Tempo Do Desprezo - Saga Do Bruxo Geralt de Rívia - Vol 4
Tempo Do Desprezo - Saga Do Bruxo Geralt de Rívia - Vol 4
Tempo Do Desprezo - Saga Do Bruxo Geralt de Rívia - Vol 4
Sobre a obra:
A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o
objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como
o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.
Sobre nós:
O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade
intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem
ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso
site: LeLivros.link ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link.
"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por
dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
TEMPO DO DESPREZO
Andrzej Sapkowski
Tradução do polonês
TOMASZ BARCINSKI
ÍNDICE
Capítulo primeiro
Capítulo segundo
Capítulo terceiro
Capítulo quarto
Capítulo quinto
Capítulo sexto
Capítulo sétimo
Sangue em suas mãos,
Falka, e sangue em suas vestes.
Arda, arda por seus erros, Falka,
e padeça horrível morte!
Canção entoada pelas crianças durante a queima das bonecas de
Falka na véspera de Saovine
CAPÍTULO PRIMEIRO
Para poder ganhar a vida como mensageiro montado, dizia Aplegatt aos novatos, são
necessárias duas coisas: uma cabeça de ouro e um traseiro de ferro.
A cabeça de ouro é indispensável, ensinava Aplegatt, porque na bolsa de couro achatada,
cruzada no peito desnudo debaixo da camisa, o estafeta leva apenas notícias de importância
secundária, que, sem temor algum, podem ser confiadas ao traiçoeiro papel ou pergaminho. Já
quando se trata de notícias verdadeiramente importantes, de informações secretas das quais
dependem muitas questões, o estafeta deve guardá-las na memória e repeti-las ao destinatário,
palavra por palavra – em geral, palavras complicadas, difíceis de pronunciar, ainda mais de
lembrar. Para decorá-las e não cometer engano algum ao repeti-las, ele realmente precisa de
uma cabeça de ouro.
E quanto à utilidade de um traseiro de ferro… bem, isso qualquer estafeta descobrirá por
si mesmo em pouco tempo, ao ter de passar na sela três dias e três noites, cavalgando cem ou
até duzentas milhas por estradas e às vezes, se necessário, por trilhas silvestres… É verdade
que ele não fica na sela o tempo todo; volta e meia desmonta e descansa. Afinal, um homem
consegue aguentar muito; o cavalo, nem tanto. Depois do descanso, porém, quando o estafeta
tenta montar de novo, o traseiro pode gritar: “Socorro, estão me matando!”
– Mas quem necessita de um estafeta nos dias de hoje, senhor Aplegatt? – perguntavam
alguns jovens. – De Vengerberg a Wyzim, por exemplo, ninguém conseguirá chegar em menos
de quatro ou cinco dias, mesmo montado no mais veloz dos ginetes. E de quanto tempo precisa
o feiticeiro de Vengerberg para enviar uma mensagem mágica ao feiticeiro de Wyzim? Uma
hora e meia, talvez nem isso. É possível que o cavalo do estafeta comece a mancar. Ele
próprio pode ser morto por assaltantes ou Esquilos ou ainda ser devorado por lobos ou grifos.
Há um estafeta e… puf!… não há mais. Já uma mensagem encantada nunca se atrasará nem se
perderá; sempre chegará a seu destino. Para que servem os estafetas, se há feiticeiros por toda
parte, em todas as cortes reais? Os estafetas não têm mais utilidade, senhor Aplegatt.
Por certo tempo, Aplegatt também achou que não era mais necessário a ninguém. Estava
com trinta e seis anos, era baixo, mas forte e de constituição bem desenvolvida, não temia
trabalho algum e, como era de esperar, tinha uma cabeça de ouro. Poderia ter abraçado outra
ocupação para sustentar a si e sua esposa, fazer algumas economias para o dote das duas filhas
solteiras e ajudar a outra, que, embora casada, tinha um marido palerma que não conseguia
sair-se bem nos negócios. No entanto, Aplegatt não queria – nem podia imaginar – outro
trabalho. Era um mensageiro montado real.
E eis que, após um longo período de esquecimento e de humilhante ociosidade, Aplegatt
viu-se repentinamente útil de novo. As estradas e os caminhos abertos nas florestas tornaram a
ecoar o som de ferraduras batendo no solo. Os estafetas voltaram a atravessar o país, como
outrora, levando notícias de uma cidade a outra.
Aplegatt sabia a razão daquilo. Vira muito e ouvira ainda mais. Esperava-se que ele
apagasse da memória uma mensagem assim que a transmitisse para que não pudesse revelá-la
sob as mais severas torturas. Mas Aplegatt se recordava. E sabia por que os reis pararam de
repente de se comunicar por meio de feiticeiros e magia. As informações levadas pelos
estafetas não deviam ser do conhecimento dos feiticeiros. De uma hora para outra, os reis
deixaram de confiar neles e de lhes confidenciar seus segredos.
A causa do repentino esfriamento da amizade entre os reis e os feiticeiros era algo que
Aplegatt não sabia, tampouco lhe interessava. Para ele, tanto os reis como os feiticeiros eram
seres incompreensíveis, e seus atos, indecifráveis, principalmente nos tempos difíceis. E,
passando de cidade em cidade, de castelo em castelo, de reino em reino, era inevitável não
notar o fato de que tempos difíceis haviam chegado.
Tropas marchavam pelas estradas. A cada passo era possível defrontar-se com colunas de
infantaria ou cavalaria, e cada comandante encontrado aparentava estar nervoso, tenso,
presunçoso, sentindo-se tão importante como se o destino do mundo todo dependesse apenas
dele. Da mesma forma, as cidades e os castelos viviam cheios de gente armada, dia e noite,
em incessante e febril correria. Os normalmente invisíveis burgraves e castelões corriam
agora sobre os muros e pátios, furiosos como marimbondos antes de uma tempestade,
vociferando, xingando, dando ordens e distribuindo pontapés. As fortalezas e praças fortes
recebiam, dia e noite, carroças carregadas, as quais cruzavam com outras que, vazias,
retornavam com rapidez. Por toda parte, nuvens de poeira cercavam cavalhadas de potros
recém-saídos dos estábulos. Não acostumados a arreios nem a pesados cavaleiros de
armadura, os cavalinhos aproveitavam os últimos momentos de liberdade, dando muito
trabalho a seus condutores e criando problemas aos demais usuários das estradas.
Em poucas palavras: na abrasante e imóvel atmosfera sentia-se o opressivo clima de
guerra.
Aplegatt ergueu-se nos estribos e olhou em volta. Mais abaixo, aos pés da colina, brilhava
a superfície de um rio em tortuosos meandros por entre prados e grupos de árvores. Do outro
lado do curso d’água, mais ao sul, estendiam-se florestas. O estafeta esporeou o cavalo. O
tempo urgia.
Estava viajando havia quase dois dias. O despacho real e as cartas alcançaram-no em
Hagge, onde descansava após o retorno de Tretogor. Saíra da fortaleza durante a noite,
galopando ao longo da margem do Pontar, atravessara a fronteira com Temeria antes do raiar
do sol e agora, na metade do dia seguinte, já estava às margens do rio Ismena. Se o rei Foltest
tivesse estado em Wyzim, Aplegatt lhe teria entregado a mensagem naquela noite. Infelizmente,
o rei não pernoitara na capital; estava no sul, em Maribor, a quase duzentas milhas de
distância de Wyzim. Ciente disso, Aplegatt abandonou a estrada que conduzia para o oeste na
altura da Ponte Branca e seguiu pelas florestas, na direção de Ellander. Não deixava de ser
arriscado, já que nas florestas grassavam os Esquilos, e ai daquele que caísse em suas mãos
ou se pusesse ao alcance de suas flechas. No entanto, um estafeta real tinha de correr riscos.
Era nisso que consistia seu trabalho.
Aplegatt atravessou o rio sem dificuldades; não chovia desde junho e o nível de água do
Ismena baixara consideravelmente. Mantendo-se à beira da floresta, chegou à estrada que ia
de Wyzim para o sudeste, rumo às choupanas, ferrarias e assentamentos dos anões no Maciço
de Mahakam. Pela estrada seguiam carroças escoltadas, em geral, por pequenos
destacamentos de cavalaria. Aplegatt suspirou aliviado. Onde havia gente, não havia
Scoia’tael. Em Temeria, a campanha militar de homens contra elfos durava mais de um ano, e
os comandos de Esquilos, perseguidos nas florestas, dividiram-se em grupos menores, os
quais mantinham uma prudente distância das movimentadas estradas e não preparavam
emboscadas.
Antes do anoitecer, Aplegatt já se encontrava na fronteira ocidental do reino de Ellander,
numa encruzilhada perto do vilarejo de Zavada, de onde partia um caminho reto e seguro até
Maribor, quarenta e duas milhas de uma estrada de terra batida bastante frequentada. Na
encruzilhada havia uma estalagem, e Aplegatt decidiu dar um descanso ao cavalo e a si
mesmo. Sabia que, caso partisse bem cedo no dia seguinte, poderia ver antes do anoitecer as
flâmulas negro-prateadas tremulando nas torres do castelo de Maribor.
Desencilhou pessoalmente sua égua, não deixando o cavalariço ocupar-se da tarefa. Era
um estafeta real, e um estafeta real jamais permite que alguém toque em sua montaria. Comeu
uma porção de ovos mexidos com salsicha e uma grande fatia de pão de centeio,
acompanhando a refeição com um quartilho de cerveja.
Na estalagem paravam viajantes trazendo notícias de todas as partes do mundo. Dessa
maneira, Aplegatt soube que haviam ocorrido novos incidentes em Dol Angra; mais uma vez
um destacamento de cavalaria de Lyria entrara em choque com uma patrulha nilfgaardiana, e
Meve, rainha de Lyria, voltara a acusar formalmente Nilfgaard de provocação e pedira ajuda
ao rei Demawend de Aedirn. Tretogor tinha sido palco da execução pública de um barão
redânio que costumava encontrar-se secretamente com emissários de Emhyr, imperador de
Nilfgaard. Em Kaedwen, vários comandos dos Scoia’tael se juntaram numa força considerável
e fizeram um massacre no forte de Leyd. Em resposta ao massacre, a população de Ard
Carraigh promovera um pogrom que resultara no assassinato de quase quatrocentos inumanos
que viviam na capital.
Em Temeria, segundo comerciantes vindos do sul, tristeza e luto se espalharam entre os
emigrantes cintrenses reunidos sob as bandeiras do marechal Vissegerd. Fora confirmada a
terrível notícia da morte da Leoazinha de Cintra, a princesa Cirilla, última descendente do
sangue da rainha Calanthe, chamada de Leoa de Cintra.
Foram relatados ainda vários outros boatos de mau agouro. Dizia-se que, nas redondezas
de Aldesberg, as vacas começaram repentinamente a esguichar sangue das tetas e, no meio da
neblina matinal, surgira a Virgem da Dispersão, num claro prenúncio de terríveis desgraças.
Em Brugge, nas cercanias da floresta de Brokilon, o proibido reino das dríades florestais,
pessoas viram a Perseguição Selvagem, o cortejo de espectros galopando pelos céus, e uma
Perseguição Selvagem, como todos sabiam, sempre prenunciava uma guerra. Já na península
de Bremervoord, fora avistado um navio-fantasma com um espírito maligno num elmo
adornado com asas de ave de rapina no convés…
O estafeta deixou de prestar atenção. Estava cansado e foi para o dormitório comunitário,
onde desabou numa tarimba e adormeceu imediatamente.
Levantou-se ao raiar do sol. Espantou-se ao sair para o pátio: não havia sido o primeiro a
se preparar para partir, algo que ocorria muito raramente. Perto do poço havia um negro
garanhão selado e, a seu lado, debruçada sobre uma gamela, uma mulher em trajes masculinos
lavava as mãos. Ao ouvir os passos de Aplegatt, ela se virou, atirando para trás os bastos
cabelos negros. O estafeta fez uma reverência, e a mulher inclinou levemente a cabeça.
Ao entrar na cocheira, Aplegatt quase esbarrou em outro pássaro madrugador, uma
adolescente com gorro de veludo, que naquele exato momento conduzia para fora uma égua
malhada. A garota esfregava o rosto e bocejava, apoiando-se no flanco da montaria.
– Ai, ai – murmurou, passando pelo estafeta. – Acho que vou adormecer sobre este
cavalo… Estou morta de sono… Uaaa, uaaa…
– O frio vai despertá-la assim que você encilhar a égua – disse Aplegatt polidamente,
tirando sua sela pendurada numa viga. – Faça boa viagem, senhorita.
A jovem virou-se e olhou para ele como se estivesse vendo-o pela primeira vez. Seus
olhos eram enormes e verdes como esmeraldas. Aplegatt atirou o xairel sobre o lombo do
cavalo.
– Desejo-lhe boa viagem – repetiu.
Em geral, ele não era dado a muita conversa, mas agora sentia necessidade de manter uma
conversa com alguém próximo, mesmo que o próximo fosse uma simples fedelha
semiadormecida. Era possível que aquele desejo tivesse sido motivado pelos longos dias de
solidão nas estradas ou talvez a garota lhe lembrasse sua filha do meio.
– Que os deuses as protejam – acrescentou – de qualquer acidente ou dano. Vocês estão
sozinhas e, ainda por cima, são mulheres… Os tempos andam ruins. As estradas e trilhas estão
cheias de perigos.
A jovem abriu ainda mais os olhos verdes. O estafeta sentiu um arrepio lhe percorrer a
espinha.
– O perigo… – falou ela repentinamente, com voz estranha. – O perigo é silencioso. Você
não conseguirá ouvi-lo quando ele vier voando com penas cinzentas. Tive um sonho. Areia…
A areia estava quente sob o sol…
– O que disse? – Aplegatt parou petrificado, com a sela encostada na barriga. – O que
disse, senhorita? Que areia?
A garota foi sacudida por um tremor e esfregou o rosto. A égua malhada agitou a cabeça.
– Ciri! – chamou asperamente a mulher de cabelos negros, ajeitando os arreios e estribos
do negro garanhão. – Apresse-se!
A jovem bocejou, olhou para Aplegatt e piscou, dando a impressão de estar espantada com
sua presença na cocheira. O estafeta permaneceu calado.
– Ciri – repetiu a mulher. – Você voltou a dormir?
– Já vou, dona Yennefer!
Quando Aplegatt por fim encilhou o cavalo e levou-o para o pátio, não havia sinal algum
da mulher e da garota. Um galo cocoricou rouca e prolongadamente, um cachorro latiu e, no
meio das árvores, um cuco cantou. O estafeta pulou sobre a sela. Lembrou-se repentinamente
dos olhos verdes da garota semiadormecida e de suas estranhas palavras. “Perigo silencioso?
Penas cinzentas? Areia quente? A menina não devia estar em seu pleno juízo”, pensou. “É fácil
encontrar muitas jovens perturbadas, maltratadas por marginais nos dias da guerra… Só pode
ser isso, ou talvez ela estivesse apenas grogue de sono e não totalmente acordada. É de
espantar as bobagens que as pessoas são capazes de falar de madrugada, quando estão ainda
naquela área cinzenta entre sonho e realidade…”
Aplegatt sentiu outro arrepio, dessa vez acompanhado por uma dor nas costas. Esfregou as
omoplatas com os punhos.
Assim que se encontrou na estrada, esporeou o cavalo e partiu a pleno galope. O tempo
urgia.
O estafeta não passou muito tempo em Maribor; em menos de um dia, o vento voltou a
soprar em seus ouvidos. O novo cavalo, um garanhão lobuno das cocheiras de Maribor,
corria, estendendo o pescoço e agitando a cauda. Os salgueiros à beira da estrada foram
ficando para trás. O peito de Aplegatt sentia o peso da bolsa com o correio diplomático. O
traseiro ardia.
– Tomara que você caia e quebre o pescoço, seu maluco! – gritou atrás dele um cocheiro,
puxando as rédeas de seus cavalos, assustados com a passagem do garanhão a todo galope. –
Olhem só como ele está com pressa! Parece até que a morte está lambendo seus calcanhares!
Pode correr à vontade, seu desatinado, mas não conseguirá escapar da caveira com foice!
Aplegatt esfregou os olhos lacrimejantes de tanto vento. No dia anterior entregara a
correspondência ao rei Foltest e, depois, recitara a mensagem secreta do rei Demawend:
– Demawend para Foltest. Tudo pronto em Dol Angra. Os disfarçados aguardam ordens.
Data prevista: a segunda noite de julho após a lua nova. Os barcos devem atracar naquela
margem dois dias mais tarde.
Sobre a estrada voavam bandos de gralhas grasnando com força. Iam para o leste, na
direção de Mahakam, Dol Angra e Vengerberg. Aplegatt repetia mentalmente as palavras da
mensagem secreta enviada por seu intermédio do rei de Temeria ao monarca de Aedirn:
“Foltest para Demawend. Primeiro: suspendamos a ação. Os espertalhões convocaram um
congresso. Vão se reunir e discutir na ilha de Thanedd. Esse encontro poderá alterar muita
coisa. Segundo: podem suspender a busca da Leoazinha. Está confirmado que ela está morta.”
Aplegatt cutucou o garanhão com os calcanhares. O tempo urgia.
O estreito caminho pela floresta estava atravancado por carroças. Aplegatt diminuiu o
ritmo e trotou até o último dos veículos da comprida fila. Percebeu de imediato que não
conseguiria atravessar aquele engarrafamento. Dar meia-volta, nem pensar. Seria uma perda
de tempo irrecuperável. Além disso, não lhe agradava a ideia de mergulhar numa floresta
pantanosa, principalmente por estar começando a escurecer.
– O que aconteceu? – indagou aos condutores da última carroça da fila, dois velhinhos, um
deles dormindo e o outro parecendo estar morto. – Um assalto? Esquilos? Falem logo, porque
estou com pressa…
Antes que um dos velhinhos tivesse tempo para responder, ouviram-se gritos vindos da
ponta do engarrafamento. Rapidamente, dezenas de cocheiros saltaram em suas carroças e
açoitaram os cavalos, as mulas e os bois ao som dos mais rebuscados palavrões. A pesada
coluna começou a avançar devagar. O velhinho adormecido acordou, sacudiu a barba, estalou
a língua para as mulas e bateu as rédeas em suas ancas. O velhinho com aparência de morto
ressuscitou, afastou dos olhos o chapéu de palha e virou-se para Aplegatt.
– Olhem só para ele – disse. – Está com pressa. Oh, filhinho, você teve muita sorte.
Chegou aqui na hora exata.
– Sem dúvida. – O segundo velhinho sacudiu a barba e apressou as mulas. – Bem na hora.
Caso tivesse chegado ao meio-dia, teria ficado parado aqui conosco até agora. Nós todos
estamos com pressa, mas tivemos de esperar. Como seguir em frente se a vereda estava
bloqueada?
– A vereda estava bloqueada? Como?
– Um monstro terrível apareceu ali, filhinho. Ele atacou um cavaleiro que viajava com um
pajem pela vereda. Parece que arrancou a cabeça do cavaleiro com o elmo e tudo, além de
extirpar os intestinos de seu cavalo. O pajem conseguiu escapar e contou que aquilo foi
horrível, com o caminho todo vermelho de tanto sangue.
– E que monstro era? – indagou Aplegatt, freando o cavalo para poder continuar a
conversa com os cocheiros da lenta carroça. – Um dragão?
– Não, não era um dragão – respondeu o velhinho de chapéu de palha –, e sim uma
manticora ou algo parecido, segundo dizem. O pajem falou que era uma enorme besta voadora.
E obstinada! Nós achamos que ela comeria o cavaleiro e sairia voando, mas que nada! A filha
da puta sentou-se no meio do caminho e ficou rosnando e arreganhando os dentes… E assim
bloqueou a passagem, como uma rolha numa garrafa, porque qualquer um que se aproximava e
dava de cara com o monstro abandonava a carroça e saía correndo. Com isso, formou-se uma
fila de carroças de quase uma milha de comprimento, tendo em volta, como você pode ver,
filhinho, só mato selvagem e pântanos. E então ficamos parados…
– Tantos homens! – bufou o estafeta. – E ninguém tomou uma atitude! Bastava pegar uns
machados e lanças e afugentar ou mesmo matar a besta.
– Pois alguns até tentaram – retrucou o velhinho de barba, batendo novamente nas mulas,
porque a caravana começou a avançar mais rápido. – Três anões da escolta dos comerciantes
e, com eles, quatro recrutas a caminho da fortaleza de Carreras, onde se juntariam a um
regimento. A besta feriu severamente os anões, enquanto os recrutas…
– … deram no pé – concluiu o outro velhinho, dando uma cusparada certeira no exíguo
espaço entre as ancas das duas mulas. – Deram no pé assim que viram o tal monstro. Dizem
que um deles chegou a se cagar nas calças. Olhe, filhinho, é ele! Logo ali!
– E eu lá tenho tempo para olhar para alguém cagado? – enervou-se Aplegatt. – Não estou
nem um pouco interessado…
– Não é isso! É o monstro! O monstro morto! Os soldados estão colocando-o numa
carroça. Está vendo?
Aplegatt ergueu-se nos estribos. Apesar da escuridão que se aproximava e da multidão de
curiosos diante dele, conseguiu ver um corpanzil cinza-amarelado sendo erguido pelos
soldados. As asas de morcego e a cauda de escorpião do monstro arrastavam-se inertes sobre
o terreno. Soltando um grito uníssono, os soldados ergueram o cadáver ainda mais e
desabaram-no sobre uma carroça, cujos cavalos, claramente agitados pelo odor de sangue,
relincharam e começaram a se deslocar.
– Não fiquem parados! – urrou para os velhinhos o decurião no comando dos soldados. –
Em frente! Não bloqueiem a passagem!
O condutor barbado apressou as mulas, e a carroça saltitou sobre as pedras da vereda.
Aplegatt cutucou o cavalo com os calcanhares e colocou-se ao lado do veículo.
– Pelo jeito, os soldados conseguiram dar cabo do monstro.
– Nada disso – retrucou o velhinho. – Assim que chegaram, os soldados se puseram a
fazer cara de maus e a gritar com as pessoas. Ora “Parem”, ora “Saiam da frente”, ora isso,
ora aquilo. Não pareciam muito dispostos a enfrentar o monstro e decidiram convocar um
bruxo.
– Um bruxo?
– Isso mesmo – confirmou o outro velhinho. – Um dos soldados lembrou ter visto um
bruxo no último vilarejo pelo qual passaram, de modo que foi chamá-lo. Ele passou por nós.
Tinha os cabelos brancos, um rosto horroroso e uma enorme espada presa às costas. Em
menos de uma hora, alguém gritou lá na frente que poderíamos avançar porque o bruxo matara
o monstro. Foi quando finalmente pudemos recomeçar a viagem e você apareceu, filhinho.
– Que coisa… – murmurou Aplegatt, pensativo. – Há anos galopo pelas estradas afora e
até hoje nunca encontrei um bruxo. Alguém viu como ele deu cabo do tal monstro?
– Eu vi! – gritou um garoto de cabeleira rebelde trotando do outro lado da carroça.
Cavalgava em pelo, conduzindo seu lobuno malhado apenas pelo cabresto. – Vi tudo! Porque
estive junto dos soldados, na frente de todos!
– Olhem só para esse fedelho – disse o velhinho que guiava as mulas. – Mal se livrou do
leite materno e já banca o sabichão. Quer levar uma surra?
– Deixe-o falar, homem – intrometeu-se Aplegatt. – Antes de partir para Carreras, gostaria
de saber o que se passou com aquele bruxo. Fale, pequeno.
– Foi assim – começou rapidamente o garoto, cavalgando junto da carroça. – O bruxo
procurou o comandante dos soldados. Disse que se chamava Geralt. O comandante respondeu
que não estava interessado no nome dele e mandou que se ocupasse daquilo, apontando para o
lugar onde o monstro estava sentado. O bruxo aproximou-se e observou. O bicho se
encontrava a meia légua de distância ou até mais, mas o bruxo apenas lhe lançou um olhar de
longe e disse logo que se tratava de uma manticora extremamente grande e que poderia matá-la
se lhe pagassem duzentas coroas.
– Duzentas coroas? – espantou-se o outro velhinho. – Ele endoidou de vez?
– Foi isso que lhe falou o comandante, embora de maneira mais grosseira. O bruxo
respondeu que o preço era aquele e que para ele tanto fazia o monstro ficar lá sentado até o
dia do Juízo Final. O comandante retrucou que não ia pagar tal soma e que preferia esperar o
monstro ir embora por conta própria. Então o bruxo disse que o monstro não ia embora por
conta própria, porque estava furioso e com fome. E, mesmo que fosse embora, voltaria logo
em seguida, porque aquilo era seu tero… tere… teritor…
– Seu fedelho, pare de enrolar! – enfureceu-se o velhinho que conduzia as mulas, tentando,
sem resultado visível, assoar o nariz ao mesmo tempo que segurava as rédeas. – Conte logo o
que aconteceu!
– Pois estou contando! O bruxo falou assim: “O monstro não partirá daqui tão cedo e
passará a noite toda comendo o cavaleiro morto, devagar e com calma, porque o corpo está
numa armadura e não vai ser fácil desencavá-lo de dentro dela.” Aí vieram os comerciantes,
que se puseram a barganhar com o bruxo, dizendo que iam se juntar e fazer uma coleta,
oferecendo-lhe cem coroas. O bruxo lhes disse que a besta era uma manticora muito perigosa,
de modo que eles podiam enfiar as cem coroas no cu, porque ele não ia arriscar seu pescoço
por tão pouco. O comandante ficou furioso e falou que a função dos bruxos era exatamente
arriscar o pescoço, assim como a do cu era cagar. Pelo jeito, os comerciantes ficaram com
medo de que o bruxo se ofendesse e fosse embora, porque logo acertaram com ele o preço de
cento e cinquenta coroas. Então o bruxo pegou sua espada e seguiu pela vereda, na direção do
lugar onde o monstro estava sentado. O comandante fez um gesto contra mau-olhado, cuspiu e
disse que não conseguia entender por que existiam tais mutantes diabólicos na face da Terra. E
um dos comerciantes falou que, se os soldados espantassem os monstros das estradas em vez
de ficarem correndo pelas florestas atrás de elfos, não haveria necessidade de bruxos e…
– Pare de dizer bobagens – interrompeu-o um dos velhinhos – e conte apenas o que você
viu.
– Eu fiquei tomando conta do cavalo do bruxo – afirmou o garoto, orgulhoso. – Uma égua
castanha com uma mancha branca na testa.
– Estou pouco ligando para a égua! Quero saber se você viu como o bruxo matou o
monstro!
– Be.. bem… – gaguejou o garoto. – Isso eu não vi… Fui empurrado para trás. Todos
começaram a gritar, os cavalos se assustaram e…
– Não falei? – disse o velhinho com desdém. – Esse fedelho não viu merda nenhuma.
– Mas vi o bruxo quando ele voltou! – exclamou o garoto. – E o comandante, que a tudo
assistiu, estava com o rosto lívido e comentou com os soldados que aquilo devia ter sido
feitiço mágico ou encanto élfico, porque nenhum ser humano seria capaz de manejar uma
espada com tamanha rapidez e destreza… O bruxo pegou o dinheiro dos comerciantes, montou
em sua égua e foi embora.
– Hummm… – murmurou Aplegatt. – Por onde ele seguiu? Pela estrada que leva a
Carreras? Se foi, então talvez eu consiga alcançá-lo e dar uma espiada nele…
– Não – respondeu o garoto. – Ele partiu na direção de Dorian. Disse que estava com
pressa.
O bruxo poucas vezes sonhava, e ao despertar jamais se lembrava dos raros sonhos que
tinha, mesmo quando eram pesadelos – e eles costumavam ser pesadelos.
Dessa vez também fora um pesadelo, mas o bruxo conseguiu lembrar-se pelo menos de um
fragmento dele. Do meio de um turbilhão de difusas e inquietantes figuras, de estranhas e
agoureiras cenas, de incompreensíveis e assustadoras palavras e sons, surgiu de repente uma
imagem limpa e clara. Ciri. Diferente daquela que ele recordava de Kaer Morhen. Seus
cabelos cinzentos, agitados pelo galope, estavam mais compridos, tal como ela os usava
quando a vira pela primeira vez, em Brokilon. Quando ela passou a seu lado, ele quis gritar,
mas não conseguiu emitir um som sequer. Tentou correr atrás dela, porém teve a sensação de
estar afundado até a cintura em piche derretido em fase de solidificação. E Ciri, parecendo
não tê-lo visto, continuou galopando por entre disformes amieiros e chorões que agitavam seus
ramos como se fossem vivos. Foi quando ele notou que ela estava sendo perseguida, que logo
atrás dela galopava um cavalo preto montado por um cavaleiro metido numa armadura negra,
com o elmo adornado com asas de ave de rapina.
Não podia se mover nem gritar – só ficar olhando o cavaleiro alado alcançar Ciri, agarrá-
la pelos cabelos, arrancá-la da sela e continuar a galopar, arrastando-a consigo. Viu o rosto de
Ciri se contorcer de dor e de seus lábios emanar um grito inaudível. “Acorde”, ordenou a si
mesmo, não podendo mais suportar o pesadelo. “Acorde! Acorde imediatamente!”
Acordou.
Ficou deitado imóvel por bastante tempo, repassando o sonho na memória. Em seguida,
levantou-se. Tirou debaixo do travesseiro o saquinho de couro com moedas e contou-as: cento
e cinquenta pela manticora do dia anterior, cinquenta pelo núbilo que matara a pedido do
prefeito de um vilarejo próximo de Carreras e cinquenta pelo lobisomem que os camponeses
de Burdorff lhe mostraram.
A quantia recebida pelo lobisomem fora até excessiva, porque o trabalho havia sido muito
fácil. O lobisomem nem tentara se defender. Perseguido até uma caverna sem saída, apenas se
ajoelhara e aguardara o golpe da espada. O bruxo chegara a sentir pena dele. No entanto,
precisava de dinheiro.
Em menos de uma hora já estava caminhando pelas ruas de Dorian, à procura de um beco e
um letreiro conhecidos.
A estalagem estava vazia. Num dos cantos, sentada num banco e virada timidamente para o
lado, uma mulher com olhos encavados amamentava uma criança. Um camponês de ombros
largos, provavelmente seu marido, dormitava do lado, com as costas apoiadas na parede. Na
sombra, atrás do fogareiro, estava sentado mais alguém, que Aplegatt não conseguia enxergar
direito por causa da penumbra reinante no aposento.
O dono do estabelecimento ergueu a cabeça e adotou um ar soturno assim que reconheceu
a placa metálica com o brasão de Aedirn pendurada no pescoço do visitante. Aplegatt já
estava acostumado a tal atitude. Como estafeta real, ele tinha o incondicional direito de
requisitar meios de transporte à população. Os decretos reais eram bastante claros: o estafeta
podia, em qualquer cidade, em qualquer vilarejo e em qualquer pousada, exigir um cavalo
novo, e ai daquele que se negasse a entregá-lo. Evidentemente, o estafeta deixava seu cavalo
em troca e pegava o outro assinando um recibo. O proprietário do animal podia procurar o
estaroste e receber uma indenização. No entanto, isso não costumava ser tão fácil assim, de
modo que o estafeta era sempre visto com reserva e desconfiança: exigirá ou não? Levará
consigo para sempre nosso querido Dourado? Nossa Belezoca, que criamos desde que
nasceu? Nosso mimado Corvo? Aplegatt já vira muitas crianças em lágrimas agarradas a seu
adorado animal e companheiro de brincadeiras enquanto era selado e levado para fora da
cocheira; mais de uma vez olhara para o rosto empalidecido de adultos diante da impotência e
do sentimento de injustiça à qual foram submetidos.
– Não vou precisar de um cavalo novo – disse rudemente, com a impressão de o
estalajadeiro ter soltado um suspiro de alívio. – Vou apenas comer algo, porque fiquei com
fome durante a viagem. Sobrou alguma coisa na panela?
– Sobrou um pouco de sopa. Sente-se, por favor. Já vou servi-lo. O senhor pretende
pernoitar? Está ficando escuro.
Aplegatt pensou por um momento. Dois dias antes se encontrara com Hansom, um estafeta
conhecido, com quem, seguindo ordens, trocara mensagens. Hansom recebera as cartas e os
recados dirigidos ao rei Demawend e partira a pleno galope para Vengerberg por Temeria e
Mahakam. Já Aplegatt, com a correspondência destinada ao rei Vizimir da Redânia, seguira na
direção de Oxenfurt e Tretogor. Tinha ainda mais de trezentas milhas a percorrer.
– Vou comer e partirei logo em seguida – decidiu. – A lua está cheia e a estrada é plana.
– Como o senhor desejar.
A sopa que lhe foi servida era rala e sem gosto, mas o estafeta não prestava atenção a tal
tipo de detalhes. Deixava para deliciar-se em casa, com a comida preparada pela esposa; na
estrada, comia o que lhe era servido. Sorvia a sopa lentamente, segurando a colher de maneira
desajeitada, com dedos intumescidos de tanto segurar as rédeas.
O gato que dormitava junto do fogareiro ergueu repentinamente a cabeça e bufou.
– Um estafeta real?
Aplegatt olhou em volta. A pergunta fora feita por aquele que estivera oculto na sombra da
qual agora saía, parando ao lado do estafeta. Tinha os cabelos brancos como leite, presos por
uma tira de couro. Vestia um gibão cravejado com tachões de prata e calçava botas de cano
alto. Por trás de seu ombro direito brilhava o esférico pomo de uma espada presa às costas.
– Para onde o senhor está se dirigindo?
– Para onde manda a vontade real – respondeu Aplegatt friamente. Nunca respondia de
outro modo a tal tipo de pergunta.
O homem de cabelos brancos ficou em silêncio por algum tempo, olhando inquisitivamente
para o estafeta. Seu rosto era de uma palidez sobrenatural, e seus olhos, estranhamente
escuros.
– A vontade real – falou por fim, com voz desagradável e um tanto rouca – sem dúvida
deve ter lhe ordenado que se apressasse. Não está pronto para partir imediatamente?
– E o que isso lhe interessa? Quem é o senhor para me apressar assim?
– Não sou ninguém – respondeu o desconhecido, sorrindo de maneira particularmente
horrível. – E não o estou apressando. Mas, se estivesse em seu lugar, partiria daqui o mais
rápido possível. Não gostaria que lhe acontecesse algo de mau.
Aplegatt também tinha uma resposta pronta para tal tipo de afirmações. Curta e grossa.
Embora não fosse provocativa, ela deixava bem claro a quem servia um estafeta real e que
perigo corria todo aquele que ousasse tocar num deles. No entanto, na voz do homem de
cabelos brancos havia algo que fez com que Aplegatt não usasse a resposta costumeira.
– Preciso dar um descanso ao cavalo, senhor. Uma hora, talvez duas.
– Entendo – assentiu o estranho personagem, erguendo a cabeça e parecendo ouvir sons
vindos de fora.
Aplegatt também fez um esforço para escutar, mas ouviu apenas o murmúrio do vento.
– Descanse, então – disse o desconhecido, ajeitando o largo cinturão de couro que lhe
atravessava diagonalmente o peito. – Mas não saia para o pátio. Não importa o que esteja se
passando lá, não saia de modo algum.
Aplegatt não perguntou nada. Seu instinto lhe dizia que era o melhor a fazer. Inclinou-se
sobre o prato e retomou a pescaria dos raros torresmos boiando na sopa. Quando voltou a
erguer a cabeça, o homem de cabelos brancos já havia saído do aposento.
No momento seguinte, ouviu o relincho de um cavalo e o som de cascos batendo no solo. A
porta da estalagem se abriu e adentraram três homens. Ao vê-los, o estalajadeiro se pôs a
limpar ainda mais energicamente um caneco. A mulher com o bebê escorregou sobre o banco
para mais perto do marido adormecido e despertou-o com uma cotovelada. Aplegatt puxou
disfarçadamente para perto de si o tamborete sobre o qual repousava seu cinturão com a
espada.
Os três homens aproximaram-se do balcão, lançando olhares avaliadores sobre os
presentes. Moviam-se devagar, fazendo tilintar suas esporas e armas.
– Sejam bem-vindos, senhores. – O estalajadeiro pigarreou e tossiu. – O que posso lhes
servir?
– Vodca – respondeu um dos homens, baixo, troncudo, de longos braços simiescos, com
duas espadas zerricanas cruzadas às costas. – O senhor vai tomar um trago, Professor?
– Positivamente, e com agrado – concordou o segundo homem, ajeitando sobre o nariz
adunco óculos feitos de lentes de polido cristal azulado numa armação de ouro. – Desde que a
bebida não seja falsificada com o uso de ingredientes inadequados.
O estalajadeiro os serviu. Aplegatt notou que suas mãos tremiam. Os três homens
apoiaram as costas no balcão e, sem pressa alguma, ficaram bebericando dos canecos de
barro.
– Senhor estalajadeiro – falou o de óculos repentinamente –, não teriam passado por aqui
há pouco tempo duas damas viajando apressadas na direção de Gors Velen?
– Muitas pessoas passam por aqui – resmungou o estalajadeiro.
– As damas em questão – continuou o homem, devagar – não passariam despercebidas.
Uma delas é morena e extraordinariamente bela; monta um garanhão negro. A outra, mais
jovem, de cabelos claros e olhos verdes, cavalga numa égua lobuna. Estiveram aqui?
– Não – antecipou-se Aplegatt ao estalajadeiro, sentindo um repentino frio nas costas. –
Não estiveram.
Perigo com penas cinzentas. Areia quente…
– Estafeta?
Aplegatt assentiu com a cabeça.
– De onde e para onde?
– De onde e para onde a vontade real me mandar.
– As mulheres sobre as quais indaguei, você não as teria encontrado pelo caminho?
– Não.
– Tenho a impressão de que você nega rápido demais – rosnou o terceiro homem, magro e
comprido como uma vara. Seus cabelos eram negros e brilhantes, como se tivessem sido
alisados com gordura. – E não me parece que você tenha se esforçado muito para puxar pela
memória.
– Deixe-o em paz, Heimo – disse o de óculos, fazendo um gesto depreciativo com a mão. –
Ele não passa de um estafeta. Não crie caso. Como se chama este vilarejo, estalajadeiro?
– Anchor.
– Qual a distância daqui até Gors Velen?
– Como?
– Quantas milhas?
– Nunca contei as milhas, mas são três dias de viagem…
– A cavalo?
– Numa carroça.
– Ei! – exclamou o troncudo repentinamente, endireitando-se e olhando para o pátio
através da porta aberta. – Dê uma espiada, Professor. Quem será aquele tipo? Será que é…
O de óculos também olhou para o pátio e seu rosto se contraiu.
– Sim – rosnou. – Decididamente é ele. Acabamos tendo sorte.
– Vamos esperar que ele entre?
– Ele não vai entrar. Viu nossos cavalos.
– Será que ele sabe que nós…
– Cale a boca, Yaxa. Ele está falando alguma coisa.
– Vocês podem escolher – emanou do pátio uma voz rouca, porém possante, a qual
Aplegatt reconheceu de imediato. – Um de vocês vai sair daí e me dizer quem os contratou. Se
fizerem isso, poderão partir sem ser incomodados. Ou então saiam os três juntos. Aguardo.
– Filho de uma cadela – praguejou o de cabelos negros. – Ele sabe. O que vamos fazer?
O de óculos colocou lentamente o caneco sobre o balcão.
– Aquilo pelo que fomos pagos – respondeu, cuspindo na mão, mexendo os dedos e
sacando a espada.
Diante disso, os outros dois também desembainharam as suas. O estalajadeiro abriu a boca
para soltar um grito, mas fechou-a imediatamente sob o gélido olhar que surgiu detrás das
lentes azuis.
– Fiquem todos sentadinhos – sussurrou o de óculos –, nem um pio. Heimo, logo que
começarmos, tente alcançá-lo por trás. Boa sorte, rapazes. Vamos sair.
Teve início assim que saíram. Gemidos, pés batendo no piso de tábuas, sons metálicos de
lâminas se chocando. Depois, um grito, daqueles de deixar os cabelos de pé.
O estalajadeiro empalideceu. A mulher de olhos encavados soltou um grito abafado,
apertando a criança contra o peito. O gato saltou detrás do fogareiro, recurvou o dorso e sua
cauda eriçou-se toda, como uma escova. Aplegatt levantou-se da cadeira e escondeu-se num
canto. Mantinha a espada sobre os joelhos, ainda na bainha.
Do pátio vinham mais sons de pés batendo no piso, silvos e golpes de lâminas.
– Ah, seu… – gritou alguém selvagemente, e naquele grito, apesar de ser concluído com
um palavrão, havia mais desespero do que raiva. – Seu…
O silvo de uma lâmina. E logo depois um urro agudo e penetrante parecendo cortar o ar,
seguido por um barulho como se um saco de grãos tivesse caído sobre o piso de tábuas. Mais
ao longe, sons nervosos de cascos e relinchos apavorados de cavalos.
Sobre o piso de tábuas, passos pesados e rápidos de alguém correndo. A mulher com o
bebê colou-se ao marido. O estalajadeiro apoiou as costas na parede. Aplegatt desembainhou
a espada, mas deixou-a escondida sob o tampo da mesa. O homem corria na direção da
estalagem, e estava claro que logo apareceria à porta. Antes de alcançá-la, porém, ouviu-se o
silvo de uma lâmina.
O homem soltou um grito. Parecia que ia cair antes mesmo de adentrar, mas não caiu. Deu
alguns passos lentos e desajeitados e só então desabou, bem no centro do aposento, erguendo
uma nuvem de poeira que havia se acumulado nas fendas entre as tábuas do piso. Caiu de
bruços, impotente, esmagando os braços e encolhendo as pernas. Os óculos com lentes de
cristal espatifaram-se com estrondo sobre as tábuas, espalhando-se como grãos de cevada
azulada. Debaixo do já imóvel corpo começou a se alastrar uma brilhante mancha escura.
Ninguém se mexeu nem gritou.
O homem de cabelos brancos entrou. Enfiou habilmente a espada na bainha presa às costas
e aproximou-se do balcão, sem sequer lançar um olhar para o cadáver.
– Os homens malvados – disse – estão mortos. Quando chegar o aguazil, é bem possível
que se revele haver um prêmio por suas cabeças. Que ele faça com o prêmio o que achar
adequado.
– Sim, senhor – falou o estalajadeiro respeitosamente.
– Pode ser – acrescentou o homem de cabelos brancos – que apareçam aqui alguns
camaradas ou amigos desses homens malvados, perguntando o que aconteceu com eles. Se
isso ocorrer, diga-lhes que foram mordidos pelo Lobo. Pelo Lobo Branco. E recomende-lhes
que olhem frequentemente para trás, pois algum dia poderão se virar e dar de cara com o
Lobo.
Quando, após três dias de viagem, Aplegatt chegou aos portões de Tretogor, já passava da
meia-noite. Estava furioso, porque perdera bastante tempo junto da fossa e gritara até arranhar
a garganta. Os guardas dormiam o sono dos justos e demoraram muito para atendê-lo. Ficou
aliviado ao dirigir insultos a eles e a seus ancestrais até três gerações. Em seguida, ficou
ouvindo com grande satisfação o oficial do dia, que fora despertado, completar com outros
detalhes as acusações que ele fizera às mães, avós e bisavós dos recrutas. Obviamente, não
havia a menor chance de encontrar-se com o rei Vizimir. Na verdade, tal fato até lhe agradava,
pois contava com a possibilidade de dormir até soarem os sinos matinais. Estava enganado.
Em vez de ser conduzido a um lugar onde pudesse se deitar, foi levado imediatamente ao
aposento do comandante da guarda, onde o esperava um homenzarrão. Aplegatt o conhecia;
era Dijkstra, o homem de confiança do rei da Redânia. Dijkstra, e o estafeta sabia disso,
estava autorizado a ouvir notícias destinadas exclusivamente aos ouvidos do rei. Aplegatt
entregou-lhe as cartas.
– Você tem alguma mensagem verbal?
– Tenho, nobre senhor.
– Fale.
– Demawend para Vizimir – começou a recitar Aplegatt, semicerrando os olhos. –
Primeiro: os disfarçados estão prontos para a segunda noite de julho após a lua nova. Fique
atento para que Foltest não nos decepcione. Segundo: o congresso dos Espertalhões em
Thanedd não será honrado com minha presença, e recomendo-lhe o mesmo. Terceiro: a
Leoazinha está morta.
Dijkstra fez uma careta e tamborilou os dedos no tampo da mesa.
– Aqui você tem cartas para o rei Demawend. Já a mensagem verbal… Aguce bem os
ouvidos e reforce a memória. Repita a seu rei, palavra por palavra. Somente a ele, a ninguém
mais, entendeu?
– Entendi, nobre senhor.
– O teor da mensagem verbal é o seguinte: Vizimir para Demawend. Os disfarçados têm de
ser detidos a qualquer custo. Alguém traiu. A Chama juntou um exército em Dol Angra e
somente aguarda um pretexto. Repita.
Aplegatt repetiu.
– Muito bem – assentiu Dijkstra. – Você partirá antes do amanhecer.
– Estou cavalgando há cinco dias, nobre senhor – falou o estafeta, esfregando o traseiro. –
O senhor concordaria que eu dormisse até o meio-dia?
– E por acaso seu rei, Demawend, dorme agora à noite? Ou durmo eu? Só pela pergunta
você mereceria uma surra. Vão lhe dar algo para comer, você esticará os ossos por um tempo
num monte de palha e partirá antes de o sol raiar. Mandei que lhe dessem um garanhão de
raça; você verá que ele voa como o vento. E não faça essa careta. Tome este saquinho com um
prêmio extra para que você não fique falando por aí que o rei Vizimir é pão-duro.
– Obrigado, nobre senhor.
– Quando estiver atravessando as florestas de Pontar, fique muito atento. Comandos de
Esquilos foram vistos por lá, além de não faltarem simples bandidos por aquelas bandas.
– Bem sei disso, senhor. Só o que vi três dias atrás…
– O que você viu?
Aplegatt relatou rapidamente o que se passara em Anchor. Dijkstra ficou ouvindo, com os
possantes antebraços cruzados sobre o peito.
– O Professor… – falou pensativamente. – Heimo Kantor e Yaxa, o Curto. Mortos pelo
bruxo. Em Anchor, na estrada que leva a Gors Velen, ou seja, a Thanedd, a Garstang… E a
Leoazinha não está viva?
– O que disse, nobre senhor?
– Nada de importante – respondeu Dijkstra, erguendo a cabeça. – Pelo menos, para você.
Vá descansar e, assim que o dia raiar, a caminho!
Aplegatt comeu o que lhe trouxeram e deitou-se. No entanto, estava tão cansado que não
conseguiu dormir o suficiente e, antes de amanhecer, já estava fora do castelo. O cavalo era
realmente rápido, mas teimoso e desobediente. Aplegatt não gostava de cavalos assim.
A suas costas, entre a escápula esquerda e a coluna vertebral, sentia uma comichão
insuportável; provavelmente fora mordido por uma pulga enquanto dormitava… E não havia
como se coçar.
O cavalo relinchou e deu uns passos vacilantes. O estafeta esporeou-o e partiu a galope. O
tempo urgia.
– Gar’ean – sibilou Cairbre, inclinando-se entre os galhos de uma árvore para observar a
estrada. – En Dh’oine aen evall a stráede!
Toruviel ergueu-se de um pulo, ajeitou a espada presa ao cinturão e deu uma cutucada com
a ponta da bota na coxa de Yaevinn, que cochilava a seu lado, encostado numa árvore
derrubada pelo vento. O elfo levantou-se rapidamente, fazendo uma careta de dor por ter
queimado a palma da mão ao se apoiar na areia quente.
– Que suecc’s?
– Um homem cavalgando pela estrada.
– Só um? – perguntou Yaevinn, erguendo o arco e a aljava.
– Cairbre? Somente um?
– Sim, e está se aproximando.
– Então vamos acabar com ele. Haverá um Dh’oine a menos.
– Deixe-o em paz – falou Toruviel, segurando-o pelo braço. – Não precisamos disso.
Nossa tarefa é fazer o reconhecimento do terreno e retornar ao comando. Devemos matar civis
pelas estradas? É esse o espírito de nossa luta pela liberdade?
– Precisamente. Afaste-se.
– Se deixarmos um cadáver na estrada, a primeira patrulha que passar vai soar o alarme e
o exército sairá em nossa perseguição. Vão cercar os bosques e poderemos ter problemas ao
tentar atravessar o rio!
– São raras as pessoas que passam por esta estrada. Até encontrarem o corpo, estaremos
longe.
– Aquele cavaleiro já está longe demais – disse Cairbre, de cima da árvore. – Em vez de
discutir, vocês deviam ter disparado. Agora, não há como acertá-lo. Está a mais de duzentos
passos.
– Com meu arco de sessenta libras? – indagou Yaevinn, alisando seu arco huno. – E com
uma flecha de trinta polegadas? Além disso, não são duzentos passos; no máximo, cento e
cinquenta. Mire, que spar aen’le.
– Yaevinn, deixe isso para lá…
– Thaess aep, Toruviel.
O elfo virou o gorro para que a cauda de esquilo presa a ele não lhe atrapalhasse a visão,
esticou a corda do arco com força até o punho tocar no ouvido, mirou com cuidado e disparou.
Aplegatt não ouviu o disparo; tratava-se de uma “seta silenciosa”, especialmente munida
de longas e finas penas cinzentas e com a parte de trás estriada para aumentar a rigidez e
diminuir o peso. Afiada como uma navalha, a ponta tripartite acertou o estafeta nas costas,
fincando-se com ímpeto num ponto entre a escápula esquerda e a coluna vertebral. As três
lâminas da ponta estavam fixas em ângulo, de modo que, ao se cravarem no corpo, fizeram
com que a seta girasse e penetrasse como um parafuso, rasgando tecidos, massacrando vasos
sanguíneos e destroçando ossos. Aplegatt caiu com o peito sobre o pescoço do cavalo e
escorregou para o chão, inerte como um saco de algodão.
A areia que cobria a estrada era muito quente, tão aquecida pelo sol que chegava a
queimar. No entanto, o estafeta não sentiu mais nada. Morreu instantaneamente.
CAPÍTULO SEGUNDO
Junto da estrada, no lugar onde terminava a floresta, havia nove estacas cravadas na terra.
No topo de cada uma delas estava cravada horizontalmente uma roda de carroça. Sobre as
rodas circulavam bandos de corvos e gralhas, bicando e arrancando pedaços de cadáveres
amarrados aos aros e aos cubos. A bem da verdade, a altura das estacas e a quantidade de
aves permitiam apenas adivinhar o que eram aqueles restos irreconhecíveis presos às rodas.
Mas deviam ser cadáveres. Não podiam ser outra coisa.
Ciri virou a cabeça e, com asco, tampou o nariz. O vento soprava da direção das estacas e
o nauseabundo cheiro dos corpos apodrecidos empestava o ar sobre a estrada.
– Que bela decoração – disse Yennefer, inclinando-se na sela e cuspindo com desprezo,
esquecendo-se de que havia pouco passara uma reprimenda em Ciri por ter cuspido daquele
jeito. – Pitoresca e fedorenta. Mas por que aqui, à beira da floresta? Normalmente, tal tipo de
espetáculo é montado do lado de fora das muralhas de uma cidade. Não estou certa, minha boa
gente?
– Trata-se de Esquilos, distinta dama – apressou-se em esclarecer um comerciante,
freando o cavalo malhado atrelado a uma carroça repleta de mercadorias. – Elfos. Lá, em
cima daquelas estacas. E é por isso que as estacas foram fincadas junto da floresta; para servir
de advertência para outros Esquilos.
– Isso significa – a feiticeira olhou para o comerciante – que os Scoia’tael aprisionados
são trazidos vivos para cá…
– Os elfos, senhora, raramente se deixam pegar vivos – interrompeu-a o homem. – E, se,
por acaso, os soldados conseguem agarrar um ou outro, eles os levam para a cidade, pois
nelas vivem muitos inumanos. Quando veem esses desgraçados amarrados em praça pública,
logo lhes some a vontade de juntar-se aos Esquilos. Mas, quando alguns elfos são mortos num
campo de batalha, seus corpos são pendurados em estacas junto de estradas. Com frequência
eles são trazidos de bem longe, fedendo horrivelmente…
– E pensar – rosnou Yennefer – que nos proibiram práticas ligadas à necromancia por
respeito à majestade da morte e à transitoriedade dos corpos, que merecem honrarias,
tranquilidade e um enterro ritual e cerimonioso…
– O que a senhora disse?
– Nada. Vamos partir quanto antes, Ciri, para o mais longe possível daqui. Tenho a
sensação de que todo o meu corpo está impregnado com esse fedor.
– Eu também – falou Ciri, trotando em torno da caravana de comerciantes. – Podemos ir a
galope?
– Podemos, Ciri… A galope, mas não desvairado!
Em pouco tempo viram a cidade: enorme, cercada de muralhas e cheia de torres com
pontudos telhados brilhantes. E logo além da cidade via-se o mar: verde-azulado, reluzindo
sob os raios do sol matinal e salpicado aqui e ali por brancas manchas de velas. Ciri parou o
cavalo à borda de um arenoso penhasco, ergueu-se nos estribos e aspirou avidamente o ar e o
perfume.
– Gors Velen – falou Yennefer, aproximando seu cavalo ao lado do de Ciri. – Chegamos
finalmente a nosso destino. Vamos voltar para a estrada.
Uma vez na estrada, puseram-se novamente a galopar, deixando para trás carros puxados
por bois e pedestres sobrecarregados com feixes de lenha. Quando ultrapassaram todos e
ficaram sozinhas, a feiticeira diminuiu a marcha e fez um gesto detendo Ciri.
– Chegue mais perto – disse. – Mais perto ainda. Pegue as rédeas e conduza meu cavalo.
Preciso de ambas as mãos.
– Para quê?
– Eu lhe pedi para pegar as rédeas.
Yennefer tirou do alforje um pequeno espelho de prata, limpou-o e murmurou algumas
palavras mágicas. O espelhinho soltou-se de sua mão e ficou flutuando no ar sobre o pescoço
do cavalo, bem defronte do rosto da feiticeira.
Ciri deu um suspiro de admiração e lambeu os lábios.
A feiticeira pegou um pente no alforje, tirou o gorro e passou a pentear energicamente seus
cabelos. Ciri manteve-se calada. Sabia que, quando Yennefer penteava os cabelos, não era
permitido perturbá-la ou distraí-la. A formosa e aparentemente descuidada desordem de seus
fartos e brilhantes cachos era resultado de demoradas tentativas e exigia muita concentração.
A feiticeira voltou a enfiar a mão no alforje. Pendurou um par de brincos de diamantes nas
orelhas e pôs pulseiras em ambos os punhos. Tirou o xale e desabotoou parcialmente a blusa,
revelando o colo e a fita de veludo negro adornada com a estrela de obsidiana.
– Ah! – exclamou Ciri, não conseguindo mais se conter. – Sei a razão pela qual você está
fazendo tudo isso. Você quer estar bonita porque vamos adentrar uma cidade! Adivinhei?
– Adivinhou.
– E quanto a mim?
– O que tem?
– Também quero ficar bonita. Vou me pentear…
– Coloque o gorro de volta – falou Yennefer, severa, ainda mirando-se no espelhinho
flutuando sobre as orelhas do cavalo, exatamente na mesma posição de antes. – E esconda os
cabelos debaixo dele.
Ciri fez uma careta de desagrado, mas obedeceu imediatamente. Havia muito tempo
aprendera a reconhecer as nuanças de tonalidade na voz da feiticeira. Sabia quando era
possível tentar discutir com ela e quando não era.
Yennefer, depois de finalmente concluir a arrumação dos cachos sobre a testa, tirou do
alforje um diminuto frasco de vidro verde.
– Ciri – disse, de maneira mais suave. – Estamos viajando secretamente. Nossa viagem
ainda não terminou. É por isso que você tem de esconder os cabelos debaixo do gorro. Na
cidade, em cada vão de porta, há pessoas que são pagas para prestar atenção nas pessoas que
chegam. Entendeu?
– Não – respondeu Ciri descaradamente, puxando as rédeas do garanhão da feiticeira. –
Você ficou tão linda que os olhos dos tais que são pagos para olhar saltarão das órbitas. Que
maneira mais absurda de querer não ser notada!
– A cidade para a qual estamos cavalgando – sorriu Yennefer – é Gors Velen. Eu não
preciso me disfarçar em Gors Velen; na verdade, devo dizer que é o contrário. Já com você a
situação é diferente. Ninguém deverá notá-la.
– Aqueles que ficarão admirando-a acabarão me notando também!
A feiticeira destampou o frasquinho, do qual emanou um perfume de lilás e groselha.
Mergulhou nele o dedo indicador e esfregou um pouco do conteúdo sob os olhos.
– Duvido – falou, sorrindo enigmaticamente – que alguém preste atenção em você.
Diante da ponte havia uma longa fila de cavaleiros e carroças, enquanto junto dos portões
uma multidão de viajantes aguardava sua vez de passar pelo posto de controle. Ciri mostrou-
se claramente contrariada com a perspectiva de ter de ficar esperando por muito tempo.
Yennefer, por seu lado, aprumou-se na sela e partiu num trote acelerado, olhando bem alto
sobre as cabeças dos viajantes, que se afastavam para deixá-la passar e se inclinavam
respeitosamente a sua passagem. Os guardas, vestidos com longas cotas de malha, também
logo notaram a feiticeira e abriram-lhe caminho, não poupando a haste das lanças, com a qual
batiam nas costas daqueles que não se afastavam com rapidez suficiente.
– Por aqui, por aqui, distinta dama – gritou um dos guardas, olhando com admiração para
Yennefer, ora enrubescendo, ora empalidecendo. – Por aqui, por favor. Abram passagem!
Saiam da frente, seus vagabundos!
O comandante da guarda, chamado às pressas, saiu de seu alojamento visivelmente
aborrecido, mas, ao ver a feiticeira, ficou vermelho como um tomate, arregalou os olhos, abriu
a boca e fez uma profunda reverência.
– Humildemente lhe dou as boas-vindas a Gors Velen, ilustríssima dama. Haverá algo em
que poderei ser útil a Vossa Senhoria? Talvez providenciar uma escolta? Um guia? Convocar
alguém?
– Não será necessário – respondeu Yennefer, sentada ereta na sela e olhando para ele de
cima. – Ficarei pouco tempo na cidade. Estou a caminho de Thanedd.
– Perfeitamente… – O soldado se apoiava ora em uma perna, ora na outra, sem desgrudar
os olhos do rosto da feiticeira. Os demais guardas comportavam-se da mesma forma.
Ciri empertigou-se orgulhosamente e ergueu a cabeça, mas constatou que ninguém sequer
lhe lançava um olhar. Era como se ela simplesmente não existisse.
– Perfeitamente – repetiu o oficial. – Para Thanedd, sim… Para o congresso. É claro.
Diante disso, desejo…
– Obrigada. – Yennefer cutucou o cavalo com os calcanhares, deixando evidente que não
tinha o mínimo interesse em saber o que lhe desejava o guarda.
Ciri seguiu-a. Os guardas inclinavam-se diante da passagem da feiticeira, sem lançar um
mísero olhar para sua companheira.
– Eles nem perguntaram seu nome – murmurou a garota, alcançando Yennefer e
cuidadosamente evitando os sulcos de rodas gravados na lama. – Nem de onde estamos vindo.
Você lançou um encanto sobre eles?
– Não. Sobre mim.
A feiticeira virou-se. Ciri suspirou. Os olhos de Yennefer brilhavam com raios cor de
violeta e seu rosto tinha uma beleza extraordinária. Resplandecente. Desafiadora.
Ameaçadora. E inatural.
– O frasquinho verde! – adivinhou a garota imediatamente. – O que era aquilo?
– Glamarye. Um elixir, ou melhor, um unguento para ocasiões especiais. Ciri, você precisa
passar por toda poça do caminho?
– Quero lavar os cascos do cavalo!
– Faz mais de um mês que não chove. Isso aí é lavadura e urina de cavalos, não água.
– Ah… Mas diga-me, por que usou aquele elixir? Você fazia tanta questão de…
– Estamos em Gors Velen – interrompeu-a Yennefer. – Uma cidade que em grande parte
deve seu bem-estar aos feiticeiros. Mais exatamente, às feiticeiras. E eu não estava com
vontade de me apresentar nem provar quem sou. Preferi que isso fosse evidente assim que
alguém olhasse para mim. Logo que passarmos por aquela casa vermelha, vamos virar à
esquerda. Cavalgue mais devagar, Ciri, senão poderá atropelar alguma criança.
– E com que finalidade nós viemos para cá?
– Já lhe disse isso.
Ciri fez um muxoxo, cerrou os lábios e cutucou o flanco de sua montaria com os
calcanhares. A égua rodopiou, quase se chocando com uma carroça que passava perto. O
cocheiro levantou-se da boleia e se preparou para cobri-la com uma série dos palavrões mais
grosseiros possíveis, mas, ao ver Yennefer, sentou-se rapidamente e concentrou sua atenção
num exame minucioso de seus tamancos.
– Mais uma má-criação dessas – escandiu Yennefer – e ficarei muito zangada. Você está se
comportando como uma cabrita destemperada. E isso me envergonha.
– Você quer me pôr numa escola, não é isso? Pois eu não quero!
– Fale mais baixo. As pessoas estão olhando.
– Estão olhando para você, não para mim! Eu não quero ir para escola alguma! Você me
prometeu que sempre estará comigo e agora quer me deixar sozinha! Sozinha! Eu não quero
ficar sozinha!
– Você não estará sozinha. Na escola há muitas jovens de sua idade. Você terá uma porção
de colegas.
– Não quero colegas. Quero ficar com você e com… Pensei que…
Yennefer virou-se violentamente.
– Você pensou o quê?
– Pensei que estávamos indo ao encontro de Geralt – respondeu Ciri, erguendo
provocativamente a cabeça. – Sei muito bem o que você andou pensando durante toda a nossa
viagem. Assim como sei a razão pela qual você ficou suspirando à noite…
– Basta – sibilou a feiticeira, e a visão de seus olhos em brasa fez com que a garota
escondesse o rosto na crina do cavalo. – Você está ficando insolente demais. Quero lhe
lembrar que o tempo de se opor a mim já passou irreversivelmente. E isso ocorreu por sua
inteira e livre vontade. Agora, você tem de me obedecer e fazer tudo o que eu lhe mandar.
Entendeu?
Ciri assentiu com a cabeça.
– Tudo o que eu lhe mandar será para seu próprio bem. Sempre. E é por isso que você vai
me ouvir e obedecer às minhas ordens. Está claro? Pare o cavalo. Chegamos.
– Essa é a tal escola? – murmurou Ciri, erguendo os olhos para a possante fachada do
prédio. – Quer dizer…
– Nem mais uma palavra. Desça do cavalo e comporte-se como se deve. Isso não é uma
escola. A escola fica em Aretusa, e não em Gors Velen. Isso aí é um banco.
– E para que precisamos de um banco?
– Pense. Já lhe disse para desmontar. Não numa poça! Largue o cavalo; para isso existem
os cavalariços. Tire as luvas. Não se entra num banco com luvas de montaria. Olhe para mim.
Ajeite o gorro. Arrume a gola. Mantenha as costas retas. Não sabe o que fazer com as mãos?
Não faça nada.
Ciri soltou um suspiro de resignação.
Os funcionários que surgiram do portão do prédio, inclinando-se em profundas
referências, vieram ao encontro das duas damas; eram anões. Ciri olhou para eles com
curiosidade. Embora fossem também baixos, corpulentos e barbudos, em nada lembravam seu
amigo Yarpen Zigrin, nem seus rapazes. Os funcionários eram cinzentos, vestiam uniformes
iguais e não tinham sinal particular algum. E todos eram subservientes, algo que jamais
poderia ser dito a respeito de Yarpen e seus rapazes.
Entraram. O elixir mágico continuava funcionando, de modo que a aparição de Yennefer
causou imediatamente um enorme alvoroço, um corre-corre sem fim, inúmeras reverências,
submissas saudações e declarações de prontidão para atender a suas ordens, que só
terminaram com a chegada de um anão inacreditavelmente gordo, ricamente vestido e de longa
barba branca.
– Distinta Yennefer! – trovejou ele, fazendo tilintar a corrente de ouro que pendia de seu
possante pescoço até bem abaixo de sua barba. – Que surpresa! E que honra! Por favor, vamos
a meu escritório. Quanto a vocês, não fiquem aí, embasbacados! Ao trabalho, aos ábacos!
Wilfli! Leve agora mesmo ao escritório uma garrafa de Castel de Neuf da safra… Você já sabe
qual. E rápido! Permita-me, permita-me, Yennefer. Que alegria vê-la! Você está tão linda que
nem dá para respirar.
– Você também parece estar em plena forma, Giancardi – sorriu a feiticeira.
– Sem dúvida. Por favor, venham comigo. Mas, não, não… primeiro as damas. Você
conhece o caminho, Yennefer.
No interior do escritório o ambiente estava escuro e agradavelmente fresco. No ar pairava
um cheiro que lembrava a Ciri o da torre do escriba Jarre, um odor de tinta, de pergaminhos e
de poeira que cobria os móveis de carvalho, gobelinos e enormes livros velhos.
