De Corretione Donatistarum Liber Unus: Igreja: Universal E Poder Temporal Na Carta 185 de Santo Agostinho
De Corretione Donatistarum Liber Unus: Igreja: Universal E Poder Temporal Na Carta 185 de Santo Agostinho
De Corretione Donatistarum Liber Unus: Igreja: Universal E Poder Temporal Na Carta 185 de Santo Agostinho
Introdução
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DHI/UEPR-Paranavai.
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Isto porque o cristianismo não se “espalhou” somente nesta região, mas também pelo noroeste europeu e
Ásia (BROWN, 1999).
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Antes de sua efetiva conversão ao cristianismo, Santo Agostinho foi professor de retórica em sua cidade natal,
Tagaste (na província romana da Numídia, África) e com sua ascensão profissional lecionou em cidades mais
significativas do Império: Cartago, Roma e, por fim, Milão, em 384, onde assumiu a Cátedra Municipal de Retor.
Em sua formação sentiu-se atraído pela filosofia após a leitura de Cícero. Posteriormente, deixou-se envolver pelo
maniqueísmo, e mais tarde, pelo neoplatonismo. Sua conversão ocorreu em Milão, após seus contatos e amizade –
motivados por disputas retóricas – com o bispo da cidade, Ambrósio (333?-397), cuja eloqüência evangelizadora o
conquistara. Com isso, sua ação no cristianismo, sustentada em sua notoriedade intelectual, o levou à sua sagração
como bispo de Hipona, em 395. Além de sua autobiografia, as Confissões, vale a pena conferir a Vida de Santo
Agostinho (Vita Augustini) que traz o relato de sua vida na versão de Possídio – que foi seu aluno. Para uma
biografia mais detalha ver: Peter Brown, Santo Agostinho: uma biografia, Rio de Janeiro: Record, 2005.
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dos mais importantes Padres da Igreja4 na Antiguidade, o que possibilitou, de sua parte,
uma ação idealizadora de justificação desta instituição junto aos homens de sua época. A
importância e vigor do seu legado intelectual cruzaram o limiar de seu tempo, invadindo o
medievo para constituir-se como seu mentor espiritual e fundamento de sua cultura
(HAMMAN, 1990).
Além disso, é adequado considerar que a influência de Santo Agostinho avançou as
centúrias, pois continuou presente na história do cristianismo, principalmente por ainda
marcar presença no magistério da Igreja, por extensão, na sociedade – o catolicismo, hoje,
conta com aproximadamente 1 bilhão de fiéis espalhados por todo o planeta –, a exemplo
de princípios morais, conforme explícito nas questões eclesiológicas defendidas pelo atual
Papa, Bento XVI (2007, p. 48): “Mas tende confiança: a Igreja é santa e incorruptível.
Dizia Santo Agostinho: ‘Vacilará a Igreja se vacila o seu fundamento, mas poderá talvez
Cristo vacilar? Visto que Cristo não vacila, a Igreja permanecerá intacta até o fim dos
tempos’ (En. in Psal., 103,2,5)”5.
Com o objetivo de investigar aquilo que Agostinho definiu como Igreja “universal”
e a legitimidade do uso do poder temporal para garantir sua supremacia, privilegiou-se no
seu Corpus antidonatista a Carta 185, que foi denominada como De correctione
Donatistarum liber unus [Livro sobre a correção dos Donatistas] escrita em 417 e cujo
destinatário era o Conde Bonifácio, o responsável para aplicar as leis imperiais na África
romana.
O foco central da carta estava em apresentar ao Conde um tipo de manual de
correções para serem aplicadas na dita facção donatista (cisma cristão africano).
