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Arquitetura

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Arquitetura, percepção e educação

por Márcio Augusto Araújo*

A Arquitetura é a mais importante das artes-ofício. Enquanto arte, seu objetivo


primordial é transmitir o sentido da criação e do belo por meio da estrutura
erguida, à semelhança das esculturas, e também atuar sobre os espaços,
gerando a sensação de conforto e harmonia. Verdadeiros monumentos, como a
Mesquita de terra em Djenne, no Mali (foto 1), ou As Sete Obras, de Antoni de
Gaudí, em Barcelona, Espanha (foto 2), confirmam o vinculo entre Arquitetura e
arte.

Na condição de ofício, nada supera a Arquitetura na tarefa indispensável de


planejar e projetar o uso e aproveitamento dos espaços, de forma a atender as
necessidades de proteção, moradia, tráfego, convivência e trabalho das
pessoas.

Há, contudo, outra função exercida pela Arquitetura, pouco comentada. Trata-
se da capacidade de educar por meio da própria estrutura construída, pela
relação estabelecida entre o indivíduo e a edificação. Entenda-se por educação
mais do que o ato de ensinar ou preparar as pessoas para terem um diploma,
um trabalho ou mesmo a conviverem juntas por um período de suas vidas. No
caso da Arquitetura, educar consiste também em propiciar às pessoas, pelo
contato com a construção, maior autoconhecimento e percepção de si mesmas,
do seu entorno, do meio ambiente e de sua própria época.

O filósofo e educador norte-americano Marshall McLuhan (1911-1980), hoje


reconhecido como o primeiro a prever fenômenos como a globalização e a
Internet, enunciou nos anos 60 alguns conceitos-chave perfeitamente
aplicáveis à Arquitetura com função educacional. São eles: o de que o meio é
a mensagem; e nós somos o que vemos.

O meio é a mensagem

O poeta e ensaísta ítalo-americano Ezra Pound dizia que “os poetas são as
antenas da raça”. Analogamente, pode-se dizer que os arquitetos são “as
antenas de suas comunidades”. Assim como os poetas transmitem e
amplificam o acervo lingüístico de seus povos e suas épocas, os arquitetos
também traduzem em suas obras as necessidades de sua sociedade e a
maneira como ela lida com sua cultura, meio ambiente, suas comunidades,
suas formas e com seu espaço.

A estrutura arquitetônica ‘fala’. A arquitetura das edificações religiosas, como


as das mesquitas (templos islâmicos) ou igrejas (foto 3), mais do que oferecer
espaço para abrigar centenas de pessoas, tem como objetivo predispor os fiéis
à sensação de infinito e de elevação. Por isso, a estrutura de cobertura das
mesquitas são cúpulas de elevado pé direito, que tentam reproduzir a sensação
de se estar diante da abobada celeste, enquanto transmitem ao espírito o
estado de expansão e de proteção.

Numa mesquita, seguindo os preceitos do islamismo, não deve haver imagens


de seres vivos (humanos, vegetais ou animais). Quando as há, são arabescos,
formas geométricas que induzem o indivíduo à abstração e não permitem que
ele se distraia de seu encontro com o divino dentro de si mesmo.
Intenção quase semelhante pode ser percebida nas igrejas católicas
tradicionais, nas quais introspecção, elevação, força e a vinculação com as
formas humanas divinizadas (como as de Jesus Cristo e os santos) são
sensações proporcionadas subliminarmente aos fiéis, através da Arquitetura.
Nas construções das antigas igrejas católicas, nada era aleatório: desde a
fundação, passando pelas colunas, afrescos, vitrais ou imagens pintadas na
parte interna da cúpula, tudo tem o objetivo de doutrinar e educar o fiel dentro
do espírito cristão e de prepará-lo para um sentir mais profundo. O livro “O
mistério das catedrais”, de Fulcanelli, aborda detalhadamente a concepção de
um templo cristão, assim como os detalhes que a encerram.

A arquitetura religiosa é um exemplo de como uma estrutura pode influenciar a


percepção do indivíduo a partir de sua ampliação e do fortalecimento de sua
relação com os espaços e com seu próprio íntimo. Trata-se, portanto, da
própria educação do ser, de sua formação enquanto indivíduo completo.