– Sentem-se, por favor – falou o banqueiro, puxando uma pesada poltrona para Yennefer e
lançando um olhar embaraçado para Ciri.
– Dê-lhe um livro qualquer, Molnar – disse displicentemente a feiticeira, tendo percebido
o olhar. – Ela adora livros velhos. Vai se sentar à ponta da mesa e não vai nos incomodar. Não
é verdade, Ciri?
A garota achou desnecessário responder.
– Um livro velho… hummm… deixe-me ver… – murmurou o anão com voz preocupada,
aproximando-se de uma estante. – O que temos aqui? Livro de créditos e débitos… Não, este
não serve. Impostos de importação e custos portuários… Também não. Créditos e
reembolsos? Não. Opa, como este veio parar aqui? Só os diabos sabem… Mas acho que veio
a calhar. Tome, garotinha.
O livro tinha o título Physiologus e era muito velho e rasgado. Ciri virou cuidadosamente
a capa e algumas páginas. A obra logo atraiu sua atenção, porque tratava de seres estranhos e
monstros, além de conter inúmeras litografias. Por algum tempo esforçou-se para dividir a
atenção entre o livro e a conversa da feiticeira com o banqueiro.
– Você tem cartas para mim, Molnar?
– Não – respondeu o banqueiro, servindo vinho a Yennefer e a si mesmo. – As últimas, de
um mês atrás, eu lhe enviei pelo método combinado.
– Eu as recebi, obrigada. Por acaso alguém demonstrou interesse por elas?
– Não aqui – sorriu Molnar Giancardi. – Mas você está mirando o alvo certo, minha cara.
O banco dos Vivaldi avisou-me confidencialmente que alguém procurou seguir a pista das
cartas. Sua filial em Vengerberg descobriu também uma tentativa de observar a movimentação
de sua conta bancária. Um de seus funcionários revelou-se desleal.
O anão interrompeu-se, lançando à feiticeira um olhar inquisitivo sob as espessas
sobrancelhas. Ciri aguçou os ouvidos. Yennefer permanecia calada, brincando com sua estrela
de obsidiana.
– Os Vivaldi – continuou o banqueiro, baixando a voz – não quiseram ou não puderam
investigar o caso. O funcionário desleal e subornável caiu embriagado no fosso e morreu
afogado. Um infeliz acidente. Uma pena. Tudo aconteceu demasiadamente rápido…
– A perda não foi tão grande assim – comentou a feiticeira, estufando os lábios. – Eu sei
quem estava interessado em minhas cartas e em minhas movimentações bancárias, de modo
que a investigação dos Vivaldi não teria trazido nada de novo.
– Se você acha assim… – Giancardi coçou a barba. – Você está indo para Thanedd,
Yennefer? Para aquele congresso geral de feiticeiros?
– Sim.
– Para decidir os destinos do mundo?
– Não exagere.
– Circulam rumores e estão ocorrendo coisas estranhas – falou o anão secamente.
– Que coisas, se não for segredo?
– Desde o ano passado – disse Giancardi, alisando a barba – tenho notado consideráveis
mudanças na política tributária… Sei que você não se interessa por tal tipo de assuntos…
– Continue.
– Dobraram o valor do encabeçamento e da invernação, impostos coletados diretamente
pelas autoridades militares. Todos os comerciantes e empresários devem pagar ao tesouro real
um novo imposto, denominado “décimo centavo”, no valor de um centavo por noble de
faturamento. Além disso, anões, gnomos, elfos e ananicos pagam um taxa adicional por pessoa
e por residência, e, caso estejam envolvidos em atividades comerciais ou produtivas, são
ainda onerados por uma contribuição “inumana” obrigatória, equivalente a dez por cento de
seu lucro. Por conta dessa carga tributária, entrego ao Tesouro mais de sessenta por cento de
minhas receitas. Meu banco, incluindo todas as filiais, supre os Quatro Reinos com seiscentos
marcos por ano. Para sua informação, isso é quase três vezes mais do que paga de impostos
um magnata ou um conde proprietário de grandes extensões de terra.
– Os humanos não são onerados com aquela contribuição obrigatória para custear os
exércitos?
– Não. Eles pagam apenas o encabeçamento e a invernação.
– O que significa – a feiticeira meneou a cabeça – que são os anões e outros inumanos que
financiam a campanha militar contra os Esquilos. Eu já esperava por algo assim. Mas o que os
impostos têm a ver com o congresso em Thanedd?
– Depois dos congressos de vocês – observou o banqueiro – sempre acontece alguma
coisa. Pois saiba que dessa vez nutro a esperança de que seja o contrário. Espero que seu
congresso faça com que certas coisas deixem de acontecer. Ficaria muito contente, por
exemplo, se parassem com essas repentinas mudanças de preços.
– Seja mais claro.
O anão esparramou-se na poltrona e trançou os dedos sobre a barriga coberta pela barba.
– Trabalho em meu ramo um bocado de tempo – falou –, o suficiente para poder ligar
determinados movimentos de preços a alguns fatos. E ultimamente notei um grande aumento do
preço das pedras preciosas, porque há demanda por elas.
– As pessoas trocam dinheiro em espécie por joias com o intuito de evitar perdas nas
taxas de câmbio e na paridade das moedas?
– Também por isso. Mas as pedras possuem outra grande qualidade: a de um saquinho com
diamantes ter o valor equivalente a uns cinquenta marcos. Essa quantia, transformada em
dinheiro vivo, pesaria em torno de vinte e cinco libras e ocuparia um saco de dimensões
consideráveis. É muito mais fácil fugir com um leve saquinho no bolso do que com um pesado
saco nas costas. Além disso, as duas mãos ficam livres, o que não deixa de ser importante.
Com uma delas dá para segurar a esposa, enquanto com a outra é possível dar uma bordoada
em alguém em caso de necessidade.
Ciri riu baixinho, mas Yennefer lançou-lhe um olhar que a fez calar-se imediatamente.
– Portanto – disse a feiticeira – já há pessoas que estão se preparando para fugir. Estou
curiosa: para onde?
– Na maior parte das vezes para o norte distante. Hengfors, Kovir, Poviss. Primeiro,
porque é realmente muito longe. Segundo, porque aqueles países são neutros e mantêm boas
relações com Nilfgaard.
– Entendo – sorriu ironicamente a feiticeira. – Botar brilhantes no bolso, pegar a esposa
pelo braço e partir para o norte… Você não acha que é cedo demais para isso? Mas o que
mais aumentou de preço, Molnar?
– Barcos.
– O quê?!
– Barcos – repetiu o anão, mostrando os dentes num sorriso. – Todos os fabricantes de
embarcações estão trabalhando na construção de barcos, canoas e escaleres encomendados
pelos intendentes do exército do rei Foltest. Os intendentes pagam bem e fazem cada vez mais
encomendas. Se você dispusesse de algum capital, Yennefer, eu lhe aconselharia a investir em
barcos. É um excelente negócio. Você constrói uma canoa de vime e casca de árvore, emite
uma fatura para um escaler de madeira de primeiríssima qualidade, racha a diferença meio a
meio com o fabricante…
– Não faça piadas, Giancardi. Diga de que se trata.
– Esses barcos – falou o banqueiro displicentemente, olhando para o chão – são
transportados para o sul. Para Sodden e Brugge, à beira do Jaruga. Mas, pelo que me consta,
eles não estão sendo usados para pescar peixes no rio. São escondidos nas florestas à margem
direita, e dizem que os soldados ficam por horas treinando o embarque e o desembarque. Por
enquanto, em terra firme.
– Ah – disse Yennefer, mordendo os lábios. – Mas por que há pessoas com tanta pressa em
fugir para o norte, quando o Jaruga fica no sul?
– Há um fundamentado temor – respondeu o anão, lançando um olhar para Ciri – de o
imperador Emhyr var Emreis não ficar muito feliz com a notícia de que os tais barcos foram
lançados na água. Alguns acreditam que tal fato poderia despertar tanta ira em Emhyr que,
caso isso ocorresse, o melhor que se poderia fazer seria estar o mais longe possível da
fronteira nilfgaardiana… Pelo menos, até a colheita. Quando a colheita terminar, todos
respirarão aliviados, porque, se algo for acontecer, terá de ser antes da colheita.
– Os grãos já estarão nos celeiros – murmurou Yennefer lentamente.
– É isso. Não é fácil alimentar cavalos com restolhos, e fortalezas com celeiros cheios
podem resistir a um cerco por meses… O tempo está muito propício aos agricultores e a
colheita promete ser ótima. Sim, sim. O tempo está mais do que lindo. O sol brilha e aquece a
terra, não há sinal algum de chuva próxima… E o Jaruga em Dol Angra está ficando cada vez
mais raso… Será fácil atravessá-lo. Em ambos os sentidos.
– Por que Dol Angra?
– Posso confiar em você? – indagou o banqueiro, alisando a barba e lançando um olhar
penetrante à feiticeira.
– Você sempre pôde, Giancardi. E nada mudou.
– Dol Angra – falou o anão devagar – são Lyria e Aedirn, que têm uma aliança militar com
Temeria. Você acha que Foltest, que andou comprando aqueles barcos, pretenderá usá-los por
conta própria?
– Não – respondeu a feiticeira vagarosamente –, não acho. Agradeço-lhe a informação,
Molnar. Quem sabe você não tem razão e nós, lá no congresso, poderemos realmente influir
nos destinos do mundo e dos homens que o habitam?
– Não se esqueça dos anões – sorriu Giancardi. – E dos bancos.
– Vamos nos esforçar. E já que estamos falando de bancos…
– Sou todo ouvidos.
– Estou tendo muitas despesas, Molnar. Se eu sacar alguns recursos de minha conta no
banco dos Vivaldi, poderá haver alguém pronto para se afogar. Diante disso…
– Yennefer – interrompeu-a o anão –, aqui, em meu banco, você tem crédito ilimitado. O
pogrom em Vengerberg ocorreu há muito tempo. Talvez você tenha se esquecido, mas eu
jamais esquecerei. Ninguém da família Giancardi esquecerá. De quanto você precisa?
– Mil e quinhentos dourados temerianos, transferidos para a filial dos Cianfanelli em
Ellander, em favor do templo de Melitele.
– Considere feito. Eis uma transferência que me dá prazer: as remessas para templos são
livres de impostos. O que mais?
– Qual é a atual anualidade da escola em Aretusa?
Ciri aguçou os ouvidos.
– Mil e duzentas coroas novigradas – respondeu Giancardi. – No caso de alunas novas, é
preciso levar em conta cerca de duzentas coroas adicionais a título de taxa de matrícula.
– Que droga! Como ficou mais cara!
– Tudo ficou mais caro. Nada falta às alunas de Aretusa, que levam na escola uma vida de
princesas. E é delas que vive metade da cidade: alfaiates, sapateiros, doceiros,
fornecedores…
– Entendo. Deposite anonimamente na conta da escola de Aretusa duas mil coroas e
informe-a de que se trata da matrícula e da anualidade… para uma aluna.
O anão largou a pena, lançou um olhar para Ciri e sorriu. A garota, fingindo estar
concentrada no livro, ficou escutando atentamente.
– Algo mais, Yennefer?
– Mais trezentas coroas novigradas em espécie para mim. Vou precisar de pelo menos três
vestidos para o congresso em Thanedd.
– Para que vai precisar de dinheiro vivo? Vou lhe dar um cheque bancário de quinhentas
coroas. O preço dos tecidos importados também subiu drasticamente, e você não costuma
vestir-se com lã ou algodão. E, se precisar de alguma coisa para você ou para a futura aluna
da escola de Aretusa, minhas lojas e depósitos estão sempre a sua disposição.
– Obrigada. Que taxa de juros você vai me cobrar?
– Os juros – o anão ergueu a cabeça – você já pagou adiantado à família Giancardi,
Yennefer. Não vamos mais falar disso.
– Não gosto desse tipo de dívidas, Molnar.
– Nem eu. Mas sou um anão de negócios; sei o que é uma obrigação e reconheço seu valor.
Repito: não vamos mais falar disso. Considere resolvidos os negócios que você abordou,
assim como o negócio que você não abordou.
Yennefer ergueu as sobrancelhas.
– Um bruxo que é lhe bastante próximo – falou Giancardi, com um sorriso maroto – esteve
recentemente em Dorian. Fui informado de que ele teve de pegar cem coroas com o agiota
local. O agiota trabalha para mim. Considere tal empréstimo inexistente.
A feiticeira lançou um olhar na direção de Ciri e contorceu os lábios.
– Molnar – disse, com voz gélida –, não meta os dedos numa porta cujas dobradiças estão
quebradas. Duvido muito que ele continue me achando próxima dele, e, caso descubra a
liquidação da dívida, passará a me odiar de verdade. Afinal, você o conhece e sabe de sua
obsessão por sua honorabilidade. Há quanto tempo ele esteve em Dorian?
– Há uns dez dias. Depois, ele foi visto em Mangue Pequeno, de onde, segundo me
disseram, partiu para Hirundum a convite dos fazendeiros de lá. Como de costume, deve haver
um monstro para ser morto…
– E para matá-lo, como de costume, vão lhe pagar uma ninharia – a voz de Yennefer
tornou-se mais amena –, que, como de costume, mal bastará para pagar o tratamento médico
caso o monstro o fira. Como de costume. Se você realmente quer fazer algo por mim, Molnar,
então entre em contato com os fazendeiros de Hirundum e aumente o prêmio… para que ele
possa pelo menos se manter por algum tempo.
– Como de costume – murmurou Giancardi. – E se ele inteirar-se disso?
Yennefer fixou os olhos em Ciri, que agora escutava a conversa sem fingir interesse algum
pelo Physiologus.
– E quem poderia – escandiu a feiticeira lentamente – inteirá-lo de tal fato?
Ciri abaixou os olhos. O anão sorriu e alisou a barba.
– Antes de partir para Thanedd, você, por acaso, não passará por Hirundum? – indagou.
– Não. – Yennefer virou a cabeça. – Não passarei. Vamos mudar de assunto, Molnar.
Giancardi voltou a alisar a barba e lançou um olhar para Ciri, que abaixou a cabeça,
pigarreou e ficou se remexendo na cadeira.
– Você está certa – confirmou. – Está mais do que na hora de mudarmos de assunto. Mas
sua pupila está claramente entediada com o livro… e com nossa conversa. Além disso,
desconfio que os assuntos que vamos abordar a entediariam ainda mais… O destino do
mundo, o destino dos anões deste mundo, o destino de seus bancos… Essas questões devem
ser maçantes para uma jovem, futura aluna de Aretusa… Solte-a um pouco debaixo de suas
asas, Yennefer. Deixe que ela dê uma volta pela cidade.
– Eu adoraria! – exclamou a garota.
A feiticeira adotou um ar zangado e estava abrindo a boca para protestar quando
repentinamente mudou de ideia. Ciri não tinha certeza, mas teve a impressão de que a
inesperada mudança de atitude tinha algo a ver com a discreta piscadela que acompanhara a
proposta do banqueiro.
– Que a menina possa admirar a grandeza desta antiquíssima cidade que é Gors Velen –
acrescentou Giancardi, sorrindo abertamente. – Ela merece desfrutar um pouco de liberdade
antes de… Aretusa. Enquanto isso, nós dois ficaremos aqui conversando sobre assuntos…
humm… pessoais. Não, não estou propondo que a garota fique andando por aí sozinha, embora
a cidade seja muito segura. Vou providenciar para ela um companheiro e protetor, um de meus
funcionários mais jovens…
– Perdoe-me, Molnar – falou Yennefer, sem corresponder ao sorriso do banqueiro –, mas
não me parece que nos dias de hoje, mesmo numa cidade segura, a companhia de um anão…
– Nem me passou pela cabeça – respondeu Giancardi, ofendido – a ideia de um anão. O
funcionário ao qual me refiro é filho de um distinto comerciante, um homem com H maiúsculo,
se posso me expressar assim. Você achou que meus funcionários são todos anões? Ei, Wilfli!
Chame Fábio e diga-lhe que venha correndo!
A feiticeira aproximou-se de Ciri e se inclinou levemente.
– Ciri – disse. – Só não faça besteira alguma da qual eu acabe me envergonhando. E,
diante daquele funcionário, bico calado. Entendeu? Jure-me que vai tomar cuidado com o que
fará ou dirá. Não basta assentir com a cabeça. Juramentos são feitos em voz alta.
– Juro, dona Yennefer.
– Olhe de vez em quando para o sol. Quero você de volta ao meio-dia em ponto. E no caso
de… Não, duvido que alguém possa reconhecê-la. No entanto, se notar que alguém está
olhando com atenção para você… – A feiticeira enfiou a mão no bolso e retirou dele um
pequeno crisópraso no formato de uma clepsidra e coberto de runas. – Guarde-o na bolsinha.
E não o perca. Caso seja necessário… Você se lembra do conjuro? Ele tem de ser invocado
discretamente. Sua ativação produz um eco e o amuleto, quando ativado, emite ondas. Se
houver por perto alguém sensível à magia, você poderá ser descoberta, em vez de permanecer
oculta. Ah, sim, leve também isto… caso queira comprar alguma coisinha.
– Muito obrigada, dona Yennefer – agradeceu Ciri, colocando o amuleto e as moedas na
bolsinha e olhando com curiosidade para um garoto que entrou correndo no escritório.
O rapaz era sardento, com uma ondulante cabeleira castanha caindo-lhe sobre a alta gola
do uniforme de funcionário de banco.
– Fábio Sachs – apresentou-o Giancardi.
O rapaz curvou-se respeitosamente.
– Fábio, essa é dona Yennefer, nossa digníssima visitante e distinta cliente. E essa
senhorita, sua pupila, expressou o desejo de visitar a cidade. Você vai acompanhá-la e servir-
lhe de guia e protetor.
O rapaz inclinou-se mais uma vez, dessa vez ostensivamente na direção de Ciri.
– Ciri – falou Yennefer, em tom gélido. – Faça o favor de se levantar.
A garota levantou-se, um tanto espantada, uma vez que conhecia bem as normas de etiqueta
para saber que aquilo não era necessário. Entretanto, logo compreendeu a razão do pedido de
Yennefer. O funcionário, embora parecesse ter a mesma idade de Ciri, era uma cabeça mais
baixo do que ela.
– Molnar – disse a feiticeira. – Quem vai proteger a quem? Você não poderia delegar essa
função a alguém de dimensões mais adequadas?
O rapaz enrubesceu e lançou um olhar interrogativo ao presidente do banco. Giancardi
assentiu com a cabeça. O funcionário inclinou-se mais uma vez.
– Digníssima dama – falou em alto e bom som, sem embaraço algum. – Talvez eu não seja
grande, mas pode-se confiar em mim. Conheço esta cidade, seus subúrbios e as redondezas
como a palma de minha mão. Vou tomar conta dessa senhorita da melhor maneira que sei. E,
quando eu, Fábio Sachs Júnior, filho de Fábio Sachs, faço algo da melhor maneira que sei,
então… então muitos outros, mais altos do que eu, não serão capazes de chegar a meus pés.
Yennefer ficou olhando para ele por um momento, até se virar para o banqueiro.
– Parabéns, Molnar – afirmou. – Você sabe muito bem escolher seus auxiliares. Você terá
muito orgulho desse funcionário. Sua postura demonstra firmeza de caráter. Ciri, coloco você,
em plena confiança, sob a proteção de Fábio, filho de Fábio, pois se trata de um homem sério
em quem se pode confiar.
O rapaz enrubesceu até a raiz dos cabelos castanhos. Ciri sentiu que também estava
corando.
– Fábio – disse o anão, abrindo uma pequena caixinha decorada e mexendo em seu
interior. – Tome meio noble e três… dois décimos, caso a senhorita deseje algo. Se ela não
desejar, traga-os de volta. Pode ir.
– Ao meio-dia, Ciri – lembrou Yennefer. – Nem um minuto depois.
– Sei, sei.
– Eu me chamo Fábio – falou o rapaz assim que desceram as escadas e saíram para a rua
movimentada. – E você se chama Ciri, não é verdade?
– Sim.
– O que quer visitar em Gors Velen, Ciri? A rua principal? O beco dos ourives? O porto
marítimo? Ou talvez a praça central com o mercado?
– Tudo.
– Hummm… – O jovem parecia preocupado. – Temos de estar de volta a meio-dia…
Portanto, o melhor será irmos até o mercado. Hoje é dia de feira e poderemos ver muitas
coisas interessantes! Mas, antes, vamos subir na muralha, da qual é possível ver toda a baía e
a famosa ilha de Thanedd. O que você acha?
– Vamos à muralha.
Na rua, carroças moviam-se com estrépito, cavalos e bois deslocavam-se em todas as
direções, tanoeiros rolavam barris… Por toda parte havia pressa e barulho. Ciri, ligeiramente
atordoada com tanta movimentação e gritaria, deu um passo em falso e saiu da calçada de
madeira, afundando até os tornozelos numa mistura de lama com esterco espalhada junto do
meio-fio. Fábio quis ajudá-la segurando-lhe o braço, mas ela livrou-se rapidamente.
– Sei andar sozinha!
– Hummm… Estou vendo… Então vamos. Este lugar onde estamos é a rua principal da
cidade. Chama-se Kardo e liga os dois portões: o Principal e o Marítimo. Este caminho leva
até o prédio da prefeitura. Está vendo aquela torre com um galo dourado no topo? É a
prefeitura. E lá, debaixo daquela placa colorida, fica a pousada Sob o Espartilho Desatado.
Mas… hummm… não iremos para lá. Em vez disso, vamos tomar um atalho passando pela
feira de peixes que fica na rua do Rodeio.
Dobraram num beco e saíram diretamente numa pracinha espremida entre as paredes das
casas. Ali havia muitas barracas, barris e cubas, dos quais recendia um forte cheiro de peixe.
Renhidas barganhas estavam sendo travadas, com compradores e vendedores tentando fazer
sobressair a voz aos gritos das gaivotas circulando no céu. Junto da muralha, alguns gatos
fingiam não estar nem um pouco interessados nos peixes.
– Sua tutora – falou Fábio repentinamente, esgueirando-se por entre as barracas – é muito
rigorosa.
– Sei disso.
– Dá para perceber ao primeiro olhar que ela não é sua parenta.
– É mesmo? Por quê?
– Porque ela é muito linda – respondeu Fábio, com a cruel e inocente sinceridade tão
própria da juventude.
Ciri virou-se como movida por uma mola, mas, antes de conseguir fazer qualquer
comentário desabonador a Fábio referente a suas sardas ou a sua altura, o garoto já a puxava
por entre carroças, tonéis e barracas. Ao mesmo tempo, falava sem parar da torre Ladrona,
erguida na pracinha, do fato de as pedras usadas em sua construção provirem do fundo do mar
e de as árvores que cresciam a seu redor serem chamadas de plátanos.
– Estou achando você muito calada, Ciri – afirmou repentinamente.
– Eu? – A garota fingiu espanto. – Nada disso! Estou simplesmente ouvindo com atenção o
que você conta. Você é um guia excelente, sabia? Eu queria lhe perguntar…
– Pergunte à vontade.
– Onde fica a cidade de Aretusa? Muito longe daqui?
– De jeito nenhum! Porque Aretusa não chega a ser uma cidade. Vamos subir na muralha e
vou lhe mostrar. Por aqui, subindo estas escadas.
A muralha era alta, e as escadas, íngremes. Fábio ficou suado e arfante, o que não era de
espantar, já que não cessara de falar por um só instante. Ciri foi informada de que a muralha
em torno de Gors Velen era uma construção muito mais recente do que a cidade em si, erguida
ainda por elfos, que tinha trinta e cinco pés de altura e fora erguida com a técnica opus
quadratum, usando uma mistura de pedras aparelhadas e tijolos crus, pois tal material era
mais resistente aos golpes de aríetes.
Uma vez no topo, os dois jovens foram saudados por uma refrescante brisa marinha. Após
o espesso e imóvel ar da cidade, Ciri aspirou com prazer. Apoiou os cotovelos na borda da
muralha e ficou olhando para o porto, colorido por velas de barcos.
– O que é aquilo, Fábio? Aquela montanha?
– A ilha de Thanedd.
A ilha parecia estar muito próxima e não tinha a aparência de uma ilha. Parecia um
gigantesco bloco de pedra emergindo do fundo do mar, um enorme zigurate rodeado de
caminhos espirais com zigue-zagues de escadas e terraços. Os terraços esverdeavam com
bosques e jardins e, do meio daquele verde todo, coladas às rochas como ninhos de
andorinhas, emergiam brancas torrinhas pontudas e lindas cúpulas, formando uma guirlanda de
construções cercadas de colunatas. As edificações não davam a impressão de terem sido
construídas; parecia que haviam sido lavradas nas escarpas da montanha marítima.
– Isso tudo foi construído por elfos – esclareceu Fábio –, dizem que com a ajuda da magia
élfica. No entanto, Thanedd pertence aos feiticeiros desde tempos imemoriais. Junto do topo,
lá onde brilham aquelas cúpulas, fica o palácio de Garstang. É lá que em poucos dias terá
início o grande congresso dos magos. E ainda mais acima, bem no cume, aquela solitária torre
com ameias é Tor Lara, a Torre da Gaivota.
– Dá para chegar lá por terra? Parece ficar tão pertinho…
– Dá. Uma ponte liga a margem da baía à ilha. Não podemos enxergá-la porque está
encoberta por árvores. Está vendo aqueles telhados vermelhos na base da montanha? Aquilo é
o palácio de Loxia. Somente através de Loxia é possível acessar os caminhos que levam aos
terraços superiores…
– E lá, onde estão aquelas lindas colunatas, pontezinhas e jardins? Como aquilo consegue
ficar preso à parede da rocha sem desabar… Que palacete é aquele?
– É precisamente Aretusa, sobre a qual você perguntou. É ali que fica a famosa escola
para jovens feiticeiras.
– Ah – murmurou Ciri, passando a língua pelos lábios. – Quer dizer que é lá… Fábio,
você costuma ver de vez em quando as jovens feiticeiras que estudam naquela escola? Na tal
Aretusa?
O rapaz olhou para ela, com visível espanto.
– Nunca! Ninguém as vê jamais! Elas estão proibidas de sair da ilha e entrar na cidade. E,
quanto ao terreno da escola, ninguém tem acesso a ele. Quando o prefeito ou o aguazil têm
alguma questão a resolver com as feiticeiras, só podem chegar até Loxia. Ao nível mais baixo.
– Foi o que pensei – falou Ciri, meneando a cabeça, com os olhos fixos nos brilhantes
telhados de Aretusa. – Aquilo lá não é uma escola, mas uma cadeia. Numa ilha, num rochedo,
à beira de um precipício. Uma prisão e tanto.
– Você não deixa de ter um pouco de razão – admitiu Fábio, após um momento de reflexão.
– É muito difícil sair de lá… Mas aquilo não é uma prisão. As alunas são jovens donzelas e é
preciso protegê-las.
– De quem?
– Be… bem… – gaguejou o rapaz. – Você sabe…
– Não, não sei.
– Hummm… Eu acho… Ora, Ciri, afinal de contas ninguém as mantém na escola à força.
São elas que querem…
– Obviamente. – Ciri sorriu com coqueteria. – Se querem, então cumprem pena naquela
prisão. Caso não quisessem, não permitiriam ser trancadas lá dentro. Basta dar no pé antes de
ser trancada, porque depois poderá ser difícil…
– Difícil o quê? Fugir? E para onde elas poderiam…
– Elas – interrompeu-o Ciri – certamente não teriam para onde fugir, pobrezinhas. Fábio,
onde fica a cidade de Hirundum?
O rapaz olhou para ela, surpreso.
– Hirundum não é uma cidade – falou. – É uma enorme fazenda com pomares e hortas que
fornecem frutas e verduras para todas as cidades da região. Há ali também diversos lagos, nos
quais são criadas carpas e outras espécies de peixes…
– Quão longe fica Hirundum? Em que direção? Mostre-me.
– E por que você quer saber isso?
– Mostre-me, já lhe pedi.
– Está vendo esse caminho que leva para o oeste? Lá, onde há muitas carroças? É por ele
que se vai até Hirundum. Deve distar umas quinze milhas, todo o tempo através de florestas.
– Quinze milhas – repetiu Ciri. – Não é tão longe assim quando se tem um bom cavalo…
Muito obrigada, Fábio.
– Você me agradece por quê?
– Não importa. Agora, leve-me ao mercado. Você prometeu.
– Vamos.
Ciri jamais presenciara um aperto e um bulício semelhantes aos que reinavam no mercado
de Gors Velen. Em comparação a ele, a barulhenta feira de peixes pela qual passaram havia
pouco dava a impressão de um templo silencioso. Apesar de a praça ser realmente gigantesca,
pareceu-lhe que poderiam olhar para ela de longe, porque a ideia de conseguir chegar à área
do mercado era inimaginável. No entanto, Fábio mergulhou corajosamente no turbilhão de
pessoas, puxando-a pela mão. Ciri chegou a ficar tonta.
Vendedores gritavam a plenos pulmões, compradores gritavam ainda mais alto e crianças
perdidas no meio da multidão berravam e uivavam. Vacas mugiam, ovelhas baliam, aves
cacarejavam e grasnavam. Artífices anões batiam violentamente com seus martelos em chapas
de metal e, quando interrompiam a tarefa para tomar um trago, ficavam praguejando em alto e
bom som. De alguns pontos da praça emanavam agudos sons de pífaros e saltérios; eram os
locais nos quais toda sorte de vagabundos e músicos viajantes fazia suas apresentações. Para
piorar ainda mais a algazarra, alguém invisível no meio da turba soprava incessantemente uma
trombeta de latão. Era evidente que não se tratava de um músico.
Ciri esquivou-se de um porco que passou correndo por ela guinchando horrivelmente e
caiu sobre uma pilha de gaiolas com galinhas. Ao se erguer, pisou em algo que era mole e que
miou. Deu um pulo para trás e quase foi atropelada pelos cascos de uma enorme, fedorenta e
asquerosa besta que abria caminho empurrando as pessoas com seus flancos peludos.
– O que era aquilo? – gemeu, recuperando o equilíbrio.
– Um camelo. Não precisa ter medo.
– Imagine! Não estou com medo!
Ciri olhou em volta com curiosidade. Ficou admirando o trabalho dos ananicos que
fabricavam belos odres com pele de bode. Encantou-se com as lindas bonecas oferecidas
numa barraca por um casal de meios-elfos. Avaliou diversos artefatos de malaquita e jaspe
expostos à venda por um soturno e monossilábico gnomo. Com grande interesse e
conhecimento de causa, examinou as espadas na barraca do armeiro. Observou jovens artesãs
tecendo cestos de vime, chegando à conclusão de que não havia nada pior do que o trabalho.
O homem que soprava a trombeta parara de soprar. Provavelmente alguém o havia matado.
– O que é isso que cheira tão gostoso?
– Sonhos – disse Fábio, tateando a bolsa com as moedas. – Você gostaria de comer um?
– Gostaria de comer dois.
O vendedor entregou três sonhos, pegou um dos décimos e deu de troco quatro patacas,
quebrando ao meio uma delas. Ciri, que a essa altura já havia recuperado a autoconfiança,
observava a operação de quebramento, devorando avidamente o primeiro sonho.
– É daí – perguntou, começando a comer o segundo – que vem a expressão “de meia-
pataca”?
– Sim – respondeu Fábio, engolindo o resto de seu sonho. – Afinal, não existe moeda
menor do que uma pataca. De onde você veio não se usa meia-pataca?
– Não – falou Ciri, lambendo os dedos. – De onde eu vim usam-se ducados de ouro. Além
disso, esse quebra-quebra foi totalmente desnecessário.
– Por quê?
– Porque tenho vontade de comer mais um sonho.
Os sonhos recheados com geleia de ameixa funcionaram como um elixir mágico. Ciri
recuperou o bom humor, e a multidão a sua volta deixou de assustá-la; ao contrário, até
começou a lhe agradar. Não permitiu mais que Fábio a conduzisse pelo braço, puxando-o ela
mesma para onde o aperto era ainda maior, um lugar no qual alguém discursava sobre um
improvisado tablado de barris. O orador era um gordão avançado em anos. Pelo crânio
raspado e pelo gibão cinzento, Ciri reconheceu logo que se tratava de um sacerdote viajante.
Já os vira visitando o templo de Melitele, em Ellander. Mãe Nenneke nunca os chamava
diferentemente de “aqueles idiotas fanáticos”.
– Só há uma lei no mundo! – berrava o gordo sacerdote. – A lei divina! Toda a natureza é
subordinada a ela, toda a terra e tudo o que na terra vive! Já os encantos e magias são
contrários a essa lei! Portanto, os feiticeiros são seres malditos, e aproxima-se o dia da fúria
no qual o fogo do céu destruirá sua maldita ilha! Então, desabarão as muralhas de Loxia,
Aretusa e Garstang, detrás das quais aqueles pagãos estão se juntando neste momento para
planejar seus feitos nefastos. Desabarão essa muralhas…
– E vai ser preciso, puta merda, erguê-las de novo – rosnou perto de Ciri um pedreiro
vestido com um casaco chapiscado de argamassa.
– Lembro-lhes, gente boa e pia – berrava o sacerdote –, não acreditem nos feiticeiros, não
os procurem em busca de conselhos ou ajuda! Não se iludam com sua bela postura nem com
fala fluida, pois na verdade lhes digo que os feiticeiros são como túmulos polidos: lindos por
fora, mas cheios de podridão e de ossos transformados em pó por dentro!
– Olhem só para ele – falou uma jovem segurando um cesto cheio de cenouras –, como
enche a boca para falar. Late contra os magos porque tem inveja deles. Nada mais do que isso.
– É isso mesmo – confirmou o pedreiro. – Olhe para ele: sua cabeça é tão lisa como um
ovo e sua barriga cai sobre seus joelhos. Enquanto isso, os feiticeiros são bem-apessoados,
não engordam e não ficam calvos. E as feiticeiras… formosuras em pessoa.
– Porque venderam a alma ao diabo para ter essa formosura – gritou um homem baixinho
com um martelo de sapateiro enfiado no cinto.
– Como você é tolo, seu cola-solas. Se não fossem as gentis damas de Aretusa, você não
iria longe com suas bolsas de couro! É graças a elas que você tem o que comer.
Fábio puxou Ciri pela manga e ambos mergulharam de volta no meio da multidão, que os
levou na direção do centro da praça. Ouviram o rufo de um tambor e ameaçadores gritos
ordenando silêncio. A turba não demonstrava disposição alguma de se calar, mas tal fato não
parecia incomodar o arauto parado sobre um estrado de madeira. Possuía uma voz possante e
bem treinada e sabia fazer bom uso dela.
– Que seja de conhecimento de todos – urrou, enquanto desenrolava um pergaminho – que
Hugo Ansbach, de origem ananica, é considerado um fora da lei por ter abrigado em sua casa
por uma noite um grupo de malfeitores elfos que se denominam Esquilos. Da mesma forma é
considerado o ferreiro Justin Ingvar, de origem anã, que fabricou pontas de flecha para os
citados facínoras. O prefeito lança uma busca a ambos e ordena que todos se envolvam em sua
perseguição. Quem os apanhar receberá um prêmio de cinquenta coroas em dinheiro vivo. De
outro lado, todo aquele que alimentá-los ou lhes der guarita será considerado cúmplice e
sofrerá a mesma pena imposta a eles. E, se forem encontrados num distrito ou num vilarejo,
todo o distrito ou vilarejo deverá pagar…
– E quem daria – gritou alguém do meio da multidão – guarita a um ananico ou a um anão?
Procurem nas fazendas deles mesmos e, quando os encontrarem, levem todos os inumanos para
as masmorras.
– Para o cadafalso, não as masmorras!
O arauto continuou anunciando mais declarações do prefeito do Conselho Municipal, mas
Ciri perdeu o interesse. Estava a ponto de sair do meio da multidão quando sentiu
repentinamente seu traseiro ser apalpado por uma mão nada casual, ousada e bastante
desembaraçada.
Parecia que o grande número de pessoas espremidas a sua volta impedia Ciri de se virar,
mas ela aprendera em Kaer Morhen como se mexer em lugares nos quais se mover era difícil.
Virou-se, causando algum tumulto. Um jovem sacerdote de cabeça raspada dirigiu-lhe um
sorriso arrogante e claramente já praticado em outras ocasiões. “E então”, dizia aquele
sorriso, “o que você vai fazer agora? Vai enrubescer lindamente e nada mais, não é isso?”
– Mantenha as patas junto do corpo, seu careca! – gritou Ciri, pálida de raiva. – Apalpe o
próprio traseiro, seu… seu túmulo polido!!!
Aproveitando-se do fato de o sacerdote não poder se mexer, Ciri decidiu dar-lhe um
pontapé, porém Fábio se meteu entre eles e puxou-a para longe. Vendo que Ciri tremia de
raiva, acalmou-a comprando-lhe uma porção de pastéis doces polvilhados com açúcar de
confeiteiro, cuja visão a fez esquecer por completo o incidente. Pararam perto de uma barraca,
de onde tinham uma visão do cadafalso e do pelourinho. Não havia ninguém atado ao
pelourinho e todo o cadafalso estava decorado com guirlandas de flores, servindo de palco
para artistas itinerantes que, vestidos como papagaios, faziam ranger rabecas e sopravam
pífanos e gaitas de foles. Uma jovem morena com uma samarra adornada com lantejoulas
cantava e dançava, agitando um pandeiro e sapateando alegremente com suas pequenas
botinas.
– Até que enfim! – alegrou-se Margarita, não se sabia se com a visão de Ciri ou da garrafa
que ela trazia nas mãos.
Ciri colocou a garrafa na mesinha, sem dúvida de maneira inadequada, já que Tissaia de
Vries corrigiu-a imediatamente. Ao se servir, Yennefer tirou da ordem toda a arrumação das
taças, e Tissaia se viu forçada a intervir mais uma vez. Ciri ficou imaginando com horror
como Tissaia era como professora.
Yennefer e Margarita retomaram o assunto que estavam discutindo anteriormente. Para
Ciri, estava claro que muito em breve teria de ir buscar mais uma garrafa. Imersa em seus
pensamentos, ficou escutando a conversa das feiticeiras.
– Não, Yenna – disse Margarita, meneando a cabeça. – Pelo jeito, você não está a par das
últimas novidades. Rompi com Lars. Tudo acabado. Elaine deireádh, como dizem os elfos.
– E é por isso que você quer ficar de porre?
– Entre outros motivos – confirmou Margarita Laux-Antille. – Não posso negar que estou
triste. Afinal, estivemos juntos por quatro anos. Mas tive de romper com ele. Daquele saco
não ia sair farinha…
– Principalmente – bufou Tissaia de Vries, com os olhos fixos no vinho dourado que se
balançava na taça – por Lars ser casado.
– Pois saiba – respondeu Margarita, dando de ombros – que isso era algo que não tinha a
mínima importância. Todos os homens bem-apessoados na faixa de idade que me interessa são
casados, e não posso fazer nada para remediar tal situação. Lars me amava, assim como eu
achei que o amava durante certo tempo… Ah, não há o que dizer. Ele queria demais. Ameaçou
minha liberdade, e passo mal só de pensar em monogamia. Além disso, tomei você como
exemplo, Yenna. Está lembrada daquela conversa que tivemos em Vengerberg? Quando você
decidiu romper com seu bruxo? Naquela ocasião, eu a aconselhei a pensar duas vezes, dizia
que amor é algo que não se acha na rua. No entanto, você estava certa. Amor é amor, e vida é
vida. O amor passa…
– Não dê ouvidos a ela, Yennefer – falou Tissaia friamente. – Ela está amargurada e cheia
de tristeza. Sabe por que ela não vai ao banquete em Aretusa? Porque está com vergonha de
aparecer sozinha, sem o homem com o qual a associavam nos últimos quatro anos e que ela
perdeu por não ter sabido valorizar suficientemente seu amor por ela.
– Que tal mudarmos de assunto? – sugeriu Yennefer, aparentemente despreocupada, mas
com a voz um tanto alterada. – Ciri, sirva-nos mais vinho. Que merda! Essas garrafas são
muito pequenas. Seja gentil e traga mais uma.
– Traga duas – riu Margarita. – Como recompensa, você poderá tomar um gole e sentar-se
conosco, evitando assim todo esse esforço para escutar nossa conversa de longe. Sua
educação vai iniciar-se aqui, neste momento, antes mesmo de você vir a ter comigo em
Aretusa.
– Educação! – Tissaia ergueu os olhos para o céu. – Oh, deuses!
– Fique quieta, querida mestra – disse Margarita, batendo com a mão na coxa úmida e
fingindo estar zangada. – Agora sou eu a reitora da escola! Você não conseguiu me reprovar no
exame final!
– Sinto muito.
– Pois saiba que eu também. Teria agora clientes particulares, como Yenna, e não
precisaria sofrer com as calouras, não teria de assoar o nariz das choronas nem brigar com as
duronas. Ciri, ouça-me e aprenda. Uma feiticeira sempre deve agir. Se bem ou mal, isso pode
ser avaliado mais tarde, mas é preciso agir, agarrando ousadamente a vida pelos cornos.
Acredite-me, pequena: lamentam-se exclusivamente o ócio, a dúvida e a indecisão. A ação e a
decisão podem às vezes trazer tristeza e pena, porém nunca o arrependimento. Olhe para essa
dama tão séria sentada ali, fazendo caretas e corrigindo pedantemente tudo o que pode. É
Tissaia de Vries, uma arquimaga que educou dezenas de feiticeiras, ensinando-lhes que é
preciso agir sempre. Que a indecisão…
– Pare, Rita.
– Tissaia tem razão – falou Yennefer, com os olhos fixos num canto da sala de banhos. –
Pare. Sei que você está triste por causa de Lars, mas não transforme isso em lições de vida. A
menina tem ainda muito tempo pela frente para tal tipo de lições. E não será na escola que ela
vai aprendê-las. Ciri, vá buscar mais uma garrafa.
Ciri ergueu-se. Estava já completamente vestida.
E totalmente decidida.
– O quê?! – gritou Yennefer. – O que você quer dizer com “ela partiu”?
– Ela… ordenou… – gaguejou o albergueiro, empalidecendo e recuando até encostar na
parede. – Ela ordenou que fosse selado um cavalo…
– E você obedeceu? Não lhe passou pela cabeça nos consultar?
– Digníssima dama! Como eu poderia saber? Estava certo de que ela partia obedecendo a
uma ordem de uma das senhoras… Nem me passou pela cabeça a ideia de…
– Seu idiota maldito!
– Calma, Yennefer – falou Tissaia, pondo a mão na testa. – Não ceda a emoções. É noite.
Ninguém permitirá que ela passe pelos portões da cidade.
– Ela mandou – sussurrou o albergueiro – que lhe fosse aberta a poterna…
– E você a abriu?
– Por causa desse congresso – o albergueiro abaixou os olhos – a cidade está repleta de
feiticeiros… As pessoas os temem; ninguém tem coragem de se indispor com eles… Como eu
poderia lhe negar? Ela se expressava exatamente como as senhoras, igualzinho… com o
mesmo tom de voz… e com o mesmo olhar. Ninguém ousou sequer olhar para seus olhos…
Ela era exatamente como as senhoras… Ordenou que lhe trouxessem pena e tinta… e escreveu
uma carta.
– Passe-a para cá!
Tissaia de Vries foi mais rápida.
– “Dona Yennefer!” – leu em voz alta. – “Perdoe-me. Parti para Hirundum, porque quero
me encontrar com Geralt. Quero vê-lo antes de entrar na escola. Perdoe-me a desobediência,
mas eu preciso. Sei que a senhora vai me punir, porém não quero me lamentar por ter sido
indecisa e hesitante. Se tiver de me lamentar de algo, que seja pela ação e pela decisão. Sou
uma feiticeira. Agarro a vida pelos cornos. Voltarei assim que puder. Ciri.”
– Isso é tudo?
– Há ainda um P.S.: “Diga à dona Rita que, quando eu estiver na escola, ela não terá de
assoar meu nariz.”
Margarita Laux-Antille meneou a cabeça com estupefação, enquanto Yennefer soltava um
palavrão. O albergueiro enrubesceu e abriu a boca. Ouvira muitos palavrões na vida, mas
igual àquele jamais.
O vento soprava da terra para o mar. Ondas de nuvens avançaram até a lua, pendendo
sobre a floresta. A estrada para Hirundum mergulhou na escuridão. O galope tornou-se
excessivamente perigoso. Ciri reduziu a velocidade do cavalo, passando a trote. A ideia de
cavalgar a passo nem lhe passou pela cabeça. Estava com pressa.
Podia ouvir, ao longe, o retumbar de uma tempestade aproximando-se; de tempos em
tempos, o horizonte era iluminado por raios, fazendo emergir da escuridão os dentes da serra
formada pelas copas das árvores.
Ciri deteve o cavalo. Chegara a uma bifurcação na qual ambos os trechos pareciam
idênticos.
“Por que Fábio não me disse nada a respeito da bifurcação?”, pensou. “Mas não faz mal.
Afinal, eu nunca me perco; sempre sei aonde ir ou em que lugar cavalgar… Portanto, por que
agora não saberia para que lado virar?”
Uma enorme forma passou voando silenciosamente sobre sua cabeça. Ciri sentiu o coração
subir até a boca. O cavalo relinchou, empinou-se e partiu a galope, escolhendo o trecho
direito da bifurcação. A garota conseguiu detê-lo com dificuldade.
– Aquilo foi uma simples coruja – sussurrou, tentando acalmar tanto a si como ao cavalo.
– Apenas uma ave… Não há motivo para ter medo…
O vento foi ficando cada vez mais forte, e as escuras nuvens tamparam a lua por completo.
No entanto, mais à frente, na perspectiva da estrada, numa fresta da floresta, havia claridade.
Ciri acelerou a marcha, com a areia saltando debaixo dos cascos do cavalo.
Teve de parar em pouco tempo. Diante dela, encontravam-se uma ravina e a imensidão do
mar, do qual emergia o familiar cone da ilha. Do lugar onde estava, não era possível ver as
luzes de Garstang, Loxia nem Aretusa. Via-se somente a solitária, esbelta e ornada torre de
Thanedd.
Tor Lara.
Retumbou um trovão. No momento seguinte, um cegante feixe de luz ligou o céu enevoado
com o topo da torre. Tor Lara olhou para ela com os olhos vermelhos de suas janelas, dando a
impressão de que por uma fração de segundo brilhara um fogo no interior da torre.
“Tor Lara… A Torre da Gaivota… Por que ela desperta tanto pavor em mim?”
O vento sacudiu as árvores, fazendo estalar seus ramos. Ciri semicerrou os olhos; poeira e
pequenas folhas ressecadas bateram em seu rosto. Virando o enfurecido e saltitante cavalo, a
garota recuperou o sentido de orientação. A ilha de Thanedd ficava ao norte, e ela precisava
cavalgar na direção do poente. A arenosa estrada era claramente visível na penumbra. Ciri
retornou ao galope.
Trovejou novamente e, à luz do relâmpago, a garota viu diversas silhuetas escuras, mal
distintas e agitadas em ambos os lados da estrada. Ouviu um grito.
– Gar’ean!
Sem perder um segundo, Ciri empinou o cavalo, puxou as rédeas, girou o corcel na
direção oposta e partiu a pleno galope. Atrás de si, gritos, assovios, relinchos e tropel de
cavalos.
– Gar’ean! Dh’oine!
Galope, barulho de cascos, vento no rosto. Escuridão, no meio da qual ficam para trás
brancos troncos de bétulas. Mais um estrondo, seguido por um relâmpago, à luz do qual Ciri
vê dois cavaleiros tentando bloquear o caminho. Um deles estende o braço para agarrar a
brida. Seu gorro é adornado com uma cauda de esquilo. A garota cutuca os flancos do cavalo
com os calcanhares e gruda no pescoço do animal. Atrás dela ecoam gritos, assovios,
estrondos de trovão. Um relâmpago.
– Spar’le Yaevinn!
A galope, a galope! Mais rápido, cavalinho! Um trovão. Um relâmpago. Uma bifurcação.
Para a esquerda! Eu nunca me perco! Mais uma bifurcação. À direita! A galope, cavalinho!
Mais rápido, mais rápido!
O caminho começa a subir. Nuvens de areia saltam sob os cascos. O cavalo, apesar de
cada vez mais instigado, diminui a velocidade. Chegando ao topo da elevação, Ciri se vira. O
relâmpago seguinte ilumina a estrada recém-percorrida; está deserta. A garota aguça os
ouvidos, mas escuta apenas o sussurro do vento entre as folhas. Troveja.
Aqui não há ninguém. Os Esquilos são apenas lembranças de Kaedwen. A Rosa de
Shaerrawedd… Aquilo tudo foi apenas uma miragem. Aqui não há vivalma, ninguém me
persegue…
Acabei me perdendo.
Um relâmpago. À luz dele brilha a superfície do mar, tendo por fundo o escuro cone da
ilha de Thanedd. E Tor Lara. A Torre da Gaivota. Uma torre que atrai como um magneto…
Mas eu não quero ir até aquela ilha. Estou a caminho de Hirundum. Porque preciso ver Geralt.
Um novo relâmpago.
Entre ela e a ravina há um cavalo negro como a noite e, montado nele, um cavaleiro com o
elmo adornado com asas de ave de rapina. As asas se agitam repentinamente, e a ave prepara-
se para alçar voo.
Cintra!
Um medo paralisante. Mãos doloridas de tanto apertar as rédeas. Um relâmpago. O
cavaleiro negro empina sua montaria. No lugar do rosto, uma máscara espectral. As asas se
agitam…
O cavalo parte a galope sem ser incentivado. Escuridão rompida vez por outra por
relâmpagos. A floresta está acabando. Sob os cascos, marulho e chapes de lama. A suas
costas, o rufar de asas da ave de rapina. Cada vez mais próximo… Mais próximo…
Galope estabanado, olhos marejados de lágrimas por causa do vento. Relâmpagos rasgam
o céu, e a sua luz Ciri vê amieiros e chorões em ambos os lados do caminho. No entanto, não
se trata de árvores. São servos do Rei dos Amieiros. Servos do cavaleiro negro que galopa a
suas costas, com as asas de ave de rapina farfalhando em seu elmo. Monstros disformes dos
dois lados da estrada estendem na direção de Ciri seus braços tuberculoides, soltando risadas
selvagens e abrindo as negras bocarras de seu oco. Ela se deita no pescoço do cavalo. Os
ramos zumbem, batem em seu corpo, agarram-se a sua roupa. Troncos sem forma estalam,
tocas abrem-se e fecham-se, rindo desbragadamente…
A Leoazinha de Cintra! Criança de Sangue Antigo!
O cavaleiro negro está bem atrás dela. Ciri sente a mão dele tentando agarrar seus
cabelos. Incitado por gritos, o cavalo parece voar, salta sobre um obstáculo invisível, quebra
com estalos os galhos, tropeça…
Ciri puxa as rédeas, inclina-se na sela e faz o arfante animal dar meia-volta. Solta um grito
alto e furioso. Saca a espada da bainha e gira-a sobre a cabeça. Não estamos mais em Cintra!
Não sou mais uma criança! Não estou mais desarmada! Não vou permitir…
– Não vou permitir! Não deixarei que você me toque novamente! Você nunca mais tocará
em mim!
Com um estrondo, o cavalo entra numa poça de água que lhe chega até a barriga. Ciri
inclina-se, grita, cutuca a montaria com os calcanhares e consegue subir num dique. “Lagos”,
pensou. “Fábio me falou de lagos nos quais são criados peixes… Devo ter chegado a
Hirundum. Eu nunca me perco…”
Um relâmpago. Atrás dela, um dique e, mais ao longe, a negra parede de uma floresta
cravada no céu como uma serra. E ninguém. Apenas o silêncio interrompido pelo uivo do
vento. Mais ao longe ainda, no meio dos pântanos, grasna um pato apavorado.
Ninguém. Não há vivalma no dique. Ninguém está me perseguindo. Aquilo foi uma ilusão,
um pesadelo. Lembranças de Cintra. Foi tudo imaginação minha.
Ao longe, uma luzinha. Um farol. Ou uma chama. Deve ser uma fazenda. Hirundum está
perto. Falta ainda mais um pequeno esforço…
Relâmpagos. Um, dois, três. O vento cessa repentinamente. O cavalo relincha, agita a
cabeça, empina.
No escuro céu surge uma faixa leitosa cada vez mais clara, contorcendo-se como uma
serpente. O vento volta a soprar nos chorões, erguendo no dique uma nuvem de folhas e
gramas ressecadas.
A distante luzinha some. Funde-se e transforma-se em bilhões de azulados pontinhos de
luz, fazendo repentinamente brilhar e arder toda a área pantanosa. O cavalo relincha, arfa,
mexe as patas sobre o dique como que enlouquecido. Ciri tem dificuldade em se manter na
sela.
No meio da faixa luminosa, surgem indistintas silhuetas de cavaleiros parecendo saídos de
um pesadelo. Estão cada vez mais perto e tornam-se cada vez mais visíveis. Seus elmos estão
adornados com cornos de búfalos e penachos desgastados, debaixo dos quais se veem
caveiras esbranquiçadas. Os cavaleiros estão montados em esqueletos de cavalos cobertos
por mantas esfarrapadas. Um vento feroz uiva por entre salgueiros, enquanto relâmpagos
cortam incessantemente o negro céu com suas lâminas reluzentes. O vento canta cada vez mais
forte. Não, não é o vento; é um coro espectral.
A pavorosa cavalgada vira-se, partindo na direção de Ciri. Cascos de cavalos espectrais
esmagam os pontos de fogo-fátuo emanantes do pântano. À testa da cavalgada, galopa o Rei da
Perseguição. Um pontudo elmo enferrujado balança sobre a caveira, em cujas cavidades
oculares parece arder um fogo arroxeado. A capa em farrapos farfalha ao vento. Na
enferrujada cota de malha, tamborila um colar, vazio como palha de trigo debulhado. Outrora,
era incrustado de pedras preciosas, mas as pedras caíram durante a selvagem cavalgada pelo
céu e tornaram-se estrelas…
Isto não é verdade! Isto não existe! Trata-se de um pesadelo, uma ilusão, um devaneio!
O Rei da Perseguição freia o cavalo-esqueleto e explode numa selvagem e aterrorizante
gargalhada.
– Criança de Sangue Antigo! Você pertence a nós! Você é nossa! Junte-se ao cortejo, junte-
se a nossa Perseguição! Vamos galopar até o fim, até a eternidade, até o limite da existência!
Você é nossa, menina de olhos como estrelas, filha do Caos! Junte-se a nós e conheça a alegria
da Perseguição! Você é nossa, é uma de nós! Seu lugar é no meio de nós!
– Não! – grita Ciri. – Sumam de minha frente! Vocês são cadáveres!
O Rei da Perseguição ri, os apodrecidos dentes batendo sobre a gola da armadura
enferrujada. As cavidades da caveira brilham, arroxeadas.
– Sim, nós somos cadáveres. Mas você é a morte em si.
Ciri colou-se ao pescoço de seu cavalo. Não precisou açulá-lo. O animal, sentindo-se
perseguido por fantasmas, corria sobre o dique a pleno galope.
A casa estava vazia. O ananico e toda a sua família foram trabalhar no campo assim que
raiou o sol. Ciri, que fingia estar dormindo, ouviu Geralt e Yennefer saírem. Livrou-se dos
lençóis, vestiu-se o mais rápido que pôde e saiu silenciosamente do quarto, indo atrás deles
para o pomar.
Geralt e Yennefer foram até o dique entre os lagos brancos e amarelos de tantos nenúfares.
Ciri escondeu-se detrás de um muro em ruínas e ficou espreitando-os por uma brecha. Achava
que Jaskier, o famoso poeta cujos versos ela lera mais de uma vez, ainda estivesse dormindo.
No entanto, estava enganada. Jaskier não estava dormindo e pegou-a em flagrante.
– E então – falou, aproximando-se repentinamente e sorrindo de maneira zombeteira. –
Você acha bonito espreitar e ficar escutando a conversa dos outros? Tenha mais discrição,
minha pequena. Permita que eu fique um pouco a seu lado.
Ciri enrubesceu, mas logo recuperou a compostura.
– Em primeiro lugar, não sou pequena – respondeu rudemente. – E, em segundo, não os
estou molestando, estou?
Jaskier ficou sério.
– Acho que não – disse. – Tenho a impressão de que você até os está ajudando.
– O quê? De que modo?
– Pare de fingir. O que você fez ontem foi muito esperto, mas não conseguiu me enganar.
Você fingiu que desmaiou, não é verdade?
– É verdade – rosnou Ciri, virando o rosto. – Dona Yennefer se deu conta daquilo, mas
Geralt não…
– Ambos a carregaram para a casa. Suas mãos se tocaram. Eles ficaram sentados à beira
de sua cama a noite toda, porém não trocaram uma palavra sequer. Somente agora resolveram
ter uma conversa. Lá, naquele dique sobre o lago. E você decidiu escutar o que eles têm a
dizer um ao outro… E espreitá-los pela fenda no muro. Você faz muita questão de saber o que
eles estão fazendo ali?
– Eles não estão fazendo nada naquele dique – respondeu Ciri, levemente enrubescida. –
Estão conversando, nada mais.
– E você – Jaskier sentou na grama debaixo de uma macieira e apoiou as costas no tronco,
certificando-se antes de que ali não havia formigas ou lagartas – gostaria de saber sobre o que
estão conversando, não é isso?
– Sim… Não! Além do mais… Além do mais, não dá para ouvi-los. Estão muito longe.
– Se você quiser – riu o bardo –, posso lhe dizer.
– E como você poderia saber?
– Eu, querida Ciri, sou um poeta. Os poetas sabem tudo sobre esse tipo de coisas. E vou
lhe dizer mais: os poetas sabem sobre essas coisas mais que as próprias pessoas nelas
envolvidas.
– Pois sim!
– Dou-lhe minha palavra. Palavra de poeta.
– Ah, é? Então… Então diga-me de que eles estão falando. Esclareça-me tudo o que está
se passando.
– Olhe mais uma vez pelo buraco e me diga o que eles estão fazendo.
– Hummm… – Ciri mordeu o lábio inferior, inclinou-se e aproximou o olho da fenda no
muro. – Dona Yennefer está parada junto de uma casuarina… Arranca folhas da árvore e
brinca com sua estrela… Não diz nada nem olha para Geralt… Geralt está parado a seu lado.
Abaixou a cabeça. Está lhe dizendo algo. Não, está calado. E tem uma cara de dar dó… Que
cara mais esquisita…
– É infantilmente simples – afirmou Jaskier, pegando uma maçã, esfregando-a nas calças e
examinando-a de maneira crítica. – Neste momento, ele pede a ela que lhe perdoe suas
diversas palavras e ações. Pede-lhe perdão por sua impaciência, por sua falta de fé e de
esperança, por sua teimosia, rancor, irritação e posturas indignas de um homem. Pede-lhe
perdão por aquilo que não havia compreendido em determinado momento, por aquilo que não
quis compreender…
– Isso é mentira! – Ciri ergueu-se e, num gesto violento, atirou para trás a cabeleira. –
Você está inventando tudo!
– Pede-lhe perdão por ter compreendido somente agora – Jaskier fixou os olhos no céu, e
sua voz adquiriu uma entonação adequada a uma balada –, por querer compreender, mas ter
medo de ser tarde demais… e por aquilo que nunca compreenderá… Hummm, hummm…
Significado… Consciência… Destino? Que droga, tudo são coisas banais…
– Não é verdade! – Ciri bateu com o pé no chão. – Geralt não está dizendo nada disso!
Ele… não está dizendo nada! Afinal, eu vi. Ele está ao lado dela e se mantém calado…
– É nisso que consiste a poesia, Ciri. Em falar daquilo sobre o que os outros se calam.
– Como é tolo seu papel. E você inventa tudo!
– O papel do poeta consiste também nisso. Ei, estou ouvindo vozes alteradas. Dê rápido
uma espiada para ver o que está se passando.
Ciri encostou novamente o olho no buraco do muro.
– Geralt está parado, com a cabeça abaixada, enquanto Yennefer grita horrivelmente com
ele. Grita e agita os braços. O que pode significar isso?
– Infantilmente simples. – Jaskier voltou a olhar para as nuvens no céu. – Agora é ela que
está pedindo perdão a ele.
CAPÍTULO TERCEIRO
Eis que a tomo, para tê-la e guardá-la tanto nos tempos de bonança como
nos da desgraça, nos melhores momentos e nos piores, nos dias e nas noites, na
saúde e na doença, pois amo-a de todo o coração e juro amá-la eternamente, até
que a morte nos separe.
Antiga fórmula de casamento
Pouco sabemos do amor. Com o amor é como com a pera. A pera é doce
e tem forma. Tentem definir a forma da pera.
Jaskier, Meio século de poesia
Geralt tinha motivos para suspeitar – e suspeitava – que os banquetes dos feiticeiros se
diferenciassem dos jantares e das ceias de simples mortais. Assim mesmo, não imaginara que
as diferenças fossem tão grandes e básicas.
A proposta de acompanhar Yennefer no banquete que antecedia a abertura do congresso
dos feiticeiros fora uma surpresa para ele, mas não o deixara estupefato, uma vez que não se
tratava da primeira proposta desse tipo. Antes, quando moraram juntos e as relações entre eles
haviam sido as melhores possíveis, Yennefer queria tê-lo por companhia em congressos e
encontros. No entanto, àquela época ele se recusava a isso de maneira peremptória. Estava
convencido de que no meio dos magos ele seria tratado, no melhor dos casos, como uma
curiosidade ou aberração e, no pior, como um intruso e pária. Yennefer ria de suas apreensões,
mas não insistia. O fato de ela, em outras ocasiões, ser capaz de insistir de tal modo que a
casa tremia e os vidros se estraçalhavam nas janelas servia de corroboração do entendimento
de Geralt.
Dessa vez ele concordara sem um momento de hesitação. A proposta fora feita após uma
longa, sincera e emocionante conversa, que os reaproximara, afastara e levara para o
esquecimento os antigos conflitos, derretera o gelo de ressentimento, orgulho e obstinação.
Após aquela conversa no dique de Hirundum, Geralt estava disposto a aceitar absolutamente
qualquer proposta de Yennefer. Não teria recusado mesmo que ela tivesse lhe proposto de os
dois visitarem o inferno com o intuito de tomar uma xícara de piche derretido na companhia de
demônios em chamas.
E havia ainda Ciri, sem a qual não teria acontecido a tal conversa, não teria ocorrido
aquele encontro. Ciri, pela qual, segundo Codringher, estava interessado certo feiticeiro.
Geralt contava com a possibilidade de sua presença no congresso provocar o tal feiticeiro,
forçando-o a empreender alguma ação, mas não disse uma palavra sequer sobre isso a
Yennefer.
Partiram de Hirundum diretamente para Thanedd: ele, ela, Ciri e Jaskier. No começo,
detiveram-se no gigantesco complexo do palácio de Loxia, que ocupava a parte sudoeste da
ilha. O palácio já estava cheio de convidados do congresso e seus acompanhantes, porém
Yennefer não teve dificuldade em encontrar um alojamento para todo o seu grupo, que passou
um dia inteiro em Loxia. O bruxo ficou entretido em conversas com Ciri, Jaskier correu para
todos os lados recolhendo e espalhando fofocas, e a feiticeira experimentou e escolheu trajes.
Quando anoiteceu, Geralt e Yennefer juntaram-se ao colorido cortejo que se dirigia ao palácio
de Aretusa, onde seria realizado o banquete. E agora, em Aretusa, Geralt se espantava e se
surpreendia, embora tivesse prometido a si mesmo que nada o espantaria e que não permitiria
ser surpreendido com coisa alguma.
O enorme salão central do palácio fora construído na forma da letra “T”. O lado mais
comprido era provido de janelas estreitas e altas, chegando quase à abóbada suportada por
colunas. A abóbada era tão alta que era difícil reconhecer os detalhes dos afrescos que a
adornavam, sobretudo o sexo das figuras desnudas que constituíam a maior parte dos motivos
pictóricos. As janelas possuíam vitrais que pareciam valer uma verdadeira fortuna. Apesar de
as janelas estarem fechadas, podia-se sentir claramente uma corrente de ar percorrendo o
salão. Geralt estranhou o fato de as velas não se apagarem com a brisa, mas, após uma
observação mais detalhada, deixou de estranhar; os candelabros eram mágicos ou até
ilusórios. De todo modo, a luz que emanava deles era incomparavelmente mais clara que a de
velas comuns.
Havia mais de cem pessoas no salão, que, calculou o bruxo, poderia acomodar pelo menos
três vezes mais, mesmo que, como mandava o costume, o centro fosse ocupado por várias
mesas dispostas em forma de ferradura. Mas não havia a tradicional ferradura. Tudo indicava
que os convivas comeriam de pé, caminhando continuamente ao longo das paredes decoradas
com arrases, guirlandas e flâmulas tremulando sob o efeito da corrente de ar. Debaixo dos
arrases e das guirlandas, foram colocadas filas de mesinhas, sobre as quais era servida
comida requintada, exposta em conjuntos de peças de louça ainda mais requintados, entre
requintadas composições florais e esculturas de gelo. Olhando para aquilo tudo com atenção,
Geralt constatou que nas mesinhas havia muito mais requinte e apuro do que comida.
