seus cultivos, dentre eles, o palmito.
5 Para saber mais, acessar: http://www.festadodivino.org.br/associacao.html.

173
Após o cortejo, aos devotos é distribuído o “afogado” – carne ensopada com legumes e farinha
de mandioca – considerado alimento sagrado e preparado por voluntários durante a noite anterior.6
c) São Paulo, no bairro nobre de Perdizes: a Festa do Divino acontece na Associação Cultural
Cachuera e teve início em 2000, a partir da tradição da família Menezes, migrante de São Luíz do
Maranhão. A Associação ajuda a realizar a Festa da mesma forma que festejavam na Casa Fanti
Ashanti, envolta em elementos do Tambor de Mina e do Candomblé. As mulheres são protagonistas
na Festa, pois tocam as caixas, são as Caixeiras do Divino, e dão o comando para cada passo. Aqui,
também há representação do Império, chamado de Tribuna; há crianças sendo coroadas Imperador
e Imperatriz, a cada ano. É muito nítida a “afronta” e resistência da Festa Popular à sociedade regida
sob a lógica capitalista e seus processos de exclusão. Mulheres negras, nordestinas, vestidas de branco
e tocando caixas saem pelas ruas de um bairro nobre e fazem sua homenagem ao Espírito Santo com
cantos populares. E isso acontece em algumas procissões, no momento do levantamento do Mastro
(Figura 4), bem como nas missas. Nesta Festa os alimentos também são distribuídos fartamente à
população devota.7

Figura 4 – Levantamento do Mastro na Festa da Associação Cultural Cachuera

Fonte: MARIANO, N. F. (2019).


As Caixeiras do Divino anunciam e conduzem os devotos para o Levantamento do Mastro, devidamente
ornamentado com frutas. Após ser benzido pelos padrinhos com vinho, vela e alecrim, num ritual que se estende
para a rua, o Mastro é erguido no quintal da Associação Cultural Cachuera.

Pode-se observar, a partir destas três festas do Divino, alguns pontos bastante interessantes
que denunciam diferenças, mas também semelhanças para além do sentido da Festa, que é a utopia
6 Para saber mais, ler Mariano (2007).
7 Para saber mais, ler Mariano (2020).

174
do Espírito Santo. Faz parte do ritual a distribuição de alimentos, uma referência à prática dos bodos
da Idade Média, significando também fartura, solidariedade e alimento sagrado.
Em Laras, em cada parada da peregrinação da Irmandade do Divino pelos bairros rurais,
oferta-se um almoço ou café, geralmente feito pela comunidade com comida simples, do cotidiano:
arroz, alguma carne (geralmente frango), salada; em Mogi das Cruzes há a distribuição do “afogado”,
na véspera de Pentecostes, além de pão com café após a alvorada (procissão pela manhã); em São
Paulo, no dia da Festa do Divino, é distribuído almoço simples aos participantes, logo após a missa
e o cortejo pelas ruas do bairro de Perdizes.
Em tantas outras Festas do Divino, pode-se destacar a distribuição somente de pães, como
ocorre em Sorocaba (SP), ou de pão, carne e vinho como acontece em Tomar (Portugal), conforme
Gandra (2012). A distribuição de alimentos significa comunhão entre as pessoas de mesma crença;
significa convidar os devotos a participar da resistência aos processos de modernização que tendem
a destruir as tradições populares; significa, ainda, fortalecer laços de solidariedade, pois quanto mais
forte for a união, mais próxima estará a humanidade da realização da utopia, de alcançar o que
reivindica: saúde, paz, amor, fraternidade, conhecimento, justiça, fartura etc.
Nem todas as Festas seguem os rituais do auto do Império, tal como supostamente
popularizados pela Rainha Santa Isabel, mas cada uma delas revela suas próprias origens históricas,
tendo ou não tal referência de origem portuguesa. Em Laras, por exemplo, durante todo o período
festivo estão presentes, através dos cantos da Folia do Divino e de alguns momentos específicos, as
memórias da febre amarela que, por obra do Espírito Santo, teria cessado. Aqui, portanto, não há
representações de um Império ou figurinos e objetos que remontem à corte portuguesa.
Em Mogi das Cruzes, pelo contrário, há uma sólida referência ao Império, inclusive com as
representações infantis dos imperadores. Mas além dessa referência, há uma forte marca da Festa,
que é a distribuição do “afogado” após a “Entrada dos Palmitos”, remontando, também, à própria
história da Festa na localidade. Esse prato era ofertado à população que chegava do meio rural em
carros de bois carregando entre seus pertences alimentos, como o palmito, para comercializar. Essa
memória dos primórdios da Festa em Mogi das Cruzes é representada na “Entrada dos Palmitos”,
como já apresentado, congregando não só a população rural, como também grupos diversos que
dialogam com a realidade atual, tais como de escolares e catequeses.
Em São Paulo, o processo migratório da família Menezes proporcionou a migração da Festa
também como forma de contribuir com a reterritorialização das pessoas envolvidas e, portanto,
construindo uma identidade territorial que se dá de forma diferenciada na nova localidade. Aqui
também há forte referência ao Império, com crianças sendo coroadas na chamada Tribuna. Contudo,
apresenta, da mesma forma, a especificidade da conexão com o Candomblé, sem deixar de exercer
rituais ligados à Igreja Católica, como a participação em missas, por exemplo. Além disso, a Festa

175
tem o protagonismo das Caixeiras do Divino, que têm ensinado sua função em oficinas de caixas,
como acontece na sede da Associação Cultural Cachuera. Em São Paulo, a Festa do Divino oriunda
da Casa Fanti Ashanti encontrou novos elementos e enfrentamentos para a sua realização, mas
também o acolhimento necessário para se manter a tradição, numa atuação de resistência à ordem
estabelecida e elitizada que o bairro de Perdizes pode apresentar.
Portanto, a exposição sobre estas três Festas do Divino procurou mostrar que, apesar das
especificidades, a resistência e a utopia nelas estão presentes. As Festas do Espírito Santo, aqui
compreendidas como espaços de representação, trazem no seu bojo os resíduos daquelas pretéritas,
transformadas numa tradição que guarda essa potencialidade de emancipação da sociedade. Esse
poder é materializado no exercício do coletivo (na organização da Festa, nos atos de solidariedade e,
também, na expressão devocional), que reivindica tudo o que a chegada do Espírito Santo representa
por meio dos seus dons.

Considerações finais

Ao apresentar os sentidos históricos da Festa do Divino Espírito Santo, tendo como fundamento
primordial a chegada do Paráclito (seja no ciclo festivo anual, seja no período mais longo, com a Era
do Espírito Santo) para pôr fim a todo e qualquer tipo de sofrimento e injustiça, as homenagens
podem ser compreendidas como espaços de representação, uma vez que se constituem no seio do
popular. Há nestes momentos envoltos de rituais e insígnias, a reivindicação contundente de um
mundo com mais amor, harmonia, solidariedade, justiça, caridade e fartura para toda a humanidade,
pois é essa a mensagem do Espírito Santo, a sua utopia.
O tradicional, que busca no passado a utopia ou o sentido da descida do Espírito Santo na
Terra, atualiza-se e se veste conforme a sua localidade e interpretações socioespaciais (a importância
do pão, da carne, do vinho, da pompa ou da simplicidade, da organização ou da espontaneidade
etc.) no presente, no momento da Festa. E assim, projeta o futuro, reivindica o Espírito Santo, o
sopro Divino que abençoa e permite a cada um e a todos as possibilidades de superação de suas
dificuldades.
Procuramos evidenciar, a partir de três Festas do Divino que acontecem no estado de São
Paulo, algumas especificidades, e, portanto, diferenças entre elas, que remontam ao processo de
territorialidade da Festa, ou seja, a história local e a tradição oral de cada localidade. A partir desse
diálogo, a Festa tem sentido no cotidiano para os devotos na sua coletividade. Ela traz para o presente
não só os fundamentos bíblicos e a profecia do abade Joaquim de Fiori, mas também a ritualização
disso tudo, supostamente a partir da devoção da Rainha Santa Isabel.
Esse tempo presente territorializado da Festa, que se configura como espaço de representação,
anuncia, numa afronta ou resistência às representações do espaço (poder político, social e econômico)

176
por meio da sua práxis cotidiana, os resíduos que carregam a utopia. Resíduos esses que podem
ser visíveis a olho nu, mas que ainda não são bem compreendidos como tais, já que ainda não são
elaborados num raciocínio lógico; são potenciais de transformação e emancipação da sociedade, são
o germe do vir-a-ser promissor.

Referências

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e coreográfico. Um cancioneiro trovadoresco do Médio Tietê. 1992. 3v. Tese (Doutorado em
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Tradução Werner Fuchs. Rio de Janeiro: Eduerj/Contraponto, 2006.

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Francisco na Província de Portugal. Primeira Parte. Que contém seu princípio & argumentos
no estado primeiro de Custódia. Lisboa: Officina Craesbeechiana, 1656-1721.

GANDRA, Manuel J. Festa dos Tabuleiros – Tomar. In: Cadernos da Tradição. História e
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Brasilian e Centro Ernesto Soares de Iconografia Simbólica, 2014.

LEFEBVRE, Henri. A produção do espaço. Tradução Doralice Barros Pereira, Sérgio Martins (do

177
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Disponível em: https://gpect.files.wordpress.com/2014/06/henri_lefebvre-a-produc3a7c3a3o-do-
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VIDE, Sebastião Monteiro da, Arcebispo. Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia


feitas, e ordenadas pelo Ilustríssimo, e Reverendíssimo Senhor D. Sebastião Monteiro de
Vide: propostas, e aceitas em o Synodo Diocesano, que o dito Senhor celebrou em 12 de junho do
anno de 1707. São Paulo: Typ. 2 de dezembro de Antonio Louzada Antunes, 1853.

178
ETNODOC HOMENS, DEUSES E SANTOS NA VILA DE ITAÚNAS:
RELATOS DE EXPERIÊNCIA

Maria Aparecida de Sá Xavier


airamxavier@yahoo.com.br

Introdução: caminhos e caminhares

Este artigo é fruto de reflexão sobre uma experimentação audiovisual – etnodoc – realizada
como parte de produto do pós-doutoramento em Geografia - UFES (2014-2016), no Programa
de Pós-graduação em Geografia – Bolsa PNPD – CAPES. Importa informar que o projeto está
intitulado: “Homens, deuses e santos nos rituais do Ticumbi e a arte de curar como resistência do
lugar: uma narrativa de paisagem em movimento” – e registrado como Narradoc 6640/2015 pelo
Programa de Pós-graduação em Geografia, UFES, Vitória, ES (XAVIER, 2016).
O ideal, o sonho de realizar o etnodoc nasceu desde as primeiras capturas de imagens, pequenas
filmagens que complementaram os estudos etnogeográficos da pesquisa do doutoramento – PGPG-
UFF (2005-2008) – Bolsa Capes. As filmagens da comunidade nos festejos e brincadeiras, rezas e
ensaios do Ticumbi1, congo e jongo, pastorinhas e alardo, na Vila de Itaúnas, Conceição da Barra,
ES, traziam uma forte potência audiovisual, que a escrita não dava conta. Nesse sentido, trago a
imagem do poema de Elisa Lucinda – Linhagem: “Mas os sonhos têm seus autônomos trilhos, sua
imprevisível malha”.
Dos caminhares até a concretização do sonho houveram tortuosas e árduas trilhas com
caminhos e descaminhos, mas como no querer advém potência intensa – a malha foi sendo tecida por
estranhos arranjos e rearranjos do destino, com muita colaboração e parcerias. Umas com conotação
positiva, outras nem tanto, mas mesmo as últimas colaboraram de algum modo (os autônomos trilhos,
sua imprevisível malha) – por isso, só agradeço.
Esse projeto teve dois momentos, e por isso tive dois tutores – o primeiro momento foi
o geógrafo Cláudio Zanotelli, e num segundo momento a antropóloga Celeste Ciccarone. Para
efetivar o desejo, haveria de aprender e apreender a arte do Cinema, minimamente. Para tanto,
o tutor me encaminhou para o então coordenador do Departamento de Comunicação Social da
UFES, Cleber Carminati (in memoriam), também um dos fundadores do Curso de Cinema daquela
Universidade. Importante dizer que Carminati deixou um vasto legado de ser humano irreverente,
inovador, sem deixar de ser polêmico, pois essa sempre foi sua marca pessoal no mundo, e por isso
fica aqui meu agradecimento sincero a ele e a toda a equipe dos primeiros até os últimos dias.
1 Baile de Congo de São Benedito, como nos apresentou o Sr. Caboquinho, do Ticumbi de Santa Clara.

179
“O documentário está no cinema”, diz a pesquisadora portuguesa Penafria (2004, p. 1-2) e
“o documentário é um tratamento criativo da realidade”. É também uma tradução no sentido de
Boaventura Santos (2019), buscando metodologias pós-abissais, uma proposta de Epistemologias
do Sul. O documentário é um modo de contar uma história e apresentar o ponto de vista do
documentarista. A/o geógrafa/o, no cinema, cria espaços, propõe um olhar crítico, traz uma ética
e estética com potência de agenciamento, traz visões intercessoras que podem gerar emoções e
reflexões rizomáticos.
Um etnodoc é um filme etnográfico, não ficcional, de filmagem direta que traz a interpretação
da interpretação, traz o ponto de vista das pessoas do lugar, do grupo com identidade territorial.
Como há uma intenção de divulgação da Ciência, o etnodoc Homens, deuses e santos (HDS) traz
conceitos geográficos que podem ser trabalhados por um professor em sala de aula: do ensino
fundamental ou médio até o ensino superior. Nesse sentido, ele cumpre a função de comunicar a
Ciência Geográfica. O artigo “Ticumbi como narrativa de Paisagem na Vila de Itaúnas” (XAVIER,
2015) o acompanha, se quiser aprofundar a discussão teórica. Há khora2, poiesis e denúncia nesse
documentário, sendo possível identificar pelas imagens do eucaliptal no caminho até a Vila e ao seu
redor3.

Processo da Escrita da Proposta do Documentário: Paisagens do Ticumbi: homens, deuses


e santos na Vila de Itaúnas 4

Após a apresentação formal ao Prof. Carminati, em reunião com o grupo audiovisual – GRAV,
ouvi pela primeira vez do Prof. Alexandre Curtiss o nome de Jean Rouch. Esse fato é relevante
sobre a obra etnoc HDS. Jean Rouch5 foi um grande inspirador do que se chama de Antropologia
compartilhada – uma etnografia fílmica com os interlocutores, e não sobre eles. Podemos então
dizer que HDS traz o que chamo Geografia compartilhada, realizada com sujeitos do conhecimento
e não sobre os sujeitos. Traz um ponto de vista das pessoas representadas, como sujeitos e co-autores.

As tardes com café e pão de queijo: produções

Todo o projeto “Paisagens do Ticumbi” foi idealizado, discutido e escrito em maravilhosas


tardes quentes regadas a café e pão de queijo numa cantina ao lado da CineUfes, por cerca de 4
meses. Esses encontros de trabalho, de modo forma e informal, possibilitou vivências conceituais
inter-transdisciplinares. Assim nasceu o projeto “Paisagens do Ticumbi: homens, deuses e santos na
2 Khôra – espaço em Platão (XAVIER, 2009).
3 Também pode suscitar discussão importante no campo agrário.
4 Anexo do projeto Narradoc 6640/2015.
5 Jean Rouch (1917- 2004) deu início ao que se denominou de cinema verdade e influenciou a maior parte dos documentaristas
do Brasil. Conf. “Jean Rouch - Subvertendo Fronteiras” – LISA – Antropologia- 2013 –plataforma Vimeo.
180
Vila de Itaúnas”. Abaixo, uma carta que o professor Carminati e eu enviamos para a Pós-graduação
em Geografia, justificando o referido projeto complementar do Etnodoc:

Tal produto inédito para o programa de pós-graduação em Geografia será objeto de reflexão
em artigos, apresentação em eventos acadêmicos, concorrendo a editais e disponibilizado
em plataformas especificas para sua divulgação.  Será também devolvido com cópias para a
comunidade interessada e seus representantes em vista da proposta dialógica da pesquisa e
para seu empoderamento como sujeitos das políticas públicas que intervém no seu território
tradicional. (CARMINATI e XAVIER, 2015, mimeo, acervo particular).

Escolha da equipe e as primeiras Oficinas antes do Campo

Para um etnodoc procuramos uma equipe mínima. Esse grupo foi buscado por Carminati
junto aos seus ex-alunos, àqueles que tivessem sensibilidade etnográfica, proximidade com o
tema e plasticidade para ser conduzido em campo. Dois nomes vieram: Hugo Reis, realizador
audiovisual com rica experiência e Carol Covre6, a qual tem uma bagagem importante no campo do
documentário.
Algumas oficinas foram realizadas para explicar o tom da filmagem, e o que significava cada
conceito a ser trabalhado no filme. A questão de Espaço e Território (relações de limite e poder)
foi extensamente trabalhadas – modo de inserção no campo, o respeito, o cuidado com a câmera e
o microfone na abordagem dos atores no campo. Os dois cineastas me ensinaram um cinema para
além do glamour, mas o trabalho no e do cinema – o que não é pouco. Houve uma troca justa e
solidária entre as partes, já que o recurso financeiro sempre foi escasso.

O processo das parcerias

Foram criadas parcerias necessárias para execução do Projeto Narradoc, incluindo o


Departamento de Comunicação Social, UFES, o Grupo de Pesquisa GRAV e a TV UFES. Nesse
sentido, estabeleceu-se um forte esforço de diálogo inter-transdisciplinar entre os participantes,
que resultou em, além do sub-projeto, o documentário fílmico – etnodoc. Os atores principais do
processo foram: Cleber Carminati, Daniela Zanetti, Alexandre Curtiss, Edgard Rebouças, Caroline
Covre e Hugo Reis.
A Tv Ufes, em parceria com a Comunicação Social – UFES, cedeu, num primeiro momento,
todo o material de filmagem (equipamento necessário). Num segundo momento, a parceria foi
rompida por Carminatti, e fizemos a adaptação do equipamento para não perder a qualidade. O
CEUNES7, através da Professora Karina S. Furieri, bióloga, deu-nos toda orientação quanto à
fauna e flora paisagística da região, nas filmagens no Parque Estadual Itaúnas (PEI), como também
apoio logístico (fundamental), inclusive acesso e uso do alojamento do PEI.
6 Córrego Grande, 13, documentário premiado (poético, sensível, encantador).
7 Universidade Federal do ES, campus São Mateus.
181
O processo da construção do filme

Sobre o roteiro, decidiu-se que não haveria roteiro fixo8, mas flexível, adaptado. Contudo,
haviam objetivos flexíveis a serem cumpridos no turno da manhã, tarde e noite das filmagens no
campo, pois obedecíamos aos “costumes” dos horários da comunidade – uma comunidade de
famílias de pescadores artesanais.

Contexto e primeiras filmagens

A população é composta de pescadores artesanais, em geral, e pequenos comerciantes.


Homens, mulheres, adolescentes e crianças, pessoas muito simples, alegres e festivas, mas de forte
religiosidade, bastante cordatos, mas também desconfiados. Seguindo a recomendação das Oficinas,
procuramos maior respeito possível aos costumes, horários e modo de ser do ethos local.

As filmagens

A primeira filmagem ocorreu no término de 2005, com uma equipe mínima composta de
3 (três) integrantes e um motorista que atuou como apoio da equipe. Usamos duas câmeras com
planos mais abertos e outros mais fechados. Os planos mais fechados buscaram um olhar háptico,
um olhar que toca a superfície das coisas. E o plano mais aberto buscou a paisagem, o contorno
espacial, as formas e conformações espaciais dos grupos nos ensaios, os arranjos grupais, o ir e vir
cotidiano que contorna a Vila (como um quadro, vamos percebendo as geograficidades, os carto-
fatos, os geossímbolos). A luz utilizada sempre foi “natural”, uma escolha minha.

O cuidado de não destoar com a paisagem

No trabalho de campo tivemos o cuidado de usar roupas simples e bem ajustadas à realidade
da moral local, incluindo o traje de banho. O trabalho não terminava após as filmagens, mas
continuava, pois sabíamos que estávamos sendo observados. Qualquer deslize por parte de qualquer
um da equipe poderia acarretar na perda de contato.
A rotina se dava desde a manhã, quando saíamos com todo o equipamento e nos dirigíamos
até os pontos principais – a praça da Igreja Matriz, próximo da Escola; a entrada do Parque, que fica
próximo da casa do Sr. Caboquinho. No caminhar pela Vila encontramos as pessoas, com as quais
marcamos as entrevistas, de acordo com o cotidiano da Vila. Todos aproveitamos o cotidiano da Vila
para captação de imagens.

8 Num ideal de Jean Rouch (antropólogo, cineasta) e pensando em fazer uma geografia compartilhada, no tom da antropologia
compartilhada.

182
Em geral, as entrevistas se davam pela tarde, pois a Vila descansa após o almoço. Foi preciso
respeitar os horários do lugar, o espaço-território, além dos horários previamente marcados e contar
com bastante respeito e paciência para adaptar as filmagens. O fato relevante é que a comunidade
desejou o documentário, e isso fez a diferença.

Da experiência da direção

Não havia nenhuma outra experiência e o experimental era a tônica, sem imposição de
resultados. Entretanto, haviam alguns pontos fixos e fluxos que seguimos: i) já conhecia a Vila e
os personagens (sabia quem iria entrevistar); ii) havia um roteiro provisório e dentro deles uma
paisagem com fixos e fluxos. A paisagem era importante, e o corpo era também paisagem. Os corpos
paisagens; iii) o som era um fluxo que precisava ser capturado da melhor forma possível (a música,
os cânticos, cantigas, a viola, os pandeiros, as entrevistas e o som da vila – o som dos pássaros, o som
do vento nas dunas9, o som das crianças, das pessoas conversando, da sanfoninha, de um forró ao
longe. Pois a vila tem um SOM, uma música); iv) a luz sempre natural, a que tivesse no momento.

A experiência das e nas filmagens (ordenamentos)

A experimentação que fizemos, no sentido de ordenamento da captação das imagens/som


e organização das imagens/som, não fugiu ao usual da maioria dos filmes. Usamos o que foi mais
prático. Chamei de blocos de gravação o relato a seguir, em que apresento os detalhes da gravação por
ordem de gravação:
a) Escola Benônio Gouveia (escola principal, fica no ponto central da praça).
O relato da Diretora da Escola - Veratriz Souto (neta da benzedeira Dona Dorota e prima de Lucas
André Maia, o narrador) tornou-se o mais importante. Ela estava inspirada e a fala ficou espontânea.
Fizemos também uma leitura sensível daquele universo da escola, em dois momentos, o primeiro
dentro da escola onde filmamos as atividades diárias, cartazes e as crianças; e no segundo momento,
na segunda gravação em fevereiro, fizemos filmagens do lado de fora, com as crianças chegando na
escola e saindo da escola. O ônibus, o ir e vir, o movimento rítmico da espacialidade na Vila.
b) Entrevista com Lucas (narrador principal do documentário e representante
do Reis de Boi de Itaúnas). A entrevista ocorreu em sua casa, na sala, e no horário determinado por
ele. Houve cuidado com as perguntas e com sua família. Combinamos com a equipe não aproximar
demais a câmera do rosto das pessoas e usar o zoom. Um respeito e um cuidado, sendo esta a tônica
– pensar o corpo do outro como território. Corpo-território e o território da casa: extensão dos

9 Na segunda filmagem, já estávamos sem o microfone da TV UFES, e o som do vento tornou impossível a filmagem! Nesse
sentido, o som não ficou como gostaríamos, e nem o roteiro. Tudo foi adaptado.

183
corpos-territórios. A Vila, seu território, é extensão dos territórios-corpos. A escolha do que dizer
sempre foi do entrevistado, no caso Lucas André Maia. Esta entrevista, tanto a primeira, como a
segunda, foi o nosso ponto de apoio no filme – e se tornou nosso fio condutor para apresentação da
Vila, os folguedos e tradições. O Lucas surpreendeu pela sua fala, tanto pela espontaneidade com a
câmera, como pela paciência nas filmagens com as paradas e retornos.
c) Entrevistas e filmagens no Sitio Areia Branca (Ticumbi do Bongado).
Esperamos o convite para o ensaio no Sitio e seguimos o ônibus que levava os participantes, com
muito cuidado para não nos perdermos no caminho (grande eucaliptal!). Perto de chegar no destino,
fizemos movimentos isentos de alarde e tentando interferir o menos possível; falar o menos possível.
As tomadas foram direcionadas por mim. A câmera ia aonde eu pedia: os pés que batem no chão,
os pandeiros e as mãos que batem no pandeiro, as espadas riscando o chão... a demarcação no duelo
entre os reis – o Rei de Bamba e o Rei de Congo.
O duelo revela uma dramatização importante para saber quem vai festejar São Benedito e
São Sebastião. Os versos são importantes, pois são políticos e mudam todo ano. Reinvindicações
que ultrapassam qualquer ideia de folk.
A comida ritual foi um ponto de captação imagética importante, pois a partilha do alimento
é culminante em festejos de São Benedito. Queríamos transmitir este tom do partilhar, da cozinha,
das cozinheiras, do carinho e calor humano de congraçamento da comida ritual. A conversa das
comadres no desenrolar do ensaio revela a intimidade da vida compartilhada no aconchego do lugar.
Já o cão amigo esperava a hora de comer.
d) Filmagem no Angelim (quilombo do Angelim com Mestre Caboquinho,
do Ticumbi de Santa Clara). No quilombo Angelim10 foi tudo incrível, muito mais do que
esperávamos! O lugar trouxe uma energia que nos emocionou. Pedi a Carol que fizesse a filmagem
e a Hugo o som. Focamos nas crianças, o futuro do Ticumbi. As conversas, os passos do ensaio e
o conjunto do cenário com uma luz azul ajudou muito. Tivemos alguma dúvida quanto à luz, mas
esta apresentou resultados surpreendentes. Ali, não houve alimento ritual, pois o grupo era muito
humilde.
O tempo todo fiz a câmera circular para mostrar o melhor ângulo da cena, espacialidades
do grupo. A interação da equipe foi intensa e muito concentrada. Ao final das gravações, Carol me
abraçou chorando e disse: “Maria, obrigada por esta experiência. Nunca pude imaginar de viver isto,
e saber que existia tanta beleza aqui escondida”. Nos abraçamos e choramos. A emoção fez parte
deste etnodoc.
e) O poeirão da estrada e casinha de João de Barro (elementos da paisagem).
O poeirão era importante marca da chegança, na estrada de terra. Os carros e aquela poeira que subia,
10 Território quilombola, bem próximo à Vila de Itaúnas, ainda no município de Conceição da Barra, ES.
184
as ‘costelas’ gravadas no chão de terra batida, já anunciava velocidade lenta. Essa imagética dava uma
sensação de chegança a um outro espaço/tempo, outro mundo. Nessa filmagem, foi possível um
olhar atento tanto para a estrada como para elementos da paisagem (os eucaliptais e as delicadezas).
Nesse momento, observei um “condomínio de João de Barro”, que achei muito interessante para
compor o filme. A filmagem de dentro do carro, o chão com as costelas e o trepidar do carro! (foi
exatamente como pensava). O eucaliptal ao fundo, como memória de uma disputa territorial com
as empresas de celulose... sempre ali presente. Tudo foi registrado.
f) A praça, e o ensaio do Jongo. Os pés que batem o chão, as saias rodando, o território
do sagrado. Nessa cena, nós saímos sem pretensão do que filmar, mas, ao chegar na praça, vimos
que estava acontecendo um ensaio. Estávamos sem o som, mas resolvemos, em conjunto, ligar
as câmeras. Tomamos distância, e usamos duas câmeras: para filmagem mais aberta e outra mais
fechada. Ao abrir – a paisagem, e ao aproximar (no âmbito fechado), o olhar háptico que toca.
Pedi a Carol a imagem dos geossimbolos. Foi muito importante: a Igreja (dentro e fora), o mastro de
Sebastião, o tronco do Pequi-vinagreiro, os cajueiros da praça.
g) A entrevista com Dona Dorota- benzedeira. Este momento foi rico, posto uma
senhora idosa, delicada, e um pouco adoentada. Nós marcamos, mas se ela não estivesse bem,
não iríamos insistir – foi o combinado. Mas ela queria falar, e isso foi muito importante! Ali fiz
algumas perguntas apenas para provocar a fala. Houveram vários momentos de emoção, silêncio
e choro. Lembrou do passado, seu esposo falecido. Nesse momento pedi a Carol que tocasse a
pele de dona Dorota com câmera em zoom, pois havia um relato de vida ali. Havia uma Mulher
negra e muitas histórias marcadas naquela superfície da pele. Nesse momento a pele... a pele como
uma superfície – um espaço-território de marcas que a vivência no mundo vai deixando. O corpo
– território. O rosto como uma paisagem. Foi importante sensibilidade de saber o que filmar. Os
pássaros que ela alimentava todos os dias foi uma escolha importante – relação sociedade-natureza,
pois ela conversava com os passarinhos todos os dias! Os pássaros eram os amigos dela, nos disse.
Outro ponto importante foi a reza – que revela uma cultura, um corpus de saberes. Todo
cuidado ao tempo da entrevista, aos detalhes, e as emoções da dona Dorota.
h) A Dona Maria Catarina (festeira do Ticumbi do Bongado). Dona Maria
Catarina é festeira do Ticumbi do Bongado e tem uma casa importante na praça central da Vila.
É uma Mulher de poder, de pulso forte. Os homens, ao olhá-la, já sabem o que ela quer dizer.
Ela é um mãezona, uma liderança importante para a Festa e os ensaios. Nos revelou que se não
houver recurso para fazer a festa, ela faz inclusive empréstimo para os custos, e aluguel do ônibus
para transporte do pessoal ao ensaio – sem medir esforços, pois conhece a força da tradição! A cada
avanço, só o fazíamos quando ela dizia que sim. Sempre perguntávamos, pois reconhecer a liderança
desta mulher foi um ponto importante.
185
Dar-lhe a possibilidade de contar sua história, sua visão, pois sua vivência do Ticumbi é
fato histórico. Nesse sentido as filmagens trouxeram um impacto muito positivo para nosso
entendimento pessoal do que é o Ticumbi, e como vem se reproduzindo de modo geracional.
Aproveitamos ao máximo a paisagem da praça do ponto de vista da casa dessa senhora.
i) Entrevista com Dona Aninha (benzedeira). Esta entrevista foi bem mais elaborada
e só aconteceu na segunda ida ao campo, pois foi difícil encontra-la em casa. Ela tem o seu tempo
e é idosa. Dona Aninha não gosta de falar com qualquer pessoa, e disso já sabíamos. A câmera de
Carol foi precisa e íntima; estabelecemos então uma conversa como bate-papo, e Dona Aninha foi
contando as histórias. Fiz apenas algumas perguntas, sempre tentando direcionar para que ela não
se perdesse.
Filmar o corpo–território, corpo inteiro foi ideia da Carol. Nesta segunda ida a campo eu e
Carol já estávamos mais íntimas no trabalho em conjunto, e só de trocar olhar já sabíamos a decisão
a tomar. A filmagem de suas plantas, o entorno da casa, as rezas, o ritual, o benzimento em si,
tudo foi importantíssimo e espontâneo. Houve grande colaboração por parte da dona Aninha, e no
momento que sentimos o cansaço dela, encerramos a filmagem.
j) A cena dos bichos com Lucas. Também foi na segunda gravação, em fevereiro.
Tudo fez parte da cena: os bichos do Reis de Boi, os capacetes, a viola, o pandeiro, a mão que bate
no pandeiro e toca o tambor e a viola. Cada momento ali foi muito importante e rico. Lucas ficou
muito à vontade. Foi um evento num tom festivo, pois o Lucas estava na realização do festejo de
Reis de Boi na Vila. Na recuperação da tradição, que alguns achava que perdida – importante fato
registrado no documentário.
l) Sr João Quemodes. Esta entrevista foi difícil de ser marcada, pois nunca
encontrávamos o Sr Quemodes em casa. A partir disso, decidimos realizar a entrevista na segunda
filmagem, em fevereiro. Nesse segundo momento, fomos em sua busca, dado que sabíamos que ele
estaria em casa. Dessa forma, seguimos com todo o material da filmagem. Batemos, ele nos atendeu
amigavelmente, sentou conosco e imediatamente começou a contar a história do pai, do Ticumbi e
de como entrou no Ticumbi.
Fui direcionando por meio de poucas perguntas. Ele deu o tom da filmagem, no conforto
dele, na hora dele. Apenas o seguimos. O deixei livre para falar, para contar o que ele achava que
as pessoas teriam de saber do Ticumbi. Ele é o mestre do Ticumbi da Vila de Itaúnas e sua família
é muito unida nos festejos. A família, os filhos e principalmente a Mulher, dona Maria, são seus
principais ponto de apoio. Foi importante, também, sua cantoria, aportando uma gratíssima surpresa
para o registro documental.
m) Entrevista com Dona Maria. Logo após a entrevista com o marido, o sr. João,
tivemos uma boa entrevista com a esposa, Dona Maria. Houve a brincadeira com a netinha, que
186
estava conosco todo o tempo, marcando um registro espontâneo e alegre. Perguntamos então para
dona Maria se ela gostaria de nos mostrar a Igreja não oficial de São Benedito, e se gostaria de falar
sobre o festejo. Perguntamos então para dona Maria se ela gostaria de nos mostrar a Igreja não oficial
de São Benedito, e se gostaria de falar sobre o festejo. E esta também foi uma surpresa, Dona Maria
se revelou como personagem ativa do Ticumbi, nos levando até a igreja, nos apresentou como
ocorria o festejo: a feitura das comidas, a organização do trabalho, os arranjos.
Esse fato confirma a importância das mulheres no acontecer dos ensaios e festejos do Ticumbi,
como um apoio logístico, mas também como idealizadoras e organizadoras de cunho laboral. As
cenas mostram a importância dos detalhes da Igreja de São Benedito, uma das mais importantes da
Vila!
n) Entrevista com Sr. Caboquinho em casa. Uma das últimas entrevistas em
fevereiro de 2016. Nós passamos em sua casa e marcamos o horário. O Sr. Caboquinho estava tão
familiarizado com a câmera, que sua fala aconteceu com muita tranquilidade. Respondeu todas as
perguntas e com detalhes. A música da cantoria, a marcha que ele fez, também foi uma surpresa
documental. O Sr. Caboquinho e sua esposa são pessoas simples e de muitos amigos. Vizinho
do Parque Estadual Itaúnas, com quem mantém boa relação, porém, não sem críticas. Há uma
rivalidade entre Sr, Caboquino e Dona Catarina, e, na nossa interpretação, é o drama ritual dos
festejos do Ticumbi. É nos desafios da fé – o drama ritual – na disputa de quem comemora mais
bonito o São Benedito, que está o enredo e o motivação do festejo. Neste sentido o Ticumbi é arte
de curar, que pacifica, equilibra as disputas e rivalidades dos grupos – é cura social.
o) As delicadezas. As delicadezas da Vila foram filmagens feitas fora dos núcleos do
enredo Ticumbi. As dunas, a lua, a mata, as borboletas, os pássaros coloridos, os frutos, as flores,
as árvores, a casinha do joão-de-barro, as cores, o céu, o rio, os muitos cheiros e sons (que não
conseguimos captar como gostaríamos). Queria evidenciar todas essas delicadezas no filme, pois
elas fazem do cenário imagético da Vila.
Capturamos os pássaros no fio de perto do rio. Elees parecem notas musicais numa partitura.
O rio correndo devagar, a ponte, os caminhos dos pescadores na ponte, as bicicletas em procissão,
as crianças e os cães.
Os cães da vila são delicadezas, pois são muito dóceis. Sobre a filmagem dos cães, as quisemos
chamar assim para chamar a atenção sobre os “outros” animais não protegidos pelo Parque – PEI.
Nesse sentido, não há uma política do PEI e da prefeitura de C. da Barra para esses animais. Não se
investe em clínicas veterinárias com vacinação e castração, sendo que eles, os cães, também fazem
parte da Vila. Deixo aqui meu desejo de suporte para estes animais, assim como a troca solidária
com o PEI, afinal, o território sempre foi dos pescadores artesanais11 .
11 Os animais pertencem a Vila, e a Vila pertence aos pescadores tradicionais e suas famílias!
187
Decupagem e Edição

A decupagem12 é um processo muito importante para a construção de um filme e a principal


foi realizada em parceria com a cineasta Carol Covre, em sua casa na Vila Velha, ES. O restante da
decupagem foi realizado posteriormente à distância, via remoto-síncrono, nos meses de março e
abril 2016. A decupagem organizou as cenas por blocos, como, por exemplo: bloco das benzedeiras,
dos mestres, dos ensaios, das delicadezas, do poeirão, do arruamento e da paisagem.
A Edição foi feita na casa da Carol, com seu equipamento e com muita boa vontade, sendo que
nossos encontros de trabalho foram remotos por meio do programa Skype, a plataforma disponível
naquele momento e com envio de material pelo drive (nuvem). O detalhe da cobrança forte por
parte do PPGGeo-Ufes para o término dificultou nosso trabalho.
No contexto político, ocorreu um impeachment da presidência da república. Todavia,
sofremos o corte da bolsa PNPD, não renovada pelo programa, que sofrera naquela época a mudança
de coordenação.
Ocorreu, nesse sentido, um esforço muito grande de nós duas até o último instante, dado
que trabalhamos sob uma incessante pressão. Isso não combina com a Arte delicada do cinema
documental. Por isso, recomendo que outros trabalhos não sejam realizados dessa forma. Tal
cobrança pode ser feita no caso de um trabalho escrito, por exemplo, mas não num trabalho de
audiovisual que conta tantas delicadezas/detalhes.

