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De Corretione Donatistarum Liber Unus: Igreja: Universal E Poder Temporal Na Carta 185 de Santo Agostinho

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DE CORRETIONE DONATISTARUM LIBER UNUS: IGREJA

UNIVERSAL E PODER TEMPORAL NA CARTA 185 DE SANTO


AGOSTINHO

PIRATELI, Marcos Roberto1

Introdução

A transição do Mundo Antigo para o Medieval foi marcado pelo processo de


emergência do cristianismo, religião que marcou forte presença em um longo espaço de
tempo na região mediterrânica. De fato, o cristianismo paulatinamente construía aquilo que
acreditava como sua vocação universal, fazendo com que sua cultura alcançasse dimensões
“internacionais”.2
Na medida em que o cristianismo foi se institucionalizando, configurando-se como
Igreja “universal”, teve de enfrentar grupos de cristãos que se formaram como igreja local
(que mesmo sem divergir em termos doutrinais, no plano eclesial-institucional preferiram
não se incorporarem àquilo que ficou conhecida como Igreja Católica). Tal foi o caso de
uma parcela dos cristãos africanos, formando uma facção regional chamada “Donatismo”.
Autor de peso nesse debate entre o problema de uma Igreja universal em relação a uma
igreja local esteve Santo Agostinho (354-430), bispo da cidade africana de Hipona.3
O estudo sobre a eclesiologia em Santo Agostinho justifica-se no interesse de
investigar o papel desse pensador, que foi o primeiro grande filósofo do cristianismo, e um

1
DHI/UEPR-Paranavai.
2
Isto porque o cristianismo não se “espalhou” somente nesta região, mas também pelo noroeste europeu e
Ásia (BROWN, 1999).
3
Antes de sua efetiva conversão ao cristianismo, Santo Agostinho foi professor de retórica em sua cidade natal,
Tagaste (na província romana da Numídia, África) e com sua ascensão profissional lecionou em cidades mais
significativas do Império: Cartago, Roma e, por fim, Milão, em 384, onde assumiu a Cátedra Municipal de Retor.
Em sua formação sentiu-se atraído pela filosofia após a leitura de Cícero. Posteriormente, deixou-se envolver pelo
maniqueísmo, e mais tarde, pelo neoplatonismo. Sua conversão ocorreu em Milão, após seus contatos e amizade –
motivados por disputas retóricas – com o bispo da cidade, Ambrósio (333?-397), cuja eloqüência evangelizadora o
conquistara. Com isso, sua ação no cristianismo, sustentada em sua notoriedade intelectual, o levou à sua sagração
como bispo de Hipona, em 395. Além de sua autobiografia, as Confissões, vale a pena conferir a Vida de Santo
Agostinho (Vita Augustini) que traz o relato de sua vida na versão de Possídio – que foi seu aluno. Para uma
biografia mais detalha ver: Peter Brown, Santo Agostinho: uma biografia, Rio de Janeiro: Record, 2005.

1
dos mais importantes Padres da Igreja4 na Antiguidade, o que possibilitou, de sua parte,
uma ação idealizadora de justificação desta instituição junto aos homens de sua época. A
importância e vigor do seu legado intelectual cruzaram o limiar de seu tempo, invadindo o
medievo para constituir-se como seu mentor espiritual e fundamento de sua cultura
(HAMMAN, 1990).
Além disso, é adequado considerar que a influência de Santo Agostinho avançou as
centúrias, pois continuou presente na história do cristianismo, principalmente por ainda
marcar presença no magistério da Igreja, por extensão, na sociedade – o catolicismo, hoje,
conta com aproximadamente 1 bilhão de fiéis espalhados por todo o planeta –, a exemplo
de princípios morais, conforme explícito nas questões eclesiológicas defendidas pelo atual
Papa, Bento XVI (2007, p. 48): “Mas tende confiança: a Igreja é santa e incorruptível.
Dizia Santo Agostinho: ‘Vacilará a Igreja se vacila o seu fundamento, mas poderá talvez
Cristo vacilar? Visto que Cristo não vacila, a Igreja permanecerá intacta até o fim dos
tempos’ (En. in Psal., 103,2,5)”5.
Com o objetivo de investigar aquilo que Agostinho definiu como Igreja “universal”
e a legitimidade do uso do poder temporal para garantir sua supremacia, privilegiou-se no
seu Corpus antidonatista a Carta 185, que foi denominada como De correctione
Donatistarum liber unus [Livro sobre a correção dos Donatistas] escrita em 417 e cujo
destinatário era o Conde Bonifácio, o responsável para aplicar as leis imperiais na África
romana.
O foco central da carta estava em apresentar ao Conde um tipo de manual de
correções para serem aplicadas na dita facção donatista (cisma cristão africano).