– Não vejo uma mesa de banquete – falou com voz soturna, acariciando o gibão negro
adornado com fios de prata e apertado na cintura, com o qual o vestira Yennefer. Esse modelo
de gibão, último grito da moda, era chamado de “dublete”. O bruxo não tinha a mínima ideia
de onde provinha tal nome, nem fazia questão de saber.
Yennefer não esboçou reação alguma. Geralt não esperava por uma, sabendo muito bem
que a feiticeira não costumava reagir a esse tipo de constatações. No entanto, não desistiu.
Continuou reclamando. Simplesmente estava com vontade de resmungar.
– Não há música. Uma corrente de ar está incomodando bastante. Não há lugar para se
sentar. Vamos comer e beber de pé?
A feiticeira agraciou-o com uma lânguida mirada cor de violeta.
– Exatamente – respondeu com voz surpreendentemente calma. – Vamos comer de pé.
Além disso, saiba que se deter junto de uma mesa com comida por muito tempo é
demonstração de falta de tato.
– Vou me esforçar para ter tato – resmungou Geralt –, principalmente por não haver muita
coisa que possa me deter junto das mesas.
– Beber em excesso é considerado grande falta de tato – Yennefer continuou a preleção,
ignorando por completo seus resmungos. – Evitar manter uma conversação é considerado falta
de tato imperdoável…
– E o fato – interrompeu-a Geralt – de aquele magricela com calças de idiota apontar para
mim com o dedo a seus dois companheiros não é considerado falta de tato?
– Sim, mas não muito grave.
– O que devemos fazer, Yen?
– Circular pelo salão, cumprimentar as pessoas, fazer elogios, conversar… Pare de
acariciar o gibão e de ajeitar os cabelos.
– Você não me deixou usar minha testeira…
– Sua testeira é muito pretensiosa. Pegue-me pelo braço e vamos circular. Ficar parado
junto da entrada é considerado falta de tato.
Circularam pelo salão, que foi ficando cada vez mais cheio. Geralt estava morrendo de
fome, mas logo se deu conta de que Yennefer não estivera caçoando. Tornou-se óbvio que a
obrigatória forma de comportamento entre os feiticeiros realmente obrigava-os a comer e
beber pouco, aparentando desinteresse. Para piorar, cada parada junto a uma mesinha com
comida trazia consigo obrigações sociais. Alguém via alguém, demonstrava grande satisfação
pelo encontro, aproximava-se e cumprimentava de maneira tão efusiva quanto falsa. Após os
obrigatórios beijos nas bochechas ou os desagradáveis e delicados apertos de mãos, após
sorrisos insinceros e os ainda menos sinceros, embora não excessivamente enganosos elogios,
iniciavam-se curtas, tediosas e banais conversas sobre nada.
O bruxo olhava atentamente para todos os lados à procura de rostos conhecidos,
principalmente na esperança de não ser o único conviva não membro da confraria de
feiticeiros. Yennefer lhe assegurara que ele não seria o único, mas Geralt ou deixou de ver
qualquer pessoa que não fizesse parte da Irmandade, ou então não soube reconhecer quem quer
que fosse.
Pajens carregando bandejas com taças de vinho esgueiravam-se por entre os convidados.
A feiticeira não bebia. O bruxo bem que gostaria, porém não ousava.
Yennefer, puxando-o pelo braço, fez com que eles acabassem no centro do salão, o centro
de interesse geral. De nada adiantaram os esforços de Geralt no sentido contrário, e ele por
fim compreendeu que o intento da feiticeira era o mais simples desejo do mundo: o de se
exibir.
O bruxo sabia o que o esperava e, com calma e estoicismo, suportou os olhares cheios de
mórbido interesse das feiticeiras e os camuflados sorrisos dos feiticeiros.
Embora Yennefer tivesse lhe dito que as boas maneiras e o tato proibiam o uso de magia
em tais ocasiões, Geralt não acreditou que os magos conseguissem se refrear, sobretudo por
Yennefer tê-lo exposto tão provocativamente ao público. E tinha razão em não acreditar. Mais
de uma vez percebeu seu medalhão tremer, além de sentir as agulhadas de impulsos mágicos.
Alguns magos, principalmente magas, chegaram ao desplante de tentar ler seus pensamentos.
Geralt, porém, já estava preparado para isso e sabia como reagir. Olhou para a brilhante
alvinegra Yennefer, de cabelos negros como asas de graúna e olhos cor de violeta,
caminhando a seu lado, e os feiticeiros que sondavam sua mente ficaram encabulados,
desconcentraram-se e visivelmente perderam a autoconfiança e a compostura, algo que lhe deu
um indescritível prazer. “Sim”, respondeu-lhes mentalmente. “Sim, vocês não estão
enganados. Ei-la a meu lado, aqui e agora, e isso é tudo que conta. Aqui e agora. Quanto ao
que ela foi, onde esteve e com quem, não tem a mínima importância. Agora, ela está comigo,
aqui, no meio de vocês. Comigo e com ninguém mais. É exatamente isso que penso, pensando
nela, pensando todo o tempo nela, sentindo seu perfume e o calor de seu corpo. E vocês
podem morrer de inveja.”
A feiticeira apertou fortemente seu braço, encostando de leve o quadril ao dele.
– Obrigada – sussurrou, guiando-o de volta na direção das mesas. – Mas sem ostentação
excessiva, por favor.
– Será que vocês, feiticeiros, sempre tomam a sinceridade como uma forma de ostentação?
Será que é porque não acreditam em sinceridade mesmo quando a detectam na mente de
outros?
– Sim. Exatamente por isso.
– E, no entanto, você me agradece?
– Porque acredito em você. – Yennefer apertou ainda mais fortemente seu braço e pegou
um pratinho. – Por favor, sirva-me um pouco de salmão, bruxo. E caranguejos.
– Esses caranguejos – falou Geralt – são de Poviss. Na certa, foram pegos há mais de um
mês, e nós estamos em pleno verão. Você não tem medo…
– Esses caranguejos – interrompeu-o Yennefer – ainda hoje andavam pelo fundo do mar. A
teleportação é uma invenção sensacional.
– Sem dúvida – concordou o bruxo. – Você não acha que seria boa ideia disponibilizá-la
para todos?
– Estamos trabalhando nisso. Vamos, sirva-me. Estou com fome.
– Amo você, Yen.
– Já lhe pedi menos ostentação… – Yennefer interrompeu-se e ergueu a cabeça, afastando
os cachos negros do rosto e arregalando os olhos cor de violeta. – Geralt! É a primeira vez
que você confessa isso para mim!
– Não pode ser. Você deve estar zombando de mim.
– Não, não estou zombando. Antes, você só pensava; hoje, você disse.
– E há diferença entre os dois?
– Enorme.
– Yen…
– Não fale com a boca cheia. Eu também o amo. Não falei? Pelos deuses, você vai
engasgar de vez! Erga os braços e eu darei um tapa em suas costas. Respire fundo.
– Yen…
– Respire, respire; já vai se sentir melhor.
– Yen!
– Sim. Sinceridade por sinceridade.
– Você está se sentindo bem?
Yennefer espremeu um gomo de limão sobre o salmão.
– Estava esperando – falou. – Afinal, não ficava bem reagir a uma declaração de amor
feita em pensamento. Quando finalmente ela foi explicitada em palavras, respondi. Estou me
sentindo muito bem.
– O que aconteceu?
– Vou lhe contar mais tarde. Agora, coma. Este salmão está realmente delicioso. Juro pela
Força que é uma delícia.
– Posso beijá-la? Agora, aqui, diante de todos?
– Não.
– Yennefer! – exclamou uma feiticeira morena que passava perto e que, livrando-se do
braço do homem que a acompanhava, aproximou-se deles. – Quer dizer que você veio, afinal!
Que maravilha! Não a vejo há séculos!
– Sabrina! – Yennefer ficou tão contente com o encontro que qualquer pessoa, exceto
Geralt, poderia se iludir e achar que ela estava sendo sincera. – Querida! Como estou feliz!
As feiticeiras abraçaram-se com extremo cuidado e beijaram mutuamente o ar junto das
orelhas adornadas por brincos de ônix e brilhantes. Embora ambos os pares de brincos, que
lembravam cachos de uvas em miniatura, fossem idênticos, o ar a sua volta adquiriu um olor
de profundo antagonismo.
– Geralt, permita que eu lhe apresente minha amiga de escola, Sabrina Glevissig de Ard
Carraigh.
O bruxo inclinou-se e beijou a mão que lhe fora erguida bem alto. Tivera tempo para
perceber que as feiticeiras costumavam aguardar que sua mão fosse beijada ao serem
cumprimentadas, gesto que as igualava pelo menos a princesas. Sabrina Glevissig levantou a
cabeça, fazendo tremer e tilintar os brincos, baixinho, mas de maneira ostensiva e descarada.
– Queria muito conhecê-lo, Geralt – falou com um sorriso. Como todas as feiticeiras,
Sabrina não usava os termos “senhor”, “Vossa Senhoria” ou quaisquer outras formas
indispensáveis no meio de aristocratas. – Estou realmente muito feliz. Finalmente Yenna parou
de escondê-lo de nós. Para ser sincera, não consigo compreender a razão por ela ter demorado
tanto assim. Decididamente não há de que se envergonhar.
– Compartilho de sua opinião – respondeu Yennefer de modo desprendido, semicerrando
os olhos e ostensivamente afastando os cabelos de um dos brincos. – Que linda blusa, Sabrina!
Realmente encantadora. Não é verdade, Geralt?
O bruxo assentiu com a cabeça, engolindo em seco. A blusa de Sabrina Glevissig,
confeccionada com gaze negra, revelava absolutamente tudo o que havia para ser revelado, e
havia bastante. Já sua saia cor de carmim, apertada na cintura por um cinturão de prata com
uma enorme fivela em forma de rosa, tinha uma fenda lateral, de acordo com a última moda.
Só que os preceitos da moda ditavam que a fenda não ultrapassasse metade da coxa, enquanto
a da saia de Sabrina chegava à metade do quadril, um quadril muito atraente, aliás.
– O que há de novo em Kaedwen? – perguntou Yennefer, fingindo não ver para onde
olhava Geralt. – Seu rei Henselt continua desperdiçando suas forças e meios na perseguição
dos Esquilos pelas florestas? Ele continua pensando numa expedição punitiva contra os elfos
de Dol Blathanna?
– Vamos deixar a política de lado – sorriu Sabrina. O nariz um tanto comprido demais e os
olhos rapineiros tornavam-na parecida com a clássica imagem de uma bruxa. – Amanhã, no
decurso do congresso, trataremos de política até não podermos mais. E nos fartaremos de
ouvir uma sucessão de… teses morais. Sobre a necessidade da coexistência pacífica… Sobre
a amizade… Sobre a necessidade de adotarmos uma posição solidária aos planos e intenções
de nossos reis… Que mais ouviremos, Yennefer? Que mais o Capítulo e Vilgeforz terão
preparado para nós amanhã?
– Vamos deixar a política de lado.
Sabrina Glevissig soltou uma risada cristalina, acompanhada pelo tênue tilintar dos
brincos.
– Você tem razão. Vamos esperar até amanhã. Amanhã, tudo ficará esclarecido. Ah, esse
negócio de política é uma interminável sequência de reuniões e conselhos… Como eles são
danosos para a pele. Por sorte tenho um creme excepcional; pode acreditar, querida, que as
rugas desaparecem como num sonho… Quer a receita?
– Agradeço, querida, mas não preciso. Realmente.
– Ah, é verdade. Quando estávamos na escola, sempre invejei o frescor de sua pele. Pelos
deuses, há quanto tempo foi isso?
Yennefer fingiu estar respondendo a um cumprimento de alguém que estava passando. Já
Sabrina sorriu para o bruxo e empinou com prazer aquilo que a gaze negra não cobria. Geralt
voltou a engolir em seco, esforçando-se para não olhar de maneira demasiadamente ostensiva
para os róseos bicos de seio claramente visíveis através do fino tecido. Olhou de soslaio para
Yennefer. A feiticeira estava sorrindo, mas o bruxo a conhecia suficientemente bem para saber
que estava furiosa.
– Oh, perdoe-me – falou de repente. – Acabei de ver Filippa; preciso conversar com ela
urgentemente. Venha, Geralt. Tchau, Sabrina.
– Tchau, Yenna. – Sabrina Glevissig fixou os olhos nos do bruxo. – E mais uma vez
parabéns por seu… bom gosto.
– Obrigada. – A voz de Yennefer era suspeitamente fria. – Obrigada, minha querida.
Filippa Eilhart estava na companhia de Dijkstra. Geralt, que tivera no passado um contato
superficial com o espião redânio, deveria em princípio ter ficado contente; encontrara, afinal,
alguém conhecido que, assim como ele, não fazia parte da confraria. Entretanto, não ficou.
– Estou feliz em vê-la, Yenna – disse Filippa, beijando o ar junto dos brincos de Yennefer.
– Salve, Geralt. Imagino que vocês conhecem o conde Dijkstra.
– E quem não o conhece? – respondeu Yennefer, inclinando-se e estendendo a mão para
Dijkstra, que a beijou respeitosamente. – Estou contente por encontrá-lo de novo, senhor
conde.
– O prazer de revê-la, Yennefer, é todo meu – assegurou-lhe o chefe do serviço secreto do
rei Vizimir –, principalmente em tão agradável companhia. Senhor Geralt, os meus mais
profundos respeitos.
O bruxo, controlando-se para não expressar sua convicção de que seus respeitos eram
ainda mais profundos, apertou a mão estendida; na verdade, tentou fazê-lo, uma vez que suas
dimensões tornavam o ato de apertá-la praticamente impossível. O gigantesco espião estava
vestido com um dublete bege-claro, aberto de modo um tanto informal. Estava claro que se
sentia muito à vontade nele.
– Notei – falou Filippa – que vocês estiveram conversando com Sabrina.
– Estivemos – bufou Yennefer. – Você viu como ela está vestida? É preciso ser totalmente
desprovida de bom gosto e de pudor para… Ela, com todos os diabos, é mais velha do que eu
mais de… Vamos esquecer isso. Se, pelo menos, ela tivesse alguma coisa para mostrar!
Aquela macaca asquerosa!
– Ela tentou arrancar algumas informações de vocês? Todos sabem que ela é uma espiã de
Henselt de Kaedwen.
– Realmente? – Yennefer fingiu surpresa, o que acertadamente foi considerado uma piada e
tanto.
– E quanto ao senhor, senhor conde. Está se divertindo em nossa cerimônia? – perguntou
Yennefer quando Filippa e Dijkstra pararam de rir.
– Muitíssimo. – O espião de Vizimir inclinou-se com elegância.
– Se levarmos em consideração – sorriu Filippa – que o conde está aqui a serviço, tal
assertiva é um grande elogio para nós. E, como qualquer elogio semelhante, pouco sincero.
Ainda momentos atrás, ele me confessou que teria preferido uma aconchegante e familiar
penumbra, com fedor de tochas e de carne assada. Falou que também sente falta da tradicional
mesa coberta com manchas de molhos e cerveja, na qual poderia bater com o caneco ao ritmo
das obscenas canções de bêbados, e debaixo da qual poderia deslizar ao raiar do sol,
adormecendo cercado de cachorros roendo ossos. E imaginem vocês que ele não se
sensibilizou com meus argumentos sobre a superioridade de nossa forma de festejar.
– Realmente? – O bruxo olhou para o espião com mais simpatia. – E quais foram os
argumentos, se é que posso perguntar?
Sua pergunta foi claramente considerada uma excelente pilhéria, pois as duas feiticeiras
riram ao mesmo tempo.
– Ah, os homens – falou Filippa. – Vocês não entendem nada. Como se pode impressionar
alguém com sua figura e vestido estando sentada atrás de uma mesa, na penumbra e num
ambiente cheio de fumaça?
Geralt, não encontrando uma resposta à altura, apenas fez uma reverência. Yennefer
apertou delicadamente seu braço.
– Ah – falou. – Estou vendo Triss Merigold. Preciso trocar com ela algumas palavras…
Perdoem-nos por abandoná-los, mas apenas temporariamente, Filippa. Com certeza acharemos
ainda hoje uma oportunidade para continuar o bate-papo. Não é, senhor conde?
– Sem dúvida. – Dijkstra sorriu e inclinou-se cortesmente. – Estou a suas ordens,
Yennefer. A qualquer hora.
Geralt e Yennefer aproximaram-se de Triss, que reluzia com diversas tonalidades de azul e
verde-claro. Ao vê-los, ela interrompeu a conversa que mantinha com dois magos, riu
alegremente, abraçou Yennefer, e o ritual de beijocas no ar junto das orelhas se repetiu. Geralt
pegou a mão que lhe fora erguida, mas decidiu agir em desacordo com as regras cerimoniais:
abraçou a feiticeira de cabelos castanhos e beijou-lhe a bochecha macia e de penugem suave
como um pêssego. Triss enrubesceu um pouco.
Os feiticeiros se apresentaram. Um deles era Drithelm de Pont Vanis, e o outro, seu irmão,
Detmold. Ambos serviam ao rei Esterat de Kovir e revelaram-se monossilábicos, afastando-se
na primeira oportunidade que tiveram.
– Vi que vocês estiveram conversando com Filippa e Dijkstra de Tretogor – falou Triss,
brincando com um coraçãozinho de lápis-lazúli emoldurado com prata e brilhantes pendurado
no pescoço. – Imagino que saibam quem é Dijkstra, não é verdade?
– Sabemos – respondeu Yennefer. – Ele conversou com você? Tentou sondá-la?
– Tentou. – A feiticeira sorriu significativamente e deu uma discreta risadinha. – Com
muito cuidado. Mas Filippa atrapalhava-o o máximo que podia. E eu, que sempre achei que
eles fossem muito íntimos…
– Eles são muito íntimos – preveniu-a Yennefer, séria. – Fique atenta, Triss. Não solte uma
só palavra sobre… você sabe o quê.
– Pode deixar que ficarei atenta. E, aproveitando a ocasião – Triss abaixou a voz –, como
vai ela? Será que poderei vê-la?
– Se você finalmente decidir frequentar as aulas em Aretusa – sorriu Yennefer –, terá a
oportunidade de vê-la com bastante frequência.
– Não diga – disse Triss, arregalando os olhos. – Compreendo. Quer dizer que Ciri…
– Fale mais baixo, Triss. Conversaremos sobre isso mais tarde. Amanhã. Após a reunião
do Conselho.
– Amanhã? – Triss deu um sorriso estranho.
Yennefer franziu o cenho, mas, antes que pudesse indagar qualquer coisa, o salão foi
repentinamente percorrido por um murmúrio.
– Já estão aqui – falou Triss. – Finalmente chegaram.
– Sim – confirmou Yennefer, afastando o olhar dos olhos da amiga –, chegaram. Geralt,
finalmente apareceu uma ocasião para você conhecer os membros do Capítulo e do Conselho
Supremo. Se surgir uma oportunidade, eu o apresentarei a eles. Nada impede, porém, que você
saiba de antemão quem é quem.
Os convivas se separaram para abrir passagem e inclinaram-se respeitosamente para os
dignitários que adentravam o salão. O primeiro a surgir foi um já não tão moço, mas ainda
robusto homem vestido com um surpreendentemente modesto traje de lã. A seu lado,
caminhava uma mulher alta, de traços aguçados e negros cabelos penteados para trás.
– Esse é Gerhart de Aaelle, conhecido como Hen Gedymdeith, o mais antigo dos
feiticeiros vivos – informou num sussurro Yennefer. – A mulher a seu lado é Tissaia de Vries,
apenas alguns anos mais moça que ele, mas que não tem pejo de lançar mão de elixires.
Atrás do primeiro par caminhava uma atraente mulher com longos cabelos dourado-
escuros, farfalhando com um vestido da cor de resedá adornado com rendas.
– Francesca Findabair, chamada de Enid an Gleanna, a Margarida dos Vales. Não arregale
tanto os olhos, bruxo. Ela geralmente é considerada a mulher mais bela do mundo.
– Ela é membro do Capítulo? – espantou-se Geralt. – Parece ser muito jovem. Será
também resultado de elixires mágicos?
– Não no caso dela. Francesca é elfa puro-sangue. Repare no homem que a acompanha. É
Vilgeforz de Roggeveen. Ele, sim, é jovem de verdade, mas inacreditavelmente talentoso.
O termo “jovem”, como bem sabia Geralt, incluía feiticeiros de até cem anos. Vilgeforz
aparentava ter trinta e cinco. Era alto, de porte atlético e trajava um gibão à moda de cavaleiro
andante, evidentemente sem brasão algum. Era também bem-apessoado, o que podia ser
notado mesmo andando ao lado de Francesca Findabair, dona de enormes olhos de corça e de
uma beleza que fazia as pessoas prenderem a respiração.
– Aquele homem baixo, que está andando ao lado de Vilgeforz, é Artaud Terranova –
esclareceu Triss Merigold. – Esse quinteto forma o Capítulo…
– E quem é aquela jovem de rosto esquisito atrás de Vilgeforz?
– É sua assistente, Lydia van Bredevoort – falou Yennefer friamente. – Uma pessoa sem
importância, mas olhar ostensivamente para seu rosto é uma grande falta de tato. Você faria
melhor se prestasse atenção aos três que estão mais atrás. São membros do Conselho
Supremo: Fercart de Cidaris, Radcliffe de Oxenfurt e Carduin de Lan Exeter.
– E esse é todo o Conselho? O grupo completo? Pensei que tivesse muito mais membros.
– O Capítulo é formado por cinco membros, e o Conselho, por mais cinco. Filippa Eilhart
também faz parte do Conselho.
– Assim mesmo a conta não fecha – disse Geralt, meneando a cabeça, enquanto Triss dava
uma risadinha.
– Você não lhe disse? Geralt, você realmente não sabe de nada?
– E de que eu deveria saber?
– Do fato de Yennefer também fazer parte do Conselho. Desde a batalha de Sodden. Você
não se gabou disso, minha querida?
– Não, minha querida – respondeu a feiticeira, olhando diretamente nos olhos da amiga. –
Em primeiro lugar, não gosto de me gabar. Em segundo, não tivemos tempo suficiente para
isso. Não vi Geralt por muito tempo e temos muita conversa para pôr em dia. Fizemos uma
longa lista de assuntos e vamos resolver um a um seguindo sua ordem.
– É claro – falou Triss, hesitante. – Hummm… Depois de tanto tempo… Compreendo. Há
muito sobre o que conversar…
– As conversas – sorriu Yennefer ambiguamente, lançando um olhar lânguido ao bruxo –
estão no final da lista. Bem no finzinho, Triss.
Triss ficou claramente embaraçada, enrubescendo um pouco.
– Compreendo – repetiu e, sem saber o que fazer com as mãos, ficou brincando com o
coraçãozinho de lápis-lazúli.
– Fico muito feliz por você compreender – falou Yennefer. – Geralt, traga-nos vinho. Não,
não deste pajem, mas daquele outro, mais distante.
O bruxo obedeceu, sentindo acertadamente que havia um tom de comando na voz. Ao
pegar as taças da bandeja carregada pelo pajem, ficou observando discretamente as duas
feiticeiras. Yennefer falava rápido e baixo; Triss Merigold ouvia-a com a cabeça abaixada.
Quando retornou, Triss já não estava mais lá. Yennefer não demonstrou interesse algum pelas
taças de vinho, de modo que Geralt colocou-as sobre uma mesinha.
– Será que você não exagerou? – perguntou friamente.
Os olhos de Yennefer brilharam com chamas cor de violeta.
– Não tente me fazer de idiota. Você achou que eu não sabia do que houve entre vocês
dois?
– Se é disso que se trata…
– Exatamente disso – cortou-o secamente. – Não se faça de bobo e se abstenha de fazer
comentários. E, acima de tudo, não tente mentir. Conheço Triss há mais tempo do que você; eu
gosto dela e ela gosta de mim. Nós nos entendemos e continuaremos a nos entender,
independentemente de eventuais… incidentes. Pareceu-me que ela estava com algumas
dúvidas, de modo que as desfiz, e pronto. Não vamos mais falar disso.
Geralt não tinha intenção alguma naquele sentido. Yennefer afastou um cacho que caíra
sobre sua bochecha.
– Vou deixá-lo por um momento, pois preciso falar com Tissaia e Francesca. Coma alguma
coisa, porque dá para ouvir os roncos de sua barriga. E permaneça atento. Você certamente
será abordado por diversas pessoas. Não permita que o façam de bobo e não arruíne minha
reputação.
– Pode ficar tranquila.
– Geralt?
– Sim?
– Ainda há pouco, você expressou o desejo de me beijar aqui, na frente de todos. Continua
desejando?
– Continuo.
– Tente não borrar meu batom.
Geralt olhou para os presentes com o canto dos olhos. Observavam o beijo, mas
discretamente. Filippa Eilhart, parada perto com um grupo de feiticeiros, deu-lhe uma
piscadela e fingiu aplaudir.
Yennefer separou os lábios dos dele e inspirou fundo.
– Uma coisa tão pequena e, no entanto, como alegra – falou. – Bem, tenho de ir. Voltarei
em breve. E depois, após o banquete… Hummm…
– Sim?
– Não coma nada com alho, por favor.
Quando Yennefer se afastou, Geralt abandonou as boas maneiras, desabotoou o dublete,
sorveu o conteúdo das duas taças e decidiu ocupar-se seriamente da comida. Não conseguiu.
– Geralt.
– Senhor conde.
– Deixe esse negócio de títulos de lado – falou Dijkstra, fazendo uma careta de desagrado.
– Não sou conde. Vizimir ordenou que me apresentasse como tal para não irritar os cortesãos
e os magos com minha procedência plebeia. E então, como está se saindo na tarefa de
impressionar as pessoas e, ao mesmo tempo, fingir que está se divertindo?
– Eu não preciso fingir. Não estou aqui a serviço.
– Que interessante… – sorriu o espião. – Isso confirma a opinião geral de que você é
incomparável e único de seu gênero. Porque, exceto você, todos os demais estão aqui a
serviço.
– Era exatamente isso que eu temia – respondeu Geralt, achando conveniente sorrir de
volta. – Pressenti que seria o único de meu gênero, o que quer dizer que estou fora de meu
lugar.
O espião lançou um olhar sobre as travessas mais próximas, pegando de uma delas uma
vagem totalmente desconhecida a Geralt.
– Aproveito a ocasião – disse – para lhe agradecer pelos irmãos Michelet. Muita gente na
Redânia suspirou aliviada quando você acabou com os quatro no porto de Oxenfurt. Tive um
acesso de riso quando, durante a investigação, o médico da universidade, ao examinar os
ferimentos, afirmou que alguém os fizera com foice.
Geralt não fez comentário algum. Dijkstra enfiou outra vagem na boca.
– É uma pena – continuou, mastigando – que, depois de massacrá-los, você não tenha ido
procurar o prefeito. Havia um prêmio por eles, vivos ou mortos. E era um prêmio bastante
elevado.
– Teria muitos problemas na declaração do imposto de renda. – Geralt decidiu
experimentar a vagem, a qual revelou ter um gosto de aipo ensaboado. – Além disso, tive de
partir de lá rapidamente… Mas temo estar entediando-o, Dijkstra. Afinal, você sempre sabe
de tudo.
– Não precisa exagerar – sorriu o espião. – Não sei de tudo. Como poderia?
– Pelo relato de Filippa Eilhart, para não irmos muito longe.
– Relatos, descrições, boatos. Preciso ouvi-los todos, porque é isso que exige minha
profissão. No entanto, minha profissão me obriga também a passá-los por uma peneira
extremamente fina. Imagine você que recentemente chegou a meus ouvidos a notícia de que
alguém deu cabo do famoso Professor e seus dois asseclas. Isso ocorreu numa estalagem em
Anchor. O homem que conseguiu tal façanha também estava demasiadamente apressado para
receber o prêmio.
Geralt deu de ombros.
– Boatos. Passe-os pela peneira e você verá o que restará deles.
– Não preciso. Sei o que restará. Frequentemente isso costuma ser uma tentativa
intencional de desinformação. E, já que estamos tratando de desinformação, como está a
pequena Cirilla, aquela coitada menininha, tão propensa a difteria? Ficou curada?
– Desista, Dijkstra – respondeu o bruxo friamente, fixando os olhos nos do espião. – Sei
que você está aqui a serviço, mas não exagere em seu afã profissional.
O espião soltou uma gargalhada. Duas feiticeiras que passavam por ali olharam para eles
com espanto e curiosidade.
– O rei Vizimir – falou Dijkstra, parando de rir – me paga um extra por enigma decifrado.
Esse meu afã me garante uma vida decente. Você vai achar graça, mas eu tenho esposa e filhos.
– Não vejo nada de engraçado nisso. Continue trabalhando para o bem-estar de sua esposa
e filhos, porém não a minha custa, se é que posso pedir. Neste salão, pelo que me parece, não
faltam segredos e enigmas.
– Não só no salão. Toda Aretusa é um grande e insondável enigma. Você não notou isso?
Há algo suspenso no ar, Geralt. E, para simplificar as coisas, vou lhe dizer que não me refiro
aos candelabros.
– Não entendo.
– Acredito, porque eu também não entendo. E gostaria muitíssimo de entender. Você não
gostaria? Ah, desculpe-me. Você já deve saber de tudo. Pelo relato da encantadora Yennefer
de Vengerberg, para não irmos muito longe. Imagine que houve um tempo em que eu mesmo me
inteirava disso ou daquilo por meio da bela Yennefer. Ah, onde foram parar as neves de
outrora?
– Realmente não sei do que está falando, Dijkstra. Você não poderia ser mais específico
sobre o que tem em mente? Tente, com a condição de que não seja como parte de seu trabalho.
Perdoe-me, mas não tenho a mínima intenção de me esforçar para que você ganhe um prêmio
extra.
– Você acha que estou tentando abordá-lo de modo indigno? – indagou o espião. –
Arrancar uma informação por meio de um ardil? Está sendo injusto comigo, Geralt.
Simplesmente estou curioso de saber se você nota neste salão as mesmas peculiaridades que
me saltam aos olhos.
– E o que lhe salta aos olhos?
– Você não acha estranha a total ausência de cabeças coroadas, que normalmente
costumam ser vistas num congresso como este?
– Nem um pouco – afirmou Geralt, conseguindo finalmente enfiar uma azeitona num palito.
– Os reis certamente preferem banquetes tradicionais, sentados em volta de uma mesa sob cujo
tampo poderão deslizar elegantemente ao raiar do sol. Além disso…
– Além disso, o quê? – perguntou Dijkstra, pegando diretamente com os dedos quatro
azeitonas de uma só vez e enfiando-as na boca.
– Além disso – respondeu o bruxo, olhando para as pessoas que andavam pelo salão –, os
reis não quiseram se fatigar. Enviaram, em seu lugar, um exército de espiões; os que fazem
parte da confraria e os que são de fora dela. Na certa, para espionarem aquilo que está
suspenso no ar.
Dijkstra cuspiu na mesa o caroço das azeitonas, pegou um garfo de cabo comprido e ficou
mexendo com ele numa funda saladeira de cristal.
– E Vilgeforz – falou, sem parar de mexer com o garfo – tomou todas as providências
necessárias para que não faltasse um só espião. Agora, ele tem todos os espiões reais numa só
panela. Para que Vilgeforz quer ter todos os espiões reais numa só panela, bruxo?
– Não tenho a mais vaga ideia. E não estou interessado. Já lhe disse que estou aqui em
caráter particular; sou uma pessoa privada. Estou, digamos assim, fora da panela.
O espião do rei Vizimir pescou da saladeira um pequeno polvo e olhou para ele com
repugnância.
– E pensar que eles comem essa porcaria. – Meneou a cabeça com fingida comiseração e
voltou a encarar Geralt. – Ouça-me com atenção, bruxo – disse baixinho. – Essa sua
convicção de que você está aqui em caráter particular e que nada o interessa nem pode
interessá-lo… Isso começa a me intrigar e desperta em mim um instinto de jogador. Você tem
inclinação para jogos de azar?
– Seja mais claro, por favor.
– Estou lhe propondo uma aposta. – Dijkstra ergueu o garfo com o polvo. – Afirmo que em
menos de uma hora Vilgeforz o convidará para uma longa conversa. Afirmo que, no decorrer
da conversa, ele provará que você não é uma pessoa privada e que está em sua panela. Se
estiver enganado, comerei esta merda diante de seus olhos, com todos os tentáculos. Você
topa?
– E o que terei de comer se perder?
– Nada. – Dijkstra olhou rapidamente a sua volta. – Se perder, você me relatará o teor de
sua conversa com Vilgeforz.
O bruxo ficou em silêncio por um bom tempo, olhando calmamente para o espião.
– Passe bem, conde – falou por fim. – Agradeço o bate-papo. Foi muito esclarecedor.
Dijkstra pareceu indignado.
– A tal pon…
– A tal ponto – interrompeu-o Geralt. – Adeus.
O espião deu de ombros, atirou o polvo com o garfo de volta na saladeira, virou-se e foi
embora. Geralt não o seguiu com os olhos. Em vez disso, esgueirou-se lentamente até a mesa
seguinte, movido pelo desejo de se aproximar dos grandes camarões rosados empilhados
numa travessa de prata, no meio de folhas de alface e gomos de limão. Tinha vontade de
comê-los rapidamente, mas, sentindo olhares curiosos em sua direção, resolveu degustar os
crustáceos de maneira distinta e de acordo com as boas maneiras. Foi se aproximando lenta e
reservadamente, beliscando aqui e ali petiscos de outras travessas.
Junto da mesa ao lado estava Sabrina Glevissig, entretida numa conversa com uma
feiticeira ruiva que o bruxo não conhecia. Ela estava vestida com uma saia branca e uma
blusinha de finíssimo tecido também branco. A blusinha, assim como a de Sabrina, era
absolutamente transparente, mas tinha apliques e bordados em locais estratégicos. Os
apliques, notou Geralt, tinham uma curiosa peculiaridade: ora cobriam, ora revelavam.
As feiticeiras conversavam enquanto se empanturravam de fatias de lagosta com maionese.
Falavam baixinho, em Língua Antiga, e, embora não olhassem na direção do bruxo, era
evidente que falavam dele. Geralt aguçou indiscretamente seu bem desenvolvido sentido de
audição, fingindo que seu único interesse fossem os camarões.
– … com Yennefer? – assegurava-se a ruiva, brincando com um colar de pérolas enrolado
como uma coleira em torno de seu pescoço. – Está falando sério, Sabrina?
– Definitivamente – respondeu Sabrina Glevissig. – Você não vai acreditar, mas isso está
durando alguns anos. O que me espanta é como ele aguenta aquela víbora detestável.
– Não há de que se espantar. Ela deve tê-lo encantado e o mantém preso pelo feitiço. Não
foram poucas as vezes que eu mesma fiz isso.
– Mas ele é um bruxo. E eles são imunes a feitiços, pelo menos aos duradouros.
– Então só pode ser amor – suspirou a ruiva. – E o amor é cego.
– É ele quem é cego. – Sabrina fez uma careta. – Dá para acreditar, Marti, que ela ousou
apresentar-me a ele como sua colega de escola? Bloede pest, ela é mais velha do que eu mais
de… Vamos esquecer isso. Estou lhe dizendo que ela morre de ciúme daquele bruxo. Bastou a
pequena Merigold lançar um olhar nele para essa megera lhe passar uma descompostura
daquelas, sem economizar palavras e mandando-a embora. E neste exato momento ela está
conversando com Francesca, mas não tira os olhos do bruxo nem por um instante.
– Ela está com medo – riu a ruiva – de que nós possamos seduzi-lo, nem que seja apenas
por esta noite. Que tal, Sabrina? Vamos tentar? O rapaz é bem-apessoado e bem diferente de
nossos pálidos fracotes, cheios de empáfia, complexos e pretensões…
– Fale mais baixo, Marti – sibilou Sabrina. – Não olhe para ele nem fique arreganhando os
dentes. Yennefer nos observa. E mantém a pose. Você quer seduzi-lo? Não seria de bom-tom.
– Hummm, você tem razão – admitiu Marti, após uma breve reflexão. – E se o bruxo se
aproximasse repentinamente e nos propusesse ele mesmo?
– Aí – Sabrina lançou um olhar rapineiro para Geralt – eu me entregaria a ele sem um
momento de hesitação, mesmo que fosse sobre uma pedra.
– E eu – riu Marti –, até em cima de um ouriço.
O bruxo ficou olhando fixamente a toalha da mesa diante dele. Cobriu sua expressão idiota
com um camarão e uma folha de alface, sentindo grande alívio pelo fato de as mutações em
seus vasos sanguíneos não permitirem que enrubescesse.
– Bruxo Geralt?
Geralt engoliu rápido o camarão e se virou. Um feiticeiro com traços familiares sorriu-lhe
discretamente, alisando as lapelas bordadas de seu dublete cor de violeta.
– Dorregaray de Vole. Nós nos conhecemos. Estivemos juntos na…
– Estou lembrado. Peço desculpas por não tê-lo reconhecido de imediato. Estou
contente…
O feiticeiro sorriu mais abertamente, pegando duas taças da bandeja carregada por um
pajem.
– Tenho observado você por bastante tempo – falou, entregando uma das taças a Geralt. –
Notei que você afirma estar contente a todos a quem Yennefer o apresenta. Trata-se de
hipocrisia ou de falta de discernimento?
– Apenas delicadeza.
– Para com eles? – Dorregaray fez um largo gesto apontando para os convivas. – Acredite-
me que não vale o esforço. Eles não passam de um bando de hipócritas soberbos e invejosos,
incapazes de reconhecer sua delicadeza; ao contrário, serão capazes de considerá-la uma
forma de sarcasmo de sua parte. Com eles, senhor bruxo, é preciso adotar a mesma postura
mal-educada e arrogante. Somente assim você conseguirá impor-se a eles. Aceita tomar um
vinho comigo?
– Essa droga que estão servindo aqui? – sorriu Geralt agradavelmente. – Com o maior
desprazer. Mas se você a aprecia… farei um esforço.
Sabrina e Marti, que aguçavam os ouvidos de sua mesa, soltaram uma gargalhada.
Dorregaray lançou-lhes um olhar cheio de desprezo, deu-lhes as costas e tocou com a borda
de sua taça na do bruxo, sorrindo, dessa vez com sinceridade.
– Um ponto para você – admitiu alegremente. – Vejo que aprende rápido. Onde você
adquiriu tanta esperteza, bruxo? Pelas estradas pelas quais você vaga à procura de espécies
em extinção? A sua saúde. Você pode até achar graça, mas saiba que é uma das poucas
pessoas nesta sala a quem eu tenho vontade de fazer tal brinde.
– É mesmo? – Geralt sorveu um gole e estalou delicadamente a língua, deliciando-se com
o sabor. – Apesar de eu me dedicar à tarefa de chacinar seres em extinção?
– Não tome ao pé da letra tudo o que digo – falou o feiticeiro, dando um tapinha amigável
no ombro do bruxo. – O banquete mal começou. Na certa você será abordado por várias
outras pessoas, portanto economize seu estoque de respostas mordazes. Já no que se refere a
sua profissão… Você, Geralt, tem pelo menos a dignidade de não se enfeitar com troféus. Mas
olhe em volta. Vamos, encare-os; deixe as boas maneiras de lado. Eles gostam de ser
observados.
O bruxo obedeceu e fixou o olhar no busto de Sabrina Glevissig.
– Olhe. – Dorregaray pegou-o pelo braço e apontou com o dedo para uma feiticeira
envolta em tules que passava por eles. – Sapatinhos feitos de pele de lagarto. Você notou?
Geralt assentiu insinceramente com a cabeça, já que via apenas aquilo que revelava a
transparente blusinha de tule.
– E olhe só: pele de cobra-das-rochas. – O feiticeiro passou a reconhecer infalivelmente
todos os sapatinhos que passavam diante deles. A moda, que encurtara os vestidos até um
palmo acima do tornozelo, facilitava a tarefa. – E lá, mais longe… uma iguana-branca.
Salamandra. Serpe. Jacaré-de-óculos. Basilisco… Todos eles répteis ameaçados de extinção.
Não dá para usar sapatos feitos de couro de vitela ou de porco?
– Está falando de peles como sempre, Dorregaray? – indagou Filippa Eilhart,
aproximando-se dos dois. – De curtumes e sapatarias? Que tema mais trivial e desagradável!
– Desagradável para uns e agradável para outros – respondeu o feiticeiro com desprezo. –
Você tem lindos apliques no vestido, Filippa. Se não me engano, são de arminho-diamantino.
Muito elegantes. Você está ciente de que, por causa da beleza de sua pele, essa espécie foi
extinta vinte anos atrás?
– Trinta – corrigiu-o Filippa, enfiando na boca os últimos camarões, aqueles que Geralt
não teve tempo de comer. – Sei, sei. A espécie certamente teria ressuscitado caso eu tivesse
pedido a minha costureira que fizesse os apliques com pedaços de estopa. Só que a cor da
estopa não combinava com a do vestido.
– Vamos para a outra mesa – propôs o bruxo taticamente. – Vi nela uma enorme travessa
cheia de caviar negro. Considerando que os esturjões estão em franco processo de extinção,
sugiro que nos apressemos.
– Caviar em sua companhia? Sempre sonhei com isso. – Filippa adejou as pestanas,
pegando o braço do bruxo. Ela exalava um excitante perfume de canela e nardo. – Vamos.
Você nos fará companhia, Dorregaray? Não? Então adeus. Divirta-se.
O feiticeiro fez uma careta de desagrado e deu-lhes as costas. Sabrina Glevissig e sua
companheira ruiva acompanharam Geralt e Filippa com um olhar tão venenoso quanto o das
cobras-das-rochas, ameaçadas de extinção.
– Dorregaray – sussurrou Filippa, ostensivamente aproximando seu corpo do quadril de
Geralt – espiona para o rei Ethain de Cidaris. Tenha cuidado. Aquele papo sobre répteis e
peles é apenas uma introdução para suas perguntas. Enquanto isso, Sabrina Glevissig aguça os
ouvidos…
– … porque espiona para Henselt de Kaedwen. Você já me contou. Já a companheira de
Sabrina, aquela ruiva…
– Ela não é ruiva natural. Você não notou que seus cabelos são tingidos? É Marti
Sodergen.
– E ela espiona para quem?
– Marti? – Filippa riu, mostrando dentes brilhantes por entre lábios carregados de batom.
– Para ninguém. Marti não se interessa por política.
– Que coisa mais excitante! Achei que todos fossem espiões.
– Muitos, sim. – A feiticeira semicerrou os olhos. – Mas não todos, como Marti Sodergen.
Ela é curandeira, não espiã. E ninfomaníaca. Ah, que droga, olhe só! Comeram todo o caviar,
até a última ovinha. Chegaram a lamber a travessa! E o que podemos fazer agora?
– Agora – sorriu Geralt inocentemente – você me contará que há algo suspenso no ar. Vai
me dizer que deverei abandonar a neutralidade e fazer uma escolha. Vai me propor uma
aposta. Não ouso imaginar qual será meu prêmio caso a vença, mas sei o que terei de fazer
caso a perca.
Filippa Eilhart ficou calada por um bom tempo, sem abaixar os olhos.
– Deveria ter imaginado – falou baixinho – que Dijkstra o abordou e lhe fez uma proposta.
E eu o preveni de que você desdenha espiões.
– Não desdenho espiões; desdenho a espionagem em si, assim como o desprezo pela
inteligência alheia. Não me proponha aposta alguma, Filippa. Admito que também sinto que
algo está suspenso no ar, mas por mim isso pode ficar suspenso por quanto tempo quiser. Isso
não me diz respeito e não me interessa.
– Você já me disse isso uma vez. Em Oxenfurt.
– Alegro-me por você estar lembrada. Imagino que também se lembra das circunstâncias
em que isso se passou.
– Precisamente. Naquele momento, não lhe revelei a quem servia o tal Rience. Deixei que
ele escapasse. Você ficou zangado comigo…
– Para dizê-lo com delicadeza.
– Chegou a hora de eu me redimir. Amanhã lhe entregarei Rience. Não me interrompa nem
faça caretas. Não se trata de uma aposta ao estilo de Dijkstra. É uma promessa, e eu sempre
cumpro minhas promessas. Não, não faça perguntas, por favor. Aguarde até amanhã. Por
enquanto, vamos nos concentrar no caviar e em fofocas banais.
– Não há mais caviar.
– Um momento.
Filippa olhou rapidamente em volta, fez um gesto com a mão e murmurou um encanto. O
recipiente de prata em forma de peixe contorcido num salto encheu-se imediatamente com
ovas de esturjão, também ameaçado de extinção. O bruxo sorriu.
– É possível saciar a fome com uma ilusão?
– Não. Mas o esnobe sabor pode lhe proporcionar uma sensação agradável. Experimente.
– Hummm… É verdade. Parece até mais gostoso do que o verdadeiro…
– Além de não engordar – falou a feiticeira orgulhosamente, espremendo um limão sobre
uma colher cheia de caviar. – Posso lhe pedir uma taça de vinho branco?
– Às ordens. Filippa…
– Sim?
– Se não me engano, as boas normas proíbem o lançamento de encantos num lugar como
este. Diante disso, não teria sido mais seguro você ter provocado, em vez da ilusão do caviar,
apenas a ilusão de seu sabor? Somente a sensação agradável? Estou certo de que você seria
capaz de provocá-la…
– E lógico que seria – respondeu Filippa Eilhart, olhando para ele através do cristal da
taça. – Fazer um encanto assim é muito mais simples do que criar um produto. No entanto,
tendo apenas a impressão do gosto, teríamos perdido o prazer causado pela atividade. O
processo, os rituais e os gestos que a acompanham… A conversa que acompanha esse
processo, o contato dos olhos… Se quiser, poderei lhe dar uma divertida comparação. Que
tal?
– Sou todo ouvidos e já rio antecipadamente.
– Sou capaz de fazer um encanto que dá a sensação de orgasmo.
Antes de o bruxo recuperar a fala, acercou-se deles uma esbelta feiticeira de estatura
mediana, com longos cabelos lisos da cor de palha. Geralt reconheceu-a de imediato: era a
dona dos sapatos de pele de lagarto e blusinha de tule verde tão transparente que não cobria
sequer a discreta pinta escura em seu seio esquerdo.
– Peço perdão – falou –, mas tenho de interromper esse flerte de vocês. Filippa: Radcliffe
e Detmold pedem que você vá falar com eles por um instante. Urgentemente.
– Bem, se é assim, então tenho de ir. Tchau, Geralt. Flertaremos mais tarde!
– Ah! – A feiticeira loura avaliou o bruxo com um olhar. – Geralt. O bruxo que fez
Yennefer perder o bom senso. Estive observando você e quebrava a cabeça querendo
adivinhar quem você era. É uma sensação martirizante!
– Conheço esse tipo de martírio – respondeu Geralt, sorrindo educadamente. – Estou
passando por ele neste exato momento.
– Desculpe-me a gafe. Sou Keira Metz. Oh, que beleza, caviar!
– Cuidado! Trata-se de uma ilusão.
– Você tem razão! – exclamou a feiticeira, largando a colher como se fosse a cauda de um
escorpião-negro. – Quem teve tamanha ousadia… Você? Você sabe fazer encantos de quarto
grau?
– Sim – mentiu o bruxo, sem parar de sorrir. – Sou um mestre mago disfarçado de bruxo
para me manter incógnito, ou você acha que Yennefer seria capaz de se interessar por um
simples bruxo?
Keira Metz fixou os olhos nos dele e contorceu os lábios. De seu pescoço pendia um
medalhão de prata incrustado com zircão em forma de cruz ansata.
– Aceita uma taça de vinho? – ofereceu Geralt no intuito de interromper o embaraçoso
silêncio que se seguiu, temendo que seu chiste não tivesse sido bem-aceito.
– Não, obrigada… colega mestre – falou Keira gelidamente. – Eu não bebo. E não posso.
Pretendo engravidar esta noite.
– De quem? – indagou, aproximando-se, a falsa ruiva amiga de Sabrina Glevissig, trajando
a blusinha de finíssimo tecido branco decorada com apliques e bordados em locais
estratégicos. – De quem? – repetiu, adejando inocentemente as pestanas.
Keira virou-se e olhou para a recém-chegada, desde os sapatinhos de couro de iguana-
branca até o pequeno diadema de pérolas.
– E o que você tem a ver com isso?
– Nada. Apenas uma curiosidade profissional. Você não vai me apresentar a seu
companheiro, o famoso Geralt de Rívia?
– Com desprazer, mas sei que você não desistirá tão cedo. Geralt, essa é Marti Sodergen,
uma curandeira, especialista em afrodisíacos.
– Precisamos falar de negócios? Oh, vejo que vocês me deixaram um pouco de caviar.
Como é gentil de sua parte…
– Cuidado – falaram em coro Keira e o bruxo. – É uma ilusão.
– De fato! – Marti Sodergen inclinou-se, franziu o narizinho, pegou a taça e observou os
vestígios de batom na borda. – É claro, Filippa Eilhart. Quem mais ousaria ser tão
despudorado? Uma cobra venenosa. Vocês sabem que ela espiona para Vizimir da Redânia?
– E é ninfomaníaca? – arriscou o bruxo.
Marti e Keira soltaram uma gargalhada.
– Será que você contava com isso ao flertar com ela? – indagou a curandeira. – Se
contava, então saiba que alguém o fez de bobo. De certo tempo para cá, Filippa parou de se
interessar por homens.
– Ou talvez você seja uma mulher? – Keira Metz estufou os lábios provocativamente. –
Talvez você esteja apenas se fingindo de homem, colega mestre? Para permanecer incógnito?
Saiba, Marti, que ele me confessou momentos atrás que gosta de fingir.
– Gosta e sabe – sorriu Marti sarcasticamente. – Não é verdade, Geralt? Ainda há pouco
vi como você fingia ter problemas de audição e não conhecer a Língua Antiga.
– Ele tem uma porção de defeitos – falou Yennefer com frieza, aproximando-se e pegando
possessivamente o braço do bruxo. – Na verdade, ele só tem defeitos. Vocês estão perdendo
seu tempo, meninas.
– Tudo indica que sim – concordou Marti Sodergen, mantendo o sorriso sarcástico. –
Venha, Keira, vamos tomar algo… não alcoólico. Quem sabe eu também não acabe decidindo
fazer algo especial esta noite?
– Uff – suspirou o bruxo assim que elas se afastaram. – Você chegou bem na hora, Yen.
Muito obrigado.
– Você me agradece? Só se for de mentirinha. Neste salão há exatamente onze mulheres
mostrando os seios através do tecido transparente da blusa. Eu deixo você por meia hora e o
flagro falando com duas delas… – Yennefer interrompeu-se e olhou para a travessa em forma
de peixe. – … e comendo ilusão – acrescentou. – Oh, Geralt, Geralt. Venha comigo. Surgiu
uma oportunidade de apresentá-lo a algumas pessoas que vale a pena conhecer.
– Por acaso uma dessas pessoas não seria Vilgeforz?
– Que curioso – a feiticeira semicerrou os olhos – você perguntar exatamente por ele. Sim,
é Vilgeforz que deseja conhecê-lo e bater um papo com você. Estou lhe avisando que a
conversa poderá parecer despreocupada e banal, mas não se deixe levar pelas aparências.
Vilgeforz é um jogador extraordinariamente habilidoso e experiente. Não sei o que ele quer
com você, mas mantenha-se alerta.
– Vou me manter alerta – suspirou o bruxo. – Mas não creio que esse seu experiente
jogador esteja em condições de me surpreender. Não depois de tudo por que passei aqui. Fui
assediado por espiões e atacado por répteis e arminhos. Fui alimentado com caviar
inexistente. Ninfomaníacas que não gostam de homens puseram em dúvida minha
masculinidade, ameaçaram-me de estupro sobre um ouriço, assustaram-me com a
possibilidade de uma gravidez e até com um orgasmo, um orgasmo provocado sem os
movimentos rituais. Brrr…
– Você andou bebendo?
– Uns goles de vinho branco de Cidaris. No entanto, suspeito que ele continha algum
afrodisíaco… Yen, será que depois de minha conversa com Vilgeforz poderemos retornar a
Loxia?
– Nós não vamos retornar a Loxia.
– Como?
– Quero passar esta noite em Aretusa. Com você. Afrodisíaco, você disse? No vinho?
Interessante…
– Sim, Lydia, excelente ideia – respondeu Vilgeforz. – Vamos dar uma volta pela Galeria
da Glória. Geralt de Rívia, você terá a oportunidade de lançar um olhar sobre a história da
magia. Não tenho dúvida de que você conhece a história da magia, mas agora terá a
oportunidade de conhecer sua história visual. Se você é um conoisseur de pintura, não se
assuste. Quase todos os quadros que verá são obras de entusiásticas alunas de Aretusa. Lydia,
faça a gentileza de clarear um pouco a penumbra reinante neste recinto.
Lydia van Bredevoort fez um amplo gesto com a mão no ar, e o corredor ficou
imediatamente mais claro.
O primeiro quadro representava um antiquíssimo veleiro revoluteando por entre abrolhos
que emergiam de uma espumante superfície de água. Na proa do barco estava um homem de
veste branca, com uma brilhante auréola acima de sua cabeça.
– O primeiro desembarque – adivinhou o bruxo.
– Evidentemente – confirmou Vilgeforz. – A Nau dos Exilados. Jan Bekker subjuga a Força
a sua vontade. Acalma as ondas, comprovando que a magia não precisa ser decididamente má
e destruidora, mas que também pode salvar vidas.
– Esse fato ocorreu realmente?
– Duvido – sorriu o feiticeiro. – O que é mais provável é que, durante a primeira viagem e
no desembarque, Bekker e seus companheiros ficaram vomitando debruçados sobre a borda da
nave. A subjugação da Força só aconteceu após o desembarque, que, por mais estranho que
possa parecer, foi bem-sucedido. Mas sigamos adiante. Aqui você pode ver novamente Jan
Bekker, quando ele faz jorrar água da rocha no lugar do primeiro povoado. Já aqui Bekker,
cercado pelos colonos, afugenta nuvens e detém uma tempestade para proteger os armazéns de
grãos.
– E aqui? Que acontecimento representa esse quadro?
– O Reconhecimento dos Exilados. Bekker e Giambattista submetem a um teste mágico as
crianças dos novos colonos para identificar Fontes. As crianças escolhidas serão tiradas dos
pais e levadas para Mirthe, a primeira sede dos magos. Você está olhando para um
acontecimento histórico. Como pode ver, todas as crianças estão apavoradas e apenas a
decidida morena com um sorriso cheio de confiança estende as mãos para Giambattista. Trata-
se da mais tarde famosa Agnes de Glanville, a primeira mulher que se tornou feiticeira. A
mulher que está a seu lado é sua mãe. Está meio triste.
– E essa cena coletiva?
– A União Novigrada. Bekker, Giambattista e Monck firmam um acordo com os
governantes, sacerdotes e druidas. Uma espécie de pacto de não agressão e de separação da
magia do Estado. Um horrendo kitsch. Vamos prosseguir. Aqui vemos Geoffrey Monck
subindo o Pontar, ainda chamado àquela época de Aevon y Pont ar Gwennelen, ou seja, Rio
das Pontes de Alabastro. Monck navegava para Loc Muinne com o intuito de convencer os
elfos de lá a aceitar um grupo de crianças-Fontes para serem educadas por magos élficos.
Talvez você se interesse em saber que entre aquelas crianças havia um menino mais tarde
chamado de Gerhart de Aaelle. Você o conheceu há pouco. Agora, esse menino atende pelo
nome de Hen Gedymdeith.
– Aqui – o bruxo olhou para o feiticeiro – deveria haver uma cena de batalha, uma vez
que, após a bem-sucedida expedição de Monck, as tropas do marechal Raupenneck de
Tretogor perpetraram um massacre em Loc Muinne e Est Haemlet, matando todos os elfos, sem
ligar para idade ou sexo. Foi o que deflagrou a guerra terminada com o massacre em
Shaerrawedd.
Vilgeforz tornou a sorrir e disse:
– Mas seu impressionante conhecimento da história lhe permite saber que nenhum
feiticeiro teve participação naquelas guerras. Portanto, esse tema não inspirou nenhuma das
alunas de Aretusa a pintar um quadro a tal respeito. Vamos seguir em frente.
– Vamos – concordou o bruxo. – Qual é o acontecimento representado nessa tela? Ah, já
sei. É quando Raffard, o Branco, promove a paz entre os reis, acabando com a Guerra dos
Seis Anos. É o momento no qual Raffard recusa a coroa. Um gesto lindo e nobre.
– É o que você acha? – indagou Vilgeforz. – De todo modo, foi um gesto que estabeleceu
um precedente. Raffard acabou aceitando o posto de conselheiro-mor e passou a reinar de
fato, porque o rei era um imbecil.
– Galeria da Glória… – resmungou o bruxo, passando para o quadro seguinte. – E o que
temos aqui?
– O momento histórico da convocação do primeiro Capítulo e da decretação das Leis. Da
esquerda para a direita vemos Herbert Stammelford, Aurora Henson, Ivo Richter, Agnes de
Glanville, Geoffrey Monck e Radmir de Tor Carnedd. Para ser totalmente sincero, aqui
também deveria figurar uma cena de batalha, pois o que se seguiu foi uma guerra encarniçada
em que foram eliminados todos aqueles que não quiseram reconhecer o Capítulo nem se
submeter às Leis, entre eles o próprio Raffard, o Branco. Só que os tratados históricos não
abordam esse ponto para não prejudicar sua bela lenda.
– E aqui… Hummm… Imagino que isso foi pintado por uma aluna… aliás, muito jovem…
– Sem dúvida. Trata-se de uma alegoria. Eu a chamaria de “O triunfo da feminilidade”. Ar,
Água, Terra, Fogo e quatro famosas feiticeiras, mestras na manipulação das forças de tais
elementos: Agnes de Glanville, Aurora Henson, Nina Fioravanti e Klara Larissa de Winter.
Olhe para a tela seguinte, muito mais bem pintada. Nela você pode ver Klara Larissa abrindo
a academia para meninas, o prédio no qual nos encontramos neste exato momento. Já os
retratos seguintes são de famosas diplomadas de Aretusa. Temos aqui uma longa história da
triunfante feminilidade e da progressiva feminização de nosso ofício: Yanna de Murivel, Nora
Wagner e sua irmã, Augusta, Jade Glevissig, Letícia Charbonneau, Ilona Laux-Antille, Carla
Demetia Crest, Violenta Suarez, April Wenhaver … e a única que continua viva, Tissaia de
Vries…
Seguiram adiante. A seda do vestido de Lydia van Bredevoort roçava pelo chão emitindo
um sussurro cheio de segredos assustadores.
– E isso? – perguntou Geralt, parando diante da tela seguinte. – O que representa essa cena
horrível?
– O martírio do mago Radmir, esfolado vivo durante a rebelião de Falka. No fundo, arde a
cidade de Mirthe, que Falka ordenou transformar num montão de cinzas.
– Pouco tempo depois, a própria Falka foi também transformada num montão de cinzas, ao
ser queimada numa fogueira.
– É um fato de conhecimento geral, a ponto de as crianças temerianas e redânias até hoje
brincarem de queimar Falka na véspera de Saovine. Vamos voltar, para que você veja a outra
parte da galeria… Noto que você quer perguntar algo. Vá em frente.
– Estou meio confuso com a cronologia… É óbvio que sei como agem os elixires da
juventude, mas a aparição concomitante na tela de pessoas que estão vivas e mortas há muito
tempo…
– Em outras palavras, você está espantado pelo fato de ter encontrado no banquete Hen
Gedymdeith e Tissaia de Vries, e não estarem lá Bekker, Agnes de Glanville, Stammelford ou
Nina Fioravanti?
– Não. Sei que vocês não são imortais…
– O que, em sua opinião, é a morte? – interrompeu-o Vilgeforz.
– O fim.
– O fim de quê?
– Da existência. Pelo que vejo, passamos a filosofar.
– A Natureza não conhece o conceito de filosofia, Geralt de Rívia. Filosofia é o nome que
damos às lastimosas e ridículas tentativas dos seres humanos de compreender a Natureza.
Entendemos, também, por filosofia os resultados de tais tentativas. É como se uma beterraba
procurasse as razões e os efeitos de sua existência, chamando o resultado de suas reflexões de
eterno e secreto Conflito de Bulbo com Rama, e reconhecesse a chuva como a Insondável
Força Criadora. Nós, feiticeiros, não perdemos tempo em tentativas de adivinhar em que
consiste a Natureza. Sabemos o que ela é, porque nós mesmos somos a própria Natureza.
Conseguiu entender?
– Estou me esforçando, mas peço que fale mais devagar. Não se esqueça de que está
conversando com uma beterraba.
– Você alguma vez tentou pensar no que aconteceu quando Bekker obrigou a água a jorrar
da rocha? É muito simples: Bekker subjugou a Força. Obrigou o elemento à obediência.
Adaptou a Natureza a seus desejos, passou a dominá-la… Como você lida com as mulheres,
Geralt?
– Hein?
Lydia van Bredevoort virou-se, com um sussurro da seda do vestido, e permaneceu assim,
na expectativa de uma resposta. Geralt notou que ela segurava debaixo do braço um quadro
embrulhado em papel. Não tinha a menor ideia de onde o tal quadro surgira, já que momentos
antes ela não carregava nada. O amuleto em seu pescoço tremeu ligeiramente.
Vilgeforz sorria.
– Perguntei sua opinião sobre a relação entre um homem e uma mulher.
– Considerando que tipo de relação?
– Em sua opinião, pode-se forçar obediência a uma mulher? É óbvio que estou me
referindo a uma mulher de verdade, não a uma fêmea. É possível dominar uma mulher de
verdade? Subjugá-la? Fazer com que ela se submeta a sua vontade? Se sim, de que modo?
Responda.
A bonequinha de pano não tirava deles os olhos de botão. Yennefer desviou seu olhar.
– E você respondeu?
– Respondi.
A feiticeira apertou a mão esquerda no cotovelo do bruxo e a direita nos dedos que
tocavam seu seio.
– De que maneira?
– Você sabe muito bem.
– Você entendeu – falou Vilgeforz após um momento. – E creio que você sempre entendeu.
Assim, está em condições de entender também que, quando morrem e desaparecem os
conceitos de vontade e subordinação, de mando e obediência, de senhor e serva, obtém-se a
unidade. Parceria, união num todo. Fusão mútua. E, quando algo desse tipo ocorre, a morte
deixa de ter qualquer significado. Lá, no salão do banquete, aquele Jan Bekker que fez com
que água jorrasse da pedra está presente. Dizer que Bekker morreu é como afirmar que morreu
a água. Olhe para essa tela.
Geralt olhou.
– Ela é extraordinariamente bela – falou após um breve momento de silêncio, sentindo de
imediato um leve tremor em seu medalhão.
– Lydia – sorriu Vilgeforz – lhe agradece o reconhecimento, enquanto eu lhe dou parabéns
pelo bom gosto. A imagem representa o encontro de Cregenn de Lod e Lara Dorren aep
Shiadal, os lendários amantes separados e destruídos durante o tempo do desprezo. Ele era um
feiticeiro, e ela, uma elfa, uma elfa da elite de Aen Saevherne, ou seja, das Versadas. Aquilo
que poderia ter sido o começo de uma união num todo converteu-se em tragédia.
– Conheço essa história. Sempre achei que se tratasse de uma lenda. O que aconteceu de
verdade?
– Isso – respondeu o feiticeiro, com voz mais séria – ninguém sabe. Quero dizer, quase
ninguém. Lydia, pendure seu quadro ali, ao lado daquele. É o retrato de Lara Dorren aep
Shiadal pintado com base numa miniatura muito antiga.
– Meus parabéns. – O bruxo inclinou-se diante de Lydia van Bredevoort, e sua voz não
tremeu. – Trata-se de uma autêntica obra-prima.
Sua voz não tremeu, ainda que Lara Dorren aep Shiadal olhasse do quadro para ele com
olhos de Ciri.
– E o que aconteceu em seguida?
– Lydia ficou na arcada, enquanto nós dois saímos para o terraço. Foi quando ele se
divertiu a minha custa.
– Por aqui, Geralt. Permita-me. Pise somente nas placas escuras, por favor.
Ao fundo marulhava o mar, e a ilha de Thanedd emergia da branca espuma provocada pela
ressaca. As ondas batiam nos muros de Loxia, localizados diretamente debaixo deles. Tanto
Loxia como Aretusa cintilavam com centenas de luzes. Já Garstang, o gigantesco bloco de
pedra que se erguia acima delas, estava escuro e morto.
– Amanhã – falou o feiticeiro, seguindo o olhar do bruxo – os membros do Capítulo e do
Conselho vão se vestir com os tradicionais trajes que você conhece de gravuras antigas: longa
capa negra e chapéu pontudo. Vamos nos armar também com longas varinhas e cajados,
ficando, assim, parecidos com feiticeiros e magas com os quais se costuma assustar crianças.
É uma tradição. Acompanhados por alguns outros delegados, subiremos até Garstang, onde
vamos discutir diversas questões numa sala especialmente preparada para essa finalidade. Os
demais convivas permanecerão em Aretusa aguardando nosso retorno e nossas decisões.
– Discutir em Garstang num pequeno grupo também é uma tradição?