Ficha técnica do filme

A ficha técnica do filme (ver Quadro 1) foi feita principalmente pela cineasta Carol Covre,
que aqui transcrevo. As filmagens foram feitas em duas etapas. Na primeira, (primeiras filmagens –
2015) a câmera utilizada foi a Cannon 5D; e na segunda (2016), uma Canon T3i. Sobre o gravador
utilizado na primeira filmagem, não sabemos a marca (empréstimo da TV UFES), mas foi bem
profissional e conduzido pelo cineasta Hugo Reis. Já o gravador usado na segunda etapa foi um
Zoom H4N alugado, uma boa marca.
Sobre o tratamento do som, segundo Carol Covre, o trabalho consiste em “limpar” os diálogos
do filme, com o objetivo de tornar a sonoridade mais audível. Depois, o processo é de mixagem,
onde se regulam os volumes a as entradas e saídas de cada elemento sonoro. Este tratamento é bem
delicado, pois muitas vezes não se pode “limpar” tudo, sendo preciso que alguns sons do lugar
tenham que permanecer. Essa é a proposta de um etnodoc. Contudo, no nosso caso, o tratamento
foi realizado após a montagem do filme por uma especialista no processo, a saber, Joceles Bicalho.
Na questão da Luz, usamos apenas as luzes naturais do ambiente. Mas existem uma infinidade
12 Quer dizer na linguagem audiovisual ao processo de dividir as cenas de um roteiro em planos, como parte do
planejamento. Você assiste tudo, e marca as partes que vai usar.

188
de equipamentos de luz, dos mais caros até os mais baratos. Hoje em dia, tem se usado muito as
luzes de LED, que para um documentário é um elemento prático, pequeno e não esquenta, como
as outras luzes. 
Sobre o comportamento no campo de filmagem, Carol afirma que “o comportamento de
quem está filmando precisa ser de respeito a quem está dispondo do tempo e da própria história de
vida. O cinema é feito de relações humanas, em primeiro lugar”. Sobre como se sentiu nas filmagens,
Carol Covre disse: “feliz pela oportunidade de ouvir tantos saberes, de pessoas tão simples e tão
ricas em memórias, tradições e afeto pela Vila de Itaúnas. Muito grata por poder aprender com a
experiência da Maria, em toda sua trajetória de mulher e pesquisadora”.
 Carol Covre (2016, comunicação pessoal) ainda completou sobre a edição e suas etapas:

A primeira etapa da edição se chama “decupagem”, que é momento de assistir e transcrever


todo material filmado. Esse processo é fundamental para a equipe entender o que tem em
mãos para se fazer o filme. Depois disso, cria-se um roteiro de montagem, em que se pensa
os assuntos abordados e a ordem em que eles vão aparecer no filme. Nem tudo que é filmado
entra no resultado final.

Quadro 1 – Ficha técnica do filme


Link do filme: https://youtu.be/CLP5psDcBpg;
Link do Teaser: https://www.youtube.com/watch?v=tUOEhLHmYqE;
Sinopse: Homens, Deuses e Santos na Vila de Itaúnas” é um etnodocumentário realizado no norte do estado do
Espírito Santo, na pequena Vila de Itaúnas. Sua população tradicional de pescadores artesanais guarda forte traço
afrodescendente em seu modo de vida. Seus habitantes narram sobre suas raízes ligadas ao Ticumbi e Arte de Curar,
suas tradições, fé e devoção a São Benedito e a São Sebastião.
Direção: Maria Aparecida de Sá Xavier
Produção Executiva: Lab. Muy Arte e Cultura Digital
Direção de Produção: Carol Covre
Câmera: Carol Covre e Hugo Reis
Som direto: Hugo Reis
Edição: Carol Covre
Edição de Som e Mixagem: Joceles Bicalho
Imagem: Cor
Formato de Exibição: Digital

O quadro acima é a demonstração de uma ficha técnica do filme, como aparece nas exibições.
Esta é necessária quando se pretende concorrer a um festival de cinema. Consideramos importante
que pessoas que não sejam do audiovisual conheçam todo o processo, para que possa inspirar e
reproduzir.

189
Devolução para a comunidade

Consideramos de extrema relevância a devolução do filme para a comunidade, principalmente


na proposta de uma Geografia compartilhada, posto que esse filme foi realizado com recurso
público e ao público deve ser devolvido. Nesse caso, nossa devolução ocorreu principalmente para
os agentes sociais (atores) que participaram das filmagens. Demos a eles um DVD das gravações,
custeado com doações de alguns amigos e amigos da Vila de Itaúnas, e também com recurso próprio
desta pesquisadora.
Uma pequena parte dos DVDs foi entregue por Karina Furieri, outros por mim e Carol
Covre em junho de 2016. Para toda a comunidade, a devolução ocorreu no dia 11 de junho de 2016,
quando exibimos (Figura 1) na parede lateral da Igreja matriz, na Vila de Itaúnas, o documentário
em 3 (três) sessões13 sequenciadas. A exibição trouxe um ótimo resultado, dado que gerou muita
emoção por parte dos participantes do documentário, assim como pelos moradores e alguns turistas.

Figura 1 – Cartaz da estreia do documentário

Fonte: Carol Covre, 2016.

Reflexões

Não há uma conclusão do processo, pois um filme é uma obra de arte que sensibiliza pessoas.
Não obstante, importa deixar algumas reflexões como provocações potenciais. Um documentário,
que é também um filme artístico, pode ser parte da produção de um trabalho de graduação, pós-
13 Com ajuda do PEI, dos comunitários, principalmente Gabriela Bernardes, como também da diretora da Escola Benônio,
Veratriz Souto, que nos cedeu gentilmente as cadeiras e as caixas de som.

190
graduação e pós-doutorado? Sim, nós mostramos o fato. Tivemos um percurso dificultoso, com
atrasos por parte do Proex da UFES por ser uma proposta inovadora à época, com desconhecimento
dos tramites (era tudo novidade naquele momento). Entretanto, apesar disso tudo, a insistência
possibilitou que o projeto acontecesse.
É possível afirmar que a proposta de apresentar o espaço em movimento, numa perspectiva da
geografia humanística fenomenológica – Cinema, foi atingido. A Paisagem experienciada na tomada
da câmera, tanto de quem conduz a direção, quanto de quem filma, manuseia a câmera, “falam”
através da narrativa fílmica. O documentarista Fernão Pessoa Ramos, no trabalho intitulado: “Mas
afinal...O que é um documentário?”, informa-nos que este não pode ser visto como representação
inocente da realidade, posto que todas as narrativas com imagens possuem estatuto enunciativo – o
que torna similar ambos os fatores, sejam ou não ficcionais.
Nesse sentido, ocorreu uma preocupação também com o sensório deste documentário, com
a finalidade de trazer os expectadores(as) para dentro daquilo que experienciamos do espaço-tempo
na Vila. Pensamos como o autor supracitado: esta é a potência agenciadora que o cinema pode nos
proporcionar.
Também, foi importante não ter um roteiro fixo a ser seguido e fazer uma filmagem direta,
contando com o apoio dos comunitários. Assim, apenas marcamos a entrevista e permitimos que o
entrevistado falasse com pequenas provocações pontuais. A fonte inspiradora desta abordagem foi
o diretor Fernando Faro.14
O tom e o ritmo foi o do entrevistado-interlocutor, num diálogo com a direção e a câmera.
Nossa crítica é que, num documentário, os roteiros não flexíveis engessam o trabalho, não permitindo
que a novidade e a surpresa se revelem – algo ocorrido muitas vezes neste etnodoc.
Porfim, este documentário curta-metragem, de 27 minutos, apresenta-se de forma Narrativa,
Poética e Participativa, de acordo com Nichols (2005). Por isso, agradecemos a todos os envolvidos,
direta ou indiretamente, na sua construção.

14 Famoso por entrevistar artistas MPB na TV Brasil.

191
Referências

LUCINDA, Elisa. A fúria da beleza. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas, SP: Editora Papirus, 2005.

PENAFRIA, Manuela. O documentarismo do Cinema. In: Biblioteca on-line Ciências da


Comunicação. Disponível em: www.bocc.ubi.pt. Acesso em: abr. 2019.

RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... o que é mesmo documentário? São Paulo: Senac/SP,
2008.

SANTOS, Boaventura Sousa. O Fim do Império Cognitivo: a afirmação das epistemologias do


Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

XAVIER, Maria A. de Sá. Os festejos devotos do Ticumbi como uma narrativa identitária territorial
na paisagem da Vila de Itaúnas, ES. Revista Geograficidade, v.5, Número Especial, p. 190- 207,
2015.

XAVIER, Maria A. de Sá. Relatório Técnico-Científico Final do Projeto Narradoc 6640/2015:


Homens, deuses e santos nos rituais do Ticumbi e arte de curar como resistência do lugar: uma
narrativa de paisagem em movimento. Programa de Pós-graduação em Geografia, UFES, Vitória,
ES, 2016.

192
PARTE 3

TERRITORIALIDADES PLURAIS
NA ARTE LATINO-AMERICANA
UMA EXPERIÊNCIA DE PAISAGEM: INTERVENÇÕES URBANAS COMO A
EXPRESSÃO DE UMA CONDIÇÃO RIZOMÁTICA

Pablo Raniere Medeiros da Costa


pabloranmed@yahoo.com.br

Introdução

Em uma de suas palestras na Universidade Federal do Paraná, em meados da década de 1980,


Paulo Leminski, ao relatar sua experiência com o grafite, o faz relacionando-o a uma experiência
poética, como algo que vem de dentro das pessoas, e adquire a consistência de um grafite. Ao
evidenciar o caráter criminoso do ato de grafitar, o poeta revela como a própria cidade moderna, se
baseando no panóptico de Michel Foucault (2014), que pode ser compreendida como uma prisão,
uma máquina, presa a regras e horários para o seu funcionamento, e o grafite, portanto, seria uma
expressão marginal que atrapalha seu funcionamento, na medida em que envolve a danificação da
propriedade.
Muito embora, seria realmente esse o fator determinante para enquadrar o grafite na época,
e hoje, à pichação como expressões marginais? Como na época ainda não havia distinção entre
pichação e grafite, hoje consolidada no Brasil, inclusive do ponto de vista legal, Leminski dá uma
série de exemplos em que o grafite – na sua forma textual – expressava um caráter poético, pessoal
e existencial.
Tomando o caráter marginal como premissa das intervenções urbanas consideradas, o grafite
aparece junto a uma série de manifestações, com as quais mantém aspectos em comum, como
o fato de serem práticas que transgridem o espaço, mas que não possuem um caráter artístico,
poético ou contestatório, mas que é vinculada ao mercado, a publicidade de produtos e serviços.
A maneira como essas diferenças se expressam na paisagem, a partir da diversidade de tipos de
intervenção, como a pichação, a pixação, o grafite, as faixas, os lambe-lambes, as placas, revelam
distintas espacialidades na cidade.
O espaço público enquanto campo de atuação, em que essas intervenções acionam diferentes
pontos de vista, relaciona-se a diferentes espacialidades, as quais nos fornecem os indícios de quais
linhas do rizoma delineiam.

A expressão de uma condição rizomática

Oriundo da botânica, ramo da biologia que estuda as plantas, o termo rizoma se refere a
um tipo de caule subterrâneo que se estende horizontalmente, cujos brotos podem se ramificar
194
em qualquer ponto, transformando-se em um bulbo ou em um tubérculo. Na filosofia, essas
características do rizoma da botânica potencializam a expressão de um pensamento que não se define
por verticalidades, em que sua origem é de fácil identificação, mas horizontalizado, estabelecendo
sempre novos pontos de conexão.
Em Mil platôs, Deleuze e Guattari (2011), ao desenvolverem o conceito de rizoma, o fazem
estabelecendo relações com a cartografia, considerando-a como a forma de representação capaz de
exprimir os princípios de conexão e heterogeneidade, multiplicidade e ruptura, pois diferente da
imagem, desenho ou fotografia, isto é, do decalque, o rizoma se refere a um mapa que deve ser
produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível e, portanto, modificável, com
múltiplas entradas e saídas, cujas linhas de fuga escapam de uma tentativa totalizadora da realidade,
apontando sempre novos caminhos, para diferentes direções.
Nessa perspectiva, o mapa não é apreendido – apenas – como instrumento de localização,
mas como uma maneira de entrever singularidades, que aparecerão para aqueles que não procuram
no mundo enxergar dualidades e contradições, reproduzindo e reiterando determinada teoria ou
ponto de vista fixo, mas que se propõem a manter seguindo num constante processo de descoberta,
afastando-se de uma abordagem que separa sujeito/objeto e se aproxima da imanência (DELEUZE
e GUATTARI, 2010).
Aproxima-se, portanto, do indivisível, absoluto ilimitado, informe, que não é nem superfície,
nem volume, mas que segundo Deleuze e Guattari (1992, p. 52), comporta-se sempre como um
fractal, que é o plano de imanência compreendido enquanto a imagem do pensamento. A exploração
de um plano de imanência – horizonte de acontecimentos – vai se dar a partir de uma experimentação
com os conceitos a fim de encontrar seus limites quando colocados em prática, isto é, quando o
remetemos a um ou mais problemas, sem os quais não teria sentido.
É justamente o princípio caótico que define o plano de imanência, que “caotiza, e desfaz no
infinito toda consistência” (DELEUZE, 1992, p. 59), e fundamenta a experiência de paisagem que
ora apresentamos, entrevendo o movimento das coisas, do mundo, do real, da paisagem. A fim de
perceber as coisas pelo meio e não de cima para baixo ou da esquerda para a direita, Gilles Deleuze
e Félix Guattari (2016; 2011; 2010) desenvolveram sua filosofia em torno do rizoma enquanto um
sistema acentrado, não hierárquico e não significante definido por linhas.
Para caracterizá-lo – mas não somente, como destacamos a seguir – enquanto conceito capaz
de atingir a multiplicidade, contrapondo-se aos sistemas centrados, hierárquicos, com ligações
preestabelecidas ao pensamento arbóreo, baseado na raiz pivotante ou raiz dicotômica (DELEUZE
e GUATTARI, 2016, p. 14).

195
Espacialidade como abordagem explicativa

Em Pelo Espaço, Doreen Massey desenvolve uma reflexão acerca da espacialidade, afastando
a premissa do tempo como o mais importante e determinante para explicar as singularidades no
mundo, por assim dizer, do próprio espaço, que vem sendo submetido à ideia de estágios, avanços
e retrocessos. Assim, “associada a uma totalidade, esta cosmologia de ‘única narrativa’ oblitera as
multiplicidades, as heterogeneidades contemporâneas do espaço, reduz coexistências simultâneas a
um lugar na fila da história” (MASSEY, 2015, p. 24).
Desta forma, tem-se sempre o tempo como aquilo que acaba por não definir, suplantar o
espaço, apreendido ora como desenvolvido e/ou rápido, ora como subdesenvolvido e/ou lento
(MASSEY, 1991; 2004; 2008; 2015). Tomando um sentido contrário a essa perspectiva, a autora
defende uma abordagem alternativa de espaço, fundamentada na ideia de espacialidade. Ela o faz a
partir de uma filosofia que busca desconstruir estruturas e raciocínios binários, arbóreos, e apontar
para a imanência, uma filosofia que “é devir, não história, […] coexistência de planos, não sucessão
de sistemas” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 78).
Para tanto, a autora estabelece o espaço como produto de inter-relações, esfera da possibilidade
da existência da multiplicidade, estando sempre em construção, nunca fechado, mas em um
constante devir. A partir da ideia de espacialidade, tomamos o problema de modo a superar o que
Soja (1993) descreve como “duplo vínculo” na Geografia, que teria, por um lado, o que ele chama
de ilusão da opacidade, e do outro, a ilusão da transparência.
Sendo a primeira, uma abordagem de inspiração eminentemente materialista, a qual irá
valorizar a dimensão material acima de tudo, recaindo, por vezes, numa abordagem extremamente
economicista, em que os fenômenos vão responder a um “motor único”, e a segunda, baseada na
ideação e na representação, em que o papel do texto, do discurso, por exemplo, acaba se sobrepondo
à observação e a análise situada (GOMES, 2013, p. 199).
Em meio a isso surgem “saídas” intermediárias ou “fronteiriças” (HAESBAERT, 2012, p. 28)
em que “romper com esse duplo vínculo implica uma luta ontológica pela restauração da espacialidade
existencial significativa do ser e da consciência humana […] que o espaço tenha importância desde
o mais remoto começo” (SOJA, 1993, p. 15), na medida em que é tanto uma realidade concreta
quanto ele mesmo a representação significativa que o sujeito tem ou faz dele.

O caráter da visibilidade do espaço público

Enquanto campo de práticas bastante variadas, o espaço público é lugar privilegiado de


exposição. Seu atributo da visibilidade é “central na vida social moderna, e se ativa e se exerce
pela existência dos diferentes espaços públicos” (GOMES, 2013a, p. 23). Ao discutir o papel da
196
visibilidade como elemento central na vida social moderna, Paulo César da Costa Gomes (2013a)
faz uso de três categorias: ponto de vista, composição e exposição. Como ponto de vista, o autor
entende como a posição no espaço que nos permitem ver certas coisas, um privilégio do olhar.
Ainda, ressalta que haverá sempre uma relação entre aquilo que é visto e aquilo que não
é contemplado, na medida em que algo que vemos faz parte de um conjunto maior que nossa
visão não abarca, o qual se relaciona com uma espacialidade que acreditamos refletir uma condição
rizomática. A composição, relacionada com a ideia de paisagem, é definida como o conjunto de
formas, cores ou coisas que configuram de maneira particular e original a paisagem, com o intuito
de “compreender sua espacialidade, o lugar dos elementos nesse conjunto” (GOMES, 2013a, p. 22),
isto é, o modo como se apresentam.
No caso da exposição, como o próprio termo adianta, trata-se de uma posição de exterioridade
do fenômeno, em que o espaço público pode ser apontado como principal e primitivo lugar de
exposição. À medida que o tempo passa, o papel da exposição se torna cada vez mais relevante na
divulgação das práticas sociais, cujas principais implicações são a adequação e a classificação do que
se deve, e não ser mostrado.
É pertinente levar em consideração o significado dos elementos presentes nesse conjunto por
meio de uma leitura da paisagem, de modo que “não se trata, portanto, de negar o visível, mas de lhe
atribuir, além da experiência sensível que dele se pode fazer, um outro estatuto, uma outra função:
o visível revela algo” (BESSE, 2014, p. 64).
Nesse sentido, a visibilidade será atingida levando em consideração três premissas. Em
primeiro lugar, considerar o significado gerado pela interação entre o fenômeno com o lugar,
significação produzida pela posição “dentro de um contexto espacial no qual se inscreve o fenômeno”
(GOMES, 2013a, p.37), ou seja, da relação de uma narrativa particular com o lugar de exposição.
Em segundo lugar, a possibilidade que a morfologia garantir a convergência de olhares e
atenção e, por fim, da garantia de um público ser conformado por observadores sensíveis aos novos
sentidos gerados pela relação do fenômeno com o lugar. Essas proposições fornecem os principais
meios que fazem com que os fenômenos possuam visibilidade na cidade: inserção em uma narrativa,
a posição morfológica de exterioridade e a apresentação ao público.
Essas dimensões do espaço são centrais ao discutirmos o que leva faixas, placas, pinturas
de serviços, estênceis, lambe-lambes, pichações, grafites a se manifestarem de maneira diferente,
de acordo não somente do lugar de exposição, mas em razão da diversidade de pontos de vista
espalhados pelas cidades. Sendo importante, assim, levar em consideração o público a que se destina
e o regime de visibilidade que está associado, tendo em vista que “essas informações se revelam
à medida que se desvenda o código pelo qual elas se exprimem, ou seja, as regras que as erigem”
(GOMES e RIBEIRO, 2013b, p. 29).

197
Estas, naturalmente mudam não só de acordo com quem produz e age no espaço público,
mas também pela definição do lugar de atuação e do que se quer tornar público, traçando linhas
diferentes do rizoma. Podemos desta feita, acionar, a partir do princípio da visibilidade inerente ao
espaço público, da diversidade de dispositivos espaciais associados a ele, a multiplicidade, tendo em
vista as tipologias das intervenções urbanas. O modo como os elementos visuais são empregados,
compõem a paisagem urbana, cujo conjunto de intervenções revela um complexo campo de
agenciamentos.

O caráter indiciativo da paisagem

A diversidade de perspectivas engendradas pelas expressões visuais transgressoras pode ser


tomada como a expressão da condição rizomática, na medida em que se por um lado ela é previsível,
contável, como as linhas de segmentaridade, por outro, corresponde à ruptura, é imprevisível e
cria o novo, como as linhas de fuga. A percepção que temos dessas intervenções se relaciona com
o modo em que experenciamos a paisagem de uma cidade, o que percebemos e imaginamos dela.
As intervenções, desse modo, produzem subjetividades e afetos, elas participam da paisagem,
influenciando comportamentos, e o nosso próprio imaginário sobre ela (Figura 1). A diversidade
no modo em que nos movemos no espaço da cidade pode revelar esse outro lado do poder vidente,
aquele que se refere ao observador, pois “ele que olha todas as coisas, pode também se olhar, e
reconhecer no que vê então o ‘outro lado’ de seu poder vidente” (MERLEAU-PONTY, 2004, p.
17).

Figura 1 – Estêncil do rosto de Frida Kahlo em uma passarela da cidade de Natal-RN

Fonte: Acervo próprio, Natal, 2021.


198
Apesar do ponto em comum entre todas as intervenções urbanas ser o fato de estarem
vinculadas a uma prática ilegal/irregular, acreditamos que traçam linhas diferentes do rizoma ao
reproduzirem, por um lado, uma identidade dominante na paisagem e, por outro, uma paisagem
insólita, enigmática, permeada pelo desconhecido. Portanto, são tratadas de maneira diferente, tanto
do ponto de vista do imaginário associado a elas, bem como do ponto de vista legal, revelando
preconceito e discriminação, sobretudo com a prática da pichação, ainda criminalizada.
Intervenção que numa perspectiva desenvolvimentista é tratada como a expressão da
marginalidade, criminalidade, e, porque não dizer também, de sinal de atraso e subdesenvolvimento.
Tendo que ser, portanto, combatida, já que não representa, por exemplo, a modernidade, mas sim
retrocesso e atraso. Como objetivo a visibilidade, buscando atingir o maior número de pessoas, as
intervenções urbanas que exprimem linhas de segmentaridade acionam pontos de vista cotidianos e
corriqueiros em que há a garantia do olhar (Figura 2).
Ao ser promovido nos mesmos lugares, sempre com a mesma disposição, sua visualização
se dá sem muito esforço do observador que se desloca pela cidade diariamente. É possível, dessa
forma, estabelecer uma relação entre o tipo de intervenção com o modo em que se apresenta em
consonância com o contexto espacial em que está envolvido, levando em consideração a localização,
o modo que se oferece ao público, isto é, os meios físicos que são apropriados para sua difusão. Sendo
possível, assim, enxergar de que maneira o espaço é apropriado de forma seletiva, dependendo do
tipo de intervenção presente nele.

Figura 2 – Lambe-lambe apregoado em frente ao Natal Shopping veiculando


serviço financeiro

Fonte: Acervo próprio, Natal, 2021.

199
A previsibilidade do encontro com as intervenções urbanas que delineiam linhas de
segmentaridade está ligada com a diversidade na cidade, que podemos chamar de espaços da
visibilidade, isto é, aqueles em que a visibilidade da intervenção é garantida. As expressões visuais,
assim, permitem vislumbrar o espaço como aberto, como dimensão que abarca a diversidade, a qual
está diretamente ligada à pluralidade de olhares e perspectivas.
Isso resulta, por sua vez, na manifestação de uma cidade cada vez mais polifônica, cuja
comunicação urbana compara-se a um “coro que canta com uma multiplicidade de vozes autônomas
que se cruzam, relacionam-se, sobrepõem-se umas às outras, isolam-se ou se contrastam”
(CANEVACCI, 2004, p. 17). Essa sobreposição de intervenções acaba resultando numa paisagem
cada vez mais confusa e fatigante de se observar (Figura 3).

Figura 3 – Sobreposição de intervenções urbanas em parada de ônibus no


bairro do Alecrim, Natal

Fonte: Acervo próprio, Natal, 2021.

Por outro lado, as intervenções urbanas que delineiam linhas de fuga, acionam outros pontos de
vista na cidade, os quais são não apenas inéditos, mas inesperados. São capazes de romper, desse modo,
com uma paisagem cada vez mais homogênea, sendo a expressão da criatividade e da subjetividade.
A diversidade de perspectivas engendradas por elas é a expressão da condição rizomática, na medida
em que se por um lado existe um tipo de intervenção que é previsível, contável, que segmentariza,
por outro, existem aquelas que correspondem à ruptura, são imprevisíveis (Figura 4) e criam o
novo.

200
Figura 4 – Pixação em outdoor da Prefeitura de Natal, localizado no viaduto do 4º centenário

Fonte: Acervo próprio, Natal, 2021.

O tipo de intervenção, sua mensagem, sua intenção, o público que deseja atingir, estão
associados a uma determinada espacialidade, a qual compõe a paisagem da cidade, revelando o
caráter aberto do espaço, bem como a condição rizomática na qual as intervenções são a expressão da
multiplicidade. A diversidade no modo em que nos movemos no espaço da cidade pode revelar esse
outro lado do poder vidente, que se refere ao observador, pois “ele que olha todas as coisas, pode
também se olhar, e reconhecer no que vê então o ‘outro lado’ de seu poder vidente” (MERLEAU-
PONTY, 2004, p. 17), sugerindo a “existência coetânea de uma pluralidade de trajetórias, uma
simultaneidade de estórias-até-agora.” (MASSEY, 2015, p. 33).

Considerações finais

Essa pluralidade de trajetórias se reflete na diversidade de intervenções que podemos encontrar


ao se deslocar nas cidades. Marcada pela contravenção, o espaço da paisagem é rizomático, posto
que é, sobretudo, indiciativo, e não taxativo. Por mais que as linhas do rizoma não possuam uma
direção clara e definida, constituindo-se por uma circulação de estados, segundo Deleuze e Guattari
(2016; 2018) todo rizoma compreende linhas de segmentaridade, a partir das quais está estratificado,
territorializado, organizado, significado, atribuído, e linhas de fuga ou de desterritorialização, por
meio das quais se escapa sem cessar.
É possível, assim, distinguir na paisagem, à luz da condição rizomática que a envolve, intervenções
urbanas que estabelecem linhas de segmentaridade e outras linhas de fuga de desterritorialização.
Essa paisagem, portanto, fundamentada no movimento, no itinerante, é constitutiva do espaço,
produtiva, experimental e produz um conhecimento corporificado (MASSEY, 2015).

201
Contrapondo-se, desta feita, a uma paisagem entendida enquanto uma representação
mimética do espaço, como um retrato fiel de uma realidade concreta e objetiva. Por ser um conceito
marcado pela ambiguidade, apreender paisagem apenas como tudo o que a vista alcança, cujo lugar é
cartografado e objetivamente localizado é compreender apenas um lado de um conceito que vai muito
além do que se convenceu conceber como expressão visível da realidade concreta, compreendida,
por exemplo, ora como uma unidade paisagística, ora como tudo o que a visão abarca.

Referências

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urbana. – 2. ed. – São Paulo: Studio Nobel, 2004.

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2014.

DELEUZE, Guilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. 2ª ed. São
Paulo: Editora 34, 2011.

DELEUZE, Guilles & GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?. Tradução de Bento Prado Jr. &
Alberto Alonso Munoz] – 2.ed. – Rio de Janeiro: Ed.34, 2010.

DELEUZE, Guilles & GUATTARI, Félix. Rizoma: introducción. 9ª. Reimpressão. Pré-textos,
2016.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete.


42ª. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

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visibilidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013a. 

GOMES, Paulo César da Costa; RIBEIRO, Letícia Parente. A produção de imagens para a
pesquisa em geografia. Espaço e cultura. Rio de Janeiro: UFRJ, n°33, p. 27-42, jan/jun, 2013b. 

HAESBAERT, Rogério. Hibridismo cultural, “antropofagia” identitária e transterritorialidade. In:


BARTHE-DELOIZY, F.; SERPA, A. (Orgs.). Visões do Brasil: estudos culturais em Geografia
[online]. Salvador: EDUFBA; Edições L’Harmattan, 2012.

MASSEY, Doreen. Filosofia e política da espacialidade: algumas considerações. Geographia,


ano 6, nº 12, 2004.

202
MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Tradução de Hilda Pareto
Maciel e Rogério Haesbaert. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Tradução de Hilda Pareto
Maciel e Rogério Haesbaert. 3ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Tradução de Hilda Pareto
Maciel e Rogério Haesbaert. 5ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015.

MASSEY, Doreen. A Global Sense of Place. Marxism Today. v.38, 1991.

SOJA, Edward W. e RIBEIRO, Vera. Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria


social crítica. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1993.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito: seguido de a linguagem indireta e as vezes do


silêncio e a dúvida de Cézanne. São Paulo: Cosac e Naify, 2004.

203
O RAP COMO FERRAMENTA DE COMPREENSÃO
DO ESPAÇO LATINO-AMERICANO

Léon Denis Ferreira Xavier


leon.profgeografia@gmail.com

Guilherme da Silva Borges


guilhermeborgesdp@gmail.com

Introdução

Sabe-se que é possível buscar uma compreensão do espaço por meio da observação de
determinadas expressões artísticas, como a música, a pintura ou até mesmo a literatura, como
colocado por Collot (2012). Assim, considerando a música como uma representação do espaço,
como afirmam Xavier, Silva e Cavalcante (2020), pode-se apreender que ela é uma maneira com a
qual os seus autores expressam suas maneiras de perceber o mundo, pois, assim como afirma Collot
(2012) a partir de Ferré (1946, p. 9) sobre literatura, “as obras não nascem somente no tempo, mas
também nos lugares”, ou seja não só a experiência temporal está inserida na música, mas também a
espacialidade do autor.
Ainda a partir de Collot (2012) temos que as percepções do autor da obra literária, inclusive
sobre o espaço, estão inseridas nela como uma forma de “se projetar no espaço” (COLLOT, 2012, p.
28). Assim, a música, que não deixa de ser uma forma literária pela proximidade a poesia, também é
passível de ser compreendida e analisada numa visão geográfica, como deixa claro Panitz (2012, p. 6)
ao afirmar que se trata de “um elemento que vai envolver produção do espaço, o uso do território,
criação de identidades, territorialidades, regionalidades e representações do espaço”.
E é através de uma análise musical que o presente trabalho busca encontrar as significações
do espaço no rap latino-americano. Assim, pretende-se realizar uma abordagem fenomenológica de
compreensão dos processos relacionados ao ser e suas experiências, relacionando-as ao espaço por
meio do lugar e da identidade enquanto categorias de análise. Entretanto, é importante ressaltar que
este trabalho se trata de uma pesquisa em desenvolvimento, portanto, atenta-se principalmente às
discussões teóricas que permitem uma aproximação entre a música, focando-se na realidade do rap
e os conceitos utilizados.
O projeto propõe-se a identificar as possibilidades de leitura do espaço por meio do rap na
realidade de três países, sendo eles Brasil, Colômbia e México, utilizando-se as canções de, pelo
menos, um MC ou grupo de cada. Desta maneira conhecer um pouco da história do rap, enquanto

204
um dos elementos do hip-hop, e sua chegada na América Latina, especialmente nos países em
questão, é essencial.

Surgimento do Hip-Hop e seu caminho para a América Latina

O rap é um gênero musical oriundo dos Estados Unidos, por volta dos anos 1970, como
um elemento do Movimento Hip-Hop, junto do graffiti e do break, que nasce como uma maneira
de resistência às opressões impostas em um contexto de diversas problemáticas sociais como a
desigualdade, a violência e o racismo, que estão associadas a forma como o Estado e o grande Capital
atuavam nos guetos estadunidenses, assim como afirma Rose (1997).
Xavier, Silva e Cavalcante (2020) colocam que o Hip-Hop tem seu início, através da figura de
Afrika Bambaata, a partir da atuação de negros e latinos que buscavam uma alternativa à violência
das gangues e como uma maneira de se divertir em meio a tantos problemas, como posto por Piskor
(2016).
A participação latina se destaca, em termos históricos e de origem do movimento, ao
percebermos as influências da cultura jamaicana, como afirmado no programa USP – Especiais Rap
(2019), justamente nas figuras do DJ Kool Herc e sua irmã Cindy Campbell, jamaicanos que são
considerados os pais do Hip-Hop por terem utilizado do Dub e as práticas de Sound System para os
eventos em Nova Iorque (TURINO e FARIA, 2018).
Por conta de suas origens, assim como o movimento Hip-Hop como um todo, com o passar
do tempo, o rap acabou por desenvolver um papel crítico e politizado que passou a fazer parte da
essência do gênero musical. Desta forma, podemos identificar nas letras das músicas denúncias a
diversas problemáticas, como o racismo, a desigualdade social e a violência. Dentre as características
das músicas, destacam-se as críticas ao sistema capitalista e ao Estado, por serem responsabilizados
pela existência das problemáticas denunciadas (ROSE, 1997), não só nos Estados Unidos.
Este posicionamento do rap, carregado de reflexões e críticas sobre a sociedade, faz com que
o rap seja a “expressão sonora da realidade da periferia” (SOUZA; FILHO; ARALDI, 2008, p. 10).
Desta maneira, associando a fala de Plácido ao podcast da Universidade de São Paulo Momento
Cidade #43 (2021) sobre a possibilidade da música, em especial do rap de ser uma decodificação
da realidade espacial, podemos chegar à viabilidade do rap ser um meio que pode ser utilizado para
entender a maneira que se dão as relações sociais nos espaços periféricos, compreendendo também
a maneira como este se encontra organizado.
Além disso, como coloca Xavier (2019), tem-se a importância de estar atento as expressões
marginalizadas e oriundas da periferia pois podem nos indicar problemas sociais, mas também
reconstruir nossas percepções do mundo. Conceição (2018, p. 7), ao discutir sobre o rap e a

205
forma como pode ser compreendido, afirma seu entendimento “por meio de múltiplas lentes:
como um instrumento potente de insurgência local e reverberação global”, ou seja, reconhece a
pontualidade da origem da expressão, geralmente relacionada a um espaço imediato, mas que tem
uma potencialidade ser compreendido nos mais diversos locais, devido as condições semelhantes
das periferias pelo mundo.
Assim, beneficiando-se dos fenômenos da globalização, muitas vezes sem perder sua essência,
o rap consegue chegar a uma grande quantidade de lugares, se caracterizando como “uma cultura
local e ao mesmo tempo global, que posteriormente se estabeleceria nos bairros pobres das grandes
cidades do mundo” (CONCEIÇÃO, 2018 p. 4). Assim, observando como se deu essa difusão na
América Latina, de maneira geral temos o movimento hip-hop:

Surge no período pós-ditadura militar a partir da década de 1980. É um momento marcado


por lutas e re-definições das questões culturais, sociais e políticas, em países como Chile,
Argentina, Brasil, Uruguai, Peru, Colômbia, Venezuela, Equador entre outros. (SOUZA;
JESUS; SILVA, 2014, p. 13).

