Somnium117 Epubmobi
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Geral
Mensagem do Editor
Entrevista com Vadim Shevchenko
Homenagem ao Ilustrador Cesar Silva
Resenha 1 – RUR
Resenha 2 – Eu, Robô
Resenha 3 – Better than Us
Resenha 4 – I Am Mother
Resenha 5 – Raised By Wolves
Contos
A Quimera de SD2
Caramelo
Certas coisas não mudam...
Luíza
O Presente de Aniversário
O Problema do Exoesqueleto
Projeto em Curso
Smasher
Somnium — Edição 117, outubro de 2021
Editor responsável: Marcelo Bighetti
Layout da Capa e Diagramação: Marcelo Bighetti
Ilustração da Capa: Vadim Shevchenko
Todas as imagens não creditadas foram retiradas de freepik.com, conta Premium de Marcelo Bighetti
Autores
André C.R. Martins
Gel A.P.S. Lopes
João Gomes
R.C. Belli
Rodrigo Ortiz Vinholo
Rodrigo S. Semente
Rubem Cabral
Rubens Angelo
Colaboradores:
Ada Chivers
Alex de Souza
Angela Moss
Ângelo Miranda
Bertoldo Schneider Jr
Carlos Calenti
Carlos Roberto Calenti Trindade
Carlos Rocha
Daniel Borba
Daniel Paiva Vasconcelos
Erick
Gabriel Hipolito Costa
Gerson Machado de Avillez
Guilherme Xavier
J.P. Rocha
Joao Gomes Moreira
João Paulo Rocha
João Peçanha
Juliana de Oliveira Schaidhauer
Juliane Vicente Lopes
Leon Nunes
Luana Mercurio
Maria de Fátima B Romani
Mike Wevanne
Morian Marroni
Orton Marcos Alves Couto
Osame Kinouchi
Pá Falcão
Paulo Ricardo
Raul Coutinho
Ricardo Celestino
Ricardo França
Ricardo Herdy
Roberto Causo
Silvio César Vasconcelos de Sousa
Walber Tuler Silva
CLFC — gestão 2021-2023
Presidente: Luiz Felipe Vasques
Secretário executivo: Sid Castro
Tesoureira: Caroline Libar
Contatos:
mailto:somnium-editor@clfc.com.br
www.clfc.com.br/somnium
MENSAGEM DO EDITOR
O artista russo Vadim Shevchenko gentilmente permitiu que usássemos sua ilustração para ser
a capa da edição 117 do Somnium, a qual foi usada como inspiração para os contos. Segue a
entrevista que fizemos com ele.
Como foi seu início como ilustrador?
Comecei a fazer ilustrações há muito tempo, nem me lembro como começou. Assim como
muitas pessoas, acho que sempre quero expressar meus pensamentos, impressões ou sentimentos.
Alguém o faz através da música, da poesia, etc. A expressão visual está mais próxima e familiar
para mim. Então, eventualmente, tornou-se uma parte integrante de mim.
O que você gosta mais de ilustrar?
Não há uma resposta clara pra esta pergunta. Em momentos diferentes, em diferentes
circunstâncias e estados internos, gosto de desenhar coisas diferentes. Mas acho que, acima de
tudo, gosto de retratar as pessoas e sua interação umas com as outras ou com o mundo ao redor,
especialmente em um cenário de fantasia.
Pode nos dizer um pouco sobre a ilustração que nos cedeu?
Esta ilustração foi criada para uma competição cujo tema era a ideia da interação humana
como piloto e um robô. Eu queria fazer algo leve, brilhante, gentil. Na verdade, surgiu uma ideia
e eu a retratei.
Ela tem um nome?
Bem, eu apenas chamei de "o menino e o robô"
Vejo que há partes de um carro no robô? Como se deu isso?
Eu deixei claro que este robô não é um tipo de desenvolvimento complexo, mas uma máquina
montada a partir de peças de um ferro-velho pelo mesmo menino.
Como descreveria seu estilo como ilustrador?
Acho que é algo como semirrealismo.