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O termo “Padre” era um título atribuído aos mestres que iniciavam e educavam um discípulo em filosofia
ou religião, até mesmo antes da era cristã, e que, com o desenvolvimento da hierarquia eclesiástica acabou
por ser aplicado aos bispos ou sacerdotes, superiores monásticos e leigos intelectuais; a partir daí, por Padres
da Igreja entendem-se escritores eclesiásticos da Antiguidade cristã que foram tidos pelo cristianismo como
as testemunhas “autorizadas” da fé, cuja particularidade se dava em sua ortodoxia, santidade de vida e
aprovação da Igreja e antigüidade (QUASTEN, 2004).
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Discurso feito em sua viagem ao Brasil, proferido no dia 11 de maio de 2007 aos bispos presentes na
Catedral da Sé (São Paulo).
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Vale destacar que, na longa controvérsia contra os donatistas, o bispo de Hipona
produziu uma rica atividade literária6 que, polêmica, constituiu-se em uma teologia da
Igreja (TRAPÈ, 2007). Segundo Pedro Langa (1988) o método da argumentação
agostiniana nesta disputa pode ser identificado em quatro orientações: (1) Sagrada
Escritura – argumentos tirados dos textos tidos como sagrados pelos cristãos; (2) tradição
eclesiástica – argumento para justificar a antiguidade e universalidade da Igreja; (3)
História – argumento tirado das fontes (documentos históricos, dossiês judiciais e atas
sinodais); e (4) Dialética – argumento instrumental para a refutação dos “erros” de seus
adversários.
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A característica fundamental de sua escrita estava em seu método ser produto da retórica, arte da qual foi mestre
por mais de dez anos como professor em ambientes “pagãos” e que, sem dúvida, também esteve presente quando
se lançou na construção de uma cultura cristã. “No sólo poseía Agustín plenamente la cultura literaria propria de
los hombres cultos de su tiempo, sino que además dominaba magistralmente la palabra y la pluma, y de un modo
absoluto los resortes de la retórica, como la antítesis, la metáfora, los juegos de palabras y de ideas” (ALTANER,
1962, p. 403). Sua obra assumiu proporção quantitativa e qualitativa, composta de diálogos, comentários, epístolas,
sermões e tratados (TRAPÈ, 2007).
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Desde o princípio do século III se fazia uso da terminologia clerus, para distinguir os cristãos que – após
uma ordenação – detinham um ministério de direção na Igreja. Dessa forma, o clero se diferenciava do
laicato (laicus) por obter uma função sacra a serviço da comunidade. Em síntese o termo clero, de “(clerus,
κληρος) no grego clássico e nos Setenta significa sorte, sorteio, o pedaço de terra concedido por sorte e,
depois, herança. [...] Já no séc. IV o [clero] se subdistingue em duas categorias: clerici inferioris ordinis e os
primi clerici ou superioris ordinis (bispos, presbíteros e diáconos)” (DI BERARDINO, 2002, p. 306-307)
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da Antiguidade para a Idade Média. Nesse ambiente propício, os líderes do cristianismo
assumiram a condução da nova ordem social, o que os levou a defender uma Igreja única,
universal, e “oficial” do Estado; dentre estes, Santo Agostinho foi um de seus principais
teóricos.
Condições históricas específicas resultaram no domínio temporal e espiritual da
Igreja: na medida em que o Ocidente europeu se transformava em uma sociedade agrária e
fragmentada, os centros urbanos perderam sua função de núcleo da cultura e da formação
do homem. Todavia, essa fragmentação do mundo romano era compatível com a estrutura
fragmentada da Igreja. Daí as bases para que essa Igreja hierarquizada e altamente
organizada sobressaísse ao Estado romano naquele momento de transformação da
sociedade, o que lhe permitiu participar de assuntos seculares e promovendo a cultura
cristã; a partir disso, construiu-se sua legitimação teológica-eclesiástica como instituição
universal de organização religiosa, assumida pelo Estado romano a partir do século IV, e
definida como Ecclesia Catholica: “Hay una sola Iglesia, la única llamada Católica”
(Agustín, Tratado sobre el Bautismo, I, 10, 14).