– E como. É antiquíssima e ditada por considerações de ordem prática. Houve casos em
que as reuniões dos feiticeiros se tornaram tempestuosas, com discussões bastante acaloradas,
a ponto de em uma delas um raio danificar o penteado e o vestido de Nina Fioravanti. Diante
disso, Nina dedicou um ano de trabalho para cercar Garstang com uma aura incrivelmente
forte e um bloqueio antimagia. Com isso, nenhum encanto funciona em Garstang e as
discussões transcorrem num ambiente mais pacífico, principalmente quando não se esquece de
tirar as facas dos partícipes antes de entrarem na sala.
– Entendo. E aquela torre solitária acima de Garstang? É uma construção importante?
– É Tor Lara, a Torre da Gaivota. Uma ruína. Se ela é importante? Provavelmente.
– Provavelmente?
O feiticeiro apoiou-se na balaustrada.
– Segundo uma lenda élfica, Tor Lara é ligada por uma espécie de teleportal à misteriosa e
até hoje não descoberta Tor Zireael, a Torre da Andorinha.
– Não posso acreditar que vocês não conseguiram descobrir o teleportal.
– E tem razão em não acreditar. Descobrimos o portal, mas tivemos de bloqueá-lo. Houve
protestos, todos queriam experimentá-lo, para adquirir fama como exploradores de Tor
Zireael, a mítica sede de magos e sábios élficos. No entanto, o portal está irremediavelmente
contorcido e seu funcionamento é caótico. Houve casos fatais, de modo que nós o bloqueamos.
Mas vamos seguir adiante, Geralt, porque está ficando frio. Ande com cuidado e pise somente
nas placas escuras.
– Por que somente nas escuras?
– Esta construção já é uma ruína. A umidade, a abrasão, os fortes ventos, o sal no ar, isso
tudo tem um péssimo efeito nos muros. Como uma reforma completa custaria muito caro,
utilizamos uma ilusão. Um prestígio, entendeu?
– Não de todo.
O feiticeiro fez um gesto com a mão e o terraço sumiu. Estavam parados sobre o
precipício, com o fundo pontilhado de picos de rochas emergindo da espuma. Encontravam-se
sobre uma estreita e interrompida trilha feita de placas escuras que pareciam trapézios
dispostos entre o pórtico de Aretusa e o pilar que sustentava o terraço.
Geralt esforçou-se para manter o equilíbrio. Se fosse um ser humano, e não um bruxo, não
teria conseguido. Mesmo assim, foi pego de surpresa. Seu gesto repentino e a mudança em sua
expressão facial não passaram despercebidos ao feiticeiro. O vento balançou-o sobre a
estreita placa, enquanto o precipício chamava-o com o assustador marulho das ondas.
– Você tem medo da morte – sorriu Vilgeforz. – Apesar de tudo, você a teme.
– Por que você não se tornou feiticeiro, Geralt? A Arte nunca procurou seduzi-lo? Seja
sincero.
– Vou ser. Ela me tentou.
– E por que não seguiu a voz da tentação?
– Cheguei à conclusão de que seria mais razoável seguir a voz da razão.
– O que quer dizer?
– Que os anos de trabalho na profissão de bruxo me ensinaram a nunca tentar algo que
ultrapassa os limites de minhas possibilidades. Saiba, Vilgeforz, que certa vez conheci um
anão que quando criança sonhava em se tornar um elfo. Como você imagina que ele acabaria
caso tivesse seguido a voz da tentação?
– Isso seria uma comparação? Um paralelo? Se sim, é totalmente falso. O anão jamais
poderia se transformar num elfo porque não teve mãe elfa.
Geralt ficou calado por bastante tempo.
– Bem – disse por fim. – Poderia ter adivinhado. Você andou bisbilhotando minha
biografia. Posso saber com que intenção?
– Talvez – respondeu o feiticeiro, sorrindo levemente – eu ande sonhando com um quadro
na Galeria da Glória. Nós dois sentados junto a uma mesa e uma plaqueta de bronze com os
dizeres: “Vilgeforz de Roggeveen firma um tratado de paz com Geralt de Rívia.”
– Isso seria uma alegoria intitulada “O triunfo da sapiência sobre a ignorância” – retrucou
o bruxo. – Eu teria preferido um quadro mais realista com o título: “Vilgeforz esclarece a
Geralt do que se trata.”
– Mas isso não é evidente?
– Não.
Vilgeforz uniu as pontas dos dedos das mãos na altura dos lábios.
– Você se esqueceu? O quadro com o qual sonho está pendurado na Galeria da Glória. É
admirado pelas gerações futuras, que sabem muito bem do que se trata, que tipo de
acontecimento é representado na pintura. Na tela, Vilgeforz e Geralt chegam a um
entendimento pelo qual Geralt, seguindo sua verdadeira vocação, em vez de sua tendência ou a
voz da razão, ingressa finalmente nas fileiras dos magos, dando um basta a sua existência
insensata e sem futuro.
– E pensar que até recentemente eu achava que nada mais poderia me surpreender – falou
o bruxo após um longo período de silêncio. – Creia-me, Vilgeforz, que vou me lembrar por
muito tempo desse banquete e desses acontecimentos feéricos. Na verdade, eles são dignos de
um quadro intitulado “Geralt abandona a ilha de Thanedd contorcendo-se de rir”.
– Não entendi. – O feiticeiro inclinou-se levemente. – Eu me perdi no meio dos floreios de
seu linguajar entremeado por palavras rebuscadas.
– Os motivos de sua incompreensão são evidentes para mim. Nós nos diferenciamos por
demais para nos entendermos. Você é um poderoso mago do Capítulo, que conseguiu alcançar
a unidade com a Natureza. Eu não passo de um vagabundo, um bruxo mutante que anda pelo
mundo e extermina monstros em troca de dinheiro…
– Os floreios – interrompeu-o o feiticeiro – acabaram sendo ultrapassados por
banalidades.
– Nós nos diferenciamos por demais. – Geralt não se deixou desviar de sua linha de
raciocínio. – E o pequeno detalhe de minha mãe provavelmente ter sido uma feiticeira não é
suficiente para eliminar essa diferença. A propósito, quem foi sua mãe?
– Não tenho a mínima ideia – respondeu Vilgeforz calmamente.
O bruxo calou-se de imediato.
– Os druidas do Círculo de Kovir – retomou o feiticeiro – me acharam numa sarjeta em
Lan Exeter. Eles me acolheram e educaram, evidentemente para ser um druida. Você sabe o
que é um druida? É um mutante vagabundo que anda por aí fazendo reverências a carvalhos.
O bruxo permaneceu em silêncio.
– Depois – continuou Vilgeforz –, durante certos rituais dos druidas, meus talentos
começaram a emergir, talentos que sem a mínima possibilidade de dúvida permitiram definir
minhas origens. Fui gerado, obviamente por acaso, por dois seres humanos, dos quais pelo
menos um era feiticeiro.
Geralt continuava calado.
– Quem descobriu meus modestos talentos foi um feiticeiro encontrado por acaso –
prosseguiu Vilgeforz, tranquilo. – E ele me obsequiou com uma grande graça: propôs-me a
possibilidade de me educar e aperfeiçoar, na perspectiva de eu entrar na Irmandade dos
Magos.
– E você – falou o bruxo surdamente – aceitou a proposta.
– Não. – A voz de Vilgeforz foi ficando cada vez mais fria e desagradável. – Recusei-a de
maneira pouco polida e até grosseira. Descarreguei no pobre velhinho toda a minha raiva.
Quis que ele se sentisse culpado; ele e toda a confraria de magos. Culpado, obviamente, pela
sarjeta de Lan Exeter; culpado por um ou dois magos cafajestes sem coração e sem sentimento
humano algum terem me atirado naquela sarjeta depois, e não antes, de meu nascimento. O
feiticeiro, como era de esperar, não compreendeu o que eu lhe disse e não se importou com
isso. Simplesmente deu de ombros e foi embora, mostrando com tal atitude que tanto ele como
seus colegas não passavam de insensíveis e arrogantes filhos da puta, dignos do mais elevado
desprezo.
Geralt não disse uma palavra sequer.
– Como já estava sinceramente farto dos druidas – continuou Vilgeforz –, abandonei os
carvalhos sagrados e parti para o mundo. Fiz uma porção de coisas, e me envergonho de
algumas até hoje. Por fim acabei me tornando um mercenário. Meus próximos passos, como
você bem pode imaginar, foram estereotípicos: soldado vencedor, soldado derrotado,
desertor, saqueador, estuprador, assassino e, por fim, fugitivo, para escapar da forca. Fugi
para o fim do mundo. E foi lá, no fim do mundo, que conheci uma mulher. Uma feiticeira.
– Cuidado – sussurrou o bruxo, semicerrando os olhos. – Cuidado, Vilgeforz, para que
seus esforços para encontrar alguma semelhança comigo não o levem longe demais.
– As semelhanças já terminaram – respondeu o feiticeiro, sem desviar o olhar –, uma vez
que eu não soube lidar com os sentimentos que nutria por aquela mulher. Tampouco consegui
entender os sentimentos dela para comigo, e ela não tentou me ajudar em tal sentido.
Abandonei-a. Porque ela era promíscua, arrogante, malvada, insensível e fria. Porque não
havia meios de dominá-la, e sua dominação era humilhante para mim. Abandonei-a por saber
que ela se interessava por mim exclusivamente porque minha inteligência, minha
personalidade e o fascinante mistério que me cercava apagavam o fato de eu não ser um
feiticeiro. E era apenas a feiticeiros que ela costumava honrar com mais de uma noite.
Abandonei-a porque ela era… porque era como minha mãe. Compreendi de repente que
aquilo que sentia por ela não era amor, mas um sentimento muito mais profundo, forte e difícil
de classificar: um misto de medo, ressentimento, raiva, remorso, sentimento de culpa, perda e
uma perversa necessidade de sofrimento e castigo. Em outras palavras, o que eu sentia por
aquela mulher era ódio.
Geralt continuava calado. Vilgeforz não o mirava.
– Abandonei-a – repetiu – e não pude viver com o vazio que se apossou de mim. E
compreendi por fim que não era a falta da mulher que provocava aquele vazio, mas a falta
daquilo que sentira. Um paradoxo, não é verdade? Acho que não preciso concluir meu relato,
pois você já pode adivinhar o resto. Tornei-me um feiticeiro. Por puro ódio. E foi somente
então que entendi como havia sido tolo. Eu confundia o céu com estrelas refletidas durante a
noite na superfície de um lago.
– Como você observou acertadamente, os paralelos entre nós não permaneceram assim até
o final – resmungou Geralt. – Apesar das aparências, pouco temos em comum, Vilgeforz. O
que você quis provar ao me contar sua história? Que o caminho ao mestrado de feitiçaria,
embora tortuoso e difícil, pode ser acessível a qualquer um? Mesmo para, perdoe-me os
paralelos, bastardos e enjeitados, vagabundos ou bruxos…
– Não – interrompeu-o o feiticeiro. – Não pretendi demonstrar que o caminho é acessível
a qualquer um, porque tal fato foi comprovado há muito tempo e é do conhecimento de todos.
Também não é necessário provar o fato de que para algumas pessoas simplesmente não resta
outro caminho.
– Quer dizer – sorriu o bruxo – que eu não tenho saída? Tenho de firmar com você o tal
pacto que será objeto de um quadro e me tornar um feiticeiro? Só por causas genéticas? Vamos
com calma. Conheço um pouco da teoria de hereditariedade. Meu pai, cuja história consegui
descobrir a duras penas, foi um vagabundo, simplório, aventureiro e sicário. Meus genes da
espada podem muito bem ter predominância sobre os da roca. O fato de eu ser bom no manejo
da espada parece confirmar isso.
– Pois é. – O feiticeiro deu um sorriso debochado. – A areia da ampulheta já quase passou
de um compartimento para o outro, e eu, Vilgeforz de Roggeveen, mestre da magia e membro
do Capítulo, continuo conversando, não sem prazer, com um simplório e sicário, filho de um
simplório, sicário e vagabundo. Falamos de coisas que, como é público e notório, são típicos
assuntos abordados em torno de fogueiras por simplórios e sicários. Coisas como genética,
por exemplo. Aliás, de onde você conhece essa palavra, meu caro sicário? Da escolinha do
templo de Ellander, onde ensinam a soletrar e escrever vinte e quatro runas? O que o fez ler
livros em que essa palavra e outras semelhantes a ela poderiam ser encontradas? Onde você
aperfeiçoou tanto sua retórica e sua eloquência? E por que você as aperfeiçoou? Para
conversar com vampiros? Oh, meu caro genético vagabundo para quem sorri Tissaia de Vries.
Meu querido bruxo e chacinador que fascina Filippa Eilhart a ponto de suas mãos tremerem e
à lembrança de quem Triss Merigold fica vermelha como um tomate. Isso sem falar de
Yennefer de Vengerberg.
– Talvez seja até bom você não falar dela. Sobrou tão pouca areia no compartimento
superior da ampulheta que quase dá para contar seus grãos. Não pinte mais quadros, Vilgeforz,
e diga logo de que se trata. E use palavras simples. Imagine que estamos sentados junto de
uma fogueira, dois vagabundos assando um porco que acabamos de roubar e tentando
inutilmente nos embriagar com suco de bétulas. Surge uma simples pergunta. Responda a ela.
Como um vagabundo a outro.
– E como soa essa simples pergunta?
– Como seria o pacto que você me propõe? Que tipo de tratado deveríamos firmar? Por
que você quer me ter em sua panela, Vilgeforz? Numa panela na qual, pelo que me parece,
tudo está começando a ferver? O que aqui, além dos candelabros, paira no ar?
– Hummm – o feiticeiro ficou pensativo ou fingiu ficar. – A pergunta não é tão simples
assim, mas tentarei responder a ela. No entanto, não como um vagabundo a outro.
Responderei… como um sicário a outro, semelhante a ele.
– Pode ser.
– Ouça-me, portanto, colega sicário. Haverá um conflito de grandes proporções. Uma luta
de vida e morte, sem perdão. Uns vencerão e outros acabarão bicados por corvos. Sugiro-lhe,
camarada, juntar-se aos que têm maiores chances, ou seja, a nós, e abandonar os outros,
cuspindo neles com saliva grossa, porque não têm a mínima chance e não faz sentido você
apodrecer com eles. Não, não, camarada; não me faça caretas, porque sei muito bem o que
você quer dizer. Que permanecerá neutro, que está pouco se lixando tanto para uns como para
os outros e que simplesmente passará todo o conflito recluso nas montanhas, em Kaer Morhen.
Não é boa ideia, camarada. Conosco estará tudo o que você ama. Se você não se unir a nós,
perderá tudo. E aí você será engolido pelo grande vazio, pelo nada e pelo ódio. Você será
destruído pelo tempo do desprezo, que está se aproximando. Portanto, seja razoável e, quando
chegar a hora de fazer a escolha, coloque-se do lado certo. Porque a hora da escolha chegará.
Pode acreditar em mim.
– É incrível – o bruxo deu um sorriso horrível – a que ponto minha neutralidade incomoda
a todos. A que ponto ela me transforma num objeto de propostas de pactos e acordos, ofertas
de cooperação e explanações sobre a necessidade de fazer uma escolha e me colocar do lado
certo. Vamos acabar com esta conversa, Vilgeforz. Você está gastando sua saliva à toa. Nesse
jogo eu não sou um parceiro a sua altura. Não vejo possibilidade alguma de ambos nos
encontrarmos num quadro na Galeria da Glória. Principalmente se o quadro for bélico.
O feiticeiro permaneceu calado.
– Pegue seu tabuleiro – continuou Geralt – e arrume nele os reis, as damas, os cavalos e as
torres sem se preocupar comigo, porque eu, nesse tabuleiro, significo menos que a poeira que
o cobre. Esse jogo não é meu. Você afirma que terei de fazer uma escolha? Pois eu afirmo que
você está enganado. Não escolherei. Vou me adaptar ao desenrolar dos acontecimentos. Vou
me adaptar ao que os outros escolherem. Sempre agi dessa maneira.
– Você é um fatalista.
– Sou, embora essa palavra seja mais uma daquelas que eu não deveria conhecer. Repito:
esse jogo não é meu.
– Você tem certeza de que não é? – Vilgeforz inclinou-se por cima da mesa. – Nesse jogo,
caro bruxo, já está no tabuleiro um corcel negro ligado a você para o bem e para o mal pelos
laços do destino. Você sabe de quem estou falando, não sabe? Não creio que queira perdê-la.
E há somente um meio de não perdê-la.
Os olhos do bruxo se estreitaram.
– O que vocês querem daquela criança?
– Só há um meio de você saber.
– Estou avisando: não permitirei que lhe façam mal algum…
– Só há um meio de você conseguir isso. Eu lhe propus esse meio, Geralt de Rívia. Reflita
sobre minha proposta. Você tem a noite toda para isso. Pense olhando para o céu. Para as
estrelas. E não as confunda com as que estão refletidas na superfície de um lago. A areia no
compartimento superior da ampulheta acabou.
No início havia um caos pulsátil e cintilante, uma cascata de imagens, um turbilhão cheio
de sons e vozes vindos das profundezas. Ciri viu uma torre que chegava até o céu, sobre cujo
telhado relâmpagos dançavam. Ouviu o grasnido de uma ave de rapina, e a ave era ela,
voando a uma velocidade alucinante sobre a superfície de um mar agitado. Viu uma
bonequinha de pano, e, repentinamente, a boneca era ela, cercada por uma profunda escuridão
que vibrava com o canto de cigarras. Viu um enorme gato branco malhado de preto, e, de
repente, o gato era ela, perto de uma casa sinistra com lambris escurecidos pelo tempo e
olores de velas e de livros antigos. Ouviu alguém chamando várias vezes seu nome. Viu
salmões prateados saltando sobre cachoeiras. Ouviu o som de gotas de chuva caindo sobre
folhas de árvores. E, depois, ouviu um longo e penetrante grito de Yennefer, e foi tal grito que
a despertou, arrancando-a daquele precipício desordenado e atemporal.
Agora, tentando em vão lembrar-se do sonho, ouvia apenas baixinhos sons de alaúde e
flauta, suaves batidas de tamborim, cantos e risos. Jaskier e um grupo de vagantes que se
conheceram por acaso continuavam a se divertir a toda no quarto no final do corredor.
Através da janela entrava o luar, clareando um pouco a penumbra e dando ao aposento de
Loxia a aparência do local de um sonho. Ciri desembaraçou-se dos lençóis. Estava suada, com
os cabelos grudados à testa. Quando anoitecera, ela tivera muita dificuldade em adormecer;
sentira falta de ar, embora a janela estivesse aberta de par em par. Sabia qual fora a causa.
Antes de sair com Geralt, Yennefer havia forrado o quarto com cortinas negras, sob o pretexto
de impedir a entrada de quem quer que fosse, mas Ciri suspeitava que a verdadeira intenção
fosse a de impossibilitar sua saída. Em outras palavras, estava presa. Yennefer, embora
claramente feliz pelo encontro com Geralt, não esquecera nem lhe perdoara a insubordinada e
louca escapada para Hirundum, graças à qual o tal encontro ocorrera.
Já em seu caso, o encontro com Geralt enchera-a de tristeza e desapontamento. O bruxo
estava taciturno, tenso, inquieto e claramente insincero. Suas conversas eram fragmentadas,
emaranhadas e interrompidas no meio de frases ou perguntas. Os olhos e os pensamentos do
bruxo fugiam dela para bem longe, e Ciri sabia aonde iam.
Do quartinho no fundo do corredor chegava-lhe o solitário e baixinho canto de Jaskier
acompanhado pela melodia provinda das cordas do alaúde, parecendo o sussurro de um fino
riacho escorrendo por entre pedras. Ciri reconheceu a melodia, que o bardo esteve compondo
por vários dias. A balada, Jaskier se vangloriara dela mais de uma vez, levava o título de
“Inalcançável” e deveria trazer glória ao poeta no torneio anual de bardos realizado no final
de outono no castelo de Vartburg. Ciri prestou atenção à letra:
Sons de cascos batendo, cavaleiros galopando na noite; no horizonte, o céu iluminado por
chamas de incêndios. A ave de rapina grasnou e estendeu as asas, preparando-se para alçar
voo. De novo mergulhada no sonho, Ciri ouviu alguém gritando repetidamente seu nome. Ora
era a voz de Geralt, ora a de Yennefer, ora a de Triss Merigold, e, por diversas vezes, a de
uma desconhecida jovem loura e triste, que olhava para ela de uma miniatura com moldura de
chifre e latão.
Depois viu o gato malhado, e, no momento seguinte, era ela mesma o próprio gato, olhando
através dos olhos dele. A sua volta, uma casa lúgubre e desconhecida. Viu longas prateleiras
cheias de livros, um atril iluminado por algumas velas e, junto dele, dois homens inclinados
sobre diversos rolos de pergaminhos. Um dos homens tossia e enxugava os lábios com um
lenço. O outro, um anão com cabeça enorme, estava sentado numa poltrona com rodinhas.
Faltavam-lhe ambas as pernas.
– Que coisa mais extraordinária… – suspirou Fenn, passando os olhos pelo gasto
pergaminho. – Não dá para acreditar… Onde você arrumou esses documentos?
– Você não acreditaria se eu lhe dissesse – tossiu Codringher. – Será que você se deu
conta de quem é realmente Cirilla, a princesa de Cintra? Criança de Sangue Antigo… O
último broto daquela maldita árvore de ódio! O último ramo, e, nele, a última maçã
envenenada…
– Sangue Antigo… Tão distante no tempo… Pavetta, Calanthe, Adália, Elen, Fiona…
– E Falka.
– Pelos deuses! Isso não é possível! Em primeiro lugar, Falka não teve filhos. Em segundo,
Fiona era filha legítima de…
– Em primeiro lugar, não sabemos nada da juventude de Falka. Em segundo, não me faça
rir, Fenn. Afinal, você sabe que a simples menção da palavra “legítima” me faz sacudir com
espasmos de riso. Acredito piamente nesse documento, porque em minha opinião ele é
autêntico e diz a verdade. Fiona, tetravó de Pavetta, era filha de Falka, o tal monstro em forma
de gente. Diabos, não acredito em todas aquelas malucas profecias, vaticínios e outras
bobagens, mas quando agora me lembro da profecia de Ithlinne…
– Sangue maculado?
– Maculado, enodoado, maldito, adjetivos que podem ser entendidos de várias maneiras.
De acordo com a lenda, se é que você se lembra, Falka era maldita porque Lara Dorren aep
Shiadal amaldiçoou sua mãe…
– Isso são contos da carochinha, Codringher.
– Tem razão, são contos da carochinha. Mas você sabe quando contos da carochinha
deixam de sê-los? A partir do momento em que alguém começa a acreditar neles. E há alguém
que acredita no conto sobre o Sangue Antigo. Principalmente no fragmento que afirma que do
sangue de Falka nascerá um vingador que destruirá o mundo antigo e construirá um novo sobre
suas ruínas.
– E o tal vingador seria Cirilla?
– Não. Não Cirilla, mas seu filho.
– E Cirilla está sendo procurada…
– … por Emhyr var Emreis, imperador de Nilfgaard – concluiu Codringher. –
Compreendeu agora? Cirilla, independentemente do que ela queira ou não, será mãe do
sucessor do trono, o Arquiduque Real, que se tornará o Arquiduque da Escuridão, descendente
e vingador daquela monstruosa Falka. Ao que me parece, tanto o extermínio como a posterior
reconstrução do mundo ocorrerão de maneira dirigida e controlada.
O anão ficou pensativo por bastante tempo.
– Você não acha – falou por fim – que seria apropriado avisar Geralt disso?
– Geralt? – Codringher contorceu os lábios. – Quem é ele? Não seria por acaso aquele
ingênuo que, ainda há pouco, me afirmava que não age por lucro para si mesmo? É verdade
que acredito que ele não age para si próprio; ele age para outro… aliás, involuntariamente.
Ele persegue Rience, que é levado preso a uma trela, sem se dar conta da coleira presa em
torno do próprio pescoço. E eu deveria ajudá-lo? Ajudar os que querem raptar eles mesmos
essa galinha dos ovos de ouro para com ela chantagear Emhyr ou cair em suas graças? Não,
Fenn. Não sou estúpido a tal ponto.
– O bruxo age sob a trela de alguém? De quem?
– Pense um pouco.
– Danação!
– Uma palavra muito bem escolhida. A única pessoa que tem influência sobre ele. Na qual
ele confia. Só que não confio nela, nunca confiei. Diante disso, pretendo me incluir nesse jogo.
– Trata-se de um jogo muito perigoso, Codringher.
– Não existem jogos que não envolvam perigos. Há apenas os que vale a pena jogar e os
que não vale. Fenn, meu irmãozinho, será que você não está se dando conta do que caiu em
nossas mãos? Uma galinha que fornecera a nós, e a mais ninguém, um gigantesco ovo, todo de
ouro…
Codringher teve um acesso de tosse. Quando afastou o lenço dos lábios, este tinha
manchas de sangue.
– O ouro não o curará disso – afirmou Fenn, olhando para o lenço na mão de seu parceiro.
– Assim como não devolverá minhas pernas…
– Quem sabe?
Alguém bateu à porta. Fenn agitou-se nervosamente em sua poltrona com rodinhas.
– Você está aguardando alguém, Codringher?
– Sim. Aguardo certas pessoas que estou enviando a Thanedd para pegar a galinha dos
ovos de ouro.
– Não abra! – berrou Ciri. – Não abra essa porta! A morte o aguarda do outro lado dela!
Não abra essa porta!
Ciri acordou encharcada de suor e com as mãos doloridas de tão crispadas na beirada do
lençol. A sua volta tudo estava em silêncio e mergulhado numa suave penumbra atravessada
pela brilhante faixa do luar que mais parecia uma lâmina de punhal.
Incêndio. Fogo. Sangue. Pesadelo… “Não me lembro de nada, de nada…”
Aspirou com prazer o fresco ar noturno e a sensação de sufoco sumiu por completo. Sabia
o motivo.
Os feitiços de proteção não estavam surtindo efeito.
“Aconteceu algo inesperado”, pensou Ciri. Saltou da cama e vestiu-se rapidamente.
Armou-se com um estilete, já que não dispunha de uma espada; Yennefer a havia tirado dela e
entregado a Jaskier para que a guardasse. O poeta certamente estava dormindo e Loxia
encontrava-se mergulhada em silêncio. Ciri cogitava em ir ter com ele e despertá-lo quando
sentiu uma forte pulsação nos ouvidos e o sussurro do sangue.
A faixa de luar que penetrava no aposento transformou-se numa espécie de estrada. No fim
da estrada, bem longe, havia uma porta. A porta se abriu e surgiu Yennefer.
– Venha.
Às costas da feiticeira abriam-se novas portas, uma atrás da outra. Incontáveis. Da
penumbra pareciam emergir negras silhuetas de colunas… ou talvez de estátuas… “Devo estar
sonhando”, pensou Ciri, não querendo acreditar nos próprios olhos. “Estou sonhando. Isso aí
não é estrada alguma; é uma luz, um feixe de luz. Não dá para caminhar sobre ela…”
– Venha.
Ciri obedeceu.
Não fossem os tolos escrúpulos de Geralt, não fossem seus inexequíveis princípios,
muitos dos acontecimentos posteriores teriam se passado de maneira totalmente diversa. Na
verdade, muitos dos acontecimentos nem teriam ocorrido e, com isso, a história do mundo
seria outra.
Mas a história do mundo desenrolou-se como se desenrolou, e a única razão disso foi o
fato de o bruxo ter escrúpulos. Quando acordou de madrugada e teve necessidade de urinar,
não agiu como agiria qualquer outro naquela situação; não saiu para o terraço e não mijou no
vaso de capuchinhas. Teve escrúpulos. Vestiu-se silenciosamente para não acordar Yennefer,
que dormia pesadamente sem se mover e quase sem respirar. Saiu do quarto e foi para o
jardim.
O banquete ainda continuava, mas, a julgar pelos sons que dele provinham, estava
terminando. Das janelas do salão de baile ainda emanavam luzes que iluminavam o átrio e os
canteiros de peônias. Diante disso, Geralt afastou-se ainda mais, entre arbustos mais densos,
onde se quedou olhando para o céu cada vez mais claro e com a faixa purpúrea do raiar do sol
na linha do horizonte.
Quando estava retornando devagar, imerso em seus pensamentos, seu medalhão vibrou
fortemente. O bruxo apertou-o com a mão contra o peito, sentindo todo o seu corpo vibrar.
Não havia dúvida: alguém estava lançando encantos em Aretusa. Geralt aguçou os ouvidos e
ouviu gritos abafados, estrépitos e alaridos provenientes da arcada na ala esquerda do
palácio.
Qualquer outra pessoa teria imediatamente dado meia-volta e, com passos apressados,
tomado a direção oposta, fingindo nada ter ouvido. Com isso, é bem provável que a história
do mundo teria seguido uma trajetória diversa. Mas o bruxo tinha escrúpulos e costumava agir
segundo seus tolos e desastrados princípios.
Quando adentrou correndo a arcada e o corredor, travava-se ali uma refrega. Alguns
facínoras de gibão cinzento imobilizavam um feiticeiro baixinho caído no chão. A
imobilização era supervisionada por Dijkstra, chefe do serviço secreto de Vizimir, rei da
Redânia. Antes de poder fazer qualquer coisa, Geralt também foi imobilizado. Dois outros
facínoras o empurraram contra a parede, enquanto um terceiro encostava um tridente em seu
peito.
Os facínoras portavam no peito o brasão com a águia da Redânia.
Dijkstra aproximou-se de Geralt e lhe sussurrou:
– Isso é o que chamamos de “meter o nariz onde não deve”, e você, bruxo, tem um talento
inato para meter o nariz onde não deve. Fique calminho e se esforce para não chamar a
atenção.
Os redânios ergueram o feiticeiro baixinho, segurando-o pelos braços. Tratava-se de
Artaud Terranova, membro do Capítulo.
A luz que permitia notar os detalhes provinha de uma esfera suspensa sobre a cabeça de
Keira Metz, a feiticeira com quem Geralt conversara durante o banquete. O bruxo mal a
reconheceu; trocara os transparentes tules por um severo traje masculino cinzento e estava
armada com um estilete.
– Prendam as mãos dele – ordenou secamente, estendendo um par de algemas feitas de um
metal azulado.
– Não ouse colocar isso em mim! – berrou Terranova. – Não ouse, Metz! Sou membro do
Capítulo!
– Você era. Agora, você não passa de um simples traidor. E será tratado como tal.
– E você é uma puta asquerosa que…
Keira deu um passo para trás, balançou levemente os quadris e desferiu um violento soco
no rosto do feiticeiro, cuja cabeça inclinou-se tanto para trás que Geralt por um momento teve
a impressão de que ela se desprenderia do tronco. Terranova desmaiou nos braços dos homens
que o seguravam, jorrando sangue da boca e do nariz. A feiticeira não desferiu outro golpe,
embora mantivesse a mão erguida. O bruxo notou o brilho de bronze de um soco-inglês entre
seus dedos. Não se espantou. Keira era franzina e seu soco não poderia ter sido desferido
apenas com o punho desnudo.
Geralt não se mexeu. Os facínoras seguravam-no com força, e as pontas do tridente
perfuravam-lhe a pele do tórax. Além disso, ele não sabia se teria se mexido caso estivesse
livre; não saberia o que fazer.
Os redânios fecharam as algemas nos punhos do feiticeiro. Terranova soltou um grito,
dobrou-se e pareceu que ia vomitar. Geralt se deu conta de que eram feitas as algemas: de uma
liga de ferro e dvimerito, um raro mineral cujas propriedades residiam em sua capacidade de
sufocar qualquer habilidade mágica. A sufocação em pauta era acompanhada por efeitos
colaterais bastante desagradáveis aos magos.
Keira Metz ergueu a cabeça, afastando uma mecha de cabelos da testa. Foi quando viu o
bruxo.
– O que ele está fazendo aqui, com todos os diabos? Como veio para cá?
– Ele meteu o nariz onde não devia – respondeu Dijkstra com indiferença. – Ele tem um
talento especial para isso. O que devo fazer com ele?
Keira demonstrou sua raiva, batendo diversas vezes com o salto da bota no chão.
– Fique de olho nele. Não tenho tempo para pensar nisso agora – falou, afastando-se.
A feiticeira foi seguida pelos redânios, que arrastavam Terranova. A brilhante esfera voou
atrás dela, mas o dia já estava clareando.
Dijkstra fez um gesto e os facínoras soltaram Geralt. O espião aproximou-se e fixou os
olhos nos do bruxo.
– Mantenha-se absolutamente calmo.
– O que está se passando aqui? O quê…
– E absolutamente calado.
Keira Metz retornou pouco tempo depois, e não sozinha. Estava acompanhada pelo
feiticeiro que na noite anterior fora apresentado a Geralt como Detmold de Ban Ard. Ao ver o
bruxo, o feiticeiro soltou um palavrão e bateu com o punho na palma da mão.
– Que merda! Ele não é o tal por quem se enrabichou Yennefer?
– Ele mesmo – confirmou Keira. – Geralt de Rívia. O problema reside no fato de eu não
saber qual é a posição de Yennefer…
– Eu também não sei. – Detmold deu de ombros. – De todo modo, ele já está envolvido.
Viu demais. Levem-no até Filippa e deixem que ela decida. Algemem-no.
– Não é necessário – falou Dijkstra, com aparente indolência. – Eu me responsabilizo por
ele. Vou levá-lo para onde for preciso.
– O que vem a calhar – Detmold assentiu com a cabeça –, porque não temos tempo a
perder. Venha, Keira, lá em cima as coisas estão ficando complicadas…
– Como eles estão nervosos… – rosnou o espião redânio, olhando para os dois que se
afastavam. – Falta de prática, nada mais do que isso. Golpes de Estado são como gaspacho:
devem ser consumidos frios. Vamos, Geralt. E lembre-se: com calma, dignidade e sem
escândalos. Não faça com que eu me arrependa por não ter mandado que o algemassem e
amarrassem.
– O que está se passando aqui, Dijkstra?
– Você ainda não se deu conta? – perguntou o espião, andando a seu lado; três redânios os
seguiam. – Diga-me com toda sinceridade, bruxo: como você veio parar aqui?
– Fiquei com medo de que as capuchinhas fossem murchar.
– Geralt – falou Dijkstra, olhando de soslaio para o bruxo. – Você mergulhou num poço de
merda. Conseguiu manter a cabeça na superfície, mas suas pernas não alcançam o fundo.
Alguém lhe oferece ajuda e lhe estende a mão, correndo o risco de ele mesmo cair e acabar
fedendo do mesmo jeito. Portanto, pare de fazer piadinhas sem graça. Foi Yennefer quem o
mandou vir aqui, não é verdade?
– Não. Yennefer está dormindo numa cama quentinha. Ficou mais calmo agora?
O gigantesco espião virou-se violentamente, agarrou o bruxo pelos ombros e encostou-o
na parede do corredor.
– Não, não fiquei mais calmo, seu imbecil de merda – sibilou. – Será que você ainda não
se deu conta de que todos os feiticeiros decentes e leais a seus reis não estão dormindo esta
noite? De que nem se deitaram na cama? Quem está dormindo em camas quentinhas são os
traidores comprados por Nilfgaard, os farsantes que haviam preparado um putsch, mas para
mais tarde. Não sabiam que seus planos haviam sido descobertos e que seus adversários se
antecipariam a eles. E é precisamente agora que estão sendo arrancados de seus leitos
quentes, atacados com cassetetes e presos por algemas de dvimerito. Os traidores estão
acabados, entendeu? Se você não quer afundar com eles, pare de se fingir de idiota! Você foi
cooptado por Vilgeforz ontem à noite? Ou será que já havia sido aliciado antes por Yennefer?
Fale! E fale rápido, porque a merda está quase chegando a sua boca!
– Gaspacho frio, Dijkstra – lembrou Geralt. – Leve-me até Filippa. Com calma, dignidade
e sem escândalos.
O espião soltou-o e deu um passo para trás.
– Vamos – falou em tom gélido. – Escadas acima. Mas ainda vamos terminar esta
conversa. Eu lhe prometo.
Naquele lugar onde se juntavam quatro corredores perto de uma coluna que sustentava o
teto, o ambiente estava claro graças a lamparinas e esferas mágicas. Circulavam ali vários
redânios e feiticeiros. Entre estes últimos havia dois membros do Capítulo: Radcliffe e
Sabrina Glevissig. Sabrina, como Keira Metz, estava vestida com um traje masculino cinzento.
Geralt percebeu que no putsch perpetrado diante de seus olhos, as partes em confronto podiam
ser distinguidas pelas cores de suas roupas.
Triss Merigold estava ajoelhada no chão, inclinada sobre um corpo numa poça de sangue.
Geralt reconheceu Lydia van Bredevoort. Reconheceu-a pelos cabelos e pelo vestido de seda.
Não a teria reconhecido pelo rosto, porque nada sobrara dele, apenas uma horrenda máscara
macabra brilhando com dentes à mostra, até a metade das bochechas, e uma disforme e mal
solidificada mandíbula.
– Cubram-na – falou Sabrina Glevissig surdamente. – Quando ela morreu, a ilusão se
desfez… Que droga, cubram-na com algo!
– Como isso aconteceu, Radcliffe? – indagou Triss, afastando a mão da dourada
empunhadura de um estilete cravado logo abaixo do esterno de Lydia. – Como isso pôde
acontecer? Havíamos combinado que não haveria cadáveres!
– Ela nos atacou – murmurou o feiticeiro, abaixando a cabeça. – Ao levarmos Vilgeforz,
ela se atirou sobre nós. Houve uma confusão… Eu mesmo não sei o que se passou… O estilete
é dela.
– Cubram seu rosto! – ordenou Sabrina mais uma vez, virando-se violentamente. Foi
quando viu Geralt. Seus olhos rapineiros brilharam como antracitos. – De onde surgiu ele?
Triss ergueu-se de um pulo e aproximou-se do bruxo, colocando a palma da mão juntinho
do rosto dele. Geralt viu um brilho e, lentamente, mergulhou na escuridão. Sentiu alguém puxá-
lo com violência pela gola do casaco.
– Segurem-no, senão ele vai cair. – A voz de Triss era artificial, soando com raiva fingida.
Triss puxou-o mais uma vez, de modo que ele se encontrou colado a seu corpo.
– Perdoe-me – ouviu seu rápido sussurro. – Tive de fazê-lo.
Os homens de Dijkstra mantiveram-no de pé. Geralt sacudiu a cabeça e passou a orientar-
se pelos outros sentidos além da visão. Nos corredores reinava confusão, o ar ondulava e
trazia olores e vozes. Sabrina Glevissig praguejava. Triss tentava apaziguá-la. Redânios
fedendo a quartel arrastavam pelo chão um corpo inerte sussurrando com a seda do vestido.
Sangue. Cheiro de sangue. E cheiro de ozônio, o cheiro da magia. Vozes alteradas. Passos,
nervosas batidas de saltos.
– Apressem-se! Isso tudo está demorando demais! Já deveríamos estar em Garstang!
Filippa Eilhart. Nervosa.
– Sabrina, ache urgentemente Marti Sodergen. Se for preciso, arranque-a da cama.
Gedymdeith está mal. Acho que foi um enfarte. Que Marti se ocupe dele. Mas não lhe diga
nada, nem a quem estiver dormindo com ela. Triss, procure Dorregaray, Drithelm e Carduin e
leve-os para Garstang.
– Com que finalidade?
– Eles representam reis. Que Ethain e Esterat sejam informados de nossa ação e de seu
resultado. Você deverá levá-los… Triss, suas mãos estão manchadas de sangue! De quem?
– De Lydia.
– Que merda! Quando? Como?
– E o que importa como? – Uma voz calma e fria. Tissaia de Vries. O fru-fru de um
vestido. Tissaia trajava um vestido de baile e não um uniforme rebelde. Geralt aguçou os
ouvidos, mas não ouviu som de algemas de dvimerito. – Você está fingindo estar chocada? –
continuou Tissaia. – Triste? Quando se organizam revoltas, quando se trazem facínoras
armados no meio da noite, é preciso levar em conta a existência de vítimas. Lydia está morta.
Hen Gedymdeith agoniza. Ainda há pouco vi Artaud com o rosto destroçado. Quantas vítimas
mais teremos, Filippa Eilhart?
– Não sei – respondeu Filippa secamente. – Mas não recuarei.
– Obviamente. Você não recua diante de nada.
O ar tremeu, saltos de botas soaram no piso num ritmo conhecido. Filippa estava se
aproximando de Geralt. Ele manteve na memória o ritmo nervoso de seus passos, quando
ambos atravessaram o salão de Aretusa na noite anterior para degustar uma porção de caviar.
Lembrou-se, também, do cheiro de canela e nardo. Agora, tal cheiro estava misturado com o
de fluoreto de sódio. Geralt excluía qualquer possibilidade de participar de um golpe ou
putsch, mas não acreditava que, caso viesse a participar de um, teria pensado antes em
escovar os dentes.
– Ele não a enxerga, Fil – falou Dijkstra num tom aparentemente apático. – Ele não vê nem
viu nada. Aquela de cabelos lindos cegou-o.
Geralt ouvia a respiração de Filippa e sentia cada um de seus movimentos, mas meneou a
cabeça de maneira desnorteada, fingindo impotência. Seus esforços foram vãos; a feiticeira
não se deixou iludir.
– Não finja, Geralt. Triss obscureceu sua visão, não sua mente. Como você veio parar
aqui?
– Eu me meti onde não devia. Onde está Yennefer?
– Abençoados os que não sabem – na voz de Filippa não havia qualquer indício de
zombaria –, pois assim eles viverão por mais tempo. Seja grato a Triss. O encanto foi suave e
a cegueira passará logo. E é graças a ela que você não viu aquilo que lhe era proibido ver.
Fique de olhe nele, Dijkstra. Voltarei logo.
Nova agitação. Vozes. O soprano de Keira Metz, o baixo profundo de Radcliffe, as batidas
de botas redânias e a voz alterada de Tissaia de Vries.
– Larguem-na! Como vocês ousaram? Como puderam fazer isso a ela?
– Trata-se de uma traidora – ecoou o baixo de Radcliffe.
– Jamais acreditarei nisso!
– O sangue é mais forte do que a água. – A fria voz de Filippa Eilhart. – E o imperador
Emhyr prometeu liberdade aos elfos, além de um país independente, só deles. Aqui, nestas
terras. Obviamente após o total extermínio dos humanos. E isso bastou para que ela
imediatamente nos traísse.
– Responda! – disse, emocionada, Tissaia de Vries. – Responda, Enid an Gleanna!
– Responda, Francesca.
O som de algemas de dvimerito e o suave sotaque élfico de Francesca Findabair, a
Margarida dos Vales, a mais bela mulher do mundo.
– Va vort a me, Dh’oine. N’aen te a dice’n.
– Isso lhe basta, Tissaia? – A voz de Filippa, que mais parecia um latido. – Agora você
acredita em mim? Para ela, você, eu e todos nós somos e sempre fomos Dh’oine, humanos a
quem ela, Aén Seidhe, não tem nada a dizer. E quanto a você, Fercart? O que lhe prometeram
Vilgeforz e Emhyr para você decidir nos trair?
– Vá para o inferno, sua puta degenerada.
Geralt prendeu a respiração, mas não ouviu o som de um soco-inglês chocando-se com
uma mandíbula. Filippa era mais controlada do que Keira… ou então não tinha um soco-
inglês.
– Radcliffe, leve os traidores para Garstang. Detmold, dê o braço à arquimaga De Vries.
Vão. Irei logo em seguida.
Passos. Cheiro de canela e nardo.
– Dijkstra.
– Eis-me aqui, Fil.
– Seus subordinados não são mais necessários. Que retornem a Loxia.
– Não seria melhor…
– A Loxia, Dijkstra!
– A suas ordens, distinta dama. – Na voz do espião soou uma nota de escárnio. – Os
rapazes irão embora. Eles fizeram o que lhes coube fazer. Agora, o caso pertence
exclusivamente aos feiticeiros e, diante disso, também vou sumir dos lindos olhos de Vossa
Alteza. Não espero receber agradecimento algum pela ajuda e participação no putsch, mas
tenho certeza de que Vossa Alteza me manterá em sua agradecida memória.
– Perdoe-me, Sigismund. Agradeço-lhe a ajuda.
– Não há de quê; o prazer foi todo meu. Voymir, convoque os homens. Cinco permanecerão
comigo, enquanto os demais serão levados para baixo e embarcados no Spada. Mas
silenciosamente, na ponta dos dedos, sem ruído nem escândalo. Usem corredores secundários.
Em Loxia e no porto, nenhuma palavra! Entendido?
– Você não viu nada, Geralt – sussurrou Filippa Eilhart, envolvendo o bruxo em olores de
canela, nardo e fluoreto de sódio. – Nem ouviu nada. Nunca conversou com Vilgeforz. Dijkstra
vai levá-lo a Loxia. Vou me esforçar para encontrá-lo lá quando… quando tudo estiver
terminado. Ontem eu lhe prometi algo e manterei a palavra empenhada.
– E quanto a Yennefer?
– Ele deve ter uma obsessão – falou Dijkstra, que acabara de retornar, arrastando as
pernas. – Só fala de Yennefer e mais Yennefer. Não ligue para ele, Fil. Há assuntos mais
importantes. Foi encontrado com Vilgeforz aquilo que se esperava encontrar?
– Sim. Tome, isto é para você.
– Oh, que maravilha! – Som de papiro sendo desenrolado. – Oh, quem diria, o duque
Nitert. Fantástico! O barão…
– Mais discrição, e sem nomes, por favor. Além disso, peço-lhe que não comece as
execuções assim que chegar a Tretogor. Não provoque um escândalo prematuramente.
– Não precisa se preocupar. As pessoas desta lista, tão gulosas de ouro nilfgaardiano,
estão seguras. Por enquanto. Elas vão ser minhas queridas marionetes acionadas por
cordinhas. Mais tarde colocaremos essas cordinhas em seus pescocinhos… Por curiosidade,
havia outras listas? Listas de traidores de Kaedwen, de Temeria, de Aedirn? Bem que gostaria
de dar uma espiada nelas. Nem que fosse apenas com o canto dos olhos…
– Sei que você gostaria, mas isso não lhe diz respeito. As outras listas estão com Radcliffe
e Sabrina Glevissig. Você pode ter certeza de que eles saberão fazer bom uso delas. E agora,
adeus. Estou com pressa.
– Fil.
– Sim?
– Devolva a visão ao bruxo. Não quero que ele tropece nos degraus.
No salão de baile de Aretusa, o banquete continuava, só que mudara de forma, para algo
mais tradicional e íntimo. As mesas foram afastadas e os feiticeiros e as feiticeiras trouxeram
poltronas, cadeiras e banquetas obtidas não se sabe onde, sentaram-se nelas e passaram a se
dedicar a diferentes diversões, a maior parte delas inadequada. Um grande grupo, sentado em
volta de um barril de vodca de frutas, ficou bebericando e batendo papo, volta e meia soltando
sonoras gargalhadas. Aqueles que havia pouco pegavam delicadamente iguarias com garfos de
prata, agora seguravam com as mãos costelas de carneiro e roíam-nas sem cerimônia. Outros,
sem dar a mínima atenção aos demais, jogavam cartas passionalmente. Outros, ainda,
dormiam. Num dos cantos do salão, um casal beijava-se com tal ardor que tudo indicava que
não se deteriam apenas nos beijos.
– Olhe só para eles, bruxo – falou Dijkstra, inclinado sobre a balaustrada da galeria e
olhando de cima para os feiticeiros. – Como estão se divertindo alegremente; parecem
crianças. Enquanto isso, seu Conselho esmagou quase todo o Capítulo, submetendo-o a um
julgamento por traição e aliança com Nilfgaard. Olhe para aquele casal. Daqui a pouco vão
procurar um lugar mais aconchegante, e, antes de terminarem de trepar, Vilgeforz estará
pendendo de uma forca. Ah, como é estranho este nosso mundo…
– Feche a matraca, Dijkstra.
O caminho que levava a Loxia era formado por degraus que rompiam em zigue-zague a
encosta da montanha. As escadas ligavam terraços decorados com cercas de arbustos
malcuidados, canteiros e vasos com agaves ressecadas. Dijkstra parou num dos terraços e se
aproximou de um muro, do qual emergia uma fileira de gárgulas de cujas bocarras escorriam
filetes de água. O espião inclinou-se e bebeu por bastante tempo.
O bruxo aproximou-se da balaustrada. O mar brilhava com reflexos dourados, enquanto o
céu tinha uma cor ainda mais kitsch do que a dos quadros na Galeria da Fama. Logo abaixo
pôde ver os soldados redânios retirados de Aretusa deslocando-se para o porto, em perfeita
formação militar. Naquele exato momento, atravessavam uma estreita ponte junto da orla de
uma fenda na rocha.
O que chamou mais sua atenção foi uma figura colorida e solitária que se movia com
rapidez e em sentido contrário ao dos redânios, montanha acima, na direção de Aretusa.
– Vamos – Dijkstra pigarreou–, está na hora de continuarmos.
– Se você está com tanta pressa, pode ir sozinho.
– Não diga – respondeu o espião, fazendo uma careta. – E você voltará a Aretusa para
salvar sua Yennefer, causando uma confusão digna de um gnomo bêbado. Nós vamos para
Loxia, meu caro bruxo. Será que você está nutrindo ilusões ou algo dessa natureza? Acha que
eu o tirei de Aretusa por um antigo e secreto amor que sinto por você? Pois saiba que não.
Tirei-o de lá porque preciso de você.
– Precisa para quê?
– Não se finja de bobo. Em Aretusa estudam doze jovens das mais importantes famílias
redânias. Não posso correr o risco de me indispor com a distinta reitora, Margarita Laux-
Antille. A reitora jamais me entregará Cirilla, a princesinha de Cintra, que Yennefer trouxe a
Thanedd. Já a você, sim; desde que você peça.
– E de onde você tirou essa ridícula ideia de que eu pediria?
– Da ridícula suposição de que você quer garantir um lugar seguro para Cirilla. Sob minha
proteção e a proteção do rei Vizimir, ela estará segura. Em Tretogor. Porque em Thanedd ela
não está. Abstenha-se de comentários sarcásticos. Estou ciente de que no início os reis não
tinham planos muito nobres em relação à jovem. Mas a situação mudou. Agora, com a
proximidade da guerra, ficou evidente que uma Cirilla viva, sadia e segura vale muito mais do
que dez destacamentos de cavalaria pesada. Já morta, não vale sequer um talar furado.
– Filippa Eilhart sabe o que você pretende?
– Não. Ela nem sabe que eu sei que a menina está em Loxia. Minha ex-adorada Fil anda de
nariz empinado, mas o rei da Redânia continua sendo Vizimir. E eu cumpro ordens de Vizimir,
não tendo merda alguma a ver com as conspirações dos feiticeiros. Cirilla embarcará no
Spada, navegará até Novigrad e, de lá, seguirá para Tretogor, onde estará segura. Acredita em
mim?
O bruxo inclinou-se junto de uma das gárgulas, bebendo um pouco da água que escorria de
sua monstruosa bocarra.
– Acredita em mim? – repetiu Dijkstra, plantando-se diante dele.
Geralt endireitou o corpo, enxugou os lábios e desferiu com toda a força um soco no
queixo do espião, que cambaleou, mas não caiu. O mais próximo dos redânios pulou e tentou
agarrar o bruxo, porém tudo o que conseguiu agarrar foi o ar, para, logo em seguida, estatelar-
se no chão, cuspindo sangue e um dente. Foi quando todos os demais soldados lançaram-se
sobre o bruxo. Teve início uma enorme confusão, exatamente o que Geralt desejava.
Um dos redânios bateu com o rosto contra a cabeça de uma das gárgulas esculpidas em
pedra, e o filete de água que escorria de sua boca imediatamente adquiriu uma cor
avermelhada. Um segundo recebeu um soco na traqueia, encolhendo-se todo como se lhe
tivessem arrancado fora a genitália. Um terceiro, acertado no olho por uma cotovelada, recuou
soltando um gemido. Dijkstra apertou o bruxo num abraço ursino, ao que Geralt desferiu um
violento golpe em seu pé com o salto da bota. O espião soltou um uivo e se pôs a pular
comicamente sobre uma perna só.
O facínora seguinte quis acertar o bruxo com um gládio, mas errou o alvo. Geralt agarrou-
o pelo cotovelo com uma das mãos e pelo punho com a outra e girou-o, derrubando com ele
dois outros que estavam se levantando. O redânio era forte e nem pensava em soltar o gládio.
O bruxo apertou-o com mais força e quebrou seu braço.
Dijkstra, ainda saltitando sobre uma perna, pegou um tridente do chão e tentou prender o
bruxo no muro com suas três pontas afiadas. Geralt agarrou a haste do tridente com ambas as
mãos e fez uso do princípio da alavanca, tão conhecido por todos os estudantes de física. O
espião, ao ver crescerem ante seus olhos os tijolos e as juntas do muro, soltou o tridente, mas
demasiado tarde para evitar cair montado sobre uma gotejante cabeça de gárgula.
Geralt aproveitou o fato de estar de posse do tridente para derrubar o adversário seguinte.
Depois, apoiou a haste no piso e quebrou-a com um pontapé, adequando-a ao comprimento de
uma espada. Testou a nova arma: primeiro, na nuca de Dijkstra, montado na gárgula, e, em
seguida, no uivante facínora de braço quebrado, fazendo-o calar. As costuras de seu dublete
rasgaram-se nas axilas havia muito tempo, e o bruxo sentia-se bem melhor.
O último dos facínoras que ainda se mantinha de pé também resolveu atacar com um
tridente, julgando que seu comprimento lhe desse alguma vantagem. Geralt acertou-o na base
do nariz, e ele desabou sobre um dos vasos com agave. Outro redânio, incrivelmente teimoso,
agarrou-se à coxa do bruxo, fincando nela seus dentes. O bruxo ficou furioso e, com um
violento pontapé, privou o mordedor da possibilidade de quaisquer mordidas futuras.
No topo das escadas, apareceu, arfando, Jaskier, que, ao ver o que estava se passando,
ficou branco como uma folha de papel.
– Geralt! – gritou após um momento. – Ciri sumiu! Não está aqui!
– Eu já esperava por algo assim – respondeu o bruxo, acertando com o pau mais um
redânio que não queria permanecer deitado quieto. – Como você demorou a aparecer, Jaskier!
Eu lhe disse ontem que, caso acontecesse algo, você deveria chispar para Aretusa! Trouxe
minha espada?
– Sim. Ambas!
– Essa outra é a espada de Ciri, seu idiota – falou Geralt, golpeando o redânio que tentava
levantar-se do vaso com agave.
– Não sou especialista em espadas – arfou o poeta. – Pelos deuses, pare de bater neles!
Não está vendo as águias da Redânia? Eles são homens do rei Vizimir! Isso que você está
fazendo é motim ou traição, ambos puníveis com prisão…
– Com… cadafalso… – gaguejou Dijkstra, sacando sua adaga e aproximando-se deles com
passos cambaleantes. – Vocês dois acabarão no cadafalso…
Não teve tempo de dizer mais nada, porque caiu de quatro por ter sido atingido na cabeça
com o pedaço da haste do tridente.
– Com todos os ossos quebrados na roda – avaliou Jaskier soturnamente. – Não sem antes
sermos pinçados com tenazes em brasa…
O bruxo deu um pontapé nas costelas do espião. Dijkstra rolou para o lado como um alce
abatido.
– Esquartejados – avaliou o poeta.
– Pare com isso, Jaskier. Passe-me as duas espadas e suma daqui o mais rápido que puder.
Fuja da ilha. Fuja para o mais longe possível!
– E quanto a você?
– Vou voltar montanha acima. Tenho de salvar Ciri… e Yennefer. Dijkstra, fique deitado
quietinho e deixe a adaga em paz!
– Isso vai lhe custar muito caro – arfou o espião. – Vou convocar meus homens… Irei atrás
de você…
– Você não irá.
– Irei. Só no convés do Spada disponho de cinquenta homens.
– E há um médico entre eles?
– Como?
Geralt pegou o espião por trás, agarrou seu pé e torceu-o com muita força. Ouviu-se o
estalo de ossos quebrando. Dijkstra soltou um berro e desmaiou. Jaskier também gritou, como
se o membro quebrado fosse dele.
– Qualquer coisa que eles possam fazer comigo depois de me esquartejarem – murmurou o
bruxo – já não me interessa tanto assim.
Acima de Aretusa havia três terraços com arbustos, além dos quais a parede da montanha
tornava-se escarpada e inacessível. Sobre a escarpa erguia-se Garstang. A base do palácio era
formada por um bloco de pedra escura e achatada preso às rochas. Somente o andar superior
brilhava com mármores e vitrais, soltando reflexos dourados do metal das cúpulas.
O caminho de pedras que levava a Garstang e mais além enrolava-se em torno da
montanha como uma serpente. Além dele, havia outro caminho, mais curto: as escadas que
ligavam os terraços logo abaixo de Garstang e que desapareciam na boca de um túnel. E foram
exatamente essas escadas que Marti Sodergen indicou ao bruxo.
Logo depois do túnel havia uma ponte sobre um abismo. Após a ponte, as escadas subiam
de maneira íngreme, virando e sumindo numa curva. Geralt apressou o passo.
A balaustrada das escadas era decorada com pequenas estátuas de faunos e ninfas. As
estatuetas pareciam estar vivas. O medalhão do bruxo começou a vibrar fortemente.
Geralt esfregou os olhos. O aparente movimento das estatuetas residia no fato de elas
mudarem de aspecto. A lisa superfície de pedra se transformava numa porosa e disforme
massa corroída por sal e ventos e, logo em seguida, retomava o aspecto anterior. O bruxo
entendeu seu significado: a mágica ilusão que camuflava Thanedd se balançava e se desfazia.
A ponte também era parcialmente ilusória. Através dos furos na camuflagem, era possível ver
o precipício e uma cachoeira estrondeante ao fundo.
Não havia aquelas placas escuras indicando um caminho seguro. Geralt atravessou a ponte
lentamente, calculando com precisão cada passo e amaldiçoando a perda de tempo disso
decorrente. Quando já estava do outro lado do precipício, ouviu passos apressados de alguém.
Reconheceu-o de imediato. Correndo escadas abaixo vinha Dorregaray, o feiticeiro a serviço
de Ethain, rei de Cidaris. O bruxo lembrou-se das palavras de Filippa Eilhart: os feiticeiros
que representavam reis neutros foram convidados na qualidade de observadores. Só que
Dorregaray descia as escadas numa velocidade que sugeria que o tal convite havia sido
cancelado repentinamente.
– Dorregaray!
– Geralt? – arfou o feiticeiro. – O que está fazendo aqui? Fuja imediatamente! Rápido,
para baixo, para Aretusa!
– O que aconteceu?
– Traição!
– O quê?
Dorregaray tremeu, tossiu de maneira estranha e, então, desabou sobre o bruxo. Antes
mesmo de segurá-lo, Geralt notou as penas cinzentas de uma flecha cravada em suas costas. O
choque com o corpo do feiticeiro salvou-lhe a vida, pois outra flecha, idêntica à primeira, em
vez de atravessar sua garganta, acertou o rosto coberto de musgo de um sorridente fauno,
arrancando-lhe o nariz e um pedaço de bochecha. O bruxo soltou Dorregaray e mergulhou para
trás da balaustrada das escadas. O feiticeiro, porém, desmoronou sobre ele.
Os arqueiros eram dois e ambos usavam um gorro adornado com cauda de esquilo. Um
ficou no topo das escadas esticando a corda do arco, enquanto o outro sacou a espada e
desceu as escadas pulando vários degraus de cada vez.
Geralt livrou-se de Dorregaray e ergueu-se, sacando a espada. A flecha silvou, mas o
bruxo interrompeu o silvo acertando sua ponta com um rápido movimento da lâmina. O
segundo elfo já estava próximo, porém, diante da visão de uma flecha sendo desviada por uma
espada, hesitou por um momento… mas só por um momento. Lançou-se sobre o bruxo, com a
espada erguida. Geralt aparou o golpe de maneira oblíqua, fazendo com que a lâmina do elfo
deslizasse sobre a sua. O elfo perdeu o equilíbrio, o bruxo fez uma elegante pirueta e acertou-
o no pescoço, logo abaixo da orelha. Apenas uma vez. Foi o bastante.
O arqueiro no topo das escadas voltou a estender a corda do arco, porém não teve tempo
para soltar a flecha. Geralt viu um brilho, o elfo soltou um grito e caiu rolando escadas
abaixo. As costas de seu casaco estavam em chamas.
Pelas escadas descia outro feiticeiro. Ao ver o bruxo, parou e ergueu o braço. Geralt não
perdeu tempo com explanações e atirou-se no chão. O flamejante raio passou por cima de seu
corpo e, com estrondo, transformou em pó uma estátua de fauno.
– Pare! – gritou. – Sou eu, o bruxo!
– Que merda! – falou o feiticeiro. Geralt não se lembrava de tê-lo visto no banquete. –
Confundi você com um desses bandidos élficos… Como está Dorregaray? Está vivo?
– Acho que sim…
– Rápido, para o outro lado da ponte!
Arrastaram Dorregaray pela ponte contando com pura sorte, porque, em seu afã,
esqueceram-se por completo da balançante e intermitente ilusão. Ninguém os perseguia, mas,
mesmo assim, o feiticeiro ergueu o braço, murmurou um encanto e, com outro raio, destruiu a
ponte. As pedras caíram, batendo com estrondo nas paredes do desfiladeiro.
– Isso deverá detê-los – falou.
O bruxo enxugou o sangue que escorria da boca de Dorregaray.
– Ele está com um pulmão perfurado. Você pode ajudá-lo?
– Eu posso – falou Marti Sodergen, subindo com dificuldade as escadas provenientes das
bandas de Aretusa, da boca do túnel. – O que está se passando aqui, Carduin? Quem disparou
essa flecha?
– Scoia’tael – respondeu o feiticeiro, enxugando o suor da testa com a manga do casaco. –
Em Garstang, os dois lados continuam lutando entre si. Dois bandos malditos. Um pior do que
o outro. Filippa algema Vilgeforz no meio da noite, enquanto Vilgeforz e Francesca Findabair
introduzem Esquilos na ilha. Já Tissaia de Vries, maldita seja, promoveu uma confusão
daquelas!
– Seja mais claro, Carduin.
– Não vou perder tempo com conversas inúteis! Estou fugindo para Loxia e, de lá, vou me
teleportar para Kovir. Quanto aos que ficaram em Garstang, tomara que se matem uns aos
outros! Isso já não tem importância alguma! Estamos em guerra! Toda essa confusão foi
arquitetada por Filippa para que os reis possam declarar guerra a Nilfgaard. Entenderam?
– Não – respondeu Geralt. – Nem fazemos questão de entender. Onde está Yennefer?
– Parem com isso! – gritou Marti Sodergen, inclinada sobre Dorregaray. – Ajudem-me, em
vez de discutir. Segurem-no, porque não consigo arrancar a flecha.
Geralt e Carduin ajudaram-na. Dorregaray gemia e tremia. As escadas tremiam também.
De início, Geralt achou que o tremor era efeito dos feitiços curandeiros de Marti. No entanto,
era todo o palácio de Garstang que tremia. De repente, os vitrais explodiram e das janelas
emanaram chamas e rolos de fumaça.
– Continuam lutando. – Carduin rangeu os dentes. – A coisa está feia; um feitiço após
outro…
– Feitiços? Em Garstang? Não pode ser; Garstang está cercado por uma aura mágica!
– Foi coisa de Tissaia. Ela decidiu, de uma hora para outra, escolher um dos lados, desfez
o bloqueio, liquidou a aura e neutralizou o efeito do dvimerito. Aí, todos se atiraram sobre o
pescoço uns dos outros, com Vilgeforz e Terranova de um lado e Filippa e Sabrina do outro…
As colunas se romperam e a abóbada desabou… Foi quando Francesca abriu um alçapão pelo
qual adentraram esses diabos élficos… Gritamos que éramos neutros, mas Vilgeforz apenas
riu. Antes que pudéssemos erguer um escudo protetor, Drithelm levou uma flechada no olho e
Rejean ficou parecendo um ouriço de tantas flechas cravadas no corpo… Não esperei para ver
o que viria em seguida. Marti, você ainda vai demorar? Temos de fugir daqui!
– Dorregaray não poderá ir conosco – falou a curandeira, enxugando no vestido de baile
as mãos sujas de sangue. – Teleporte-nos, Carduin.
– Daqui? Você deve ter enlouquecido. Estamos demasiadamente perto de Tor Lara. O
portal de Lara produz eflúvios e fará com que qualquer teleportação seja desviada. Não é
possível teleportar daqui!
– Mas ele não consegue andar! Vou ter de ficar junto dele…
– Pois fique! – exclamou Carduin. – E divirta-se! Eu prezo por demais minha vida e vou
retornar a Kovir! Kovir é neutro!
– Que beleza… – murmurou o bruxo, dando uma cusparada e olhando para o vulto do
feiticeiro, que desaparecia na boca do túnel. – Companheirismo e solidariedade! Mas o fato é
que eu também não posso ficar aqui com você, Marti. Preciso ir até Garstang. Seu confrade
neutro destruiu a ponte. Existe um caminho alternativo?
Marti Sodergen fungou e meneou positivamente cabeça.