Quais ilustradores te influenciaram?
Posso citar uma dezena de nomes de artistas contemporâneos de computação gráfica que
tiveram uma grande influência no meu estilo de desenho, por exemplo, Piotr Jabłoński, Ivan
Khotenov, Even Amundsen, Valeriy Vegera, Artem Chebokha e muitos outros.
O que sabe sobre o Brasil?
Na verdade, sei muito pouco, apenas o que é encontrado em feeds de notícias e eventos. Sei
que o Brasil tem alguns dos melhores jogadores de futebol e algumas das garotas mais bonitas.
Um livro
Leio pouco, mas o último foi Flowers for Algernon
Sua comida favorita
Provavelmente churrasco.
Seguindo as homenagens aos primeiros ilustradores do Somnium, resolvi ver qual foi a
primeira ilustração de um robô e encontrei esta:
Esta ilustração foi feita por Cesar Silva, coautor do "Almanaque de Arte Fantástica
Brasileira", com o Marcello Simão Branco. Na época ele assinava Cesar R. T. Silva ou Cerito.
Muito ativo nas páginas do Somnium, mas anos antes, em 1983, ele, José Carlos Neves e Mário
Dimov Mastrotti lançaram o fanzine "Hiperespaço", muito importante naquela época. Ele fez
também a capa da primeira antologia do CLFC, a "Vinte Voltas ao Redor do Sol".
A capa do Somnium 11, de novembro de 1996, exibe tal ilustração.
RESENHA 1 – RUR
Rafael Silvaro
É impossível falar de ficção científica sem que alguma alusão não seja feita a Isaac Asimov.
O russo radicado nos Estados Unidos, dono de uma mente brilhante e extremamente criativa, é
responsável por mais de quinhentos volumes, entre romances, coletâneas e obras de divulgação
científica. A obra deixada pelo “Bom Doutor” é impressionante não só pela quantidade, mas
também pela influência que exerce na ficção científica até os dias de hoje.
Eu, Robô, livro originalmente publicado em 1950, é um exemplo perfeito do legado de
Asimov. É quase impossível imaginar qualquer tipo de robô diferente dos que vemos nessa
coletânea.
O livro é composto por nove contos, todos escritos e publicados entre 1940 e 1950, que tratam
da evolução dos robôs desde o final do século XX até meados do século XXI. A ligação entre
esses contos é a presença constante da Dra. Susan Calvin, psicóloga especialista no
comportamento da mente dos robôs, ou melhor dizendo, dos cérebros positrônicos. Celebrando o
final de sua bem-sucedida carreira na U.S Robots and Mechanical Men, uma megacorporação
responsável pela criação e desenvolvimento de robôs, a Dra. Calvin concede uma entrevista em
que apresenta os nove contos como situações marcantes na evolução da robótica, desde os
primeiros obedientes robôs-babá, até máquinas poderosas capazes de controlar o destino de
multidões.
A evolução da robótica prevista por Asimov tem bons e maus momentos. Revoltas e
movimentos anti-robôs são citados algumas vezes no livro, com a megacorporação mantendo sua
produção mesmo com uma forte rejeição. De um modo ou outro, mesmo com inúmeros
problemas, o livro apresenta uma sociedade que passou a depender cada vez mais das máquinas.
Isso era bem visto? Não necessariamente. Mas era aceito.
Qualquer semelhança com o mundo atual (não) é mera coincidência. Ainda não se vê robôs
andando pelas ruas como Asimov dá a entender, mas as inteligências artificiais estão cada vez
mais presentes no cotidiano e de modo geral, a interação humano/máquina está cada vez mais
natural. Robôs já fazem parte das linhas de produção há décadas e começam a emular
movimentos e reações humanas de modo cada vez mais eficiente.
Em alguns casos, chegam até a decidir eleições.
Os robôs de Asimov são programados para seguirem as três Leis Fundamentais da Robótica:
1. Um robô não pode ferir um ser humano, ou por falta de ação, permitir que um ser humano
se fira.