Este é um ponto de encontro entre o histórico dos países, em que o rap, enquanto expressão,
assume uma posição de destaque para o entendimento na forma como os jovens destes países podem
estar se relacionando entre si e com o espaço. Assim, compreende-se que o rap tem sua origem, nos
países estudados, em cenários sociais relativamente semelhantes, apesar de especificidades locais no
surgimento em cada um, pois ao entendê-lo, vemos que emerge, como colocado por Souza, Jesus
e Silva (2014), baseados em Rose (1997), através de trocas culturais por meio de diálogos internos e
externos, relacionando experiências e identidades, oferecendo, ainda, uma crítica social.
De maneira geral, o primeiro elemento do Hip-Hop que chega nos países latino-americanos
é o break, devido a sua fácil difusão por não necessitar conhecimentos técnicos ou de outro idioma
e filmes que tinham a dança como temática, dentre eles é possível citar Beat Street e FlashDance
(CONCEIÇÃO e SANTOS, 2010; FERNANDES, 2014).
Falando especificamente da Colômbia, com base em Dennis (2012), a teoria mais aceita da
chegada no país é a que se deu pelo Porto de Buenaventura, e consequentemente na cidade de
Cali, por meio dos passageiros que iam e voltavam dos Estados Unidos e traziam consigo alguns
produtos do país, como revistas, fitas de filme e de música.
O autor traz ainda duas outras possibilidades: da entrada também pelos portos de Barranquilla
e Cartagena, e a influência do break por meio do clipe de Thriller, de Michael Jackson. O autor
coloca ainda que com a difusão do rap, as temáticas se expandem e alcançam novas dimensões e
públicos, e no país teve relação com a elaboração da Constituição do país, possibilitando a formação
de um discurso político e crítico.

206
Além disso, Dennis (2012, p. 46) afirma que o Hip-Hop colombiano é conhecido “por seu
discurso contra-hegemônico, que tende a ser de esquerda, anti-oligárquico, anti-status quo, anti-
establishment, anticorrupção e antimperialista”. Por fim, Santos (2017) afirma que não é possível
pensar o Hip-Hop colombiano, bem como o próprio país, sem considerar a guerra que o país
enfrenta há mais de 50 anos.
Já no México, Gudiño (2018) afirma que o Hip-Hop tem sua origem mais associada à cidade
de Monterrey, sendo o berço do desenvolvimento das principais variações que existem do rap
mexicano. Segundo o autor, essa chegada está relacionada aos migrantes entre seu país e os Estados
Unidos, e afirma que a chegada em território mexicano foi bem no início do movimento, pois
haviam “migrantes presentes en las escenas fundantes, que retomaran algo de su cultura y que, al
retornar a México, la compartieran con sus pares mexicanos” (GUDIÑO, 2018, p. 63).
Camargos (2019) divide o Hip-Hop mexicano em quatro momentos que influenciaram sua
forma atual, sendo eles: a) a apropriação por conta dos migrantes, entre 1985-1989; b) a consolidação
do rap, marcada pelo surgimentos dos primeiros grupos e coletivos que performavam os variados
elementos do Hip-Hop, e a formação de uma identidade do gênero no país, o rap chicano, entre
1990 e 1999; c) um auge da expressão do rap, marcado pela quantidade de grupos de rap e pela
diversidade cultural que se desenvolve a partir dele, entre 2000 e 2005; e d) um momento de crise
das práticas públicas do rap, principalmente devido ao aumento da violência, entre 2006 e 2013.
Assim como o próprio autor afirma, reconhecer estes momentos não é o ponto final da
história do Hip-Hop no país, mas o pontapé inicial para estudá-lo. No Brasil, o break chega por
volta dos anos 80 (CONCEIÇÃO e SANTOS, 2010), especialmente nas cidades de Rio de Janeiro
e São Paulo, apesar da existência dos Bailes Blacks em um período anterior (MARQUES, 2013).
Devido à estação São Bento, o primeiro grande ponto de encontro dos dançarinos, e onde
alguns dos principais nomes do rap no país se encontraram, como Thaíde e DJ Hum, considera-se
São Paulo como o berço dessa cultura no país. Essas chegadas nestas cidades se devem principalmente
por serem o grande polo comercial do país, onde de fato ocorriam a introdução de produtos do
exterior e que só depois seriam levados para outras localidades.
Quanto à criticidade do rap brasileiro, Marques (2013) afirma que, em um primeiro momento,
não era exatamente uma característica, mas que se popularizou com Racionais MCs ao cantarem a
realidade da periferia, permitindo uma aproximação com o público-alvo. Assim, percebe-se que, de
maneira geral, o rap surge em realidades relativamente semelhantes em países que tem um passado
muito próximo, devido aos processos de colonização, exploração e das lutas pela sua libertação e
independência (SANTOS, 2017; BATALLA, 2019), que acabam influenciando de maneira direta
ou não nas suas músicas.

207
Da música ao lugar: como o rap nos ajuda a compreender o espaço?

Sendo o rap um gênero musical, pretende-se a discussão de como a música está relacionada
com a geografia, permitindo a possibilidade de compreender o espaço. Soma-se também ao debate
algumas perspectivas relacionadas ao lugar e à identidade enquanto categorias de análise que
encaminham a pesquisa. Primeiro, entende-se que a arte, portanto a música, é uma alternativa
metodológica às práticas hegemônicas de pesquisa tradicional por buscar uma forma de compreensão
da realidade por meio das perspectivas imaginativas e emocionais (EISNER, 2006). Portanto, a
pesquisa, que leva em consideração o lugar, tem a possibilidade de associar-se facilmente a arte
devido à dimensão sentimental que a categoria possui, como posto por Tuan (1983).
A música pode ser entendida como uma representação ou decodificação da realidade espacial
(XAVIER, 2019; MOMENTO CIDADE #43, 2021) e isto se deve ao fato de que os humanos
sempre buscaram formas de representar seu caminho no espaço, seja utilizando-se de mapas ou de
obras de arte, carregando assim a compreensão do mundo dos seus autores, bem como seus valores,
(ROCHA NETO e LIMA, 2015; XAVIER; SILVA; CAVALCANTE, 2020). Esta forma de entender
o mundo que está disposta nas músicas, por exemplo, pode ser entendida através da proposição
do Gesto da Arte (MEDINA, 2016) no sentido de que ela expressa, na verdade, as concepções e
vivências de uma comunidade que acaba sendo personificada no autor.
Por fim, a proposição de Panitz (2012, p. 6) quanto à música, sendo ela um “um elemento
que vai envolver produção do espaço, o uso do território, criação de identidades, territorialidades,
regionalidades e representações do espaço” nos demonstra uma relação firme entre a geografia,
música e a perspectiva do lugar, especialmente no que diz respeito à criação de identidades. Já
pensando no rap, especificamente, Conceição (2019, p. 1) afirma que, por meio do gênero, “grupos
sociais e historicamente marginalizados afirmam sua visão de mundo, elaboram suas identidades,
pertencimentos, sociabilidades e resistência”.
Para criar as primeiras relações entre música e lugar, pensamos a partir de Carney (2007),
que nos coloca sobre a possibilidade desta de transmitir e constituir um orgulho para as pessoas
que vivem em determinados espaços, o que possibilita uma identificação com a obra e com o lugar.
Compreendendo que, assim como outros conceitos chave da geografia, o lugar trata de uma relação
social tornada espaço ou, nas palavras de Souza (2017, p. 45), “um produto das relações sociais; um
produto que ‘dialeticamente’, [...] também condiciona as relações sociais”, observamos que durante
o processo de apropriação espacial pelos indivíduos, o espaço acaba sendo produzido com base nas
interações entre as pessoas, sendo marcado por memórias, enquanto produções simbólicas, ou por
intervenções físicas, enquanto produções palpáveis.

208
Desta maneira, é importante termos conhecimento que estas interações se trata de processos e
não são inertes, sendo completamente mutáveis (MASSEY, 2000), ou seja, nem sempre a apropriação
vai se dar de maneira semelhante. Assim, estudando o lugar, à maneira de Relph (2014, p. 22),
baseando-se nas “observações particulares para esclarecer as maneiras como os seres humanos se
relacionam com o mundo”, e de Dardel (2011), a partir da Geograficidade, ou seja, da geografia que
cada indivíduo produz ainda que de maneira inconsciente, podemos compreender o espaço destas
pessoas.
É desta maneira que se propõe, por exemplo, buscar o encontro de indicativos do sentimento
de pertença, relacionado ao lugar nas músicas que são analisadas. Para fazer essa identificação, dentre
as diversas possibilidades que existem, sugere-se algumas das perspectivas sintetizadas por Relph
(2014), em seu texto “Reflexões Sobre a Emergência, Aspectos e Essência de Lugar”. Nesta pesquisa
são utilizadas duas delas: a) Sentido de Lugar, relacionando a capacidade de apreciar e apreender, as
qualidades do lugar; e b) Raízes e Enraizamentos, que se relaciona com a possibilidade de se possuir
raízes em diferentes localidades, permitindo uma compreensão transnacional da identidade.
Desta maneira, é possível “identificar os pontos geográficos de algumas faixas [...], com ênfase
no lugar, mas observando também suas representações e marcas de identidade e, em sequência,
analisar brevemente alguns destes pontos” (XAVIER; SILVA; CAVALCANTE, 2020, p. 529). A
identidade está associada com o lugar, por exemplo, na perspectiva de Monteiro (2011), que a vê
como uma dimensão individual, mas que é constituída nas relações sociais que o indivíduo possui
e prática no espaço.
Além de Monteiro, Stuart Hall (2005), afirma que a identidade se define a partir de algumas
características culturais comuns. Dentre elas, o autor destaca o sentimento de lugar como uma
possibilidade de identificação. Em outro trabalho assegura também que se busca afirmar a identidade
por meio de um passado historicamente comum (HALL, 1996), o que novamente o aproxima de
Monteiro (2011, p. 51) ao atestar que “a afirmação das identidades sofre consequências causadas pelo
conflito, turbulência, desgraça social e econômica entre os grupos”. Desta maneira, entendendo o
passado semelhante da América Latina, é possível compreender a identidade latino-americana e
associá-la ao conceito de lugar.
Uma outra relação existente entre esses dois conceitos, que inclusive os aproxima de
maneira íntima do rap, é que o lugar pode ser visto como uma perspectiva de resistência, conforme
proposição de Relph (2014, p. 21) ao afirmar que “pode servir como base de resistência contra as
injustiças sociais, exclusão e desigualdade que resultam da globalização neoliberal”; ou como uma
perspectiva de identidade, visto que “es también un principio de resistência frente a lo percebido
como amenaza, alteración o dominación” (ESTÉVEZ e SOLAR, 2002, p. 80). Ou seja, ambos têm

209
um “papel” de resistir a imposições que alterem as condições ou a forma como compreendem o
mundo, associando-se ao rap por ser um gênero crítico, periférico e essencialmente de resistência
(ROSE, 1997; OLIVEIRA, 2019).

Concluindo que o rap, a geografia e o lugar têm tudo a ver

Acredita-se que as reflexões propostas no decorrer do texto demonstrem a viabilidade da


utilização de não só o rap, mas a música de maneira geral, visando a compreensão da realidade
espacial de determinados grupos sociais. Ainda pensando no rap, é necessário destacar que pode ser
associado a outras categorias de análise geográfica, especialmente às de território, como feito por
Gomes (2014), observando os aspectos regionais do rap no Brasil.
Além disso a descrição da paisagem e de aspectos sociais também se encontram presentes
nas letras, como demonstrado em Xavier e Oliveira (2021), onde o espaço nordestino é analisado
a partir de uma canção de rap para aplicação no ensino de geografia. Outra teoria que faz parte da
pesquisa, de maneira geral, e que, entretanto, não se encontra presente de maneira explícita neste
trabalho, é a discussão decolonial.
Reconhecendo que Ballestrin (2013) indica que os principais pensadores são de campos
como a sociologia, antropologia e filosofia, é possível pensar nas possibilidades de contribuição que
a geografia pode fazer por meio de suas análises espaciais em uma perspectiva não eurocêntrica,
opondo-se à colonialidade do saber (QUIJANO, 2005).
No caso de nossa pesquisa, é possível discutir e apresentar um conhecimento dos próprios
indivíduos sobre sua realidade, visto que o rap é um meio artístico no qual uma população oprimida
compartilha suas percepções e elaboram seus conceitos em uma narrativa construída pelos próprios
sujeitos (CONCEIÇÃO, 2018).
Assim, a orientação decolonial é uma perspectiva que se aproxima do discurso do rap ao
questionar as problemáticas que atingem as periferias do mundo pela influência neoliberal.
Identificar o lugar e a identidade latino-americana no rap, considerando os três com a possibilidade
de representarem de alguma forma uma resistência organizada, é pensar fora do padrão eurocentrado
e, portanto, buscar a construção de saberes a partir do cotidiano de quem os elabora.
Por fim, esse tipo de pesquisa se trata também de um posicionamento político-social, pois,
como afirma Relph (2014, p. 21), “estudar e promover lugar, seja de uma perspectiva humanista,
radical, seja de uma perspectiva arquitetônica ou psicológica, é uma prática de resistência.”

210
Referências

BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência


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2020.

214
A ARTE-GEOGRAFIA DAS IMAGENS: SOBRE O LUGAR E A MEMÓRIA NAS
FOTOGRAFIAS DO PROJETO “SERRINHA LUZ E CORES”

Marcos Antônio da Silva Ferreira


geo.marcosf@gmail.com

Introdução

Aquilo que vemos, também é capaz de nos observar de volta. Vejo e sou visto. Percebo e sou
percebido. É a partir desta relação, na qual apenas se torna possível quando o sujeito se permite ser
compenetrado pelo que se apresenta diante de si, que a alteridade mútua se realiza no e com o outro
(DIDI-HUBERMAN, 2010; 2013). O dualismo entre corpo e mente não corresponde mais aos
anseios de uma ciência calcada no acontecer da vida ou na esfera do cotidiano sobre as banalidades
do agora.
Em sua essência, o corpo é relacional, intrínseco e expressão da mente, constituído e
atravessado pela capacidade de afetar outros corpos e de ser afetado por eles. O olhar desencadeia
a ação inerente ao corpo e corresponde aos demais sentidos toda a percepção material e imaterial
composta pelo processo da afecção. O corpo reage e transborda a comunicação estabelecida por
meio da sua disposição na condição de ver e estar-voyeur.
Essa relação de reciprocidade entre o eu e o outro é, nesta pesquisa, elucidada pelos caminhos
da arte, da imagem e do lugar da memória a partir das experiências subjetivas do autor com as
fotografias do projeto “Serrinha Luz e Cores”, do artista visual Yuri Juatama. O fotógrafo, cuja
trajetória artística está pautada no registro do acontecer da vida na periferia de Fortaleza, captura
acontecimentos do cotidiano no bairro Serrinha, localizado na região central do mapa da cidade.
Diante dos personagens e dos significados que as imagens me interpelam, permito ser
atravessado pela potência criativa e subjetiva da imaginação enquanto recurso metodológico para
propor devaneios e expressões geográficas sobre o que vejo e sinto nas fotografias do Yuri Juatama.
Sua arte me convida a acessar lugares vividos de minha infância e a reviver lembranças, afetos,
emoções e cheiros de um espaço que se (re)produz e se (re)inventa no entremeio da memória, do
afeto e da poética intrínseca nas imagens.
Assim, a arte-geografia é construída pelos alicerces da imaginação sobre o acontecer da vida
nas múltiplas facetas do lugar. Pela cadência expressa nas fotografias, os corpos marcados pelo
tempo, o interior das casas, a disposição dos objetos e as cores do ambiente capturado demarcam
uma melancolia que preenche a imagem e nos convida a devanear sobre o que se apresenta diante e
para além de uma visualidade aparente.   
215
O que vejo também me olha: a arte-geografia das imagens e do lugar da memória

Por um breve e singular instante, as emoções afloram e transbordam através dos olhos aquilo
no qual não me é possível expressar de imediato. Logo me sinto em outro espaço-tempo guiado pelo
que se apresenta adiante. As fotografias do projeto “Serrinha Luz e Cores” percorre os horizontes
da memória e das emoções ao apresentar uma geografia do lugar sensível e da experiência vivida.
Ver. Observar. Sentir. Se permitir. Ser observado. Ser tomado. Atravessado. Imaginar. Ressoar
e Repercutir. A trajetória de uma imagem poética, na sua livre instância de comunicação a partir
da alteridade mútua, penetra na sonoridade do ser e invade, sem permissividade, as brechas do não
retorno: não somos mais os mesmos após vermos aquilo que nos olha. Essa reciprocidade do olhar,
não restrito ao oculacêntrico, mas um olhar atado ao corpo e do corpo, nos golpeia e nos confronta
para um lugar de memória, imaginação e afetos (COSTA e FERREIRA, 2021).
“Para adentrar nas veias pulsantes da imaginação, ou desvelar a poética da imagem, é necessário,
a priori, que o sujeito esteja disposto a se desprender de todo o racionalismo ativo, e, portanto,
do racionalismo da ciência moderna que nos impede de olhar para além do horizonte aparente”
(COSTA e FERREIRA, 2021, p. 2). É preciso tomar (cons)ciência que as saídas de emergências,
capazes de orientar caminhos possíveis, permitem acessar aberturas para se conhecer o outro.
Aqui, a imagem estabelece fronteiras entre aquilo que se vê, e o que se sente: as palavras são
brechas e correntezas que transcorrem o visual, mas o próprio visual se utiliza delas para construir
pontes de comunicação. Uma relação recíproca, contraditória e complementar sobre o expressar
aquilo que sentimos através do verbo, mas jamais alcançar a completude expressiva do sentir, pois
o que sente apenas sente-se. 
É com o voo das asas da imaginação ao pousar no espaço geográfico que a potência deste
encontro explora e descama as camadas do lugar. Um lugar que reivindica a subjetividade e reluz
na memória e nos afetos a sua poética a partir da imagem. A geografia que se propõe criadora
não se deve contentar apenas com perspectivas teóricas e empíricas calcadas na geometrização do
mundo ou da (re)produção das relações sociais de produção, ou mesmo no contexto ambiental dos
impactos sociais na paisagem.
É necessário que a própria ciência, no seu processo de olhar para si e se reconhecer agente
e produto de um contexto teórico e metodológico claustrofóbico sobre a maneira de capturar o
sensível, não se torne indiferente à sensibilidade poética que atravessa as múltiplas escalas da vida. A
saída de emergência é a fronteira e o limite1, simultaneamente, da colisão entre o velho e o novo.

1 A noção de limite e fronteira, apesar de ambas dialogarem entre si a partir das suas diferenças, é aqui apresentada enquanto
abstrações para compreender a construção do pensamento moderno e a sua respectiva crise. Baseado em Hissa (2006), essas
composições geográficas nos fornecem imagens que se complementam: enquanto o limite pode ser concebido como uma linha
imaginária que demarca territórios, a fronteira estabelece aproximações, contatos e integrações. 

216
É uma abertura que sinaliza alternativas de escape caso as demais portas estejam bloqueadas.
A brecha é, portanto, o que está além daquilo que o próprio mundo, na sua conformidade, me é
capaz de apresentar. Como propor rigidez metodológica na percepção de imagens que reacendem
as chamas de um lugar vivido e ressoado na memória afetiva daquele que se permite afetar-se pelo
mundo? Como auferir inteligibilidade e objetividade sobre o sensível? Sobre o poético? Sobre os
afetos? Sobre as imagens?
É importante ressaltar que, ao discutir sensibilidade e imaginação dentro de uma perspectiva
científica, não intento desconsiderar os caminhos e as potencialidades das quais tornou a ciência
moderna a linguagem universal da veracidade: a sistematização dos processos para se alcançar uma
leitura profícua e racional dos fenômenos. Contudo, para que esta leitura possa apreender as dinâmicas
da vida no seu cotidiano, é preciso reconhecer o risco enquanto qualidade de “experimentação (e
não experiência); invenção (e não reprodução); conflito (e não ordem)” (HISSA et al., 2011, p. 47).
O risco de desbravar o outro, de afetar e ser afetado pelo que se diverge, da implicação de
movimentar o corpo e o saber a partir do desejo de ação. O risco é, em síntese, a invenção da
liberdade (HISSA, 2006; CÉSAR et. al, 2011). Dessa forma, a ato de imaginar e afetar-se pelo que
se difere são caminhos interpelados para se alcançar o lugar da memória. É a partir do confronto
entre o sujeito e a imagem que a poética se realiza: como se nessa determinada fração minúscula do
espaço-tempo, a obra pudesse penetrar e alcançar a trajetória dos lugares e emoções mais íntimas do
sujeito a partir das suas experiências com o mundo.
O encontro da arte, através da fotografia, com a ciência geográfica, o lugar da experiência vivida,
resulta na potência da arte-geografia, cuja iminência reluz na sensibilidade de recorrer a situações
do cotidiano e do acontecer da vida enquanto problemáticas concretas e possíveis de reflexões sobre
nós mesmos. O que exigimos da arte em geral é que não seja capturada pelas abstrações e pelo rigor
da matematização e da burocracia; e que também não seja insólita ao coração e aos sentimentos
(HEGEL, 2009).
Por uma geografia capaz de mergulhar dentro de si e reencontrar a arte e a criatividade por
tanto tempo preterida como impossibilidade de leitura dos seus próprios fenômenos, pois, assim
como defende Dardel (1990), a própria ciência do espaço deve ser também apreendida como técnica
de irrealização sobre a própria materialidade do real. Se as preocupações dos geógrafos e geógrafas
estão asseguradas na leitura e compreensão do mundo a partir do espaço geográfico enquanto
produto e meio das relações sociais, como não reconhecer a imaginação e as emoções enquanto
devir da sua própria composição?
E o lugar da memória é também espaço vivido no qual pode ser visitado a qualquer momento
pelas vias da imaginação, pois o passado, como sugere Lowenthal (1982), realiza-se na memória

217
daqueles que se permitem imaginar. Sua tangibilidade recorre ao dispositivo da materialidade e
dos sentidos, um cheiro, uma cor, um objeto, uma fotografia, que emerge na sonoridade do ser e
desperta os caminhos da criação e das emoções sobre uma experiência vivida.
Ele existe em nós através da imagem ao atingir “as profundezas antes de emocionar a superfície”
(BACHELARD, 2000, p. 7). Para desbravar o lugar nas suas múltiplas escalas de experiências e
significados, é preciso requerer do olho, da memória, do corpo e dos afetos uma sensibilidade
intrínseca ao ser, pois, “pessoas e apenas pessoas podem gerar significados” (TUAN, 2018, p. 8). As
imagens conjuram e evocam as múltiplas camadas do espaço-tempo através do dispositivo afetivo
e as fotografias do Yuri Juatama revelam o mundo vivido e experienciado pelo acontecer da vida na
sua banalidade e expressam a potencialidade de criação de narrativas que atravessam as escalas do
tempo (LOWENTHAL, 1982).
Pelas lentes da câmera, o artista captura o cotidiano e a intimidade do lar por meio da sua
própria relação com o bairro e nos convida a devanear sobre o que se apresenta diante dos olhos e
ecoam pelos corpos de quem se permite afetar. O devaneio é a potência que incendeia a mente e
transborda na superfície do corpo um encontro entre memória, lugar e afetos. A arte-geografia torna-
se mais uma possibilidade de se experienciar o mundo através da brecha, é a saída de emergência para
se vislumbrar o outro enquanto ainda somos capazes de permanecermos com o olhar direcionado
para nós mesmos.

O lugar da memória nas fotografias do projeto “Serrinha Luz e Cores”

O bairro Serrinha possui uma população de 28.770 habitantes e o IDH (Índice de


Desenvolvimento Humano) de 0,28, considerado periférico, de baixo desenvolvimento humano e
densamente povoado2. O projeto “Serrinha Luz e Cores” nasce a partir do desejo do artista visual de
Yuri Juatama, em capturar o acontecer da vida, longe dos pontos turísticos da cidade de Fortaleza, a
partir da sua própria experiência enquanto morador e fotógrafo do bairro em questão.
Por residir no mesmo local do seu objeto de registro, Yuri expressa a intimidade e a banalidade
do cotidiano a partir de fotografias da vida privada e coletiva (JUATAMA, 2021). E é a partir deste
encontro, entre o que se apresenta nas imagens e o como elas interpelam sobre nós, que o lugar de
minha infância, em outro recorte espacial e temporal vivido também na cidade de Fortaleza, o bairro
Parque São José, retorna à superfície como um eco de memórias.
Moro na mesma cidade que o Yuri, mas nascemos e crescemos em bairros diferentes, apesar
do recorte periférico. Porém, foi ao mirar suas obras fotográficas que logo, naquele mísero segundo
de observar e ser observado de volta, recordei do bairro e das situações por onde passei toda a minha

2 Para maiores informações, ver Anuário do Ceará (2020).

218
infância e adolescência, lugar do qual apenas retorno em períodos esporádicos do ano para visitar os
meus avós, cujas raízes jamais foram removidas dali.
A cada imagem, uma lembrança desse espaço vivido. Perguntava-me o que exatamente estava
me conduzindo a este lugar tão íntimo e particular. Ou melhor, quais são os elementos dessas
imagens capazes de me deslocar espacialmente de onde estou para um recorte espaço-temporal
destoante do presente?

Figuras 1 e 2 – Os objetos e a casa em Serrinha Luz e Cores

Fonte: Juatama (2020, p. 36 e 37).

As Figuras 1 e 2, retiradas do fotolivro do próprio autor, são preenchidas por vários objetos
culturalmente presentes nas casas periféricas de Fortaleza: símbolos religiosos, paredes de cores
diversas, vivas e rebocadas, quadros de familiares falecidos, a rede estendida na passagem, a ausência
de porta e a máquina de costura. Esses símbolos, todos ainda presentes na casa dos meus avós,
parecem resistir ao tempo. Demarcam a presença do sagrado e a ausência do Estado na conformação
e edificação de moradias populares com planejamento e responsabilidade social.
Me recordo do quanto o sagrado ainda se faz imponente na casa dos meus avós. Nos dias de
novena, ritual católico em grupo ou individual de orações, o ambiente se tornava mais iluminado
pelas chamas das velas e ruidoso pelas rezas em conjunto. Após o encontro, a celebração: os vizinhos,
as comidas, as conversas e os olhares tortuosos sobre minha sexualidade. Retorno para o espaço-
tempo-presente após revisitar este lugar contraditório que é a casa: afetuoso e excludente, acolhedor
e doloroso.
Percebo a sensibilidade do artista em capturar o íntimo, em adentrar nas escalas da vida privada
e registrar a banalidade do cotidiano na sua potência poética. Os personagens em cena, o homem e
a mulher, de peles enrugadas, inexpressivos e imóveis. Seus corpos seguem alimentando o tempo.
O tempo os devora. Eles compõem a casa ou talvez sejam a própria casa. Raízes que se fixam e ali
fazem moradia.
219
A casa é também a fonte de imagens dispersas sobre todas as nossas experiências afetivas das
quais encontramos abrigos. “Porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como diz amiúde, o
nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmo” (BACHELARD, 2000, p. 24). E nas fotografias
do Yuri, adentramos nas casas de desconhecidos, na intimidade do outrem, sem sequer conhecê-los
antes.
A penumbra à espreita, também personagem nas fotografias, desloca-me para o lugar da
memória, cujo mistério, o medo e a imaginação devoravam os corredores da casa. A noite envolve
os cômodos. Não era permitido acender as luzes se não houvesse ninguém ocupando o local, pois
havia a necessidade do racionamento de energia. Até hoje as regras seguem as mesmas. E não há
portas na casa. Longos corredores se abrem para não permitir a entrada da privacidade. Durante o
dia, a luz atravessa os quartos, a sala e a cozinha. À noite, a escuridão se faz presente.
Um outro lugar recorrente em Serrinha Luz e Cores é o mercadinho. Nas fotografias do
artista, há sempre um conjunto de objetos diversos, entre ovos, chocolates, linguiças, isqueiros,
comidas enlatadas e inúmeros outros objetos de utensílios domésticos e do cotidiano, dispostos em
prateleiras para o pronto consumo. O mercadinho é o local onde a troca capitalista ainda permanece
validada pela confiabilidade e o contrato simbólico e histórico regido entre o consumidor e o
proprietário.
O crédito é substituído pelo caderno, cujo objetivo é registrar os nomes apenas das pessoas
conhecidas pelo dono. As Figuras 3 e 4 apresentam os mercadinhos, pontos de encontro, do diálogo,
das fofocas e da narrativa do cotidiano. Mais uma vez percorro as fronteiras do lugar espaço-tempo-
memória e vivencio novamente a extensão da casa com a rua: o mercadinho. Na casa dos meus
avós, o patriarca administrava um mercadinho de guloseimas diversas e produtos dos mais variados
possíveis.
Até álbuns de figurinhas era possível encontrar por lá. Durante a noite, enquanto ele percorria
a sua rotina de participar do terço dos homens, um encontro restrito apenas aos sujeitos cis do sexo
masculino organizado pela Igreja Católica, eu me responsabilizava pelas vendas. Ali, conversava com
os vizinhos que discorriam sobre as suas vidas e, especialmente, sobre a dos outros. O cômodo, um
desdobramento ou puxadinho do próprio quarto onde meus avós dormiam, tornou-se o local da
diferença, das conversas tensionadas pela política ou das discussões acaloradas do futebol cearense.

220
Figuras 3 e 4 – O mercadinho e o outro em Serrinha Luz e Cores

Fonte: Juatama (2020, p. 38 e 39).

É impossível não revisitar esse lugar da memória ao observar as Figuras 3 e 4. Mas elas
me olham de volta e evocam ecos do passado pelo corpo, sem qualquer ato de permissividade. É
importante ressaltar que não determino qualquer interpretação acerca das fotografias apresentadas,
pois seria limitar toda a sua potência de significados à unidade de tradução acerca do fenômeno
imagético. Busco devanear, a partir da imaginação, o processo contínuo do pensar, do sentir e da
afecção que a imagem é capaz de confabular sobre os acontecimentos súbitos da vida (BACHELARD,
2000). 
Como não associar esses personagens das fotografias com personagens da minha trajetória se
até o cenário conjura à (re)composição do lugar da memória vivida? A casa, lugar da vida privada,
o mercadinho, espaço de transição entre a casa o outro, e a rua, o coletivo, expressa nas fotografias
5 e 6 abaixo, confabulam para a (ir)realização do acontecer da vida no projeto fotográfico Serrinha
Luz e Cores. Apesar do recorte espacial discorrer sobre determinado bairro da cidade de Fortaleza,
o ato de afetar-se e permitir-se devanear desvela uma geografia das emoções de lugares ainda vivos
através do tempo.
A rua me foi sinônimo de liberdade e limite, simultaneamente. Liberdade, pois ali poderia
encontrar os colegas e correr sem os limites territoriais da casa, mas havia também o marco espacial
fronteiriço imposto pela matriarca de até onde se poderia percorrer e os horários permitidos de
retorno. Assim como nas fotografias acima, as luzes dos postes, de tons amarelados, iluminavam a
noite de minha infância.
Não havia asfaltamento, o que tornava possível materializar brincadeiras como pega-pega,
cujo objetivo era correr e tocar no colega mais próximo. Hoje, a rua foi substituída pela avenida,
cujo fluxo de carros obrigou toda uma comunidade a se aprisionar dentro das suas próprias casas e
a romper com um costume histórico de vivenciar o encontro.

221
Figuras 5 e 6 – A rua e o coletivo em Serrinha Luz e Cores

Fonte: Juatama (2020, p. 38 e 39).

No bar da esquina, muito frequentado majoritariamente pelos homens da rua, as crianças


utilizavam a sinuca como espaço recreativo, assim como na Figura 6. Me questiono sempre que
retorno à visualizar as fotos acima se o artista não registrou o bairro de minha infância, pois as
semelhanças da arquitetura entre as casas, a disposição dos fios desordenados dos postes e o fluxo
de pessoas nas ruas me fazem associar diretamente com o lugar da memória vivida de um outro
espaço-tempo.
Porém, tais semelhanças são também resultados da ausência do Estado no planejamento
urbano, nas comunidades periféricas da cidade de Fortaleza. Da Serrinha ao lugar da memória, com
apenas uma imagem, sou capaz de libertar uma rede afetiva de sensações e poéticas pelos caminhos
de uma arte-geografia pulsante. 

Conclusões

O encontro entre o eu e o outro permite acessar as brechas e as potências da arte-geografia


enquanto proposta de reacender as chamas de uma poética inerente à própria ciência geográfica, mas
há décadas adormecida pelos domínios do ocularcentrismo moderno. Propor o tensionamento entre
essas duas instâncias, enquanto perspectivas teóricas e metodológicas, não é reduzir a importância da
racionalidade nos processos de interpretações e apreensões de mundo, mas sim tomar conhecimento
de que há outras possibilidades de se perceber a vida nas suas múltiplas escalas. Que a geografia seja,
portanto, suficiente para acolher as demandas dos tempos contemporâneos.
E é a partir das fotografias do projeto Serrinha Luz e Cores, do artista visual Yuri Juatama,
que a arte-geografia se revela na sensibilidade do cotidiano através do encontro entre o eu e o outro
no processo de permitir-se ser observado e atravessado pelo que se apresenta diante de si. É o olhar
de fora, ao perfurar as entranhas do olhar de dentro, que o lugar da memória evoca e transborda no
sujeito a possibilidade de (re)compor e (re)viver o espaço de experiências vividas. Entre o passado
222
e o presente, o lugar da memória tensiona as camadas do espaço-tempo através do devaneio e da
imaginação. Imagem, lugar, poética e criação abrem saídas de emergência para a própria geografia
observar a brecha e permitir-se também ser observada e transformada de volta.

Referências

ANUÁRIO DO CEARÁ. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2020. 

BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 

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de artes e de ciências. Belo Horizonte: Editora UFMG, p. 79-96, 2011.

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DIDI-HUBERMAN, G. Diante da imagem. São Paulo: Editora 34, 2013. 

HEGEL, G. W. F. Curso de estética: o belo na arte. São Paulo: Martins Fontes, 2009. 

HISSA, C. E. V. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade.


Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. 

HISSA, C.E.V. Conversações de artes e de ciências. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. 

JUATAMA, Y. Serrinha Luz e Cores. Fortaleza: Quarteto Foto Editorial/SECULTFOR, 2021.

LOWENTHAL, D. Geografia, experiência e imaginação. In: CHRISTOFOLETTI, A (Org.).


Perspectivas da Geografia. São Paulo: Difel, 1982. p. 103-141.

TUAN, Y. Lugar: uma perspectiva experiencial. Geograficidade, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 4-15,


2018. 

