A Justiça Sob A Perspectiva Das Obras Clássicas Da Literatura Mundial Antígona, o Mercador de Veneza e o Processo.
A Justiça Sob A Perspectiva Das Obras Clássicas Da Literatura Mundial Antígona, o Mercador de Veneza e o Processo.
A Justiça Sob A Perspectiva Das Obras Clássicas Da Literatura Mundial Antígona, o Mercador de Veneza e o Processo.
21902/
Organização Comitê Científico
Double Blind Review pelo SEER/OJS
Recebido em: 04.02.2016
Revista de Direito, Arte e Literatura Aprovado em: 25.05.2016
1
Simone Peixoto Ferreira Porto
RESUMO
Através de uma incursão nas obras clássicas da literatura mundial: Antígona, O Mercador de
Veneza e o Processo, o presente trabalho visa investigar a íntima relação da literatura com o
direito ao longo dos séculos, enfatizando o seu papel de instrumento disseminador da crítica
social às relações de poder. Assim, com supedâneo nas referidas obras, tem-se como
problema de pesquisa o exame comparativo das concepções de justiça desde a antiguidade
clássica, passando pelo período medieval até a modernidade com seus diferentes contornos e
formas de compreender o direito de acordo com o grau de complexidade dos agrupamentos
humanos na história.
ABSTRACT
Through a foray into world literature's classic works: Antigone, The Merchant of Venice and
The Trial, this study aims to investigate the intimate relationship of the literature with the law
over the centuries, emphasizing its role as a disseminatig instrument of social critique of
power relations. Thus, with footstool in these literary works, its reseach problem is the
comparative examination of conceptions of justice drawn from such literary works since
classical antiquity throughout the middle ages to modernity with its various shapes and forms
of understanding the law according to the degree of complexity of human groups in history.
1
Especialização em Direito Judiciário e Magistratura do Trabalho pela Associação Educacional Boa Viagem -
AEBV, Pernambuco (Brasil). Técnico de Auditoria das Contas Públicas pelo Tribunal de Contas de Pernambuco -
TCE, Pernambuco (Brasil). E-mail: simone_peixoto.porto@hotmail.com
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Este trabalho tem por objetivo promover uma análise comparativa da concepção de justiça
extraída dos grandes clássicos da literatura mundial. Para tanto, iniciaremos nossas reflexões, por meio
da tragédia grega de Sófocles, Antígona, debruçando-nos sobre a vetusta, porém atual dicotomia entre o
direito justo e o direito posto, expressa na referida obra, através do conflito entre as normas estatais e os
valores socioculturais, que colocam em contraposição axiomas que até os dias atuais são
inequivocamente reconhecidos como caros pela humanidade. Em seguida, iniciaremos uma viagem nos
percalços da justiça, sob a ótica do direito presente na passagem da Idade Média para a Modernidade,
tendo por marco teórico a obra de Shakespeare, O Mercador de Veneza, e como principal enfoque a luta
pelo direito numa sociedade mercantilista e imersa numa profunda indiferenciação ética. Por fim,
somos convidados a mergulhar no universo surrealista e onírico da obra de Franz Kafka, O Processo, e
nos surpreender com a profundidade e atualidade com que o autor trata dos conflitos psicológicos do
homem moderno na sua incessante luta por justiça, numa sociedade “fictícia” onde as liberdades
públicas não são asseguradas, sendo paradoxalmente legítimas as condutas pautadas na dissimulação,
na hipocrisia e na imoralidade das instituições públicas. Dessa forma, perscrutaremos a íntima relação
da literatura com o direito ao longo dos séculos, enfatizando o seu papel de instrumento disseminador
da crítica social às relações de poder, bem como de estimulador da reflexão acerca do papel
desempenhado pelo Direito, pelo Estado e pela Sociedade na permanente luta do ser humano por
justiça e por um mundo melhor.