2. Um robô deve seguir as ordens dadas por um humano, a menos que essas ordens
contradigam a primeira lei.
3. Um robô deve proteger sua existência desde que essa proteção não contradiga a primeira
ou a segunda lei.
À primeira vista, as três leis parecem suficientes para evitar conflitos ou problemas, já que
protegem o ser humano de qualquer mal. Mas os robôs apresentados no livro evoluem de
maneira imprevisível e começam a encontrar brechas nas leis que levam a situações inesperadas,
algumas cômicas, outras dramáticas. Várias questões éticas surgem durante o desenrolar dos
contos, questionando até que ponto pode-se imitar a mente humana.
É aí que aparece a genialidade de Susan Calvin, que entende como ninguém as peculiaridades
do pensamento lógico e exato de um robô. É ela que interpreta para o leitor as pequenas sutilezas
do cérebro positrônico, quase sempre trazendo as soluções lógicas que inteligências artificiais
sem emoção necessitam. Sua participação no livro, inclusive, é marcante. A psicóloga age quase
como se fosse um alter-ego de Asimov (do mesmo modo que Seldon assume esse papel na
trilogia da Fundação). Com uma visão peculiar da humanidade, e uma mente tão ou mais
privilegiada do que a de seu criador, Calvin torna-se, mesmo não sendo a protagonista dos
contos, uma personagem querida e respeitada.
Eu, Robô é uma obra-prima e deve ser celebrado como tal. É, sem dúvida, um dos maiores
clássicos da literatura fantástica. Quase despretensioso a princípio, mas responsável por moldar
muitos dos conceitos que se vê na ficção científica até os dias de hoje. De quebra, traz reflexões
sobre a ética na ciência e o relacionamento humano/máquina, temas cada vez mais presentes com
o avanço da tecnologia.
A literatura em geral tem a missão de abrir caminhos e possibilidades, instigar e provocar a
imaginação de quem está lendo. No caso da ficção científica, essa missão se faz ainda mais
relevante, e este livro cumpre de maneira eficiente seu papel.
Daniel Borba é fascinado por literatura de ficção científica desde criança. Publicou contos
em algumas coletâneas e foi editor da revista online Somnium, a publicação oficial do CLFC,
entre 2011 e 2014. Foi jurado em duas edições do Concurso Hydra, promovido pela IGMS,
revista norte-americana especializada em FC e fantasia. Mais recentemente, colaborou com a
revista virtual Conexão Literatura e também com o blog Ficção Científica Brasileira, capitaneado
pelo escritor Luiz Bras. Agora em 2021, participou da coletânea Outros Brasis da Ficção
Científica, publicada pela Editora Caligo. Como astrônomo amador e ex-aluno da Escola
Municipal de Astrofísica em São Paulo, participou de alguns projetos de divulgação em
astronomia com o Observatório Céu Austral. Assina o blog alemdasestrelas.wordpress.com.
RESENHA 3 – BETTER THAN US
R. C. Belli
Se você não quer ser informado sobre fatos importantes antes de assistir a série, não leia este
artigo. Mas prometo que – se por acaso você ler – ficará curioso para assistir Better than Us.
As três leis
Você senta no sofá e aperta o play. Depois da vinheta da Netflix, você ouve uma criança
enunciar as três leis da robótica de Isaac Asimov1:
“1ª Lei: Um robô não pode ferir um ser humano, nem por omissão permitir que um ser
humano seja ferido.
2ª Lei: Um robô deve obedecer a qualquer ordem dada por um ser humano, contanto que não
desobedeça a primeira lei.
3ª Lei: Um robô deve zelar por sua própria existência, contanto que não desobedeça às duas
primeiras leis.”
Assim começa a série de ficção científica russa Better Than Us (2018), da Netflix.