223
O CHORO ENQUANTO UM TRAÇO CULTURAL TRANSFRONTEIRIÇO:
ENTENDENDO A FRONTEIRA PLATINA ATRAVÉS DA ARTE

Lucas Bezerra Gondim


lucasgeoufc@gmail.com

Introdução

O choro é entendido enquanto um gênero musical, uma vez que a partir dele se transmutam
demais estilos musicais. Esta nomenclatura se faz necessária para mensurar o valioso papel estruturante
da atuação deste gênero no cenário musical brasileiro desde os primórdios de sua prática pelos(as)
musicistas brasileiros no início do século XX.
Dentro desta classificação, buscamos entender o choro – também – como um traço cultural
(VESCHAMBRE, 2014) que foi (re)construído através dos(as) musicistas do Brasil e permanece
em construção com as/os novas/os chorões e choronas que compõem as inúmeras rodas de choro
presentes no território brasileiro. Estas rodas de choro, sejam em grandes apresentações particulares,
praças, bares e demais ambientes, (re)constroem paisagens sonoras que promovem o choro enquanto
um traço cultural.
Enquanto geógrafo e musicista, tive a oportunidade de conhecer – através das redes sociais
– outros(as) musicistas que se apresentavam e participavam de rodas de choro que ocorriam em
Montevidéu – Uruguai – e La Plata e Buenos Aires – Argentina. Somado isto à pesquisa recém
defendida para obtenção do título de Doutor em Geografia pelo Programa de Pós-graduação em
Geografia da Universidade Federal do Ceará, na qual a investigação tinha como temática principal o
conceito de fronteira, percebeu-se a possibilidade de pesquisar a fronteira entre os países que compõe
a América Platina, através do choro enquanto um traço cultura que extravasa a fronteira nacional e
reverbera para os países platinos.
Desta maneira, o presente trabalho é um recorte de uma investigação em curso sobre uma
releitura da fronteira platina a partir do choro enquanto um traço cultural que extrapola o limite
territorial do Brasil e se expande para os países platinos, ampliando a área de tensão cultural entre
estes países através das paisagens sonoras produzidas nas manifestações culturais do choro. Devido à
pandemia da Covid-19, algumas etapas metodológicas da pesquisa como as atividades de campo que
estavam previstas para a primeira metade de 2020 foram adiadas, sendo possível realizar as entrevistas
programadas apenas com os(as) musicistas envolvidos em grupos de choro de Montevidéu, La Plata
e Buenos Aires através de redes sociais e videoconferências.

224
Origens do choro no Brasil

O choro se origina na sociedade carioca, principalmente, pelo grupo pioneiro de musicistas


que iniciou com apresentações públicas, chamado Choro do Callado (também conhecido como
Choro Carioca). O grupo era liderado pelo flautista – considerado “pai dos chorões” – Joaquim
Antônio da Silva Callado (DINIZ, 2003). Callado, muito conhecido no cenário da música da
sociedade carioca, foi o principal articulador das primeiras rodas de choro onde se reuniam boêmios
e instrumentistas que participavam das rodas de chorões, atores diretos da criação e recriação das
paisagens sonoras do choro.
Callado e seu grupo foram os responsáveis por inserir no choro os arranjos de grande
complexidade e a “sagacidade” entre os solistas em seus improvisos, que abusavam de sua virtuosidade
musical durante a execução das músicas que faziam a boemia carioca cantarolar as harmonias das
músicas e ocupar gradativamente com mais frequência as rodas de choro realizadas.
Ao final do século XIX, outros diversos musicistas influenciados por Callado deram
continuidade à esta manifestação, como Patápio, Chiquinha Gonzaga – que popularizou o piano
nas apresentações de choro – e o Maestro Anacleto de Medeiros, que conduzia a Banda do Corpo
de Bombeiros do Rio de Janeiro em apresentações onde tocavam as músicas mais famosos nas rodas
de choro da época.
Assim, Callado e os(as) musicistas que o sucederam, criaram uma identidade cultural musical
espacializada pelas reuniões dos chorões nos subúrbios e cortiços cariocas e nas apresentações em
teatros e bailes, (re)criando paisagens sonoras e novos cenários para estes espaços. A compreensão
dessa paisagem produzida é fundamental nesta investigação, pois, como indica Holzer (1999, p.
166), “a paisagem é um importante conceito geográfico importante para o estabelecimento de
identidades, de geograficidade”.  

1. A música oferece um campo de referências para construir identidades individuais e


coletivas espacializadas; 2. Ela participa na transformação do espaço em território; 3. A
música cria a identidade territorial; 4. Ela introduz uma improvisação aparente na relação
entre poder e espaço e infunde a ilusão de uma humanização do planejamento dos espaços;
5 Ela fornece uma ferramenta interessante de marketing espacial. (CROZAT, 2016, p.14)

Com esse legado deixado pelos chorões, o choro foi popularizado por diversos(as) musicistas e
conjuntos (também conhecidos como regionais), principalmente durante a criação e aperfeiçoamento
da indústria fonográfica e radialista. Assim, a espacialização musical do choro transborda o estado
do Rio de Janeiro e conquista espaço no cenário da música popular brasileira, fortalecendo a difusão
deste traço cultural no Brasil e impulsionando o surgimento de diversos grupos e redutos de choro
no território brasileiro.
225
Como exemplo, podemos identificar a criação do grupo Os Oito Batutas, Regional Benedito
Lacerda, Regional do Canhoto e o Conjunto Época de Ouro (um dos grupos mais conhecidos
no Brasil). O Clube do Choro, uma escola especializada em formar musicistas instrumentais, foi
criado em capitais espalhadas pelas regiões brasileiras, como em Brasília, Recife, Porto Alegre, Belo
Horizonte, Goiânia e São Paulo, assim como diversos bares, praças e outros redutos que ficaram
conhecidos pela reunião e apresentação dos chorões.  
Essa espacialização do choro em ampla escala no território brasileiro e sua manutenção
durante o século XX fez com que o choro, reconhecido como um gênero musical genuinamente
brasileiro, se difundisse para os demais países americanos e europeus, principalmente, através de
apresentações e aulas ministradas por musicistas brasileiros. Apesar da condição ainda periférica no
cenário midiático nacional, o choro é conhecido mundialmente pela complexidade de suas melodias
e harmonias, além da virtuosidade dos chorões tradicionais e contemporâneos. 
É interessante pensar a irradiação dessa prática de choro na América Platina e entender
seu papel na formação sociocultural destes países enquanto um traço cultural brasileiro. Alguns
questionamentos surgem deste processo: como o choro foi difundido nos países platinos? Qual o
valor atribuído ao choro e à carga cultural da boemia e virtuosidade que acompanham este traço
cultural pelos(as) musicistas e apreciadores da América Platina? Como estas composições clássicas
do choro brasileiro articulam redes culturais entre Brasil e os países da América Platina?
Pensando no recorte espacial proposto aqui, Buenos Aires (ARG), La Plata (ARG) e
Montevidéu (URU), também foram palco de diversas apresentações de regionais de choro de São
Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre e Caxias do Sul. Isto culminou numa iniciativa gradativa
dos(as) musicistas platinos em criar grupos de choro e em ressignificar espaços públicos, tornando-
os, também, conhecidos pelas apresentações de rodas de choro que reúnem grandes grupos de
indivíduos que participam desta reprodução do choro brasileiro e criando paisagens sonoras com as
especificidades de cada cidade e demais traços culturais dos locais.

O choro platino

Pensando no recorte espacial proposto aqui, Buenos Aires (ARG), La Plata (ARG) e
Montevidéu (URU) foram palco de diversas apresentações de regionais de choro de São Paulo,
Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre e Caxias do Sul. Isto culminou numa iniciativa gradativa
dos(as) musicistas platinos em criar conjuntos de choro e agregar significados aos espaços públicos,
tornando-os, também, conhecidos pelas apresentações de rodas de choro que reúnem grandes grupos
de chorões que participam desta reprodução do choro brasileiro e (re)criam paisagens sonoras com
as especificidades de cada cidade e demais traços culturais dos locais.
226
Em Montevidéu, o grupo La Chorona realiza apresentações de releituras dos chorões
tradicionais como Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Ernesto Nazareth e de novos chorões, como
Yamandu Costa e Hamilton de Hollanda, além de composições próprias de artistas uruguaios e
dos próprios(as) musicistas do grupo. Alguns bares, casas de show e praças se tornaram conhecidos
pelas apresentações dos músicos uruguaios, como o Guayabos Bar, Bar Blanes, Bluzz Bar e o La
Concura – onde ocorrem rodas de choro aos domingos. O grupo também se apresenta em algumas
turnês por Buenos Aires, reforçando o estreitamento destes países platinos através da música.

Figura 1 – Apresentação ao vivo do grupo La Chorona

Fonte: instagram.com/lachoronauruguay.

O conjunto musical surge a partir do encanto de parte de seus componentes pelo choro.
Segundo Nacho Delgado (pandeirista e percussionista do grupo), um amigo seu (cavaquinista do
grupo) conseguiu um vinil do chorão Waldir de Azevedo, o qual ficou fascinado com a harmonia
e complexidade dos arranjos que ouvira e o convidou para tocar choro. Deve-se apontar uma
aproximação com o traço brasileiro antes da facilidade de comunicação proporcionada pela revolução
técnico-cientifica-informacional proposta por Milton Santos, o que potencializa a singularidade do
processo, fomentado também pela indústria fonográfica.
Na Figura 1, vemos o registro de uma apresentação do grupo La Chorona no Teatro de
Verano Ramón Collazo, num festival com o sambista brasileiro Martinho da Vila. Buenos Aires
também teve uma construção sólida a partir da difusão do choro brasileiro, como o grupo Saraivada
– onde também tocam músicos de grupos de tango e valsa – o conjunto Chamego e a Roda de
Choro La Plata (Figura 2). Anteriormente a estes, alguns grupos de choro já surgiam no início do
século XXI, como os grupos, A Saideira, Mistura e Manda, Mão na Roda e Malandragem.
227
Desta forma, as paisagens sonoras de bares e espaços públicos de Buenos Aires e La Plata
foram sendo reconstruídos a partir da inserção das rodas de choro nestes locais. A exemplo disto,
podemos identificar o La Caipo, onde grupo Choro La Plata se apresenta tradicionalmente duas
vezes ao mês. O hotel Timon Dorado, La Paz Arriba, ambos de Buenos Aires são outros típicos
ambientes já reconhecidos pela apresentação de choro com o grupo Chamego, que podemos ver na
Figura 2.

Figura 2 – Roda de choro do grupo Choro La Plata em La Plata

Fonte: instagram.com/chorolaplata.

A rede musical e de (re)criação de paisagens sonoras entre os três países através da música se
intensifica quando ampliamos o recorte para outros gêneros musicais traços da cultura brasileira com
maior repercussão pelo meio midiático, como o forró, o samba e o axé. Observamos forte influência
desta musicalidade em grupos e locais argentinos e uruguaios que promovem apresentações
artísticas. A exemplo disto, nota-se a escola de samba Estação Primeira de Lanuz e locais que
recebem semanalmente grupos argentinos que realizam apresentações musicais com enfoque em
samba e forró.

O encontro de paisagens sonoras para compreender a fronteira artística platina

A música é essencial para análise paisagem produzida nas rodas de choro, pois, além da
musicalidade ser produzida pelos principais atores culturais, os(as) musicistas, as harmonias
e melodias do choro são coadjuvantes da dança dos sujeitos que estão na roda enquanto “não
musicistas”, é através dessa música que os corpos marcam a paisagem através do movimento e da
dança. Concordamos com a proposição de Dozena (2016, p. 374), quando o autor afirma que “a

228
partir da corporalidade, as coletividades recriam “territórios originais” que atendem não somente às
suas aspirações de sobrevivência material, mas também à expressão das especificidades culturais que
efetivamente as mobilizam e animam”.
O choro aqui – enquanto musicalidade – também atua como o traço cultural do Brasil, em
que, além da identificação comum que o ouvinte tem com a sonoridade, também atua aqui como
uma representação identitária do país. Nacho Delgado – percussionista uruguaio do grupo La
Chorona – sinaliza, em entrevista para esta pesquisa, que o público frequentador das apresentações
de seu conjunto é diversificado, mas se observa a presença de muitos brasileiros, que identificam a
música enquanto um aspecto identitário brasileiro.
  Os ambientes onde são realizadas as rodas de choro, também são espaços detentores de
identidade que estão impregnados de simbolismos e representações, em que a música é protagonista
deste processo identitário. Desta forma, a identidade está diretamente relacionada às paisagens
construídas pelos indivíduos, tornando-os produtores de produções da cultura que os envolve através
do simbolismo e das representações especializadas. Sobre isso, é preciso ressaltar a descentralização
do conceito de identidade. Concordamos com Crozat (2006) quando o autor ressalta que:

Contrariamente ao que veicula o discurso comum e algumas correntes de pensamento


atrasadas da geografia cultural, não podemos nos contentar com uma cultura herdada e
definitivamente determinante (cultura nacional, civilização). (CROZAT, 2016, p. 15). 

A identidade, multifacetada, corrobora para o que é proposto nesta investigação, a interação


transfronteiriça entre Brasil, Argentina e Uruguai através da música – o choro – (re)criando paisagens
sonoras através da musicalidade e construindo múltiplas identidades culturais, através deste traço
cultural originado no Brasil.  A figura 3, demonstra a formação da paisagem sonora a partir dos
sujeitos que compõe as rodas de choro e a (re)criação da identidade em seu caráter individual e
coletivo a partir das paisagens sonoras.

Figura 3 – Mapa cognitivo sobre a criação da paisagem sonora nas rodas de choro

Fonte: Gondim, 2020.

229
Uma vez que são os produtores da música presente no espaço que o caracteriza como um
ambiente com traços culturais do choro, os(as) musicistas são basilares nesta dinâmica. No entanto,
a musicalidade se une à corporeidade e à boemia, que simbolizam os redutos do choro no Brasil,
dando papel fundamental aos apreciadores que dançam e participam das rodas de choro, mesmo
sem tocar algum instrumento. 

Eram, em sua grande maioria, funcionários de repartições públicas, exerciam trabalhos que
permitiam uma boemia regular e residiam, geralmente, na Cidade Nova, bairro construído
sobre o antigo mangue, e nas vilas do centro antigo até os bairros do Estácio e da Tijuca.
Os chorões não tocavam por dinheiro. Quando eram convidados para um baile sempre
arrumavam um jeito de dar um pulinho na cozinha do anfitrião para averiguar se a mesa
estava farta de comida e bebida (DINIZ, 2007, p. 14).

A dinamicidade que envolve a música, os chorões, o ambiente e os participantes (reconstroem)


a paisagem sonora do choro. Esta é produzida e produtora de sentimentos, cultura e comunicação
– estes três últimos devem ser entendidos enquanto seu significado holístico, sem simplificações
– que através da sua dinamicidade e das memórias contidas na formação desta paisagem, integram
múltiplas identidades do choro. 

Brasil, Argentina e Uruguai: a fronteira do choro latino

A fronteira entre países, pensando na proposta do artigo – a partir da música – se mostra como
uma área de tensões culturais. Os gêneros musicais brasileiros como o axé, forró, maxixe, samba,
que também configuram traços culturais originários do Brasil – e da musicalidade produzida em
território brasileiro – também são reproduzidos e com maior escala entre estes países.
Tanto o percussionista Nacho Delgado do grupo La Chorona, como a cavaquinista Magalí
Batiz do grupo Choro La Plata afirmam que em apresentações destes gêneros musicais em seus
países, a presença de brasileiros e brasileiras é marcante no local devido a fama e ao “apoio” midiático
que estas sonoridades recebem na sua difusão – mundialização – internacional.
No entanto, as rodas de choro são diferentes, pois, apesar de muitos brasileiros também as
frequentarem, uruguaios e argentinos também participam das rodas com frequência e se tornam
admiradores das rodas de choro. O choro surge para os músicos de maneira diferenciada. Nacho
informou que conheceu o choro ao ouvir a música “três beijos” composta pelo chorão brasileiro
Altamiro Carrilho, através de um disco de vinil que um companheiro de grupo o apresentou.
O músico uruguaio já era envolvido no cenário musical do país, tocando em grupos folclóricos
do gênero do Candombe, muito semelhante ao Maracatu apresentado no nordeste brasileiro. Até

230
que conheceu o choro através dos vinis e formaram o grupo La Chorona. Interessante comentar
que o grupo de choro uruguaio apresenta releituras e reinvenções do choro, inserindo novos
instrumentos na dinâmica musical, como o agogô e tamborim.
Diferentemente, a musicista Magali conheceu o choro através do Clube do Samba e do Choro
de La Plata, um grupo de pesquisa sobre choro e que desenvolviam atividades práticas de conjunto
musical. A cavaquinista informou que com este primeiro contato decidiu iniciar os estudos de
choro e aperfeiçoar sua técnica para o choro. Interessante ressaltar, pela fala da entrevistada, que os
participantes ficam surpresos com o formato de tocar em roda e o revezamento de músico durante
as apresentações.
Quando questionados sobre sua relação com a musicalidade brasileira e o que pensam sore as
fronteiras platinas, ambos artistas confirmaram a forte relação musical que seus países tinham com
o Brasil. Magali afirma que encontra muita proximidade entre os países platinos através da música e
do choro. Nacho, da mesma forma, informou que tem muitos amigos e amigas musicistas no Brasil
que tocam nas rodas de choro. Nacho e Magali já vieram ao Brasil para tocar música instrumental
e choro, o percussionista uruguaio ministra aulas de pandeiro nos estados em que ele permanece
alguns dias, pois anualmente o músico viaja pelo território brasileiro tocando choro e oferecendo
turmas de pandeiro durante alguns meses.
Nacho já participou de apresentações com grupos contemporâneos conhecidos no cenário
nacional como o Choro da Glória, com o Sexteto Sucupira e participou de diversas rodas de choro
e samba pelo Brasil, como a de Santa Tereza. Através do pandeiro e do estudo deste instrumento
clássico do samba e do choro, o instrumentista firmou fortes relações profissionais e de amizade
com Ivison Torres, Léo Rodrigues e Túlio Araújo, além de outros pandeiristas reconhecidos
nacionalmente por suas habilidades e participações em rodas de samba e choro. Magali também já
participou da Oficina de Música de Curitiba, além de tocar nas rodas de choro e samba de Curitiba. 
Estes relatos permitem observarmos uma relação transfronteiriça entre estes países através da
música, possibilitando uma troca de conhecimentos, práticas, olhares e musicalidade entre os(as)
musicistas que realizam a manutenção deste traço cultural brasileiro, que vem ganhando novas
releituras nestes países a partir das suas especificidades mescladas com a tradicionalidade do choro
desenvolvido no Brasil.
Uma fala de Nacho chama atenção ao fim da entrevista. O músico afirma que toda arte
compartilhada une as pessoas, que existem limites nacionais, mas estes limites foram impostos por
políticos e gestores públicos. Para ele, a fronteira entre o Brasil e Uruguai é uma área em que ele
se identifica e pode transitar e vivenciar a cultura brasileira. Enfatizando que estes limites políticos
podem ser quebrados e uma forma de rompê-los é através da música e o pandeiro (instrumento
favorito do músico) o ajuda a vivenciar diferentes experiencias culturais.
231
Considerações finais e caminhos futuros

Apesar da interrupção da pesquisa devido à pandemia de COVID-19 e as medidas sanitárias


de isolamento, o adiantamento das entrevistas com alguns(as) musicistas do choro latino fez com
que uma primeira apreciação, além da virtual imagética, fosse adquirida. O olhar dos músicos para
a paisagem sonora produzida durante as rodas de choro fez com que novos caminhos para a práxis
da pesquisa fossem repensados. Para dar continuidade à pesquisa e um resultado holístico do que é
proposto aqui, resta a práxis de campo. 
Até o envio deste artigo, pode-se perceber a intensa interação entre a musicalidade do Brasil,
Uruguai e Argentina. Através da arte, os indivíduos se comunicam e interagem, possibilitando
o ampliamento simbólico desta fronteira entre estes três países. Esta extensão da fronteira se faz
possível por meio da reprodução das paisagens sonoras das rodas de chora e da manutenção de
múltiplas identidades através desta identidade produzida com fortes traços brasileiros. Observamos
que este processo identitário acontece, a priori, a partir da música. O choro é o protagonista desta
formação identitária latina do choro.
Para os próximos passos, pós-isolamento social e novas ondas da doença, será dado início
ao trabalho de campo, em que serão entrevistados não só os(as) musicistas, mas todas as camadas
de sujeitos que compõe as paisagens sonoras do choro nos países platinos. A fala da entrevista com
Nacho é pertinente para encerrar este artigo e nos mostrar as inúmeras possibilidades que a música
é capaz de fornecer para os estudos sobre identidade, fronteira, cultura e paisagem, mostrando que
a fronteira entre esses países para o musicista se move e quem a movimenta através da arte são os
próprios músicos platinos, produtores das paisagens sonoras. 
Com isso, pretende-se dar continuidade à esta pesquisa com a realização dos campos para
ampliarmos o conhecimento sobre as experiencias das rodas de choro que ocorrem em Uruguai e
Argentina e potencializar a compreensão da fronteira platina através do choro, visto que se mostrou
latente a força da arte no entendimento das dinâmicas fronteiriças entre estes países platinos.

Referências

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São Paulo: Annablume, 2010.

CANDAU, J. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2012.

232
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DINIZ, A. Almanaque do Choro. Rio de Janeiro, Brasil: Zahar, 2003.

DOZENA, A. O papel da corporeidade na mediação entre música e território. In: DOZENA, A.


(Org.) Geografia e Música. Natal, Brasil: EDUFRN, 2016.

FERRARI, M. As noções de fronteira em Geografia. São Paulo: Perspectiva Geográfica. Vol 9,


2014.

FURLANETTO, B. H. Paisagem Sonora: uma composição geomusical. In: DOZENA, A. (Org.)


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HISSA, C. E. V. H. A mobilidade das fronteiras: inserções da Geografia na crise da modernidade.


Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

HOLZER, W. Paisagem, imaginário, identidade: alternativas para o estudo geográfico. In:


ROSENDAHL, Z. (Org.) Manifestações da cultura no espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999.

PANITZ, L. M. Práticas musicais, representações e transterritorialidades em Rede entre Argentina,


Brasil e Uruguai. In: DOZENA, A. (Org.) Geografia e Música. Natal, Brasil: EDUFRN, 2016.

PETERS, A. P. Algumas reflexões para uma história cultural do choro. Curitiba: Escola de
Música e Belas Artes do Paraná, 2006.

PIZOTTI, A. M. Geografia e música: aproximações e possibilidades de diálogo. In: DOZENA, A.


(Org.). Geografia e Música. Natal: EDUFRN, 2016.

VESCHAMBRE, V. Introdução em torno do patrimônio e da memória: questões de apropriação e


de marcação do espaço. Revista Geosaberes, Fortaleza: v. 5, n. 1, 2014.

233
ETNIZACIÓN DIFERENCIA: LA CONSTRUCCIÓN DE UNA ‘COMUNIDAD
NEGRA’ CON BASE RACIAL DIVERSA EN EL NORTE DEL CAUCA

Tulio Andrés Clavijo Gallego


taclavijo@unicauca.edu.co

A manera de introducción

El reconocimiento a las ‘comunidades negras’ en Colombia se encuentra fuertemente atado a


la promulgación de la Constitución de 1991, y de Ley 70 de 1993. En estos textos, se configura una
idea de ‘comunidad negra’ asociada tendencialmente al Pacífico colombiano, dejando en una suerte
de limbo jurídico a aquellas comunidades que no habitan este lugar de la geografía nacional.
Si aceptamos entonces que hoy el referente de ‘negridad’ está fuertemente asociado al
Pacífico y en cierta proporción al Caribe colombiano, no deja de inquietar que los grupos de
gente negra que habitan enclaves andinos e interandinos, y que tienen con frecuencia mayor
antiguedad de ocupación y de consolidación de espacios de vida en el territorio —es decir, que han
constituido territorialidades específicas—, no hayan sido leídos en clave de los reconocimientos
‘étnico-territoriales’, ni recogidos bajo el halo de ‘inclusión’ que integraba plenamente lo ‘negro’ a
la sociedad colombiana.
La situación anterior se complejiza aún más cuando se visibilizan territorios en los que se
advierten procesos organizativos bajo la adscripción de una categoría históricamente subordinada
como la ‘negra’ —específicamente en términos de ‘comunidad negra’—, en lo que podría entenderse
como un particular proceso de producción, que, aunque en parte ancestral, no se constituye bajo
una identidad homogénea. Es justo bajo este referente en el que podemos ubicar el corregimiento
de Mindalá en el municipio de Suárez, departamento del Cauca. Haciendo eco de las dinámicas
organizativas del norte del Cauca, la comunidad del corregimiento de Mindalá empieza el ejercicio
de constituirse como consejo comunitario de comunidades negras a partir del año 2003,1 articulado
al Proceso de Comunidades Negras (PCN), y teniendo como uno de sus principales nodos de
trabajo el tema ambiental.
Desde estas consideraciones previas nos interesa entender cómo esta comunidad que
históricamente se constituyó por campesinos negros, pero también por campesinos e indígenas
blanco-mestizos, llegados en diferentes momentos, se reconocen hoy como una ‘comunidad negra’
con una agenda política —fuertemente articulada en la temática ambiental— que particulariza de
1 Sin embargo, sólo hasta el año 2013 encuentra registro oficial a través de la Resolución No. 36 del 20 de junio del Ministerio
del Interior.

234
una forma quizá más incluyente un proceso organizativo, en franca distancia a los lineamientos
de un ‘multiculturalismo estatalizado’ (CHAVES, 2011), que refiere las particulares formas de
alineación que las apuestas multiculturalistas en Colombia han tenido con las políticas económicas
regresivas, encargadas en buena medida de sedimentar las desigualdades históricas.
En consecuencia, de lo hasta aquí expuesto, nos propongamos mostrar en lo que sigue, cuáles
han sido las características de este particular proceso, al que me referiré como etnización diferencial,
para ello revisaremos primero y de manera general los diversos momentos de poblamiento en lo
que hoy corresponde geográficamente al corregimiento de Mindalá, con la intención de evidenciar
cómo éstos fungirán como condición de posibilidad para la posterior concreción de un consejo de
comunidades negras.
En un segundo momento, fijaremos nuestra atención en el proceso organizativo en clave
de lo étnico-territorial, en el que podremos evidenciar dos momentos determinantes en la vida del
consejo comunitario, finalmente revisaremos algunos de los matices de lo que ha significado la
negociación de la Consulta Previa entre la EPSA y el consejo comunitario, escenario determinante
para entender el fortalecimiento y apuestas actuales del consejo.

Poblamientos y proyectos diversos

El actual corregimiento de Mindalá, ubicado al costado suroriental del municipio de Suárez


se encuentra conformado por nueve veredas: La Turbina, Miravalle, Tamboral, Pueblo Nuevo,
Las Badeas, Maravelez, San Vicente, Vista Hermosa y Mindalá (cabecera corregimental) (Mapa
1). Ya que los mapas tienden a fijar imágenes de permanencia y estabilidad en los territorios que
representan, y el mapa político administrativo del corregimiento no es la excepción, es importante
volver sobre Mindalá en términos de su historia. Su configuración actual es el resultado de procesos
diversos de poblamiento que iniciaron en el siglo XVIII (primera etapa), con la solicitud de reales
de minas, cuyo funcionamiento precisaba del trabajo de población negra esclavizada.
No tenemos noticias concluyentes sobre nuevos arribos de población a la zona hasta la
segunda mitad del siglo XX, cuando tiene lugar una nueva oleada de poblamiento (segundo etapa),
asociada fundamentalmente a la búsqueda de tierras agrícolas por parte de campesinos (negros y
no negros) provenientes —en su mayoría— del norte del Cauca, pero también de otros lugares
como el departamento del Tolima y el Valle del Cauca, procurando, en algunos casos, refugio de los
escenarios de violencia que se concretaban álgidamente para la época.
Fue justamente este el caso que trajo a la familia de Isabel a la región desde el departamento del
Tolima, después de una correría por el Valle del Cauca. La construcción del embalse de La Salvajina,
durante los años ochenta de la misma centuria (tercera etapa), actuaría como un re-configurador
territorial, que, en las dinámicas de poblamiento se materializó al menos de dos maneras. Una,
235
forzando a la reubicación de los pobladores de las partes bajas que serían inundadas hacia las partes
altas, y dos, desplazando a personas que abandonaron su lugar de morada y se ubicaron, con las
pocas prebendas obtenidas, en veredas o municipios cercanos.
Para finales de la década de los años noventa y comienzos del siglo XXI (cuarta etapa), tiene
lugar una nueva oleada de poblamiento y ocupación por parte de poblaciones negras y mestizas,
dinamizada por el auge de la ‘nueva minería.2 Finalmente, desde el año 2010 hasta el presente
(quinta etapa), han llegado personas del suroccidente del país, especialmente del departamento de
Nariño, a quienes se reconoce de manera general como ‘pastusos’, para trabajar en minería y de
manera mucho más reciente en el cultivo de coca.
Aunque el cultivo de coca ya estaba consolidado en varias zonas del municipio de Suárez,
cuando empezamos nuestro trabajo esta realidad no se hacía presente en Mindalá. Hoy, sin embargo,
su avance es veloz, mostrándose como un detonante de problemáticas sociales y como uno de los
principales disociadores de los procesos organizativos.

Mapa 1 – Veredas del corregimiento de Mindalá.

Fuente: IGAC (2016). Esquema de Ordenamiento Territorial Suárez (2006).

2 Nos referimos a la ‘nueva minería’ como aquella que por sus procesos de maquinización y por el uso de cianuro y mercurio,
se diferencia de la ‘vieja minería’ asociada a formas tradicionales de producción como el barequeo y a herramientas básicas como
la barra y el almocafre.

236
La diversidad que se fue constituyendo gradualmente a través de los momentos de
poblamiento, configuró comunidades de vida desde un sentido de lo compartido, sin desconocer su
heterogeneidad constitutiva. Dicha heterogeneidad no se materializó como un problema de facto
hasta la concreción de los procesos de etnización que se empezarían a consolidar a partir de la última
parte del siglo XX, situación que contribuyó gradualmente a la adopción de una ‘identidad’ —en
cierta medida dominante—, y a la consecuente marginalización de las otras. Aun con lo anterior,
pensamos que en Mindalá este proceso de etnización se empieza a gestar con alientos de mayor
pluralidad que en otras partes del norte del Cauca —incluso del territorio nacional—, evidenciando
la construcción de una comunidad política desde la diversidad racial y cultural, situación que deseo
presentar aquí como etnización diferencial.
Propongo entender la etnización diferencial como un proceso que, si bien encuentra base en
algunos de los lineamientos de la etnización —esto es, imaginar a unos grupos poblacionales bajo
principios de ancestralidad, territorialidad e identidad cultural, marcando la construcción de un
otro que se contrapone a la idea de un nosotros no catalogado étnicamente— se desmarca de dicho
lineamiento proponiendo lecturas desde la interacción histórica para entender la producción de una
particular forma de comunidad.
Desde este lugar establece un relacionamiento menos condicionado a las instancias
estatales, para lo cual toma distancia de las articulaciones mecánicas entre tipologías y topologías
(BOCAREJO, 2015).3 En efecto, la etnización diferencial plantea una opción para entender y vivir los
cursos del reconocimiento étnico-territorial desde una base racial diversa, siendo la construcción de
una comunidad política el eje central de su configuración.
En otras palabras y para el caso particular de Mindalá, la etnización diferencial pretende llamar
la atención primero sobre cómo una comunidad no está dada de antemano, sino que es producida
en diferentes momentos, por diferentes actores y con la interrelación de múltiples proyectos, lo
que le otorga un carácter permanente de heterogeneidad, que, en ocasiones, los discursos étnico-
territoriales pretenden asumir desde una homogeneidad naturalizada, al invisibilizar o marginar sus
procesos de constitución histórica.
Segundo, la particular producción de esta ‘comunidad negra’, alude a un desplazamiento
de los lineamientos convencionales de ascendencia o descendencia para dar lugar a un discurso
de identidad que se instala en lo político y no en lo racial. Tercero, la enunciación como comunidad
política, conlleva unos efectos también políticos y jurídicos muy potentes, por ejemplo, la negociación
de la consulta previa con la EPSA, el relacionamiento como consejo comunitario con el Ministerio
del Interior y con las entidades territoriales, así como la apertura de canales para el acceso a recursos
económicos, todo esto, asumiendo una identidad históricamente subalternizada.
3 Lo que para el caso colombiano vincularía tendencialmente a las ‘comunidades negras’ con el Pacífico colombiano

237
Sobre el proceso organizativo en clave étnico-territorial

No fueron pocas las veces en que al abordar los orígenes de las formas organizativas con los
habitantes de Mindalá, aparecían los recuerdos del trabajo colaborativo para ayudar a construir la casa
del recientemente llegado a la vereda, esta era quizá una de las actividades de mayor encuentro. El
beneficiado —nos relataban— se encargaba de suministrar los alimentos y bebidas para las jornadas,
los vecinos, por su parte, ponían sus manos para adecuar el terreno y construir en un esfuerzo
conjunto la nueva casa.
En una conversación informal don Israel Sánchez nos decía que se lograba levantar una
buena casa en dos o tres jornadas, pero con añoranza explicaba también que ese tipo de trabajos no
se volvió a dar porque ahora ‘todo es pagando’. Sin lugar a dudas, las prácticas de solidaridad fueron
determinantes para el paulatino poblamiento de las veredas que hoy componen el corregimiento
de Mindalá. Los procesos de ‘hacer finca’, de levantar la casa y de empezar a trabajar la tierra,
requirieron manos amigas y prácticas conjuntas como los convites o los grupos de amistad y las
‘puchas’4 que hoy parecieran —como en las palabras de don Israel— habitar solo en el recuerdo de
los mayores.
Aunque la sanción de la Ley 70 en 1993 constituye uno de los mayores hitos en los procesos
organizativos de las comunidades negras en Colombia, es importante mencionar que, dicha ley
estableció una suerte de ‘modelo’ de lo que se debía interpretar en términos de ‘comunidad negra’
y más aún, se asoció con un espacio geográfico concreto, el Pacífico colombiano, lo que dejaba en
una suerte de vacío jurídico al resto de comunidades negras con presencia y trayectoria histórica de
larga duración en el territorio nacional.
Como nos podremos imaginar, la situación en Mindalá distaba mucho de las condiciones
en las que se venía dando el proceso de titulación colectiva de tierras y de creación de consejos
comunitarios en el Pacífico colombiano, por eso, entre otras razones —al menos en una primera
incursión— la llegada del discurso étnico de ‘comunidades negras’ al corregimiento no captó la
suficiente atención, e incluso, la consolidación del consejo pasó desapercibida para buena parte
de sus habitantes, quienes escuchaban de él solo en época de elecciones de representantes, pues
coincidían con las de las Juntas de Acción Comunal (JAC).
Alberto Casamachín nos comentaba que la gente de la zona no tenía mucha idea sobre los
procesos de comunidades negras, y que solo se escuchaba del tema cuando se daban las jornadas
de elección, que se realizaban de manera simultánea a las de las juntas. Así pues, “uno iba y elegía
su junta y ya pa’ la casa. Y entonces hubo como dos periodos de que se eligió el consejo y pues por
lo menos nosotros no le poníamos como mucha atención a ese cuento del consejo comunitario”.5
Un cambio determinante en el proceso tuvo lugar con la elección de Denis Valencia (2011-
4 Comida comunitaria generalmente preparada a la orilla del río.
5 Entrevista a Alberto Casamachín, vereda La Turbina, realizada por Gysella Obando y Tulio Andrés Clavijo Gallego, 2021.
238
2013), periodo que se caracterizó —como hemos podido entender— por mantener una presencia
más cercana con las personas y por una convicción en la promoción del discurso étnico en el
corregimiento, lo que se hizo posible, entre otras cosas, por un acompañamiento más decido
y constante por parte del PCN. Es en este periodo en el que el consejo comunitario obtiene el
reconocimiento por parte del Ministerio del Interior.6
Esta, que podríamos llamar una ‘segunda’ etapa del consejo, no empieza precisamente en
el periodo antes señalado, ya que desde el año 2008, las escuelas de formación de líderes en cabeza
del PCN habían iniciado un trabajo mucho más cercano en el norte del Cauca. Fue justo en ese
momento cuando Isabel Ramos se empezó a interesar en el tema más a fondo y conoció la experiencia
de líderes como Lisifrey Ararat y Francia Márquez del vecino corregimiento de La Toma.
Con la llegada del discurso étnico, las escuelas de formación de líderes y la mayor difusión
de los contenidos de la Ley 70, empezaría a concretarse gradualmente un proceso de etnización, al
que se articularían de manera cada vez más sostenidas instituciones de diversa índole, entre ellas
la academia. Como consecuencia lógica del proceso de etnización, una identidad históricamente
subordinada como la negra empezaba a tomar relevancia.
Lo interesante es que para el caso particular de Mindalá, esta descansaba sobre una base racial
diversa. Isabel Ramos, representante del consejo entre 2017 y 2019 señala que lo más importante
es entender el consejo como un instrumento de ayuda, tanto para el que se reconoce, como para
el que no lo hace, lo que no en pocas ocasiones le ha merecido señalamientos originados en la
imposibilidad de comprender la ‘unidad’ que se puede construir desde lo ‘diverso’.
Su postura responde, en parte, a quienes como Bauman (2019) señalan que las demandas
por reconocimiento solo cuentan si están sostenidas desde “la praxis de la redistribución, y que la
afirmación comunal de la distintividad cultural aporta poco consuelo a aquellos cuyas elecciones
toman otros, por cortesía de la división crecientemente desigual de recursos” (BAUMAN, 2019, p.
103).