Já estava junto do muro de Garstang quando Keira Metz caiu sobre sua cabeça.
O caminho indicado pela curandeira passava por jardins suspensos, interligados entre si
por uma serpentina de escadas. Os degraus estavam espessamente cobertos por hera e
madressilva, cujas folhas dificultavam a escalada, mas, ao mesmo tempo, ocultavam Geralt,
permitindo-lhe chegar sem ser notado até o muro do palácio. Quando estava procurando uma
portinhola, Keira desabou sobre ele, e ambos caíram no meio de abrunheiros.
– Quebrei um dente – constatou a feiticeira, soturna, ceceando levemente. Estava
despenteada, suja, coberta de cal e fuligem, e tinha uma grande ferida na bochecha. – Além
disso, acho que também quebrei uma perna – completou, cuspindo sangue. – É você, bruxo?
Eu caí sobre você? Como isso foi possível?
– Eis algo que eu também gostaria de saber.
– Terranova atirou-me pela janela.
– Você consegue se levantar?
– Não, não consigo.
– Eu preciso entrar no palácio sem ser notado. Sabe como poderei fazê-lo?
– Será que todos os bruxos – Keira cuspiu novamente e gemeu ao tentar erguer-se sobre
um cotovelo – são malucos? Lá, em Garstang, está sendo travada uma batalha! A agitação é
tamanha que o reboco está caindo das paredes. Você está procurando sarna para se coçar?
– Não. Estou à procura de Yennefer.
– Que coisa! – exclamou Keira, parando de tentar erguer-se e deitando-se de costas. –
Como gostaria que alguém me amasse com tanto afinco! Pegue-me em seus braços.
– Talvez em outra ocasião… Agora, estou com certa pressa.
– Pegue-me em seus braços, estou lhe dizendo! Assim poderei lhe mostrar o acesso a
Garstang. Preciso pegar aquele filho da puta do Terranova. Está esperando o quê? Sozinho,
não achará a entrada, e, mesmo que ache, aqueles elfos filhos da puta dariam cabo de você…
Não consigo andar, mas ainda sou capaz de lançar alguns encantos. Se alguém se meter em
nosso caminho, vai se arrepender amargamente.
Soltou um grito de dor quando ele a levantou.
– Desculpe-me.
– Não faz mal – respondeu Keira, colocando os braços em torno do pescoço dele. – É a
maldita perna… Você sabia que continua com o cheiro do perfume dela? Não, não por aqui.
Dê meia-volta e vá até o sopé da montanha. Há outra entrada do lado de Tor Lara. Talvez lá
não haja elfos… Aiii! Que merda! Tome mais cuidado!
– Desculpe-me. De onde saíram esses Scoia’tael?
– Estavam no subsolo. Thanedd é oca como uma casca. Sob sua superfície há uma caverna
pela qual é possível adentrar um navio, desde que se saiba por onde. Alguém deve ter
revelado a eles o caminho… Aiii! Pare de me sacudir!
– Desculpe-me. Quer dizer que os Esquilos vieram pelo mar? Quando?
– E eu lá sei? Tanto pode ter sido ontem como há uma semana. Nós estávamos nos
preparando para enfrentar Vilgeforz, e Vilgeforz, para nos enfrentar. Vilgeforz, Francesca,
Terranova e Fercart nos enganaram direitinho. Filippa achava que eles planejavam assumir
lentamente o controle do Capítulo para ter mais influência sobre os reis… Mas eles
pretendiam acabar conosco durante o congresso… Geralt, não aguento mais. Ponha-me no
chão por um momento. Aiii!
– Keira, você está com uma fratura exposta. Seu sangue está se esvaindo pela perna das
calças.
– Cale a boca e escute, porque se trata de sua Yennefer. Entramos na sala do Conselho de
Garstang. Havia lá um bloqueio antimagia, mas, como ele não funcionava contra dvimerito,
sentimo-nos seguros. Começou uma discussão. Tissaia e os neutros gritavam conosco, e nós
gritávamos com eles. Enquanto isso, Vilgeforz sorria calado.
No começo, havia apenas um caos refulgente, uma escuridão latejante, um confuso misto
de penumbra com claridade, um coro de balbuciantes vozes emanando das profundezas. De
repente, as vozes tornaram-se mais potentes e tudo em volta transformou-se numa indescritível
gritaria e estrondo. A claridade no meio da penumbra converteu-se em chamas, que lambiam
tapeçarias e gobelinos com feixes de faíscas que pareciam sair das paredes, das balaustradas
e das colunas que sustentavam o teto.
Ciri engasgou com a fumaça, dando-se conta de que aquilo não era mais um sonho. Tentou
se erguer, apoiando-se nas mãos, e sentiu que elas tocavam em algo úmido. Olhou para baixo e
constatou que estava ajoelhada numa poça de sangue. Perto dela jazia um corpo imóvel. Um
corpo de elfo, reconheceu-o de imediato.
– Levante-se.
Yennefer estava de pé a seu lado, com um estilete na mão.
– Dona Yennefer… Onde estamos? Não me lembro de nada…
A feiticeira pegou sua mão.
– Estou a seu lado, Ciri.
– Onde estamos? Por que tudo está em chamas? Quem é esse… esse aí?
– Há muito tempo eu lhe disse que o Caos estendia a mão em sua direção. Lembra-se?
Não, é lógico que você não se lembra. Esse elfo estendeu a mão em sua direção. Tive de matá-
lo com uma faca, porque seus patrões esperam apenas uma de nós se revelar ao lançar mão da
magia. E acabarão nos descobrindo, porém não neste momento… Você já está completamente
lúcida?
– Aqueles feiticeiros… – sussurrou Ciri. – Os que estavam naquele salão enorme… O que
eu dizia a eles? E por que eu dizia aquilo? Não tive a mínima intenção… mas senti uma
incontrolável necessidade de falar! Por quê? Por quê, dona Yennefer?
– Silêncio, feiosa. Cometi um erro. Ninguém é infalível.
Ouviram um estampido e um grito horripilante vindos de baixo.
– Venha. Rápido. Não temos tempo.
Saíram correndo pela galeria. A fumaça, cada vez mais espessa, sufocava, esganava,
cegava. Os muros trepidavam com as explosões.
– Ciri – falou Yennefer, parando num dos cruzamentos da galeria e apertando com força a
mão da menina. – Ouça-me; ouça-me com muita atenção. Eu preciso ficar aqui. Está vendo
essa escada? Você descerá por ela…
– Não! Não me deixe sozinha!
– Preciso deixá-la. Repito: desça por essa escada até o fim. Lá você encontrará uma porta
e, atrás dela, um longo corredor. No fim do corredor, haverá uma cocheira e, dentro dela, um
cavalo selado. Somente um. Conduza-o para fora e monte-o. É um cavalo treinado para levar
estafetas para Loxia, de modo que conhece bem o caminho. Basta cutucá-lo com os
calcanhares. Quando chegar a Loxia, procure Margarita e coloque-se sob sua proteção. Não se
afaste dela nem por um passo…
– Dona Yennefer! Não! Não quero ficar sozinha!
– Ciri – sussurrou a feiticeira. – Algum tempo atrás eu lhe disse que tudo o que tenho feito
é para seu próprio bem. Confie em mim. Por favor, confie em mim. Corra.
Ciri já estava nos degraus quando ouviu mais uma vez a voz de Yennefer. Viu a feiticeira
no topo da escada, com a testa apoiada numa coluna.
– Eu amo você, filhinha – falou com voz embargada. – Corra.
Cercaram-na quando estava no meio da escada. Por baixo, dois elfos com gorro adornado
com cauda de esquilo e, por cima, um homem vestido de negro. Num gesto impulsivo, Ciri
pulou a balaustrada e fugiu por um corredor lateral. Os elfos e o homem correram atrás dela.
Por ser mais rápida, teria certamente escapado, não fosse o fato de o corredor terminar numa
janela.
Ciri olhou para fora. Ao longo da face externa da parede estendia-se uma saliência com
menos de dois palmos de largura. Ciri passou as pernas pelo parapeito e saiu. Afastou-se da
janela e parou com as costas grudadas à parede. Ao longe brilhava o mar.
Na janela surgiu a cabeça de um elfo. Tinha cabelos louros, olhos verdes e um lenço de
seda em volta do pescoço. Ciri afastou-se ainda mais, querendo chegar à janela vizinha, mas
esta estava ocupada pelo homem de preto. Tinha horrendos olhos negros e uma grande mancha
avermelhada na bochecha.
– Pegamos você, garotinha!
Ciri olhou para baixo. Ali, bem longe, podia ver o pátio e, sobre ele, a uns dez pés abaixo
da saliência sobre a qual estava, uma pontezinha que ligava duas galerias. Só que não era uma
pontezinha, mas as ruínas de uma; uma estreita passarela de pedra com alguns restos de uma
antiga balaustrada.
– O que vocês estão esperando? – gritou o homem da cicatriz. – Saiam e peguem-na!
O elfo louro subiu cuidadosamente na saliência, grudando as costas na parede. Esticou o
braço. Estava bem perto.
Ciri engoliu em seco. Aquela passarela de pedra não era mais estreita do que a tábua do
balanço em Kaer Morhen, e ela pulara no balanço dezenas de vezes, sabendo amortizar a
queda e manter o equilíbrio. No entanto, o balanço da Fortaleza pendia apenas a alguns pés do
chão, enquanto embaixo da passarela de pedra abria-se um precipício tão profundo que as
placas do piso do pátio pareciam ser menores do que palmas de mão.
Saltou, aterrissou, balançou-se, mas manteve o equilíbrio agarrando um pedaço dos
destroços da balaustrada. Então, caminhou firmemente até a galeria. Não conseguiu se conter
e, virando-se para trás, mostrou o cotovelo dobrado a seus perseguidores, gesto que lhe fora
ensinado pelo anão Yarpen Zigrin. O homem da cicatriz soltou um palavrão.
– Pule! – gritou ao elfo louro parado na saliência. – Pule atrás dela!
– Você deve ter endoidado de vez, Rience – respondeu o elfo friamente. – Pule você, se
tiver vontade.
A sorte, como de costume, não a acompanhou por muito tempo. Foi pega assim que pulou
da galeria, caindo no meio de uns abrunheiros. Quem a agarrou e imobilizou num abraço
incrivelmente forte foi um baixo e um tanto gordo homem com nariz inchado e lábios partidos.
– Quieta – sibilou. – Quieta, minha bonequinha!
Ciri fez um esforço para se desvencilhar, mas soltou um berro, porque as mãos que
seguravam seus ombros produziram um paroxismo de dor paralisante. O homem apenas riu.
– Não agite as asas, meu passarinho cinzento, porque acabará perdendo algumas plumas.
Deixe-me dar uma boa olhada em você. Quero ver esse ser que é tão valioso para Emhyr var
Emreis, imperador de Nilfgaard. E para Vilgeforz.
Ciri parou de se agitar. O gorducho passou a língua pelos lábios feridos.
– Interessante – voltou a sibilar, inclinando-se sobre ela. – Parece tão valiosa, e eu não
daria por você nem meia-pataca furada. Como as aparências podem enganar! Ah, meu tesouro!
O que aconteceria se você fosse entregue a Emhyr não por Vilgeforz, nem Rience, nem aquele
galanteador de elmo com plumas, mas pelo velho Terranova? Emhyr ficaria grato ao velho
Terranova? O que tem a dizer sobre isso, profetisa? Afinal, você sabe profetizar, não é
verdade?
O bafo do gorducho tinha um fedor insuportável. Ciri virou o rosto, fazendo uma careta.
Seu captor interpretou erroneamente seu gesto.
– Não tente me bicar, passarinho! Eu não tenho medo de pássaros. Ou será que deveria
ter? O que acha, sua falsa vaticinadora? Sua profetisa fraudulenta? Acha que eu deveria ter
medo de passarinhos?
– Deveria – sussurrou Ciri, sentindo a cabeça girar e um frio repentino percorrer-lhe o
corpo.
Terranova soltou uma gargalhada, inclinando a cabeça para trás. O riso transformou-se
num uivo de dor. Uma enorme coruja cinzenta baixou silenciosamente do céu, cravando suas
garras nos olhos do feiticeiro, que soltou Ciri, afastou de si a tenebrosa ave, caiu de joelhos e
colocou as mãos no rosto. Por entre seus dedos jorrou sangue. Ciri soltou um grito. Terranova
afastou do rosto as mãos cobertas de sangue e muco e, com voz selvagem e gaguejante,
começou a escandir um feitiço. Não teve tempo. Às suas costas surgiu uma vaga silhueta, uma
lâmina de ferro de meteorito silvou no ar e cortou seu pescoço na altura do occipício.
– Geralt!
– Ciri.
– Não é hora para sentimentalismos – falou a coruja de cima do muro, transformando-se
aos poucos numa mulher de cabelos negros. – Fujam! Os Esquilos estão vindo para cá!
Ciri desvencilhou-se dos braços de Geralt e olhou com espanto. A mulher-coruja sentada
no muro tinha um aspecto horrível: estava imunda, chamuscada, esfarrapada e coberta de
cinzas e sangue.
– Seu pequeno monstro – disse ela, olhando para Ciri de cima do muro. – Por aquela sua
inoportuna profecia eu deveria… Mas prometi algo a seu bruxo, e sempre cumpro minhas
promessas. Não pude dar-lhe Rience, Geralt. Em troca disso, dou-lhe ela. Viva. Fujam!
Cahir Mawr Dyffryn aep Ceallach estava furioso. Somente conseguiu ver de relance a
jovem que lhe fora ordenado pegar. Antes de ele ter tido tempo para tomar uma providência
para isso, aqueles malditos feiticeiros transformaram Garstang num autêntico inferno,
impedindo-o de empreender qualquer tentativa. Cahir sentiu-se perdido no meio das chamas e
da fumaça, vagando às cegas pelos corredores, subindo e descendo escadas, correndo ao
longo de galerias, amaldiçoando Vilgeforz, Rience e ele próprio.
Um elfo que ele encontrou por acaso informou-lhe que a menina havia sido vista fora dos
muros do palácio, fugindo na direção de Aretusa. Foi quando a sorte sorriu para Cahir: os
Scoia’tael acharam um cavalo selado numa cocheira.
– Corra, Ciri. Eles estão próximos. Eu vou detê-los enquanto você foge. Corra o máximo
que puder.
– Você também quer me deixar sozinha?
– Estarei logo atrás de você. Mas não olhe para trás.
– Passe-me minha espada, Geralt.
O bruxo olhou para ela. Ciri recuou instintivamente. Olhos como aqueles ela jamais havia
visto.
– Tendo uma espada, é bem provável que você será obrigada a matar. Será capaz disso?
– Não sei. Dê-me a espada.
– Corra. E não olhe para trás.
Cascos de cavalo ecoaram na estrada. Ciri virou-se… e parou petrificada pelo pavor.
Quem a perseguia era o cavaleiro negro com elmo adornado com asas de ave de rapina. As
asas sussurravam, a longa capa negra esvoaçava ao vento. As ferraduras soltavam faíscas do
calçamento da estrada. Ciri não conseguia dar um passo.
O cavalo negro rompeu os arbustos à beira da estrada. O cavaleiro soltou um grito. Era um
grito que continha Cintra, noite, massacre, sangue e fogo. Ciri dominou o medo paralisante e
saiu correndo. Pulou por cima de uma cerca viva, caindo num pequenino pátio com um
chafariz no centro. Não havia saída; o pátio era cercado por muros altos e lisos por todos os
lados. O cavalo relinchou pertinho, quase sobre o pescoço dela. Ciri recuou, tropeçou e
estremeceu ao dar com as costas na dura e imóvel parede. Estava presa numa armadilha.
A ave de rapina moveu as asas ameaçadoramente, preparando-se para alçar voo. O
guerreiro negro esporeou o cavalo e saltou por cima da cerca viva que o separava do pátio.
Os cascos bateram nas placas do piso escorregadio do pátio, e o cavalo deslizou, quase
sentando nas ancas. O cavaleiro balançou na sela, o cavalo empinou e o cavaleiro desabou
com estrondo, provocado pelo choque de sua armadura com a pavimentação de pedra. No
entanto, ergueu-se imediatamente e avançou para a encurralada Ciri.
– Você não tocará em mim! – gritou ela, sacando a espada. – Nunca mais tocará em mim!
O cavaleiro aproximava-se lentamente, crescendo diante dela como uma enorme torre
negra. As asas de seu elmo se agitavam e sussurravam.
– Você não me escapará mais, Leoazinha de Cintra – rosnou, com os olhos brilhando
impiedosamente através das fendas do elmo. – Não desta vez. Desta vez, você não tem para
onde fugir, louca senhorita.
– Você não tocará em mim – repetiu Ciri, com voz abafada pelo medo e com as costas de
encontro à parede.
– Tenho de fazê-lo. Estou cumprindo ordens.
Quando o cavaleiro estendeu o braço em sua direção, Ciri sentiu repentinamente o medo
sumir e ser substituído por uma raiva profunda. Os músculos, recém-travados pelo medo,
funcionaram como molas, e todos os movimentos aprendidos em Kaer Morhen agiram de
maneira espontânea, fluida e harmoniosa. Ciri deu um salto. O cavaleiro tentou agarrá-la, mas
não estava preparado para a pirueta com a qual Ciri livrou-se agilmente de suas mãos. A
espada silvou e acertou em cheio as junções das placas da armadura. O cavaleiro cambaleou e
caiu sobre um dos joelhos. Debaixo de sua ombreira esguichou um jato de sangue. Urrando
selvagemente, Ciri executou uma segunda pirueta e atingiu novamente o cavaleiro com a
espada, dessa vez diretamente na base do elmo, fazendo com que ele caísse sobre o outro
joelho. Uma onda de raiva e fúria não permitiu que ela visse nada além das odiadas asas de
ave de rapina. Penas negras voaram para todos os lados; uma das asas caiu decepada,
enquanto a outra pendeu sobre a ensanguentada ombreira. O cavaleiro, tentando inutilmente se
erguer, quis evitar um novo golpe da lâmina agarrando-a com sua luva blindada, mas soltou
um grito de dor quando esta, feita de ferro de meteorito, rasgou a malha de aço e a palma da
mão. O golpe seguinte fez com que o elmo caísse. Ciri preparou-se para tomar impulso e
desferir o golpe mortal.
Não o desferiu.
Não havia elmo negro; não havia asas de ave de rapina cujo farfalho tanto a perseguira nos
pesadelos. Não havia mais o negro cavaleiro de Cintra, mas apenas, ajoelhado numa poça de
sangue, um pálido jovem de cabelos escuros e estupefatos olhos azuis-celestes, com o rosto
contorcido num esgar de pavor. O negro cavaleiro de Cintra caíra sob os golpes de sua
espada, deixara de existir, e tudo o que restara das tão temidas asas foram algumas penas
destroçadas. O apavorado garoto caído no chão e vomitando sangue não era ninguém
conhecido. Ciri jamais o tinha visto. Não estava interessada nele. Não o temia nem o odiava,
tampouco queria matá-lo.
Soltou a espada, deixando-a cair no piso do pátio.
Ouviu gritos dos Scoia’tael correndo em sua direção desde Garstang. Compreendeu
imediatamente que seria encurralada no pátio em questão de segundos. Também compreendeu
que, mesmo que fugisse, seria alcançada. Tinha de ser mais rápida do que eles. Correu até o
corcel negro, que batia com os cascos nas placas do pavimento do pátio, fez com que ele se
pusesse a galopar com um grito e saltou em sua sela em pleno galope.
– Deixem-me… – gemeu Cahir Mawr Dyffryn aep Ceallach, afastando com a mão sã os
elfos que tentavam erguê-lo. – Não tenho nada! É um ferimento superficial… Vão atrás dela…
Vão atrás da garota…
Um dos elfos soltou um grito, e um jato de sangue caiu sobre o rosto de Cahir. Um segundo
Scoia’tael cambaleou e caiu de joelhos, agarrando as tripas que lhe saíam da barriga cortada
verticalmente. Os demais pularam para trás e espalharam-se pelo pátio, sacando a espada.
Estavam sendo atacados por um monstro de cabelos brancos que saltara sobre eles de
cima do muro, de uma altura da qual não seria possível saltar sem quebrar as duas pernas.
Também não seria possível aterrissar suavemente, executar uma pirueta tão rápida que era
impossível ver e, numa fração de segundo, matar. Acontece que o monstro de cabelos brancos
conseguira os três feitos e começara a matar sistematicamente.
Os Scoia’tael lutaram com fervor. Eram mais numerosos. No entanto, não tinham chance
alguma. Diante dos olhos arregalados de terror de Cahir, desenrolava-se um autêntico
massacre. A jovem de cabelos cinzentos que o ferira momentos atrás fora muito rápida,
incrivelmente ágil, como uma gata defendendo a prole. Mas o monstro de cabelos brancos que
caíra entre os Scoia’tael era como um tigre zerricano. A donzela de cabelos cinzentos, que não
o matara por motivos que ele desconhecia, parecia estar totalmente enlouquecida. Não era o
caso do monstro de cabelos brancos. Ele era calmo e frio. Matava calma e friamente.
Os Scoia’tael não tiveram a mínima chance. Seus cadáveres caíam um atrás do outro sobre
as placas do piso do pátio, mas eles não cediam terreno. Mesmo quando sobraram apenas
dois, não fugiram e lançaram-se sobre o monstro. Diante dos olhos de Cahir, o monstro
decepou o braço de um, enquanto atingia o outro com uma pancada aparentemente leve e
despretensiosa, mas que atirou o elfo para trás, jogando-o por cima da borda do chafariz e
fazendo-o cair na água. A água transbordou num jato carmesim.
O elfo com o braço decepado estava ajoelhado perto do chafariz, contemplando com olhar
perdido o coto do qual esguichava sangue. O monstro agarrou-o pelos cabelos e, com um
rápido movimento da lâmina da espada, cortou sua garganta.
Quando Cahir abriu os olhos, o monstro estava junto dele.
– Não me mate… – sussurrou, desistindo de qualquer tentativa de se erguer do chão
escorregadio de tanto sangue. A mão ferida pela jovem de cabelos cinzentos parara de doer,
pois intumescera.
– Sei quem é você, nilfgaardiano – falou o monstro de cabelos brancos, dando um pontapé
no elmo com asas destruídas. – Você a perseguiu por muito tempo e com determinação. Mas
você nunca mais poderá lhe fazer mal algum.
– Não me mate…
– Dê-me um só motivo para não fazê-lo. Basta um. Depressa.
– Fui eu… – sussurrou Cahir. – Fui eu quem a tirou de Cintra naquela ocasião… do
incêndio… Salvei-a. Salvei sua vida.
Quando abriu os olhos, o monstro não estava mais ali. Cahir encontrava-se sozinho no
centro do pátio, cercado pelos cadáveres dos elfos. A água do chafariz sussurrava, passando
pela borda da bacia e diluindo o sangue nas placas do piso. Cahir desmaiou.
Junto da base da torre havia uma construção que lembrava um enorme salão ou, melhor
dizendo, um peristilo. O telhado sobre o peristilo, sem dúvida ilusório, estava cheio de
buracos. Era apoiado por colunas e pilastras em forma de cariátides parcamente vestidas, de
seios imponentes. Cariátides do mesmo tipo suportavam o arco do portal através do qual
desaparecera Ciri. Do outro lado do portal, Geralt vislumbrou uma escadaria ascendente até a
torre.
O bruxo soltou um palavrão. Não conseguia compreender por que Ciri correra para lá.
Seguindo-a sobre os muros, havia visto quando seu cavalo tropeçara e caíra e como ela se
levantara agilmente, mas, em vez de tomar a estrada que se enrolava em volta do cume como
uma serpentina, resolvera correr na direção da torre solitária. Somente depois ele avistara os
elfos no meio da estrada. Os elfos não viram nem Ciri nem ele; estavam por demais ocupados
em disparar com seus arcos na direção dos homens ao pé da montanha. Eram reforços vindos
de Aretusa.
O bruxo já estava se preparando para subir as escadas atrás de Ciri quando ouviu um
farfalho vindo de cima. Virou-se rapidamente. Não se tratava de uma ave. Vilgeforz, agitando
suas largas mangas, adentrou por um dos buracos no teto e pousou lentamente no piso.
Geralt parou na entrada da torre, sacou a espada e soltou um suspiro. Guardava a sincera
esperança de que a dramática refrega final seria travada entre Vilgeforz e Filippa Eilhart. Não
tinha vontade nem interesse em participar de eventos de tal dramaticidade.
Vilgeforz sacudiu o gibão e ajeitou os punhos. Em seguida, olhou para o bruxo e leu seus
pensamentos.
– Que dramaticidade mais besta – suspirou.
Geralt não fez comentário algum.
– Ela entrou na torre?
O bruxo não respondeu. O feiticeiro meneou a cabeça.
– Portanto, chegamos ao epílogo – falou em tom gélido. – O final que coroa o feito. Ou
será o destino? Você sabe aonde levam essas escadas? A Tor Lara, a Torre da Gaivota, da qual
não há saída. Tudo se acabou.
Geralt deu um passo para trás de modo que seus flancos cobrissem as cariátides que
suportavam o portal.
– Efetivamente – escandiu, pronunciando cuidadosamente cada sílaba e não desgrudando
os olhos das mãos do feiticeiro. – Tudo se acabou. Metade de seus cúmplices está morta. O
caminho daqui até Garstang está coberto de cadáveres de elfos trazidos a Thanedd. Os que
sobraram fugiram. De Aretusa estão chegando reforços de feiticeiros e homens de Dijkstra. O
nilfgaardiano que pretendia levar Ciri já deve ter se exaurido de sangue, enquanto Ciri está lá
em cima, na torre. Você diz que não há saída de lá? Isso me alegra muito, pois significa que há,
também, somente um acesso; precisamente o que eu estou bloqueando.
Vilgeforz irritou-se.
– Você é mesmo incorrigível – falou. – Continua sem saber avaliar corretamente uma
situação. O Capítulo e o Conselho deixaram de existir. As tropas do imperador Emhyr estão se
deslocando para o norte. Os reis, desprovidos da ajuda e dos conselhos de seus feiticeiros,
estão desamparados como crianças. Atacados por Nilfgaard, seus reinos desabarão como
castelos de areia. Eu lhe propus ontem ao anoitecer e renovo a proposta: passe para o lado
dos vencedores. Cuspa com desprezo nos vencidos.
– Pois saiba que o vencido é você. Você não passou de um instrumento. Emhyr queria pôr
as mãos em Ciri e foi para isso que mandou aquele tipo com elmo alado. Estou curioso de
saber o que Emhyr fará com você quando for informado de seu fracasso.
– Você está disparando às cegas, bruxo. E, como era de esperar, erra o alvo. E se eu lhe
dissesse que, ao contrário do que você afirmou, em vez de eu ser um instrumento de Emhyr, é
ele que é o meu?
– Eu não acreditaria.
– Geralt, pense um pouco. Será que você, a esta altura, quer brincar desse teatro absurdo
de uma luta final entre o Bem e o Mal? Renovo minha proposta de ontem. Ainda não é tarde
demais. Você pode fazer sua escolha, pode colocar-se do lado certo…
– Do lado que acabo de dizimar consideravelmente?
– Não precisa sorrir. Seus sorrisos demoníacos não me impressionam. Aqueles poucos
elfos massacrados? Artaud Terranova? São detalhes insignificantes. Pode-se passar à ordem
do dia por cima deles.
– Claro. Conheço sua visão do mundo. A morte não conta, não é verdade? Principalmente
se for a morte de outros.
– Não seja tão banal! Tenho pena de Artaud, mas o que se há de fazer? Paciência.
Chamemos isso de… um acerto de contas. Afinal, eu já tentei matar você duas vezes. Emhyr
estava ficando impaciente, de modo que eu contratei assassinos profissionais para darem cabo
de você. Saiba que nas duas vezes eu o fiz com profundo desagrado. Porque, acredite em mim,
mantenho a esperança de sermos pintados juntos num dos quadros da Galeria.
– Abandone essa esperança, Vilgeforz.
– Guarde sua espada. Entraremos juntos em Tor Lara. Acalmaremos a Criança de Sangue
Antigo, que, a esta altura, deve estar morrendo de medo no interior da torre. E iremos embora
daqui. Juntos. Você estará ao lado dela e poderá ver como se cumpre seu destino. E, quanto ao
imperador Emhyr, ele receberá aquilo que deseja. Porque esqueci de lhe dizer que, embora
Codringher e Fenn estejam mortos, sua obra e suas ideias continuam vivas e estão muito bem.
– Você está mentindo. Suma daqui antes que eu cuspa com desprezo em você.
– Eu realmente não quero matá-lo, acredite. Não gosto de matar.
– Realmente? E Lydia van Bredevoort?
O feiticeiro fez uma careta de desagrado.
– Não mencione esse nome, bruxo.
Geralt segurou a empunhadura da espada com mais força e sorriu sarcasticamente.
– Por que Lydia teve de morrer, Vilgeforz? Por que ordenou que morresse? Para desviar a
atenção de você, não foi isso? Não foi para lhe dar o tempo necessário para torná-lo imune ao
dvimerito e enviar um sinal telepático a Rience? Pobre Lydia, uma dotada artista com rosto
desfigurado. Todos sabiam que ela era uma pessoa sem importância. Todos, menos ela.
– Cale-se.
– Você assassinou Lydia, feiticeiro. Aproveitou-se dela e agora quer se aproveitar de Ciri.
Pois saiba que não permitirei que você entre em Tor Lara.
O feiticeiro deu um passo para trás. Geralt contraiu os músculos, preparando-se para
saltar e aplicar um golpe. Mas Vilgeforz não ergueu o braço; em vez disso, estendeu-o para o
lado e em sua mão materializou-se repentinamente um grosso bastão de uns seis pés de
comprimento.
– Já sei – disse – o que o atrapalha em avaliar corretamente uma situação. Sei o que lhe
complica e dificulta a adequada previsão do futuro. É sua arrogância, Geralt. Pois vou tirá-la
de você. Tirarei sua arrogância com a ajuda desta varinha.
O bruxo semicerrou os olhos e ergueu a lâmina da espada.
– Mal posso esperar.
Algumas semanas mais tarde, já curado graças aos esforços das dríades e da água de
Brokilon, Geralt ficou matutando qual teria sido o erro que cometera durante o confronto,
chegando à conclusão de que no decurso da refrega não errara. O único erro que cometera fora
antes da luta: deveria ter fugido antes de ela começar.
O feiticeiro era rápido, o bastão cintilava como um raio em sua mão. O espanto de Geralt
foi ainda maior quando, ao aparar um golpe, o bastão e a espada chocaram-se, emitindo um
som metálico. No entanto, não havia tempo para se espantar. Vilgeforz atacava sem parar, e o
bruxo tinha de ficar se desdobrando em fintas e piruetas. Temia aparar os golpes com a
espada; o maldito bastão era de ferro, além de ser mágico.
Nas quatro vezes em que pôde atacar, golpeou o feiticeiro: na têmpora, no pescoço, na
axila e na coxa. Cada um dos golpes era mortal, mas todos foram aparados. Nenhum ser
humano poderia aparar tais golpes. Aos poucos, Geralt começou a compreender, porém já era
tarde demais.
Nem chegou a ver o golpe com o qual o feiticeiro o atingiu. O choque atirou-o para longe,
de costas contra a parede, deixando-o estonteado e ofegante. Recebeu um novo golpe, dessa
vez na nuca, voltando a cair para trás e batendo com o occipício nos salientes seios de uma
cariátide. Vilgeforz saltou agilmente para perto dele, girou o bastão e lhe acertou a barriga,
logo abaixo das costelas. Com força. Quando Geralt vergou-se, foi golpeado na cabeça. Seus
joelhos ficaram moles e ele desabou. E esse, em princípio, teria sido o fim do combate. Geralt
tentou ainda se defender desajeitadamente com a espada. Diante do golpe seguinte, a lâmina,
enfiada entre a parede e a cariátide, partiu-se, emitindo um som vítreo. O bruxo protegeu a
cabeça com o braço esquerdo, e o bastão caiu com ímpeto, quebrando o osso do antebraço. A
dor cegou-o por completo.
– Eu poderia sacar seus miolos por seus ouvidos – falou de longe Vilgeforz. – Mas isso
deveria ser apenas uma lição. Você se enganou, bruxo. Confundiu o céu com estrelas refletidas
na superfície de um lago. Ah, está vomitando? Muito bem. Traumatismo craniano. Está
sangrando pelo nariz? Ótimo. Até a vista. Algum dia. Talvez.
Geralt já não via nem ouvia coisa alguma. Estava se afogando em algo quente. Achou que
Vilgeforz tivesse ido embora, de modo que se espantou quando sentiu mais um golpe do bastão
de ferro em sua perna, destroçando o osso da coxa.
Os golpes seguintes, se é que os houve, não sentiu mais.
– Aguente firme, Geralt; não se entregue – repetia Triss Merigold sem cessar. – Aguente.
Não morra… Eu lhe imploro, não morra…
– Ciri…
– Não fale. Já vou puxar você para fora daqui. Aguente… Deuses, dei-me forças…
– Yennefer… Eu preciso…
– Você não precisa nada! Não pode fazer nada! Aguente firme. Não se entregue… Não
desmaie… Não morra, eu lhe peço…
A feiticeira arrastava-o pelo chão coberto de cadáveres. Geralt via seu peito e sua barriga
totalmente cobertos do sangue que jorrava de seu nariz. Via sua perna retorcida numa posição
esquisita, parecendo mais curta do que a sã. Não sentia dor, mas frio. Todo o seu corpo estava
frio, entorpecido e estranho. Tinha vontade de vomitar.
– Aguente, Geralt. Logo, logo chegarão reforços de Aretusa.
– Dijkstra… Se Dijkstra me pegar… nada sobrará de mim…
Triss praguejou. Desesperadamente.
Arrastava-o pelas escadas. O braço e a perna frouxos e quebrados batiam com força em
cada degrau. A dor despertou-o, penetrando nas vísceras, nas têmporas, irradiando-se até os
olhos, os ouvidos, o topo da cabeça. Não gritava. Sabia que se gritasse aliviaria a dor, mas
não gritou. Apenas abria a boca, pois aquilo servia de algum alívio.
Ouviu um estrondo.
Tissaia de Vries, despenteada e com o rosto coberto de poeira, estava no topo das
escadas. Ergueu os dois braços, e da palma das mãos emanaram chamas. Gritou um encanto e
o fogo que dançava entre seus dedos se transformou numa ardente e cegante bola, que rolou
escadas abaixo. O bruxo ouviu barulho de muros desabando e horripilantes gritos de pessoas
queimadas.
– Tissaia, não! – gritou Triss desesperadamente. – Não faça isso!
– Eles não chegarão até aqui – falou a arquimaga, sem virar a cabeça. – Aqui é Garstang,
na ilha de Thanedd. Ninguém convidou esses lacaios de reis que executam ordens de seus
míopes soberanos a vir para cá.
– Você os está matando!
– Cale-se, Triss Merigold! O golpe contra a Irmandade falhou; a ilha continua sob o mando
do Capítulo! Trata-se de um conflito interno e nós mesmos o resolveremos! Resolveremos
nossas questões e, depois, poremos um fim a esta guerra idiota! Porque cabe a nós, feiticeiros,
a responsabilidade pelos destinos do mundo!
Mais uma bola de chamas emanou de suas mãos, e o estrondo da explosão ecoou
repetidamente por entre colunas e paredes de pedra.
– Fora! – gritou a arquimaga. – Vocês não conseguirão entrar aqui! Fora!
Os gritos de dor foram cessando. Geralt compreendeu que os sitiadores ao pé das escadas
recuaram e fugiram. A silhueta de Tissaia foi se desfazendo diante de seus olhos. No entanto,
não se tratava de magia; era ele que estava perdendo os sentidos.
– Fuja, Triss Merigold – ouviu as palavras da feiticeira, vindas de longe, como se ela
estivesse atrás de uma parede. – Filippa Eilhart já fugiu, voando com suas asas de coruja.
Você foi cúmplice dela nesse vergonhoso incidente, e eu deveria puni-la. Mas basta de mortes,
sangue e desgraças! Suma daqui! Vá para Aretusa, juntar-se a seus comparsas! Teleporte-se. O
portal da Torre da Gaivota deixou de existir. Desabou com a torre. Pode se teleportar sem
medo e para onde quiser, mesmo para junto de seu rei Foltest, em prol de quem você traiu a
Irmandade!
– Eu não deixarei Geralt… – gemeu Triss. – Ele não pode cair nas mãos dos redânios…
Está muito ferido… Está com hemorragia interna… E eu não tenho mais forças para abrir o
teleportal! Tissaia, ajude-me, por favor!
Escuridão. Um frio penetrante. De longe, do outro lado da parede de pedra, a voz de
Tissaia de Vries:
– Vou ajudá-la.
CAPÍTULO QUINTO
O chefe do destacamento freou o cavalo, tirou o elmo e passou a mão pelos ralos cabelos
úmidos de suor.
– Chegamos ao fim da viagem – repetiu, vendo o olhar indagativo do trovador.
– O quê? Como? – espantou-se Jaskier. – Por quê?
– Não daremos mais um passo. O senhor está vendo aquele riozinho brilhando lá no fundo
do vale? É o Wstazka. A ordem que recebemos foi de escoltá-lo apenas até o Wstazka, o que
significa que chegou a hora de nos separarmos.
O resto do destacamento também parara, e nenhum dos soldados desmontou. Todos
olhavam em volta com visível preocupação. Jaskier protegeu os olhos do sol com a mão e
ergueu-se nos estribos.
– Onde você está vendo o tal rio?
– No fundo do vale, como já lhe disse. Se o senhor descer pela encosta, chegará lá num
instante.
– Acompanhem-me pelo menos até a margem – protestou Jaskier. – Assim, poderão me
mostrar onde fica o vau…
– Não há nada a mostrar. Não chove desde maio, as águas baixaram e o Wstazka ficou
mais raso. A cavalo, é possível atravessá-lo em qualquer ponto…
– Eu mostrei ao comandante de vocês uma carta do rei Venzlav – falou o trovador,
adotando o ar de um grão-senhor. – O comandante tomou conhecimento do conteúdo da carta e
eu mesmo ouvi quando lhes ordenou que me acompanhassem até Brokilon. E vocês querem me
deixar aqui, na beira desta floresta? O que vai acontecer caso eu me perca?
– O senhor não vai se perder – falou soturnamente um dos soldados, que se mantivera
calado até aquele instante. – Não terá tempo para se perder. Antes disso será encontrado pela
ponta de uma flecha de dríade.
– Como vocês são cagões – debochou Jaskier. – É impressionante como têm medo dessas
dríades. Afinal, Brokilon começa na outra margem do Wstazka. O Wstazka é a fronteira, e nós
ainda não a atravessamos!
– A fronteira das dríades – explicou o chefe, olhando em volta com preocupação – chega
até o ponto em que alcançam suas flechas. Uma flecha disparada da outra margem alcançará
facilmente a floresta e terá ímpeto suficiente para perfurar uma armadura. Se o senhor cismou
em ir até lá, isso é problema seu, e é sua pele que está em jogo. Mas eu tenho amor a minha
vida e não darei nem mais um passo em frente. Prefiro que me enfiem a cabeça num vespeiro!
– Eu já lhes expliquei – disse Jaskier, empurrando o chapeuzinho para trás da cabeça e
aprumando-se na sela – que estou indo a Brokilon numa missão. Pode-se dizer que sou um
embaixador. Não tenho medo das dríades, mas peço-lhes que me acompanhem até a margem
do Wstazka. Não gostaria de ser assaltado por bandidos no caminho.
O soldado soturno soltou uma gargalhada.
– Bandidos? Aqui? De dia? Meu senhor, de dia o senhor não encontrará vivalma. Nos
últimos tempos, as dríades não só dispararam seus arcos contra qualquer um que aparecesse
na margem do Wstazka, como ainda ousaram, mais de uma vez, adentrar nosso território. Não,
não precisa ter medo de bandidos.
– É verdade – confirmou o chefe. – Só alguém muito tolo apareceria de dia perto do
Wstazka. E nós não somos tolos. O senhor terá de ir até lá sozinho, sem armas nem armadura,
e, sem querer ofendê-lo, dá para ver a uma milha de distância que o senhor não tem pinta de
guerreiro. E isso poderá lhe ser vantajoso, pois, ao avistarem homens montados e armados, as
dríades soltarão tantas flechas que não será possível ver o sol.
– Bem, se não há outro remédio, que seja – falou Jaskier, acariciando o cavalo e olhando
para o fundo do vale. – Terei de ir sozinho. Passem bem, soldados. Agradeço-lhes a escolta.
– Não tenha tanta pressa – disse o soldado soturno, olhando para o céu. – Está quase
anoitecendo. Espere até a névoa vespertina se erguer do rio. Pois saiba…
– O quê?
– Que um disparo num nevoeiro é menos certeiro. Se o senhor tiver sorte, uma dríade
poderá até errar, só que tenha em mente que elas erram muito raramente…
– Eu já lhes disse…
– Sim, o senhor disse e nós ouvimos que o senhor está indo ao encontro delas numa
espécie de missão. Pois eu lhe direi algo diferente: seja numa missão ou numa procissão, para
elas tanto faz. Encherão o senhor de flechas, e pronto.
– Será que vocês se juntaram para me assustar? – empertigou-se o poeta. – Por quem
vocês me tomam? Por um escrevinhador qualquer? Eu, senhores soldados, vi mais campos de
batalha do que vocês todos juntos. E também sei mais sobre dríades do que vocês, embora não
muito mais do que o fato de elas nunca atirarem sem dar um prévio aviso.
– Foi assim, no passado – falou o chefe do destacamento, com voz baixa. – No passado,
elas avisavam. Disparavam uma flecha no tronco de uma árvore ou no meio de uma trilha,
como sinal para não se dar um passo além daquela flecha. Se a pessoa virasse imediatamente
e fosse embora, poderia escapar ilesa. Mas hoje é diferente; elas disparam direto para matar.
– Por que tanta animosidade?
– Bem – murmurou o soldado –, porque, quando os reis firmaram o cessar-fogo com
Nilfgaard, logo se puseram a perseguir os bandos de elfos. Devem tê-los apertado muito,
porque não há uma noite em que seus sobreviventes não passem por Brugge fugindo para
Brokilon em busca de um lugar para se esconder. E quando os nossos perseguem os elfos, não
é raro haver um confronto com as dríades, que vêm do outro lado do Wstazka para ajudar os
elfos. E também houve casos nos quais nossas tropas exageraram um pouco na perseguição…
Entendeu?
– Entendi – respondeu Jaskier, olhando atentamente para o soldado e fazendo um meneio
positivo com a cabeça. – Ao perseguirem os Scoia’tael, vocês acabavam atravessando o
Wstazka e matando dríades. E agora as dríades estão lhes pagando com a mesma moeda. Em
outras palavras, temos uma guerra.
– Sim. O senhor tirou as palavras de minha boca. Uma guerra. Uma guerra sempre de
morte, nunca de vida. Mas agora as coisas estão ainda piores. O ódio entre nós e eles é
enorme. Portanto, volto a repetir: se o senhor não precisa realmente ir para lá, então não vá.
Jaskier engoliu em seco.
– A questão é – aprumou-se na sela, fazendo um grande esforço para adotar uma expressão
marcial e uma postura guerreira – que eu preciso ir. E irei. Agora. Independentemente se de
noite ou de dia, se com nevoeiro ou sem, quando o dever chama, é preciso cumpri-lo.
Anos de prática tiveram seu efeito. A voz do trovador soou ameaçadora e linda, soturna e
gélida, com um timbre de ferro e masculinidade. Os soldados olharam para ele com inegável
admiração.
– Antes de partir – disse o chefe, pegando um cantil de madeira que pendia de sua sela –
tome um gole de vodca, senhor cantor. Dê um bom trago…
– Assim, ser-lhe-á mais leve morrer – acrescentou soturnamente o soldado de poucas
palavras.
O poeta sorveu um gole do cantil.
– Um covarde – declarou com dignidade, assim que passou o acesso de tosse e ele
recuperou o fôlego – morre cem vezes. Já um valente morre só uma. Mas a Dona Fortuna é
aliada dos bravos, nutrindo profundo desprezo pelos covardes.
Os soldados olharam para ele com ainda maior admiração. Não sabiam nem podiam saber
que Jaskier citava uma passagem de um poema épico, ainda por cima escrito por outro poeta.
– Sendo assim – o bardo tirou do bolso do casaco um tilintante saquinho de couro –,
permitam que eu lhes agradeça a escolta. Antes de retornarem ao forte e antes de a implacável
mãe serventia voltar a requerer seus serviços, parem numa taberna e bebam a minha saúde.
– Muito obrigado, senhor – balbuciou o chefe, enrubescendo levemente. – O senhor está
sendo tão generoso, enquanto nós… Perdoe-nos por deixá-lo aqui sozinho, mas…
– Não se preocupem com isso. Passem bem.
O poeta deslizou arrojadamente o chapeuzinho sobre a orelha direita, esporeou o cavalo e
partiu trotando escarpa abaixo e assoviando a melodia de “As bodas em Bullerlyn”, uma
famosa e extraordinariamente obscena canção das tropas de cavalaria.
– E aquele corneteiro lá no forte disse – ouviu ainda as palavras do soldado soturno – que
ele era um parasita, covarde e idiota. E eis que se revela um cavaleiro valente e ousado,
apesar de ser um versejador.
– É verdade – respondeu o chefe. – É preciso admitir que ele é corajoso. Fiquei
observando-o e vi que suas pálpebras nem chegaram a tremer. Sim, senhor. Você ouviu o que
ele disse? Que era um “embrassador”. Não é qualquer um que pode ser nomeado
“embrassador”. É preciso ter boa cabeça para tornar-se “embrassador”…
Jaskier acelerou o trote, querendo afastar-se o mais rápido possível. Não queria estragar a
reputação que acabara de criar. E sabia que para continuar assoviando precisaria de mais
saliva do que a que lhe restava em seus lábios ressecados de pavor.
A escarpa era úmida e sombria. O chão de barro umedecido, assim como o tapete de
folhas apodrecidas que o cobria, abafava o som dos cascos do alazão castrado, que o poeta
batizara de Pégaso. Pégaso avançava devagar, com a cabeça abaixada. Era um desses poucos
cavalos para os quais tudo é indiferente.
A floresta terminou, mas até os amieiros que ladeavam o leito do rio estendia-se uma larga
planície semialagada e coberta de juncos. O poeta deteve o cavalo. Olhou cuidadosamente em
volta, porém não viu nada. Aguçou os ouvidos, e o único som que ouviu foi o coaxar de rãs.
– Muito bem, cavalinho – pigarreou –, só se morre uma vez. Em frente.
Pégaso levantou a cabeça e ergueu interrogativamente as orelhas normalmente caídas.
– É isso mesmo. Você ouviu direito. Em frente.
O castrado moveu-se com relutância, chapinhando no terreno pantanoso. Rãs saltavam em
volta de suas patas, evitando serem esmagadas. A alguns passos diante deles, um pato alçou
voo, grasnando e batendo as asas com força, o que fez o coração do trovador interromper sua
função por um momento, para logo em seguida retomá-la intensivamente e em ritmo
redobrado. Pégaso nem ligou para o pato.
– O herói cavalgava… – sussurrou Jaskier, enxugando o suor frio da nuca com um lenço
tirado do casaco. – Cavalgava impavidamente pelo pântano, sem se importar com anfíbios
saltitantes nem com dragões voadores… Cavalgou e cavalgou… até chegar a uma imensurável
extensão de águas…
Pégaso bufou e parou. Estavam junto do rio, no meio de juncos e bunhos que se erguiam
acima dos estribos. Jaskier enxugou as pálpebras suadas e amarrou o lenço no pescoço. Ficou
olhando firmemente para os amieiros na outra margem do rio até seus olhos lacrimejarem.
Nada nem ninguém. Sobre a superfície da água enrugada pelas plantas aquáticas levadas pela
correnteza, voavam dezenas de pica-peixes turquesa-alaranjados. O ar tremulava com
enxames de insetos, enquanto peixes engoliam efemerópteros, deixando grandes círculos na
água.
Até onde a vista podia alcançar, viam-se tocas de castores, montes de galhos quebrados e
troncos roídos levados pela suave correnteza. “Que quantidade enorme de castores!”, pensou
o poeta. “Uma fortuna incalculável. E não é de espantar. Ninguém incomoda esses malditos
roedores. Este lugar é evitado por saqueadores, pescadores, apicultores e até pelos
onipresentes caçadores de aves, que não ousam colocar aqui suas armadilhas. Os que tentaram
levaram uma flechada na garganta e tiveram o corpo devorado por caranguejos. Enquanto isso,
eu, um idiota, me meto aqui por vontade própria, aqui, à beira do Wstazka, um rio do qual
emana um horrendo fedor de carne apodrecida que não se ameniza nem pelo cheiro de ácoro e
menta…”
O bardo suspirou profundamente.
Pégaso adentrou a água lentamente com as patas dianteiras, baixou a cabeça até a
superfície e bebeu durante muito tempo. Depois, virou a cabeça e olhou interrogativamente
para Jaskier. Um filete de água lhe escorria das narinas e do focinho. O poeta meneou a
cabeça, soltou mais um suspiro e fungou longamente.
– O herói olhou para a agitada superfície da água – declamou baixinho, esforçando-se para
não bater os dentes. – Olhou em volta e seguiu em frente, pois seu coração desconhecia o
conceito de medo.
Pégaso abaixou a cabeça e as orelhas.
– Desconhecia o conceito de medo, eu disse.
Pégaso sacudiu a cabeça. Jaskier cutucou-o com os calcanhares, e o castrado entrou na
água com patética resignação.
O Wstazka era raso, mas bastante coberto por vegetação. Antes mesmo de chegarem à
metade de sua largura, uma longa trança verdejante formou-se atrás das patas de Pégaso. O
cavalo avançava lentamente e, a cada passada, fazia um esforço para se livrar das incômodas
plantas aquáticas. Os juncos e amieiros na margem direita já estavam próximos, tão próximos
que Jaskier sentiu o estômago baixando e baixando, quase chegando à sela. Estava ciente de
que, no meio do rio e quase aprisionado pela vegetação aquática, era um alvo perfeito e
impossível de errar. Com olhos de imaginação já via arcos com cordas retesadas e pontas de
flechas apontadas em sua direção.
Apertou o cavalo com as coxas, mas Pégaso não lhe deu a mínima importância. Em vez de
se apressar, parou e ergueu a cauda. Bolotas de esterco caíram na água. Jaskier soltou um
palavrão.
– O herói – sussurrou, semicerrando os olhos – não conseguiu atravessar as estrondeantes
cachoeiras. Morreu de maneira gloriosa, atravessado por inúmeras setas. Foi coberto para
sempre pelas escuras profundezas, aninhado em algas verdes como jade. Perderam-se dele
quaisquer rastros, exceto excrementos de cavalo levados pela correnteza ao mar distante…
Pégaso, claramente mais aliviado, não precisou ser mais esporeado para prosseguir
rapidamente para junto da margem livre de plantas aquáticas. Uma vez lá, até se permitiu dar
uns saltinhos, molhando as botas e as calças de Jaskier. O poeta nem percebeu. A visão de
setas apontadas para sua barriga não o deixava nem por um momento, enquanto o terror se
arrastava por suas costas e nuca como uma enorme sanguessuga fria e escorregadia. E isso
porque logo após os amieiros, a menos de cem passos da ala de juncos que margeava o rio,
erguia-se a perpendicular, negra e ameaçadora parede da floresta.
Brokilon.
Na margem, a alguns passos do leito do rio, jazia um branco esqueleto equino. Urtigas e
outras plantas daninhas emergiam por entre as costelas. Jaziam ali também muitos outros ossos
menores, que não pareciam ser de cavalos. Jaskier ficou todo arrepiado e desviou o olhar.
Chapinhando, o enlameado castrado saiu do pântano à beira do rio, fedendo horrivelmente.
As rãs pararam de coaxar por um momento. Tudo ficou em silêncio. Jaskier fechou os olhos.
Já não declamava nem improvisava versos; a inspiração e a fantasia haviam fugido para longe.
Restara apenas um frio e medonho medo, um sentimento assaz forte, porém totalmente
desprovido de qualquer impulso criativo.
Pégaso moveu as orelhas para trás e andou preguiçosamente na direção da Floresta das
Dríades, chamada por muitos de Floresta da Morte.
“Atravessei a fronteira”, pensou o poeta. “Agora, tudo será decidido. Enquanto estive do
outro lado do rio, e até dentro da água, elas poderiam se dar ao luxo de ser magnânimas. Mas,
agora, não mais. Agora, eu sou um intruso. Assim como daquele outro… também poderá
sobrar de mim apenas um esqueleto… a título de aviso para os próximos… Se as dríades
estão aqui… se estão me observando…”
Lembrou-se de torneios de arco e flecha, competições em feiras e demonstrações de
pontaria certeira, alvos e manequins feitos de palha sendo espetados e destroçados por pontas
de flecha. “O que será que sente um homem atingido por uma seta? Um golpe? Dor? Ou
talvez… nada?”
Ou não havia dríades nas redondezas, ou elas resolveram não dar importância a um
cavaleiro solitário, porque o poeta, embora quase morto de medo, chegou são e salvo à beira
da floresta. A entrada estava protegida por uma faixa cheia de galhos e raízes de árvores
derrubadas pelo vento, mas Jaskier não tinha intenção alguma de atravessá-la, muito menos
ainda de adentrar a floresta. Podia forçar-se a arriscar a vida, mas não a cometer suicídio.
Desmontou muito lentamente e amarrou as rédeas numa raiz que emergia da terra. Não
costumava fazer isso, pois Pégaso não era propenso a se afastar do dono. No entanto, Jaskier
não sabia como o cavalo reagiria diante do som de uma saraivada de flechas. Até então, nem
ele nem Pégaso haviam sido expostos a tais sons.
Tirou da sela um lindo alaúde, um instrumento único, de primeira classe, com um longo
braço esbelto. “Presente de uma elfa”, pensou, acariciando a madeira tasteada. “Talvez ele
acabe retornando ao Povo Antigo… A não ser que as dríades resolvam deixá-lo junto do meu
cadáver…”
Ao lado jazia uma velha árvore derrubada pelo vento. O poeta sentou em seu tronco,
apoiou o alaúde no joelho, passou a língua pelos lábios ressecados e enxugou nas calças as
mãos úmidas de suor.
O sol aproximava-se do crepúsculo vespertino. Do Wstazka elevava-se uma névoa,
cobrindo a relva com um manto branco-acinzentado. Esfriara. O grasnido das cegonhas
aumentou, para cessar logo, permanecendo apenas o coaxo das rãs.
Jaskier bateu nas cordas – uma, duas, três vezes. Afinou o instrumento e começou a tocar,
passando a cantar logo em seguida.
O sol desapareceu por trás da floresta. Uma penumbra caiu imediatamente na área
sombreada pelas gigantescas árvores de Brokilon.
Dessa vez, permitiu-se lançar um olhar por cima do ombro. Aquilo que se agachara bem
juntinho do tronco lembrava um arbusto envolto em hera. No entanto, não era um arbusto;
arbustos não costumam ter enormes olhos brilhantes.
Pégaso relinchou baixinho, e Jaskier sabia que atrás dele, na escuridão, havia alguém que
acariciava as narinas do cavalo.
– Sh’aente vort – pediu novamente a dríade agachada a suas costas. Sua voz parecia o
sussurro de folhas atingidas por gotas de chuva.
– Eu… – começou o poeta. – Eu sou… sou um amigo do bruxo Geralt… Sei que Geralt…
que Gwynbleidd está aqui em Brokilon, entre vocês. Estou vindo…
– N’te dice’en. Sh’aente va.
– Sh’aent – pediu suavemente outra dríade a suas costas, quase em coro com uma terceira
e, talvez, uma quarta, Jaskier não tinha certeza.
– Yea, sh’aente, taedh – falou com uma argêntea voz melodiosa aquilo que, até havia
pouco, parecera ao bardo uma pequena bétula a alguns passos dele. – Ess’laine… Taedh…
Cante mais sobre Ettariel… Está bem?
Jaskier obedeceu.
– Como você conseguiu me achar? Quem lhe contou que eu estava em Brokilon?
– Foi Triss Merigold… Maldição… – Jaskier tropeçou pela segunda vez e teria caído se a
dríade que caminhava a seu lado não o tivesse segurado com uma força surpreendente para
alguém de sua estatura.
– Gar’ean, táedh – advertiu-o com sua voz argêntea. – Va cáelm.
– Obrigado. É que está muito escuro… Geralt? Onde está você?
– Aqui. Não fique para trás.
Jaskier apressou o passo, tropeçou novamente e quase esbarrou no bruxo, que parara a sua
frente. As dríades passaram por eles silenciosamente.
– Que escuridão infernal… Falta muito?
– Não. Em breve estaremos no acampamento. Quem, além de Triss Merigold, sabe que
estou escondido aqui? Você andou falando sobre isso com mais alguém?
– Tive de falar com o rei Venzlav. Precisava de um salvo-conduto para atravessar Brugge.
Estamos vivendo em tempos que é impossível descrever… Também precisava de uma
permissão para adentrar Brokilon. Mas Venzlav conhece e gosta de você… Imagine que ele
me nomeou um enviado seu. Estou convencido de que ele manterá segredo; pedi-lhe isso
especificamente. Não fique chateado comigo, Geralt…
O bruxo se aproximou. Jaskier não conseguia ver a expressão em seu rosto; via apenas os
cabelos brancos e os fios de barba de vários dias, visíveis mesmo na escuridão.
– Não estou chateado. – O poeta sentiu a mão pousada em seu ombro e teve a impressão
de que a até então fria voz de Geralt mudara sensivelmente. – Estou feliz por você ter vindo,
seu filho de uma cadela.
– Como faz frio aqui… – Jaskier tremeu, fazendo estalar os galhos sobre os quais estavam
sentados. – Que tal acendermos…
– Nem pense nisso – sussurrou o bruxo. – Você esqueceu onde está?
– Elas chegam a tal ponto… – O trovador lançou um olhar preocupado a sua volta. –
Nenhum fogo, é isso?
– As árvores odeiam o fogo. E eles também.
– Que droga! Vamos ficar sentados neste frio e nesta maldita escuridão? Quando estendo o
braço, não consigo ver meus dedos…
– Então não estenda o braço.
O bardo suspirou e esfregou os antebraços. Ouviu o bruxo, sentado a seu lado, quebrar
raminhos secos com os dedos.
No meio da escuridão, surgiu repentinamente uma luzinha esverdeada, meio indistinta no
início, mas tornando-se cada vez mais nítida. Após a primeira, apareceram várias outras,
espalhadas por muitos lugares, movendo-se e dançando como pirilampos ou línguas de fogo-
fátuo. De uma hora para outra, a floresta despertou com uma agitação de sombras, e Jaskier
começou a ver a silhueta das dríades que estavam a sua volta. Uma delas aproximou-se e
colocou junto deles algo que parecia um incandescente emaranhado de plantas. O poeta
estendeu cuidadosamente o braço e aproximou a palma da mão. A brasa verde era totalmente
fria.
– O que é isso, Geralt?
– Mistura de fungos com uma espécie de musgo que cresce apenas aqui, em Brokilon.
Somente elas sabem como prepará-la para que brilhe. Agradeço-lhe, Fauve.
A dríade não respondeu, mas também não se afastou, ficando de cócoras junto deles. Sua
testa era atravessada por uma guirlanda e seus longos cabelos caíam sobre seus ombros.
Àquela luz, os cabelos pareciam ser verdes, e até era possível que fossem assim de verdade.
Jaskier sabia que os cabelos das dríades podiam ter as cores mais diversas e incomuns.
– Taedh – falou a dríade melodiosamente, erguendo para o trovador um par de olhos
brilhantes num pequenino rosto pintado com duas escuras linhas diagonais paralelas, a título
de camuflagem. – Ess’ve vort shaente aen Ettariel? Shaente a’vean vort?
– Não… Talvez mais tarde – respondeu Jaskier polidamente, escolhendo com cuidado as
palavras da Língua Antiga.
A dríade suspirou, inclinou-se, acariciou levemente o braço do alaúde deitado a seu lado,
ergueu-se e se afastou. Jaskier ficou olhando-a juntar-se às demais, cujas sombras pareciam
dançar à luz das verdes lamparinas.
– Espero não tê-la ofendido – falou meio sem graça. – Elas se comunicam num dialeto
próprio, cujas formas polidas eu não conheço…
– Verifique se você tem uma faca cravada na barriga. – Na voz do bruxo não havia nem
ironia nem humor. – As dríades sempre reagem a uma ofensa enfiando uma faca na barriga do
ofensor. Não precisa ter medo, Jaskier. Ao que tudo indica, elas serão capazes de lhe perdoar
muito mais do que um simples deslize linguístico. Seu concerto à beira da floresta claramente
lhes agradou. Agora, você é um ard táedh, ou seja, um grande bardo. Elas aguardam agora a
continuação de “A flor de Ettariel”. Você a conhece? Afinal, não é uma composição sua.
– Mas fui eu quem a traduziu, enriquecendo um tanto aquele canto élfico. Você não notou?
– Não.
– Foi o que pensei. Por sorte, as dríades têm um senso mais apurado quando se trata de
arte. Li em algum lugar que elas são excepcionalmente musicais. Foi por isso que bolei aquele
plano genial, pelo qual, cabe observar, você não me congratulou.
– Meus parabéns – falou o bruxo, após um breve silêncio. – Aquilo foi realmente muito
esperto de sua parte e, como sempre, você teve muita sorte. As flechas das dríades acertam a
duzentos passos e elas não costumam esperar que alguém chegue a sua margem do rio e
comece a cantar. Elas são muito sensíveis a odores desagradáveis. E, quando a correnteza do
Wstazka arrasta um cadáver, seu fedor empesta a floresta.
– Vamos deixar este assunto de lado. – O poeta pigarreou. – O importante é que me dei
bem e encontrei você. Geralt, como…
– Você tem uma navalha?
– É lógico que tenho.
– Vai me emprestá-la amanhã cedo. Esta barba por fazer está me deixando quase louco.
– E as dríades não tinham… Hummm… Sim, em princípio elas não têm necessidade de
navalhas. É óbvio que vou lhe emprestar. Geralt?
– O que foi?
– Não trouxe comida alguma. Será que o ard táedh, o grande bardo, pode contar com um
convite para jantar com as dríades?
– Elas não jantam. Nunca. E suas sentinelas na fronteira de Brokilon tampouco tomam café
da manhã. Você terá de sofrer até o meio-dia. Eu já me acostumei.
– Mas quando chegarmos a sua capital, à famosa Duén Canell, oculta no meio da
floresta…
– Nós nunca chegaremos lá.
– Como isso é possível? Eu pensei que… Afinal… elas lhe concederam asilo… Afinal…
elas o toleram…
– Você usou o termo adequado.
Ambos ficaram em silêncio por bastante tempo.
– Guerra – falou o poeta finalmente. – Guerra, ódio e desprezo. Por todos os lados. Em
todos os corações.
– Você está poetizando.
– Mas é assim.
– Exatamente assim. Vamos lá; conte-me com o que você veio. Relate o que se passou no
mundo enquanto eu estava sendo tratado aqui.
– Antes – Jaskier pigarreou silenciosamente – você deve me contar o que aconteceu
realmente em Garstang.
– Triss não lhe contou?
– Contou, mas eu gostaria de ouvir sua versão.
– Se você conhece a versão de Triss, conhece uma versão muito mais detalhada e exata
que a minha. Conte-me o que se passou mais tarde, quando eu já estava em Brokilon.
– Geralt – sussurrou o poeta –, eu realmente não sei o que aconteceu com Yennefer e
Ciri… Ninguém sabe, nem mesmo Triss…
O bruxo agitou-se violentamente. Os galhos estalaram.
– E eu estou lhe perguntando sobre Ciri ou Yennefer? – falou com voz alterada. – Fale-me
da guerra.
– Os nilfgaardianos – começou o bardo – atacaram Lyria e Aedirn sem declaração de
guerra alguma. O motivo teria sido um suposto ataque de tropas de Demawend a um forte
fronteiriço de Dol Angra, realizado durante o encontro dos feiticeiros em Thanedd. Há quem
afirme que aquilo foi uma provocação, perpetrada por nilfgaardianos fingindo-se de soldados
de Demawend. Acho que nunca saberemos o que aconteceu realmente. De todo modo, a reação
de Nilfgaard foi rápida e maciça: a fronteira foi atravessada por um exército poderoso, que
provavelmente estava concentrado em Dol Angra havia semanas, se não meses. Spalla e
Scala, os dois fortes fronteiriços de Lyria, foram tomados de assalto em menos de três dias.
Rívia estava preparada para resistir a um cerco prolongado, mas rendeu-se em menos de dois
dias sob a pressão das corporações dos artesãos e dos comerciantes, às quais fora prometido
que a cidade não seria saqueada caso abrisse seus portões e pagasse um resgate.
– E a promessa foi cumprida?
– Sim.
– Interessante… – A voz do bruxo voltou a se alterar. – O cumprimento de uma promessa
nos dias de hoje? Nem menciono o fato de que antigamente nem se pensava em fazer
promessas desse tipo, porque ninguém as esperava. Os artesãos e os comerciantes não abriam
os portões de fortalezas, mas defendiam-nos, com cada corporação protegendo a própria torre
e o próprio bastião.