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A expressão da arte poética grega por meio da tragédia, gênero literário que obteve
em Sófocles a sua máxima perfeição, caracteriza-se por seu profundo conteúdo humano, na
medida em que as dimensões do estético, do ético e do religioso se interpenetram e se
condicionam reciprocamente na criação de personagens como figuras ideais (Jaeger, 2013,
321). Nesse sentido, o apogeu do espírito ático é, portanto, contemporâneo à tragédia de
Sófocles e às esculturas de Fídias, expressões da arte grega no tempo de Péricles,
comparadas em razão do elevado grau de excelência e produzidas entre 496-406 a.C., tendo
Antígona sido encenada pela primeira vez em 441 ou 442 a.C..
Dessa forma, ao referir-se à arte e à poesia de Sófocles, Werner Jaeger assevera que
suas obras são direcionadas ao homem eterno, corajoso e sereno perante a dor e a morte, na
medida em que os seus personagens são moldados num ideal de conduta humana, numa
época em que emerge pela primeira vez a formação consciente do homem, “tal como deve
ser”. É, portanto, o homem trágico de Sófocles o primeiro a elevar-se a uma autêntica
grandeza humana pela completa destruição da sua felicidade terrena ou da sua existência
física e social em prol de um ideal de justiça (Jaeger, 2013, p. 320-325/331).
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CREONTE
E tu, declaras sem rodeios, sinteticamente:
sabias que eu tinha proibido essa cerimônia?
ANTÍGONA
Sabia. Como poderia ignorá-lo? Falaste abertamente.
CREONTE
Mesmo assim ousaste transgredir minhas leis?
ANTÍGONA
Não foi, com certeza Zeus que as proclamou,
Nem a justiça com trono entre os deuses dos mortos
as estabeleceu para os homens.
Nem eu supunha que tuas ordens tivessem o poder
de superar as leis não escritas, perenes, dos deuses,
visto que és mortal.
Pois elas não são nem de ontem nem de hoje,
mas são sempre vivas,
nem se sabe quando surgiram.
Por isso, não pretendo, por temor às decisões
de algum homem, expor-me
à sentença divina. Sei que vou morrer. (v.446 – 459: 33-34)
A peça traz à lume uma antiga inquietação que historicamente tem colocado em
lados opostos jusnaturalistas e juspositivistas, observada por Alves, nos seguintes termos:
de onde deriva em última instância a legitimidade das normas estatais? Até que
ponto as leis da pólis devem coincidir com as leis divinas? As leis são uma
realidade em si, têm um caráter divino, metafísico, ou, como gostavam de
proclamar os sofistas, são meras convenções, bastante úteis para assegurar o
convívio em sociedade e o predomínio dos mais fortes sobre os mais fracos?
(2008, p. 65)
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Digo que, de um lado, há a lei particular e, de outro lado, a lei comum: a primeira
varia segundo os povos e define-se em relação a estes, quer seja escrita ou não
escrita: a lei comum é aquela que é comum à natureza. Pois há uma justiça e uma
injustiça, de que o homem tem, de algum modo, a intuição, e que são comuns a
todos, mesmo fora de toda comunidade e convenção recíproca. É o que
expressamente diz a Antígona de Sófocles, quando, a despeito da proibição que
lhe foi feita, declara haver procedido justamente, enterrando Polinices: era esse o
seu direito natural: “não é de hoje, nem de ontem, mas de todos os tempos que
estas leis existem e ninguém sabe a origem delas.
Nesse sentido, João Maurício Adeodato, na obra Uma Teoria da Norma Jurídica e
do Direito Subjetivo, ao tratar da diferenciação entre direito justo e direito posto, assevera
que:
O argumento de Sófocles é muito anterior a dicotomia direito natural versus
direito positivo ou legitimidade versus legalidade; o direito superior a que
Antígona se refere é sem dúvida um direito consuetudinário e, como tal, positivo,
ainda que acima do direito emanado do tirano. Aqui se insiste, inobstante, que
esse direito costumeiro pré-aristotélico está acima do direito posto pelo poder
efetivo por que de acordo com um direito cósmico, daí natural. (2014: 85-86)
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não designa as leis que está defendendo como nómos (lei), mas sim como nómina
(costume, usos e tradições): trata-se explicitamente dos usos, dos costumes dos
deuses – costumes estes legados aos homens – que estão em jogo, sobretudo
aqueles costumes que dizem respeito aos ritos fúnebres.