Com a ascensão da Igreja no mundo romano, esta não limitou seu papel ao campo
espiritual, mas, como nova condutora do orbis – pelo menos na parte ocidental – não pôde
se ausentar das questões civis, de tal modo que sua política de moralização da vida pública
contribuiu para a consolidação da vida servil.
A justificativa para essa nova orientação foi encontrada na sua essência tida como
sobrenatural e universal, para além da história, portanto superior ao Estado romano. A sua
condição de sociedade autônoma, organizada sob suas diretrizes específicas que
respondiam às necessidades daquele momento histórico, garantiram a sua expansão pelo
orbis romano, acrescido da cristianização do Império, que, em certa medida acabou
confundindo-a com a própria sociedade romana.
Vale destacar que a fragmentação do mundo romano favoreceu a Igreja, que era
constituída por uma estrutura fragmentada, um somatório (como que uma “federação”) de
igrejas particulares dispersas pelo orbis (conforme exposto acima). A igreja particular, ou
diocese, era a comunidade cristã liderada pelo seu bispo, segundo a tradição, herdeiros da
sucessão apostólica.
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A união das igrejas particulares era indispensável para a tarefa da Igreja em relação
ao mundo: a organização deste. Desse modo, o cristianismo na forma de Igreja universal e
coesa foi o seu sustentáculo, de modo que os bispos da Antiguidade dominaram o governo
de grandes comunidades. Em face disso, a igreja particular tinha de ser uma imagem da
Igreja universal, assim como estar em comunhão com as demais dioceses, mas, sobretudo
com a de Roma, que, segundo a tradição cristã, detinha a primazia sobre as demais.
Na medida em que a Igreja se expandia, ao se organizar, a sucessão apostólica
adquiriu um significado mais técnico ao tomar uniformidade pela sucessão dos bispos
católicos, o que levou ao convencimento de que estes eram os guardiões “infalíveis” da
pregação apostólica. Em face disso, somente a hierarquia da Igreja, ao se autoproclamar
como sendo auxiliada pelo Espírito Santo, era a depositária dos ensinamentos da
verdadeira fé. Daí, a indispensabilidade posta aos cristãos de se unirem àqueles que não se
separaram da sucessão original. O bispo garantia à igreja particular o seu caráter de
apostolicidade e a sua relação com a totalidade da Igreja. O que explica no Ocidente a
consolidação do respeito comum pela sede de Roma como a primaz, e da sucessão petrina
nessa cidade (TREVIJANO, 2002).
No entanto, essa questão das igrejas locais estarem em unidade formando uma
Igreja universal, foi palco de uma longa polêmica em solo africano. Uma parte dos
cristãos nesta província romana (entre os séculos IV e V) optaram por não se vincular à
Igreja, constituindo uma facção denominada “donatismo”, que se considerava como a
autêntica herdeira da Igreja da África, fundada pelos seus mártires (POSE, 2002), e por
isso, estarem dispensados de uma ligação direta com a sé romana. A rigor, foi um cisma
tipicamente africano-ocidental, mas isto demandou uma resposta daqueles que ainda
ficariam unidos a uma Igreja universal.
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Após Agostinho voltar para sua terra natal, e como cristão convertido, em pouco
tempo tornou-se clérigo, o que lhe inseriu nos debates sobre a natureza da Igreja que estava
acontecendo na África.
Pero juntamente aparece la Iglesia, non tan sólo en Africa, como éstos
deliran en su impudente vanidad, sino difundida por todo el orbe
terráqueo (Agustín, Carta 185,1,3).
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Essa questão aparece diversas vezes nos tratados do seu corpus antidonatista, por exemplo: Salmo contra la
secta de Donato, vv. 229-230. 276-278; A los fieles de la Iglesia de Cesarea, 6; Réplica a las cartas de
Petiliano, II, 38, 91; Réplica al gramático Cresconio, donatista, I, 33, 39; entre outros. Ou mesmo em outros
pontos desta mesma Carta (185,3,14;11,50).