– O dinheiro não tem pátria, Geralt. Para os comerciantes, não faz diferença sob qual
governo estão auferindo lucro, e, para os palatinos nilfgaardianos, não importa de quem
coletam impostos. Comerciantes mortos não auferem lucro e, consequentemente, não pagam
impostos.
– Continue.
– Após a capitulação de Rívia, o exército de Nilfgaard seguiu numa velocidade incrível
em direção ao norte, sem encontrar resistência digna de nota. Incapazes de formar uma frente
para uma batalha decisiva, os exércitos de Demawend e Meve foram recuando. Desse modo,
os nilfgaardianos chegaram a Aldesberg. No intuito de evitar um cerco à fortaleza, Demawend
e Meve decidiram travar uma batalha. A situação de suas tropas não era das melhores… Que
droga! Se não fosse tão escuro, eu poderia lhe desenhar…
– Não desenhe. Seja sucinto. Quem venceu?
– Vossa Excelência ouviu? – gritou um afobado e suado intendente que conseguiu passar
por entre as pessoas que cercavam a mesa. – Acabou de chegar um mensageiro do campo de
batalha! Vencemos! Vencemos a batalha! Vitória! O dia é nosso! Acabamos com o inimigo de
uma vez por todas!
– Fale mais baixo – repreendeu-o Evertsen. – Minha cabeça está prestes a estourar de
tanta gritaria de vocês. Sim, ouvi, ouvi. Derrotamos o inimigo. O dia é nosso, acabamos com o
inimigo e a vitória é nossa. Grandes coisas…
Os oficiais de justiça e os intendentes abaixaram a voz e olharam com espanto para seu
superior hierárquico.
– Vossa Excelência não está radiante?
– Estou. Mas sei estar radiante em silêncio.
Os intendentes se entreolharam e calaram. “Um bando de moleques excitados”, pensou o
executor judicial dos exércitos imperiais. “Na verdade, sua atitude não me surpreende, mas lá,
no topo da colina, Menno Coehoorn, Elan Trahe e até o grisalho general Braibant gritam, dão
pulinhos de alegria no ar e se dão tapinhas congratulatórios nas costas. Vitória! O dia é nosso!
E de quem haveria de ser? Os reinos unidos de Aedirn e Lyria mobilizaram três mil
cavalarianos e dez mil infantes, um quinto dos quais conseguimos bloquear e manter dentro
dos fortes e das fortalezas nos primeiros dias da ofensiva. Boa parte das tropas restantes teve
de recuar para proteger os flancos ameaçados pelos Scoia’tael. Os demais cinco ou seis mil,
entre os quais não mais de mil e duzentos cavalarianos, acabaram nos enfrentando na batalha
de Aldesberg. Coehoorn lançou contra eles um exército de treze mil homens, incluindo aí dez
destacamentos de cavalaria pesada, a flor dos guerreiros de Nilfgaard. E agora ele canta
vitória, grita, agita o bastão de comando e pede cerveja… Vitória! Ora veja…”
Com um gesto brusco, o executor judicial dos exércitos recolheu da mesa as pilhas de
mapas e notas, ergueu a cabeça e olhou em volta.
– Prestem atenção – falou aos intendentes rudemente. – Vou emitir ordens.
Seus subalternos congelaram numa postura de espera.
– Cada um de vocês – começou – teve a oportunidade de ouvir a preleção feita ontem pelo
senhor marechal de campo Coehoorn a seus oficiais. Diante disso, chamo sua atenção para o
fato de que tudo o que o marechal falou aos militares nada tem a ver com vocês. Vocês terão
de executar outras tarefas e cumprir outras ordens. Ordens minhas.
Evertsen pensou um pouco, esfregando a testa.
– “Guerra aos castelos e paz às choupanas”, disse ontem Coehoorn a seus comandados –
continuou. – Vocês todos conhecem esse princípio, que lhes ensinaram nas academias
militares. Pois saibam que esse princípio, obrigatório até hoje, deverá ser esquecido a partir
de amanhã. A partir de amanhã, vocês seguirão um novo princípio, que será o mote da guerra
que estamos travando. Esse mote, que também é minha ordem, diz o seguinte: “Guerra contra
tudo o que é vivo. Guerra contra tudo o que pode ser queimado.” Vocês deverão deixar terra
carbonizada atrás de si. A partir de amanhã, levaremos a guerra além da linha detrás da qual
recuaremos após a assinatura do tratado. Nós recuaremos, mas lá, do outro lado da linha,
deverá sobrar apenas terra arrasada. Os reinos de Rívia e Aedirn devem ser transformados em
cinzas! Lembrem-se de Sodden! Hoje, chegou a hora de nossa vingança!
Evertsen pigarreou com força.
– Antes de os soldados deixarem terra queimada atrás de si – falou aos calados
intendentes –, a tarefa de vocês será a de retirar daquela terra e daquele país tudo o que for
possível, tudo o que poderá multiplicar a riqueza de nossa pátria. Audegast, você se ocupará
do carregamento e do transporte de todas as colheitas já feitas e armazenadas. Tudo o que
ainda estiver nos campos e não foi destruído pelos valentes guerreiros de Coehoorn deverá
ser colhido.
– Disponho de poucos homens, Excelência…
– Você terá escravos de sobra. Faça-os trabalharem. Marder e você… Esqueci seu
nome…
– Helvet. Evan Helvet, Excelência.
– Vocês dois vão se encarregar do gado. Vão agrupá-lo em manadas, que deverão ser
levadas a determinados pontos de quarentena. Muito cuidado com a febre aftosa e demais
doenças contagiosas. Qualquer animal suspeito deverá ser imediatamente abatido e queimado.
Quanto aos demais, conduzam-nos para o sul pelos caminhos previamente demarcados.
– Sim, Excelência.
“E agora”, pensou Evertsen, olhando para seus subordinados, “chegou a hora das tarefas
especiais. A quem confiá-las? Esses aí são uns garotos que mal largaram a mamadeira, viram
pouco e nada experimentaram… Como sinto falta daqueles versados intendentes de outrora…
Guerras, guerras e mais guerras… Os guerreiros morrem frequentemente e em grande número,
mas, levando em consideração a proporcionalidade, a incidência de morte de intendentes não
é muito menor. Só que não se nota a falta de um soldado, porque sempre aparece um novo, já
que todos querem ser guerreiros. Mas quem quer ser intendente ou oficial de justiça? Quem,
após seu retorno, ao ser indagado pelos filhos quais foram seus feitos durante a guerra, vai
querer relatar como mediu sacos de grãos, contou couros fedorentos e pesou banha, como
tangeu gado e conduziu carroças carregadas de produtos de saques por estradas cobertas de
estrume, envolto em poeira, fedor e enxames de moscas?”
Tarefas especiais. A fundição em Guelec com seus altos-fornos. As oficinas de fresagem,
os fornos de conversão de calamita e a gigantesca forja de Eysenlaan, com uma produção
anual de vinte e cinco toneladas de ferro. Usinas de objetos de estanho e bronze e manufaturas
de lã de Aldesberg. Moinhos de malte, destilarias, tecelagens e tinturarias de Vengerberg…
Desmontar e transportar. Assim ordenara o imperador Emhyr, o Fogo Branco Dançante
sobre Mamoas dos Inimigos. Apenas em duas palavras. Desmontar e transportar.
Uma ordem é uma ordem e deve ser obedecida.
Faltava o mais importante. As minas e seus produtos, moedas, joias, obras de arte. Disso,
porém, ele mesmo se ocuparia. Pessoalmente.
Ao lado das colunas de fumaça visíveis no horizonte, foram surgindo outras. E mais
outras. As tropas punham em prática as ordens de Coehoorn. O reino de Aedirn transformava-
se aos poucos num país de incêndios.
Pela estrada envolta em nuvens de poeira, seguia uma comprida coluna de máquinas de
guerra destinadas às ainda não rendidas Aldesberg e Vengerberg, a capital do rei Demawend.
Peter Evertsen olhava e contava. Calculava. Refazia os cálculos. Peter Evertsen era o
intendente-mor do Império e, durante a guerra, o principal executor judicial dos exércitos.
Exercia tal função havia vinte e cinco anos. Números e cálculos eram tudo em sua vida.
Uma catapulta custava quinhentos florins; um trabuco, duzentos; cada fundíbulo, pelo
menos cento e cinquenta; e a mais simples das balestras, oitenta. Os bens treinados usuários
dessas armas cobravam nove florins e meio de soldo mensal. A coluna que estava a caminho
de Vengerberg, incluindo aí os cavalos, burros e utensílios, valia, no mínimo, trezentas
grívnias. Uma grívnia, moeda de metal puro que pesava meia libra, equivalia a sessenta
florins. O faturamento anual de uma mina de porte médio chegava a seis mil grívnias…
A coluna responsável pelo cerco foi ultrapassada por um regimento de cavalaria ligeira.
Pelos brasões nas bandeiras, Evertsen reconheceu a unidade tática do príncipe Winneburg,
uma daquelas que haviam sido transferidas de Cintra. “Sim”, pensou, “esses aí têm com que se
alegrar. A batalha já foi ganha, e as tropas de Aedirn, dissipadas. Os regimentos de reserva
não mais serão lançados numa luta encarniçada contra exércitos regulares. Eles apenas vão
perseguir dispersos grupos de fugitivos desprovidos de seus comandantes, matando,
saqueando e incendiando tudo a sua volta. Eles estão contentes porque têm diante de si a
perspectiva de uma agradável e alegre guerrinha. Uma guerrinha que não lhes dará muito
trabalho nem os fará arriscar a vida.”
Evertsen calculava.
Um regimento tático de cavalaria ligeira era formado por dez destacamentos, num total de
dois mil cavalarianos. Embora certamente não se engajassem mais em batalhas de grande
envergadura, pelo menos um sexto deles morreria em combates secundários. Em seguida,
viriam os acampamentos e bivaques, comida estragada, sujeira, piolhos, mosquitos, água
poluída, fazendo surgir o inevitável: tifo, disenteria e malária, que matariam não menos de um
quarto dos homens. A isso deviam ser acrescentados os acontecimentos imprevistos, em torno
de um quinto do total. Assim, acabariam voltando para casa não mais de oitocentos
cavalarianos, provavelmente menos.
Outros destacamentos montados seguiram pela estrada e, depois deles, regimentos de
infantaria. Marchavam arqueiros de jaqueta amarela e capacete arredondado, bem como
besteiros e lanceiros com a cabeça protegida por bacinete. Atrás deles vinham os veteranos de
Vicovaro e Etólia, portando enormes escudos retangulares cobertos de couro e mais
parecendo caranguejos por causa das armaduras. Por fim, um amontoado multicolorido:
soldados profissionais de Metinna e mercenários de Thurn, Maecht, Geso e Ebbing…
Apesar do calor, as tropas avançavam entusiasmadas, com suas botas erguendo uma nuvem
de poeira sobre a estrada. Retumbavam tambores, tremulavam bandeiras e flâmulas, brilhavam
pontas de lanças, dardos, alabardas e bisarmas. Os soldados marchavam com passos firmes e
alegres. Marchava um exército vencedor. Um exército invencível. Em frente, rapazes, em
frente, à guerra! A Vengerberg! Acabar com o inimigo! Vingar-se de Sodden! Aproveitar a
alegre guerrinha para encher os bolsos com saque e voltar para casa!
Evertsen olhava… e calculava.
– Vengerberg caiu após uma semana de cerco – concluiu Jaskier. – Você ficará espantado,
mas lá as corporações lutaram valentemente até o fim, defendendo os bastiões e outros pontos
nos muros que lhes foram determinados. Como represália, tanto a guarnição como a população
civil da cidade, algo em torno de seis mil pessoas, foram massacradas. A notícia do massacre
provocou fugas em massa. Os dispersos regimentos e a população civil começaram a se
deslocar na direção de Temeria e da Redânia. Multidões de fugitivos avançaram pelo vale do
Pontar e pelas várzeas de Mahakam. A cavalaria nilfgaardiana partiu em seu encalço,
bloqueando seu caminho de fuga… Você sabe de que se tratava?
– Não. Eu não entendo… Eu não entendo de guerras, Jaskier.
– Tratava-se de fazer prisioneiros. Escravos. Eles queriam escravizar o maior número de
pessoas possível. Para os nilfgaardianos, escravos representam a força de trabalho mais
barata. Aquilo foi uma gigantesca caçada a seres humanos, Geralt. Uma caçada muito fácil,
porque o exército fugira e não sobrara ninguém para proteger os fugitivos.
– Ninguém?
– Quase ninguém.
– Com todos os diabos – praguejou Bronibor, olhando para a porta da sala do trono,
fechada. – O que será que eles estão debatendo por tanto tempo? Aliás, por que Foltest
rebaixou-se a ponto de negociar? Por que concedeu essa audiência àquele cão nilfgaardiano?
O que ele deveria ter feito era cortar fora sua cabeça e enviá-la a Emhyr dentro de um saco!
– Pelos deuses, senhor voivoda – ofendeu-se o sacerdote Willemer. – Trata-se de um
emissário. A pessoa de um emissário é sagrada e intocável! Não se deve…
– Não se deve? Pois eu já vou lhes dizer o que não se deve! Não se deve ficar ocioso
contemplando um invasor dizimar países que são nossos aliados! Lyria já caiu e Aedirn está
prestes a ter o mesmo destino. Demawend sozinho não conseguirá deter Nilfgaard. O que
devemos fazer é despachar imediatamente uma força expedicionária, aliviando Demawend
com um ataque à margem esquerda do Jaruga! Aquele lugar não está muito guarnecido, porque
a maior parte das tropas foi deslocada para Dol Angra! Em vez disso, ficamos discutindo! Em
vez de lutarmos, conversamos! E, ainda por cima, damos hospitalidade a um emissário
nilfgaardiano!
– Cale-se, voivoda – falou o príncipe Hereward de Ellander, lançando um olhar gélido
para o velho guerreiro. – O senhor não entende nada de política. É preciso saber olhar para
mais longe do que a cabeça do cavalo e a ponta de uma lança. É preciso ouvir o que o
emissário tem a dizer. O imperador Emhyr não o teria enviado se não tivesse um motivo para
isso.
– É lógico que ele tem um motivo – rosnou Bronibor. – Emhyr está acabando com Aedirn e
sabe muito bem que, caso avancemos e a Redânia e Kaedwen avancem conosco, seremos nós
que acabaremos com ele, expulsando-o de Dol Angra para Ebbing. Ele sabe também que, se
atacarmos Cintra, vamos golpeá-lo em seu ponto fraco e obrigá-lo a guerrear em duas frentes!
É isso que ele teme! E é por esse motivo que ele tenta nos assustar, querendo evitar nosso
envolvimento. Foi com tal propósito, e nenhum outro, que veio para cá o emissário
nilfgaardiano!
– E é exatamente por isso que devemos ouvir o emissário – insistiu o príncipe – e tomar
uma decisão que proteja os interesses de nosso reino. Demawend provocou Nilfgaard de
maneira desarrazoada e agora tem de arcar com as consequências de seu ato. Além disso, não
tenho pressa em morrer em prol de Vengerberg. O que está se passando em Aedirn não nos diz
respeito.
– Não nos diz respeito?! O que o senhor está dizendo, com mil diabos? O senhor considera
que não é assunto de nosso interesse o fato de os nilfgaardianos estarem em Aedirn e Lyria, na
margem direita do Jaruga, o fato de o único reino a nos separar deles ser Mahakam? É preciso
ser muito curto de ideias…
– Chega dessas discussões – alertou Willemer. – Nem uma palavra mais. O rei está
chegando.
A porta se abriu. Os membros do conselho real se levantaram, arrastando as cadeiras.
Muitas cadeiras estavam vazias, pois o marechal de campo e a maior parte dos comandantes
militares estavam com seus regimentos no vale do Pontar, em Mahakam e à margem do Jaruga.
Também estavam vazias as cadeiras dos feiticeiros. “Sim”, pensou o sacerdote Willemer, “os
lugares ocupados pelos feiticeiros aqui, na corte real de Wyzim, permanecerão vazios por
muito tempo. Quem sabe se não para sempre.”
O rei Foltest atravessou a sala com passos rápidos e parou ao lado do trono, mas não se
sentou nele. Em vez disso, inclinou-se levemente e apoiou os punhos no tampo da mesa.
Estava muito pálido.
– Vengerberg está sitiada – falou o rei de Temeria, com voz baixa – e será conquistada a
qualquer momento. O irresistível avanço de Nilfgaard rumo ao norte continua. Alguns
regimentos ainda oferecem resistência, mas isso não mudará em nada a situação. Aedirn está
perdido. O rei Demawend fugiu para a Redânia. O destino da rainha Meve é desconhecido.
O conselho permanecia em silêncio.
– Nossa fronteira ocidental, quer dizer, a saída do vale do Pontar, será alcançada por
Nilfgaard em questão de dias – continuou Foltest, ainda com voz baixa. – Hagge, a última
fortaleza de Aedirn, não conseguirá resistir por muito tempo, e Hagge fica em nossa fronteira
ocidental. Já em nossa fronteira meridional… ocorreu um fato extremamente negativo. O rei
Ervyll de Verden prestou um juramento de vassalagem ao imperador Emhyr, cedendo e
abrindo os portões das fortalezas na boca do Jaruga. Desse modo, Nastrog, Rozrog e Bodrog,
que deveriam proteger nossos flancos, já são guarnecidas por tropas nilfgaardianas.
O conselho permanecia em silêncio.
– Por causa disso – continuou Foltest –, Ervyll manteve seu título de rei, mas o verdadeiro
soberano é Emhyr. Assim, Verden continua sendo um reino, porém na prática não passa de uma
província nilfgaardiana. Vocês se dão conta do que isso significa? A situação se inverteu. As
fortalezas de Verden e a foz do Jaruga estão nas mãos de Nilfgaard. Não posso forçar uma
travessia do rio, nem enfraquecer os exércitos lá aquartelados formando o corpo de homens
para adentrar Aedirn e apoiar as tropas de Demawend. Não posso fazer isso, pois pesa sobre
meus ombros a responsabilidade por meu país e por meus súditos.
O conselho permanecia em silêncio.
– Sua Majestade Imperial Emhyr var Emreis, imperador de Nilfgaard – prosseguiu o rei –,
me fez uma proposta de… um acordo. Proposta que eu aceitei. Já vou lhes expor em que
consiste o acordo. E vocês, tendo me ouvido, compreenderão… admitirão que… dirão…
O conselho permanecia em silêncio.
– Dirão… – concluiu Foltest. – Dirão que eu lhes trouxe paz.
– Quer dizer que Foltest meteu o rabo entre as pernas – rosnou o bruxo, quebrando mais
um graveto com os dedos. – Chegou a um acordo com Nilfgaard. Deixou Aedirn ao deus-
dará…
– Sim – confirmou o poeta. – Mas levou suas tropas para dentro do vale do Pontar e
ocupou e guarneceu a fortaleza de Hagge. Já os nilfgaardianos não adentraram as várzeas de
Mahakam, não atravessaram o Jaruga em Sodden e não atacaram Brugge, que, após a
capitulação e submissão de Ervyll, ficou a sua mercê. Não tenho dúvida de que esse deve ter
sido o preço pela neutralidade de Temeria.
– Ciri tinha razão – murmurou o bruxo. – A neutralidade… A neutralidade costuma ser
abjeta.
– O que você quis dizer com isso?
– Nada. E quanto a Kaedwen, Jaskier? Por que Henselt não foi em auxílio a Demawend e
Meve? Afinal, eles tinham um pacto, eram aliados. E, mesmo que Henselt, a exemplo de
Foltest, esteja cagando para assinaturas e selos nos documentos e não dê importância à
palavra real, não creio que ele seja estúpido. Será que ele não se dá conta de que, após a
queda de Aedirn e do acordo com Temeria, chegará sua vez, que ele é o próximo na lista
nilfgaardiana? Kaedwen deveria apoiar Demawend por pura praticidade. Vejo que não há
mais no mundo nem fé nem verdade, mas imagino que haja ainda um resto de senso comum. O
que você acha, Jaskier? Existe ainda senso comum no mundo? Ou será que, em vez dele,
sobraram apenas o desprezo e mau-caratismo?
Jaskier virou a cabeça. As lanterninhas verdes estavam próximas, envolvendo-os num anel
estreito. Ele não havia notado antes, mas agora se deu conta de que todas as dríades ouviram
seu relato.
– Você não respondeu – falou Geralt. – E isso significa que Ciri tinha razão. Que
Codringher tinha razão. Que todos tinham razão. O único que não tinha razão fui eu: um bruxo
ingênuo, anacrônico e tolo.
– E assim, na ponte sobre o rio Dyfne – concluiu Jaskier –, o margrave Mansfeld de Ard
Carraigh e Menno Coehoorn, comandante em chefe dos exércitos nilfgaardianos em Dol
Angra, apertaram-se as mãos. Fizeram-no sobre o ensanguentado e moribundo reino de
Aedirn, selando a despudorada divisão de seus sobejos. O mais repugnante gesto de que se
tem notícia.
Geralt permaneceu calado.
– Já que estamos falando de assuntos repugnantes – falou momentos depois, com voz
surpreendentemente calma –, o que se passou com os feiticeiros, Jaskier? Refiro-me aos do
Capítulo e aos do Conselho.
– Nenhum deles ficou do lado de Demawend – respondeu o poeta. – Já os que serviam a
Foltest, ele os expulsou de Temeria. Filippa está em Tretogor, ajudando a rainha Hedwig no
controle do caos que continua imperando na Redânia. Com ela estão Triss e outros três, cujos
nomes não recordo. Alguns estão em Kaedwen. Muitos fugiram para Kovir e Hengfors.
Escolheram a neutralidade, porque, como você deve saber, Esterat Thyssen e Niedamir foram
e continuam sendo neutros.
– Sei. E quanto a Vilgeforz e seus seguidores?
– Vilgeforz sumiu. Esperava-se que aparecesse em Aedirn, na qualidade de
plenipotenciário de Emhyr… Mas ele sumiu, sem deixar rastos; nem dele, nem de todos os
seus sócios. Exceto…
– Exceto quem, Jaskier?
– Exceto uma feiticeira que se tornou rainha.
Filavandrel aén Fidháil aguardava em silêncio por uma resposta. A rainha, olhando pela
janela, também permanecia calada. A janela dava para os jardins, que, havia pouco, tinham
sido o orgulho e a glória do ex-governante de Dol Blathanna, o plenipotenciário do tirano de
Vengerberg. Fugindo dos Elfos Livres que representavam a vanguarda das tropas do
imperador Emhyr, o plenipotenciário, um humano, conseguira levar consigo a maioria das
preciosidades e até parte do mobiliário do antiquíssimo palácio élfico. Mas, como não lhe era
impossível levar os jardins, ele os destruíra.
– Não, Filavandrel – falou a rainha finalmente. – Ainda é cedo para isso, muito cedo. Não
devemos nem pensar em estender nossas fronteiras, porque por enquanto não sabemos quais
são suas verdadeiras dimensões. Henselt de Kaedwen não tem a mínima intenção de respeitar
os termos do acordo e recuar para o outro lado do Dyfne. Os espiões informam que ele não
abandonou seus planos de agressão e poderá vir a nos atacar a qualquer momento.
– Quer dizer que não conseguimos coisa alguma.
A rainha estendeu a mão. A borboleta que adentrara a janela pousou na renda de sua
manga, abrindo e fechando as asas.
– Conseguimos mais – disse, baixinho, para não espantar a borboleta – do que podíamos
almejar. Após cem anos de espera, recuperamos finalmente nosso vale das Flores.
– Eu não o chamaria assim – sorriu Filavandrel tristemente. – Agora, após a passagem das
tropas, ele é mais um vale de cinzas.
– Temos de volta nosso país – concluiu a rainha, olhando para a borboleta. – Voltamos a
ser um povo, e não um bando de exilados. E as cinzas serão fecundas. Quando chegar a
primavera, o vale voltará a ser florido.
– É muito pouco, Margarida. Continua sendo pouco. Nós baixamos de tom. Ainda há
pouco nos gabávamos que empurraríamos os humanos até o mar, de onde eles vieram… E
agora estamos limitando nossas ambições às fronteiras de Dol Blathanna.
– Emhyr Deithwen nos deu Dol Blathanna de presente. O que você espera de mim,
Filavandrel? Devo pedir mais? Não se esqueça de que mesmo numa aceitação é preciso
manter certo grau de comedimento. Principalmente quando o doador é Emhyr, porque Emhyr
não dá nada de graça. As terras que nos foram dadas terão de ser mantidas por nós, e as forças
das quais dispomos mal dão para manter Dol Blathanna.
– Então vamos retirar nossos comandos de Temeria, da Redânia e de Kaedwen – propôs o
elfo de cabelos brancos. – Vamos retirar todos os Scoia’tael que estão combatendo com os
humanos. Você agora é uma rainha, Enid, e eles obedecerão a sua ordem. Como temos agora
nosso pedaço de terra, a luta deles não faz sentido algum. Sua obrigação é retornar para cá e
defender o vale das Flores. Que venham lutar como um povo livre na defesa de suas
fronteiras, em vez de ficarem morrendo nas florestas como bandidos ou assaltantes!
A elfa abaixou a cabeça.
– Emhyr não concorda com isso – sussurrou. – Os comandos devem permanecer lutando.
– Por quê? Com que objetivo? – Filavandrel aén Fidháil aprumou-se bruscamente.
– E vou lhe dizer ainda mais. Estamos proibidos de apoiá-los e de lhes prestar qualquer
tipo de ajuda. Essa condição foi imposta por Foltest e Henselt. Temeria e a Redânia somente
respeitarão nosso domínio sobre Dol Blathanna se nós condenarmos oficialmente a luta dos
Esquilos e nos separarmos deles.
– Aquelas crianças estão morrendo, Margarida. Estão morrendo dia após dia numa luta
desigual. Emhyr fará acordos secretos com os humanos, que atacarão os comandos e os
esmagarão. Trata-se de nossos filhos, de nosso futuro, de nosso sangue! E você me diz que
devemos abandoná-los? Que’ss aen me dicette, Enid? Vorsaeke’llan? Aen vaine?
A borboleta bateu as asas e voou na direção da janela, para ser levada pela corrente de ar
aquecido no exterior do palácio. Francesca Findabair, a Enid an Gleanna, ex-feiticeira e agora
rainha dos Aén Seidhe, os Elfos Livres, ergueu a cabeça. Seus belos olhos azuis-celestes
estavam marejados de lágrimas.
– Os comandos – falou surdamente – devem continuar combatendo. Eles têm de
desorganizar os reinos dos humanos e, com isso, dificultar seus preparativos bélicos. Esse foi
o teor da ordem de Emhyr, e eu não tenho condições de me opor a ele. Perdoe-me,
Filavandrel.
Filavandrel aén Fidháil olhou para ela e fez uma profunda reverência.
– Eu a perdoo, Enid. Mas não sei se eles a perdoarão.
– E nenhum feiticeiro repensou o assunto? Mesmo quando Nilfgaard matava e incendiava
em Aedirn, nenhum deles abandonou Vilgeforz e passou para o lado de Filippa?
– Nenhum.
Geralt ficou calado por bastante tempo.
– Não acredito – disse finalmente, bem baixinho. – Não acredito que ninguém tenha
abandonado Vilgeforz quando as verdadeiras intenções e os efeitos de sua traição vieram à
tona. Como é de conhecimento de todos, eu não passo de um bruxo ingênuo, irracional e
anacrônico. Mas, assim mesmo, não posso acreditar que nenhum dos feiticeiros tenha feito um
exame de consciência.
Tissaia de Vries apôs a rebuscada assinatura debaixo da última frase de sua carta. Depois
de uma longa reflexão, acrescentou à assinatura o ideograma que simbolizava seu verdadeiro
nome. Um nome que ninguém conhecia e que não usava havia muito tempo, desde o momento
em que se tornara feiticeira.
Cotovia.
Deixou a pena de lado com todo o cuidado, alinhada, atravessando perpendicularmente o
pergaminho. Ficou sentada, imóvel, por bastante tempo, olhando para a esfera vermelha do sol
poente. Então, levantou-se. Aproximou-se da janela. Por um bom tempo ficou observando os
telhados das casas, nas quais, naquele momento, deitavam-se para dormir pessoas comuns,
cansadas de sua difícil vida humana, cheias das humanas esperanças quanto ao futuro, quanto
ao dia seguinte. A feiticeira olhou para a carta sobre a mesa, uma carta endereçada a pessoas
comuns. O fato de a maioria das pessoas comuns não saber ler não tinha a menor importância.
Parou diante do espelho. Arrumou os cabelos. Alisou o vestido. Sacudiu da bufante manga
uma inexistente partícula de pó. Ajeitou no decote o colar de espinélios.
Os castiçais debaixo do espelho estavam desalinhados. A empregada provavelmente os
havia deslocado ao tirar o pó. A empregada. Uma mulher comum. Um ser humano comum com
olhos cheios de medo do que estava por vir. Uma pessoa comum perdida nos tempos do
desprezo. Uma pessoa comum em busca de esperança e de certeza junto a ela, a feiticeira…
Uma pessoa comum, que ela decepcionara.
Da rua provinham sons de passos, batidas de pesadas botas militares. Tissaia de Vries
nem sequer pestanejou; não virou a cabeça para a janela. Não lhe fazia diferença de quem
fossem os passos. Soldados do rei? Um corregedor com a ordem de prisão a uma traidora?
Assassinos profissionais? Sicários de Vilgeforz? Tanto fazia.
Os passos silenciaram na distância.
Os castiçais debaixo do espelho estavam desalinhados. A feiticeira alinhou-os e endireitou
as dobras da toalha de maneira que o canto ficasse bem no centro e simetricamente distante
dos apoios dos castiçais. Tirou as pulseiras de ouro e colocou-as alinhadas sobre a toalha.
Olhou criticamente, mas não encontrou nada fora de lugar. Tudo estava simétrico e
perfeitamente arrumado, assim como deveria estar.
Abriu a gaveta da cômoda e tirou dela uma faca com cabo de marfim.
Tinha o rosto altivo e imóvel. Morto.
A casa estava em silêncio, num silêncio tão profundo que se podia ouvir o som da pétala
de uma tulipa marcescente caindo sobre o tampo da mesa.
O sol, vermelho como sangue, foi sumindo vagarosamente por trás dos telhados.
Tissaia de Vries sentou-se na poltrona junto da mesa, apagou as velas com um sopro,
corrigiu mais uma vez a posição da pena deitada sobre a carta e cortou as veias de ambos os
pulsos.
As longas horas da viagem e as emoções deixaram sua marca. Jaskier despertou e deu-se
conta de que provavelmente adormecera durante seu relato, começando a roncar no meio de
uma frase. Moveu-se e quase rolou para fora do monte de galhos. Geralt não estava deitado a
seu lado e não fazia contrapeso no leito improvisado.
– Em que ponto… – balbuciou – eu parei? Ah, sim, estava falando dos feiticeiros…
Geralt? Onde você está?
– Aqui – respondeu o bruxo, quase invisível na escuridão. – Continue, por favor. Você
estava exatamente no ponto em que ia falar de Yennefer.
– Escute. – O poeta sabia muito bem que não tinha a mínima intenção de falar sobre a
pessoa em questão. – Eu realmente nada sei…
– Não minta. Conheço-o muito bem.
– Se você me conhece tão bem – enervou-se o trovador –, então por que cargas-d’água
você me pede que fale dela? Conhecendo-me tão bem, você deveria saber o motivo de meu
silêncio, por que eu não lhe repito boatos ouvidos pelo caminho! Você também deveria
adivinhar de que tipo de boatos se trata e por que quero poupá-lo deles!
– Que suecc’s? – indagou uma das dríades que dormiam perto deles, despertada pela
elevada voz de Jaskier.
– Peço desculpas – sussurrou o bruxo. – A você também.
Quase todas as lanterninhas verdes de Brokilon já haviam se apagado, apenas algumas
luziam tenuemente.
– Geralt – falou Jaskier, interrompendo o silêncio. – Você sempre afirmou que estava “de
fora”, que para você tanto fazia… Ela pode ter acreditado nisso. Certamente acreditava nisso
quando começou esse jogo com Vilgeforz…
– Basta – interrompeu-o Geralt. – Nem uma palavra mais. Quando ouço o termo “jogo”,
tenho vontade de matar alguém. Passe-me a navalha; quero finalmente me barbear.
– Agora? Ainda está escuro.
– Para mim nunca está escuro. Sou uma aberração.
Quando o bruxo arrancou de sua mão a bolsa com os apetrechos de barbear e seguiu na
direção do riacho, o bardo constatou que o sono o abandonara por completo. O céu já
clareava, prenunciando o amanhecer. Ergueu-se e adentrou a floresta, evitando
cuidadosamente pisar nas dríades que, abraçadas umas às outras, dormiam a sua volta.
– Você faz parte daqueles que contribuíram para isso?
Jaskier virou-se rapidamente. A dríade apoiada no tronco de um pinheiro tinha os cabelos
cor de prata, algo que era visível mesmo no lusco-fusco da madrugada.
– Que visão mais horrível – disse ela, cruzando os braços sobre o peito. – Alguém que
perdeu tudo. Que coisa mais curiosa, cantor. No passado, eu sempre tive a impressão de que
não se poderia perder absolutamente tudo, de que sempre sobraria alguma coisa. Sempre.
Mesmo nos tempos do desprezo, nos quais a ingenuidade é capaz de se vingar da maneira mais
cruenta possível, eu tinha a convicção de que não seria possível perder tudo. E eis que ele…
Ele perdeu alguns litros de sangue, a possibilidade de se mover agilmente, parte do domínio
do braço esquerdo, a espada de ferro de meteorito, a mulher amada, a filha milagrosamente
encontrada, a fé… Aí, pensei comigo mesma, algo, afinal, deveria lhe ter sobrado. Pois não é
que me enganei? Ele não tem mais nada. Nem mesmo uma navalha.
Jaskier permaneceu calado, e a dríade, imóvel.
– Eu lhe perguntei se você contribuiu para isso – falou ela após um momento. – Mas acho
que perguntei desnecessariamente. É óbvio que você contribuiu. É óbvio que você é amigo
dele. E, quando alguém tem amigos e perde tudo apesar disso, é óbvio que os amigos têm uma
parcela de culpa. Culpa pelo que fizeram ou pelo que deixaram de fazer. Pelo fato de não
saberem o que deveriam ter feito.
– E o que eu poderia… – murmurou Jaskier. – O que eu poderia ter feito?
– Não sei – respondeu a dríade.
– Não lhe disse tudo.
– Estou ciente disso.
– Não tenho culpa alguma.
– Tem, sim.
– Não! Não sou…
Ergueu-se, fazendo estalar o leito improvisado. Geralt estava sentado a seu lado,
esfregando o rosto. Cheirava a sabão.
– Você não é o quê? – perguntou friamente. – Estou curioso de saber com que você sonhou.
Que você é uma rã? Acalme-se. Você não é. Que você é um pateta? Nesse caso, o sonho pode
ter sido profético.
Jaskier olhou em volta. Estavam sozinhos.
– Onde está ela… Onde estão as dríades?
– Na beira da floresta. Arrume-se, está na hora de você partir.
– Geralt, momentos atrás eu estive conversando com uma dríade. Ela falava em língua
comum sem sotaque e me disse…
– Nenhuma dessas dríades fala em língua comum sem sotaque. Você deve ter sonhado
Jaskier. Estamos em Brokilon. Aqui é possível ter os sonhos mais estranhos.
Despertou-a o calor. A quentura que ardia como ferro em brasa fez com que recuperasse
os sentidos.
Não conseguia mexer a cabeça; algo a retinha. Mexeu-se bruscamente e urrou de dor,
sentindo a pele de uma das têmporas rachando e descolando-se. Abriu os olhos. A pedra sobre
a qual repousava sua cabeça tinha uma cor pardo-avermelhada por causa do sangue coagulado
e seco. Tateou a têmpora e sentiu com os dedos uma crosta dura e rachada. A crosta estivera
grudada na pedra; agora, após o movimento da cabeça, separou-se dela e começou a sangrar.
Ciri pigarreou, cuspindo uma mistura de saliva com areia. Ergueu-se sobre os cotovelos,
sentou-se e olhou em volta.
Para qualquer lado que virasse, via uma planície pedregosa cinza-avermelhada
entrecortada por barrancos e fendas, com montes de pedras e enormes rochas de formas
estranhas dispersos aqui ou ali. Sobre a planície, bem ao alto, pendia um sol dourado e
ardente, abrasando o céu e alterando a visão com seu brilho cegante e a tremulação do ar.
“Onde estou?”
Ciri tocou cuidadosamente a têmpora ferida e inchada. Doeu. Doeu muito. “Devo ter feito
um baita galo na testa”, pensou. “Devo ter caído no chão com muita força.” Repentinamente,
notou a roupa rasgada e descobriu novos pontos doloridos: na espinha dorsal, nas costas, no
ombro, nos quadris. Ao cair, poeira, grãos de areia e minúsculas lascas de pedra penetraram
por toda parte: nos cabelos, nos ouvidos, na boca, bem como nos olhos, que ardiam e
lacrimejavam. As palmas das mãos e os cotovelos estavam ralados e em carne viva, ardendo
horrivelmente.
Esticou as pernas lenta e delicadamente, voltando a gemer, pois um dos joelhos reagiu ao
movimento com um espasmo de dor. Ciri tateou-o através do não danificado couro das calças,
mas não lhe pareceu que ele estivesse inchado. Ao inspirar, sentiu uma agourenta pontada nas
costelas, e a tentativa de inclinar o corpo para frente fez com que quase soltasse um grito por
causa do espasmo de dor na extremidade inferior da coluna vertebral. “Como me arrebentei!”,
pensou. “Mas acho que não quebrei nada. Caso tivesse quebrado algum osso, estaria sentindo
ainda mais dor. Estou inteira, apenas bastante machucada. Vou poder me levantar… E me
levantarei.”
Devagarzinho, evitando qualquer gesto brusco, tomou posição e ajoelhou-se
desajeitadamente, enquanto tentava proteger o joelho ferido. Depois, ficou de quatro,
gemendo, ofegando e sibilando. Por fim, após um tempo que lhe pareceu uma eternidade,
ergueu-se, apenas para de imediato voltar a desabar em razão de uma tonteira, que lhe
obscureceu a visão. Sentindo uma violenta onda de náuseas, deitou-se de lado. As rochas,
aquecidas pelo sol, ardiam como brasas.
– Jamais vou me levantar… – soluçou. – Não consigo… Vou morrer queimada sob esse
sol…
Sua cabeça latejava com uma dor surda e incessante. Qualquer movimento resultava numa
dor adicional, de modo que Ciri decidiu não se mexer. Cobriu a cabeça com o braço, mas em
pouco tempo os raios solares tornaram-se insuportáveis. Compreendeu que teria de encontrar
uma forma de escapar deles. Dominando a resistência do corpo dolorido e semicerrando os
olhos por causa da penetrante dor nas têmporas, conseguiu arrastar-se até uma grande rocha
erodida pelo vento na forma de um estranhíssimo cogumelo, cujo disforme chapéu
proporcionava uma sombra minúscula junto de sua base. Tossindo e fungando, ela se encolheu
o máximo que pôde para aproveitar cada nesga da sombra.
Ficou deitada por muito tempo, até o momento em que o sol, deslocando-se pelo céu,
voltou a agredi-la com o fogo vindo de cima. Ciri arrastou-se para o outro lado do rochedo.
Constatou, porém, que o esforço fora em vão. O sol estava no zênite e o cogumelo de pedra
não produzia mais praticamente sombra alguma. Ela apertou com as mãos as têmporas
latejantes de dor e adormeceu.
Despertou-a uma onda de calafrios que lhe percorria todo o corpo. A dourada bola do sol
perdera um pouco da cegante luminosidade. Agora, mais baixo, pendendo sobre as rochas
pontudas e irregulares, adquirira uma cor alaranjada. O calor diminuíra levemente.
Ciri fez um grande esforço e conseguiu se sentar, olhando em volta. A dor de cabeça
cessou, deixando de cegá-la. Tateou a têmpora ferida e constatou que o calor voltara a secar e
endurecer a crosta. No entanto, todo o seu corpo continuava dolorido, parecendo não ter nele
um só lugar que não estivesse machucado. Pigarreou, sentiu grãos de areia nos dentes e tentou
cuspir. Em vão. Apoiou as costas na rocha em forma de cogumelo, ainda quente do sol.
“Finalmente refrescou um pouco”, pensou. “Agora, com o sol se pondo no ocidente, já dá para
respirar direito e em breve…”
Em breve cairia a noite.
“Onde estou, com todos os diabos? Como sair daqui? E por que caminho? Aonde ir? Ou
talvez seja melhor não me mexer do lugar e esperar ser encontrada? Afinal, vão me procurar.
Geralt. Yennefer. Eles não vão me deixar aqui sozinha…”
Tentou cuspir mais uma vez, e mais uma vez não conseguiu. Foi quando compreendeu.
Sede.
Lembrou-se de que já durante a fuga sentira o desconforto da sede. E lembrou-se
claramente de que havia um cantil de madeira preso ao arção da sela do negro corcel no qual
montara ao fugir para a Torre da Gaivota. Mas, naquele momento, ela não estava em condições
de erguê-lo e destampá-lo; não tinha tempo para isso. E, agora, nada de cantil. Agora, nada de
nada. Nada além das afiadas pedras aquecidas, da ferida na têmpora repuxando sua pele, do
corpo dolorido e da garganta seca, que nem podia ser aliviada tragando saliva.
“Não posso ficar aqui. Preciso me levantar e sair à procura de água. Se não encontrar
água, acabarei morrendo.”
Tentou se erguer, ferindo os dedos no cogumelo de pedra. Conseguiu. Deu um passo e,
soltando um grito de dor, caiu de quatro, retesada num seco espasmo de vômito. Foi assolada
por uma onda de câimbras tão fortes que precisou retomar a posição horizontal.
“Estou sem forças. E sozinha. Mais uma vez. Todos me traíram, abandonaram, deixando-
me à própria sorte. Como daquela vez…”
Ciri sentiu como a garganta foi sendo apertada por uma tenaz invisível, como os músculos
da mandíbula se contraíam de dor, como os lábios ressecados começavam a tremer. Lembrou-
se das palavras de Yennefer: “Não existe imagem mais horrenda do que uma feiticeira aos
prantos.” E pensou: “Mas… ninguém está me vendo aqui… Ninguém…”
Encolhida em posição fetal debaixo do cogumelo de pedra, chorou copiosamente. Um
choro seco e terrível. Sem lágrimas.
Quando finalmente ergueu as pálpebras inchadas, constatou que o calor diminuíra ainda
mais e o até então amarelado céu adquiria sua normal cor de cobalto, inesperadamente
entremeado por finas tiras de nuvens brancas. O disco solar foi se avermelhando e baixando,
mas continuava enviando sobre o deserto seus pulsantes raios de calor. Ou será que o calor
provinha das aquecidas superfícies das rochas?
Ciri sentou-se, constatando que a dor na cabeça e no resto do corpo ferido parara de
incomodá-la, chegando a parecer insignificante em comparação com o crescente sofrimento
nas entranhas e a cruel ardência na garganta ressecada.
“Não devo me render”, pensou. “Não posso me render. Assim como em Kaer Morhen,
preciso me levantar, vencer, subjugar em mim a dor e a fraqueza. Preciso me levantar e seguir
em frente. Pelo menos já sei em que direção; a posição do sol indica onde fica o oeste.
Preciso ir. Preciso encontrar água e algo para comer. Preciso. Caso contrário, vou morrer. Isto
aqui é um deserto. Eu caí num deserto. Aquilo no que entrei lá, na Torre da Gaivota, era um
portal mágico, uma ferramenta encantada pela qual é possível transportar-se a grandes
distâncias.”
O portal em Tor Lara era estranho. Quando Ciri adentrara o último aposento, não havia lá
qualquer saída, nem mesmo uma janela, apenas grossas paredes cobertas de limo. E fora numa
daquelas paredes que brilhara repentinamente uma oval regular preenchida por uma
luminosidade opalina. Ciri hesitara, mas o portal a atraía, chamava-a, quase a convidava para
que o atravessasse. Como não havia outra saída além daquela oval brilhante, ela fechara os
olhos e se atirara nele. Fora envolta por uma cegante claridade e um turbilhão selvagem, e
então uma explosão a fizera perder o ar dos pulmões e lhe esmagara as costelas. Tudo de que
se lembrava era de um silêncio frio e vazio, seguido por um novo brilho e engasgo. Em cima,
havia o azul-celeste; embaixo, um cinza borrado…
O portal a expulsara no meio do voo, como um filhote de águia deixa cair um peixe
demasiadamente pesado para ele. Quando batera nas rochas, perdera os sentidos. Não sabia
dizer por quanto tempo.
“Li sobre portais quando estive no templo de Melitele”, lembrou-se, sacudindo a cabeça
para livrar a cabeleira da areia. “Nos livros havia menções a portais danificados e caóticos,
que levavam não se sabe para onde e que expulsavam as pessoas em locais desconhecidos. O
portal da Torre da Gaivota devia ser um desses e me expulsou no fim do mundo. Ninguém sabe
onde. Ninguém vai me procurar aqui e jamais serei achada. Se permanecer aqui, morrerei.”
Ciri ergueu-se e, mobilizando todas as suas forças e apoiando-se na rocha, deu o primeiro
passo. Depois, o segundo. Em seguida, o terceiro. Aqueles primeiros passos mostraram-lhe
que as fivelas de sua bota direita haviam se soltado e, com isso, o cano caía toda hora,
impedindo-a de andar. Sentou-se, dessa vez por vontade própria, e examinou sua roupa e
equipamento. Concentrando-se naquela atividade, esqueceu a dor e o cansaço.
A primeira coisa que descobriu foi o espadim. A bainha havia se deslocado a suas costas e
ela se esquecera dele por completo. Junto ao espadim, como sempre, estava sua pequena bolsa
de couro, presente de Yennefer. A bolsinha continha tudo o que “uma dama deve ter sempre ao
alcance da mão”. Ciri abriu-a. Infelizmente o equipamento-padrão de uma dama não tinha
muita serventia para mitigar a situação na qual ela se encontrava: um pente de tartaruga, um
alicate-lima para unhas, um pacote com chumaços de algodão e um pequeno pote de jadeíta
com creme hidratante para as mãos.
Ciri passou imediatamente o creme hidratante sobre o rosto e os lábios queimados. Em
seguida, sem pensar muito, lambeu todo o conteúdo do pote, deliciando-se com sua gordura e
um vestígio de umidade. A mistura de camomila, âmbar e cânfora usados na preparação do
creme tinha um gosto horrível, mas agiu como estimulante.
Amarrou o cano solto da bota com uma tira de couro arrancada da manga, levantou-se e
bateu com o pé no chão várias vezes para conferir o efeito. Abriu e desfez os chumaços de
algodão, fazendo com eles uma larga bandagem sobre a têmpora ferida e a testa queimada pelo
sol. Ajeitou o cinturão, puxando o espadim para mais perto do quadril esquerdo.
Instintivamente, tirou-o da bainha e testou o gume da lâmina; estava afiado, como ela sabia de
antemão.
“Tenho uma arma”, pensou. “Sou uma bruxa. Não morrerei aqui. Estou pouco me lixando
para a fome, sei que vou aguentar; no templo de Melitele houve ocasiões em que tivemos de
jejuar por até dois dias seguidos. Já quanto à água… tenho de achá-la. Vou caminhar o que for
preciso até chegar a ela. Afinal, este maldito deserto deve terminar em algum ponto. Se ele
fosse muito grande, eu saberia algo sobre ele e o teria visto nos mapas que andei examinando
com Jarre. Jarre… Estou curiosa de saber o que ele está fazendo neste momento…”
“Em frente”, decidiu. “Vou para o oeste. Como posso ver onde o sol se põe, essa é a única
direção da qual tenho certeza. Além disso, nunca me perco, sempre sei por onde ir. Se for
preciso, caminharei a noite toda. Sou uma bruxa. Assim que recuperar as forças, vou correr
como corria na Trilha. Assim, chegarei rapidamente ao fim deste deserto. Vou aguentar.
Preciso aguentar… Tenho certeza de que Geralt já esteve por mais de uma vez em desertos
assim e, quem sabe, até em outros piores do que este…”
“Eu vou.”
A paisagem permaneceu inalterada após a primeira hora de marcha. A seu redor
continuava não havendo nada além de pedras cinza-avermelhadas que faziam seus pés
escorregar e a obrigavam a tomar muito cuidado para não cair e se machucar. Arbustos
esparsos, secos e espinhosos estendiam para ela seus ramos retorcidos saídos das fendas no
terreno. Ao chegar ao primeiro dos arbustos, Ciri se deteve na esperança de encontrar nele
folhas ou ramos frescos que pudessem ser sugados ou mascados. No entanto, o arbusto só tinha
espinhos, que feriam os dedos. Não era possível tirar dele sequer um galho que lhe servisse
de cajado. Levando em conta que o segundo e o terceiro arbustos eram idênticos, Ciri
resolveu ignorá-los, passando ao largo deles sem se deter.
Escurecia rapidamente. O sol baixava detrás do horizonte adentado, enquanto o céu
adquiria uma cor purpúrea. Com a penumbra, chegou o frio. De início, Ciri saudou-o com
grande regozijo; o frio aliviava a pele queimada. No entanto, em pouco tempo começou a
incomodá-la, a ponto de ela bater os dentes. Apressou o passo, esperando se aquecer com a
marcha mais acelerada, porém o esforço fez com que retornassem as dores no quadril e no
joelho. Ela começou a mancar. Para piorar, o sol se pusera por completo e tudo mergulhara na
mais espessa escuridão. A lua estava na fase nova, e as estrelas que pontilhavam o céu não
serviam de grande coisa para iluminar. Em pouco tempo, Ciri deixou de enxergar o caminho
diante de si. Tropeçou e caiu diversas vezes, raspando dolorosamente a pele dos pulsos. Por
duas vezes enfiou o pé em fendas do terreno pedregoso, e só não o torceu ou quebrou graças à
maneira adequada de cair que tanto treinara em Kaer Morhen. Por fim, deu-se conta de que
caminhar no meio da escuridão era impossível.
Tomada por um desespero imobilizador, sentou-se num bloco de basalto plano. Não tinha a
mais vaga ideia de ter mantido ou não a direção desejada, pois havia muito tempo não sabia
em que lugar no horizonte o sol desaparecera, tendo perdido por completo a visão daquela
luminosidade que a guiara nas últimas horas antes do anoitecer. Estava envolta por uma
escuridão aveludada e por um frio lancinante; um frio que a paralisava, que lhe mordia as
articulações, que a obrigava a se encolher toda, enfiando a cabeça entre os ombros doloridos.
Ciri começou a sentir saudade do sol, embora soubesse que com sua volta desabaria sobre ela
aquele calor insuportável durante o qual não haveria qualquer possibilidade de continuar
andando. Tomada por uma onda de desespero e desesperança, voltou a sentir o aperto na
garganta e a vontade de chorar. Só que dessa vez o desespero e a desesperança
transformaram-se em raiva.
– Não vou chorar – gritou para a escuridão. – Sou uma bruxa. Sou…
Uma feiticeira.
Ciri ergueu as mãos, apertando as palmas nas têmporas. A Força está por toda parte. Está
no ar, na água, na terra…
Ergueu-se de um pulo, estendeu os braços e deu alguns passos lentos e hesitantes,
procurando febrilmente por uma fonte. Teve sorte. Quase de imediato sentiu nos ouvidos os
conhecidos murmúrio e palpitação, sentiu a energia emanando de um veio de água oculto nas
profundezas do solo. Hauriu a Força, aspirando de maneira cuidadosa e contida. Sabia que
estava fraca e que em tais casos uma brusca oxigenação do cérebro poderia fazê-la desmaiar,
tornando vão todo o esforço. Aos poucos, foi se sentindo preenchida por energia, trazendo-lhe
a conhecida euforia momentânea. Os pulmões começaram a funcionar com mais força e
rapidez. Ciri controlou a respiração apressada; uma oxigenação acelerada também poderia
trazer resultados fatais.
Conseguiu.
“Primeiro, o cansaço”, pensou, “aquela paralisante dor nos braços e nas coxas. Em
seguida, o frio. Tenho de aumentar a temperatura de meu corpo…”
Aos poucos foi se lembrando dos gestos e feitiços, executando alguns deles
demasiadamente rápido, o que lhe provocou câimbras, tremores e uma tonteira que fez com
que caísse de joelhos. Sentou-se no bloco de basalto, acalmou os braços retesados e dominou
a respiração ofegante. Em seguida, repetiu as fórmulas, esforçando-se para manter a calma e a
precisão, ativando ao máximo a concentração de sua vontade. Assim como antes, o resultado
foi imediato. Ciri sentiu-se envolvida por um bem-vindo calor, ergueu-se com a sensação da
dissipação do cansaço e do relaxamento dos músculos doloridos.
– Sou uma feiticeira! – berrou triunfalmente, erguendo bem alto um braço. – Venha, Luz
Imortal! Eu a convoco! Aen’drean va eveigh Aine!
Uma pequena e morna esfera luminosa voou de sua mão como uma borboleta, jogando
sobre as pedras agitados mosaicos de sombras. Ciri, movimentando lentamente a mão,
estabilizou a esfera, posicionando-a a sua frente. Aquela não foi uma das melhores ideias: a
luz a cegava. Tentou posicioná-la a suas costas, mas a emenda ficara pior que o soneto: sua
própria sombra obscurecia o caminho a sua frente. Diante disso, a pequena feiticeira moveu-a
levemente para um de seus lados, deixando-a pendente um pouco acima de seu ombro direito.
Embora a pequena esfera não pudesse ser comparada a uma legítima Aine mágica, Ciri ficou
extremamente orgulhosa de seu feito.
– Que pena! – exclamou, cheia de si. – Que pena que Yennefer não possa ver isto!
Ciri se pôs em marcha, escolhendo o caminho graças ao tremeluzente e inseguro claro-
escuro atirado pela esfera. Enquanto andava, tentava se lembrar de outros feitiços, mas todos
lhe pareceram inadequados ou inúteis à situação em que se encontrava, além de serem
extremamente cansativos quando invocados, de modo que resolveu evitar seu uso, a não ser
em caso de extrema necessidade. Infelizmente, não conhecia um só que pudesse criar água ou
comida. Sabia que eles existiam, mas não como invocá-los.
À luz da esfera mágica, o até então morto deserto repentinamente adquiriu vida. Debaixo
dos pés de Ciri fugiam brilhantes besouros desajeitados e aranhas peludas. Um pequeno
escorpião ruivo-amarelado atravessou rapidamente seu caminho e escondeu-se em uma das
fendas do terreno, arrastando consigo a cauda segmentada. Um lagarto verde de cauda
comprida deslizou sobre os seixos e mergulhou na escuridão. Pequenos roedores parecidos
com ratos fugiam dela dando altos pulos com as patas traseiras. Mais de uma vez, viu pares de
olhos brilhando na escuridão e, em determinado momento, ouviu emanar do meio das rochas
um silvo capaz de congelar o sangue nas veias. Se antes tinha a intenção de caçar algo para
comer, o tal silvo a fez perder qualquer vontade de remexer nos pedregulhos. Passou a olhar
com mais cuidado por onde pisava, parecendo enxergar no caminho as imagens que vira nos
livros em Kaer Morhen: o escorpião-gigante, a escarlata, a quimera, o anão, a lâmia, o
tarântulo, todos eles monstros que viviam nos desertos. Caminhava atentamente, olhando
assustada para todos os lados, aguçando os ouvidos e segurando na mão suada o punho do
espadim.
Após algumas horas, a esfera luminosa ficou turva; o círculo de luz por ela emitido
diminuiu, nublou… e se dissipou. Ciri, esforçando-se muito para se concentrar, repetiu o
encanto. A esfera brilhou com intensidade por alguns segundos, para logo em seguida ficar
avermelhada e fraca. O esforço físico venceu Ciri, que cambaleou e viu manchas negras e
vermelhas dançarem diante de seus olhos. Com isso, ela se sentou pesadamente, fazendo chiar
os seixos e outras pedras soltas.
A esfera apagou-se por completo. Ciri não tentou mais feitiço algum. A exaustão, aliada ao
vazio e à falta de energia que sentia dentro de si, eliminava previamente qualquer chance de
sucesso.
Diante dela, bem longe, na linha do horizonte, erguia-se uma tênue claridade. “Errei o
caminho”, constatou com horror. “Fiz tudo errado… Comecei andando na direção do oeste, e
eis que o sol vai se erguer logo a minha frente, o que quer dizer…”
Sentiu um cansaço e uma sonolência tão paralisantes que nem os tremores de seu corpo
conseguiam espantar. “Não vou adormecer”, decidiu. “Não posso adormecer… Não posso…”
Foi despertada pelo frio penetrante e pela claridade crescente. Uma lancinante dor nos
intestinos e a seca e dolorida ardência na garganta fizeram com que rapidamente voltasse a si.
Tentou se erguer. Não conseguiu. Os doloridos e endurecidos membros negavam-lhe
obediência. Apalpando com as palmas das mãos o solo em torno de seu corpo, sentiu certa
umidade debaixo dos dedos.
– Água… – murmurou. – Água!
Tremendo de excitação, pôs-se de quatro e colou os lábios às placas de basalto,
recolhendo febrilmente com a língua as minúsculas gotas de orvalho espalhadas por sua
superfície. Numa das fendas encontrou quase uma colher de orvalho; sorveu-o com areia e
pequenos seixos, sem ousar cuspir. Olhou em volta.
Tomando extremo cuidado para não desperdiçar nem uma gotinha sequer do precioso
líquido, Ciri sugou as brilhantes gotículas que pendiam dos espinhos de um arbusto-anão que,
de modo totalmente misterioso, conseguira brotar entre as pedras. Seu espadim jazia no chão.
Não se lembrava de tê-lo desembainhado, mas sua lâmina estava exposta e apresentava-se
opaca por causa do orvalho. Escrupulosamente e com todo o cuidado, lambeu o frio metal.
Dominando a dor que entesava seu corpo, arrastou-se de quatro à procura de mais
umidade sobre rochas mais distantes. No entanto, o dourado disco solar cobriu o deserto com
sua cegante luminosidade e, muito rápido, secou as pedras. Ciri recebeu o calor com grande
alegria, embora estivesse ciente de que em pouco tempo, abrasada sem piedade, ansiaria pelo
alívio proporcionado pelo frio noturno.
Virou-se de costas para a esfera brilhante. Sabia que lá onde ela brilhava era o leste,
enquanto ela precisava se deslocar na direção do oeste. Era preciso.
O calor foi crescendo e logo se tornou insuportável. Ao meio-dia, passou a incomodá-la a
tal ponto que ela teve de interromper a marcha e procurar por uma sombra. Finalmente
encontrou uma rocha em forma de cogumelo. Arrastou-se até ela.
Foi quando notou um objeto jogado entre as pedras. Era um pequeno pote de jadeíta de
creme hidratante para as mãos com o conteúdo totalmente lambido.
Não teve força suficiente para chorar.
Fome e sede se sobrepujaram à exaustão e ao desânimo. Cambaleando, Ciri retomou a
marcha. O sol queimava.
Ao longe, no horizonte, detrás da ondulante cortina de ar aquecido, viu algo que somente
poderia ser uma cadeia de montanhas. Uma cadeia de montanhas muito distante.
Quando caiu a noite, Ciri fez um esforço adicional e conseguiu sorver um pouco da Força,
mas a materialização da esfera mágica só se deu após várias tentativas e esgotou-a a tal ponto
que não pôde mais seguir adiante. Perdera toda a energia e, mesmo depois de tentar diversas
vezes, foi incapaz de fazer funcionar os feitiços de aquecimento e relaxamento. A luz da esfera
deu-lhe coragem e ergueu sua moral, mas o penetrante frio fez com que ela ficasse tiritando.
Ciri tremia, aguardando com ansiedade o nascer do sol. Desembainhou o espadim e colocou-o
transversalmente sobre uma pedra para que o metal da lâmina se cobrisse de orvalho. Estava
terrivelmente esgotada, porém a fome e a sede afugentavam o sono. Aguentou até o amanhecer.
Entretanto, ainda estava escuro quando começou a lamber com afã a lâmina do espadim.
Assim que clareou, pôs-se imediatamente de quatro para procurar por umidade entre as fendas
e rachaduras.
Ouviu um sibilo.
Virou-se e viu um grande lagarto colorido sentado sobre uma pedra vizinha, abrindo a
boca desdentada em sua direção, eriçando o dorso e batendo a cauda com força na pedra.
Diante dele havia uma pequena fenda cheia de água.
A primeira reação de Ciri foi a de recuar assustada, mas logo em seguida foi acometida
por um acesso de desespero misturado com raiva. Tateando em volta com as mãos trêmulas,
pegou um pontudo fragmento de rocha.
– Essa água é minha! – urrou. – É minha!
Atirou a pedra. Errou o alvo. O lagarto deu um salto e fugiu agilmente no labirinto de
rochas. Ciri jogou-se sobre a pedra e sugou o resto da água da fenda. Foi quando viu.
Detrás da pedra havia um ninho e, dentro dele, sete ovos semiocultos pela areia
avermelhada. A menina não hesitou sequer um momento. Arrastou-se até o ninho, agarrou o
primeiro ovo e cravou nele os dentes. A dura casca se partiu, caindo em sua mão, e uma massa
viscosa escorreu por seu braço até a manga. Ciri sugou o ovo e lambeu o braço. Engolia com
dificuldade e não sentia gosto algum.
Sugou todos os ovos e permaneceu de quatro, pegajosa, suja, cheia de areia, com restos de
muco presos aos dentes, revirando febrilmente a areia com os dedos e emitindo soluços
inumanos. Por fim, ficou imóvel.
(“Endireite-se, princesa! Não apoie os cotovelos na mesa! Preste atenção quando for
pegar algo da travessa para não manchar as rendas das mangas! Limpe a boca com o
guardanapo e não faça barulho enquanto mastiga! Pelos deuses, será que ninguém ensinou essa
criança como se deve comportar à mesa? Cirilla!”)
Ciri caiu num choro convulsivo, apoiando a cabeça nos joelhos.
Conseguiu caminhar até o meio-dia, quando o calor a obrigou a descansar. Dormitou por
bastante tempo, encolhida à sombra de uma rocha. A sombra não refrescava, mas era bem
melhor do que a ardência do sol. Sede e fome não lhe permitiam adormecer de verdade.
A distante cordilheira, brilhando à luz dos raios solares, parecia-lhe estar pegando fogo.
“No topo daquelas montanhas”, pensou, “pode haver neve, pode haver gelo, pode haver
riachos. Preciso chegar lá o mais rápido possível.”
Caminhou quase a noite inteira. Decidiu guiar-se pelas estrelas que enchiam o céu. Ciri se
arrependeu de não ter prestado atenção às aulas de astronomia, nem ter tido paciência de
estudar os mapas astrais que existiam na biblioteca do templo. Obviamente, conhecia as
galáxias principais – Sete Cabras, Cântaro, Foicinho, Serpente, Dragão e Donzela da Noite –,
mas todas elas ficavam muito alto na abóbada celeste e era difícil se orientar por elas. Por
fim, conseguiu escolher do cintilante formigueiro uma estrela bastante clara que, em sua
opinião, apontava na direção correta. Não sabia que estrela era aquela, de modo que decidiu
batizá-la de Olho.
Continuou sua marcha. A cadeia de montanhas à qual se dirigia não ficava nem um pouco
mais perto; permanecia tão distante quanto no dia anterior. Mas, pelo menos, indicava um
caminho.
Ao andar, Ciri olhava com atenção para todos os lados. Encontrou mais um ninho de
lagarto, dessa vez com quatro ovos. Vislumbrou uma erva verdinha menor que o dedo
indicador que, por milagre, crescera no meio das rochas. Também caçou um besouro marrom e
uma aranha de pernas finas.
Comeu tudo.
Ao meio-dia vomitou o que comera, desmaiando logo em seguida. Quando voltou a si,
achou um pouco de sombra, na qual se deitou, toda encolhida, segurando com as mãos a
barriga dolorida.
Assim que o sol se pôs, retomou a caminhada, rígida como um robô. Caiu diversas vezes,
mas sempre se levantava e voltava a caminhar.
Caminhava. Tinha de caminhar.
Fim do dia. Descanso. Noite. O Olho indicava o caminho. Marcha forçada até total
esgotamento, que chegava muito antes do nascer do sol. Uma breve soneca. Frio. Falta da
energia mágica. Fiasco total em todas as tentativas dos feitiços para a criação de luz e de
calor. Sede somente minimizada pelas lambidas do orvalho da lâmina do espadim e das
pedras.
Quando o sol surgiu, Ciri adormeceu. Foi despertada pelo calor infernal. Levantou-se para
voltar a caminhar.
Desmaiou depois de menos de uma hora de marcha. Quando voltou a si, o sol estava no
zênite, queimando insuportavelmente. Não tinha forças para procurar uma sombra. Não tinha
forças para se levantar. Mas levantou-se. Recusando-se a se render, caminhou por quase todo
o dia seguinte. E parte da noite.