In quel medesimo periodo scrissi un libro su La correzione dei Donatisti, in


risposta a coloro che s’opponevano a che essi una sanzione in base alle leggi
imperiali. Questo libro incomincia così: Esprimo il mio elogio, il mio
compiacimento e la mia ammirazione. (AGOSTINO, Le Ritrattazioni, II,
48,75).

4
O termo “Padre” era um título atribuído aos mestres que iniciavam e educavam um discípulo em filosofia
ou religião, até mesmo antes da era cristã, e que, com o desenvolvimento da hierarquia eclesiástica acabou
por ser aplicado aos bispos ou sacerdotes, superiores monásticos e leigos intelectuais; a partir daí, por Padres
da Igreja entendem-se escritores eclesiásticos da Antiguidade cristã que foram tidos pelo cristianismo como
as testemunhas “autorizadas” da fé, cuja particularidade se dava em sua ortodoxia, santidade de vida e
aprovação da Igreja e antigüidade (QUASTEN, 2004).
5
Discurso feito em sua viagem ao Brasil, proferido no dia 11 de maio de 2007 aos bispos presentes na
Catedral da Sé (São Paulo).

2
Vale destacar que, na longa controvérsia contra os donatistas, o bispo de Hipona
produziu uma rica atividade literária6 que, polêmica, constituiu-se em uma teologia da
Igreja (TRAPÈ, 2007). Segundo Pedro Langa (1988) o método da argumentação
agostiniana nesta disputa pode ser identificado em quatro orientações: (1) Sagrada
Escritura – argumentos tirados dos textos tidos como sagrados pelos cristãos; (2) tradição
eclesiástica – argumento para justificar a antiguidade e universalidade da Igreja; (3)
História – argumento tirado das fontes (documentos históricos, dossiês judiciais e atas
sinodais); e (4) Dialética – argumento instrumental para a refutação dos “erros” de seus
adversários.

Agostinho e a Igreja universal

Na medida em que o cristianismo foi se organizando e se consolidando, sua Igreja –


corpus fidelium: o “corpo” reunido dos cristãos – conquistou espaço legal com a conversão
do imperador Constantino, no início do século IV, e, posteriormente, alcançou seu triunfo
com o imperador Teodósio, ao tornar-se religião oficial do Império em 380.
Em virtude dessa condição, a Igreja, como instituição triunfante, assumiu o poder
no fim da Antiguidade, de fato e de direito, e que, por extensão, o poder passou a ser
interesse dos seus dirigentes. Importa lembrar que mesmo antes do fim do Império, os
bispos – ocupantes de posição de liderança na hierarquia do clero7 – assumiram a
magistratura das cidades. O poder do Estado, outrora a serviço do “paganismo”, passava ao
serviço da Igreja, que assumiu o status de instituição que orientou os homens na transição

6
A característica fundamental de sua escrita estava em seu método ser produto da retórica, arte da qual foi mestre
por mais de dez anos como professor em ambientes “pagãos” e que, sem dúvida, também esteve presente quando
se lançou na construção de uma cultura cristã. “No sólo poseía Agustín plenamente la cultura literaria propria de
los hombres cultos de su tiempo, sino que además dominaba magistralmente la palabra y la pluma, y de un modo
absoluto los resortes de la retórica, como la antítesis, la metáfora, los juegos de palabras y de ideas” (ALTANER,
1962, p. 403). Sua obra assumiu proporção quantitativa e qualitativa, composta de diálogos, comentários, epístolas,
sermões e tratados (TRAPÈ, 2007).
7
Desde o princípio do século III se fazia uso da terminologia clerus, para distinguir os cristãos que – após
uma ordenação – detinham um ministério de direção na Igreja. Dessa forma, o clero se diferenciava do
laicato (laicus) por obter uma função sacra a serviço da comunidade. Em síntese o termo clero, de “(clerus,
κληρος) no grego clássico e nos Setenta significa sorte, sorteio, o pedaço de terra concedido por sorte e,
depois, herança. [...] Já no séc. IV o [clero] se subdistingue em duas categorias: clerici inferioris ordinis e os
primi clerici ou superioris ordinis (bispos, presbíteros e diáconos)” (DI BERARDINO, 2002, p. 306-307)