Somos o que vemos

Na Arquitetura contemporânea, de maneira geral, as edificações causam


menor impacto sobre o sentir e a percepção humana, uma vez que
predominam formas com ângulos retos, incorporadas à paisagem habitual das
cidades, e por estarem de conformidade com as exigências do mercado e com
as chamadas tendências.

Mas o que é este ídolo (ou górgona) conhecido como “mercado”? O que se
convenciona chamar de “mercado” é o conjunto da visão comercial e dos
agentes que o compõem (fabricantes, vendedores, consumidores, organismos
reguladores, sua publicidade e marketing etc.). Por sua vez, as “tendências”
são as modas ou modismos que este mesmo mercado lança, periodicamente, a
fim de retroalimentar-se e manter-se vivo da forma como é. O “mercado” cria a
ilusão do novo (as tais “tendências”), transmitindo ao consumidor a sensação
de que, ao adquirir determinado bem ou serviço, tudo ficará mais “fácil” ou
“confortavel” ou será mais “evoluído” ou estará dentro do espírito de sua época
(será “contemporâneo”).

Essa ligação univitelina entre mercado e tendências, quando compulsória e


acrítica, engessa e aborta a capacidade criativa na Arquitetura, impedindo que
a percepção do arquiteto ou do profissional de projeto traga à tona uma visão
que relacione as pessoas a si mesmas, ao mundo e ao meio ambiente. Com
isso, a arquitetura torna-se mecânica e formal, resultando em edificações que,
mesmo atendendo às necessidades básicas dos indivíduos, são incapazes de
despertar a sensibilidade profunda de quem as habita e de humanizar as
próprias construções. São apenas cópias em série de si mesmas.

Tal padronização interfere na própria percepção. Acostumados a uma


arquitetura industrializada e padronizada, as pessoas se chocam ao se deparar
com edificações com propostas diferenciadas no trato com a forma, o ângulo, o
espaço e a matéria. As primeiras impressões são de espanto, curiosidade e até
repulsa. Raramente uma obra de caráter formativo mais arrojado é aceita sem
discussões, exceto quando projetada por alguém de renome ou de vanguarda,
que se caracterize justamente por ser um profissional da inovação, caso de um
Norman Foster. A questão, contudo, é: É possível superar os padrões
comerciais sem ser um arquiteto de renome, oferecendo ao usuário/morador
não apenas uma edificação formal, mas também um espaço de relação com o
mundo e com a própria sensibilidade?
O meio é a mensagem

Uma arquitetura com princípios pedagógicos como a Antroposófica (corrente


filosófica criada pelo pensador e cientista austríaco Rudolf Steiner) reúne
em si alguns dos elementos fundamentais para que o meio seja a
mensagem, ou seja, para que a própria obra seja aquilo que se deseja
comunicar.

A forma das construções antroposóficas é uma facilitadora de processos


educacionais, pois se comunica a partir de sua plasticidade. Ao visual, pelo
inusitado da forma, das curvas ou ângulos que não seguem a trajetória fixa
das retas. Ao espacial, pela sensação de que uma linha não
necessariamente se encontra com outra em um canto; ao tátil, pelo desejo
de tocar a própria superfície da construção, estimulando o lúdico e a
criatividade no indivíduo.

As Fotos 4 e 5 são oriundas de uma obra projetada e construída pelo


engenheiro colombiano Luis Carlos Rios Gallego. Segundo o engenheiro, a
intenção era erguer uma escola para crianças portadoras de necessidades
especiais.

A concepção e a forma da edificação surgiram a partir da percepção de seu


projetista da necessidade de criar um espaço que estimulasse seus jovens
ocupantes a se integrar e interagir com seus educadores e com o mundo. Foi,
portanto, uma construção terapêutica, que obteve resultados positivos ao fim a
que se propunha.

Surge, pois, outra questão: Seria possível reproduzir este mesmo tipo de
edificação para crianças portadoras de necessidades especiais que vivessem
em outra região ou país? A resposta é: formativamente não. No entanto,
conhecer a história dessa edificação serve como um elemento de inspiração,
não para servir de cópia, mas para atuar como uma semente, que, no momento
certo e em condições adequadas, germine.

Uma arquitetura educativa e, por extensão, ecológica, sempre responderá às


necessidades do indivíduo em seu meio específico. Tal arquitetura jamais pode
ser reproduzida acriticamente. Ela deve ser entendida em seu impulso original,
que é o de encontrar soluções pontuais, onde estas sejam necessárias.