Novamente passou o período mais quente do dia encolhida debaixo de uma rocha
inclinada enfiada na areia. Teve um sonho tormentoso. Sonhou com água; com água que
poderia ser bebida à vontade. Com enormes cachoeiras brancas encobertas por uma névoa e
um arco-íris. Com riachos murmurantes. Com pequenas fontes silvestres obscurecidas por
ramos de samambaias. Com chafarizes palacianos cheirando a mármore úmido. Com poços
cobertos de musgo. Com baldes transbordantes de água. Com gotas pingando de suadas
estalactites de gelo… Com água. Com água fria e fortificante que fazia doer os dentes, mas
que possuía um sabor tão maravilhoso e inigualável…
Acordou. Ergueu-se de um pulo e começou a caminhar na direção de onde havia vindo.
Retornava cambaleando e caindo vez por outra. Tinha de retornar! Havia passado, sem se dar
conta, por um riacho murmurante! Como pudera ser tão desatenta!
O calor diminuíra, aproximava-se o fim do dia. O sol indicava o poente. As montanhas. O
sol não tinha o direito de estar a suas costas. Ciri livrou-se dos delírios, contendo o choro.
Deu meia-volta e recomeçou a caminhada.
Caminhou a noite toda, mas muito devagar. Não foi muito longe. Chegou a adormecer
enquanto andava, sonhando com água. O sol nascente encontrou-a sentada num bloco de pedra,
com os olhos fixos na lâmina do espadim e o antebraço desnudo.
Afinal, o sangue é líquido. Pode ser bebido.
Afastou a ideia delirante e o pesadelo. Lambeu o orvalho que cobria a lâmina e voltou a
caminhar.
Algo tocou seu ombro, de leve e com muito cuidado. Após o longo período de solidão,
quando estivera cercada exclusivamente por pedras mortas e imóveis, o toque fez com que se
erguesse; na verdade, ela tentou se erguer, apesar de todo o cansaço. Aquilo que a tocara
rinchou e recuou, batendo com força os cascos no chão.
Ciri fez um esforço e se sentou, esfregando os olhos inchados.
“Enlouqueci”, pensou.
A alguns passos dela estava parado um cavalo. Ciri piscou várias vezes. Aquilo não era
uma miragem. Era um cavalo de verdade. Um cavalinho. Um cavalinho bem jovem, um potro.
Ciri lambeu os lábios ressecados e, sem querer, pigarreou. O cavalinho deu um salto e
fugiu, batendo com os cascos nos seixos. Movia-se de maneira muito estranha. Sua pelugem
também não era típica, nem parda, nem cinza. No entanto, era possível que apenas parecesse
ser assim, pois estava de costas para o sol.
O potro relinchou e deu alguns passos. Agora, Ciri podia vê-lo melhor, o suficiente para
notar outros detalhes estranhos além da efetivamente atípica pelugem: cabeça muito pequena,
pescoço demasiadamente comprido, machinhos finos e cauda comprida e espessa. O cavalinho
parou e olhou para ela, virando levemente a cabeça. Ciri soltou um suspiro silencioso.
Da proeminente testa do animal emergia um chifre com mais de dois palmos de
comprimento.
“Não é possível, não é possível”, pensou Ciri, recuperando totalmente a consciência e
fazendo um grande esforço mental. “Não há mais unicórnios no mundo, todos foram extintos.
Mesmo no grande livro dos bruxos de Kaer Morhen não havia menção alguma a unicórnios! Li
algo sobre eles somente no Livro dos mitos, lá no templo… E no Physiologus, que fiquei
examinando no banco do senhor Giancardi, havia uma ilustração representando um
unicórnio… Mas aquele unicórnio mais parecia um bode do que um cavalo; tinha machinhos
peludos, barbicha de bode e chifre de quase duas braças…”
Estava espantada por se lembrar tão bem de fatos ocorridos havia centenas de anos. Sentiu
a cabeça girar e uma pontada aguda nas entranhas. Gemeu e se encolheu toda em posição fetal.
O unicórnio bufou e deu um passo em sua direção. Em seguida, parou, erguendo bem alto a
cabeça. Ciri lembrou-se repentinamente do que os livros diziam a respeito de unicórnios.
– Você pode se aproximar sem medo… – falou com voz rouca, tentando levantar-se. –
Pode vir, porque eu sou…
O unicórnio voltou a bufar, deu um salto para trás e galopou para longe, agitando
acintosamente a cauda. Mas logo depois parou, sacudiu a cabeça, bateu com um dos cascos e
relinchou bem alto.
– Não é verdade! – gemeu Ciri desesperadamente. – O máximo que Jarre fez foi me dar um
beijo uma só vez, e isso não conta! Volte!
O esforço a fez ficar com a visão turva e cair sobre as pedras. Quando finalmente
conseguiu erguer a cabeça, o unicórnio estava de novo bem próximo, olhando inquisitivamente
para ela, com a cabeça abaixada e bufando baixinho.
– Não precisa ter medo de mim… – sussurrou Ciri. – Não precisa, porque… porque eu
estou morrendo…
O unicórnio relinchou, sacudindo a cabeça. Ciri desmaiou.
Quando voltou a si, estava sozinha. Com o corpo dolorido, empedernida, sedenta, faminta
e absolutamente sozinha. O unicórnio fora uma miragem, uma ilusão, um sonho; sumira como
some um sonho. Ciri dava-se conta disso e o aceitava, porém sentia mágoa e desespero, como
se o fantástico ser tivesse realmente existido, tendo estado a seu lado e a abandonado, assim
como fora abandonada por todos.
Quis se levantar, mas não conseguiu. Apoiou o rosto nas pedras. Movendo lentamente a
mão, começou a tatear a sua volta até encontrar a empunhadura do espadim.
O sangue é líquido… e eu preciso beber.
Ouviu o som de cascos de cavalo e um relincho.
– Você voltou… – sussurrou, erguendo a cabeça. – Voltou de verdade?
O unicórnio bufou bem alto. Ciri viu os cascos bem próximos de seu rosto. Os cascos
estavam molhados… Na verdade, encharcados.
No começo, Ciri fez corpo mole; não queria afastar-se da fontezinha. Tinha inventado uma
forma de beber que consistia em espremer dentro da boca um lenço previamente mergulhado
na água do buraco, o que lhe permitia, de certa maneira, engolir menos areia e lodo. Mas o
unicórnio insistia, relinchava, afastava-se, para retornar logo em seguida. Estava claro que a
convocava a retomar a marcha e indicava o caminho a ser seguido. Depois de muito refletir,
Ciri concordou: o animal tinha razão, ela devia prosseguir na direção das montanhas, sair do
deserto. Diante disso, partiu com o unicórnio, olhando para trás e memorizando a localização
da fonte. Não queria ter de procurá-la de novo caso precisasse retornar.
Andaram o dia inteiro. O unicórnio, que Ciri batizara de Cavalinho, mostrava o caminho.
Era um cavalinho muito estranho. Mordia e mastigava caules ressecados que jamais seriam
tocados não só por um cavalo, mas até por uma cabra faminta. E, quando deparou com uma
coluna de grandes formigas marchando entre as pedras, começou a comê-las. Num primeiro
momento, Ciri olhou para aquilo com espanto, porém acabou juntando-se à ceia. Estava com
fome.
As formigas eram terrivelmente azedas, mas talvez isso mitigasse o desejo de vomitá-las.
Além disso, havia muitas delas, o que permitia exercitar um pouco as mandíbulas enrijecidas.
O unicórnio comia os insetos por inteiro, enquanto Ciri contentava-se com os abdomes,
cuspindo os fragmentos mais duros das armaduras quitinosas.
Seguiram adiante. O unicórnio descobriu umas amareladas ervas daninhas e as devorou
com gosto. Dessa vez, Ciri não se juntou a ele. No entanto, quando Cavalinho achou ovos de
lagarto enterrados na areia, foi a vez de ela comê-los e de ele ficar apenas olhando.
Retomaram a caminhada. Ciri viu novas ervas daninhas e apontou-as para o unicórnio. Algum
tempo depois, Cavalinho chamou a atenção dela para um enorme escorpião-negro com uma
cauda de pelo menos um palmo e meio de comprimento. Ao ver que Ciri não tinha intenção
alguma de comer o escorpião, o unicórnio o comeu e, logo em seguida, indicou a ela outro
ninho com ovos de lagarto.
Pelo visto, tratava-se de uma cooperação bastante proveitosa para ambas as partes.
O unicórnio decepcionou-a num ponto: já estavam caminhando dois dias e duas noites e
ele não encontrou água, apesar de tê-la procurado. Parara diversas vezes balançando a
cabeça, meneando o corno, penetrando por entre brechas nos rochedos e tentando cavar a
areia com os cascos. Encontrou formigas, assim como ovos e larvas de formigas. Encontrou
um ninho de lagartos. Encontrou uma cobra colorida, matando-a com destreza. Mas não
encontrou água.
Ciri notou que Cavalinho andava a esmo, sem manter uma linha reta e uniforme em seus
deslocamentos, e teve a bem fundamentada convicção de que aquele ser não era um animal de
deserto e que simplesmente se perdera nele.
Assim como ela.
As formigas, que passaram a encontrar em abundância, continham uma umidade ácida, mas
Ciri pensava cada vez mais seriamente em voltar àquela fontezinha descoberta por Cavalinho.
Caso continuassem avançando sem achar água, poderiam chegar a um ponto em que lhes
faltariam forças para retornar a ela. O calor era insuportável, e o ato de caminhar, extenuante.
Estava a ponto de tratar daquele assunto com Cavalinho quando este relinchou
repentinamente, agitou a cauda e galopou encosta abaixo. Ciri foi atrás dele, alimentando-se
com abdomes de formigas pelo caminho.
Um grande espaço entre as rochas estava preenchido por um areal com uma claramente
visível depressão no meio.
– Que bom! – alegrou-se Ciri. – Você é muito esperto, Cavalinho! Achou mais uma
fontezinha. Neste buraco tem de haver água!
O unicórnio bufava prolongadamente, trotando em volta da depressão. Ciri aproximou-se.
A depressão parecia grande, com mais de cem pés de diâmetro, e era tão precisa e
regularmente circular que dava a impressão de alguém ter apertado um gigantesco ovo contra a
superfície da areia, formando uma espécie de funil. Ciri repentinamente se deu conta de que
uma forma tão regular assim não poderia ter surgido de maneira espontânea. Mas já era tarde.
Algo se mexeu no fundo do funil, e um violento jato de areia e cascalho acertou o rosto de
Ciri, que deu um pulo para trás e tropeçou, caindo dentro do buraco. O jato de areia e
cascalho que a atingia também batia nas bordas do funil, que, aos poucos, foram se desfazendo
e desabando para o fundo. Ciri gritou desesperadamente, agitou os braços como um nadador
afogando-se e tentou encontrar uma base para apoiar os pés. Não precisou de muito tempo
para se dar conta de que seus gestos violentos somente pioravam a situação, cobrindo-a com
cada vez mais areia. Virou-se de costas, apoiou-se nos calcanhares e abriu os braços o
máximo que pôde. A areia no fundo do funil moveu-se, ondulou, e Ciri pôde divisar emergindo
dele umas tenazes cor de bronze terminadas em ganchos afiados, com mais de meia braça de
comprimento. Gritou novamente, dessa vez com muito mais força.
A saraivada de cascalho parou repentinamente de cair sobre ela, desabando no lado
oposto do funil. O unicórnio empinou, relinchando como ensandecido, e a borda cedeu sob seu
peso. Ele ainda tentou desatolar da pegajosa areia, mas todos os seus esforços foram em vão:
ia cada vez mais sendo envolto por ela e desabava cada vez mais rápido para o fundo do
buraco. As pontas das terríveis tenazes bateram uma na outra, emitindo um som horripilante. O
unicórnio relinchou de novo, tentando inutilmente afastar a areia com as patas dianteiras, já
que as traseiras já estavam imobilizadas. Quando chegou ao fundo do buraco, foi capturado
irremediavelmente pelas terríveis tenazes do monstro oculto na areia.
Ao ouvir o desesperado relincho de dor, Ciri soltou um grito furioso e atirou-se buraco
abaixo, desembainhando o espadim, mas logo percebeu que havia cometido um erro: a camada
de areia que ocultava o monstro era espessa demais, e a lâmina do espadim não conseguia
atingi-lo. Para piorar, o unicórnio, retido pelas tenazes e enlouquecido de dor, agitava-se
violentamente para todos os lados, batendo com os cascos a torto e a direito, ameaçando-a
com a possibilidade de quebrar seus ossos.
Naquela situação, todas as formas de combate que aprendera com os bruxos não tinham
serventia alguma. No entanto, restava ainda um simples encanto. Ciri apelou para a Força e
recorreu à telecinesia.
Uma nuvem de areia ergueu-se no ar e revelou o monstro, agarrado à coxa do desesperado
unicórnio. Ciri soltou um grito de pavor. Jamais vira algo tão horrível em toda a vida, nem
mesmo em ilustrações nos inúmeros livros dos bruxos. Não era capaz sequer de imaginar que
algo tão asqueroso pudesse existir.
A criatura tinha a cor cinza sujo, era arredondado e rechonchudo como um percevejo
empanturrado de sangue, e uma tênue camada de pelos cobria-lhe o corpo. Parecia não ter
pernas, mas suas tenazes eram quase tão compridas quanto ele mesmo.
Sem a proteção arenosa, o monstro soltou imediatamente o unicórnio e começou a se
enterrar através de rápidas e violentas ondulações do corpo abarricado. Conseguia executar a
tarefa com surpreendente competência, no que era ajudado pelo unicórnio, que, em seu
permanente esforço para livrar-se do buraco, jogava cada vez mais areia para baixo. Ciri foi
tomada por um violento desejo de vingança. Atirou-se sobre a criatura já pouco visível e
desferiu um golpe do espadim em seu dorso arqueado. Atacou por trás, tomando cuidado para
se manter afastada das agitadas tenazes, as quais, como ficou patente, o monstro podia
estender bastante para todos os lados. Golpeou-o novamente, enquanto ele continuava a tentar
se enterrar com uma velocidade incrível. No entanto, não se enterrava para fugir; fazia-o para
atacar. Para ficar totalmente encoberto pela areia, bastaram-lhe apenas mais duas ondulações
do corpo e, uma vez oculto, disparou com violência um jato de cascalho sobre Ciri, cobrindo-
a até a metade das coxas. Ela conseguiu livrar-se e dar um passo para trás, mas não havia para
onde fugir. Continuava num buraco de areia fofa, que, a cada movimento, fazia-a descer mais.
Então, no fundo, a areia ondulou novamente e daquela onda emergiram as temidas tenazes
terminadas em ganchos afiados.
Foi salva por Cavalinho, que, ao chegar ao fundo do buraco, golpeou fortemente com os
cascos o montículo de areia que delatava a presença do monstro. Os selvagens coices
revelaram o dorso cinzento da criatura. O unicórnio abaixou a cabeça e cravou o chifre no
lugar exato em que a cabeça com as tenazes juntava-se ao resto do corpo. Ao ver que as
tenazes do monstro pregado ao fundo do buraco permaneciam caídas e imóveis, Ciri deu um
pulo para frente e, tomando impulso, cravou o espadim no corpo em convulsões. Tirou a
lâmina e cravou-a mais uma vez. E mais uma. Enquanto isso, Cavalinho desencravou o chifre
e, com grande ímpeto, deixou cair os cascos dianteiros sobre o corpo abarricado.
O pisoteado monstro não tentou mais se cobrir. Permaneceu imóvel, enquanto a areia a seu
redor se umedecia com um líquido esverdeado.
Não foi sem muita dificuldade que conseguiram sair do buraco. Ciri deu alguns passos e
caiu impotente sobre a areia, arfando pesadamente e tremendo toda por causa da onda de
adrenalina que lhe atacava a garganta e as têmporas. O unicórnio ficou andando a sua volta.
Pisava desajeitadamente, sangrando da ferida na coxa, com o sangue escorrendo pela perna
até o machinho e deixando um rastro vermelho na areia. Ciri conseguiu ficar de joelhos e
vomitou violentamente. Depois, ergueu-se e, cambaleante, aproximou-se de Cavalinho, mas
ele não se deixou tocar, jogando-se no chão e esfregando a ferida na areia, na qual, então,
enfiou o chifre a fim de limpá-lo.
Ciri também esfregou e limpou a lâmina do espadim, lançando olhares desconfiados para
o buraco do qual acabaram de sair. O unicórnio levantou-se, relinchou e se aproximou.
– Gostaria de examinar sua ferida, Cavalinho.
Cavalinho relinchou e agitou a cabeça chifruda.
– Se não quer, paciência. Se está em condições de andar, vamos embora daqui o mais
rápido possível.
Pouco tempo depois, depararam com um novo areal, com a superfície também pontilhada
de buracos em forma de funil. Ciri ficou olhando para eles com apreensão; alguns eram pelo
menos duas vezes maiores do que aquele em cujo interior haviam recentemente lutado pela
vida.
Não ousaram atravessar o areal, desviando-se dos buracos. Ciri estava convencida de que
os tais funis consistiam em armadilhas para vítimas desprevenidas e que os monstros
abrigados dentro deles eram perigosos apenas para as vítimas que ali caíssem. Se fossem
muito cuidadosos e se mantivessem sempre afastados da boca dos funis, poderiam cruzar o
terreno arenoso sem temer que uma das criaturas emergisse de um deles e saísse em sua
perseguição. Embora tivesse certeza absoluta de que não haveria tal perigo, Ciri preferiu não
arriscar. O unicórnio tinha claramente o mesmo entendimento, bufando e afastando-a para
longe do areal. Para evitarem o perigoso terreno, aumentaram consideravelmente seu trajeto,
descrevendo um longo arco, mantendo-se junto das rochas e andando exclusivamente sobre um
piso duro no qual nenhum monstro conseguiria se enterrar.
Enquanto caminhava, Ciri não tirava os olhos das crateras no areal. Mais de uma vez viu
como das mortais armadilhas emanavam jatos de areia; os monstros aprofundavam e
renovavam suas tocas. Algumas delas estavam tão próximas umas das outras que a areia
expelida por uma criatura caía dentro de outros buracos, despertando a ira dos seres neles
escondidos. Nessa hora tinha início uma violenta canhonada, com areia zunindo e batendo
como granizo.
Ciri perguntava-se o que os monstros estariam caçando num árido deserto. Logo obteve a
resposta: de um dos buracos mais próximos saiu voando uma coisa escura que, descrevendo
um arco, caiu perto deles. Após um breve momento de hesitação, Ciri saltou das rochas para a
areia. Aquilo que voara do buraco era o cadáver de um roedor que lembrava um coelho, a
julgar por seu pelo, pois estava ressecado e vazio como uma bexiga. Não havia nele nem uma
gota de sangue. Ciri ficou toda arrepiada; agora sabia o que os monstros caçavam e como se
alimentavam.
O unicórnio soltou um relincho de advertência. Ciri ergueu a cabeça. Ao redor não havia
buraco algum, apenas areia plana e lisa. Repentinamente, porém, aquele terreno plano e liso
embarrigou, e a “barriga” começou a se mover com rapidez em sua direção. Ciri jogou fora o
ressecado cadáver e correu de imediato para cima das rochas.
A decisão de contornar o areal mostrara-se acertada.
Continuaram a andar, evitando quaisquer áreas arenosas, por menores que fossem, e
sempre pisando em terreno duro e pedregoso.
Cavalinho mancava, avançando lentamente, e, embora o ferimento na coxa continuasse
sangrando, não permitia que Ciri se aproximasse e o examinasse.
O areal estreitou-se bastante e começou a ziguezaguear. A fina e fofa areia cedeu lugar a
um grosso cascalho e, depois, a seixos rolados. Como não viam cratera alguma havia bastante
tempo, resolveram descer das rochas e caminhar pela senda. Ciri, embora novamente
atormentada por fome e sede, começou a se mover mais rápido. Havia esperança. A pedregosa
senda não era uma senda, e sim o leito de um rio que seguia na direção das montanhas. A bem
da verdade, o rio não tinha água, porém os conduziria a sua fonte, demasiadamente tênue para
encher o leito do rio, mas sem dúvida com água suficiente para matar a sede.
No entanto, Ciri teve de diminuir o ritmo por causa do unicórnio, que avançava com
evidente dificuldade e tropeçava toda hora, puxando uma perna e pisando com um lado do
casco. No fim do dia, ele se deitou, sem se levantar quando ela se aproximou. Permitiu que ela
examinasse o ferimento.
Na verdade, havia dois ferimentos, um de cada lado da coxa. Ambos estavam inflamados e
continuavam a verter sangue, com o qual escorria um pus fedorento.
O monstro era peçonhento.
No dia seguinte, a situação ficou ainda pior. O unicórnio mal conseguia se arrastar. Ao
anoitecer, deitou-se e não quis mais se levantar. Quando Ciri se ajoelhou a seu lado, ele
moveu as narinas e o chifre na direção dos ferimentos e soltou um relincho. Naquele relincho
havia dor.
O pus escorria cada vez mais e seu cheiro era horrível. Ciri desembainhou o espadim.
Cavalinho fez um esforço para se levantar, mas em vão.
– Não sei o que fazer… – soluçou Ciri, olhando para a lâmina. – Não sei mesmo…
Provavelmente devo cortar os ferimentos e espremer deles o pus e o veneno… Mas não sei
como fazê-lo! Posso acabar ferindo você ainda mais!
O unicórnio tentou se erguer um pouco, relinchou. Ciri sentou sobre as pedras, apoiando a
cabeça nas mãos.
– Não me ensinaram a curar – falou com amargura. – Ensinaram-me a matar, dizendo que
dessa maneira poderei salvar vidas. Aquilo foi uma enorme mentira, Cavalinho. Mentiram
para mim.
Ao anoitecer, com a escuridão crescendo rapidamente, o unicórnio permaneceu deitado
enquanto Ciri pensava febrilmente. Ela recolheu uma porção de cardos e caules de outras
plantas que cresciam em abundância às margens do leito do rio ressecado, mas Cavalinho não
quis comer. Impotente, deitara a cabeça sobre as pedras e já nem tentava mais se erguer.
Apenas piscava um olho. Uma baba branca começou a escorrer de sua boca.
– Não tenho como ajudá-lo, Cavalinho – falou Ciri, com voz embargada. – Não tenho
nada…
Exceto a magia.
“Sou uma feiticeira.”
Ciri se levantou e estendeu as mãos. Nada. Necessitava de muita energia mágica, e não
tinha nem sombra dela. Ficou surpresa… Não esperava por isso. Afinal, havia veios de água
subterrâneos por toda parte. Deu alguns passos para a esquerda e depois para a direita.
Começou a andar em círculos. Afastou-se. Nada.
– Maldito deserto! – gritou, cerrando os punhos. – Você não tem nada! Nem água, nem
magia! E a magia deveria estar em todos os lugares! Aquilo também fora uma mentira! Todos
mentiram para mim, todos!
O unicórnio relinchou.
– A magia existe em tudo. Na água, na terra, no ar… e no fogo.
Ciri bateu na testa com a palma da mão. Não pensara nisso antes porque lá, no meio das
pedras desnudas, não havia com que acender uma fogueira. Mas agora tinha à mão cardos e
caules secos, e, para fazer aparecer uma centelha, deveria lhe bastar aquele restinho de
energia que sentia dentro de si…
Recolheu alguns gravetos, empilhou-os e cobriu-os com cardos secos. Depois, estendeu
cuidadosamente a mão.
– Aenye!
A pilha de gravetos brilhou com uma chama que devorou as folhas de cardo e formou uma
grande labareda. Ciri adicionou caules secos à fogueira.
“E agora?”, pensou, olhando para as chamas. “Sorvê-la? Como? Yennefer me proibiu
tocar na energia do fogo… Mas eu não tenho escolha! Nem tempo! Tenho de agir! Os gravetos
e as folhas acabarão se consumindo em pouco tempo… O fogo se extinguirá… O fogo…
Como ele é lindo, como ele é quente…”
Ciri jamais soube quando e como aquilo aconteceu. Estava com os olhos fixos no fogo
quando repentinamente começou a sentir as têmporas latejarem. Agarrou os seios, com a
impressão de que as costelas estavam se rompendo. Sentiu uma dor pulsante no baixo-ventre,
no períneo e nos mamilos, uma dor que, no momento seguinte, se transformou num gozo
assustador. Levantou-se. Não, não se levantou, alçou voo.
A Força preencheu-a como se fosse chumbo derretido. As estrelas no céu dançaram como
se estivessem espalhadas na superfície de um lago. O ardente Olho no oeste explodiu numa luz
viva e intensa. Ciri pegou aquela luz e, com ela, a Força.
– Hael, Aenye!
Cavalinho relinchou selvagemente e tentou se levantar, apoiando-se nas patas dianteiras. A
mão de Ciri ergueu-se por si mesma, com os dedos dobrados no gesto mágico, enquanto os
lábios por si mesmos pronunciavam o encanto. Da ponta dos dedos emanou uma claridade
ondulante. As chamas da fogueira pareciam explodir.
As ondas de luz emitidas por sua mão tocaram os ferimentos na coxa do unicórnio,
concentraram-se neles e foram por eles absorvidos.
– Quero que você sare! Exijo isso! Vess’hael, Aenye!
A Força parecia explodir dentro dela, preenchendo-a de euforia. As chamas ergueram-se
ainda mais, clareando os arredores. O unicórnio ergueu a cabeça, relinchou, levantou-se
repentinamente e deu alguns passos vacilantes. Torceu o pescoço, aproximou as narinas da
coxa e bufou, como se não estivesse acreditando no que via. Soltou um relincho forte e
prolongado, agitou a cauda e galopou em torno da fogueira.
– Curei você! – gritou Ciri, orgulhosa. – Curei! Sou uma feiticeira! Consegui absorver a
Força do fogo! Sou poderosa! Posso fazer tudo o que quiser!
Virou-se. A fogueira ardia, soltando milhares de faíscas.
– Não vamos mais precisar sair à procura de fontes! Não vamos mais beber águas
lamacentas! Tenho a Força! Sinto a Força no fogo! Farei com que caia uma chuva sobre este
maldito deserto! Farei com que água brote das rochas! Que nasçam flores! Grama! Nabo!
Agora, eu posso tudo! Absolutamente tudo!
Ergueu violentamente os braços, gritando encantos e escandindo conjuros. Não os
compreendia; não lembrava quando os aprendera ou mesmo se os aprendera de todo. Aquilo
não tinha a menor importância. Sentia a Força, sentia o poder, ardia em fogo. Era o fogo
personificado. Tremia toda por causa do poder que sentia dentro de si.
O céu noturno foi cortado por um raio, enquanto entre rochas e cardos o vento uivou. O
unicórnio relinchou de modo penetrante e se empinou. O fogo explodiu ainda mais alto. Os
gravetos e caules há muito se transformaram em carvão; o que ardia era a própria rocha. Mas
Ciri nem notou. Sentia a Força, via e ouvia apenas o fogo.
– Você pode tudo – sussurravam as chamas. – Você possui nossa força e pode tudo. O
mundo está a seus pés. Você é enorme. Você é poderosa.
No meio das chamas, uma silhueta. Uma mulher jovem com longos cabelos lisos, negros
como asas de graúna. A mulher ri de maneira selvagem e cruel; as labaredas dançam a seu
redor.
– Você é poderosa. Os que lhe fizeram tanto mal não sabiam com quem estavam se
metendo! Vingue-se! Pague-lhes em dobro o que eles lhe fizeram! Que eles tremam de medo a
seus pés; que batam os dentes, sem coragem de erguer a cabeça e olhar para seu rosto! Que
implorem por misericórdia! Mas você não terá piedade! Pague-lhes com a mesma moeda! Dê
troco a todos e por tudo! Vingança!
Às costas da mulher de cabelos negros, fogo e fumaça. No meio da fumaça, fileiras de
forcas e de estacas, cadafalsos e andaimes, montes de cadáveres. São cadáveres de
nilfgaardianos, os que conquistaram e saquearam Cintra, mataram o rei Eist e sua avó
Calanthe, os mesmos que assassinaram pessoas nas ruas da cidade. Da forca pende o guerreiro
de armadura negra, a corda range, e em torno do enforcado há bandos de corvos tentando bicar
seus olhos através dos rasgos em seu elmo alado. As forcas seguintes estendem-se até a linha
do horizonte, com os corpos dos Scoia’tael, aqueles que mataram Paulie Dahlberg em
Kaedwen, assim como os que a perseguiram na ilha de Thanedd. Numa das estacas contorce-
se em agonia o feiticeiro Vilgeforz, cujo belo e traiçoeiramente digno rosto está retorcido e
roxo de dor, com a ponta ensanguentada da estaca saindo de sua clavícula… Outros feiticeiros
de Thanedd estão ajoelhados no chão; têm as mãos amarradas às costas e as estacas pontudas
já os aguardam…
Postes envoltos em ramos de olmo estendem-se uns após os outros até o horizonte
enfumaçado. Ao poste mais próximo está presa por correntes Triss Merigold… Mais adiante,
Margarita Laux-Antille… Mãe Nenneke… Jarre… Fábio Sachs…
– Não. Não. Não.
– Sim – grita a mulher de cabelos negros. – Morte a todos. Vingue-se deles, despreze-os!
Todos eles lhe fizeram mal, quiseram lhe fazer mal e poderão vir a querer lhe fazer mal!
Despreze-os, porque finalmente chegou o tempo do desprezo. Do desprezo, da vingança e da
morte! Morte a todos! Morte, aniquilamento e sangue!
Sangue em sua mão, sangue em seu vestidinho…
– Eles a traíram! Enganaram! Prejudicaram! Agora você tem a Força. Portanto, vingue-se!
Os lábios de Yennefer estão cortados e esmagados, sangrando em profusão. Seus braços e
pernas estão atados por pesadas correntes presas às úmidas e sujas paredes de uma masmorra.
A multidão em torno do cadafalso grita; o poeta Jaskier coloca a cabeça no cepo, o afiado
gume do machado do carrasco brilha no ar. As pessoas mais próximas do cadafalso estendem
um lençol para recolher o sangue… O grito da turba abafa o golpe, que faz tremer todo o
andaime…
– Eles a traíram! Enganaram-na e iludiram! Todos! Para eles, você não passou de uma
marionete! Eles se aproveitaram de você! Condenaram-na à fome, à sede, ao sol escaldante, à
humilhação e ao abandono! Chegou o tempo do desprezo e da vingança! Você tem a Força!
Você é poderosa! Que o mundo todo trema diante de você! Que o mundo todo trema diante do
Sangue Antigo!
Bruxos são trazidos ao cadafalso: Vasemir, Eskel, Coën, Lambert… e Geralt… Geralt mal
se mantém em pé, está coberto de sangue…
– Não!!!
A sua volta, fogo. Detrás da parede de chamas emanam relinchos selvagens: são os
unicórnios, que se empinam, sacodem a cabeça e batem com os cascos no chão. As crinas
parecem estandartes guerreiros; os chifres são longos e afiados como espadas. Os unicórnios
são enormes, tão grandes quanto os cavalos de guerreiros, muito maiores do que seu
Cavalinho. De onde eles vieram? Como podem ser tantos? As labaredas erguem-se aos céus.
A mulher de cabelos negros ergue os braços. Suas mãos estão cobertas de sangue. Seus
cabelos são agitados pelo calor das chamas.
Arda, arda, Falka!
– Vá embora! Não quero você! Não quero sua Força!
Arda, Falka!
– Não quero!
– Você quer! Você anseia por ela! A ansiedade e o desejo ardem em você como uma
chama, o deleite a seduz! Trata-se de poder, da Força, do mando! É o mais deleitoso dos
deleites do mundo!
Relâmpago. Trovão. Vento. Barulho de cascos e relinchos dos unicórnios correndo em
volta do fogo.
– Não quero essa Força! Não quero! Renuncio a ela!
Ciri não sabia: o fogo que se extinguira ou foram seus olhos que obscureceram? Caiu,
sentindo no rosto as primeiras gotas de chuva.
Deve-se privar a Criatura de sua existência. Não se pode permitir que ela exista. A Criatura é perigosa.
Confirmação.
Negação. A Criatura não convocou a Força para si mesma. Ela o fez para salvar Ihuarraquax. A Criatura é
capaz de se compadecer. É graças à Criatura que Ihuarraquax está de volta entre nós.
Mas a Criatura tem a Força. Se quiser fazer uso dela…
Ela não poderá fazer uso dela. Nunca. Ela a renunciou. Ela renunciou a Força. Completamente. A Força foi
embora. Isso é muito estranho…
Nunca compreenderemos as Criaturas.
E não precisamos compreendê-las! Privemos a existência à Criatura. Antes que seja tarde demais.
Confirmação.
Negação. Vamos embora daqui. Deixemos a Criatura. Deixemo-la a seu destino.
Não sabia por quanto tempo ficou deitada sobre as pedras, agitada por calafrios e com os
olhos fixos no céu, que mudava de cor. O ambiente era alternadamente claro e escuro, frio e
quente, mas ela permanecia impotente, emurchecida e vazia como o cadáver daquele roedor,
sugada e jogada para fora do buraco na areia.
Não pensava em nada. Estava solitária, vazia. Não tinha mais nada e não sentia nada em
si. Não sentia sede nem fome, nem cansaço nem medo. Tudo sumira; até a vontade de
sobreviver. Havia apenas um enorme vazio, frio e aterrador. Sentia aquele vazio com todo o
seu ser, com cada célula de seu organismo.
Sentia sangue na parte interna das coxas. Aquilo lhe era indiferente. Estava vazia. Perdera
tudo.
O céu mudava de cor, e ela não se movia. Haveria algum sentido em se mover no vazio?
Não se mexeu quando soaram cascos de cavalos a seu redor. Não reagiu aos altos gritos e
chamados, às vozes excitadas, aos relinchos. Não se moveu quando foi erguida por braços
possantes, pendendo inerte. Não respondeu às sacudidelas e empurrões, nem aos gritos e às
perguntas violentas. Não as entendia… e não queria entender.
Estava vazia e indiferente. Foi com indiferença que aceitou lhe borrifarem o rosto com
água. Quando aproximaram um cantil de seus lábios, bebeu indiferentemente, sem engasgar.
Depois, continuou indiferente. Colocaram-na sobre o arção de uma sela. O períneo estava
sensível e dolorido. Como tremia muito, cobriram-na com uma manta. Como estava inerte e
flácida, amarraram-na com um cinto ao cavaleiro sentado atrás dela. O cavaleiro fedia a suor
e urina. Aquilo também lhe era indiferente.
Havia vários cavaleiros a sua volta. Ciri olhava para eles com total indiferença. Estava
vazia; perdera tudo. Para ela, nada mais tinha significado.
Nada.
Nem mesmo o fato de o elmo do guerreiro no comando dos cavaleiros ser adornado com
asas de ave de rapina.
CAPÍTULO SÉTIMO
– Olhem só para ela. Queimada de sol, ferida, empoeirada. Continua bebendo sem parar,
como se fosse uma esponja, e está tão faminta que chega a dar medo. Estou lhes dizendo que
ela veio do leste. Atravessou Korath, a Frigideira. Passou pela Frigideira.
– Você está sonhando! Ninguém sobrevive à Frigideira. Ela vinha do oeste, das montanhas,
pelo leito do Sequidão. Mal encostou na beira de Korath, mas isso já lhe bastou. Quando a
achamos, já jazia semimorta.
– Mesmo vindo do oeste, ela deve ter passado muito tempo num deserto. De onde ela veio
andando?
– Não andando, mas montada. Quem sabe de quão longe. Havia rastos de cascos a sua
volta. O cavalo deve tê-la derrubado no Sequidão, e é por isso que ela está toda machucada e
cheia de hematomas.
– Gostaria de saber por que ela é tão importante para os nilfgaardianos. Quando nosso
prefeito nos despachou a sua procura, imaginei que se tratasse de uma nobre importante. E o
que vejo? Uma garota normal imunda, mais parecendo uma vassoura gasta, desmiolada e ainda
por cima muda. Sabe, Skomlik, chego a desconfiar de que não achamos aquela que
procurávamos…
– Pois eu tenho certeza de que é ela. E pode apostar que ela não é tão normal assim. Se
fosse normal, nós a teríamos encontrado morta.
– E faltou pouco para isso. Ela foi salva por aquela chuva, algo que é de estranhar, pois
até os mais idosos anciãos não se lembram de ter caído chuva alguma sobre a Frigideira. As
nuvens sempre passam ao largo de Korath… Mesmo quando chove no vale, lá não chega a
cair uma gota sequer!
– Olhem só como ela come. Como se não tivesse posto nada na boca por mais de uma
semana… Ei, você, faminta! Está gostando do toucinho? E que tal esse pão sem nada?
– Pergunte na língua dos elfos. Ou em nilfgaardiano. Ela não compreende nossa língua.
Deve ser uma cria élfica qualquer…
– É uma mentecapta, uma imbecil. Quando fui colocá-la no cavalo hoje de manhã, parecia
um boneco de madeira.
– Vocês não têm olhos – disse, com os dentes brilhantes, aquele a quem chamaram de
Skomlik, um homem forte e meio careca. – Que Perseguidores de merda vocês saíram que
ainda não se deram conta de quem é ela! Ela não é imbecil nem desmiolada… apenas finge
ser. É uma ave rara e muito esperta.
– E por que ela é tão importante a Nilfgaard? Prometeram um prêmio a quem a
encontrasse, despacharam patrulhas em todas as direções… Por quê?
– Isso eu já não sei. Mas se a interrogarmos direitinho… se perguntarmos com umas
chicotadas nas costas… Ah! Vocês viram como ela olhou para mim? Ela entende tudinho e
presta uma atenção danada a tudo o que dizemos. Ei, garota! Eu sou Skomlik, um dos
chamados Perseguidores. E isto… olhe bem… é um chicote! Você tem apreço pela pele de
suas costas? Então comece a falar…
– Basta! Calados!
A alta e cortante ordem, que não admitia contestação, veio da outra fogueira, junto da qual
estavam sentados o guerreiro e seu pajem.
– Estão se entediando, Perseguidores? – perguntou o guerreiro ameaçadoramente. – Então,
ponham-se a trabalhar! Arreiem os cavalos! Limpem meus avios e armas! Vão buscar lenha na
floresta! E não encostem um dedo sequer na moça! Entenderam, seus vagabundos?
– Entendemos, nobre sveersênio – resmungou Skomlik, enquanto seus companheiros
abaixavam a cabeça.
– Ao trabalho! Mexam-se!
Os Perseguidores começaram a executar as tarefas que lhes foram ordenadas.
– O destino nos castigou com esse fodido – murmurou um deles. – Foi muito azar o
prefeito ter escolhido exatamente esse guerreiro de merda para nos comandar…
– Metido a importante – sussurrou outro, olhando de soslaio para a fogueira do guerreiro.
– E não devemos esquecer que fomos nós, os Perseguidores, que encontramos a garota. Foi
nosso faro que fez com que adentrássemos o leito do Sequidão.
– Isso mesmo. O mérito é todo nosso, enquanto o nobre cavaleiro receberá a recompensa,
deixando uns trocadinhos para nós… Ele jogará um florim a nossos pés e dirá: “Tomem,
Perseguidores, e agradeçam minha generosidade…”
– Calem a boca – sibilou Skomlik –, porque ele ainda vai acabar ouvindo…
Ciri ficou sozinha junto da fogueira. O guerreiro e o pajem olhavam para ela com
curiosidade, porém mantinham-se calados.
O guerreiro, apesar de já avançado em anos, era um homem robusto, com rosto sério e
cheio de cicatrizes. Enquanto cavalgava, sempre mantinha na cabeça um elmo com asas. No
entanto, não eram as mesmas asas que Ciri vira nos pesadelos e, mais tarde, na ilha de
Thanedd. Ele não era o Cavaleiro Negro de Cintra, mas não deixava de ser um guerreiro
nilfgaardiano. Quando emitia ordens, fazia-o em língua comum, porém com claro sotaque
parecido com o dos elfos. Já quando conversava com seu pajem, um jovem pouco mais velho
que Ciri, falava numa língua parecida com a Língua Antiga, só que mais dura, menos
cantarolante. Devia ser a língua nilfgaardiana. Ciri, que conhecia bem a Língua Antiga,
compreendia a maior parte das palavras, mas não deixou que isso fosse percebido. Na
primeira parada, bem junto do deserto chamado de Korath ou Frigideira, o guerreiro
nilfgaardiano e seu pajem cobriram-na de perguntas. Naquela hora, Ciri não respondeu,
porque estava indiferente e atordoada. Após alguns dias de viagem, quando o grupo saiu dos
rochosos desfiladeiros e desceu na direção dos vales verdejantes, ela recuperou totalmente a
consciência e começou enfim a ver o mundo a sua volta e a reagir, embora de maneira
vagarosa e sonolenta. Entretanto, continuava sem responder às perguntas, de modo que o
guerreiro simplesmente deixou de importuná-la. Parecia que não lhe dava a mínima atenção.
Quem se ocupava dela eram aqueles sujeitos mal-encarados que exigiam ser chamados de
Perseguidores. Estes tentaram interrogá-la várias vezes, sempre de forma agressiva.
Contudo, o nilfgaardiano de elmo alado logo os pôs em seus devidos lugares. Estava bem
claro ali quem era o senhor e quem o servo.
Ciri fingia-se de muda abobada, mas prestava muita atenção a tudo o que se passava a sua
volta. Aos poucos foi se dando conta de sua situação. Caíra nas garras de Nilfgaard. Nilfgaard
estivera a sua procura e a encontrara, certamente descobrindo o caminho pelo qual tinha sido
despachada através do caótico teleportal de Tor Lara. Aquilo que nem Yennefer nem Geralt
haviam conseguido fora alcançado pelo guerreiro de elmo alado e seus homens, alcunhados de
Perseguidores.
O que teria acontecido com Yennefer e Geralt na ilha de Thanedd? E onde ela se
encontrava? Ciri tinha a pior das suspeitas. Os Perseguidores e seu líder, Skomlik,
comunicavam-se por meio da rude e obscena língua comum, mas sem sotaque nilfgaardiano.
Os Perseguidores eram homens simples, porém serviam a um guerreiro de Nilfgaard. Os
Perseguidores deliciavam-se com a ideia de receber a recompensa prometida pelo prefeito
pela captura de Ciri. Recompensa a ser paga em florins.
Os únicos países nos quais a moeda corrente era o florim e onde as pessoas serviam a
nilfgaardianos eram as distantes províncias imperiais no sul administradas por prefeitos.
No dia seguinte, durante a parada para o almoço junto a um riacho, Ciri começou a pensar
numa forma de fugir. Levando em conta que a magia poderia ajudá-la, resolveu tentar
disfarçadamente o mais simples dos encantos, uma delicada telecinesia. No entanto, seus
temores se confirmaram: não tinha em si nem um pingo de energia mágica. Depois da
irracional brincadeira com o fogo, suas capacidades mágicas abandonaram-na por completo.
Ciri foi tomada por uma nova onda de indiferença. Indiferença a tudo. Fechou-se em si
mesma e mergulhou em apatia até o dia em que a estrada pela qual atravessavam um urzal foi
bloqueada pelo Cavaleiro Azul.
– Ora, ora… – rosnou Skomlik, olhando para os cavaleiros que bloqueavam a passagem. –
Vamos ter problemas. Trata-se de varnhaganos do forte de Sarda…
Os cavaleiros se aproximaram. A sua frente, montado num enorme cavalo cinzento,
cavalgava um gigante metido numa brilhante armadura azul-celeste, seguido por outro
guerreiro, também de armadura, e dois cavaleiros com simples roupas acinzentadas,
certamente pajens.
O nilfgaardiano do elmo alado foi ao encontro deles, mantendo seu baio num trote
elegante. Seu pajem tateou a empunhadura da espada e virou-se na sela.
– Fiquem parados e não tirem os olhos da menina – rosnou para Skomlik e seus
Perseguidores. – E não se metam!
– Não sou besta – falou Skomlik, baixinho, assim que o pajem se afastou. – Não sou besta
para me meter nos assuntos dos grãos-senhores de Nilfgaard…
– Vai sair uma briga, Skomlik?
– Na certa. Entre os sveersênios e os varnhaganos existem ódios de família e sanguinários
desejos de vingança. Desmontem. Cuidem da garota, pois ela representa nosso lucro. Se
dermos sorte, receberemos o prêmio integral por ela.
– Os varnhaganos devem também estar à procura dessa menina. Se eles vencerem, vão
tirá-la de nós… Somos apenas quatro…
– Cinco – sorriu Skomlik. – Um dos bandoleiros de Sarda é meu compadre. Como vocês
podem ver, no fim desta confusão não serão os senhores guerreiros que ficarão com a garota…
mas nós.
O cavaleiro de armadura azul-celeste puxou as rédeas de seu lobuno. O de elmo alado
parou a sua frente. O companheiro do de armadura azul-celeste aproximou-se dos dois. Seu
estranho elmo era adornado com duas fitas de couro pendentes da viseira, parecendo um par
de longos bigodes ou presas de morsa. Na parte dianteira de sua sela, Presas de Morsa
segurava uma arma de aspecto ameaçador, que lembrava levemente o chuço usado pela guarda
real de Cintra, só que com a haste mais curta e a choupa mais longa.
Azul e Elmo Alado trocaram algumas palavras. Ciri não conseguiu captá-las, porém o tom
com o qual foram ditas não deixava margem a dúvidas. Não se tratava de palavras amigáveis.
Azul ergueu-se repentinamente na sela, apontou para Ciri e falou algo com voz zangada. Em
resposta, Elmo Alado exclamou algo em tom igualmente irritado, agitando a mão metida numa
luva de aço, claramente ordenando a Azul que fosse embora. Foi o que bastou para tudo
começar.
Azul esporeou o lobuno e avançou, sacando o machado preso à sela. Elmo Alado empinou
o baio, desembainhando a espada. Mas, antes de os dois guerreiros se atracarem, Presas de
Morsa atacou, pondo o corcel a galope com a haste do chuço. O pajem de Elmo Alado sacou a
espada e atirou-se sobre ele, mas Presas de Morsa ergueu-se na sela e cravou o chuço
diretamente em seu peito. A comprida choupa atravessou com estrondo a cota de malha, o
pajem soltou um grito e caiu do cavalo, segurando com ambas as mãos a haste enfiada até a
base da choupa.
Azul e Elmo Alado chocaram-se com grande estrondo. O machado era mais perigoso,
porém a espada, mais rápida. Azul recebeu um golpe no ombro, e um fragmento da ombreira
metálica saltou no ar, virando cambalhotas e fazendo esvoaçar as tiras de couro; o cavaleiro
balançou na sela, e filetes carmíneos brilharam na armadura azul-celeste. A velocidade dos
dois cavalos apartou os combatentes. O nilfgaardiano de elmo alado fez o baio girar, mas, no
mesmo instante, Presas de Morsa, com a espada erguida com ambas as mãos, lançou-se sobre
ele. Elmo Alado puxou violentamente as rédeas, e Presas de Morsa, conduzindo o cavalo
somente com as pernas, passou ao largo, porém dando tempo suficiente para Elmo Alado
acertá-lo com a espada. Diante dos olhos de Ciri, a ombreira metálica se retorceu, e um jato
de sangue esguichou do lugar acertado.
A essa altura, Azul já galopava de volta, agitando o machado e gritando a plenos pulmões.
Os dois guerreiros trocaram golpes barulhentos e assustadores e tornaram a se separar. Presas
de Morsa voltou a atacar Elmo Alado. Os cavalos se chocaram, e ouviram-se sons das
espadas batendo uma contra a outra. Presas de Morsa desferiu um forte golpe com a espada,
destruindo as proteções do antebraço e do cotovelo de Elmo Alado, que contra-atacou com um
possante golpe na lateral esquerda da couraça do adversário. Presas de Morsa balançou na
sela. Elmo Alado ergueu-se nos estribos e, tomando impulso, desfechou mais um golpe entre a
já retorcida e amassada ombreira e o elmo. A larga lâmina do espadão ficou presa ao penetrar
fundo na placa de metal. Presas de Morsa estremeceu. Os cavalos se atracaram, dando coices
e rangendo os dentes nos freios. Elmo Alado apoiou-se no arção da sela e arrancou a espada.
Presas de Morsa desabou da sela. Ferraduras ecoaram sobre a armadura pisoteada.
Azul virou o lobuno e atacou, erguendo o machado. Tinha dificuldade em conduzir o
cavalo com o braço ferido. Ao notar tal fato, Elmo Alado fez uma ágil manobra e atacou-o
pelo lado direito, erguendo-se nos estribos para desferir um golpe mortal. Azul aparou o golpe
com o machado, fazendo com que Elmo Alado soltasse a espada. Os cavalos voltaram a se
atracar. Azul era um autêntico gigante; o pesado machado ergueu-se em sua mão e desabou
sobre a couraça com tal força que o baio tocou as ancas no chão. Elmo Alado oscilou, mas
conseguiu manter-se na sela. Antes de o machado desabar pela segunda vez, ele soltou as
rédeas e pegou com a mão esquerda a pesada maça presa à sela por uma tira de couro,
acertando com ela o elmo de Azul. O elmo soou como um sino, e agora foi a vez de Elmo Azul
oscilar na sela. Os cavalos guinchavam, mordiam-se mutuamente e não queriam se separar de
maneira alguma.
Azul, apesar de claramente atordoado pelo golpe da maça, ainda conseguiu desferir um
golpe com o machado, acertando o adversário no peitoral da armadura. O fato de os dois se
manterem nas respectivas selas parecia um autêntico milagre, mas isso acontecia
simplesmente porque os arções os apoiavam. Dos lados de ambos os cavalos escorria sangue,
mais visível na pelagem mais clara do lobuno. Ciri olhava para aquilo com horror. Em Kaer
Morhen ensinaram-na a lutar, porém ela não imaginava de que modo poderia enfrentar
brutamontes como aqueles dois ou aparar pelo menos um de tão possantes golpes.
Azul agarrou com as mãos a haste do machado cravado no peitoral da armadura de Elmo
Alado, curvou-se todo e fez um esforço para derrubar o oponente da sela. Elmo Alado
acertou-o com a maça, uma, duas, três vezes. Sangue jorrou da parte inferior do elmo,
esparramando-se sobre a brilhante armadura azul-celeste do cavaleiro e o pescoço do cavalo.
Elmo Alado esporeou o baio, fazendo com que o salto do cavalo desencravasse o machado de
sua armadura. Balançante na sela, Azul soltou a haste da arma. Elmo Alado passou a maça
para a mão direita e, com um golpe possante, fez a cabeça de Azul inclinar-se para frente até
se apoiar no pescoço do cavalo. Pegando as rédeas do lobuno com a mão livre, o
nilfgaardiano ficou batendo com a maça sem parar. A armadura azul-celeste ecoava como uma
panela de ferro e sangue jorrava de dentro do elmo amassado. Mais um golpe, e Azul caiu de
cabeça sob as patas do lobuno. O lobuno deu um salto para trás, mas o baio de Elmo Alado,
claramente treinado para isso, passou a pisotear o caído. Os desesperados gritos de dor de
Azul eram uma prova concreta de que ele ainda estava vivo. O cavalo continuou a pisoteá-lo
com tanto ímpeto que o ferido Elmo Alado não conseguiu manter-se mais na sela e desabou
por terra com grande estrondo.
– Os filhos da puta se mataram – constatou o Perseguidor que tomava conta de Ciri.
– Ao inferno com os senhores, distintos guerreiros – falou outro.
Os pajens do Azul ficaram olhando de longe para tudo. Um deles virou o cavalo.
– Pare, Remiz! – gritou Skomlik. – Aonde você pretende ir? Para Sarda? Está com pressa
de ser enforcado?
Os pajens pararam. Um deles olhou, protegendo os olhos do sol.
– É você mesmo que estou vendo, Skomlik?
– Sim! Pode se aproximar, Remiz. Não precisa ter medo! Brigas entre guerreiros não nos
dizem respeito!
Ciri estava farta da indiferença. Conseguiu desvencilhar-se agilmente do Perseguidor que
a segurava, saiu correndo, alcançou o lobuno do Azul e, de um pulo, subiu na sela com arção
elevado.
Não fosse o fato de os pajens de Sarda estarem montados em cavalos descansados, talvez
ela tivesse conseguido escapar. Alcançaram-na em pouco tempo, arrancando-lhe as rédeas das
mãos. Ciri saltou do cavalo e correu para a floresta, mas os cavaleiros a alcançaram de novo.
Um deles, sem diminuir o galope, agarrou-a pelos cabelos e arrastou-a atrás de si. Ciri deu um
grito de dor, segurando o braço dele com força. O cavaleiro atirou-a diretamente aos pés de
Skomlik. O açoite silvou. Ciri soltou um uivo, encolhendo-se toda e protegendo a cabeça com
as mãos. O açoite voltou a silvar e acertou-a nas mãos. Ciri rolou para um lado, mas Skomlik
correu até ela, deu-lhe um chute e, em seguida, calcou sua espinha dorsal com o salto da bota.
– Quer dizer que você queria escapar, sua cobra?
O açoite silvou. Ciri uivou. Skomlik tornou a chutá-la e açoitá-la.
– Não me bata! – gritou, encolhendo-se toda.
– Ah, quer dizer que você consegue falar, sua desgraçada? Soltou a linguinha? Já vou lhe
mostrar…
– Acalme-se, Skomlik! – vociferou um dos Perseguidores. – Quer matá-la? Ela é valiosa
demais para ser desperdiçada!
– Pelos deuses! – falou Remiz, descendo do cavalo. – Por acaso ela é a garota que
Nilfgaard procura há mais de uma semana?
– Ela mesma.
– Pois saiba que as guarnições de todas as praças estão a sua procura. Trata-se de uma
pessoa muito importante para Nilfgaard! Dizem que um mago poderoso vaticinou que ela
estaria por estas bandas. Era isso que se comentava em Sarda. Onde vocês a encontraram?
– Na Frigideira.
– Impossível!
– É possível, sim! – disse Skomlik em tom zangado, fazendo uma careta. – Ela está em
nosso poder e o prêmio é nosso. O que estão fazendo aí parados como pedras? Amarrem esse
passarinho e coloquem numa sela! Vamos embora daqui, rapazes! E rápido.
– Aquele cavaleiro sveersênio ainda deve estar vivo – comentou um dos Perseguidores.
– Pois não ficará por muito tempo. Caguei para ele! Vamos direto para Amarillo, rapazes.
Vamos procurar o prefeito, entregar a garota e recolher o prêmio.
– Para Amarillo? – perguntou Remiz, coçando a nuca e olhando para o campo da recente
refrega. – Se formos para lá, vamos nos defrontar com o machado do carrasco! O que você vai
dizer ao prefeito? Que os guerreiros estão mortos, e vocês, vivos? Quando toda a questão for
esclarecida, o prefeito vai mandar enforcar vocês e me despachar preso para Sarda… Aí, os
varnhaganos vão nos esfolar vivos. Se quiserem, podem ir para Amarillo, mas eu prefiro
sumir nas florestas…
– Você é meu cunhado, Remiz – falou Skomlik. – E, embora seja um filho de cão porque
vivia batendo em minha irmã, não deixa de ser um parente e, por isso, salvarei sua pele.
Vamos para Amarillo, conforme já disse. O prefeito sabe que os sveersênios e os varnhaganos
vivem brigando entre si. Encontraram-se e se derrotaram. Isso é algo muito comum entre eles.
O que poderíamos ter feito? Quanto à menina, e prestem muito atenção a minhas palavras,
diremos que a encontramos somente mais tarde. Nós, os Perseguidores. A partir deste
momento, você também é um Perseguidor, Remiz. O prefeito não tem a mínima ideia de
quantos éramos quando partimos com o cavaleiro sveersênio. E jamais conseguirá saber…
– Não se esqueceu de um detalhe, Skomlik? – indagou Remiz lentamente, olhando para o
segundo pajem de Sarda.
Skomlik virou-se devagar e, num gesto rápido como um raio, sacou uma faca, enfiando-a
com ímpeto na garganta do pajem. Este soltou um grunhido indistinto e desabou no chão.
– Eu jamais esqueço um detalhe – falou o Perseguidor friamente. – Agora, somos todos do
mesmo grupo. Não há testemunhas e, também, o número de cabeças para dividir o prêmio não
é excessivo. Montar, rapazes, e para Amarillo! Temos um longo caminho pela frente e não se
deve deixar o prêmio esperar por muito tempo!
Quando saíram do escuro e úmido faial, viram um vilarejo no sopé da montanha, uma
vintena de telhados de palha no interior de um círculo formado por uma paliçada em volta da
curva de um riozinho.
O vento trouxe cheiro de fumaça. Ciri mexeu os entorpecidos dedos das mãos atadas por
uma correia ao arção da sela. Na verdade, todo o seu corpo estava entorpecido, as nádegas
doíam horrivelmente e a bexiga cheia incomodava-a muito. Estava na sela desde a madrugada.
Não descansara durante a noite porque a obrigaram a dormir com as mãos amarradas aos
pulsos de dois Perseguidores, cada um deitado em um de seus lados. Toda vez que ela se
mexia, os Perseguidores reagiam com palavrões e ameaças de agressão.
– Um povoado – falou um deles.
– Estou vendo – respondeu Skomlik.
Cavalgaram montanha abaixo, com os cascos dos cavalos fazendo estalar a grama
ressecada pelo sol. Em pouco tempo, encontraram-se numa esburacada estrada que levava
diretamente para o vilarejo, na direção da pontezinha de madeira e do portão da paliçada.
Skomlik deteve o cavalo e ergueu-se nos estribos.
– Que raio de vilarejo é esse? Nunca andei por estas bandas. Remiz, você conhece esta
região?
– Antes – respondeu Remiz –, esse vilarejo era chamado de Riozinho Branco, mas, quando
começou a confusão, alguns dos moradores locais aderiram aos rebeldes. Aí, os varnhaganos
de Sarda atacaram o lugar, massacraram uma parte de seus habitantes e levaram a outra como
escravos. Agora, os únicos moradores daqui são todos nilfgaardianos; os novos colonos
mudaram o nome do vilarejo para Glyswen. Essa gente não presta e é perigosa. Não acho que
deveríamos parar aqui. Vamos seguir adiante.
– Precisamos dar um descanso aos cavalos – protestou um dos Perseguidores –, além de
alimentá-los. Fora isso, minhas tripas estão soando como se houvesse uma orquestra na
barriga. O que poderão nos fazer os tais colonos? Vamos mostrar-lhes as ordens do prefeito,
que é nilfgaardiano, assim como eles. Vocês vão ver como eles se desdobrarão em profundas
reverências.
– Pois sim – resmungou Skomlik. – Alguém já viu um nilfgaardiano curvar-se em
reverência? Remiz, existe uma taberna nesse tal Glyswen?
– Existe. Os varnhaganos não a incendiaram.
Skomlik virou-se na sela e olhou para Ciri.
– Vai ser preciso desamarrá-la – falou. – Há o risco de alguém reconhecê-la… Metam-na
num capote e ponham um capuz em sua cabeça… Ei! Aonde pensa que vai, menina?
– Preciso ir atrás dos arbustos.
– Já vou lhe mostrar uns arbustos! Acocore-se aqui, na estrada, e faça o que tem a fazer! E
não se esqueça de uma coisa: quando entrarmos no vilarejo, nem ouse abrir a boca. Não
banque a espertalhona! Basta você soltar um pio para eu cortar sua garganta. Se eu não
receber os florins por você, então ninguém os receberá.
Cavalgaram lentamente, com os cascos dos cavalos ressoando na pontezinha. No mesmo
instante emergiram detrás da paliçada alguns colonos armados de lanças.
– Estão guardando o portão – resmungou Remiz. – Gostaria de saber com que finalidade.
– Eu também – resmungou Skomlik, erguendo-se nos estribos. – Guardam o portão,
enquanto do lado do moinho a paliçada está tão destroçada que dá para passar com uma
carroça…
Chegaram mais perto e pararam os cavalos.
– Salve, boa gente! – exclamou Skomlik jovialmente, embora de maneira não muito
natural. – Bom-dia!
– Quem são vocês? – perguntou o mais alto dos colonos.
– Nós, compadre, somos soldados – mentiu Skomlik, esparramado na sela. – A serviço de
Sua Excelência o prefeito de Amarillo.
O colono passou lentamente a mão pela haste da lança e olhou desconfiado para Skomlik.
Certamente não estava lembrando em qual batizado o Perseguidor se tornara seu compadre.
– Fomos enviados para cá por Sua Excelência o prefeito – continuou mentindo Skomlik –
para nos certificar de como estão passando seus conterrâneos, a boa gente de Glyswen. Sua
Excelência envia seus cumprimentos e indaga se os colonos de Glyswen precisam de alguma
ajuda.
– Estamos dando um jeito – falou o colono. Ciri constatou que ele se expressava em língua
comum, parecida com a do Elmo Alado, com o mesmo sotaque, mas se esforçava para imitar o
jargão de Skomlik. – Já nos acostumamos a dar um jeito nós mesmos.
– O senhor prefeito vai ficar contente quando lhe repetirmos isso. A taberna está aberta?
Estamos com a garganta ressecada…
– Sim – respondeu o colono soturnamente. – Por enquanto está aberta.
– Por enquanto?
– Por enquanto. Porque nós vamos desmontá-la em breve. Os caibros e as tábuas vão ser
úteis na construção do celeiro. A taberna não nos traz benefício algum. Nós trabalhamos de sol
a sol e não a frequentamos, enquanto ela atrai somente pessoas de fora, pessoas que, em geral,
não nos agradam. Agora mesmo, alguns desses tipos estão lá dentro.
– Quem? – perguntou Remiz, empalidecendo. – Não seriam, por acaso, homens do forte de
Sarda? Os nobres senhores varnhaganos?
O colono fez uma careta de desagrado e mexeu com os lábios como se fosse cuspir.
– Não, infelizmente. É uma milícia dos barões nissírios.
– Nissírios? – indagou Skomlik. – De onde? Quem os comanda?
– Um tipo alto, escuro e com bigodes de bagre.
– Ei! – Skomlik virou-se para seus companheiros. – Estamos com sorte. Somente uma
pessoa se encaixa nessa descrição, não é verdade? Só pode ser nosso grande camarada Vercta
“Creia-me”, estão lembrados dele? E o que os nissírios estão fazendo aqui, compadre?
– Os distintos cavalheiros nissírios – explicou o colono sombriamente – estão a caminho
de Tyffa. Honraram-nos com sua presença. Estão levando um prisioneiro. Um membro do
bando dos Ratos que eles conseguiram agarrar.
– Não diga… – riu Remiz. – E não conseguiram agarrar também o imperador de
Nilfgaard?
O colono franziu o cenho e apertou as mãos na haste da lança. Seus companheiros
murmuraram algo entre si.
– Vão à taberna, senhores soldados – falou, contraindo os músculos da mandíbula. – E
conversem com seus amigos, os cavalheiros nissírios. Pelo que vocês nos disseram, estão a
serviço do prefeito. Portanto, indaguem a eles por que estão levando o bandido para Tyffa, em
vez de empalá-lo imediatamente aqui, conforme a determinação do próprio prefeito. E
lembrem a seus amigos que quem manda aqui é ele, e não o barão de Tyffa. Nós já estamos
prontos: temos uma parelha de bois arreada e uma estaca com ponta já afiada. Se os
cavalheiros nissírios não quiserem, nós podemos fazer esse serviço por eles. Digam-lhes isso.
– Pode deixar que vamos dizer – afirmou Skomlik, olhando de soslaio para seus
camaradas. – Passem bem, boa gente.
Os Perseguidores partiram por entre as choupanas. O vilarejo parecia morto; não se via
vivalma. Um porco magro cavava debaixo de uma das cercas, e alguns patos imundos
chafurdavam na lama. Um grande gato preto passou correndo diante deles.
– Que merda! – exclamou Remiz, inclinando-se na sela, cuspindo e juntando os dedos num
sinal contra azar. – O filho da puta atravessou nosso caminho!
– Tomara que engasgue com um rato!
– O que foi? – perguntou Skomlik, virando-se na sela.
– Um gato. Negro como piche. O desgraçado atravessou a estrada.
– Que se dane! – Skomlik olhou em volta. – Vejam como está tudo vazio. Mas eu consegui
enxergar gente atrás das cortinas. Os colonos estão atentos em suas choupanas. E atrás daquela
porta vi o brilho da ponta de uma lança.
– Estão zelando por suas mulheres – riu aquele que desejara ao gato que engasgasse com
um rato. – Há nissírios no vilarejo. Vocês não ouviram como se referia a eles aquele tipo lá no
portão? Está mais do que claro que eles não nutrem simpatia alguma por nissírios.
– O que não é de estranhar. “Creia-me” e seus companheiros não podem ver uma saia.
Aqueles nobres senhores nissírios ainda pagarão caro por suas atitudes. Os barões chamam-
nos de “vigilantes da ordem” e pagam-lhes para que mantenham a ordem e zelem pelas
estradas. Só que, se você gritar “Um nissírio!” no ouvido de um desses camponeses, ele logo
vai se cagar de medo. Mas não sempre. Basta eles afanarem um bezerro a mais ou violarem
mais uma mulher para que esses colonos peguem seus forcados e deem cabo deles num piscar
de olhos. Vocês viram a cara dos que estavam vigiando o portão? São colonos nilfgaardianos,
e eles não são de brincadeira… Eis a taberna…
Apressaram os cavalos.