3
da Antiguidade para a Idade Média. Nesse ambiente propício, os líderes do cristianismo
assumiram a condução da nova ordem social, o que os levou a defender uma Igreja única,
universal, e “oficial” do Estado; dentre estes, Santo Agostinho foi um de seus principais
teóricos.
Condições históricas específicas resultaram no domínio temporal e espiritual da
Igreja: na medida em que o Ocidente europeu se transformava em uma sociedade agrária e
fragmentada, os centros urbanos perderam sua função de núcleo da cultura e da formação
do homem. Todavia, essa fragmentação do mundo romano era compatível com a estrutura
fragmentada da Igreja. Daí as bases para que essa Igreja hierarquizada e altamente
organizada sobressaísse ao Estado romano naquele momento de transformação da
sociedade, o que lhe permitiu participar de assuntos seculares e promovendo a cultura
cristã; a partir disso, construiu-se sua legitimação teológica-eclesiástica como instituição
universal de organização religiosa, assumida pelo Estado romano a partir do século IV, e
definida como Ecclesia Catholica: “Hay una sola Iglesia, la única llamada Católica”
(Agustín, Tratado sobre el Bautismo, I, 10, 14).
Com a ascensão da Igreja no mundo romano, esta não limitou seu papel ao campo
espiritual, mas, como nova condutora do orbis – pelo menos na parte ocidental – não pôde
se ausentar das questões civis, de tal modo que sua política de moralização da vida pública
contribuiu para a consolidação da vida servil.
A justificativa para essa nova orientação foi encontrada na sua essência tida como
sobrenatural e universal, para além da história, portanto superior ao Estado romano. A sua
condição de sociedade autônoma, organizada sob suas diretrizes específicas que
respondiam às necessidades daquele momento histórico, garantiram a sua expansão pelo
orbis romano, acrescido da cristianização do Império, que, em certa medida acabou
confundindo-a com a própria sociedade romana.
Vale destacar que a fragmentação do mundo romano favoreceu a Igreja, que era
constituída por uma estrutura fragmentada, um somatório (como que uma “federação”) de
igrejas particulares dispersas pelo orbis (conforme exposto acima). A igreja particular, ou
diocese, era a comunidade cristã liderada pelo seu bispo, segundo a tradição, herdeiros da
sucessão apostólica.

4
A união das igrejas particulares era indispensável para a tarefa da Igreja em relação
ao mundo: a organização deste. Desse modo, o cristianismo na forma de Igreja universal e
coesa foi o seu sustentáculo, de modo que os bispos da Antiguidade dominaram o governo
de grandes comunidades. Em face disso, a igreja particular tinha de ser uma imagem da
Igreja universal, assim como estar em comunhão com as demais dioceses, mas, sobretudo
com a de Roma, que, segundo a tradição cristã, detinha a primazia sobre as demais.
Na medida em que a Igreja se expandia, ao se organizar, a sucessão apostólica
adquiriu um significado mais técnico ao tomar uniformidade pela sucessão dos bispos
católicos, o que levou ao convencimento de que estes eram os guardiões “infalíveis” da
pregação apostólica. Em face disso, somente a hierarquia da Igreja, ao se autoproclamar
como sendo auxiliada pelo Espírito Santo, era a depositária dos ensinamentos da
verdadeira fé. Daí, a indispensabilidade posta aos cristãos de se unirem àqueles que não se
separaram da sucessão original. O bispo garantia à igreja particular o seu caráter de
apostolicidade e a sua relação com a totalidade da Igreja. O que explica no Ocidente a
consolidação do respeito comum pela sede de Roma como a primaz, e da sucessão petrina
nessa cidade (TREVIJANO, 2002).
No entanto, essa questão das igrejas locais estarem em unidade formando uma
Igreja universal, foi palco de uma longa polêmica em solo africano. Uma parte dos
cristãos nesta província romana (entre os séculos IV e V) optaram por não se vincular à
Igreja, constituindo uma facção denominada “donatismo”, que se considerava como a
autêntica herdeira da Igreja da África, fundada pelos seus mártires (POSE, 2002), e por
isso, estarem dispensados de uma ligação direta com a sé romana. A rigor, foi um cisma
tipicamente africano-ocidental, mas isto demandou uma resposta daqueles que ainda
ficariam unidos a uma Igreja universal.