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a dignidade da espécie humana, daí a grandeza da obra, pois ela tem sido capaz de provocar
a reflexão e, por conseguinte, o questionamento acercar dos valores e princípios de justiça
que norteiam a humanidade ao longo dos séculos.
Após uma rápida incursão na Antiguidade Clássica, por meio da Tragédia Grega
Antígona, iniciaremos, por intermédio da comédia shakespeariana, O Mercador de Veneza,
uma viagem nos percalços da justiça, sob a ótica do direito presente na passagem da Idade
Média para a Modernidade. Essa obra teria sido escrita aproximadamente em 1596, na
Inglaterra elisabetana, e apresenta, a despeito da riqueza dos seus diversos personagens,
como tema principal e de grande relevância para a análise do papel desempenhado pela
justiça, malgrado tratar-se de comédia, o drama pessoal vivenciado por um personagem
judeu (Shylock) e um processo judicial decorrente de uma obrigação não cumprida
envolvendo a dívida de uma libra de carne humana, chancelada por meio de uma
promissória registrada em cartório. Assim, por meio desse peça teatral, Shakespeare expõe,
magistralmente, sentimentos atemporais como o amor, o ódio, o preconceito
(antissemitismo), a ganância, a inveja, a usura, elementos que conferem a tônica da sua
genialidade, tornanando suas obras perenes, dada a capacidade de, até hoje, instigar o
público a uma análise crítica acerca das vicissitudes do homem, bem como das instituições
públicas por ele criadas, como o Estado e o Direito.
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Shylock – Posso usar de iscas nas minhas pescarias. Se ela não alimentar nada
mais, vai alimentar a minha vingança. Ele me deixou mal, e me impediu de fazer
meio milhão, e ria das minhas perdas e zombava dos meus ganhos, menosprezava
a minha nação, frustrava os meus negócios, esfriava as minhas amizades, atiçava
os meus inimigos... E que motivo tinha ele para isso? Eu sou um judeu. Judeu não
tem olhos? Judeu não tem mãos, órgãos, dimensões, sentidos, impulsos,
sentimentos? Não se alimenta também de comida, não se machuca com as
mesmas armas, não está sujeito as mesmas doenças, não se cura pelos mesmos
métodos, não passa frio e não sente calor com mesmo verão e o mesmo inverno
que um cristão? Se vocês nos furam, não sangramos? Se nos fazem cócegas, não
rimos? Se nos envenenam, não morremos? E, se vocês nos fazem mal, não
devemos nos vingar? Se somos como vocês em todo o resto, vamos ser como
vocês também nisso. Se um judeu faz mal a um cristão, isso é recebido como
humildade? Não, isso pede vingança. Se um cristão faz mal a um judeu, pelo
exemplo cristão, qual deve ser a clemência? A baixeza que vocês me ensinam eu
vou executar e, se não houver impedimentos, o aluno vai superar os seus mestres.
(2015, p. 73 – 74)
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Assim, pela aplicação literal da lei, os contratos deveriam ser cumpridos, como
expressão viva do brocardo em latim pacta sunt servanda, segundo o qual as partes devem
se submeter rigorosamente as cláusulas estabelecidas nos contratos, sobretudo numa
sociedade mercantilista e pré-capitalista, onde a credibilidade das relações comerciais não
poderia colocar em dúvida a certeza das relações jurídicas, revelando, nas palavras de
Yoshino, claramente que “o Estado de Direito é uma condição necessária mais não
suficiente para se fazer justiça”, além disso:
Entretanto, na obra “A Luta pelo Direito”, Rudolf Von Ihering chama a atenção para a
força viva do direito, cuja defesa constitui um dever para com a sociedade, e, nesse sentido,
ressalta que ao ser invocada a aplicação da lei de Veneza, Shakespeare põe na boca do
personagem Shylock “a força inabalável da convicção de que o direito deve subsistir como
direito”, pontuando, assim, “a relação do direito subjetivo com o direito objetivo e a
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importância da luta pelo direito”, a despeito de destacar que num exame crítico, o título que
respalda a avença seria plenamente nulo, dada a imoralidade de seu objeto. Nesse sentido,
ao evidenciar a crença na força viva do direito, expressa nas palavras de Shylock “eu
invoco a lei”, esclarece Ihering,
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Ao criar uma sociedade imaginária e surrealista, fora dos padrões de uma ordem
normativa fundamentada nas conquistas da modernidade, Franz Kafka, por meio da obra
“O Processo”, promove uma aguçada crítica ao excesso de burrocracia e ao formalismo
exarcerbado do Estado Administração, chama a atenção para a permanente ameaça às
liberdades públicas por parte do Estado Polícia e apresenta um judiciário teratológico, com
poderes ilimitados, numa crítica aos excessos do Estado Juiz.