Ouvir as três leis da robótica em russo e entoadas por uma criança é surpreendente. Encarei
isso como um simbolismo. A Rússia está definitivamente de volta à FC! Tudo bem que ela nunca
se afastou de verdade, mas a Cortina de Ferro impediu o avanço em seu território e criou
rivalidades desnecessárias por ideologia até 1991. E qual o motivo de ser uma criança? Seria
porque toda criança é uma aprendiz? Acredito que a Rússia aprendeu com o mestre e, como todo
bom discípulo, tentará superá-lo. Esta é a reverência mais representativa a Asimov pelo cinema e
TV daquele país desde sempre.
Universo robótico
O enredo de Better than Us acontece em um futuro próximo, 2029, onde robôs fazem parte da
vida humana. Eles limpam as casas, ajudam a criar os filhos, fazem todo tipo de trabalho, não só
os insalubres ou perigosos. Substituem os trabalhadores em praticamente todas as tarefas
manuais ou intelectuais da humanidade. Existem muitos modelos, formando categorias, a
depender da capacidade de interação dos robôs. A série não especifica exatamente essas
categorias, mas deixa claro que elas existem. Por exemplo, os robôs que têm menos interação
com humanos possuem a aparência robótica padrão, com seu esqueleto à mostra. Nessa
1
Isaac Yudavich Asimov, o autor número 1 da Golden Age da SF. Nasceu durante a formação da União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS, em Petrovichi (Rússia), entre 1919 e 1920 (para fins de registro de
nascimento: 2/1/1920). Quando tinha três anos, em 1923, sua família emigrou para os Estados Unidos,
estabelecendo-se na cidade de Nova York.
categoria, há vários modelos de robôs, que trabalham nas fábricas, nas tarefas ingratas como
mineiros, construção civil, lixeiros e até no espaço, por suportarem a radiação. Ainda nessa
categoria, por serem baratos, a empresa disponibiliza modelos para pessoas menos exigentes,
destinados às tarefas de casa, em hotéis, em hospitais etc. As categorias humanizadas (com
rostos humanos) são duas. A primeira delas são modelos humanizados divididos em vários
modelos que atendem a um público com um pouco mais de recursos, e se dividem pelo corte de
cabelo e do vestuário. Um exemplo é o robô cuidador do pai de George, que está sempre em
pane – este é um modelo do tipo “Anos Dourados”. Esses modelos são programados para
cumprir tarefas específicas de casa, como atender às necessidades de uma família, cuidar de
pessoas com alguma necessidade especial, mas também atender como mordomos nas casas,
garçons em restaurantes, fazer tarefas servis em escritórios, academias etc. A categoria mais
avançada cumpre as funções mais elitizantes, como relações-públicas para empresas e lojas e são
também programados para serem amantes.
Todos os robôs citados são criticados duramente por uma boa parte da sociedade. E os robôs
destinados ao sexo são os mais polêmicos devido à falta de uma educação sexual séria na
sociedade, o que leva a um tipo de moralismo, o qual possivelmente nunca deixará de existir em
maior ou menor grau, mesmo no futuro. Todos os robôs, portanto, são vistos como uma ameaça,
tanto pelas famílias quanto pelos sindicatos de trabalhadores.
Mas, para a maioria das pessoas, os robôs são uma invenção da humanidade que, na prática,
atende às mais variadas necessidades e dificuldades do trabalho humano, deixando a vida mais
confortável. Porém, existem questões profundas que veremos mais adiante.
A Cronos é uma corporação que produz a maior parte dos robôs daquela sociedade e está
interessada apenas em dinheiro. Sua grande rede de lojas vende sete em dez robôs produzidos no
mundo. Evidentemente, ela não está interessada em filosofia existencialista. Seu poder é tão
grande que chega a influenciar o governo russo. O CEO da Cronos, Viktor Toropov, é muito
atuante nas redes sociais e participa de programas ao vivo para melhorar a imagem da empresa
perante o seu imenso público. Já no primeiro episódio, ele diz o que pensa em um programa de
TV, intitulado “Tarde para três”, e cujo tema é cibersexo.