Los orígenes de ese complejo fenómeno religioso y madre de todas las


divisiones que fue el Donatismo responden a causas múltiples, próximas
y remotas. Por un lado, el contexto geopolítico e una historia a la vez
etnográfica, social, económica cultural y política, cuyo término clave es
romanización. […] Cumple añadir, por otro lado, y, dada su importancia,
desde luego también anteponer, el factor religioso, sobre todo en sus
dimensiones teológica y eclesiástica. El Donatismo es un cisma
occidental […] (LANGA, 1988, p. 5).

5
Após Agostinho voltar para sua terra natal, e como cristão convertido, em pouco
tempo tornou-se clérigo, o que lhe inseriu nos debates sobre a natureza da Igreja que estava
acontecendo na África.

Não é de admirar, portanto, que a África, que sempre fora a pátria de


visões bem articuladas e extremistas da natureza da Igreja como grupo na
sociedade, viesse mais uma vez, na época de Agostinho, a se tornar o
“campo de batalha da Europa” nesse último grande debate, cujo desfecho
determinaria a forma assumida pela dominação católica do mundo latino
até a Reforma (BROWN, 2005, p. 265).

No corpus antidonatista de Santo Agostinho – mesmo que com a evidente marca


africana cristã donde a Igreja deveria ser um grupo distinto – a imagem eclesiológica que
ele construiu e defendeu foi aquela apreendida em Roma e Milão, de uma Igreja em
expansão, um corpo “internacional”, para além da África, e inclusive do próprio mundo
romano, isto é, não mais uma Igreja para desafiar a sociedade (como queriam os
donatistas) mas sim pronta para dominá-la (BROWN, 2005).
Abalizado pela estrutura e domínio da Igreja, o clero, ao assumir a condução dos
homens, afiançou para si, respaldado pela sucessão apostólica, a qualidade de grupo de
homens escolhidos e instituídos de poderes pela própria divindade. De tal modo, ao se
proclamar como representante de Deus no mundo, o clero alcançou legitimidade na
sociedade cristã, sobretudo ao deter o monopólio da relação entre Deus e a humanidade.
Na necessidade de legitimar essa organização hierárquica, geopolítica e teológica
da universalidade da Igreja – enfim, para que se pudessem sustentar essas relações de
poder –, a eclesiologia de Santo Agostinho apontou para a Igreja como sendo “Universal”.8

Pero juntamente aparece la Iglesia, non tan sólo en Africa, como éstos
deliran en su impudente vanidad, sino difundida por todo el orbe
terráqueo (Agustín, Carta 185,1,3).

... los testimonios de las Escrituras con unánime voz proclaman a la


Iglesia, difundida por el orbe terráqueo, y con ella no comulga la secta de
Donato (Agustín, Carta 185,1,5).

8
Essa questão aparece diversas vezes nos tratados do seu corpus antidonatista, por exemplo: Salmo contra la
secta de Donato, vv. 229-230. 276-278; A los fieles de la Iglesia de Cesarea, 6; Réplica a las cartas de
Petiliano, II, 38, 91; Réplica al gramático Cresconio, donatista, I, 33, 39; entre outros. Ou mesmo em outros
pontos desta mesma Carta (185,3,14;11,50).

6
Pues del mismo modo la madre Católica tuvo esos hijos que ahora la
combaten; del gran árbol que extiende sus ramas y se difunde por toda la
tierra se desgajó en Africa este leño; pero sigue dándolos a la luz cual no
pueden tener vida verdadera. Pierde algunos, pero recoge a muchos otros
(Agustín, Carta 185,8,32).

A Igreja católica, para Agostinho, havia se tornado uma instituição diferenciada,


isto é, mesmo que seus adeptos seguissem uma vida contrária àquilo que defendia o
cristianismo, sua universalidade lhe proporcionava legitimidade, era o local único e
específico de felicidade terrena. Esta posição marcou sua ação como bispo, visto que se
mostrou impaciente e desagradável a grupos cristãos fechados, indiferentes à Igreja
católica (BROWN, 1999). Para Agostinho a Igreja Católica era a instituição que
representava a maioria, daí divisões que colocassem em xeque essa ordem, como o caso
Donatista (um tipo de cristianismo local), deveriam ser excluídos da sociedade, mesmo que
para isso fosse necessário o uso do Estado.