Logo no iníco da obra, no seu primeiro capítulo, intitulado “Detenção”, após Franz
K. ser preso pelos guardas, e, em meio a uma total insensatez dos fatos em que se dá a
detenção, ocorre entre os personagens o seguinte diálogo:
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Gisele Mascarelli Salgado, por meio do artigo intitulado “A crítica do direito pela
literatura: a partir da obra de Kafka e de Philip Dick”, chama a atenção para o caráter
repressivo do direito presente nas obras de Kafka, ao aduzir que:
- Mas ela provavelmente existe apenas em suas cabeças – disse K.; ele
parecia querer de alguma maneira penetrar nos pensamentos dos vigias, virá-los a
seu favor ou se instalar dentro deles.
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secreta, próprios dos regimes totalitários, numa espécie de premonição das aberrações
legalmente autorizadas e postas em prática durante a Segunda Guerra Mundial pelo
totalitarismo de esquerda (stalinismo) e de direito (nazismo). E, a esse respeito, é
interessante observar como Celso Lafer retrata o amorfismo jurídico da gestão totalitária
que muito assemelha-se ao universo kafkaniano da obra “O Processo”, nos seguintes
termos:
O Estado totalitário tem uma fachada ostensiva e visível – que tem pouco poder –
e uma dimensão oculta cujo poder aumenta com a sua invisibilidade. “O
verdadeiro poder começa”, ensina Hannah Arendt, “onde o segredo começa”. Por
isso, a imagem mais adequada para a Sociedade, o Estado e o Direito nos regimes
totalitários não é a da tradicional pirâmide, mas sim a de uma cebola. No centro,
numa espécie de espaço vazio, localiza-se o líder. (1988, p. 95)
Como obra de arte, “O Processo” apresenta uma lingugem atemporal, em que pese
trazer à tona uma reflexão sobre as vicissitudes do homem moderno, suas angústias, medos
e anseios, na eterna busca da felicidade, que o faz mascarar a sua individualidade por meio
dos automatismos impostos pela pressa em adequar-se aos parâmetros dos novos tempos.
Será mesmo irreal a sociedade kafkaniana? Como nas obras anteriormente analisadas, a
profunda indiferenciação ética, característica das sociedade menos complexas, retratam
muito bem a sociedade kafkaniana, e, em certa medida, encaixam-se perfeitamente em
sociedade como a nossa, cujas disfunções alopoiéticas são vislumbradas, sobretudo, nos
desmandos de um política fisiológica, de uma polícia corrupta e de um judiciário
pernicioso.
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O direito não é uma teoria, mas uma força viva. Por isso a justiça
sustenta numa das mão a balança em que pesa o direito e na outra a espada de que
se serve para defender. A espada sem a balança é a força brutal; a balança sem a
espada é a impotência do direito. (Iherinh, 2009, p. 23)
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da sociedade, Shakespeare deixa a mensagem da crença “na força viva do direito” (Ihering,
2009, p. 23), que, em certa medida, pode constituir a última tábua de salvação.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. A Arte da Retórica e Arte Poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. Rio
de Janeiro: Ediouro, 197?
IHERING, Rudolf Von . A Luta pelo Direito. Trad. João de Vasconcelos. São Paulo:
Martin Claret, 2009.
KAFKA, Franz. O Processo. Trad. Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM POCKET, 2015.
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LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos. São Paulo. Companhia das
Letras, 1988.
SÓFOCLES. ANTÍGONA. Trad. Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM POCKET, 2015.
YOSHINO, Kenji. Mil Vezes Mais Justo. Trad. Fernando Santos. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2014.
INTERNET
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