El consejo y la consulta

En 1993, es sancionada la Ley 99, conocida en el ámbito nacional como ‘Ley Ambiental’ a
través de la cual se crea el Ministerio del Medio Ambiente y se sientan las bases para el ordenamiento
ambiental territorial. De manera complementaria, el Decreto 1220 de 2005, reglamentó el Capítulo
VIII de la Ley 99 de 1993 sobre Licencias Ambientales, estableciendo los protocolos para su obtención.
Por su naturaleza, el proyecto Salvajina precisaba la obtención de Licencia Ambiental y

6 Si bien para este momento el reconocimiento se obtiene por parte del Ministerio del Interior, esto ocurre después de
una fuerte presión de las comunidades que estaban reclamando el derecho a ser consultadas en el marco de la operación y
mantenimiento de la Central Hidroeléctrica Salvajina, para lo cual fue vital la participación del PCN (Comunicación personal
con Gysella Obando 5/04/2021).

239
dentro de este contexto, la elaboración de un Plan de Manejo Ambiental (PMA). Los Planes de
Manejo Ambiental se presentan como un conjunto detallado de actividades que, producto de una
evaluación ambiental, “están orientadas a prevenir, mitigar, corregir o compensar los impactos y
efectos ambientales que se causen por el desarrollo de un proyecto, obra o actividad. Incluye los
planes de seguimiento, monitoreo, contingencia, y abandono según la naturaleza del proyecto
[…]”.7
Ante la urgencia de avanzar en la elaboración del PMA, la empresa inició un proceso de
acercamiento con las comunidades en el área de influencia del proyecto, acercamiento que en
primera instancia se propició, como podremos imaginarnos, con las Juntas de Acción Comunal. Un
aspecto central que se debía resolver en esta exploración inicial radicaba en determinar si existían
comunidades étnicas en el área en cuestión, pues de ser así, la consulta previa se precisaría como
requerimiento para poder avanzar en la concreción del PMA.
Recordemos que la consulta previa es el derecho fundamental que busca proteger a los
pueblos indígenas y a otros grupos étnicos, cuando en su territorio se pretendan realizar obras o
proyectos que impacten su integridad social, cultural y económica. En esencia, la consulta vela por
la adecuada participación de la o las comunidades que podrían verse afectadas por dichas acciones y
se fundamenta en el derecho que tienen los pueblos a decidir sobre sus propias prioridades en lo que
atañe al proceso de desarrollo, en la medida en que “éste afecte a sus vidas, creencias, instituciones
y bienestar espiritual y a las tierras que ocupan o utilizan de alguna manera, y de controlar, en la
medida de lo posible, su propio desarrollo económico, social y cultural”.8
Consciente o inconscientemente, la llegada de Isabel Ramos a cargos principales de la junta de
gobierno del consejo comunitario representó para muchos una evidencia concreta de que personas
fenotípicamente no negras podían no hacer parte de la estructura organizativa y de sus instancias
de gobierno, lo que se tradujo en una mayor participación de personas con ascendencia indígena/
campesina, incluso en la vinculación de veredas que por su lejanía al área de influencia del proyecto
no se habían articulado antes al proceso.
Más allá de esto — y tal vez incluso para Isabel y para el consejo pasó desapercibido —,
lo interesante era que, bajo la lectura coyuntural de la consulta, de un lado, y la reflexión de
entender el consejo como un espacio de participación en el que podían caber todos, más allá de una
distinción fenotípica, por el otro, se estaban desafiando/apropiando los términos de conversación/
reconocimiento que se anidaban detrás de la posibilidad misma de ser consultados.
Andrée Viana (2016) ha reflexionado al respecto refiriendo que pese a las dificultades que se
entrañan en el proceso y en el ejercicio de la consulta previa como un derecho, los logros y alcances

7 Presidencia de la República de Colombia. Decreto 1220 de 2005, Artículo 1.


8 Recuperado de: http://www.urosario.edu.co/jurisprudencia/catedra-viva-intercultural/ur/La-Consulta-Previa/Que-es-la-
Consulta-Previa/ [2/04/2019].

240
diferenciales han sido el resultado “de un camino paralelo, más político que jurídico, en el que los
sujetos colectivos indígenas y negros han insistido en el reconocimiento de su subjetividad política”
(VIANA, 2016, p. 21, énfasis agregado). Aunque según su argumento, aun no exista un diálogo
genuino entre las partes, ha servido como un mecanismo para “posicionar sus opciones [las de los
pueblos], y como parte de sus estrategias para alcanzar una gestión verdaderamente democrática de
la tierra” (VIANA, 2016, p. 22).
En consecuencia, sería posible afirmar, que la Consulta favoreció o potenció el proceso
organizativo del Consejo Comunitario de Mindalá a la vez que propuso una agenda capaz de
generar efectos despolitizantes. Sin embargo, como hemos tratado de ilustrar, la primera etapa del
Consejo no generó —según los testimonios que hemos podido compartir— una gran sintonía en
las comunidades del corregimiento, es decir, en buena medida no había una agenda propia, es la
entrada en escena de la consulta la que favorece la aparición de una agenda.
Esta, aunque estaba direccionada desde el lenguaje estatal, va a encontrar niveles diferenciales
de apropiación, representados en esencia por la configuración racial diversa del consejo, como
estrategia no solo de las interhistoricidades constitutivas de este territorio, sino como una respuesta
digna para no ser divididos en el ‘juego de los reconocimientos’.
Claro está que el efecto de opacidad se incrementa en la medida que se crea una expectativa
sobre si las comunidades pueden o no decidir sobre los proyectos que las afectan o afectarán, o
si solo se trata de ‘construir consentimiento’ a partir de una serie de espacios ‘participativos’, en
los que, en el mejor de los casos, se logre acceder a un número incierto de compensaciones. La
pregunta y el debate seguirán abiertos. Pese a esto, me atrevo a sugerir que el carácter sui generis de
esta consulta podría estar generando sendos antecedentes para que este derecho sea leído/apropiado
de manera diferencial por otros sectores de la población “llenándolo de significado y poder desde
abajo” (VIANA, 2016, p. 15).
Rápidamente, los habitantes entendieron que la única opción que tenían para no quedarse por
fuera del proceso de consulta era conformarse como grupo étnico. Desde ese momento el Consejo
Comunitario de Mindalá empieza a percibirse como una alternativa clara de representación, en
la que además se venían gestando los medios para una adscripción que no reparaba de manera
determinante en el color de la piel y en el que, como he insistido tantas veces, se concretaba un
espacio que reconocía la historia compartida.
Bauman (2019) ha señalado que la “adscripción [a una minoría étnica] no es una cuestión
de elección; y en efecto, elecciones tales como las que median la reproducción de minorías étnicas
como comunidades son el producto de la imposición más que de la libertad de elegir” (BAUMAN,
2019, p. 85). Sería posible pensar —al menos de manera previa—, que los procesos de etnización
diferencial que se vienen configurando en el corregimiento de Mindalá pueden estar respondiendo

241
de manera alterna al ‘reconocimiento por imposición’ que se gesta desde el orden jurídico y por qué
no, mostrando una ruta que no responde precisamente al fraccionamiento étnico, sino que establece
como condición de posibilidad, la diversidad en su constitución bajo una identidad históricamente
subordinada como la negra.
En otras palabras, este acercamiento nos ha permitido entender la producción de una comunidad
política que no precisa de un soporte cultural homogéneo. La etnización diferencial, concepto que
hemos utilizado para nombrar el proceso gradual que le permite al consejo comunitario, reunirse
y fortalecerse como una comunidad política desde su diversidad constitutiva, y, además, establecer
términos de negociación frente a iniciativas privadas y estatales que abiertamente atentan contra la
estabilidad de su territorio, deberá seguir siendo objeto de indagación.
A primera vista, se podría pensar que el consejo ha asumido como prioritaria una agenda
impuesta por actores externos (Ministerio del Interior, EPSA) en el marco de la construcción del
Plan de Manejo Ambiental (PMA) y en la instancia de la consulta previa que le acompaña, situación
a la que nos hemos referido antes como ‘despolitizante’, sin embargo, mediante una lectura más
detenida, lo que podemos entender es que el consejo asume los términos de negociación aprovechando
la coyuntura legal y su validación comunitaria como autoridad, para fortalecerse desde el interior y
mostrarse como una opción de liderazgo compatible con otras formas de organización, e incluyente
desde una base racial diversa.
Todo esto, capitalizando también el momento de confluencia que hoy convocan las apuestas
étnico-territoriales. Pese a esto, el dilema se mantiene: por un lado, los procesos organizativos de
corte étnico-territorial como el de Mindalá seguirán en el intento de defender sus apuestas de
trabajo haciendo uso de los mecanismos existentes, y por el otro, deberán ajustar sus agendas “a
los requerimientos del marco jurídico y correr el riesgo de perder el horizonte político mientras se
privilegia el cumplimiento de los protocolos de ley (ROJAS, 2016, p. 241).9
Así, las apuestas de este proceso en construcción, pueden estar marcando rutas alternativas,
no solo para poner en cuestión los estadios desiguales que ha impuesto el multiculturalismo como
política de reconocimiento, sino también como escenario para trabajar por el restablecimiento de
relaciones comunitarias fracturadas por la competencia frente a los recursos implicados en dichas
políticas. Quizás, la etnización diferencial sea una oportunidad bajo la cual se alinean algunos marcos
de referencia sobre lo étnico y lo territorial, pero más allá, el agenciamiento político de la comunidad
puede permitir volver a ver lo común en la diferencia, tomando distancia de esas tendencias “que
fomentan el juego consolador de los reconocimientos” (FOUCAULT, 1984, p. 76).

9 En este desplazamiento hacia lo jurídico existe también el riesgo de transferir en gran proporción los poderes y autonomías
de las comunidades hacia sus asesores jurídicos. Sin embargo, en ocasiones también puede tener “un efecto emancipador, en la
medida en que permita mitigar diferencias de poder entre empresas y comunidades” (Rodríguez y Baquero 2020: 80), situación
que pudimos evidenciar en parte bajo la ruta establecida entre el Consejo Comunitario de Mindalá y la EPSA.

242
Referencias

BAUMAN, Zygmunt. Comunidad. En busca de la seguridad en un mundo hostil. Madrid:


Siglo XXI Editores, 2019.

BOCAREJO, Diana. Tipologías y topologías indígenas en el multiculturalismo colombiano.


Bogotá: Instituto Colombiano de Antropología e Historia, Pontificia Universidad Javeriana, Editorial
Universidad del Rosario, 2015.

CHAVES, Margarita. La multiculturalidad estatalizada. Indígenas, afrodescendientes y


configuraciones del Estado. Bogotá: Instituto Colombiano de Antropología e Historia, 2011.

FOUCAULT, Michel. Nietzsche, genealogía e historia. En: Microfísica del poder. Madrid: La
Piqueta, 1984.

ROJAS, Axel. Estrategias de localización: Desarrollo, capital y comunidades negras en la región


norte del Cauca. En: Axel Rojas, Antonio Liberac Cardoso, Simões Pires y Flávio dos Santos Gomes
(Org.). Territórios de gente Negra: processos, transformações e adaptações: ensaios sobre
Colômbia e Brasil. Belo horizonte: Editora da UFRB, Fino Traço Editora Ltda. p. 215-245, 2016.

VIANA, Andrée. El derecho a la Consulta Previa: echando un pulso a la nación homogénea.


Bogotá: Editorial Pontificia Universidad Javeriana, 2016.

243
CARTOGRAFIA DE UMA VOZ DO SUL

Maria Aparecida de Sá Xavier


airamxavier@yahoo.com.br

Introdução

Esta pesquisa apresenta uma experimentação cartográfica (como um desenho descritivo)


inspirada nas Epistemologias do Sul-Sul1; uma tradução, onde foi proposto realizar certa imersão
nas “trilhas de vida” da interlocutora central deste trabalho – a Profa. Olindina Serafim Nascimento,
Mestre (pela UFES) e Doutora (pela UFF) em Educação, no intuito de cartografar seus carto-
fatos2 (SEEMANN, 2008; XAVIER, 2015, 2018). Neste momento, a trilha de vida de nossa Voz do
Sul ganha relevo como agente social na luta contra hegemônica, por retratar uma mulher negra,
quilombola, feminista. Os fatos mais importantes de sua trajetória são aqueles que a possibilitaram
ou desafiaram seguir dados caminhos na Educação Pública, do Movimento de Mulheres Negras e
Quilombolas.
Trataremos da experiência de vida da interlocutora como um fato histórico e científico, que
marca com sua historicidade o território onde vive, o município de São Mateus, região do Sapê
do Norte – o Quilombo São Jorge. A partir deste lugar, a caminhada se amplia para outros marcos
territoriais por onde passou. Nichos de estratégias e táticas de inserção como resistência cultural
e experiência política territorial. Para revelá-los, utilizamos metodologia qualitativa com intuito
de cartografar as trilhas de vida da Professora, num tom etnogeográfico, aproveitando a experiência
acumulada. Devemos lembrar que falar sobre o outro é sempre uma tradução inconclusa, incompleta,
e a vida algo impermanente. Ela está em um limite da relação entre sujeitos sociais, no contexto
espaço/tempo.
Para tanto, foram realizadas entrevistas dialogadas, gravadas e consensuais, em dois
momentos-contextos, entre maio e junho 2018. Houve um roteiro memorizado, de modo que
ambas as interlocutoras ficassem o mais à vontade possível. Todas as entrevistas dialogadas foram
transcritas e analisadas. Dentre os fatos do espaço/tempo/memória elegemos os mais importantes,
considerando a relevância dada no diálogo. Após a conclusão do trabalho, submeti novamente ao
exame da interlocutora (de certa forma coautora do texto), que emitiu seu parecer. Há um aporte
literário que embasa as categorias, conceitos e fatos que empregamos aqui. Neste sentido, importa
1 Um trabalho de experimentação cartográfica – Epistemologias do Sul, conduzido por Boaventura Sousa Santos. Realizada
no curso Internacional Epistemologias do Sul - CLACSO - na classe 2, sob orientação de Maria Paula Meneses. “Pensamiento
y luchas situadas. Para una cartografía del Sur” (2017-2018).
2 Fatos que podem ser cartografados nas trilhas de vida de um tempo-espaço.

244
esclarecer que a cartografia proposta neste trabalho está para além mapeamento geográfico de um
território estático; trata-se de um desenho que contempla a paisagem vivida.
Se olharmos para a história de vida de Olindina, percebemos uma memória de um
espaço/tempo, sendo que nessa memória encontramos paisagens históricas da autora da “trilha”
(autobiografia). Estas paisagens contêm pontos importantes e estes podem funcionar como topos
que foram mapeados. Serão nossos carto-fatos, segundo Seemann (2006): fatos, no espaço-tempo,
que podem ser mapeados, cartografados.
Essa cartografia é um desenho que acompanha os movimentos de transformação de uma
paisagem vivida. Neste sentido ela é sempre provisória e singular. (...) O cartógrafo é aquele que
quer envolver-se com traçar, quer navegar no movimento, quer misturar-se com os acontecimentos,
quer compor territórios que não sejam fixos por muito tempo, já que o movimento não cessa”,
segundo Barros & Brasil (1992, p. 228).
Seguindo a teoria do geógrafo David Harvey (2005, p. 195), que tomou de empréstimo
de Hägerstrand, os indivíduos sociais são também agentes movidos por propósitos e movidos
por projetos que absorvem tempo através do movimento no espaço. Nesse sentido as biografias
individuais podem ser tomadas como trilhas de vida, e podem ser cartografadas como biografias
individuais. Poder-se-ia iniciar pelas rotinas cotidianas do movimento (da casa ao trabalho; do
trabalho para a casa; das viagens de pequenas distâncias) tendendo-se a movimentos migratórios
que podem durar toda uma vida: juventude no campo, treinamento profissional na cidade grande,
casamento, mudanças de bairro, cidade, estado. Para este autor cartografar/mapear as trilhas de
vida consiste em examinar os princípios e os comportamentos por exame de uma biografia, ou
por relatos de um tempo/espaço memória. De fato, a cartografia é um desenho que acompanha as
mudanças e os sentidos produzidos por determinadas situações de vida nos territórios vividos e
assim constituídos enquanto “lugares” (SEEMANN, 2006; HOLZER e HOLZER, 2006).
Nesse sentido, a vontade de seguir as trilhas de vida desta mulher negra e feminista como
uma Voz do Sul se deu logo na primeira entrevista dialogada. Ali ela apresentou relatos de experiência
de uma vida muito rica, com uma inserção no ensino público de São Mateus (ES), sua terra natal
e lugar onde atuou desde muito jovem no Ensino Fundamental I. Aproveitando oportunidades e
aceitando desafios, estes foram os principais marcos de seus primeiros relatos:

• Foi responsável pela idealização e criação de Uma Escola Quilombola no município


obedecendo a Lei 10.639/2003;

• Tem filiação ao Partido dos Trabalhadores e Militância no Grupo de Trabalho Mulheres em


Ação, Marcha das Margaridas, Representação no Conselho Estadual da Mulher, Fórum de
Mulheres do Espírito Santo, Encontro de Mulheres da Via Campesina;
245
• Desde a especialização que traz o ideal de Educação Quilombola. No Mestrado em Educação,
na Universidade Federal do Espírito Santo, defendeu o tema em dissertação;

• E no Doutorado em Educação na Federal Fluminense, Olindina seguiu no tema, investigando


a formação dos professores quilombolas no município e no estado, incluindo a luta dessas
docentes frente à Pandemia, com todas os empecilhos que o trabalho precarizado e a distância
impuseram.

Destes relatos autobiográficos num geral, foi possível cartografar 12 pontos - topos importantes
(Figura 1), que apresento a seguir de forma resumida, dado o limite do artigo. Importa aqui trazer
a experiência de uma vida como fato histórico, científico, sem preocupação cronológica exata,
mas como acontecimentos da superfície e alguns das dobras do espaço vivido, conforme a figura
esquemática a seguir.

Figura: 1: Pontos em Carto-fatos de Olindina.

Fonte: Elaboração da autora (2022).

Experimentação cartográfica

No exercício da experimentação cartográfica, como já explicamos anteriormente, apresentamos


os 12 pontos da trilha de vida de nossa interlocutora, como fatos que marcaram seu espaço/tempo
vivido. As falas diretas da Professora Olindina Serafim estão entre aspas, e foram recortadas para
compor o formato artigo, numa modificação do trabalho original que tem outro formato, mais livre.

246
Nossa experimentação cartográfica se inicia com o Ponto 1 (Origens Rebeldes) ou marco zero:
Olindina Serafim Nascimento estava com 53 anos (à época da entrevista), e nasceu no dia 05 de
maio de 1965 – o mesmo dia de Karl Marx – como ela mesma faz questão de frisar. Na cidade de
São Mateus; região: Sapê do Norte; localidade: Quilombo São Jorge; Estado do Espírito Santo; país:
Brasil. Na origem familiar, sua mãe exercia a profissão de lavadeira, carinhosa e prestativa, solícita
e comunicativa. Muito conhecida de toda a vizinhança, e até dos filhos dos vizinhos e amigos,
como “conselheira”. O pai exercia profissão de pescador, trazia a severidade como um “cuidado”
particular. Segundo ela o “carinho do cuidado”. É a 11ª das irmãs, sendo que para os país as filhas
tinham que estudar, e dos filhos não era cobrado com tanto empenho. Neste sentido quatro de suas
irmãs são professoras na cidade de São Mateus. Sua irmã mais velha, professora do Estado do ES, foi
sua primeira fonte de inspiração. Olindina se considerava “rebelde” e sofreu a disciplina da infância.
Aqui chegamos ao significativo e contextual Ponto 2 (Ambiente de Aprendizagem). Seu ambiente
era sadio, alegre, festivo, com muitos irmãos, irmãs, amigos e colegas, e se aprendia brincando.
Como era a mais nova das irmãs, aprendeu a ler e a escrever – principalmente matemática, com as
irmãs e com os vizinhos – os colegas – na rua, na brincadeira de Amarelinha. A primeira palavra que
soletrou e escreveu foi céu: “Por que a amarelinha eram 5 casas, né? Que você pulava até chegar ao Céu – e
assim você ganhou o jogo. Sempre com minhas irmãs. Aquelas que sabiam mais, que já estavam na escola, e já
sabiam ler. Elas escreviam e eram com letra de bastão. Escreviam a palavra bem grande – a palavra Céu! Que
era para todo mundo ver – até de bem longe! E ai eu entendia! Quem desenhava a amarelinha fazia o formato
circular do céu, e escrevia a palavra CÉU. Então eu copiava! O significado era aquilo que estava acima da gente.
E era um lugar que você conquistava. Chegar no CÉU da amarelinha era ganhar o jogo! ” (...) “Por isso me
marcou muito a infância de brincar. Eu tinha entre cinco e seis anos e já sabia ler. E não tinha ainda ido para a
Escola. Eu não passei pela Educação Infantil, mas fui direto para o primeiro ano do ensino fundamental”.
Nesses topos encontramos muito a categoria casa como lugar de memória do tempo/espaço,
e registramos como um subitem, vejamos a seguir.
“Minha casa não era de violência, de maldade – a gente chama de “ruindade”. E era uma casa de muita
gente. Meus pais nos trouxeram muito do cedo do Quilombo. ”.(...) “Minha casa, sempre foi uma extensão do
Quilombo, que meus pais vieram para a cidade... ou para a rua. Os parentes quando vinham para fazer qualquer
coisa – ou era para dormir, ou pernoitar, ou ficava o dia inteiro, depois iam embora. Mas sempre iam lá para
casa” (...) “E sempre tinha aquela coisa de troca, né? Aí trazia farinha, outro trazia beijú! Minha casa sempre
teve quintal. Minha mãe tinha um quintal, que ela também plantava. Tinha o costume lá do quilombo, que ela
conservava. Igualmente eu tinha um pé de laranja, cada um tinha uma coisa (árvore) no quintal.”.
Nesse sentido mapeamos três casas em relatos de e com Olindina, além da Vila Serafim: a
primeira casa era de barro no Quilombo São Jorge, no Sapê do Norte; segunda casa - de tábua,
na cidade de São Mateus, e localizada na Rua do Porto. Importante frisar a rua do Porto como
247
um geossímbolo3 da escravidão no território de São Mateus; terceira casa - de alvenaria, na rua da
cidade alta, bairro SERAMBI. Nesta localidade o terreno era suficiente para plantação de mandioca,
hortaliças e muitas fruteiras. Posteriormente a família Serafim foi crescendo, seus pais faleceram, e
os irmãos construíram uma Vila – a Vila Serafim. Quase toda a família mora nesta Vila, exceto ela,
que mora noutro bairro, mas um pouco afastado da Vila e uma outra irmã que está na “região do
Quilombo Nova Vista, na roça”.
Aqui percebemos a questão territorial forte e as categorias: roça/ rua – um par de contraposição
do campo/ cidade. Roça – quilombo. Rua- cidade e bairro Porto ou Serambi (Vila Serafim). “Nossa
rua – uma rua sem pavimentação, com árvore!!” é uma frase repetida.
Há uma Questão de agrária importante – terra – Avô, avó e a questão geracional de terras.
Parece indissociável as terras e a história da família de nossa interlocutora e do Quilombo São Jorge,
posto que “As terras dos meus avós no Quilombo São Jorge eram férteis, e era a única que tinha
acesso à fonte de água, com um rio para pescar, entrada de canoa, além de local para os animais
beberem água. ” Para ela “eles criaram olho grande”! “Como dizer assim, como uma família de
negros pode ter terra boa, com água, né? ” Isto faz uma grande diferença, pois o norte do estado é
muito seco. Após a morte do avô, um fazendeiro vizinho simplesmente declarou as terras do avô,
como terras devolutas. “Não tinha documento! ”
Ainda dentre os marcos da trilha de vida da paisagem e ambiente de aprendizagem (topos 2)
de Olindina, encontramos dimensões contra e pró ao seu caminhar: Entre as barreiras contrárias,
a marca de negritude, como signo de exclusão, de expulsão, do não reconhecimento dos direitos à
terra que habitavam, na relação com os outros “brancos”. E mesmo aqueles que eram “da roça”. A
primeira história de pilhagem da história da nossa interlocutora foram as terras férteis do avô, era
exatamente aonde morava a família. E no lado favorável, a família numerosa, enfrentando a perda da
terra na migração campo- cidade. Nesta ida para a “rua”, haveria mais oportunidades. Como dizia
seu pai... “filha, tem que estudar”. Era o CÉU de Olindina!
Aqui mapeamos o Ponto 3 (Educação Política) abordamos experiências escolares, politicas e
religiosas de Olindina. A começar pelo Ensino Fundamental, na Escola Amâncio Pereira, onde ela
ingressou ao 7 anos. Como a Olindina já entrou na escola domiando o alfabeto e decodificando
leituras, foi sempre muitp pela professora. Em razão disso, passou por vários momentos de
constrangimento, marcantesem sua história e memória. “Que negro não pode ser inteligente neste país,
né?”. As categorias que ela mais repetiu no diálogo: Violência – Escola – Racismo - Sempre. “A cisma, ela
sempre esteve lá. Hoje a criança sabe o que é racismo. Mas a gente não sabia – mas a violência estava lá.” (...)
3 Geossímbolo - o espaço dos geossímbolos se apresenta como – lugar, itinerário, extensão – que num dado espaço-tempo pode
via a assumir uma dimensão simbólica muito forte para certos grupamentos étnicos, sendo que, nessa dimensão, vem cumprir o
papel de reforço da identidade coletiva (BONNEMAISON, 2002).

248
“Na minha infância, no meu período escolar, não tinha assim este start do que era Racismo! Mas nós tínhamos,
mas nós vivíamos esta violência”.
No Ensino Médio, Olindina cursou o Magistério. Consideramos que este foi um momento
de tomada de consciência de suas inquietações e a sua dita “rebeldia”. Trabalhou, inclusive com
a mãe, passando roupas para famílias de brancos políticos da cidade, e estudou. Na educação –
aprendizado fazeres/saberes de Olindina, encontramos também religiosidade e movimento político,
sendo que a mãe a iniciou no catolicismo, e nos movimentos políticos através das Comunidades
Eclesiais de Base. A família sempre foi católica, mas anteriormente frequentava a cabula, uma
religiosidade afro-brasileira do norte do estado do Espírito Santo e sul da Bahia, muito conhecida
no sertão. No catolicismo, foi batizada, crismada e fez primeira comunhão, sendo que atuou como
catequista, coordenadora de catequese coordenadora da liturgia e coordenadora da comunidade por
dois mandatos, na comunidade de São João Batista, São Mateus. Sua história está imbricada com a
história de militância no movimento social negro, e Partido dos Trabalhadores: “em todas as fases de
minha vida, participava de reuniões com minha mãe, na associação de Lavadeiras e Empregadas Domésticas -
ALED, (em minha adolescência tive o privilégio de acompanhar minha mãe nas reuniões da ALED), criada por
dona Cornélia, lavadeira, militante e fundadora do partido dos trabalhadores em nosso munícipio de São Mateus,
concomitante atuava no grupo de jovens na comunidade católica do meu bairro a comunidade de São João Batista,
comunidade fundada por um grupo de moradores.”.
Após o ensino médio, a interlocutora fez um concurso para professor do ensino básico
e fundamental na prefeitura local, e passou. Neste tempo casou, e teve os três filhos. Em dado
momento resolveu que queria mais, e ingressou no Ensino Universitário, no curso de Pedagogia à
noite, numa Faculdade particular4, em Linhares, município vizinho. Ela diz que: “Trabalhava o dia
todo! Estudava à noite! Chegava em casa por volta de 23 horas. A maioria das colegas eram professoras de São
Mateus, e havia muitas professoras negras. E nós fazíamos grupos de enfrentamento, algumas eram do movimento
negro”.
Os relatos de experiência do Magistério em São Mateus: neste momento, com professora
de ensino fundamental Olindina se inseriu nas questões da lei 10. 639/2003, através da educação
Quilombola no município, e trabalhou com a comunidade São Jorge no ensino fundamental. Mas
sentia que os conteúdos não dialogavam com a realidade. Sofreu preconceitos de alguns colegas.
Passou suas questões para as reuniões, incluindo questionamentos sobre os saberes quilombolas, e
porque eles não estavam no currículo de educação quilombola! Foi a criadora da Escola quilombola
no Quilombo São Jorge – segundo ela, não havia educação infantil no Quilombo São Jorge, apenas
ensino fundamental. A secretaria de educação alegava que “Não tem professor, e não tem crianças!”
Então ela se propôs a realizar um “levantamento” e contou com a ajuda de um pai de aluno que
4 Ela não disse o nome, apenas “particular”.
249
lhe trouxe uma lista com 30 crianças! A sala foi nominada de “Vó Maim, que foi uma senhora muito
querida da comunidade” (...) “Nesse momento o DESEJO foi se confirmando! Coloquei o nome de Proposta de
Educação Quilombola! ”.
Aqui marcamos o Ponto 4 (Grandes Datas), onde vamos traçar um panorama geral do espaço/
tempo, enfatizando datas e fatos de destaques, a que ela se refere nos diálogos narrados. Vejamos o
Quadro-síntese:

Quadro 1: Quadro-síntese referentes às Grandes Dats da vida de Olindina


1985 Licenciatura em Pedagogia;
2003 Através da Lei 10.639/2003 é selecionada pelo município para curso de conteúdos da referida
lei – temática étnico-racial
2007 Foi convidada pela secretaria de educação do município para desenvolver um projeto de for-
mação de professores para a implementação da Lei 10.639/2003; foi oportunidade de organizar,
debater, coordenar e obter contato com alunos, famílias e professores sobre o tema. Este fato a
despertou para o Mestrado na Universidade Federal do Espirito Santo (UFES)
2009 Mestrado em Educação, UFES, orientanda do Professor Irineu Foerste
2010 Foi monitora presencial do Curso de Especialização em Educação do Campo, atuando no
município de São Mateus
2011
2012 MEC (Ministério de Educação e Cultura), publica as Diretrizes Nacionais Curriculares para
a Educação escolar quilombola
2013 Atuou como na Coordenação de Comunidades Tradicionais e Diversidade Religiosa. Em um
convênio entre PM São Mateus e Governo ES, Secretaria de Estado de Assistência Social e
Direitos Humanos – SEADH. Foi também a mediadora e voz de comunidades quilombolas,
indígenas, ribeirinha e comunidades pesqueiras.
2014 Sua dissertação versou sobre Memória, Vivência e Saberes das Comunidades Quilombolas
do Sapê do Norte (ES). O desdobramento foi a criação de um Comitê Estadual de Educação
Quilombola para desenvolvimento das ações da educação quilombola e a elaboração o
Plano de Ação da Educação Quilombola (dezembro). Após, retornou para o seu território para
assumir a cadeira definitiva no município como professora de Ensino básico
2016 Convidada pelo prof. Erineu Foerste – UFES, participou do Projeto Escola da Terra como
prof. Supervisor, onde desenvolveu “formação continuada com Étnico racial para os professo-
2017 res graduados e que atuavam no ensino básico.
2017 é aceita no doutoramento em Educação na Universidade Federal Fluminense – Niterói, Rio
de Janeiro/ Niterói, quando a conheci no grupo de estudos de Etnomatemática, da profa.
Maria Cecília Fantinato, da qual foi orientanda
Fonte: Elaboração da autora (2022).