A Igreja e o poder temporal

Os séculos IV e V marcam no ocidente uma relação de conciliação de poderes entre


Igreja e Estado romano, o que de fato, entre os anos 325 a 451, pode-se identificar o
processo de consolidação de uma instituição religiosa oficializada: a Igreja Católica. Essa
simbiose ficou mais evidente no mundo latino, onde, após Constantino, ficou evidente uma
nova organização eclesiástica, em que o poder espiritual aos poucos foi se entrecruzando à
legislação romana. Nessa conjuntura o que se viu foram os líderes cristãos (Silvério, Ósio,
Atanásio, e mesmo Donato) solicitando as intervenções imperiais, sobretudo em momentos
de crises de ordem eclesiológica, como foi o caso africano em tela. Nisto, a eficácia do
braço secular nos problemas resolvidos por Agostinho contra os donatistas pode ser
apontado como imprescindível (HAMMAN, 2007).

Los que desconocen sus costumbres creen que han comenzado a


suicidarse ahora, cuando tantos pueblos se libran de su fanática
dominación, por esas leyes que se han promulgado a favor de la unidad
de la Iglesia (Agustín, Carta 185,3,12).

7
Grande misericordia se tiene con ellos cuando, mediante las leyes
imperiales, se les aparta a la fuerza de esa secta, en la que aprendieron
tales barbaridades, doctrina de los mentirosos demonios, para que luego
en la Católica se curen habitándose a los buenos preceptos y costumbres
(Agustín, Carta 185,3,13).

Nesse período, tanto Igreja como Império haviam assumidos contornos próprios. O
Estado romano estava mais presente no seu vasto território, levando imperadores a se
envolverem mais efetivamente em problemas regionais. O Império, a partir de Constantino,
legou à Igreja riqueza e paz temporal, por extensão, uma forte posição local. Os bispos, por
exemplo, foram isentados do pagamento de impostos: o clero era uma espécie de “ordo em
miniatura” (BROWN, 1999, p. 57).
O papel do bispo em Hipona exigia muita expectativa por parte do povo, um
“fardo” devido a uma rotina fatigante, como Agostinho mesmo escreveu em outra de suas
cartas (Ep. 85). Entre os efeitos de sua ação, está o fato de Hipona “caminhar” para aquela
crença em um cristianismo universal, sobretudo após os debates contra os seus adversários
donatistas.
E isto não ocorreu de forma tranqüila, posto que a grande divergência nessa facção
cristã africana, não estava tanto em problemas doutrinas, mas sim no múnus episcopal,
como “cargo” idealizado, posto que um líder religioso deveria ter uma conduta impecável,
em termos ético-religioso (cf. Agustín, Carta 185,1,1-5), nisto consistia esse problema
africana cristão:

... Agostinho ficou exposto ao se tornar padre e, depois disso, bispo da


Igreja africana. O modo como se adaptou não só esclarece vividamente
seu caráter, como ajuda a compreender a animosidade pessoal por trás de
suas concepções sobre a natureza da Igreja católica e de seus problemas
na África. Como sempre, em se tratando de Agostinho, essas idéias não
teriam sido tão cuidadosamente consideradas nem tão veementemente
mantidas se não fossem, em parte, fruto de um esforço constante de
abraçar e resolver tensões de que ele tinha aguda consciência em si
mesmo (BROWN, 2005, p. 252).

Ciente de seu papel, não mediu esforços, junto a seus pares católicos, para a
aniquilação dessa facção, inclusive por intermédio de medidas policiais, civis.

8
Llegaron al Africa las leyes. Aquellos que estaban buscando la ocasión, o
habían temido la crueldad de los furiosos, u ofender a los suyos, entraron
al instante en la Iglesia. Muchos estaban en la herejía por la sola
costumbre heredada de sus padres, y nunca habían pensado en la cusa de
una tal herejía ni habían querido informarse o reflexionar (Carta
185,7,29).