A taberna tinha um telhado levemente caído, coberto de musgo. Ficava a certa distância
das choupanas e das demais construções do vilarejo, mas estava posicionada no centro de
todo o terreno cercado pela decadente paliçada, lugar no qual se cruzavam as duas estradas
que atravessavam o vilarejo. À sombra da única árvore de grande porte da região ficava um
curral com um espaço reservado para gado, e outro, para cavalos. Neste último havia cinco ou
seis cavalos desencilhados.
Nos degraus da escada diante da porta da taberna estavam sentados dois tipos com casaco
de couro e gorro de pele pontudo. Cada um deles segurava um caneco de cerveja e uma bacia
cheia de ossos roídos.
– Quem são vocês? – gritou um dos sujeitos ao ver Skomlik e seus companheiros
desmontarem. – O que estão procurando? Sumam daqui! A taberna está ocupada em nome da
lei!
– Não grite, nissírio, não grite – falou Skomlik, tirando Ciri da sela. – E abra logo a porta,
porque queremos entrar. Seu comandante, Vercta, é um amigo nosso.
– Eu não os conheço!
– Porque você é um pé-rapado! Eu e “Creia-me” servimos juntos no passado, ainda antes
de Nilfgaard se instalar aqui.
– Bem, se é assim… – hesitou o tipo, largando a empunhadura da espada – podem entrar.
Para mim, tanto faz…
Skomlik deu um empurrão em Ciri; outro Perseguidor agarrou-a pela gola. Adentraram a
taberna.
No interior reinava a penumbra e o ar estava abafado, cheirando a fumaça e carne assada.
A taberna estava quase vazia, com apenas uma das mesas ocupada, parcamente iluminada pela
luz que entrava por uma pequena janela feita de bexigas de peixe. Um grupo de homens estava
sentado a sua volta, enquanto mais ao fundo, junto do forno, movia-se o taberneiro, fazendo
barulho com as panelas.
– Saudações, nobres nissírios – bradou Skomlik.
– Nós não trocamos saudações com qualquer um – rosnou, cuspindo no chão, um dos
homens sentados perto da janelinha.
Um de seus companheiros deteve-o com um gesto.
– Calma – falou. – É gente nossa; você não os reconhece? É Skomlik e seus Perseguidores.
Salvem, salvem!
Skomlik sorriu e começou a se dirigir à mesa, mas parou ao notar seus companheiros com
os olhos fixos num poste que sustentava o teto da taberna. Junto do poste, sentado num
tamborete, encontrava-se um rapazola louro, numa postura estranha, esticado e contorcido.
Ciri percebeu que aquela estranha posição provinha do fato de os braços do rapaz estarem
virados para trás e atados, enquanto seu pescoço estava preso ao poste por uma tira de couro.
– Ora, vejam só – suspirou com força o Perseguidor que segurava Ciri pela gola. – Olhe
só, Skomlik! É Kayleigh!
– Kayleigh? – Skomlik virou a cabeça. – O Rato Kayleigh? Não pode ser!
Um dos nissírios sentados à mesa, um gordão com os cabelos cortados num pitoresco
topete, soltou uma gargalhada.
– Pois saiba que pode – disse, lambendo a colher. – É Kayleigh em sua própria odienta
pessoa. Valeu a pena acordarmos cedinho. Certamente vamos receber por ele pelo menos
trinta florins em boa moeda imperial.
– Vocês capturaram Kayleigh… – Skomlik franziu o cenho. – Quer dizer que aquele pateta
nilfgaardiano lá no portão falava a verdade…
– Trinta florins… – suspirou Remiz. – É uma boa grana… Quem vai pagar, o barão Lutz de
Tyffa?
– Sim – confirmou outro nissírio, de cabelos e bigode negros. – O distinto barão Lutz de
Tyffa, nosso amo e benfeitor. Os Ratos saquearam um de seus administradores na estrada, e o
barão ficou furioso, fixando um prêmio pela captura deles. E seremos nós, Skomlik, que
receberemos esse prêmio, creiam-me. Ah! Olhem só, rapazes, para a cara dele! Não lhe
apetece a ideia de sermos nós, e não ele, que pegamos o Rato, muito embora o prefeito tenha
lhe ordenado perseguir o bando.
– O Perseguidor Skomlik – falou o gordão de topete, apontando para Ciri com a colher –
também conseguiu capturar algo. Está vendo, Vercta? Uma garotinha.
– Estou vendo – sorriu o de cabelos negros. – O que está havendo com você, Skomlik?
Empobreceu tanto que agora se dedica a raptar crianças para exigir resgate? Quem é essa
fedelha?
– Não lhe interessa!
– Por que está tão agressivo? – riu o de topete. – Nós apenas queríamos nos certificar de
que ela não é sua filha.
– Filha dele? – também riu Vercta, o de bigode negro. – Que nada! Para gerar filhos é
preciso ter colhões.
Os nissírios soltaram uma sonora gargalhada.
– Podem rir à vontade, suas bestas! – gritou Skomlik, enchendo-se de empáfia. – Quanto a
você, Vercta, apenas lhe direi que, antes que se passe o domingo, você vai se espantar quando
descobrir de quem se falará mais: de vocês e seu Rato ou de mim, pelo que consegui. E aí
vamos ver quem será mais generoso: seu barão ou o prefeito imperial de Amarillo!
– Pode enfiar no cu seu prefeito, com seu imperador e todo Nilfgaard – anunciou Vercta
com desprezo, voltando a sua sopa. – E não precisa ficar enfunado. Sei que Nilfgaard há mais
de uma semana tem procurado uma garota a ponto de a poeira se levantar em todas as estradas.
Sei, também, que prometeu um prêmio pela captura dela. Mas isso não me interessa merda
alguma. Não pretendo mais bajular o prefeito e os nilfgaardianos, e cago solenemente para
eles. Agora, estou a serviço do barão Lutz; só respondo a ele, a ninguém mais.
– Seu barão – grasnou Skomlik – beija as mãos e lambe as botas nilfgaardianas em seu
lugar. Como você não precisa fazer isso, pode se dar ao luxo de falar grosso.
– Não fique zangado – disse o nissírio em tom conciliador. – Não estava falando de você,
creia-me. Estou até contente por você ter encontrado a garota procurada por Nilfgaard; com
isso, quem vai receber o prêmio será você, e não aqueles nilfgaardianos de merda. E, quanto
ao fato de você estar a serviço do prefeito, ninguém escolhe seus senhores; são eles que
escolhem seus servos, não é assim? Vamos, acalme-se e sente conosco; vamos festejar nosso
encontro bebendo juntos.
– E por que não? – concordou Skomlik. – Mas antes me deem uma correia. Vou amarrar a
garota no poste, assim como vocês fizeram com seu Rato. Está bem?
Os nissírios soltaram uma gargalhada.
– Olhem só para ele, o terror das fronteiras! – riu o gordão de topete. – O braço armado de
Nilfgaard! Prenda-a, Skomlik, mas com uma corrente de ferro, porque essa sua presa perigosa
poderá arrebentar as correias e ainda esmurrar sua cara antes de fugir. Ela tem uma aparência
tão assustadora que chega a dar arrepios de medo.
Até os companheiros de Skomlik deram uma risadinha abafada. O Perseguidor enrubesceu
e aproximou-se da mesa.
– É só para ter certeza de que ela não vai fugir…
– Não encha o saco – interrompeu-o Vercta, partindo um pão. – Se quiser bater um papo,
sente-se e pague uma rodada de bebida, como é de praxe. Quanto à garota, se você tiver
vontade, pode pendurá-la no teto de cabeça para baixo. Estou tão interessado nela quanto em
esterco suíno. Só que isso é muito engraçado, Skomlik. Ela pode até ser uma prisioneira
importante para você e para seu prefeito, mas para mim não passa de uma pobre e apavorada
garotinha. Você quer amarrá-la? Creia-me, ela mal se aguenta de pé, quanto mais pensa em
escapar. O que você teme?
– Já vou lhes dizer o que temo – respondeu Skomlik, adotando ar sério. – Isto aqui é um
povoado nilfgaardiano. Os colonos não nos deram as boas-vindas com pão e sal e disseram
que já têm uma estaca afiada para o Rato de vocês. E a lei está do lado deles, porque o
prefeito emitiu um decreto para cada bandido ser executado no lugar em que for pego. Se não
lhes entregarem o prisioneiro, eles serão capazes de afiar algumas estacas para vocês também.
– Grandes coisas – falou o gordão de topete. – Os vagabundos que tentem assustar gralhas,
porque, caso se metam conosco, poderá correr sangue.
– E nós não lhes entregaremos o Rato – acrescentou Vercta. – Ele é nosso e seguirá
conosco até Tyffa. O barão Lutz vai se acertar com o prefeito. Mas vamos deixar de falar
bobagens. Sentem-se.
Os Perseguidores ajeitaram os cinturões com espadas e, de bom grado, sentaram-se à mesa
dos nissírios, gritando para o taberneiro e apontando para Skomlik como aquele que pagaria a
rodada de cerveja. Skomlik chutou um tamborete para junto do poste, agarrou Ciri pelo braço
e puxou-a com tanta força que ela caiu, batendo com o ombro nos joelhos do rapaz amarrado à
haste de madeira.
– Sente-se aqui – rosnou. – E nem pense em se mexer, senão vou chicoteá-la como a uma
cadela.
– Seu piolhento – rosnou o garoto, com os olhos semicerrados. – Seu cão…
Ciri não conhecia o significado da maioria das palavras que saíram dos contorcidos lábios
sinistros do rapaz, mas, a julgar pelas transformações que ocorriam no rosto de Skomlik,
chegou à conclusão de que eram palavras extremamente ofensivas e obscenas. O Perseguidor
empalideceu de raiva, desferiu um forte tapa no rosto do prisioneiro, agarrou seus cabelos
louros e começou a bater sua cabeça contra o poste.
– Ei! – exclamou Vercta, erguendo-se da mesa. – O que está se passando aí?
– Vou quebrar os dentes deste Rato sarnento – gritou Skomlik. – Vou arrancar as pernas de
sua bunda! Ambas!
– Junte-se a nós e pare de gritar – disse o nissírio, sorvendo de um trago um caneco de
cerveja e limpando o bigode. – Pode fazer o que quiser com sua prisioneira, mas mantenha-se
longe do nosso. Quanto a você, Kayleigh, não se meta a besta. Fique sentadinho e comece a
pensar no cadafalso que o barão Lutz já mandou construir na vila. A lista das coisas que o
malvado vai lhe fazer já está pronta e, creia-me, ela tem mais de três braças de comprimento.
Metade da vila está fazendo apostas para ver a que ponto você aguentará. Portanto, poupe suas
forças, Rato. Eu mesmo vou apostar alguns trocados e espero que você não me desaponte e
resista pelo menos até a castração.
Kayleigh cuspiu, virando a cabeça até onde lhe permitia a correia presa ao pescoço.
Skomlik ajeitou seu cinturão, lançou um olhar ameaçador para Ciri, encolhida sobre o
tamborete, e juntou-se a seus companheiros, praguejando ao notar que no cântaro trazido pelo
taberneiro restavam apenas vestígios de espuma.
– Como vocês conseguiram pegar Kayleigh? – perguntou, sinalizando ao taberneiro sua
intenção de pagar mais uma rodada. – E vivo, ainda por cima? Porque não vou acreditar que
vocês mataram os demais Ratos.
– Na verdade – respondeu Vercta, olhando criticamente para aquilo que acabara de retirar
de uma de suas narinas –, tenho de admitir que tivemos sorte. Ele se separou do bando e foi
para Nova Forja a fim de passar a noite com uma garota. O alcaide sabia que estávamos por
perto e nos avisou. Chegamos antes do raiar do sol e pegamos o desgraçado ainda deitado no
feno. Não esboçou resistência alguma.
– Quanto a sua garota, ficamos nos divertindo por bastante tempo – riu o gordão de topete.
– Se a noite com Kayleigh não a satisfez, ela não tem do que se queixar. Nós a satisfizemos
tanto que a deixamos incapaz de se mover por um bom tempo!
– Pois então eu lhes digo que vocês não passam de um bando de idiotas – declarou
Skomlik. – Deixaram de ganhar um montão de dinheiro, seus bobos. Em vez de perderem
tempo com a garota, vocês deviam ter aquecido um ferro e arrancado do Rato a informação do
local onde estava o resto do bando. Vocês poderiam ter pego todos: Giselher e Reef… Apenas
por Giselher, os varnhaganos de Sarda ofereciam um prêmio de vinte florins um ano atrás. Já
por aquela putinha, como é mesmo o nome dela… acho que é Mistel… Por ela, o prefeito teria
dado muito mais, depois do que ela fez com o sobrinho dele em Druigh, quando os Ratos
assaltaram o comboio.
– Ou você, Skomlik – Vercta franziu o cenho –, é burro de nascença, ou então a vida difícil
comeu todo o seu cérebro. Nós somos seis. Acha que deveríamos nos lançar contra uma ratada
toda? Quanto aos prêmios adicionais, vamos recebê-los mais tarde. Quando Kayleigh estiver
na masmorra, o barão Lutz vai mandar aquecer as solas de seus pés pelo tempo que for
necessário, creia-me. Kayleigh vai cantar tudo direitinho: onde eles podem estar, onde ficam
seus esconderijos; aí, poderemos atacá-los em grande número, cercá-los e pegá-los um a um,
como caranguejos de um saco.
– Pois sim. E você acha que eles vão ficar esperando? Assim que souberem que vocês
pegaram Kayleigh, abandonarão seus esconderijos habituais e procurarão outros. Não, Vercta,
é preciso enfrentar a dura realidade. Vocês fizeram merda. Trocaram o prêmio por uma xoxota.
Vocês são assim mesmo e são conhecidos por isso… Vocês só pensam em xoxotas.
– Xoxota é você! – vociferou Vercta, erguendo-se da mesa. – Se está com tanta pressa, por
que não sai, com seus heróis, à procura dos Ratos? Mas tenha em mente, seu servo
nilfgaardiano, que sair à procura dos Ratos não é o mesmo que pegar meninas indefesas!
Os nissírios e os Perseguidores começaram a gritar desaforos entre si. O taberneiro
apressou-se em servir mais cerveja, arrancando o cântaro vazio das mãos do gordão de topete,
antes que ele o quebrasse na cabeça de Skomlik. A nova rodada de cerveja rapidamente
encerrou a discussão, acalmou os ânimos e baixou a temperatura ambiente.
– Traga comida! – gritou o gordão para o taberneiro. – Ovos mexidos com salsicha, feijão,
pão e queijo.
– E mais cerveja!
– Por que você está tão espantado, Skomlik? Hoje, estamos cheios de grana! Tiramos o
cavalo, a bolsa, as joias, a sela, o xairel, a espada e o casaco de Kayleigh e vendemos tudo
para anões.
– Vendemos também os sapatinhos vermelhos de sua garota, bem como seu colar!
– Que beleza! Então podemos beber à vontade. Estou muito contente!
– Está contente por quê? Nós temos com que pagar a bebida; você não. O máximo que
você conseguirá por sua prisioneira é um pouco de meleca, se tanto! O prêmio corresponde à
importância do prisioneiro. Ha, ha, ha!
– Seus filhos de uma cadela!
– Ha, ha! Sente-se. Eu estava brincando. Não precisa ficar ofendido.
– Bebamos à concórdia! Nós convidamos!
– Onde estão os ovos mexidos, taberneiro? Apresse-se!
– E traga mais cerveja!
Ciri, toda encolhida sobre o tamborete, ergueu a cabeça e viu fixos nela os furiosos olhos
verdes de Kayleigh sob a desgrenhada cabeleira loura. Sentiu um arrepio percorrer-lhe o
corpo. O rosto de Kayleigh, embora não de todo feio, era mau, decididamente mau. Ciri se deu
conta imediatamente de que aquele rapaz, pouco mais velho do que ela, seria capaz de
qualquer coisa.
– Devem ter sido os deuses que enviaram você – sussurrou o Rato, varando-a com seu
olhar esverdeado. – Embora eu não acredite neles, só podem ter sido eles que a enviaram.
Não olhe em volta, pequena idiota. Você precisa me ajudar… Portanto, aguce os ouvidos e
ouça…
Ciri encolheu-se ainda mais e abaixou a cabeça.
– Escute – continuou Kayleigh, mostrando os dentes como se fosse um rato de verdade. –
Daqui a um momento, quando o taberneiro passar por aqui, você vai chamá-lo… Escute, com
todos os diabos…
– Não – disse Ciri, também com voz baixa. – Eles vão me surrar.
Os lábios de Kayleigh se contorceram, e Ciri compreendeu de imediato que ser surrada
por Skomlik não seria a pior coisa que poderia lhe acontecer. Embora Skomlik fosse enorme,
e Kayleigh magrinho, além de estar todo amarrado, seu instinto lhe dizia a quem deveria temer
mais.
– Se você me ajudar – voltou a sussurrar o Rato –, eu ajudarei você. Não estou sozinho.
Tenho companheiros que são daqueles que não costumam abandonar uns aos outros em casos
de apuros… Entendeu? Mas, quando eles vierem em minha ajuda e a pancadaria começar, eu
não poderei ficar preso a este poste, porque esses filhos da puta me farão em pedacinhos…
Preste atenção, com os diabos. Vou lhe dizer o que deverá fazer…
Ciri abaixou a cabeça ainda mais. Seus lábios tremiam.
Os Perseguidores e os nissírios devoravam ovos mexidos, fazendo grande barulho com os
lábios. O taberneiro mexeu no caldeirão e levou à mesa outro cântaro de cerveja, assim como
um pão de centeio.
– Estou com fome – piou Ciri obedientemente.
O taberneiro parou, olhou para ela de maneira amigável e lançou um olhar para os
comensais.
– Posso dar algo a comer para ela, senhores?
– Fora! – urrou Skomlik, enrubescendo e cuspindo ovos mexidos. – Afaste-se dela, seu
cozinheiro de merda, senão lhe quebro as pernas! É proibido! Quanto a você, sua moleca,
fique quieta, senão…
– Calma, Skomlik, você endoidou de vez? – intrometeu-se Vercta, engolindo com
dificuldade um naco de pão com cebola. – Olhem só para ele, rapazes, um sovina
irrecuperável. Ele come à custa dos outros e nega comida à garota. Dê-lhe uma tigela,
taberneiro. Sou eu que estou pagando e sou eu que digo a quem dar comida ou não. E a quem
isso não agradar pode logo levar um chute no cu.
Skomlik enrubesceu ainda mais, mas manteve-se calado.
– Lembrei-me de mais uma coisa – acrescentou Vercta. – Devemos alimentar o Rato para
que não morra pelo caminho, porque aí o barão nos esfolaria vivos, creia-me. A garota vai lhe
dar de comer. Ei, taberneiro! Arrume alguma comida para aqueles dois! O que você está
murmurando aí, Skomlik? Alguma coisa o incomoda?
– É preciso tomar muito cuidado com ela – falou o Perseguidor, apontando para Ciri com
um movimento de cabeça –, porque é um passarinho muito estranho. Se ela fosse uma garota
normal, Nilfgaard não estaria tão interessado nela, nem o prefeito teria prometido um prêmio a
quem a encontrasse…
– Se ela é normal ou anormal – riu o gordão de topete –, poderá logo ser verificado; basta
olhar entre suas pernas! O que vocês acham dessa ideia, rapazes? Vamos levá-la para o
celeiro por alguns instantes?
– Nem ouse tocar nela! – rosnou Skomlik. – Não vou permitir!
– E quem lhe disse que nós vamos pedir sua permissão?
– Meu prêmio e minha cabeça dependem de eu entregá-la inteirinha! O prefeito de
Amarillo…
– Nós cagamos para seu prefeito. Você ficou bebendo a nossa custa e, agora, nos nega uma
trepada com a garota? Ei, Skomlik, não seja tão pão-duro! Nem sua cabeça vai cair, nem o
prêmio deixará de lhe ser dado! Você vai entregá-la inteirinha! Uma garota não é uma bexiga
de peixe para estourar quando for forçada!
Os nissírios explodiram numa gargalhada, no que foram acompanhados pelos
companheiros de Skomlik. Ciri sentiu um tremor percorrer-lhe o corpo, empalideceu e ergueu
a cabeça. Kayleigh sorriu de maneira sarcástica.
– Entendeu agora? – sussurrou por entre os lábios sorridentes. – Quando eles se
embebedarem, vão se ocupar de você. Vão maltratá-la. Estamos metidos no mesmo saco. Faça
o que lhe disse. Se der certo para mim, também dará para você…
– A comida está pronta! – gritou o taberneiro. Seu sotaque não era nilfgaardiano. – Pode
achegar-se, senhorita!
– Uma faca – sussurrou Ciri, pegando a tigela.
– Como?
– Uma faca. Rápido.
– Se acha que não é suficiente, então tome mais um pouco! – gritou de modo pouco natural
o taberneiro, olhando de soslaio para os comensais e adicionando mais cevada na tigela. –
Afaste-se, por favor.
– Uma faca.
– Afaste-se, senão vou chamá-los… Não posso… Eles vão incendiar a taberna.
– Uma faca.
– Não. Tenho pena de você, filhinha, mas não posso… Desista dessa ideia. Afaste-se…
– Ninguém sairá vivo desta taberna – Ciri recitou tremulamente as palavras de Kayleigh. –
Uma faca. Rápido. E, quando tudo começar, fuja o mais rápido que puder.
– Segure direito essa tigela, sua desastrada! – gritou o taberneiro, virando-se para
encobrir Ciri. Estava pálido e batia os dentes. – Chegue mais perto do caldeirão!
Ciri sentiu o frio toque da faca de cozinha que ele lhe enfiara por trás do cinto, cobrindo a
empunhadura com a aba da blusa.
– Muito bem – sibilou Kayleigh. – Sente-se agora de tal modo que eles não possam me
ver. Coloque a tigela sobre meus joelhos. Pegue a colher com a mão esquerda e a faca com a
direita e corte a correia. Não aqui, sua idiota. No poste, junto do meu cotovelo. Cuidado,
porque eles estão olhando.
Ciri sentiu a garganta seca. Abaixou a cabeça até quase encostá-la na tigela.
– Alimente-me, e coma você também. – Os olhos verdes estavam fixos nos dela,
hipnotizando-a. – E vá cortando. Com coragem, pequena. Se der certo para mim, também dará
certo para você…
“É verdade”, pensou Ciri, cortando a correia. A faca fedia a cebola e a lâmina estava
embotada de tanto ter sido usada. “Ele tem razão. Eu lá sei aonde estão me levando aqueles
patifes? Ou tenho a mínima ideia do que quer de mim o prefeito nilfgaardiano? Talvez também
a mim aguarde um verdugo no tal Amarillo, talvez me aguardem a roda, a broca, as tenazes,
ferros em brasa… Não vou me deixar levar como uma ovelha para o matadouro. É melhor
arriscar…”
Ouviu-se um estrondo, e a janela, com seu caixilho e um toro de madeira atirado de fora,
aterrissou no tampo da mesa, espalhando tigelas e canecos. Logo atrás do toro, saltou sobre a
mesa uma loura de cabelos cortados rente, vestida com um casaquinho vermelho e brilhantes
botas de cano alto que chegavam até acima dos joelhos. Ajoelhada sobre a mesa, a loura girou
sua espada. Um dos nissírios, que não teve tempo para erguer-se e se afastar, caiu para trás
com o banco, esguichando sangue da garganta destroçada. A jovem rolou agilmente do tampo
da mesa para dar lugar a um rapaz de colete bordado curto pulando pela janela.
– Raaaatoooossss!! – berrou Vercta, esforçando-se para desembainhar a espada enroscada
no cinturão.
O gordão de topete sacou a sua, pulou na direção da jovem ajoelhada no piso e desferiu
um golpe, mas a jovem, embora ainda de joelhos, aparou o golpe e rolou para o lado, enquanto
o rapaz de colete que pulara atrás dela acertava o nissírio na têmpora. O gordão caiu no chão,
amolecendo rapidamente como um entortado colchão de palha.
A porta da taberna foi aberta com um possante pontapé, e a sala foi invadida por mais dois
Ratos. O primeiro, alto e de tez escura, metido num gibão adornado com botões metálicos e
com a testa envolta por uma tira de pano escarlate, derrubou dois Perseguidores com dois
rápidos golpes de espada e atracou-se com Vercta. O segundo, de ombros largos e cabelos
louros, acabou de um só golpe com Remiz, o cunhado de Skomlik. Os demais nissírios e
Perseguidores puseram-se em fuga, dirigindo-se para a porta da cozinha. Entretanto, os Ratos
também adentravam por aquela passagem, começando por uma morena vestida com um traje
colorido como num conto de fadas. Com uma rápida estocada, ela atravessou um dos
Perseguidores e, girando a espada como as pás de um moinho, derrubou outro, matando logo
em seguida o taberneiro, antes de o coitado ter tido tempo de gritar quem era.
A sala foi preenchida por gritos e sons de espadas se chocando. Ciri escondeu-se atrás do
poste.
– Mistle! – Kayleigh, com os braços livres, tentava desesperadamente arrancar a correia
que prendia seu pescoço ao poste. – Giselher! Reef! Estou aqui!
No entanto, os Ratos estavam por demais envolvidos na luta, e o único a ouvir o grito de
Kayleigh foi Skomlik. O Perseguidor virou-se e se preparou para dar uma estocada, pregando
o Rato ao poste. Ciri reagiu rápido e instintivamente, assim como naquela luta com a serpe em
Gors Velen ou como em Thanedd. Todos os movimentos aprendidos em Kaer Morhen
executaram-se por si sós, quase sem sua participação. Pulou detrás do poste, deu uma pirueta
e caiu sobre Skomlik, acertando-o com o quadril. Era muito pequena e frágil para derrubar o
enorme Perseguidor, mas conseguiu interromper o ritmo de seu golpe… e chamar a atenção de
Skomlik para sua pessoa.
– Sua rameira!
Skomlik desferiu um golpe, fazendo a espada zunir no ar. O corpo de Ciri novamente
executou por si só o desvio necessário, e o Perseguidor quase se estatelou no chão. Soltando
uma série de palavrões, ele voltou a atacar, aplicando ao golpe o máximo de força possível.
Ciri desviou-se agilmente, apoiando-se na perna esquerda e girando numa pirueta no sentido
contrário. Skomlik tentou golpeá-la mais uma vez, mas de novo não conseguiu atingi-la.
De repente, desabou entre eles o corpo de Vercta, esguichando jatos de sangue sobre os
dois. O Perseguidor deu um passo para trás e olhou em volta. Estava cercado somente por
cadáveres, e os Ratos estavam se aproximando com as espadas desembainhadas.
– Parem – falou friamente o moreno com tira de pano escarlate na testa, enquanto liberava
Kayleigh do poste. – Tudo parece indicar que esse sujeito deseja muitíssimo acabar com a
garota. Não sei por qual motivo, assim como não consigo compreender por qual milagre ele
não o conseguiu até agora. Mas, já que ele faz tanta questão disso, vamos lhe dar mais uma
chance.
– Devemos dar a ela também alguma chance, Giselher – disse o de ombros largos. – Que
seja uma luta justa. Faísca, dê-lhe um ferro.
Ciri sentiu na mão a empunhadura de uma espada. Um tanto pesada demais.
Skomlik bufou com fúria e atirou-se sobre ela, girando a espada como as pás de um
moinho. Mas era lento demais. Ciri conseguia desviar-se com rápidos movimentos do tronco,
giros e meios giros, até sem tentar aparar a saraivada de golpes nela desferidos. Sua espada
servia-lhe apenas de contrapeso facilitador dos desvios.
– Inacreditável! – riu a Rata de cabelos curtos. – Ela é uma acrobata!
– Além de ser muito rápida – acrescentou a de traje colorido, que lhe entregara a espada.
– Rápida como uma elfa. Ei, você, gordão! Não prefere enfrentar um de nós? Com ela, você
não consegue!
Skomlik recuou, olhou em volta e, repentinamente, pulou para frente, desferindo uma
estocada com a ponta da espada, parecendo uma garça com bico esticado. Ciri evitou a
estocada com um rápido desvio e girou sobre os calcanhares. Por um segundo viu a veia
inchada no pescoço de Skomlik. Sabia que, naquela posição, ele não tinha como evitar nem
aparar um golpe. Sabia como e onde desferir o golpe mortal.
Mas não o desferiu.
– Já chega. – Ciri sentiu alguém lhe tocar no ombro. A jovem de vestido colorido a
empurrou, enquanto dois outros Ratos, o de colete bordado e a de cabelos curtos, faziam
Skomlik recuar até um canto da sala sob uma saraivada de golpes de espadas. – Chega de
brincadeiras – repetiu a jovem, encarando Ciri. – Isso está demorado demais. E é por culpa
sua, garota. Você pode matar e não mata. Algo me diz que não vai viver por muito tempo.
Ao olhar para ela, Ciri sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. A Rata tinha enormes
olhos amendoados e dentes arreganhados num sorriso, dentes tão pequeninos que o sorriso
tinha um aspecto fantasmagórico. A jovem era uma elfa.
– Está na hora de fugir – falou Giselher secamente, o de tira vermelha na testa, que sem
dúvida era o líder do grupo. – Isso está realmente durando demais! Mistle, acabe com o
desgraçado.
– Piedade! – gritou Skomlik, caindo de joelhos. – Poupem-me! Tenho filhinhos… bem
pequeninos…
A jovem desferiu um cortante golpe lateral, girando o torso na altura dos quadris. Um jato
de sangue salpicou a caiada parede da taberna, deixando nela centenas de pontinhos cor de
carmim.
– Odeio crianças pequeninas – falou a de cabelos curtos, limpando com os dedos o sangue
da lâmina.
– Não fique aí parada, Mistle – apressou-a o de tira escarlate na testa. – Aos cavalos!
Precisamos fugir! Estamos num povoado nilfgaardiano e não temos amigos por aqui!
Os Ratos saíram correndo da taberna. Ciri não sabia o que fazer, mas não teve tempo para
refletir. Mistle, a jovem de cabelos curtos, empurrou-a na direção da porta.
Diante da taberna, entre cacos de canecos e de ossos roídos, jaziam os corpos dos
nissírios que tomavam conta da entrada. Do lado do vilarejo vinham correndo colonos
armados de lanças, mas, ao verem os Ratos no pátio, imediatamente sumiram no meio das
choupanas.
– Sabe montar? – gritou Mistle para Ciri.
– Sim…
– Então pule num desses cavalos! Há um prêmio por nossas cabeças e estamos numa
aldeia nilfgaardiana! Todos já estão pegando em arcos e lanças! A pleno galope atrás de
Giselher! Pelo meio da ruazinha! Mantenha-se longe das choupanas!
Ciri voou sobre uma barreira baixa, agarrou as rédeas de um dos cavalos dos
Perseguidores, pulou na sela e bateu nas ancas do animal com a parte chata da lâmina da
espada, que não soltara da mão. Partiu a pleno galope, ultrapassando Kayleigh e a colorida
elfa, a quem chamavam de Faísca. Galopou atrás dos Ratos na direção do moinho. De repente,
viu emergir detrás da pilha de carvão junto de uma das choupanas um homem mirando uma
besta nas costas de Giselher.
– Mate-o – ouviu um grito a suas costas. – Mate-o, garota!
Ciri inclinou-se na sela e, com um violento puxão das rédeas e uma forte cutucada com os
calcanhares, forçou o cavalo a mudar de direção. O homem com a besta virou-se no último
momento, e Ciri viu seu rosto contorcido de horror. Ergueu o braço com a espada para
desferir um golpe, mas hesitou por uma fração de segundo. Ouviu o som da corda se soltando,
e seu cavalo relinchou agudamente e empinou. Ciri saltou, livrando os pés dos estribos e
pousando suavemente com as pernas arqueadas. Faísca, que vinha logo atrás, inclinou-se na
sela e acertou o colono da besta direto no peito. O colono caiu de joelhos, inclinou-se para
frente e caiu de cara numa poça, espirrando lama por todos os lados. O cavalo ferido
relinchava e dava coices no ar, fugindo finalmente no meio das choupanas.
– Sua idiota! – gritou a elfa, passando a galope por Ciri. – Sua idiota de merda!
– Pule! – gritou Kayleigh, galopando para junto de Ciri, que agarrou a mão estendida. A
velocidade fez com que alçasse voo; a articulação do ombro estalou, mas ela conseguiu saltar
no cavalo, abraçando as costas do Rato louro. Partiram a galope, ultrapassando Faísca. A elfa
deu meia-volta para perseguir um colono que abandonara sua arma e fugia na direção do
celeiro. Faísca não teve dificuldade em alcançá-lo. Ciri virou a cabeça a tempo de ouvir o
curto e selvagem grito do colono golpeado.
Foram alcançados por Mistle, que galopava junto de um cavalo reserva com sela e tudo.
Ela gritou algo para Ciri, que, embora não tivesse entendido uma só palavra, compreendeu de
que se tratava. Soltou as costas de Kayleigh, pulou no chão em pleno galope e correu para o
cavalo reserva. Mistle atirou-lhe suas rédeas, olhou para trás e deu um grito de advertência.
Ciri voltou-se no momento exato para desviar-se de uma traiçoeira estocada de uma lança
desferida por um robusto colono que viera do chiqueiro.
O que se passou em seguida ficou perseguindo-a em sonhos por muito tempo. Lembrava-se
de tudo, de cada movimento. A pirueta que a salvou da ponta da lança deixara-a numa posição
ideal, enquanto o colono não tinha como se desviar nem se proteger com o cabo da lança que
segurava com ambas as mãos. Ciri golpeou-o horizontalmente, virando-se numa pirueta no
sentido contrário. Por um instante viu a boca aberta para gritar no rosto com barba por fazer.
Viu a testa aumentada pela calvície precoce e mais clara acima da linha do gorro ou chapéu
que a protegia do sol. Tudo o que viu em seguida ficou coberto por um jorro de sangue.
Continuava segurando as rédeas do cavalo, que empinou apavorado com o grito macabro do
colono, fazendo com que ela caísse de joelhos e soltasse as rédeas. O ferido urrava
desesperadamente, agitando-se em convulsões sobre palha e esterco, com sangue esguichando
dele como de um porco. Ciri sentiu ânsias de vômito.
Faísca freou sua montaria junto dela, agarrou as rédeas do cavalo reserva e fez com que
ela se levantasse.
– Já na sela! – urrou. – E parta a pleno galope!
Ciri conteve as náuseas e pulou sobre a sela. A lâmina da espada que continuava
segurando na mão estava manchada de sangue. Ciri teve de fazer um grande esforço para
dominar o desejo de atirar o ferro o mais longe possível.
Do meio das choupanas surgiu Mistle, perseguindo dois homens. O primeiro conseguiu
escapar pulando uma cerca, enquanto o segundo, atingido por um curto golpe de espada, caiu
de joelhos, levando as mãos à cabeça.
Ciri, Mistle e a elfa partiram a galope, mas logo tiveram de frear suas montarias, quase se
erguendo nos estribos, uma vez que do lado do moinho vinham em sua direção Giselher
acompanhado de outros Ratos. Atrás deles, soltando gritos guerreiros para criar coragem,
corria um grupo de colonos armados.
– Sigam-nos! – gritou Giselher, passando a galope por elas. – Atrás de nós, Mistle! Até o
riozinho.
Mistle puxou as rédeas, fez o cavalo dar meia-volta e galopou atrás dele, saltando sobre
pequenos obstáculos. Ciri, colada ao pescoço de sua montaria, foi atrás dela. A seu lado
galopava Faísca, com os belos cabelos negros esvoaçando ao vento e revelando pequenas
orelhas pontudas e adornadas com brincos de filigranas de ouro.
O homem ferido por Mistle continuava ajoelhado no meio da estrada, balançando-se e
segurando a cabeça ensanguentada com as mãos. Faísca aproximou o cavalo e acertou-o com
toda a força. O ferido urrou. Ciri viu seus dedos decepados saltarem como lascas de madeira
de um tronco atacado por um machado e caírem no chão como vermes gordurosos.
Teve dificuldade em conter a ânsia de vômito.
Junto do buraco na paliçada aguardavam por elas Mistle e Kayleigh. Os demais Ratos
ainda estavam distantes. Os quatro partiram a toda a velocidade, esguichando água até acima
da cabeça dos cavalos ao atravessarem o riacho. Inclinados, com o rosto colado à crina de
suas montarias, conseguiram galgar a arenosa escarpa e atravessaram a galope os arroxeados
campos de lavanda. Faísca, por ter um cavalo melhor, adiantou-se aos outros três.
Adentraram uma floresta, uma úmida sombra no meio de troncos de faias. Foram
alcançados por Giselher e os demais, mas reduziram o ritmo apenas por um momento. Quando
atravessaram a floresta e saíram para um prado, voltaram a correr a pleno galope. Em pouco
tempo Ciri e Kayleigh foram ficando para trás. Os cavalos dos Perseguidores não estavam em
condições de manter o ritmo dos belos e raçudos corcéis dos Ratos. Ciri tinha ainda um
problema adicional: montada num cavalo enorme, mal conseguia tocar nos estribos com os pés
e, enquanto galopava, não tinha condições de ajustar o comprimento das correias. Sabia
montar sem estribos tão bem quanto com eles, porém tinha certeza de que não conseguiria
galopar por muito tempo naquela situação.
Por sorte, Giselher diminuiu o ritmo e reteve os demais, permitindo que Ciri e Kayleigh se
juntassem ao resto do grupo. Ciri passou a trotar, mas mesmo assim não conseguia encurtar as
correias, uma vez que estas não tinham mais furos. Sem reduzir a velocidade, passou a perna
direita sobre o arção da sela, cavalgando sentada, como uma dama.
Ao ver a posição da garota na sela, Mistle soltou uma gargalhada.
– Está vendo, Giselher? Ela não é somente uma acrobata, mas também uma volteadora! Ei,
Kayleigh, de onde foi que você desencavou essa diabinha?
Faísca, freando sua bela égua castanha, que estava seca e pronta para continuar a galopar,
aproximou-se, ameaçadora, do lobuno de Ciri. O lobuno relinchou, recuou e ergueu
violentamente a cabeça. Ciri retesou as rédeas e mal se manteve na sela.
– Você sabe por que ainda está viva, sua cretina? – rosnou a elfa, afastando os cabelos da
testa. – Aquele colono que você poupou tão misericordiosamente puxou o gatilho cedo demais
e acertou seu cavalo em vez de você. Não fosse isso, você estaria agora caída com uma flecha
cravada até o cabo nas costas. Por que cargas-d’água você carrega uma espada?
– Deixe-a em paz, Faísca – falou Mistle, apalpando o pescoço coberto de suor de sua
montaria. – Giselher, temos de diminuir o ritmo para pouparmos nossos cavalos! Afinal,
ninguém está nos perseguindo.
– Eu gostaria de atravessar o Velda o mais rápido possível – afirmou Giselher. –
Descansaremos do outro lado do rio. Kayleigh, como está seu cavalo?
– Vai aguentar. Não é um ginete, jamais vai participar de uma corrida, mas é uma besta
forte.
– Então, vamos.
– Um momento – disse Faísca. – E quanto a essa fedelha?
Giselher virou-se, ajeitou a tira de pano escarlate na testa e reteve seu olhar em Ciri. Seu
rosto e sua expressão lembravam um tanto Kayleigh: a mesma contorção dos lábios, os
mesmos olhos semicerrados, as mesmas maxilas magras e protuberantes. No entanto, ele era
mais velho que o Rato louro; uma acinzentada pelugem em suas bochechas indicava que ele já
fazia a barba regularmente.
– Pois é – falou secamente. – O que fazer com você, alegre garotinha?
Ciri abaixou a cabeça.
– Ela me ajudou – interveio Kayleigh. – Não fosse ela, aquele imundo Perseguidor teria
me pregado ao poste…
– Os colonos viram-na fugindo conosco – acrescentou Mistle. – Chegou a acertar um deles
com a espada, e duvido muito que ele tenha sobrevivido. Aqueles colonos são nilfgaardianos.
Se a garota cair nas mãos deles, acabarão com ela num piscar de olhos. Não podemos deixá-
la.
Faísca bufou com raiva, mas Giselher abanou a mão.
– Ela virá conosco até o Velda – decidiu. – Depois, vamos ver. Monte no cavalo de
maneira correta, garota. Se você ficar para trás, não tomaremos conhecimento disso.
Entendeu?
Ciri, ansiosa, balançou a cabeça afirmativamente.
– Fale, garota. Quem é você? De onde vem? Como se chama? Por que estava sendo levada
presa?
Ciri abaixou a cabeça. Enquanto cavalgavam, ela teve bastante tempo para tentar inventar
uma história; acabou inventando várias. O líder dos Ratos, porém, não era do tipo capaz de
acreditar em qualquer uma delas.
– E então – encorajou-a Giselher. – Você está cavalgando conosco há várias horas.
Convive conosco e ainda não tive a oportunidade de ouvir sua voz. Você é muda?
“Não posso dizer-lhes a verdade”, pensou Ciri em desespero. “Afinal, eles não passam de
meros bandidos. Se descobrirem sobre os nilfgaardianos e que os Perseguidores me pegaram
por causa de um prêmio, até poderão querer recebê-lo. E, além de tudo, a verdade é tão
inverossímil que eles jamais acreditariam nela.”
– Tiramos você daquele povoado – continuou o líder do bando lentamente. – Trouxemos
você até aqui, para um de nossos esconderijos. Demos-lhe comida. Você está se aquecendo
junto de nosso fogo. Portanto, fale logo quem é você!
– Deixe-a em paz – falou Mistle. – Quando olho para você, Giselher, vejo repentinamente
um nissírio, um Perseguidor ou um daqueles nilfgaardianos filhos da puta. E me sinto como se
estivesse num interrogatório numa masmorra, atada a um banco de carrasco!
– Mistle tem razão – disse o Rato de cabelos louros e de colete curto. Ciri ficou toda
arrepiada ao ouvir seu sotaque. – Está mais do que claro que a garota não quer nos dizer quem
é, algo a que ela tem todo o direito. Eu, quando me juntei a vocês, também fui de pouca
conversa por bastante tempo. Não queria que vocês descobrissem por meu sotaque que eu era
um nilfgaardiano filho da puta…
– Não fale bobagens, Reef – respondeu Giselher. – O que se passou com você foi bem
diferente. E você, Mistle, também exagera. Não estou conduzindo um interrogatório. Apenas
quero que ela nos diga quem é e de onde vem. Quando ela me disser isso, vou lhe mostrar o
caminho de casa, e pronto. Como posso fazer isso, se não sei…
– Você não sabe de nada – interrompeu-o Mistle. – Nem mesmo se ela tem uma casa. E eu
acho que não tem. Os Perseguidores pegaram-na na estrada porque ela estava sozinha. Isso é
típico daqueles covardes. Se você mandá-la embora, ela não conseguirá sobreviver sozinha
nas montanhas. Será devorada pelos lobos ou morrerá de fome.
– Então, o que podemos fazer com ela? – falou o jovem de ombros largos, remexendo os
gravetos na fogueira. – Deixá-la perto de uma aldeia?
– Uma ideia estupenda, Asse – riu Mistle. – Será que você não sabe como são os homens?
Eles vão botá-la para pastorear o gado, quebrando-lhe antes uma perna para que não fuja. À
noite, será tratada como de ninguém, ou seja, uma propriedade coletiva. Vai pagar pela
comida, bebida e um teto sobre a cabeça da maneira que você bem sabe. E, quando chegar a
primavera, ela terá acessos de febre depois de dar à luz num chiqueiro um bastardo qualquer.
– Se nós deixarmos com ela um cavalo e uma espada – escandiu Giselher lentamente, sem
tirar os olhos de Ciri –, eu não gostaria de ser o camponês que tentaria quebrar-lhe a perna ou
fazer-lhe um filho. Vocês viram a pirueta que ela executou lá na taberna diante daquele
Perseguidor que acabou morto por Mistle? Ele ficou golpeando o ar, enquanto ela dançava a
sua volta… A bem da verdade, nem estou tão interessado em saber quem ela é e de onde veio,
mas onde foi que ela aprendeu todos aqueles truques…
– Pois saibam que tais truques não a manterão viva – falou repentinamente Faísca, até
então ocupada com sua espada. – Ela só sabe dançar. Para sobreviver, é preciso saber
matar… e isso ela não sabe.
– Acho que sabe, sim – sorriu Kayleigh. – Quando ela acertou o pescoço daquele
camponês, seu sangue jorrou a uma altura de meia braça…
– E ela, diante daquela visão, quase desmaiou – bufou a elfa.
– Porque não passa de uma criança – observou Mistle. – Acho que sei quem ela é e onde
aprendeu tais truques. Já vi outras jovens assim. Ela é uma dançarina ou acrobata de uma trupe
de saltimbancos.
– E desde quando – bufou Faísca – ficamos interessados em dançarinas ou acrobatas?
Com todos os diabos, já é quase meia-noite e estou morrendo de sono. Vamos acabar logo com
esta conversa, que não leva a lugar algum. Precisamos dormir e descansar, porque amanhã
temos de estar em Kusnica antes do anoitecer. Espero que vocês não se tenham se esquecido
de que foi o alcaide de lá quem entregou Kayleigh aos nissírios. Portanto, todo o vilarejo
deverá presenciar como a noite adquire uma face avermelhada. Quanto à garota, ela tem um
cavalo e uma espada, que conseguiu de maneira honrada. Vamos lhe dar um pouco de comida e
de dinheiro por ter salvado a vida de Kayleigh e deixar que ela parta para onde quiser, que
seja responsável pela própria sobrevivência.
– Pois que seja – falou Ciri, erguendo-se e cerrando os lábios.
Caiu um silêncio total; ouvia-se apenas o crepitar dos gravetos na fogueira. Os Ratos
olhavam para ela com curiosidade… e esperavam.
– Pois que seja – repetiu, espantando-se com a maneira estranha com que soava sua voz. –
Não preciso de vocês, nem lhes pedi nada… Aliás, não quero ficar na companhia de vocês.
Vou partir agora mesmo…
– Quer dizer que você não é muda, afinal – constatou Giselher soturnamente. – Você
consegue falar… e até de modo bem descarado.
– Olhem só para seus olhos – falou Faísca. – Vejam como ela ergue a cabeça. Uma
avezinha de rapina! Um falcãozinho!
– Então você quer partir… – disse Kayleigh. – E para onde, se é que se pode perguntar?
– E o que você tem a ver com isso? – gritou Ciri, com um brilho esverdeado nos olhos. –
Por acaso eu lhes pergunto para onde vão? Não tenho o menor interesse em saber! Assim
como não tenho interesse algum em qualquer um de vocês! Não preciso de vocês para nada!
Consigo… Vou me virar sozinha!
– Sozinha? – repetiu Mistle, com um sorriso maroto.
Ciri calou-se e abaixou a cabeça. Os Ratos também ficaram em silêncio.
– Já é noite – falou Giselher finalmente. – Não se viaja à noite. Também não se viaja
sozinho, garota. Quem está sozinho perece. Lá, junto dos cavalos, há cobertores e peles.
Escolha algo para você. As noites nas montanhas costumam ser frias. Por que você está
arregalando para mim essas lanternas verdes? Procure um lugar para se acomodar e vá dormir.
Você precisa descansar.
Após um momento de hesitação, Ciri obedeceu. Foi até os cavalos e retornou com um
cobertor e uma pele. Os Ratos não estavam mais sentados em volta da fogueira, mas de pé,
formando um semicírculo, com o brilho vermelho das chamas refletindo em seus olhos.
– Nós somos os Ratos, o terror das fronteiras – afirmou Giselher orgulhosamente. – Somos
capazes de farejar um butim a milhas de distância. Não temos medo de ciladas e não há uma
coisa no mundo que nós não possamos conquistar. Somos os Ratos. Aproxime-se, garota.
Ciri obedeceu.
– Você não tem nada – acrescentou Giselher, entregando-lhe um cinturão com adornos de
prata. – Assim, aceite pelo menos isto.
– Você não tem nada nem ninguém – falou Mistle com um sorriso, colocando sobre seus
ombros um casaquinho de veludo e enfiando em sua mão uma blusa bordada.
– Você não tem nada – observou Kayleigh, presenteando-a com um estilete numa bainha
cravejada de pedras preciosas. – E está sozinha.
– Você não tem ninguém próximo – disse Reef, com sotaque nilfgaardiano, entregando-lhe
um par de luvas de pele macia. – Não tem ninguém próximo e…
– … será sempre uma estranha, esteja onde estiver – concluiu Faísca com aparente
indiferença, enfiando na cabeça de Ciri uma boina adornada com penas de faisão. – Sempre
forasteira e diferente. Como devemos chamá-la, pequeno falcãozinho?
Ciri fixou os olhos nos dela.
– Gvalch’ca.
A elfa riu gostosamente.
– Quando você começa a falar, fala em muitas línguas, falcãozinho! Muito bem. Você
portará um nome do Povo Antigo, um nome que você mesma escolheu. Você será Falka.
Falka.
Não conseguia adormecer. Cavalos galopavam e relinchavam no meio da escuridão; o
vento murmurava entre os pinheiros. O céu estava coberto de estrelas. Brilhava intensamente o
Olho, que por tantos dias fora seu guia no deserto. O Olho indicava o oeste, mas Ciri já não
estava certa de que aquela seria a direção adequada. Na verdade, não tinha certeza de nada.
Não conseguia adormecer, apesar de pela primeira vez em muitos dias sentir-se segura.
Não estava mais sozinha. Fizera a cama de ramos longe dos Ratos, que dormiam no aquecido
piso de barro de uma choupana destroçada. Estava afastada deles, mas sentia sua
proximidade, sua presença. Não estava mais sozinha.
De repente, ouviu passos silenciosos.
– Não tenha medo.
Kayleigh.
– Não direi a eles – sussurrou o Rato louro, ajoelhando-se a seu lado – que você está
sendo procurada por Nilfgaard, nem que o prefeito de Amarillo prometeu um prêmio por você.
Lá, na taberna, você salvou minha vida. Vim lhe retribuir com algo muito gostoso.
Deitou-se ao lado dela devagar e cuidadosamente. Ciri tentou se levantar, porém ele
apertou-a contra o leito de ramos com um gesto não violento, porém forte e definitivo. Com
toda a delicadeza, colocou um dedo sobre seus lábios. Não era preciso. Ciri estava paralisada
de medo e sua garganta ressecada não lhe permitia emitir grito algum, mesmo que quisesse
gritar. Mas não queria. O silêncio e a escuridão eram melhores, mais seguros, mais íntimos;
eles serviam para ocultar o pavor e a vergonha que a assolavam.
Gemeu.
– Fique quietinha, pequena – sussurrou Kayleigh, desamarrando lentamente os cordões de
sua blusa. Devagar e com gestos suaves, ergueu a parte inferior da blusa acima de seus
quadris. – E não tenha medo. Você vai ver como isto é gostoso.
Ciri estremeceu ao sentir o toque da seca, dura e áspera mão do Rato. Permaneceu imóvel
e estirada, tomada por um medo paralisante e constrangedor e por uma sensação de asco que
lhe atacavam as têmporas e as bochechas com ondas de calor. Kayleigh enfiou o braço direito
debaixo de sua cabeça, puxou-a para mais junto de si, tentando afastar a mão que procurava
inutilmente puxar a borda inferior da blusa para baixo. Ciri começou a tremer.
No meio da escuridão que a cercava, sentiu repentinamente um movimento brusco, uma
sacudidela e o som de um chute.
– Você enlouqueceu, Mistle? – rosnou Kayleigh, erguendo-se um pouco.
– Deixe-a em paz, seu porco.
– Suma daqui. Vá dormir.
– Já lhe disse: deixe-a em paz.
– E por acaso eu a estou importunando? Ela está gritando ou querendo fugir? Tudo o que
quero é acalentá-la. Não atrapalhe.
– Suma daqui se não quiser se ferir.
Ciri ouviu o som de uma adaga sendo retirada de uma bainha metálica.
– Não estou brincando – continuou Mistle, mal visível na escuridão. – Vá juntar-se aos
rapazes. Imediatamente.
Kayleigh sentou-se e soltou um palavrão. Depois ergueu-se e foi embora sem dizer mais
nada.
Ciri sentiu lágrimas deslizando pelas bochechas e enfiando-se depressa, como vermes, nos
cabelos junto das orelhas. Mistle deitou-se a seu lado e cobriu-a cuidadosamente com a pele.
Mas não arrumou sua blusa, deixando-a como estava. Ciri voltou a tremer.
– Fique quieta, Falka. Agora está tudo bem.
Mistle era quente, cheirando a resina e fumaça. Sua mão era menor que a de Kayleigh,
mais delicada, mais suave. Mais agradável. No entanto, seu toque fez com que Ciri ficasse
novamente tensa, travando os maxilares e apertando a garganta. Mistle abraçou-a, aninhando-a
de maneira protetora e sussurrando palavras tranquilizadoras. Ao mesmo tempo, porém, sua
pequena mão avançava como um quente caracol calmo, seguro de si, decidido e consciente de
seu caminho e de seu alvo. Ciri sentiu as tenazes de medo e asco se abrirem, sentiu como se
livrava de seu aperto e despencava num cada vez mais profundo, quente e úmido atoleiro de
resignação e de irresistível submissão. Uma submissão prazerosa, embora abominável e
humilhante.
Gemeu surda e desesperadamente. A respiração de Mistle queimava seu pescoço,
aveludados e úmidos lábios acariciavam seu ombro, sua clavícula, descendo lentamente cada
vez mais para baixo. Ciri voltou a gemer.
– Quieta, meu falcãozinho – sussurrou Mistle, enfiando cuidadosamente o braço debaixo
de sua cabeça. – Você não estará mais sozinha. Não mais.
Na manhã seguinte, Ciri levantou-se com o raiar do sol. Esgueirou-se de dentro das peles
lenta e cuidadosamente para não acordar Mistle, que dormia com a boca entreaberta e com o
antebraço sobre os olhos. A pele do antebraço estava arrepiada. Solícita, Ciri cobriu a jovem.
Após um breve momento de hesitação, inclinou-se e beijou delicadamente seus cabelos curtos
e eriçados como uma vassoura. Mistle murmurou algo dormindo. Ciri enxugou uma lágrima.
Não estava mais sozinha.
O restante dos Ratos também dormia. Um deles roncava profundamente, enquanto outro
soltou um pum bem audível. Faísca estava deitada com o braço sobre o peito de Giselher, a
basta cabeleira toda desgrenhada. Os cavalos bufavam e batiam com os cascos no chão. Um
pica-pau atacava o tronco de uma faia com uma série de bicadas.
Ciri correu até o riacho. Ficou se lavando por muito tempo, tremendo de frio. Lavava-se
com gestos rápidos das mãos trêmulas, querendo livrar-se daquilo que já não era possível se
livrar. Lágrimas escorriam-lhe pela face.
Falka.
A água sussurrava e espumava por entre as pedras, ia para longe, perdia-se na neblina.
Tudo se afastava e se perdia na neblina.
Tudo.
Eles eram a escória. Eram uma estranha mistura criada pela guerra, pela desgraça e pelo
desprezo. A guerra, a desgraça e o desprezo os ligaram e os lançaram numa margem, assim
como um rio caudaloso atira sobre a praia pedaços de madeira enegrecidos e polidos pelas
pedras.
Kayleigh voltou a si envolto por fumaça, labaredas e sangue, no piso do pequeno castelo
saqueado, deitado entre os corpos de seus pais e irmãos adotivos. Arrastando-se pelo pátio
coberto de cadáveres, deparou com Reef. Reef era um soldado da expedição punitiva que o
imperador Emhyr var Emreis despachara para conter a rebelião em Ebbing. Era um daqueles
que conquistaram e saquearam o castelo após dois dias de cerco. Após a conquista do castelo,
os companheiros de armas de Reef deixaram-no para trás, embora ele estivesse vivo. A
verdade era que se preocupar com os feridos não fazia parte das obrigações dos
destacamentos especiais nilfgaardianos.
De início, Kayleigh pensou em acabar com Reef. No entanto, Kayleigh não queria ficar
sozinho, e Reef, assim como Kayleigh, tinha dezesseis anos. Os dois, então, juntos passaram a
curar suas feridas. Juntos assaltaram e mataram um cobrador de impostos, juntos
embebedaram-se numa taberna e depois, cavalgando por um vilarejo em cavalos roubados,
juntos gastaram o resto do dinheiro, morrendo de rir pelo caminho.
Juntos fugiam das patrulhas nissírias e nilfgaardianas.
Giselher desertou do exército. Provavelmente, o exército era do governante de Geso, que
se aliara aos rebeldes de Ebbing. Provavelmente, porque Giselher não sabia muito bem para
onde fora arrastado pelos recrutadores. Naquele momento, estava completamente embriagado.
Quando ficou sóbrio e levou a primeira bronca do sargento, fugiu. No começo, ficou vagando
solitário, mas, quando os nilfgaardianos destruíram a confederação rebelde, as florestas
ficaram cheias de desertores e fugitivos. Em pouco tempo, os fugitivos uniram-se em bandos, e
Giselher juntou-se a um deles.
O bando saqueava e incendiava vilarejos, assaltava comboios e caravanas, corria em
selvagens fugas dos esquadrões da cavalaria nilfgaardiana. Durante uma daquelas fugas, o
bando se defrontou com os elfos numa floresta e foi dizimado, encontrando a morte invisível
nas sibilantes penas cinzentas de setas vindas de todos os lados. Uma das setas atravessou o
ombro de Giselher, prendendo-o a uma árvore. A elfa que retirou a seta na madrugada seguinte
e curou o ferimento foi Aenyeweddien.
Giselher nunca descobriu por que os elfos haviam condenado Aenyeweddien ao
banimento, por qual crime a haviam condenado à morte. Afinal, para uma elfa livre, a solidão
numa estreita faixa de terra de ninguém que separava o Povo Antigo Livre dos humanos
representava morte certa. Uma elfa sozinha tinha de morrer, a não ser que encontrasse um
companheiro.
E Aenyeweddien encontrou um companheiro. Seu nome, que, em tradução livre,
significava “Criança do Fogo”, era demasiadamente complicado e poético para Giselher, de
modo que passou a chamá-la de Faísca.
Mistle descendia de uma nobre e rica família de Thurn, em Maecht Setentrional. Seu pai,
um vassalo do príncipe Rudiger, juntou-se ao exército rebelde, deixou-se derrotar e sumiu sem
deixar vestígios. Quando a população de Thurn fugiu da cidade diante da notícia da
aproximação da expedição punitiva dos famosos Pacificadores de Gemmer, a família de
Mistle fugiu também, mas Mistle se perdeu na multidão em pânico. A distinta e delicada jovem
que, desde os mais ternos anos, era carregada numa liteira, não conseguiu acompanhar o ritmo
dos fugitivos. Após três dias vagando sozinha, caiu nas mãos de um bando de caçadores de
escravos que seguiam atrás das tropas nilfgaardianas. Jovens abaixo de dezessete anos eram
muito valiosas, desde que fossem virgens. Os caçadores de escravos não tocaram em Mistle,
depois de terem constatado sua virgindade. Após aquela verificação, Mistle passou a noite
toda chorando.
No vale do Velda, o bando foi dizimado por desertores nilfgaardianos, que mataram todos
os caçadores e seus escravos do sexo masculino. Pouparam somente as jovens, que não
sabiam o porquê disso. Tal desconhecimento, porém, não permaneceu por muito tempo.
Mistle foi a única que sobreviveu. Da vala na qual fora atirada nua, coberta de hematomas,
excrementos, lama e sangue coagulado, ela foi tirada pelo filho do ferreiro do vilarejo,
chamado Asse. Este estava perseguindo os nilfgaardianos por mais de três dias, enlouquecido
pelo desejo de se vingar do que os desertores haviam feito com seus pais e suas irmãs, algo
que ele presenciou oculto num juncal.
Encontraram-se todos um dia nos festejos de Lammas, o Dia da Ceifa, num dos vilarejos
de Geso. Naquela época, a guerra ainda não deixara marcas profundas no Velda Superior, e os
camponeses continuavam a festejar tradicionalmente o começo do Mês da Gadanha, com
danças e diversões ruidosas.
Não levaram muito tempo para se encontrar no meio da multidão. Havia coisas demais que
os destacavam. Havia coisas demais em comum uns com os outros. Eram ligados pelo
extravagante e colorido modo de se vestir, pela atração por joias e bijuterias, por belos
cavalos e por espadas, das quais não se separavam nem para dançar. Destacavam-se dos
demais pela arrogância, empáfia, autoconfiança, postura provocadora e violência.
E desprezo.
Eram filhos dos tempos do desprezo, e era só desprezo que sentiam pelos outros. Não se
apoiavam apenas na força bruta, mas também na destreza no manejo de armas, a qual haviam
adquirido rapidamente pelas estradas, na força de vontade, nos cavalos velozes e nas espadas
afiadas.
E no companheirismo. Eram camaradas, confrades. Porque todo aquele que fica sozinho
morre: de fome, de espada, de flecha, das foices dos camponeses, no patíbulo, num incêndio.
Quem está sozinho morre apunhalado, golpeado, pisoteado, chutado, passado de mão em mão
como se fosse um brinquedo.
Encontraram-se no Dia da Ceifa. O soturno, escuro e esguio Giselher. O magro Kayleigh,
com seus cabelos compridos, olhos malvados e lábios sempre contorcidos num esgar
desagradável. Reef, incapaz de se livrar do sotaque nilfgaardiano. A alta Mistle, com suas
pernas compridas e cabelos cor de palha cortados rente como uma vassoura. A colorida
Faísca, de olhos grandes, lábios finos e diminutas orelhas élficas, sempre ágil e graciosa ao
dançar e rápida e mortal ao lutar. O robusto Asse, com clara e desgrenhada pelugem no
queixo.
Giselher assumiu o posto de líder, e eles adotaram o nome de Ratos. Alguém os chamara
assim, e eles haviam gostado.
Saqueavam e matavam a torto e a direito, e sua crueldade tornou-se proverbial.
No começo, os prefeitos nilfgaardianos não os levaram a sério. Estavam convictos de que,
a exemplo de outros bandos, os Ratos seriam eliminados pela concentrada ação dos
camponeses em fúria ou se matariam uns a outros quando a quantidade de bens saqueados
forçasse a ganância a sobrepujar a solidariedade. Os prefeitos estavam certos no que tangia
aos outros bandos, mas enganaram-se no caso dos Ratos. Porque os Ratos, filhos do desprezo,
não estavam interessados em butins. Eles atacavam, saqueavam e matavam por pura diversão,
e os cavalos, o gado, os grãos, a forragem, o sal, o breu e os tecidos que roubavam dos
carregamentos militares eram distribuídos pelos vilarejos. Em troca, os camponeses
escondiam-nos, davam-lhes de comer e beber e, mesmo sob as mais cruéis torturas infligidas a
eles por nilfgaardianos ou nissírios, jamais revelavam suas rotas e seus esconderijos. Já os
Ratos pagavam com ouro e prata a artesãos e alfaiates por aquilo que amavam acima de tudo:
armas, trajes e adereços.
Os prefeitos estabeleceram um valioso prêmio por suas cabeças e, de início, houve
aqueles que se sentiram atraídos pelo ouro nilfgaardiano. Mas à noite a choupana dos
delatores ficava em chamas, enquanto os fugitivos do incêndio eram inclementemente mortos
pelas lâminas dos cavaleiros fantasmas movendo-se no meio da fumaça. Os Ratos atacavam
como ratos: de maneira silenciosa, traiçoeira e cruel. Os Ratos adoravam matar.
Os prefeitos lançaram mão de outros expedientes já testados em situações semelhantes.
Mais de uma vez tentaram infiltrar um traidor no grupo. Nada conseguiram. Os Ratos não
aceitavam novos membros. O fechado e coeso sexteto formado pelo tempo do desprezo não
queria estranhos. Desprezava-os.
Até o dia em que surgiu uma garota de cabelos cinzentos, calada e ágil como uma
acrobata, sobre a qual os Ratos não tinham informação alguma, além do fato de ela ser como
cada um deles fora no passado. Estava sozinha e cheia de mágoa, magoada por aquilo que lhe
tirara o tempo do desprezo.
E, nos tempos do desprezo, quem fica sozinho está condenado a morrer.
Giselher, Kayleigh, Reef, Mistle, Faísca, Asse e Falka.
O prefeito de Amarillo ficou muito espantado quando lhe informaram que os Ratos
passaram a ser sete.
Todos os direitos reservados. Este livro não pode se reproduzido, no todo ou em parte, nem armazenado em sistemas
eletrônicos recuperáveis nem transmitido por nenhuma forma ou meio eletrônico, mecânico ou outros, sem a prévia
autorização por escrito do Editor.
Tradução
TOMASZ BARCINSKI
Acompanhamento editorial
Márcia Leme
Edição de texto
Márcia Menin
Revisões gráficas
Ana Paula Luccisano
Letícia Castello Branco Braun
Edição de arte
Katia Harumi Terasaka
Paginação
Studio 3 Desenvolvimento Editorial
Produção do arquivo ePub
Simplíssimo Livros
Sapkowski, Andrzej
Tempo do desprezo [livro eletrônico] / Andrzej Sapkowski ; tradução do polonês Tomasz Barcinsky. -- São
Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2014.
ePUB
14-13510 CDD-028.5
A SAGA DO BRUXO
GERALT DE RÍVIA