Aqui também nós também mapeamos algumas narrativas dos fatos que marcaram sua
história profissional no município como Educadora – fatos lembranças que a impulsionaram para
o Mestrado em Educação n UFES. Olindina traz em sua memória espaço/tempo personagens de
mulheres negras, professoras, diretoras de escolas, e que não são lembradas na memória da cidade,
pois foram invisibilizadas. Olindina se lembra de algumas pioneiras, como Maria José Lindolfo.
“A cada gestão da prefeitura, da secretaria de Educação o jogo muda. Mas na maioria das vezes a supremacia da
Minoria Branca é quem ganha o jogo”. Olindina reconhece e atravessa a Linha Abissal cotidianamente!
Na escola também se alimenta o corpo - sobre Segurança Alimentar na Escola: A interlocutora

250
pensa que esta é a fração orgânica, ou o elemento orgânico do Movimento! E não deve ficar de fora
da luta. “Que o MPA e o MST já têm construído – consolidado. Isso não é algo dado, mas algo que o movimento
negro AINDA não consolidou. Comer também é um ato político.”.
A chegada até a Universidade pública consideramos o Ponto 5 (Novo Estilo Universitário).
O Mestrado foi uma construção na trilha de vida de Olindina. “E eu entendia, que, se eu fosse para o
mestrado, que eu considerava e considero um estudo de excelência, assim como o doutorado! Eu precisava ir para
refinar a proposta e fazer com que ela pudesse reverberar nas escolas quilombolas. (...) Nós sabíamos da dificuldade
que principalmente numa cidade, aliás, num Estado que tem uma única universidade – a demanda é gigante!
E digamos, o processo é sim – traumático! ” Para concretizar o sonho, Olindina teceu uma estratégia
solidária com amigos e um filho de uma amiga para apanhar os livros da bibliografia, a fim de
estudarem para o exame de seleção. A escolha do professor orientador: ela não conhecia nenhum
professor da UFES, então escolheu pelo critério ‘negro’: “eu sei que coloquei os professores que eram
negros, assim né? E eu imaginava que tinha essa consciência! ”.
O acolhimento Universitário foi um fato: nos primeiros dias de aula interlocutora conheceu
sua orientadora, e ocorreu o acolhimento imediato e o estranhamento. “Durante todo o período, sempre
houve o estranhamento, que eu não deixava de ser diferente, né? Era uma sala de 30 alunos, e tínhamos, acho
que negra, de pele retinta, de marca mesmo, acho que só eu! Aí tinha indígena – a Marly de Aracruz, mas teve
problema e trancou”.
A experiência de vivência na Universidade Pública, foi marcante: “Foi uma experiência
maravilhosa! A orientadora era diretora do Centro (de Educação), e era vice-reitora da Universidade! Havia
muitos africanos que transitavam por lá! Ocorreram muitos seminários com estudantes negros. Um professor
observando o movimento de negros na Ufes, disse: A Ufes está parecendo uma senzala! A minha orientadora
Maria Aparecida, respondeu: Que bom! Porque ela foi Casa Grande durante muito tempo!
No mapeamento, o Ponto 6 (Vivendo entre Lugares) envolve bairros e cidades em novos
desafios. Inicialmente, a cidade de São Mateus, com a paisagem sociocultural de suas vivências:
“Eu moro em uma cidade pequena, e quem domina, quem gesta a cidade é uma minoria branca! Mas quem gera
financeiramente, culturalmente – SÃO OS NEGROS – sejam eles que estão na cidade ou os rurais! (usando a
força da repetição!).” Quando conversamos sobre Vitória, a capital, ela narra que foi residir em casa de
uma tia, no bairro de Santo Antônio, o mais antigo da cidade. Com o tempo ela trouxe as duas filhas
para morar junto dela, mantendo a responsabilidade de mãe na educação das filhas.
Olindina permaneceu sete anos na capital, onde manteve contatos com outros movimentos
negros como o grupo de Congo de Goiabeiras, com o Congo rural de Roda D’água, Cariacica.
Assim como com a Escola de Samba Unidos da Piedade, a primeira e mais tradicional na cidade. A
vivência forte marcou a trilha de vida de Olindina, e o território da cidade também foi marcado por
suas ações.
251
No mapeamento do Ponto 7 (Projetos), vamos encontrar as contribuições acadêmicas. Inicia
com o Projeto Saberes da Terra onde sua participação se deu por um convite na Universidade. “Foi
um projeto com jovens que estavam em defasagem escolar (projeto com outro modelo para jovens da educação no
campo). Então o Saberes da Terra, foi um projeto que participei com uma equipe da UFES, juntamente com os
coordenadores Edna Castro e Paulo Scarim. Foi um momento muito rico, por que tínhamos o pessoal do MST,
das IFES, com uma equipe interdisciplinar. Foi em Vitória, na UFES”. O outro trabalho foi na Secretaria
dos Direitos Humanos do Estado do Espírito Santo, que também foi um convite! “O ano em que
defendi o mestrado, o Perly Cipriano (da organização do PT capixaba), me convidou para trabalhar na secretaria
dos Direitos Humanos do Estado. Aí fui trabalhar na coordenação das comunidades e povos tradicionais. Eu me
lembro que estava num encontro – uma reunião – e uma colega – a Val, me chamou. E disse, estou precisando
mesmo. Eu quero trabalhar com povos tradicionais, quilombolas. Ah, eu topo! E o Perly me disse: você lê bastante,
estuda bastante para você contribuir! ”.
Chegamos agora no Ponto 8 (Recursos Escassos), que mostra a gente não vive só de pesquisa. Este
foi um ponto importante e difícil na vida de nossa interlocutora. Um momento bem complicado,
sendo que só recebeu do Estado por um ano, muito embora tenha trabalhado por dois anos na
função. “As pessoas não entendem isso, eu vivi Racismo Institucional. O processo foi demorado, longo, e consegui
que a prefeitura continuasse me pagando, até que saiu o convênio. Mas claro, que eles não viam nisso nenhum
resquício de Racismo! (...)”.
O Ponto 9 (Contra o Agronegócio) traça uma linha demarcadora do mundo a ser combatido. A
concentração de terras e riquezas impede a vida da maioria, pois discrimina o direito à abundância
apenas para alguns, segundo Olindina. Aqui ela fala sobre às limitações da vida quilombola, no
contexto da monocultura do Eucalipto. “Porque a estrada não tá lá, não é para favorecer o morador, o
quilombola, a população. É para favorecer o transporte de carga (pesada). Seja da monocultura de eucalipto, seja
da monocultura da cana, ou da monocultura do café, do maracujá, por isso... Ela tá lá para atender o agronegócio,
e se der espaço, ela atende a população!!”
Neste item encontramos o Ponto 10 (Questão Quilombola) não só como um desafio fundiário.
Para Olindina, a questão Quilombola é muito maior, e está para além da demarcação de terras.
Orienta a vida, seus valores éticos e visão de mundo. “É além da demarcação de terras, são as coisas que
circundam, que possibilitam a própria vida! É além da demarcação de terras, são as coisas que circundam, que
possibilitam a própria vida! Sim, é lógico, nossas terras, elas tiveram, desde 1960, desde o advento da ditadura
militar que abriu aí para o desenvolvimento do país, né? Os projetos desenvolvimentistas...e seja na área urbana
e na rural, parte destes projetos é em territórios quilombolas, o Brasil afora!! E aí estes projetos não estavam lá
para o desenvolvimento, para a vida destas pessoas, mas pelo contrário! Tanto que muitas destas populações foram
dizimadas. Seja o quilombola, seja o ribeirinho, sejam os indígenas, que foram os povos que foram impactados

252
com os projetos de desenvolvimento, né? Um exemplo é a Aracruz Celulose, a empresa de cana-de-açúcar, tá lá
no Norte...os fazendeiros. Eles estão lá pensando nesta ideia de desenvolvimento deles! ”.
Chegamos agora no Ponto 11 (Doutorado) como renovação da pesquisa acadêmica. O
doutoramento se deu na Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, no que ela reconhece
como grande vitória: “Meu objetivo na universidade, como estou agora na UFF, com esta proposta de analisar
o currículo das escolas! Seja do Estado, ou seja, do Município... para formação dos professores. Qual é a Educação
que há hoje na escola quilombola, ou na escola pública, que recebe estudantes quilombolas, e o que esta análise,
e o que pode ser sugerido para que o Estado trabalhe com os professores destas escolas, ou com este público – dos
estudantes quilombolas? Nesse sentido, o projeto do doutorado continua com a formação dos professores do Estado e
do Município. Inclusive durante o meu processo de pesquisa, do Mestrado, e a partir ... como resultado da pesquisa,
foi sugerido um convite, uma organização do Comitê Quilombola. Então foi criado um comitê, que saiu uma
portaria do comitê de Educação Escolar Quilombola. Fizemos seminários e a audiência pública com a professora
Nilma Lino Gomes. Ela foi ao Estado do ES, a convite do GT. Esta foi uma articulação minha, para que ela
pudesse ouvir as demandas da Educação Quilombola do Estado”.
Finalmente chegamos ao último topo, o Ponto 12 (Cinema Afro) – que chamamos de
contribuições artísticas, focadas no discurso da Professora sobre a produção cinematográfica para
além das questões educativas. São contribuições de Olindina para arte / cinema/ população afro-
brasileira: “Um dos professores da Ufes, o Erineu Foerste, que trabalha com metodologia na UFES, com
educação no campo, foi o fomentador de um Encontro. Um cine quilombola, para apresentar (exibir) por meio
da arte do cinema o que há nas comunidades quilombolas. E assim foi reunido tudo o que foi produzido em
relação as comunidades quilombolas por meio do Cinema. Aí vieram os vários documentários. Um dos produtores
me enviou um convite para explicitar o que poderia contribuir por meio da Educação. Sugeri uma mesa para
discutir Educação Quilombola! A educação quilombola como implementação e como resultado da política da Lei
10.639/2003. Eu mesma montei a mesa, e chamei com quem poderia dialogar. Usei minha experiência agora
da UFF. Chamamos uma advogada, a Rosane Muniz, porque ela é advogada do movimento. Da associação
da comunidade quilombola de Linharinho – Conceição da Barra. Compreende a luta, e acompanha o GT de
Educação Quilombola. Chamamos também uma professora que atua na Escola de Ensino básico e fundamental
quilombola, a Josinéia. Ela é também quilombola e professora da escola no quilombo. Fui a coordenadora da mesa!
Neste evento assistimos os filmes, e depois passamos aos debates e comentários. Foi um momento muito rico. E foi
maravilhoso. Fizeram oficinas de cinema! Com participação dos jovens quilombolas. ”

Para não concluir

Esta é uma obra aberta e inconclusa, fluída, cheia de recortes, rabiscos, um espaço de muitas
reentrâncias, dobras e que não obedecem a uma ordem cronológica. Mas se assemelha mais a uma

253
obra de arte, onde seguimos as paisagens das trilhas de sua vida. Apenas nomeamos, pontuamos,
cartografamos seguindo as linhas do percurso autobiográfico, as paisagens descritas, apresentadas por
Olindina, generosamente e gentilmente, por isso ela é coautora do trabalho no processo de tradução,
numa proposta metodológica pós-abissal. Como resultado consideramos as estratégias e táticas de
inserção como resistência cultural, e experiência política territorial – um saber importante na luta
decolonial, antipatriarcal, anticapitalista. A “rebeldia” de nossa Voz do Sul é sua (re)existência, um
saber, e uma potência de vida. “Chegar ao Céu da amarelinha era ganhar o jogo! ”, nos afirma Olindina.

Referências

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In: RODRIGUES (org). Grupos e instituições em análises. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos,
1992.

BONNEMAISON, Joel. Viagem em torno do território. In: CORREA, Roberto L., ROSENDAHL,
Zenny (orgs,). Geografia Cultural: um século (3). Rio de Janeiro: EDUERJ, 2002.

HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Ed. Loyola, 2005. p. 185-289.

HOLZER, Werter; HOLZER, Selma. Cartografia para crianças: qual é o seu lugar? In: SEEMANN,
Jörn (org.). A aventura Cartográfica: perspectivas e reflexões sobre a cartografia humana.
Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2006.

SANTOS, Boaventura Sousa. O Fórum Social Mundial: manual de uso. São Paulo: Cortez,
2005.

Para além da Linha Abissal. Das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos estudos, n.
79, vol. 2, 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/nec/n79/04.pdf. Acesso em: fev. 2017.

SEEMANN, Jörn (org). Abordagem para a Geografia Cultural Brasileira. Mesa: história,
teoria e métodos em geografia cultural. Apresentado no VI Simpósio Nacional de II Simpósio
Internacional sobre o Espaço e Cultura de 29 a 31 de outubro de 2008. Rio de Janeiro: NEPEC-
UERJ, 2008.

XAVIER, Maria A. de Sá. Os festejos devotos do Ticumbi como uma narrativa identitária territorial
na Paisagem da Vila de Itaúnas. Geograficidade. v. 5. Número especial, 2015.

Cartografia de uma Voz do Sul: Olindina Serafim Nascimento. Monografia final de curso
apresentada ao Curso Internacional Epistemologias do Sul - Prof. Boaventura Sousa Santos e Maria
Paula Meneses. Buenos Aires, Clacso. 2018. mimeo.

254
ARTE NAS MÃOS: A GEOGRAFIA COM AS MULHERES CAMPONESAS NO
CEARÁ E EM TOCANTINS (BRASIL)

Alexandra Maria de Oliveira


alexandra.oliveira@ufc.br

Maria Aline da Silva Batista


geoalinebatista@gmail.com

Thayssllorranny Batista Reinaldo


thayssuft@gmail.com

Introdução

A cultura camponesa, material e imaterial, pode ser apreendida por meio das paisagens.
Cotidianamente, homens e mulheres modelam e remodelam seus territórios no trabalho com a
terra e nela imprimem valores, crenças e modos de vida. Dessa maneira, o saber-fazer camponês,
que é produto de um pertencer, se expressa concretamente nas formas de cultivo e no uso dos
recursos naturais.
Especialmente as mulheres camponesas, por historicamente terem sido excluídas do mercado,
mantêm uma relação de apego e identidade com os seus cultivos, seja nos quintais produtivos, seja
nos roçados. Posto isso, podemos dizer que a agricultura camponesa praticada pelas mulheres é uma
forma de expressão de criatividade e arte. Para além do cuidado com as plantas alimentícias ou com
potencial comercial, está toda uma variedade de plantas ornamentais e nativas, que são cultivadas
por questão de preferências e gostos pessoais.
A arte de cultivar os arredores de casa – como também são chamados os quintais produtivos
–, afora o valor econômico e ambiental que esses espaços representam, é a materialização de uma
cultura, cuja transmissão de conhecimentos se dá pela oralidade. A arte, nesse caso, é tanto um
meio de expressão como de fortalecimento da identidade, já que cada quintal é único no tempo e
no espaço. Não existem dois quintais iguais, nem é possível uma constância da produção, pois a
natureza impõe seu ritmo e as demandas e possibilidades da família também mudam ao longo do
tempo.
A resistência camponesa frente ao latifúndio, ao agronegócio e à capitalização da agricultura
tem notoriedade pública na luta pela reforma agrária popular no Brasil – por meio dos movimentos
socioterritoriais, mas também se faz nos “territórios camponeses”5 que se materializam em sítios,
5 Território camponês “entendido como fração ou como unidade é o sítio, o lote, a propriedade familiar ou comunitária, assim
como também é a comunidade” (FERNANDES, 2012. p. 744, grifos do autor).

255
vilas e assentamentos rurais (BATISTA et al, 2021). No Ceará e em Tocantins, a luta dos camponeses
pela terra viabilizou a criação de muitas comunidades rurais, as quais são lócus de suas práticas
sociais, políticas e econômicas. É a partir desses territórios que os valores culturais do campesinato
se reproduzem por meio da família, a qual se constitui no seu núcleo irredutível.
A família e a comunidade – parentes, compadres e vizinhos – configuram, de acordo com
Woortmann (1995, p. 247), “a linguagem de parentesco [a qual] joga um papel de esquema
organizador, não apenas no seio do discurso desses camponeses, mas também em sua prática”. É
pela prática camponesa – modo de vida, formas de cultivo, relações sociais – que o campesinato
constrói sua resistência como classe. No entanto, o campesinato não está imune às contradições
internas e às reproduções de opressões inerentes ao Capitalismo, pois embora se oponha a ele – em
sua lógica de funcionamento, está nele contido; é parte da sociedade capitalista.
Dessa forma, expressões típicas do sistema patriarcal-moderno-colonial, como a subordinação
das mulheres, menor liberdade social das meninas e adolescentes e invisibilização do trabalho
feminino, foram observadas nas comunidades investigadas, corroborando fatos já citados na
literatura como a “relação casa-roçado” (HEREDIA, 1979) e da divisão dos espaços de lazer – com
os meninos nos campos de futebol e as meninas nas festas da igreja (SALES, 2003).
Embora haja a divisão dos espaços de forma hierarquizada entre homens e mulheres, essas
regras sociais frequentemente são transgredidas, ora por necessidade – na ausência de homens na
família ou alguma impossibilidade deles –, ora por ousadia e determinação de mulheres que não se
resignam a uma situação de subordinação. Em ambos os casos, o que fica provado é que essas regras
não possuem fundamentos sólidos, somente preconceito. Assim, as mulheres vão, paulatinamente,
conquistando autonomia, respeito e dignidade; passam a liderar grupos comunitários, associações
e sindicatos.
Na prática política, discutem entre iguais suas pautas, aprimoram os discursos, reconhecem
novos desafios de gênero e lutam por igualdade, por terra e por direitos. Constroem, assim,
consciência de classe como mulheres camponesas. A resistência se dá, então, em duas frentes: na
esfera pública e na esfera privada. É preciso engajamento político, como liderança ou membro
efetivamente participante; é preciso se inserir no mercado por meio das feiras; das entregas de cestas
delivery, dos mercados institucionais; mas, também é preciso dividir as tarefas em casa, a fim de ter
tempo de lazer e descanso.
As mulheres entrevistadas nesta pesquisa são camponesas que, por razões diferentes, tornaram-
se protagonistas na luta pela defesa de seus territórios, seja pela posse da terra, pelo sustento familiar,
pela liberdade no trabalho ou por autonomia de renda. Assim, ao ultrapassarem barreiras para lutar
por justiça para suas famílias e comunidades, elas quebraram paradigmas patriarcais e se firmaram

256
como sujeitos políticos autônomos, legando para as gerações futuras de mulheres camponesas novas
possibilidades de ser no mundo.
O objetivo do artigo foi refletir sobre a relevância do trabalho feminino, tido como arte, para
a resistência do campesinato e para o desenvolvimento local. A metodologia tem por base pesquisa
bibliográfica sobre as temáticas campesinato, gênero e questão agrária no Ceará e em Tocantins.
Para coleta de dados, foram realizados trabalhos de campo presenciais, observação direta, conversas
informais e entrevistas semiestruturadas virtuais por meio das plataformas Google meet, Whatsaap,
Instagram. A fim de manter o sigilo sobre a identidade das camponesas entrevistadas, utilizamos
letras para nos referirmos a elas.
Como resultado das observações realizadas, identificamos que o trabalho das mulheres
camponesas contribuiu com a renda familiar e desenvolveu a sociabilidade política na comunidade e
o fortalecimento da rede de proteção social, gerando, inclusive, mudanças na paisagem. A produção
agroecológica é uma estratégia de resistência do campesinato que nega a lógica do Capital. Ficou
evidenciado também nos depoimentos das camponesas o apelo estético que os quintais lhes evocam,
sendo, portanto, espaços de identidade e pertencimento.

O trabalho (arte) das mulheres camponesas no Ceará e em Tocantins

No Brasil, a expansão do modo capitalista de produção tem desenvolvido, por um lado,


grandes complexos agroindustriais para a produção de commodites como frutas tropicais (no Ceará)
e a soja e o eucalipto (em Tocantins), negociadas nas redes do mercado mundial. Por outro lado,
expropria camponeses de suas terras e os submete à lógica do mercado. No processo, a lógica
capitalista nem sempre alcança com a mesma intensidade todos os lugares ou mesmo esbarra em
territórios constituídos por lógicas contra-hegemônicas que dificultam a sua continuidade, as
chamadas rugosidades, como descrito por Milton Santos (2012).
Muitas das comunidades aqui relatadas são espaços sociais submetidos à lógica capitalista,
mas que, por suas racionalidades, não são compatíveis com o desenvolvimento de uma agricultura
industrial. Portanto, optam por se reconhecerem como sujeitos sociais capazes de desenvolver um
projeto de agricultura baseado na agroecologia e numa relação sustentável com o meio ambiente a
partir do trabalho familiar.
As comunidades localizadas nos estados do Ceará e Tocantins possuem aspectos físicos,
sociais e político-econômicos próprios, o que lhes configuram paisagens distintas. Se de um lado,
em Quixadá, os camponeses têm que lidar com as limitações impostas pela semiaridez; em Viçosa
do Ceará o desafio que se coloca para a agricultura camponesa é se inserir num mercado dominado
pelas grandes corporações; já em Limoeiro do Norte a questão agrária se revela nos conflitos por
terra, onde os camponeses lutam para garantirem o direito de viver e produzir.
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Por outro lado, no Tocantins os camponeses e as quebradeiras de coco babaçu, que residem
na porção norte do estado, deparam-se com o fortalecimento do agronegócio, seja por meio da soja,
do gado ou do eucalipto, e precisam resistir e se organizar coletivamente para fazer frente à expansão
da fronteira agrícola e à reprodução ampliada do capital sobre seus territórios. Ambas realidades, a
tocantinense e a cearense, possuem em comum a certeza de que o acesso à terra é condição para sua
reprodução social como sujeitos políticos em luta por dignidade.
Tanto no Ceará como em Tocantins, a organização das camponesas tem como razão estruturante:
o reconhecimento social e a garantia de direitos, sobretudo previdenciários e trabalhistas; a geração
de renda e a liberdade de aprender e criar o seu trabalho. São relações estabelecidas na família em si,
na vizinhança e na comunidade e a partir do trabalho com a terra, constituindo aspectos do modo
de vida que permitem a reprodução da cultura, das técnicas e da identidade camponesa.

Figura 1 – Horta agroecológica em Quixadá

Fonte: foto cedida pela camponesa “A” (março, 2021).

No Ceará, as comunidades visitadas foram: Vila Rica, em Quixadá (Figura 1), mesorregião
do Sertão Central, onde entrevistamos a camponesa “A”, que, além de garantir a produção para o
consumo da família, comercializa na Feira Agroecológica de Quixadá e na Feira Agroecológica do
CETRA (Centro de Estudos do Trabalho a Assessoria Técnica ao Trabalhador e à Trabalhadora),
em Fortaleza.
Entrevistamos também, nesse caso via Internet, a camponesa “B”, da comunidade Juá dos
Vieiras, em Viçosa do Ceará (Figura 2), mesorregião da Ibiapaba. “B” trabalha em sua pequena
propriedade em conjunto com o marido. Ambos comercializam a produção na Budega do Povo, em
Viçosa do Ceará, e também na Feira Agroecológica do município.
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Figura 2 – Horta agroecológica em Viçosa do Ceará

Fonte: foto cedida pela camponesa “B” (junho, 2020).

Por fim, realizamos entrevistas, também via Internet, com a camponesa “C”, do Acampamento
Zé Maria do Tomé, Limoeiro do Norte (Figura 3), mesorregião da Chapada do Apodi. “C”
trabalhava no grupo das mulheres da mandala do Acampamento Zé Maria do Tomé até decidir sair
do acampamento, em agosto de 2021, por problemas de saúde e, conforme relatado por ela, “medo”.

Figura 3 – Mandala das mulheres do Acampamento Zé Maria do Tomé

Fonte: foto cedida pela camponesa “C” (janeiro, 2021).

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Em Quixadá, encontramos a camponesa “A”, mulher negra, mãe solo, que ao longo da vida
se dividiu na tripla jornada de trabalhadora rural, mãe e dona de casa. Atualmente, com 50 anos de
idade, ela nos mostra orgulhosa o seu quintal. Conta-nos sobre as dificuldades que teve de criar o
filho sozinha, dos problemas de saúde dele quando criança e das inúmeras idas e vindas de Quixadá
a Fortaleza, em busca de tratamento.
Por conta disso, a produção ficava em segundo plano, o que resultava em dificuldades
financeiras. No entanto, sua fala é cheia de esperança. Mostra-nos as suas conquistas e como sua
vida melhorou com a produção e a comercialização agroecológicas. Tanto a venda na feira como
em programas de compra direta do governo, no caso o PNAE (Programa Nacional de Alimentação
Escolar), são essenciais para a manutenção da renda familiar.
A suspensão do PNAE, desde o início da pandemia, tem feito falta para o incremento da renda
e tem repercutido negativamente na produção, já que se fez necessária a redução ou paralização total
de algumas atividades. A dona “A” nos revelou que a produção agroecológica e a comercialização
na feira agroecológica do município foram os caminhos encontrados para manter uma produção
economicamente viável, mesmo tendo que comprar água e trabalhando sozinha. Ela contou que:

É com o dinheiro das feiras que eu pago a pipa [água] no período seco. É de três a quatro
‘carrada’ por mês... Pra o uso da casa, eu pego a R$ 100,00, pra produção a R$ 50,00, porque
é outra água, daqui mesmo... ele só faz encher o caminhão e trazer. (Camponesa A, Quixadá)

O relato da camponesa revela a importância da produção e da comercialização agroecológica


na resistência camponesa, especialmente no semiárido, onde a escassez hídrica na maior parte do
ano é fator limitante. No entanto, como podemos perceber com o depoimento da dona “A”, os
camponeses encontram formas de se inserir no mercado a fim de manter a produção. Diferentemente
da lógica capitalista, a produção camponesa não é destinada primeiramente para o mercado, mas
para o autoconsumo da família e para doações e trocas na comunidade.
O objetivo de se inserir no mercado, para os camponeses, é garantir as condições materiais
de sua reprodução (CHAYANOV, 1974). No Tocantins, as comunidades visitadas foram,
primeiramente, as Quebradeiras de Coco Babaçu, no município de Tocantinópolis (TO) e, em
seguida, o Assentamento Amigos da Terra, em Darcinópolis, e os camponeses do município
de Carmolândia (TO). Na primeira comunidade, trata-se de mulheres que lutam diariamente
para sustentar a família por meio da lida com o coco babaçu (Attalea speciosa) e que repassam seus
conhecimentos por gerações (Figura 4).
A arte de quebrar o coco exige habilidade, força física e atenção. A casca rígida do coco não se
rompe facilmente, porém, a destreza das batidas faz com que o empenho pareça parte de uma fácil

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coreografia, cujo ritmo dá o tom da vida e o som se mistura às conversas e risadas das companheiras. A
polpa do coco é transformada em azeite, utilizado na culinária local e, também, como medicamento.
Da casca é feito o carvão, que abastece os fogões das famílias.

Figura 4 – Quebradeira de coco babaçu, quebrando o coco

Fonte: Reinaldo, T. B. (2020).

Praticamente todas as partes da palmeira são aproveitadas, da palha que cobre as casas, ao
caule, que serve de adubo para as plantas. Essas mulheres têm uma história de luta e resistência, e por
muitas vezes já foram alvos de perseguições por parte de fazendeiros, que tentaram proibir a entrada
delas para a extração do coco em suas propriedades. Essa situação contribui para a organização
coletiva e política do grupo por meio de associações e até mesmo via Movimento Interestadual das
Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), criado na década de 1990. No Assentamento Amigos da
Terra, localizado em Darcinópolis (TO), a agroecologia tem feito parte do cotidiano da comunidade
e, em sua maioria, quem lidera as atividades agroecológicas são as mulheres (Figura 5).

Figura 5 – Canteiro de mudas no Assentamento Amigos da Terra – Darcinópolis (TO)

Fonte: Reinaldo, T. B. (2020).

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As práticas sustentáveis vão desde a manutenção do banco de sementes crioulas, que são
trocadas com outras comunidades tocantinenses e de outros estados brasileiros, à utilização de
adubos orgânicos e cultivo de canteiros de mudas, que são plantadas na comunidade e doadas para
escolas. Já no município de Carmolândia (TO), os camponeses que plantam em uma pequena
parte cedida por um fazendeiro, produzem de forma manual com apoio do trabalho da família, que
ajudam desde o plantio à colheita. Trata-se de comunidades que têm em comum o sonho da terra
de trabalho e de dignidade de vida.
As mulheres entrevistadas possuem origens camponesas e estão localizadas em vilas,
assentamentos, acampamentos e /ou comunidades rurais. São mulheres que tem uma formação
em processo, ou seja, para além de ser mãe e dona de casa, buscando aprender novas formas de
produzir, aproveitar os alimentos e dialogar com o mercado interno e externo.
Com isso, lutam pela valorização da agricultura camponesa agroecológica, equidade de gênero
e reforma agrária. São, muitas vezes, mulheres que possuem um histórico de formação política
nos movimentos socioterritoriais, sendo, portanto, referências em suas comunidades. Assim, elas
assumem a liderança de associações comunitárias, grupos de comercialização agroecológica, entre
outros.

Considerações finais

Pensar sobre a cultura camponesa a partir da arte (trabalho) desenvolvida pelas mulheres,
significa refletir acerca da condição de subordinação e silenciamento em que as mulheres
camponesas, quase sempre, estiveram submetidas nas negociações de órgãos públicos estaduais
com os trabalhadores e as trabalhadoras rurais. A abordagem adotada pela equipe considerou
acampamentos, assentamentos, sítios e comunidades como espaços de relações sociais constituídos
por sujeitos no processo de luta por condições dignas de vida e trabalho no campo.
Muitas das mulheres vivenciam o processo de reforma agrária gotejado em políticas públicas
estaduais. Os dados de pesquisas em desenvolvimento apresentam-se de forma transversal, passando
por mulheres camponesas no Ceará e em Tocantins, revelando que o tempo casa-roçado, em que
as mulheres encontravam-se espoliadas não apenas do seu trabalho visto como “ajuda”, mas de
qualquer iniciativa de desenvolvimento de seu potencial criativo, segue para o tempo da luta pelo
reconhecimento, em que surge articulações fortes com as parentes e as vizinhas, e, ainda, com
organizações não-governamentais que as ajudam a entender que a condição de mulheres camponesas
traz novos desafios à organização e outras exigências para a vida nas comunidades.
Em síntese, do ponto de vista socioeconômico, a organização das camponesas tem como
razão estruturante: o reconhecimento social e a garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; a

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mão-de-obra, antes, considerada subutilizada, principalmente de mulheres, hoje é parte constitutiva
da renda familiar; os projetos direcionados prioritariamente às mulheres via Programa Nacional
de Alimentação Escolar (PNAE) contribuíram substancialmente para a circulação de capital nos
municípios do interior, tornando-as importantes dinamizadoras das economias locais.
Do ponto de vista da cultura camponesa, temos visto a inserção cada vez maior e melhor da
arte feminina nas capelas em dias de festas das comunidades e no resgate das tradições de seus lugares
de origem, quer seja com a preservação de sementes crioulas ou mesmo com o resgate do cultivo
de plantas para produção de remédios caseiros. Do ponto de vista socioambiental, observamos uma
grande preocupação das mulheres com a utilização dos solos, das florestas e das águas.
Há, muitas vezes, uma articulação das escolas do campo com as mulheres para o desenvolvimento
de uma educação agroecológica livre de agrotóxicos e a favor práticas alternativas como as mandalas
e os quintais produtivos dentre outras tecnologias sociais. E assim, vamos seguindo refletindo sobre
a arte nas mãos (trabalho) de mulheres camponesas no Ceará e em Tocantins que buscam caminhos
de resistência na sociedade capitalista.

Referências

BATISTA, M. A. S. et al. Elas estão em cena: a resistência de mulheres camponesas no Ceará. In:
MACHADO, I. C. B. et al. (orgs). Geografia cultural do feminino: enfoques e perspectivas.
Santa Maria: Arco Editores, 2021. v. 1. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/59298.
Acesso em: 22 fev. 2022.

FERNANDES, B. M. Território Camponês. In: Caldart, R. S., Pereira, I. B.; Alentejano, P. &
Frigotto, G. (Orgs.). Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio: Expressão Popular. 2012.

HEREDIA, B. M. A. A morada da vida: trabalho familiar de pequenos produtores do Nordeste


do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

SALES, C. M. V. Criações Coletivas da Juventude no Campo Político: um olhar sobre os


assentamentos rurais do MST. Fortaleza. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal
do Ceará, Ceará, 320 f, 2003.

SANTOS, M. A natureza do espaço. 4ª ed. São Paulo: Edusp, 2012.

WOORTMANN, E. F. Herdeiros, parentes e compadres – Colonos do Sul e Sitiantes do


Nordeste. São Paulo – Brasília: Hucitec – Edunb, 1995.

263
METODOLOGIA COMPARTILHADA E ANTROPOLOGIA FÍLMICA:
O DOCUMENTÁRIO POESIA E RESISTÊNCIA

Vicente de Paulo Sousa


vicentypsousa@hotmail.com

Nilson Almino de Freitas


nilsonalmino@hotmail.com

Introdução

O filme “Poesia e Resistência”, dirigido por Vicente de Paulo Sousa, tendo como diretor
de produção Nilson Almino de Freitas, coordenador do Laboratório das Memórias e das Práticas
Cotidianas – LABOME, da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA, foi um filme resultado
da pesquisa “A poesia como narrativa do espaço: o bairro e o lugar sob a dinâmica do território na
periferia de Sobral/CE”, que gerou a dissertação de mestrado em Geografia na UVA, por parte do
diretor do filme. Seu acesso pode ser feito através do canal do LABOME Visualidades no Youtube1.
É uma pesquisa que teve continuidade e está presente ainda nas atividades do LABOME, gerando
vários trabalhos compartilhados com coletivos de jovens que atuam na produção cultural em Sobral,
no estado do Ceará.
O foco do documentário é a poesia marginal ou literatura menor, como denominam Deleuze
e Guattari (2017). Ressaltando que essa foi uma dinâmica potente na obtenção de dinâmicas de
relações colaborativas por parte do pesquisador e dos pesquisados que duram até o presente. À medida
que se adentrava intensamente no campo e na relação com os pesquisados, outras possibilidades
foram surgindo nesse meio.
A ideia da pesquisa e do filme é fazer uma geografia dos desejos e práticas cotidianas dos
artistas que se apresentam, tanto nas batalhas de rap, especialmente a que acontece no bairro Terrenos
Novos em Sobral, quanto os que se apresentam no movimento Slam da Quentura. No filme, os
artistas expressam em suas poesias, a subjetivação do espaço e territorialização de suas vontades por
um mundo melhor no espaço cultural da cidade.
Para Deleuze e Guattari (2017), o marginal não é pensado no sentido de “criminoso sem
sentimento e cruel”. Para eles, o marginal não se enquadra em concepções majoritárias de modelos
de comportamento e subjetivação da experiência cotidiana que impõe uma suposta normalidade em
uma padronização homogeneizante do comportamento do corpo na cidade. A agência marginal tem

1 https://www.youtube.com/watch?v=bzWE36Ob5kw.

264
o poder transformador, via resistência, indo além de um processo de construção de uma identidade
modelo sólida, estável, fixa e homogênea do ponto de vista da “normalidade”.
É uma agência de transversalidade, com singularidade, com fluxo, expressando o desejo,
potência e intensidade. É uma provocação que desestabiliza a tendência de tentativa de estabilização
de um modelo “normal” de consciência, pautada no individualismo e no sistema econômico
majoritário, pautado na economia e cultura capitalista do mundo contemporâneo. A agência
marginal tende a marcar o corpo com diferenças, mostrando força para lutar em busca da recriação
de sua existência na sociedade.
É um corpo que investe na transformação, gerando o conflito na sua provocação, investindo
na territorialização da cidade. Geralmente, são vistos como “problemas” a serem resolvidos pelas
forças majoritárias que ocupam os equipamentos públicos e privados na sociedade. Falando em
resistência, pensando como Krenak (2019), os corpos marginais, valorizados no filme, investem na
subjetivação da experiência pregando a necessidade de respeito à diferença, mostrando autonomia
e provocando a reflexão crítica sobre um modelo de humanidade destrutiva, violenta e perversa,
especialmente na defesa de corpos empobrecidos pelo sistema econômico: negros, mulheres,
LGBTQIA+ e periféricos.
Em suas poesias, algumas singularidades dos lugares, que se esforçam em territorializar,
aparecem a partir de desejos de espacialidades pelas quais são mediadas por simbologias que unem
a realidade material, ideias, valores e afetos. O lugar privilegiado geralmente é o das “quebradas”,
da “perifa” ou ainda da “favela”, apesar da cena montada para exposição da poesia nem sempre
acontecer na periferia pobre da cidade. No caso do Slam da Quentura, por exemplo, é no centro
urbano, numa praça bastante central da cidade de Sobral, onde ocorrem esses eventos. Mesmo no
caso das Batalhas de Rap, especificamente a Batalha do TN, a escolha é pela praça mais frequentada
do bairro. Segue uma breve descrição do filme para pensarmos melhor o seu conceito.

O filme

O documentário “Poesia e Resistência” inicia com gritos de guerra dos dois movimentos.
Primeiramente, podemos ouvir o grito: “Batalha do TN é conhecimento, vocês querem ver, rima e
talento!”, que é produzido no início do evento de batalha de Rap do bairro Terrenos Novos, periferia
pobre de Sobral. Algumas fotos dos jovens que participam aparecem como pano de fundo. A batalha
acontece numa das praças do bairro. Em seguida aparece o MC Leandrinho afirmando que a rima é
o êxtase do artista, vindo do seu coração, da sua mente e aprendizado. Em seguida o grito de guerra
do Slam é feito: “Poesia nua e crua, Slam da Quentura”, que se refere a um dos vários encontros de
jovens do movimento Slam de Sobral. O termo “quentura” é uma referência ao calor constante da

265
cidade. Após o grito, que é acompanhado por fotos dos poetas, a Bicha Poética aparece informando
que o Slam da Quentura é o primeiro campeonato de poesia oral do Ceará.
A ideia do filme é intercalar a fala de um dos participantes dos dois movimentos, com recitações
poéticas cantadas ou faladas. Na primeira sequência aparece Restrito MC falando da relação do
Rap com a periferia, especialmente a manifestação de protesto necessário contra “o sistema”. Logo
depois, um trecho da Cypher (Encontro de vários MCs em uma mesma música) em que ele está
envolvido, fala sobre esse tema.
A crítica à violência provocada pelas desigualdades sociais e a fome dá o tom da poesia cantada.
O “sistema” é um símbolo a ser combatido que causa tudo que é ruim para as pessoas em sociedade,
segundo a percepção dos poetas. É o causador da exploração, da fome, da violência contra os corpos
que moram nas “quebradas”.
Esse mesmo tema de defesa da periferia e protesto contra o “sistema” acompanha a poesia
declamada por Fran Nascimento no Slam da Quentura. Logo depois, Sabrina Sá explica que a
poesia Slam é a poesia marginal e existem vários grupos espalhados pelo Brasil e pela cidade. Nessa
sequência, o feminismo, associado à negritude e à periferia passa a ser o tema tanto da batalha
quanto do Slam. Em ambos Sabrina participa. Aparece ela em seguida cantando sobre o preconceito
contra a mulher. Cacheada Santos aparece recitando uma poesia no Slam da Quentura falando do
mesmo tema.
A sequência seguinte é sobre o preconceito também, mas relacionado ao movimento
LGBTQIA+. Bicha Poética comenta sobre a relação com o Slam e recita um poema em uma de
suas apresentações. O poema fala de outros marcadores sociais relacionados ao preconceito, além
do movimento LGBTQIA+. Fala da negritude e da “favela”, misturando variáveis que, nos termos
dela, “destroem” uma visão imposta e preconceituosa de “normalidade”.
Na sequência, Barnabé MC fala da violência policial constante nas batalhas de rap e até
mesmo com moradores dos bairros periféricos pobres. No caso das batalhas, um ofício sempre é
entregue para polícia, para dar um caráter oficial e de autorização do evento. Mesmo assim, lembra
que é constante a polícia atrapalhar, colocando todo o mundo na “parede”. Ele mostra sua queixa,
pois entende que o evento é feito em prol da comunidade, coisa que o “governo” não faz e, mesmo
assim, são reprimidos.
O trecho de Rap da Cypher na sequência lembra do medo da política que a comunidade
tem. Como diz a música: “…temos de resistir para garantir nossa existência…”. Depois, Diego
Clementino, do Slam da Quentura, aparece contando um caso de assassinato de um negro na
periferia, filho de mãe solteira, que sonhava com ser médico. A política o matou com seis tiros.
Leandrinho MC conta que a narrativa da poesia é relacionada ao que eles vivem na periferia.
Além de narrativa, é também reivindicação, dando-se, assim, a condição de porta-voz da “favela”. O
266
que ele fala na entrevista aparece na sua poesia que vem na sequência. Sonhos, loucura, violência,
defesa da periferia, contingência, sujeira na política, tudo isso e mais alguma coisa serve para
arrematar que a sua “fome não cabe nas urnas”. Depois, o trecho da Cypher fala de resistência com
as “minas”, com os moradores da periferia, contra a mídia dominante e contra o sistema.
Paralelo a este movimento marginal, algumas singularidades dos lugares se manifestam a
partir das formas simbólicas espaciais existentes na poesia, pelas quais retratam uma estreita relação
com os desejos do poeta e sua experiência de vida e que são mediatizadas por símbolos de revolta e
resistência, podendo ser relacionado a uma realidade material e unindo-se a uma ideia, a um valor
ou a um sentimento.
Entendemos, portanto, que as mediações simbólicas permeiam as atividades pessoais em relação
aos lugares de afetividade e do pertencimento dos poetas. Neste aspecto, os lugares privilegiados são
aqueles periféricos. Vale a pena agora entendermos a trajetória de como os pesquisadores chegaram
ao filme.