Elementos como cálculo das estruturas, uso e aplicação de materiais fazem


parte do repertório básico de soluções técnicas dos profissionais da
construção. O mesmo não se pode dizer daquelas soluções que devem emergir
a partir da relação entre projetista, cliente, local, cliente e meio ambiente. Para
estas, não há uma receita. Como dizia o pensador Jiddu Krishnamurti, o novo
jamais pode surgir do velho, daquilo que já se conhece.

Educação e sustentabilidade

A arquitetura vem se tornando padronizada desde a Revolução Industrial, com


o advento de obras verticalizadas de porte, construídas em prazos curtos,
capazes de abrigar imensos contingentes de trabalhadores e moradores vindos
do campo e de diversas partes da Europa para os centros urbanos. Esse
padrão, originado no Ocidente em fins do século 18, se expandiu desde então
por todo planeta, e a globalização de fins do século 20 só o intensificou,
arrasando modelos vernaculares e regionais de Arquitetura.
Assim como em praticamente todos os segmentos, também a arquitetura vem
passando por um processo de dessensibilização e distanciamento de sua
relação direta com a Natureza. Se antes os materiais das construções eram
obtidos diretamente do meio natural, com pequeno processamento energético e
pouca transformação –caso da terra, da madeira, da pedra e do bambu-, hoje o
uso extensivo das matérias-primas industrializadas indicam o afastamento do
ser humano do meio ambiente, como o aço, concreto, madeira recomposta e
plástico, que requerem sistemas custosos e ambientalmente agressivos para
sua obtenção e fabricação.

O mesmo vem ocorrendo em outras áreas da vida humana.


Um exemplo são as crianças, que antes interagiam em espaços
abertos, com brinquedos de madeira ou materiais naturais
(pedras, fibras, outros), e hoje brincam com artefatos de
plástico e são iniciadas cada vez mais cedo no uso de
computadores, superestimulando sua capacidade mental-
cognitiva, em detrimento de suas faculdades psíquico-físico-
motoras e lúdicas.

Uma tentativa de resgatar princípios humanos e ecológicos pela


Arquitetura, bem como de reeducar as pessoas a partir das
próprias edificações (re-sensibiliza-las), vem surgindo através
dos diversos métodos de construção sustentável, movimento que procura
reduzir os impactos gerados pela construção civil ao mesmo tempo em que
busca reintegrá-la ao meio ambiente. Esse movimento ganhou mais força a
partir da divulgação do relatório do IPCC – Painel Intergovernamental de
Mudanças Climáticas, entidade ligada à ONU – Organização das Nações
Unidas, que mostrou o impacto das ações humanas sobre a Natureza e as
alterações no clima planetário, com o aumento da temperatura global e suas
conseqüências para a agricultura, maior ocorrência de terremotos, maremotos,
dentre outros fenômenos naturais.

A proposta (inicialmente positiva) de se introduzir e massificar o conceito de


sustentabilidade na arquitetura e na construção esbarra, no entanto, em sua
transformação em mais uma tendência comercializável, reduzida a modelos
prontos, exportáveis, sem considerar a relação com o individuo no local em que
se encontra, com o devido respeito à história, comunidade e demandas
especificas de sua sociedade.

Algo tão importante como o conceito de sustentabilidade, que traz em si a


premência de se pensar e viver com respeito ao todo, corre o risco de tornar-se
uma abordagem tecnicista e comercial de algo que requer um enfoque humano
e participativo. Não basta construir com tecnologias mais avançadas ou com
modelos pré-definidos, capazes de reduzir quantitativamente impactos
ambientais. Isso apenas adia o confronto com o problema para uma próxima
etapa. É fundamental criar abordagens do fazer arquitetônico que estimulem o
despertar e uma ampla percepção de seus ocupantes no contato com o próprio
ambiente construído. Cultivar a capacidade de compreender e transformar a
realidade a partir do interior de cada individuo é a tarefa maior da educação.
(...)“A educação pela pedra

Uma educação pela pedra: por lições;


para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática). (...)

João Cabral de Melo Neto

*Marcio Augusto Araujo – consultor em Ecoprodutos e construção sustentável,


sócio-fundador do IDHEA – Instituto para o Desenvolvimento da Habitação
Ecológica.

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