A questão girava em torno do seguinte problema: os cristãos africanos estavam


divididos quanto a idealização da santidade da Igreja em relação a quem dela participava.
A rigor, para os donatistas, da Igreja não podiam participar quem não tivesse um
comportamento impecável; para os católicos isso já não era necessário (pelo menos na
prática). A gravidade do caso potencializou-se na medida em que as duas igrejas (católica e
donatista) haviam tido um fundamental papel na desconstrução do paganismo na África
romana, daí porque ambas lutavam para veracidade de sua instituição.
Nesse processo, Agostinho representou a postura de um cristianismo compatível
com a realidade de seu tempo, ou seja, de uma Igreja capaz de absorver o mundo.

Considerações finais

Em suma, a presente argumentação, parte da hipótese de que, ao tempo em que


Santo Agostinho relata as transformações por que passava a sociedade romana, concebeu
novos valores eclesiásticos, o que lhe conferiu o papel de doutor do cristianismo; logo,
apontou o encaminhamento para a organização de uma sociedade cristã. Mas isto somente
era possível por meio de um novo espaço ideal, a saber, a “Igreja Católica”. Motivo de ter
exortado que o afastamento desse magistério, teria como resultado o homem negado,
inapto à cristandade que se construía, isto é, não seria “perfeitamente” religioso, portanto,
não qualificado à santificação: extra Ecclesiam nulla sallus.
Nessa conjuntura o emergir do pensamento agostiniano configurou-se em uma nova
proposta ao elaborar o seu conceito de universalidade da Igreja, tão caro ao cristianismo no
mundo antigo, sobretudo, no momento em que essa religião assumiu o controle dos homens no
ocaso do Império Romano.
Pode-se inferir que a “ideologia” proposta por Santo Agostinho representa aquilo que
Antonio Gramsci chamou de “ideologia historicamente orgânica”, a rigor, uma ideologia vista
como necessária a uma dada estrutura – isto é, não como algo desejado –, portanto respaldada

9
por uma validade psicológica enquanto organizadora das massas humanas, isto é, a
argumentação agostiniana pôde alentar os homens em suas incertezas, tal como aconteceu na
transição da Antiguidade à Idade Média, e mesmo que para isso fosse necessário o uso do
poder temporal para assuntos religiosos.

REFERÊNCIAS:

AGOSTINO, Santo, vescovo d’Ippona. Le Ritrattazioni. Disponível em


<http://www.augustinus.it/italiano/ritrattazioni/index.htm> Acesso em: 22 out. 2010.

AGUSTÍN, San, Obispo de Hipona. Carta 185. In: _____. Cartas. Vol. 2. Madrid: B.A.C.,
1987. (BAC Normal, 99; Obras completas, XIa).

_____. Tratado sobre el bautismo. In: _____. Escritos antidonatistas. Vol. 1. Madrid:
1988. (BAC Normal, 498/ Obras completas, XXXII).

ALTANER, Berthold. Patrología. Madrid: Espasa-Calpe, 1962.

BENTO XVI [Joseph Ratzinger]. Palavras do Papa Bento XVI no Brasil. São Paulo:
Paulinas, 2007.

BROWN, Peter. A ascensão do cristianismo no ocidente. Lisboa: Editorial Presença, 1999.

_____. Santo Agostinho: uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 2005.

DI BERARDINO, Angelo. Clero. In: _____. (org.). Dicionário Patrístico e de


Antiguidades Cristãs. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. 306-308.

HAMMAN, A.-G. Os Padres da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1990. (Patrologia, 3).

LANGA, Pedro. Introduccion gerenal. In: AGUSTÍN, San, Obispo de Hipona. Escritos
antidonatistas. Vol. 1. Madrid: 1988. (BAC Normal, 498/ Obras completas, XXXII), p. 3-
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POSE, E. Romero. Donatismo. In: DI BERARDINO, Angelo (org.). Dicionário Patrístico


e de Antiguidades Cristãs. 1ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. 426-431.

QUASTEN, Johannes. Patrología. Vol. I: Hasta el Concilio de Nicea. Madrid: B.A.C.,


2004, (BAC Normal, 206).

10
TRAPÈ, Agostino. San Agustín. In: DI BERARDINO, Angelo (dir.). Patrología: La edad
de oro de la literatura patrística latina. Madrid: B.A.C., 2007. Vol. III (BAC Normal, 422),
p. 405-553.

TREVIJANO, Ramón. Sucessão (Apostólica). In: DI BERARDINO, Angelo (org.).


Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs. 1ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p.
1315-1316.

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