O método videográfico, afetos e o documentário

A princípio, não existia a ideia do documentário. Tudo foi sendo revelado pelo trabalho de
campo da pesquisa vinculada ao LABOME e ao Mestrado Acadêmico em Geografia da UVA, assim
como pelas relações que se construíram em meio a esse processo. A pesquisa teve prática videográfica
como suporte, ou seja, desde 20162, em função do contato que tínhamos com alguns coletivos de
jovens que atuam na cena artística de Sobral nos bairros periféricos, especialmente no hip hop.
Começamos a acompanhar as atividades desses coletivos com a proposta de filmar os dois eventos
poéticos que ocorriam em espaços públicos da cidade3.
Em função desse registro videográfico, conseguimos nos aproximar aos grupos, que
participaram ativamente na definição do que se deve registrar, assim como utilizam as filmagens para
promover e divulgar suas artes. Íamos acumulando riquezas tanto do ponto de vista de aquisição
de imagens, como também no campo das relações com os interlocutores, sem deixar de considerar
outras vertentes conectadas com a poesia que podiam ser exploradas para além do texto. Estávamos
nos deixando afetar pela experiência.
Para Favret-Saada (2005), ser afetado é um experimento de relações que provocam no
pesquisador algum tipo de aprendizado sobre como deve perceber a experiência com seus
interlocutores. O trabalho de campo não é uma dinâmica totalmente controlável pelo pesquisador.
2 Em 2017, em função dessa articulação com os coletivos de jovens artistas do hip hop que atuam nos bairros periféricos de
Sobral, o LABOME produziu o filme “Rap nas quebradas” que conta a história dessa arte a partir da perspectiva dos artistas que
ajudaram na definição do roteiro e produção do filme.
3 Uma pequena mostra do material produzido está em lista de reprodução do canal do LABOME no Youtube. A playlist da batalha
TN pode ser acessada no link: https://www.youtube.com/playlist?list=PLrKSbcOn7CPtEZcWGQbkIj5DW-WOYX5z6. A playlist
da poesia Slam pode ser acessada no link: https://www.youtube.com/playlist?list=PLrKSbcOn7CPsW53R3edN51pabgJ6CrZ0X.

267
Pelo contrário, variáveis que surgem ao acaso, em função do reconhecimento da agência individual e
coletiva dos pesquisados são constantes, provocando confusão, angústia e dúvidas diante do projeto
de conhecimento do pesquisador.
Esse movimento não é exclusivo do fazer-pesquisa. Viver em sociedade é assim. As relações
que se estabelecem no cotidiano com as coisas, com as pessoas, com o ambiente, com as instituições,
dentre outras relações, promovem devires, como diria Deleuze. Os contatos entre humanos e não
humanos (coisas, ambiente, instituições etc.), promovem movimentos onde os diferentes agentes
saem de suas zonas de conforto e certezas, mudando a forma de pensar e agir. São mudanças que
nem sempre são confortáveis ou controláveis.
O ser afetado, portanto, não é somente emoção. É resultante do devir que desordena qualquer
forma de definição fixa, estáveis e homogeneizante de identificação pessoal ou coletiva substancial.
Os agentes se afetam de formas diferentes, mesmo que as forças que lhes atingem fossem as mesmas,
provando transmutações do desejo, da potência nas tentativas de promover relações. O movimento
não promove necessariamente consenso.
Ao deixar-se afetar, entra-se em um jogo em que se conhecem mais ou menos as regras, mas
não se tem controle total sobre os usos dessas regras por parte de todos os agentes da relação. Há um
descontrole parcial dos afetos que provoca efeitos nas agências individuais que, contraditoriamente,
buscam um controle sobre o território que vira um espaço de disputa. Os agentes que provocam
o deslocamento e a transformação são sempre aqueles que resistem ao que é dominante: são os
marginais.
Se o projeto de conhecimento for entendido como imutável por parte dos agentes envolvidos,
em uma atitude conservadora, de uma suposta “normalidade”, não acontece nada. Nesse caso, se
deixar afetar na pesquisa é envolvimento, compromisso compartilhado. Por parte daqueles que
detêm o poder de definição e controle das situações, aqueles que procuram conservar a estabilidade,
sustentados por um desejo de segurança. Mas essa busca é sempre acompanhada de uma incerteza
no sucesso, na efetivação desse desejo, o que desestabiliza os que detêm mais poder de decisão e
possuem maior força na relação.
A ação individual que busca estabilidade, precisa ser sensível para saber como agir com
segurança diante dessa complexidade, o que é uma tarefa quase impossível, mas é um desejo que
aciona uma potência de ação nesse sentido. A territorialização acontece nesse momento ambíguo:
estabilidade e instabilidade criativa. Nesse caso, como nos iluminam Haesbaert e Bruce (2002), na
territorialização está contido o seu oposto, a desterritorialização.
Na pesquisa com os coletivos que aparecem no filme, houve uma negociação constante entre
os diferentes agentes envolvidos que atuam no lugar da cena dessas artes, inventando significados

268
compartilhados, afetos, desejos, potências e práticas com finalidades nem sempre consensuais,
inventando um território muito pouco estável e difícil de ser delimitado por fronteiras rígidas em
função de sua transitoriedade. Dizer quem são esses grupos e sua identificação não é um movimento
fácil.
É um movimento rizomático que se espalha e cria dando diferentes significados para o que
é a periferia. Portanto, o lugar chamado periferia é muita coisa, tanto que está lá, quanto que não
está, só não é estabilidade, mesmo que as narrativas produzidas sobre sua definição tentem dizer
exatamente o que é. É um fluxo de desejos e busca de diferenciação e definição de um território que
fala de lugar da identidade do grupo.
Para acompanhar esse movimento, a pesquisa se utilizou de outras fontes disciplinares para
a obtenção de seus objetivos com os interlocutores. Destacamos o fato de a poesia ser um recurso
pouco utilizado como base de investigação e análise sobre determinado tema que fala de geografia
do desejo e territorialização no sentido aqui exposto, muito embora sua utilidade seja tão precisa e
necessária como as demais fontes. Aqui, esse recurso foi de fundamental importância, pois ela fala
sobre as variáveis do espaço tanto quanto outros.
O processo de territorialização e compreensão sobre territorialidade foram percebidos e
analisados a partir da arte poética, bem como outras variantes que também pontuaram essa pesquisa,
como: agência, afeto e desejo, por exemplo. Portanto, foi na dinâmica de inserção no campo que
estabelecemos vínculos de confiança e troca de conhecimentos com os interlocutores, ouvindo
suas narrativas sobre as experiências vividas e sentidas em seus espaços. Isso vale para todos os
entrevistados, pois, além dos versos poéticos que ajudam a entender o espaço trazidos na pesquisa,
os poetas e rappers também concederam suas narrativas no papel de entrevistados em vídeo.
A pesquisa de campo é um trabalho que exige paciência e uma boa dose de malabarismos,
dada às intempéries que nos são apresentadas durante seu desenvolvimento. Favret-Saada (2005), ao
falar de sua experiência, mostra-nos que, às vezes, nosso projeto se esvai, e somos obrigados pelas
circunstâncias do campo e da dinâmica com os interlocutores, toma-los como recortes, alternativas
também importantes, oferecendo-nos chances de percebê-las na complexidade que são as relações
sociais desses agentes entre si e com o espaço onde vivem.
A utilização dos recursos audiovisuais nas pesquisas acadêmicas, apesar das resistências
que ainda vigoram, tem ajudado a contar os resultados de forma a contemplar melhor os sujeitos
pesquisados, porque o texto acadêmico, pela sua linguagem e reserva de acesso, às vezes circula
somente entre os intelectuais que interpretam e escrevem a história de outras pessoas, deixando de
fora os próprios interlocutores. Assim como nas pesquisas etnográficas, vivemos a experiência do
campo de pesquisa, participando, de alguma forma, das realidades pertinentes aos entrevistados.

269
Comparecemos a todos os eventos de poesia e rima mostrados no documentário, assim como
os que não foram mostrando nesse documento em filme, gerando outros filmes. Participamos de
reuniões que os dois grupos realizavam para pensar em como efetivar a cena poética, pois ela já tem
seu início de formação desde esse momento de planejamento, onde é pensado estrategicamente
como se consolidará o momento da cena. Estivemos presentes também em outras circunstâncias em
que o Movimento Social FOME, organizador da Batalha do TN, realizou outras atividades além da
disputa de rappers.
Acompanhamos apresentações pela cidade, em atividades do Movimento, tudo isso porque
os rappers [da base], que são responsáveis pela Batalha, são membros do Movimento Social FOME.
Com muito cuidado, esclarecemos, desde o início das visitas, a condição de pesquisadores naquelas
circunstâncias, afinal, as pessoas sempre se mostram curiosas e desconfiadas com a presença de
um estranho que lhes faz intervenções com perguntas sobre suas histórias. E isso fica ainda mais
aguçado diante da presença de equipamentos de filmagens.
Nesta pesquisa, a utilização dos recursos videográficos sempre fez parte da metodologia,
pois os eventos de poesia e rimas tinham na época a colaboração do Laboratório das Memórias
e das Práticas Cotidianas - LABOME, que, em acordo com esses coletivos, acertou de filmar e
disponibilizar o material filmado para os respectivos organizadores do Slam da Quentura e Batalha
do TN, representados pelo Coletivo Fora da Métrica e Movimento Social FOME, respectivamente.
Foi produzido todo um acervo de filmagens desses eventos para ajudar na construção da
pesquisa através das imagens, das falas e das posturas corporais que esses indivíduos assumem no
momento da cena poética. Diante da grandeza e da quantidade de material produzido, houve a
necessidade de documentar tudo isso numa estratégia que poderia ajudar a contar as realidades
periféricas a partir dos relatos e das poesias feitas por esses artistas.
Com base nessa percepção, intensificamos o processo de decupagem dessas filmagens que
traziam a cena poética como um forte elemento para contar sobre a periferia, desnudando suas
realidades. Somado a isso, as entrevistas gravadas com os poetas, poetisas e rappers foram essenciais
para compor a montagem do documentário. Durante o mês de setembro de 2018, esse processo de
decupagem e montagem foi realizado, e, ao final, tivemos como produto o documentário Poesia e
Resistência.
O documentário tem duração de 10’38’’. Através do recitar da poesia marginal e das rimas,
poetas (slamers) e rappers falam das múltiplas realidades e circunstâncias periféricas, cujas abordagens
deixam clara a forma de resistência desses sujeitos no tocante às dificuldades nestes espaços e suas
agências como produtores de uma literatura que denuncia e ao mesmo tempo se apropriam de seus
lugares numa atitude de defesa e criação de territorialidades identitárias.

270
Como visto, o roteiro de montagem do documentário seguiu no sentido de contemplar
os diversos segmentos de luta que esses poetas e rappers reivindicam. Visto o material filmado,
percebeu-se que alguns temas eram mais versados. Dentro dessa lógica, foram escolhidos os
seguintes, como já mencionado na descrição feita aqui do filme: periferia, feminismo, polícia (crítica
aos afrontamentos truculentos), LGBTQIA+ e sistema. Para cada tema, revezam-se alguns poetas
slamers e rappers. Não obstante, no tocante às temáticas LGBTQIA+, teve apenas um poete slamer
que recitou a respeito disso, no caso, a Bicha Poética.
Para Vailati (2016), “o objeto audiovisual é um olhar de diferente natureza, que nasce através
de uma interação – ou mediação – entre homens e tecnologia e que produz consequências no
mundo” (VAILATI, 2016, p. 59). Portanto, não podemos deixar de considerar que os equipamentos
de filmagem foram agentes construtores de sentido para o que foi registrado. Assim, inferimos que
os equipamentos também produzem afetos, provocando, também, reações nos interlocutores.
Eles criam, diante da provocação, no filme, reflexões sobre questões voltadas para as realidades
da periferia e da negritude, vítimas das circunstâncias desiguais que se reproduzem constantemente
na sociedade. De acordo com Gomes Júnior e Costa (2018), e concordamos com essa ideia, o
filme não é igual ao texto, apesar de resguardar características comuns. É um aparato cultural que
inventa um discurso. Por sua vez, o discurso é agente de prática social, criando uma geografia e uma
paisagem cultural na perspectiva da relação entre os diferentes agentes. É uma linguagem que tem
seus códigos específicos, inventando a geografia cultural do grupo e a sua temporalidade.
Por ter sua temporalidade e espacialidade próprias, o filme cria ideias, não sendo, contudo,
um registro fiel da “realidade”. É um conceito da experiência. No processo de pesquisa e produção
do filme com os poetas e rappers, enfrentamos dificuldades. Lidar com múltiplos afetos não é fácil,
pois, em algum momento, é necessário, minimamente, que direcionemos nosso olhar para questões
até então despercebidas. Foi necessário um processo de inserção mais pessoal com cada um.
Isso ocorreu devido à constante presença no campo de pesquisa nos eventos e em outras
atividades, como no caso dos rappers da Batalha do TN, onde acompanhamos atividades externas
ao evento. A presença do pesquisador foi tão intensa nesses movimentos que o Coletivo Fora da
Métrica acabou inserindo um dos autores desse artigo no seu grupo de Whatsapp, possibilitando-o
a participar de todas as reuniões que tratavam da organização do Slam da Quentura.
O processo que culminou nesse resultado foi regado por circunstâncias que a todo tempo
desafiavam o pesquisador. Os deslocamentos são sempre muito cheios de obstáculos e medos. Um
dos medos a considerar foi o fato de andar carregado de equipamentos pesados, sensíveis a qualquer
manuseio incorreto que pode comprometer as gravações, pois os eventos não param para que se
possa fazer os devidos acertos. Nisso, ainda tem o fato dos equipamentos do LABOME serem bem

271
caros. Todavia, andar à noite em posse deles pode acarretar assaltos.
Ainda destacamos o fato da preocupação em conseguir pessoas que pudessem ajudar nos dias
das filmagens, afinal, as edições do Slam da Quentura sempre ocorreram aos sábados, e as edições
da Batalha do TN às sextas-feiras. Ambos os eventos são mensais. Como quase todos os bolsistas
do LABOME eram, na época, de outras cidades, mesmo morando temporariamente em Sobral,
poderiam viajar para suas residências de origem no final de semana.
Já para a Batalha, a dificuldade se encontrava no fato deles possivelmente terem aula nesse dia,
então, essas preocupações sempre foram constantes, mas quase nunca faltou ajuda. O LABOME
é uma equipe, uma rede de relações, sempre comprometida com a pesquisa. Destaco também o
processo que culmina na obtenção e gravação de entrevistas. O processo de convencimento é de
extrema sensibilidade, colocando o pesquisador dentro de uma circunstância interacional.
É necessário saber abordá-lo, explicar os objetivos, administrar uma interlocução que o faça
sensível diante dos propósitos do pesquisador. Isso é bastante complicado. O pesquisador tem de
saber lidar com essas relações. Ainda, o mais intrigante nisso tudo é que para essas circunstâncias não
existe um manual de instrução. São questões que se apresentam naquele momento. O interlocutor
tem suas atividades diárias. Então, reservar um tempo para conceder entrevistas, significa que ele já
tem alguma empatia e consideração pelo pesquisador.
Portanto, este não pode estabelecer condições, tem de estar disponível para o dia, hora e
local que o entrevistado lhe sugerir. Sobre o documentário produzido, os interlocutores da cena
poética tiveram acesso através da plataforma Youtube, no canal do LABOME Visualidades, onde
está publicado4. Segundo relatos que ouvimos deles, a repercussão foi positiva, pois se viram como
porta-vozes do “gueto”, onde também puderam ter seus trabalhos e talentos difundidos.
A Batalha do TN e o Slam da Quentura compartilharam o link de acesso em suas páginas na
rede social Facebook. Desse modo, adquirimos afetos e amizades, e não poderíamos deixar de lhes
restituir da forma como eles melhor compreendem, pois apenas o texto acadêmico talvez não fosse
tão relevante para eles. Como bem enfatiza Fonseca (1995), essa escrita acaba “[...] produzindo um
texto onde a individualidade das personagens se dilui na multiplicação de depoimentos, e onde a
história “anedotal” é frequentemente sacrificada em nome da mensagem analítica”. (FONSECA,
1995, p. 190). No filme, o corpo individual é valorizado. O personagem aparece em evidência, ao
contrário do que é comum a alguns textos acadêmicos, em que os personagens são genéricos.
Passados já alguns anos, o documentário já foi apresentado em diversos eventos acadêmicos,
inclusive de fora do estado do Ceará. Recentemente foi premiado na categoria Melhor Filme
Documentário Cearense no Cine Ibiapina, Festival de Cinema da Ibiapaba, cuja premiação ocorreu
dia 30 de janeiro de 2022. E, para além do filme, o que importa para nós é a restituição que estamos
4 https://www.youtube.com/watch?v=bzWE36Ob5kw&t=475s

272
criando, difundindo reflexões e contribuindo para propagar a palavra potente de moradores das
“quebradas”, mostrando que, apesar da fome e da miséria, essa fome não é só de um prato de
comida, é também em busca de respeito e transformação desse modelo de sociedade que vivem.

Referências

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. 1ª ed. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2017.

FONSECA, Cláudia. A noética do vídeo etnográfico. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre,


n. 2, p. 187-206, 1995.

FAVRET-SAADA, Jeanne. “Ser afetado”. Cadernos de Campo. São Paulo, v.13, n. 13, p. 155-161,
2005.

GOMES JÚNIOR, Gervásio H.; COSTA, Maria Helena B. e V. da. Intertextualidade na paisagem:
a cidade fílmica de Recife em Febre do Rato. GEOgraphia, Niterói, vol. 20, n. 44, 2018.

HAESBAERT, Rogério; BRUCE, Glauco. A desterritorialização na obra de Deleuze e


Guattari. GEOgraphia, v. 4, n. 7, p. 1-15, 2002,

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

VAILATI, Alex. O documentário social. In: VAILATI, Alex; GODIO, Matias; RIAL, Carmen.
Antropologia visual na prática. 1ª ed. Desterro/Florianópolis; Cultura e Barbárie, 2016.

273
AFETOS E MÉTODOS: FILME SINAL FECHADO, HORA DO SHOW, HORA DO
TRAMPO

Jocilene Ramos Bastos


ramosjoyce02@gmail.com

Nilson Almino de Freitas


nilsonalmino@hotmail.com

Considerações Iniciais

O filme “Sinal fechado, hora do show, hora do trampo” é um dos frutos de uma experiência
etnográfica vivenciada na rua, juntamente com artistas que passaram por Sobral ou moram
nessa cidade brasileira, localizada no estado do Ceará, trabalhando de forma independente com
performance circense nos semáforos mais movimentados.
Durante essas vivências compartilhadas com os artistas por mais de dois anos, entre 2017 e
2019, a ferramenta audiovisual e fotográfica não só fizeram os registros das imagens que originou o
filme documentário, mas também se tornaram caminhos que ajudaram na inserção e permanência
em campo da pesquisadora, possibilitando uma excelente aproximação junto aos artistas na rua.
Essas ferramentas também produziram fontes de pesquisa e acervo público para consulta no
Laboratório das Memórias e das Práticas Cotidiana – LABOME, da Universidade Estadual Vale
do Acaraú – UVA. Houve uma divisão do trabalho por parte dos autores deste artigo. A autora fez
o trabalho de campo e captação audiovisual. O autor, orientou a atividade de campo e a pesquisa,
assim como participou, com a pesquisadora, da montagem e edição, aprendendo com o acervo
audiovisual sobre o conceito a ser definido para o filme.
Vale a pena lembrar que um filme etnográfico tem algumas características peculiares quando é
feito com o recurso videográfico. Nesse caso em particular, não é uma repercussão de uma pesquisa
anterior. O registro em vídeo se confunde com o trabalho de campo e produção de fontes da
pesquisa. Claro, a pesquisadora tinha seu diário de campo e guarda na sua memória, mas ocorreram
acontecimentos que não foram registrados em vídeo.
O próprio contato inicial com os artistas não foi acompanhado com o equipamento de
filmagem. Mas, o registro das atividades, entrevistas, reações de quem assiste, dentre outros,
acontecem com a conivência e participação dos artistas, sem se ter em mente um roteiro de filme
pré-definido. Portanto, o filme/documentário “Sinal Fechado, hora do show, hora do trampo” é uma
experiência audiovisual realizada nas ruas de Sobral, produzida a partir do material capturado durante

274
experiências e visitas a campo. A câmera, de fato, foi a “caneta” que escreveu por diversas vezes boa
parte do diário de campo. Já o filme foi o “microfone” que fez com que a voz e a performance dos
artistas pudessem circular por lugares diferentes daqueles que usualmente frequentam.
Para compreender melhor a metodologia de pesquisa, é importante fazer uma pequena história
da relação entre antropologia e imagem. Na antropologia do século XIX era comum nos diários de
campo o uso do desenho. Com a criação da fotografia e do filme, essas linguagens passaram a compor
o conjunto dos instrumentos de registro que eram usados como apoio de alguns antropólogos.
Entretanto, esse tipo de registro em fotografia e filme tem uma história própria e paralela ao
seu uso no campo da antropologia. Contudo, já nasce acompanhada da concepção que é um retrato
da realidade. Os primeiros filmes de exibição pública eram de registro de acontecimentos5. Essa
concepção fez com que essa linguagem visual fosse aceitável diante de uma ciência da sociedade que
tinha como ideia ser uma expressão fiel da essência do real, como pensava o positivismo, corrente
de pensamento que afetou todas as áreas das humanidades, inclusive a Antropologia.
Com o tempo, foi se verificando uma ambiguidade na concepção do que é um filme,
especialmente quando se começa a usar técnicas de roteirização para se contar uma história linear e
sequenciada como ficção. Passou a se pensar essa linguagem também como arte e entretinimento.
Essa ambiguidade entre retrato da realidade e ficção para diversão faz com que se crie uma certa
rejeição dessa linguagem no campo científico, mesmo se preservando a ideia de registro do real
(nada mais falso), quando o filme é classificado como documentário.
No gênero documentário, quando era usado no campo científico, seria muito mais para
mostrar evidências do suposto real. Com o tempo, tanto a antropologia, disciplina que consegue
acumular uma discussão de forma mais enfática nos usos das visualidades em suas publicações
científicas, quanto o cinema, começam a rever sua epistemologia, pautada em uma crítica à
neutralidade científica.
Exemplos dessa mudança veio com a redefinição do conceito de montagem no cinema, com
a produção da escola soviética, o cinema direto dos anos de 1960. Outro exemplo, agora por parte
da antropologia, mais contemporâneo, é a crítica feita por Geertz6 e, posteriormente, de uma forma
mais radical, pelos pós-modernos como James Clifford ou George Marcus7. Estes apoiavam a ideia
da autoridade do pesquisador como sendo aquele capaz de mostrar a essência do real “como ela é”.
Em outras disciplinas, como é o caso da geografia, esse tipo de crítica também se faz presente, seja
na geografia crítica, seja na geografia cultural, de formas distintas e epistemologias diferentes, mas,
ainda, sem o uso do audiovisual como método, a não ser como registro de evidências.
5 Sobre o assunto, Cf. Ribeiro, 2005.
6 Sobre o assunto, Cf. Geertz, 1997.
7 Cf. Marcus, 2009. Cf. Clifford and Marcus, 1986.

275
Nesse movimento pelo qual o cientista vai sendo pensado como um componente de sua
própria análise, não mais um observador que vê as coisas como elas são, mas um intérprete. Assim,
ele começa a pensar o “objeto” do cientista como agente construtor não passivo do conhecimento.
Portanto, o conhecimento é construído de forma compartilhada. Isso é muito forte na antropologia
contemporânea, depois dos pós-modernos, e está presente na geografia não representacional1.
Na confluência entre cinema e antropologia, temos outro exemplo com Jean Rouch
(GONÇALVES, 2008) como marco para o que se passou a convencionar de antropologia visual
compartilhada, pensando tanto a desconstrução da linguagem enquanto registro de evidências, quanto
do seu uso na antropologia muito mais como conceito do que como expressão representacional do
real. O documentário relacionado à pesquisa passou a ser um investimento simbólico de construção
de sentido naquele que assiste, porque tem um tempo e uma espacialidade própria, diferente daquela
vivenciada fora do contexto da produção fílmica.
É uma linguagem, uma forma de comunicação da experiência, mas não é a representação fiel
da experiência propriamente dita. Forma de comunicação construída na relação entre pesquisador
e pesquisado, em que ambos teriam uma participação mais ou menos simétrica no seu processo de
elaboração. A única coisa que diferencia o documentário, nessa perspectiva, e o filme de ficção é o
maior controle da cena por parte desse último, controle vindo de um roteiro pré-definido e aplicado
de forma mais rígida. No documentário é mais difícil esse controle, apesar de alguns produtores,
especialmente do campo do cinema, em alguns casos, investir nisso.
Esse movimento compartilhado de produção de registro videográficos no trabalho de campo
é uma invenção da cultura, como diria Wagner (2010), resultado também de uma antropologia
reversa. Podemos até entender que o termo antropologia poderia ser facilmente substituído por
todo investimento disciplinar que tem como preocupação produzir conhecimento sobre a sociedade
e a cultura. Do ponto de vista epistemológico, a ideia é que não “retratamos a realidade”, nós a
inventamos, no sentido criativo do termo, junto com nossos interlocutores pesquisados, a partir
de uma interpretação e de um investimento simbólico e corporal de imposição de sentido no
relato vivenciado no trabalho de campo. Por isso, o que se fala da experiência não é exatamente a
experiência. Antes, é um recorte mediado por uma interpretação e por interesses em mostrar o que
se vivenciou a partir de um ponto de vista que é orientado por uma performance, pela política e pela
moral.
Tal tipo de relato não é um investimento somente do pesquisador, mas também um
investimento dos interlocutores pesquisados que afetam o pesquisador, também mediados por uma
política e uma moral. A ideia é haver um compromisso ético por parte do pesquisador de assumir
uma postura êmica, em que o interlocutor pesquisado possa compartilhar e apoiar o pesquisador,
1 Cf. Paiva (2017).

276
assim como o contrário também possa acontecer. Ao mesmo tempo, por parte do pesquisador, o
propósito é construir uma forma de restituição, seja ela simbólica ou material, em função do apoio
que o interlocutor pesquisado deu ao seu trabalho.
O próprio filme, mais do que o texto, tem uma adesão muito forte por parte das pessoas,
especialmente na sociedade em que vivemos, onde as mídias são motivo de atenção e consumo
massivo, o que gera um determinado tipo de restituição para os interlocutores pesquisados que
usam o material finalizado, assim como fragmentos do acervo produzido, a fim de divulgar sua
forma de ver o mundo, suas artes e suas práticas.
No caso do filme aqui abordado, essa concepção do documentário como uma construção
compartilhada ou colaborativa acompanhou os pesquisadores desde o início da pesquisa produzindo
imagens não só das entrevistas, mas também dos detalhes do cotidiano dos artistas, que permitiram
descobrir coisas novas, relacionadas com o que se encontrava ao redor dos pesquisadores.
Pensando na ideia de produzir um filme que mostre as dinâmicas sociais e culturais que estão
em volta do trabalho do artista na rua, optamos em pensar na composição das sequências a partir
das imagens produzidas durante dois anos de vivências cotidianas com os artistas para dinamizar as
cenas, dando, assim, mais protagonismo às ações e movimentos, intercalando com os relatos dos
artistas.
Portanto, o filme surgiu no momento da montagem, ou seja, não existia um roteiro prévio.
As imagens, no momento da montagem, afetaram os pesquisadores de outra forma, diferentemente
do momento que foram registradas. No momento da montagem, pensando o filme, tínhamos que
lidar com 500 Gb de material gravado e selecionar aquilo que poderia gerar um média-metragem de
55 minutos de duração. Não obstante, o resultado vai ser detalhado num momento posterior deste
trabalho.
Voltando ao trabalho de campo, a pesquisadora os acompanhava não só nos sinaleiros durante
o horário de trabalho, mas em outros espaços e horários, que também fazem parte de suas atividades
diárias, longe dos semáforos. Chegou a viajar com eles para outra cidade, onde iriam se apresentar.
Sendo assim, produziu-se uma grande quantidade de imagens que acabaram redirecionadas em
função de uma necessidade de seleção para a ideia e conceito do filme e da pesquisa.
Todo esse processo de pesquisa também foi um aprendizado técnico e de teoria etnográfica
aprendida de forma complementar ao que era ensinado no Curso de Ciências Sociais da UVA.
A equipe e, muito menos a pesquisadora, eram treinados ou tinham experiência no uso dos
equipamentos. Assim como não era uma equipe fixa e, em alguns momentos, a pesquisadora se viu
sozinha fazendo tudo o que se deve fazer no momento da produção do filme e, ao mesmo tempo,
registro etnográfico.

277
No LABOME, cada um dos bolsistas tem seu projeto de pesquisa individual, mas durante
as reuniões semanais definíamos quem poderia ajudar na captação de áudio, iluminação, câmera e
demais atividades que poderiam surgir em cada momento em que a pesquisadora ia a campo. Mas,
nem sempre eram as mesmas pessoas e nem sempre dava certo alguém ajudar. Nesse caso, todos e
todas aprenderam fazendo, com apoio do LABOME.
Apertar o botão para gravar era uma tarefa até fácil – isso quando não se esquecia de apertar
dito botão, como ocorrido várias vezes. Difícil era encontra um ângulo ideal, captar um bom áudio,
evitar ou avaliar se se deve usar a contraluz, controlar a íris, o diafragma, evitar a tremedeira e as
imagens estouradas, enfim, isso a pesquisadora e a equipe – quando a acompanhavam –, foram
aprendendo na prática.
Aos poucos, isso foi se tornando muito técnico, o que causava novas preocupações, pensando
em novas possibilidades criativas. O aprendizado técnico, estético, teórico, metodológico, produção
de fontes de pesquisa e de uso da linguagem aconteciam ao mesmo tempo. Com o olhar em
treinamento, evitavam fazer imagens comuns, pois percebia-se que já estavam ficando muito
parecidas umas com as outras.
Então, passavam horas buscando um novo ângulo, levantando e abaixando o tamanho do
tripé, configurando o gravador profissional de áudio, ajustando a vara boom, o microfone direcional
ou lapela, chegando até ser um pouco “chato”, pois, no trabalho de campo, tinha de se negociar
gostos da pesquisadora com os da equipe (quando iam) e dos interlocutores. Em boa parte das
gravações a pesquisadora dirigia a produção das imagens, buscando elementos que somassem e
realçasse de maneira criativa o que ela queria mostrar.
Todavia, também tinha que negociar com os artistas que agenciavam maneiras de se mostrar
e participar da cena. A negociação não era só com os artistas, mas com os equipamentos (que nem
sempre colaboravam), com o ambiente (som, movimentos, fluxos e contratempos), enfim, com os
elementos humanos e não humanos envolvidos na produção audiovisual.
Mesmo no momento da montagem, algumas necessidades do ponto de vista da coerência
da narrativa e da estética surgiram, o que pedia novas gravações, quando era possível, pois muitos
artistas não moravam na cidade e só era possível refazer as gravações com aqueles que moram em
Sobral. Inclusive, mesmo na montagem, chamávamos a alguns desses artistas para ver o processo de
montagem e solicitávamos opiniões sobre novas possibilidades de composição da narrativa visual.
Na montagem, definimos como conceito apresentar as relações sociais e corporais em torno
do trabalho performático do artista nos semáforos, valorizando mais isso do que a verborragia das
entrevistas com o personagem parado. Mesmo quando mostramos as falas, elas eram acompanhadas
de imagens da performance dos artistas em diferentes situações, como se a narrativa oral

278
complementasse a narrativa visual, dando ênfase uma para a outra em alguns aspectos, assim como
acrescentando novos elementos para interpretação.
As principais análises desse trabalho estão voltadas para as significações “do corpo em
movimento, do espaço utilizado, da sociabilidade, do tempo, da performance e do trabalho” na
busca pela territorialização da cidade. Territorialização essa entendida, seguindo o pensamento de
Haesbaert e Bruce (2009), como um movimento de agência individual e coletiva ambígua que
envolve a busca pela estabilidade no território, tentando definir um lugar próprio na sociedade
onde essas pessoas possam viver e serem aceitas, e instabilidade no sentido de entrar em conflito
com forças, muitas vezes mais potentes e majoritárias, que tentam promover movimentos que os
excluem e tentam jogá-los a outros lugares, entendendo que esses espaços de disputa não são deles.
Portanto, no processo de territorialização está contido seu oposto. Os artistas, com suas
performances, negociam, em muitos casos entrando em conflito, com diferentes agentes que se
ocupam em definir seus territórios. Cada lado da disputa tenta imprimir afetos, desejos, potências e
práticas com a finalidade de territorializar o espaço e definir seu lugar e sua identidade. Identidade
essa, por sua vez, também ambígua, porque não é estável, é rizomática, criando diferentes significados
para o que é o artista de rua, como veremos mais a frente.
Sendo assim, a territorialização é um fluxo constante e instável de desejos e buscas de
diferenciação e definição de territórios na cidade, ao mesmo tempo que falam de lugar, tentando
mostrar estabilidade e de identidade, em busca de uma unidade. No filme, mostramos uma rede
de relações ambíguas e heterogêneas estabelecida entre os personagens dos sinaleiros, movidas por
ações individuais e coletivas contextualizadas no “drama” do dia a dia deles e delas na rua. Dessa
forma, vale a pena descrever aqui alguns aspectos discutidos no filme.

O filme

No início aparece Maru Marina, artista argentina, cantando, com fundo preto e uma
mensagem de agradecimento aos artistas de rua, especialmente os que a pesquisadora conheceu
durante o trabalho de campo. Além da música, um dos personagens centrais do filme é o barulho da
vereda urbana. Entendemos que o áudio não é só a trilha sonora. Aliás, todas as sonoridades, mesmo
as músicas de artistas profissionais que aparecem no filme, de fato, são gravações dos sons das ruas.
O som é um personagem que agencia sentido para a narrativa. Se o filme é sobre artistas de
rua, o barulho dos carros, das buzinas, das músicas ouvidas pelos artistas ou tudo aquilo que se
escuta no ambiente da gravação e demais sons que fazem a dinâmica da rua, são fundamentais para
dar sentido ao conceito do filme. Maru tem um perfil de artista que faz esse trabalho por diversão,
para viajar e conhecer o mundo.