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Pues del mismo modo la madre Católica tuvo esos hijos que ahora la
combaten; del gran árbol que extiende sus ramas y se difunde por toda la
tierra se desgajó en Africa este leño; pero sigue dándolos a la luz cual no
pueden tener vida verdadera. Pierde algunos, pero recoge a muchos otros
(Agustín, Carta 185,8,32).
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Grande misericordia se tiene con ellos cuando, mediante las leyes
imperiales, se les aparta a la fuerza de esa secta, en la que aprendieron
tales barbaridades, doctrina de los mentirosos demonios, para que luego
en la Católica se curen habitándose a los buenos preceptos y costumbres
(Agustín, Carta 185,3,13).
Nesse período, tanto Igreja como Império haviam assumidos contornos próprios. O
Estado romano estava mais presente no seu vasto território, levando imperadores a se
envolverem mais efetivamente em problemas regionais. O Império, a partir de Constantino,
legou à Igreja riqueza e paz temporal, por extensão, uma forte posição local. Os bispos, por
exemplo, foram isentados do pagamento de impostos: o clero era uma espécie de “ordo em
miniatura” (BROWN, 1999, p. 57).
O papel do bispo em Hipona exigia muita expectativa por parte do povo, um
“fardo” devido a uma rotina fatigante, como Agostinho mesmo escreveu em outra de suas
cartas (Ep. 85). Entre os efeitos de sua ação, está o fato de Hipona “caminhar” para aquela
crença em um cristianismo universal, sobretudo após os debates contra os seus adversários
donatistas.
E isto não ocorreu de forma tranqüila, posto que a grande divergência nessa facção
cristã africana, não estava tanto em problemas doutrinas, mas sim no múnus episcopal,
como “cargo” idealizado, posto que um líder religioso deveria ter uma conduta impecável,
em termos ético-religioso (cf. Agustín, Carta 185,1,1-5), nisto consistia esse problema
africana cristão:
Ciente de seu papel, não mediu esforços, junto a seus pares católicos, para a
aniquilação dessa facção, inclusive por intermédio de medidas policiais, civis.
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Llegaron al Africa las leyes. Aquellos que estaban buscando la ocasión, o
habían temido la crueldad de los furiosos, u ofender a los suyos, entraron
al instante en la Iglesia. Muchos estaban en la herejía por la sola
costumbre heredada de sus padres, y nunca habían pensado en la cusa de
una tal herejía ni habían querido informarse o reflexionar (Carta
185,7,29).
Considerações finais
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por uma validade psicológica enquanto organizadora das massas humanas, isto é, a
argumentação agostiniana pôde alentar os homens em suas incertezas, tal como aconteceu na
transição da Antiguidade à Idade Média, e mesmo que para isso fosse necessário o uso do
poder temporal para assuntos religiosos.
REFERÊNCIAS:
AGUSTÍN, San, Obispo de Hipona. Carta 185. In: _____. Cartas. Vol. 2. Madrid: B.A.C.,
1987. (BAC Normal, 99; Obras completas, XIa).
_____. Tratado sobre el bautismo. In: _____. Escritos antidonatistas. Vol. 1. Madrid:
1988. (BAC Normal, 498/ Obras completas, XXXII).
BENTO XVI [Joseph Ratzinger]. Palavras do Papa Bento XVI no Brasil. São Paulo:
Paulinas, 2007.
HAMMAN, A.-G. Os Padres da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1990. (Patrologia, 3).
LANGA, Pedro. Introduccion gerenal. In: AGUSTÍN, San, Obispo de Hipona. Escritos
antidonatistas. Vol. 1. Madrid: 1988. (BAC Normal, 498/ Obras completas, XXXII), p. 3-
155.
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TRAPÈ, Agostino. San Agustín. In: DI BERARDINO, Angelo (dir.). Patrología: La edad
de oro de la literatura patrística latina. Madrid: B.A.C., 2007. Vol. III (BAC Normal, 422),
p. 405-553.
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