279
Esse tipo de visão acompanha, especialmente, os artistas estrangeiros, o que vai diferenciá-
los, um pouco, da visão dos artistas locais que, em sua maioria, tem origem de formação no circo,
especialmente na Escola que existia no bairro Paraíso das Flores em Sobral. O filme, portanto,
vai mostrar artistas de diferentes visões sobre a vida, perspectivas, origens geográficas e culturais.
Alguns querem somente o suficiente para comer e viajar, desejando mais um abraço, um sorriso ou
um aplauso, com fala Maru inicialmente. Outros queriam ser reconhecidos como profissionais da
arte, mas encontram muitas dificuldades e preconceitos, “obrigando-os” a se apresentarem na rua.
A sequência inicial do filme, depois um pequeno clipe com música circense ao fundo,
gravado na rua e cantada por Emanuel Cruz, artista de Sobral, em uma das atividades de campo da
pesquisadora, mostra alguns dos artistas executando malabarismos. Depois, vem uma apresentação
pessoal com nome e lugar de origem dos artistas que viraram personagens. Nessa apresentação
aparecem artistas de Sobral, Argentina, Chile, Venezuela, Uruguai, Pernambuco e Piauí. Viola, de
Pernambuco, depois da apresentação, fala do início dessa vida de artista viajante.
Durante sua fala, a imagem que aparece é dele e de seu amigo Gaspar fazendo malabarismo
no sinal. Segundo ele, o começo foi gerado por ver “...um panorama da minha realidade... deu um
murro na minha testa e aí acordei para um mundo diferente. Parei de dormir”. Ele não aguentava
mais a rotina em que vivia. Queria experienciar outra vida. Segundo ele, “a rua é outro mundo.
Apesar de ser um pouco perigosa, mas é outro mundo. Porque ela vai ensinar realmente a verdadeira
educação. A rua é foda, meu...”.
Na sequência, aparece Alexandre, do Piauí, que entrou na arte circense com 12 anos de idade
e se queixa de falta de apoio do governo para as crianças. Para ele, na sua época de escola de circo, o
governo se importava mais. Em seguida aparece Emanuel, ensinando crianças a andar de perna de
pau no bairro Paraíso das Flores, onde mora, e falando da escola de circo, onde aprendeu a ser artista
em 2003, no mesmo bairro.
Fotos de arquivo pessoal e de profissionais que atuaram na prefeitura nessa época
implementando o projeto vão aparecendo, intercaladas por outras em que ele ensina crianças a
andar de perna de pau. Cristian, também formado na mesma escola, continua a falar da importância
dessa instituição na sua vida. Na cena, ele aparece manipulando fantoches. A seguir, Maru, artista
argentina já mencionada aqui, fala do início de sua atividade com a iniciativa de sair a viajar vendendo
pulseiras.
Na viagem ela conheceu alguns artistas malabaristas que a ensinaram esse ofício. Tanto ela
quanto Lautaro, que aparece na sequência, também argentino, falam coisas semelhantes como a
necessidade de sair para viajar, conhecer o mundo e não precisar de muito – do ponto de vista
financeiro ou material. No caso dela, está acompanhada de uma cachorra que fica com ela o tempo
todo.
280
Lautaro, no tempo de convivência com a pesquisadora, estava acompanhado de Viola,
Alexandre e Gaspar. Juntos, pelo menos durante algum tempo, foram acompanhados pela
pesquisadora até Tianguá, cidade distante 100 km de Sobral, para se apresentarem nos sinais das
ruas. Lautaro também aprendeu com amigos, quando começou a viajar, a arte dos malabares. Todas
as falas que vão aparecendo são cobertas por imagens dos artistas e suas performances nos sinais
vermelhos e nos intervalos quando fica verde.
A sequência seguinte é sobre a rotina diária. Aparecem David (de São Paulo) e Xavier (de
Chile) chegado de bicicleta, pela manhã cedo, na praça onde vão comer e se preparar para o dia.
Nessa sequência, aparecem cenas de artistas em outros lugares, ainda dormindo no chão, em muitos
casos, acompanhados de cachorros; outros comem, outros se vestem, outros se montam em adereços
de palhaço, dentre outras atividades que constituem o amanhecer nas ruas por parte dos artistas.
Nessa sequência, as imagens mostram os artistas, seus “bens” e instrumentos de trabalho,
assim como a forma em que se montam, pintam (os que o fazem) e demais atividades de preparação
antes de ir para o sinal. Os sons do ambiente acompanham as imagens, inclusive, os sons de suas
falas no momento da ação ou cânticos de circo são acompanhados do pandeiro. A organização
do tempo e do território disputado entre carros, pedestres e artistas no semáforo é contada por
Alexandre e Cristian, em momentos diferentes. Apesar de ser em lugares e momentos diferentes, as
falas se complementam. A ação no semáforo vai sendo demonstrada como se suas falas fossem as de
um narrador descrevendo o acontecimento.
Douglas, Raimundo e Ruan falam das dificuldades na rua. Preferem viver assim, uma vez que
no tempo do circo tinham muitos menos retornos. Ainda, criticam esse lugar pretérito de trabalho
pela precariedade de recursos de sobrevivência. Nas ruas, é comum ouvir xingamentos, acusações
de que não trabalham, dentre outros comentários, mas Raimundo afirma que prefere “batalhar”
naquele lugar.
Para ele, o ditado “... não existe vitória sem batalha” é essencial. Comenta que não quer fazer
o que faz, mas o precisa fazer para viver. Emanuel aparece falando no mesmo sentido. Na sequência
seguinte, Lise e Felipe, que se vestem de palhaços, falam que estar nas ruas é uma forma de protesto
contra o sistema que impõe uma falta de apoio, citando a Lei Rouanet como exemplo, que, na
perspectiva deles, apoia quem não precisa. Assim, apresentar-se na rua o artista é uma mistura de
protesto e necessidade.
O meio de transporte dos artistas que viajam também é abordado no filme. Xavier e David
falam de suas viagens de bicicleta pela América Latina. Sofia e Nacho preferem ônibus ou carona.
Nacho fazia o Curso de Comunicação Social no Uruguai e Sofia fazia o Curso de Ciências Políticas
e teatro na Argentina. Ambos não estavam satisfeitos com a vida que viviam e resolveram sair

281
viajando pela América Latina, conhecendo lugares, gente, aprendendo a falar outras línguas, jogando
malabares.
Na fala de Alessandro (Argentina) em que fala da beleza do Brasil, acaba acontecendo um
acidente, que o motivou a fazer uma crítica ao estilo de vida que vivemos, uma vez que andamos
sempre com muita pressa, sem ligar para as pessoas, espetacularizando a tragédia e desprezando a
verdadeira arte. A crise econômica na Venezuela, por sua vez, provocou Neruh (Argentina) a optar
pela arte de rua. A satisfação para ela está em viajar e conhecer os lugares, sendo livre e fazendo do
que gosta.
Mesmo viajando, longe da família, Maru fala da saudade e do apoio que teve em optar pela
arte de rua. Já Xavier não teve tanto apoio assim. Sua mãe queria que ele fosse advogado ou que
fizesse algum curso superior. Mesmo assim, com o tempo, superou o preconceito inicial da mãe,
que aceitou sua opção. Na sequência, um clipe com o grupo cabeça de boi é antecedido por uma
introdução falada e apresentação no sinal de Bruno Simão (Piauí), integrante do grupo.
Logo depois, os membros do grupo se encontram e mostra uma outra modalidade de
apresentação de rua que é a que acontece nos bares e restaurantes na noite de Sobral. Os três artistas
são de diferentes lugares e se conheceram em suas viagens. Na sequência, desde a decisão de a quais
lugares vão, até o retorno para o local de dormida, é mostrada no clipe.
Na sequência final, antes dos arremates visuais, o tema do preconceito aparece, tanto no
sentido comparativo entre os artistas locais e do exterior, quanto o preconceito relacionado à cor
da pele. O estrangeiro, como nos ilumina Simmel (1983), não está ligado apenas ao vir de outro
local, mas sim àquele “que se encontra mais perto do distante” (SIMMEL, 1983. p. 7). Utilizando
da ideia de estrangeiro de Simmel (1983), o artista estrangeiro se aplica como uma categoria que
provoca reflexões sobre ambiguidades no cenário aqui apresentado na sequência final por conta da
sua constante mobilidade e relações com o tempo e espaço, levando em consideração os elementos
da sociedade moderna.
O fato de ser de outro lugar causa fascinação e um forma específica de interação que se
diferencia, geralmente, em comparação com o artista local. Douglas chega a afirmar em sua fala
que o estrangeiro ganha mais por ter melhores instrumentos. Acrescenta-se a isso no filme a cor da
pele, que influencia na arrecadação dos artistas. O negro tem muito mais dificuldades de receber
um “agrado” e causa medo em muitos motoristas, o que reflete o racismo estrutural que permeia a
cultura brasileira.
Essa reflexão leva os pesquisadores a pensarem em usos culturais de categorias de diferenciação,
processos de produção social das desigualdades e suas interseccionalidades (PADOVANI, 2017),
envolvendo, especialmente, lugar de nascimento e cor da pele. O termo interseccionalidade fala de

282
um conjunto de opressões sociais, sustentado por variáveis de classificação social, dentre elas, as que
citamos na frase anterior, usadas por parte de agentes sociais, tanto institucionais quanto pessoais,
a fim de qualificar determinadas pessoas ou grupos como sofredores de marginalização social e
exclusão de acesso a determinados lugares e bens simbólicos e/ou materiais.
As variáveis usadas para classificação se misturam, tendo peso diferenciado ou não dependendo
da situação de cada sujeito qualificado por elas. A lógica da opressão existe. Ser negro, morador
de bairro periférico, pobre, ser da cidade, dentre outras variáveis, estão presentes nos critérios
de avaliação das pessoas que passam pelos sinais e observam os artistas, em boa parte dos casos,
desprezando ou criticando a situação. Muitos casos chegam a ofender e agredir àqueles que se
enquadram nesses critérios.
Lazaro, para acrescentar, fala que os brasileiros, geralmente, recebem bem os artistas
estrangeiros. Entretanto, ao ir para seus países, o tratamento não é o mesmo. O filme reconhece e
afirma a existência desses problemas desse sistema de classificação e práticas de opressão, entretanto,
mostra também a resistência. Resistência, como define Krenak (2020), no seu triplo sentido do termo:
investimento em autonomia, sem dependência exclusiva a esse sistema de opressão, subjetivação
da experiência, dando a sua “cara” e afirmando sua posição no mundo e defesa de um conceito
de humanidade que comtemple as diferenças. Raimundo, por exemplo, apesar de ter tido um dia
cansativo e estressante, fala da recompensa que conseguem com a persistência e “trabalho honesto”.
Encerra sua fala dizendo: “...e que a cultura viva”! No encerramento do filme, Alexandre
canta uma música em homenagem aos malabares, afirmando sua posição no mundo. Entretanto,
nada mais significativo sobre o sentido da resistência do que a fala de Felipe em evento público de
poesia Slam (Slam da Quentura em Sobral):

Privilegiem a arte do artista de rua, de uma pessoa, as vezes maltrapilha, as vezes não... com
estrutura ou não... de família boa ou de favela ou de quebrada... enfim, véi... a arte de rua tem
de ser contemplada. Pode ser um maluco de BR, um hippie, um cara que vem de faca na rua,
as minas, tá ligado... tudo véio... toda arte contempla, contempla mesmo... com amor, com
coração, porque foi feita de coração para coração... até de coração para mente, mas de coração
para coração, geralmente. Enfim galera, salve, salve, viva a arte de rua! Isso aqui é arte de rua.
(Felipe, em apresentação no movimento Slam da Quetura de Sobral).

Essa fale de Felipe em evento público sintetiza a resistência que o final do filme quer frisar.
Isso, apesar de toda a opressão e o preconceito que ainda existe com essa arte que se mistura com o
circo. Assim, resta-nos pensar que a pesquisa não é só uma forma de expressão da realidade sobre a
experiência. É também uma forma de aprender e comunicar junto com os nossos interlocutores uma
política do desejo e a potência transformadora de todos aqueles que sofrem diante das desigualdades

283
e injustiças de um sistema de relações que discrimina, classifica e reprime com violência aqueles que
pensam diferente e que exaltam o amor e a arte como formas de revolução contra a opressão.
O filme tem mais alcance nessa mensagem do que o texto. Os oprimidos não têm medo,
somente. Existem aqueles, dentre os oprimidos, que mostram coragem e brigam por melhores
condições de vida, não só para eles próprios, mas para a humanidade.

Referências

GEERTZ, Clifford. Do ponto de vista dos nativos: a natureza do entendimento antropológico. In.:
O Saber Local. Petrópolis, Vozes, 1997.

GONÇALVES, Marco Antônio. O real imaginado: etnografia, cinema e surrealismo em Jean


Rouch. Rio de Janeiro: Topbooks, 2008.

HAESBAERT, Rogério; BRUCE, Glauco. A desterritorialização na obra de Deleuze e Guatarri.


GEOgraphia, 4(7), 2009, 7-22.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

MARCUS, George E. A estética contemporânea do trabalho de campo na arte e na antropologia:


experiências em colaboração e intervenção. In: BARBOSA, Andréa; CUNHA, Edgar Teodoro da
& HIKIJI, Rose Satiko Gitirana (orgs.). Imagem conhecimento: antropologia, cinema e outros
diálogos. Campinas: Papirus, p. 13-32, 2009.

MARCUS, George; CLIFFORD, James. Writing Culture: The poetics and politics of ethnography.
Los Angeles: University of California Press, 1986.

PADOVANI, Natália Corazza. É Possível Fazer Ciências Sociais sem uma Análise Crítica das
Categorias de Diferenciação? Uma Proposição Feminista. Cadernos de Estudos Sociais e
Políticos. IESP/UERJ v. 7, n.12, 2017.

PAIVA, Daniel. Teorias não-representacionais na Geografia I: conceitos para uma Geografia do que
acontece. Finisterra, LII, 106, p. 159-168, 2017.

SIMMEL, G. O estrangeiro. In: MORAES FILHO, E. (org.). Georg Simmel. São Paulo: Ática,
1983.

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

284
POSFÁCIO: PAISAGENS PATRIMONIAIS E ARTES NA AMÉRICA LATINA

Frutíferas discussões durante o XVII Encontro de Geógrafos de América Latina (EGAL) em


Quito/Equador no ano de 2019 podem ser consideradas o primeiro movimento para fazer surgir
essa obra. O primeiro colóquio da Rede OPPALA ocorreu em 2018, na cidade de Fortaleza, e o
encontro no EGAL dava os primeiros passos para a montagem do II Colóquio da rede.
Sem imaginar a pandemia de covid-19 que acometeu a todos em 2020, a proposta inicial é que
se realizasse no início do mesmo ano um Workshop coordenado pelos professores Cristina Carballo
(UNQ) e Fabian Flores (Inigeo/UNLu) intitulado “Espacios de arte y patrimonio: territoriosen
diálogo entre lo local y lo regional” em Buenos Aires/Argentina, evento este que estaria ligado às
pesquisas da rede e que também serviria como encontro preparatório para o colóquio que ocorreria
no mesmo ano. A capital argentina, infelizmente, não pôde acolher o evento como cidade anfitriã
devido às medidas sanitárias restritivas e absolutamente necessárias. Outro evento que funcionaria
como preparatório para o segundo colóquio da Rede era o “I Workshop Nacional Paisagens
Patrimoniais e Artísticas no Brasil e na América Latina” cujo tema era “O entre mundos da vida e
os reconhecimentos possíveis”, que ocorreria também em 2020, na cidade de Pau dos Ferros/Brasil.
O II Colóquio da Rede Oppala proposto para agosto de 2020 e a ser realizado em Fortaleza/
Brasil trazia cinco eixos temáticos: Teatro e patrimônio: festa, danças e espetáculo; Música e
patrimônio: ritmos, sonoridades e performances; Literatura e Patrimônio: narrativas poéticas e
documentais; Cinema e patrimônio: vídeo e imagens digitais; Urbanismo e patrimônio: Desenhos
e artes plásticas. Os temas foram pensados a partir das pesquisas que tanto membros antigos como
novos vinham desenvolvendo em cada uma de suas áreas de estudo.
A pandemia e as políticas restritivas fizeram o segundo Colóquio ser adiado para o ano
seguinte. Embora a vacinação contra covid-19 em todo o território nacional estivesse acontecendo,
os membros da Rede optaram por realizar o evento em formato virtual. Deste modo, em agosto
de 2021, o II Colóquio da Rede Oppala ocorreu durante três dias com palestras, mesas redondas,
grupos de discussão através do Google Meet e sendo transmitido pelo Youtube para centenas de
participantes. O evento reuniu um número importante de pesquisadores(as) e na virtualidade
proporcionou variadas discussões que giraram em torno dos eixos temáticos que foram reformulados
em quatro principais:

i) Arte-patrimônio e Educação;
ii) Manifestações (i)materiais do sagrado;
iii) Patrimônio cultural e transmídia; e
iv) Linguagens e corporeidades plurais.

285
Merece destaque, neste contexto, os diálogos fílmicos que reuniram pesquisadores, produtores
e diretores de obras audiovisuais em formato de documentários ou vídeos de divulgação científica
que tinham vínculo com os projetos de pesquisa ligados ao Observatório.
Como resultado dos trabalhos expostos e as discussões realizadas durante o evento, a presente
obra se apresenta como uma compilação dos variados temas que foram apresentados, abordados e
discutidos. Este acumulado de discussões e produções se desenha em três temáticas mais abrangentes
que compõem este livro: Arte-patrimônio em saberes educacionais, manifestações imagéticas e
materiais do sagrado e territorialidades plurais na arte latino-americana. Estas três temáticas fecham
a produção, mas também são portas abertas para as discussões, parcerias e pesquisas que virão. A
Rede Oppala, articulando-se com outros grupos de pesquisa, estará no apoio do evento Paisajes
Peregrinos organizado pelo GIEPEC (Grupo Interdisciplinario de Estudios sobre Paisaje, Espacio y
Cultura), grupo de pesquisas argentino e parceiro da Rede Oppala.

Profa. Msc. Jacquicilane Honório de Aguiar


Profa. Msc. Jesica Wendy BeltranChasqui
Prof. Msc. Marcos da Silva Rocha
(Doutorandas/o do Programa de Pós-graduação em Geografia – PPGEO/UFC e pesquisadores do
LEGES- Laboratório de Estudos Geoeducacionais e Espaços Simbólicos).

286
NOTAS BIOGRÁFICAS

Alessandro Dozena
Tornou-se geógrafo pela Universidade Estadual Paulista (UNESP -
Rio Claro) e músico pela Universidade Livre de Música (ULM - São
Paulo). É Professor Associado do Departamento de Geografia da UFRN
- Natal, Professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGE) e Professor do
Mestrado Profissional em Geografia (GEOPROF). Realizou mestrado e
doutorado em Geografia Humana na Universidade de São Paulo (USP
- São Paulo).
E-mail: sandozena@gmail.com

Alexandra Maria de Oliveira


Graduada em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (1995),
mestre em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe (1999),
doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (2005).
Professora Associada do Curso de Geografia e do Programa de Pós-
Graduação em Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), onde
coordena o grupo de estudo Geografia, movimentos socioterritoriais
e diversidade e desenvolve o projeto: artes nas mãos: a geografia com
as mulheres camponesas que integra a Rede Observatório de Paisagens
Patrimoniais das Artes Latino-Americanas (Rede OPPALA).
E-mail: alexandra.oliveira@ufc.br

Antonio Jarbas Barros de Moraes


Graduado em geografia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú
(2015), mestre em geografia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú
(2018), Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia
da Universidade Federal do Ceará (UFC), Membro do Laboratório
de Estudos Geoeducacionais e Espaços Simbólicos (LEGES/UFC).
Atualmente desenvolve estudos na área de Geografia Cultural, com
ênfase nas abordagens da Geografia da Religião.
E-mail: jarbasmoraesima@gmail.com
Camila Benatti
Graduada em Turismo pela Universidade Federal de Ouro Preto (2011),
mestre em População, Sociedade e Território pelo Instituto de Geografia
e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa (2013) e
doutora em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (2017). É
Professora Adjunta do Curso de Turismo da Universidade Estadual de
Mato Grosso do Sul (UEMS), Dourados-MS, onde coordena o projeto
de pesquisa “Manifestações culturais e religiosas nas áreas de fronteira
de Mato Grosso do Sul” e é pesquisadora do Grupo de Estudos em
Turismo, Hospitalidade e Sustentabilidade (GESTHOS).
E-mail: camila.benatti@uems.br

Carlos Luciano Dawidiuk


Profesor en Historia (2008) y Licenciado en Historia (2016) por la
Universidad Nacional de Luján (UNLu). Se halla finalizando el
Doctorado en Ciencias Sociales y Humanas en dicha institución.
También se desempeña como docente y Forma parte del Grupo
Interdisciplinario de Estudios sobre Paisaje, Espacio y Cultura
(GIEPEC) en la misma universidad. Además de la actividad académica
se dedica a la música, la fotografía y a escribir poesía.
Correo electrónico: luchodawidiuk@yahoo.com.ar

Carolina Vogel
Licenciada en Ciencias Sociales y Humanidades por la Universidad
Nacional de Quilmes (2014). Se halla finalizando la Maestría en
Ciencias Sociales y Humanidades en la misma universidad. Forma
parte del Grupo Interdisciplinario de Estudios sobre Paisaje, Espacio
y Cultura (GIEPEC) de la Universidad Nacional de Luján (UNLu).
Además de la actividad académica se dedica a la música, la danza, la
pintura, la cerámica y a escribir poesía.
Correo electrónico: carolinavogel@yahoo.com.ar
César Eduardo Medina Gallo
Licenciado en Geografía por la Universidad Nacional Autónoma de
México (2011), Maestro en Geografía en la línea de Sociedad y Territorio
por la Universidad Nacional Autónoma de México (2015), con estancia
de investigación en el Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Espaço e
Cultura en la Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Candidato a
doctor en Geografía por la Universidad Nacional Autónoma de México,
con estancia de investigación en la Claremont Graduate University.
Correo electrónico: cesar_gallo87@hotmail.com

Christian Dennys Monteiro de Oliveira


Graduado, Mestre e Doutor em Geografia pela Universidade de São
Paulo (1986; 1993; 1999), possui pós-doutorado em Turismo pela ECA-
USP (2007) e Geografia Humana pela Universidade de Sevilha (2011).
Professor do Departamento de Geografia e do Programa de Geografia
da Universidade Federal do Ceará (UFC), onde coordena o Laboratório
de Estudos Geoeducacionais e Espaços Simbólicos (LEGES) e edita a
Revista Geosaberes. Integra à REDE OPPALA desde 2018.
E-mail: cdennys@gmail.com

Emanuel da Costa Pereira


Graduando do curso de Geografia, modalidade licenciatura, pela
Universidade Federal do Ceará. Integrante do Laboratório de Estudos
Geoeducacionais e Espaços Simbólicos (LEGES) no Departamento
de Geografia, onde coordena o Grupo de Estudos “Sobremesa
Geoeducativa”. No laboratório, atua como bolsista do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), financiado pelo
CNPq, atuando no projeto “Paisagens Patrimoniais do Carnaval Latino:
Mapeamento Simbólico de Urbes Turísticas Sul-americanas”.
E-mail: emanuel13556@hotmail.com
Fábio Rodrigo Fernandes Araújo
Graduado em Geografia pela Universidade Estadual do Rio Grande
do Norte (2013). Mestre em Ciências Sociais e Humanas pela
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (2016). Pesquisador
efetivo do Grupo de Estudos e Pesquisas em Espaço, Ensino e
Geografia (GEPEEG) da rede de pesquisa IIEG – Investigadores
Ibero-americanos em Educação Geográfica e da rede Oppala. Linhas
de pesquisa: Pensamento do filosofo Jürgen em suas intersecções
geográficas com a didática, e linguagens do cinema e da dança.
E-mail: fherodoto@gmail.com

Francisca Linara da Silva Chaves


Graduada em geografia pela Universidade Estadual do Rio Grande
do Norte (2019), mestra em ensino pela Universidade Estadual do
Rio Grande do Norte (2022), pesquisadora do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Espaço, Ensino e Geografia (GEPEEG).
E-mail: linarachaves@hotmail.com

Guilherme da Silva Borges


Graduado em geografia pela Universidade Federal do Ceará (2021)
e em design pela Escola de Jovens Designers (2021). Desenvolve
pesquisas que analisam o vínculo entre a música e o espaço geográfico.
Atualmente está cursando uma pós-graduação MBA em ciência de
dados pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Servidor público
pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
em Fortaleza - CE.
E-mail: jobsdoborges@gmail.com
Jocilene Ramos Bastos
Artista Pesquisadora Nordestina, Bacharel em Ciências Sociais pela
Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA e graduanda do curso
de Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Estadual do Ceará
- UECE. Atua na área da Pesquisa, Produção Cultural, Fotografia,
Realização e Pedagogia Audiovisual. Idealizadora do Cineclube “Cinema
no Terreiro” e Coordenadora Pedagógica no Projeto Janelas da Vila-
Laboratório de Formação e Experimentação Audiovisual.
E-mail: jocileneramosbastos@gmail.com

José Arilson Xavier de Souza


Graduado em geografia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú
(2007), mestre em geografia pela Universidade Federal do Ceará (2009),
doutor em geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(2017). É pós-doutorando em Geografia pela Universidade Estadual de
Campinas (2022). Professor do Curso de Geografia e do Programa de
Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual do Maranhão
(UEMA), São Luís-MA, onde coordena o Núcleo de Estudos em
Território, Cultura e Planejamento (Marielle) e o Grupo de Estudos
sobre Espaço e Cultura (GEEC).
E-mail: arilsonxavier@yahoo.com.br

Léon Denis Ferreira Xavier


Graduado em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (2019),
mestrando em Integração da América Latina pela Universidade de
São Paulo. Colaborador do Laboratório de Estudos Geoducacionais e
Espaços Simbólicos (LEGES), vinculado ao Departamento de Geografia
da Universidade Federal do Ceará. Desenvolve pesquisas nas temáticas
de relação entre espaço e arte, focando-se especialmente em música.
E-mail: leon.profgeografia@gmail.com
Leonardo Pinheiro
Bacharel em Cinema pela Universidade Federal de Santa Catarina e
mestrando em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro, possui experiência profissional nas áreas de direção, produção
e roteiro para cinema e televisão, tendo participado de projetos de longa-
metragem e de curta-metragem de ficção e documentário premiados no
Brasil e no exterior. Em 2021 montou e editou o documentário “Raiz
Farinha Beiju”.
E-mail: leonardopinheirocontato@gmail.com

Lucas Bezerra Gondim


Graduado em Geografia (Licenciatura) pela Universidade Federal do
Ceará (2012), mestre pela Universidade Federal do Ceará (2015), doutor
em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (2022). Professor
da rede particular de ensino básico de Fortaleza. Colaborador do
Observatório das Paisagens Patrimoniais e Artísticas Latino Americanas
– OPPALA – e do Laboratório de Estudos Geoeducacionais e Espaços
Simbólicos – LEGES.
E-mail: lucasgeoufc@gmail.com

Marcos Antônio da Silva Ferreira


Licenciado em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará (2015)
e Mestre em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia
da UECE (2018). Atualmente, além de doutorando pelo mesmo
programa, integra o Laboratório de Estudos em Geografia Cultural
(LEGEC/UECE) e o Grupo de Estudos do Imaginário, Paisagem e
Transculturalidade (GEIPaT/UFG). Desenvolve pesquisas na área da
Geografia Cultural a partir das relações estabelecidas entre a geografia
e o cinema.
E-mail: geo.marcosf@gmail.com
Maria Aline da Silva Batista
Graduada em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (2011),
mestre em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (2014),
doutoranda em Geografia pela Universidade Federal do Ceará. Integra
a Rede Observatório de Paisagens Patrimoniais das Artes Latino-
Americanas (Rede OPPALA).
E-mail: geoalinebatista@gmail.com

Maria Aparecida de Sá Xavier


Farmácia/Fafabes-ES, L. Geografia/Universo, RJ, MSc Ciência Ambiental
e Dra Geografia, UFF. Pós-doc Geografia-UFES. Colaboradora Getuff/
UFF, Professora Auxiliar Geografia, IGeoG/UERJ. Colaboradora
Rede Oppala com trabalhos em Colóquio, etnogeografia/experimentos
cartográficos e a Geógrafa/documentarista no cinema experimental.
Pesquisa povos e comunidades tradicionais, e periféricas, saberes/fazeres
arte de curar, religiosidades/fé, festejos. Atua na Educação antirracista,
decolonial, contra hegemônica, luta pela autonomia, autodeterminação/
representação política dos povos e comunidades tradicionais.
E-mail: airamxavier@yahoo.com.br

Neusa de Fátima Mariano


Graduada em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP) em
1997; mestre e doutora em Geografia Humana pela mesma universidade
(2001 e 2007, respectivamente). Concluiu pós-doutorado no Instituto
de Estudos Brasileiros (IEB-USP) em 2017. Desde 2009 é Professora do
Curso de Geografia da Universidade Federal de São Carlos – campus de
Sorocaba, e está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia
da mesma universidade, desde 2017. Suas pesquisas e projetos de exten-
são envolvem cultura caipira e religiosidade popular.
E-mail: neusa@ufscar.br
Nilson Almino de Freitas
Bolsista de produtividade do CNPQ (PQ2), Professor da área de
Antropologia da Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA/Sobral-
CE, Coordenador do Laboratório das Memórias e das Práticas Cotidianas
– LABOME, Coordenador do Programa de extensão Visualidades,
Professor do Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional –
PROFSOCIO, Pesquisador Associado do Pós-doutorado em Estudos
Culturais do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
E-mail: nilsonalmino@hotmail.com

Otávio José Lemos Costa


Graduado em geografia pela Universidade Estadual do Ceará-UECE.
Mestre em Geografia pela UECE. Doutorado em geografia pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Professor Adjunto
do Curso de Geografia da UECE e do Programa de pós-graduação
em geografia da UECE. Coordenador do Laboratório de Estudos em
Geografia Cultural – LEGEC. Desenvolve estudos e pesquisas na área
de paisagem e patrimônio cultural.
E-mail: otavio.costa@uece.br

Pablo Raniere Medeiros da Costa


Graduado em geografia pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (2012), mestre em Estudos Urbanos e Regionais pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2016), doutorando em
geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2022).
Possui experiência em sala de aula, atuando como professor substituto
no Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRN. Bolsista
CAPES no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), onde desenvolve pesquisa
sobre paisagem e intervenções urbanas.
E-mail: pabloranmed@yahoo.com.br
Patrícia Cristina Statella Martins
Bacharel em Turismo pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas,
mestre em Geografia pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
(UFMS) e doutora em Geografia pela Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD). É professora efetiva e coordenadora do Curso de
Turismo da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS),
Dourados-MS, onde atua como pesquisadora do Grupo de Estudos em
Turismo, Hospitalidade e Sustentabilidade (GESTHOS).
E-mail: martinspatricia@uems.br

Patrícia Pinheiro
Professora colaboradora do programa de pós-graduação em Antropologia
da Universidade Federal da Paraíba. Doutora em Ciências Sociais pela
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). Pesquisa a
trajetória histórica do racismo e formas do seu enfrentamento, patrimônio
cultural, conflitos socioambientais e políticas de reconhecimento de
comunidades quilombolas.
E-mail: patriciasantspinheiro@gmail.com

Rafael Henrique Teixeira-da-Silva


Graduado em Turismo pela Universidade Federal de Ouro Preto (2010),
mestre em População, Sociedade e Território pelo Instituto de Geografia
e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa (2013) e doutor
em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho (UNESP/Rio Claro). Pós-doutorado em Estudos do Lazer-UFMG
(2021). É Professor Assistente do Curso de Turismo - UNESP/Rosana e
Pesquisador do Laboratório Patrimônio, Memória e Território (LAPAT).
E-mail: rafael.henrique@unesp.br
Raynara Ferreira da Silva
Graduanda do curso de Geografia, modalidade licenciatura, pela
Universidade Federal do Ceará. Atua no Laboratório de Estudos
Geoeducacionais e Espaços Simbólicos (LEGES) no Departamento de
Geografia, onde atua como bolsista do Programa Institucional de Bolsas
de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação (PIBITI) no
projeto “Arte-Patrimônio & Cognição Emocional Geoeducativa: Atlas
Memorial Docente”.
E-mail: ferreiraraynara@alu.ufc.br

Rosalvo Nobre Carneiro


Licenciado em Geografia pela Universidade Estadual da Paraíba (2001).
Doutor em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco
(2011). Docente do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-
Graduação em Ensino (PPGE), UERN Campus de Pau dos Ferros, RN.
Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Espaço, Ensino e Geografia
(GEPEEG) coordenando a pesquisa Mundos da vida, agir comunicativo
e a Dança de Caboclos/Malhação do Judas na América Latina.
E-mail: rosalvonobre@uern.br

Silvia Heleny Gomes da Silva


Doutoranda em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em
Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em
Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Graduada em
Geografia - Licenciatura pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Integrante do Laboratório de Estudos Geoeducacionais e Espaços
Simbólicos (LEGES) e do Grupo de Pesquisa Comunicação Patrimonial
e Representação do Espaço Educativo (COMPARE). Pesquisadora da
Rede OPPALA - Observatório de Paisagens Patrimoniais & Artes Latino
Americanas.
E-mail: silviaheleny@gmail.com
Thaysslloranny Batista Reinaldo
Doutoranda em Geografia pela Universidade Federal do Ceará
(UFC). Mestre e Licenciada em Geografia pela Universidade Federal
do Tocantins (UFT). Atua como professora temporária no curso de
Licenciatura em Geografia da Universidade Estadual do Vale do Acaraú
(UVA). Membro do Grupo de Pesquisa GEGATO (Grupo de Estudos
Geográficos da Amazônia e Tocantins) pela UFT, e do grupo de pesquisa
Geografia Movimentos Socioterritoriais e Diversidade no Campo, pela
UFC. Integra a Rede Observatório de Paisagens Patrimoniais das Artes
Latino-Americanas (OPALLA).
E-mail: thayssuft@gmail.com

Tulio Andrés Clavijo Gallego


Graduado en Geografía por la Universidad del Cauca, Colombia (2004),
Maestría en Estudios Interdisciplinarios del Desarrollo por la Universidad
del Cauca (2012), Doctor en Antropología por la Universidad del
Cauca (2022). Profesor Asociado del Departamento de Geografía de la
Universidad del Cauca y de las Maestrías de Estudios Interculturales y
Estudios Interdisciplinarios del Desarrollo. Sus líneas de investigación
abordan los movimientos sociales y sus configuraciones territoriales,
los procesos de ordenamiento territorial y los procesos de organización/
movilización de la gente negra en el Pacífico sur colombiano y el norte
del Cauca. Miembro del grupo de investigación Antropos.
Correo electrónico: taclavijo@unicauca.edu.co

Vicente de Paulo Sousa


Bacharel, Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual
Vale do Acaraú-UVA, Especialista em Gestão de Organizações Sociais
e Mestre em Geografia Cultural pela mesma Universidade, doutorando
em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Integra os laboratórios de pesquisas: Laboratório das Memórias
e das Práticas Cotidianas – LABOME/UVA e Núcleo de Antropologia
Visual – NAVIS, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Membro do Observatório de Paisagens Patrimoniais e Artes Latino-
Americanas (Rede OPPALA).
E-mail: vicentypsousa@hotmail.com
Wellington Vinícius de Almeida
Graduado em Geografia pela Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte (2021). Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas
em Espaço, Ensino e Geografia (GEPEEG) integrando a pesquisa
Reprodução Simbólica dos Mundos da Vida Espaciais no Brasil e em
Países da América Latina: Dança de Caboclos ou Malhação de Judas.
E-mail: wellingtonalmeida@alu.uern.br

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