Programa de TV
“Uma praga da nossa época ou um passatempo inocente?”. Essa é a pergunta do apresentador
Maxim aos espectadores do programa “Tarde para três”. Ao mesmo tempo, a câmera mostra um
casal e uma robô com um laço de fita na cabeça, com sorriso indiferente e cabelo levemente
desalinhado. Maxim conta ao público que a esposa flagrou o marido com um robô de sexo e
agora ela o acusa de traição. O marido se defende dizendo que seu relacionamento não pode ser
considerado traição “porque robôs não são seres vivos”. Um psicólogo, também convidado a
debater, chama estes robôs da Cronos de “pragas cibernéticas”, que destroem lares pela ganância
de seu CEO. Viktor Toropov rebate às críticas, argumentando que os robôs de sexo cumprem
“um papel social”, porque eles até “extinguiram o mal da prostituição”. “O senhor fala sério?”,
ironiza Maxim. Toropov ratifica suas palavras e ainda afirma que “não se pode ter ciúmes de
uma cafeteira ou de aspirador de pó. O robô de sexo é um utensílio doméstico. Nada mais. Ele
apenas tem aparência humana. É uma imitação. Você não pode tomar café da manhã com ele,
dar as mãos no metrô, ter filhos nem envelhecer com ele”. E faz uma citação ao filme Solaris, de
Tarkovski2: “O homem precisa do homem”. Para o dono da empresa, robôs são brinquedos que
facilitam a vida moderna e isso melhora o mundo.
A citação à Tarkovski pelo CEO da Cronos é claramente cínica, porque suas afirmações se
baseiam em percepções de um tecnocrata alheio ao que se passa em seu redor e à sua própria
cultura. O filme foi produzido durante a guerra fria e baseado no livro Solaris, de Stanislaw Lem,
mas apresenta uma visão diferente dele. A discussão é sobre contato com alienígenas. A única
mensagem autêntica de Lem, no filme, se dá através do personagem Snout, que está embriagado.
Um dos personagens propõe um brinde a Snout, pelos seus esforços, e à Ciência. Snout, então
faz esse discurso: “A ciência? É uma fraude. Ninguém jamais resolverá esse problema, nem
gênio nem idiota. Não temos a menor ambição de conquistar o cosmos. Queremos apenas
estender a Terra até as fronteiras do universo. Não queremos mais mundos. Somente um espelho
para ver a nós mesmos. Tentamos tão bravamente travar contato, mas estamos fadados ao
fracasso. Parecemos ridículos buscando algo que tememos e que realmente não precisamos. O
homem precisa do homem.” Com isto, o personagem diz que o homem preferirá morrer a deixar
a si mesmo, seus sonhos, suas esperanças, sua genética, o que lhe pertence, em troca de algo
estranho e temido. Ou pior, por mais que nos esforcemos, jamais entenderemos o desconhecido.
Mas o filme segue em outra direção, ao contrário das opiniões do personagem Snout. O filme dá
um final em que compreender o universo pela ótica humana é mais óbvio e confortável. O
planeta Solaris providencia uma bolha, uma ilha, onde tudo é antropomorfizado, deixando mais
fácil à compreensão. Kris, o protagonista, encontra com seu pai, para contrapôr à cena final de
2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Kubrick, em que um feto simboliza m novo início da
civilização.
Lem não concorda com Tarkovski porque nota a superficialidade dessa questão, e também
porque não foi essa a mensagem que tentou passar em seu livro. Lem deixa claro que “o homem
sempre projeta os seus próprios modelos mentais sobre o universo estranho”. O mesmo que falou
o personagem Snout. Ou seja, o homem jamais entenderá o que é radicalmente diferente de si e
sempre projetará no outro ou no inanimado a sua humanidade, resultando sempre em completo
engano. E aí está a diferença. A ilha, do final do livro, só existe para garantir a vida do
protagonista. Não é para uma vida fácil, mas uma espera de “milagres cruéis” (relacionado à
esposa morta do protagonista). Como diz Suvin: “Só para os outros homens o homem é a medida
para todas as coisas e os seus modelos mentais não podem ser projetados com utilidade sobre o
universo.” Lem procura deixar o final em aberto. E quando o homem entender esse
desconhecido, não será mais o mesmo homem.
Voltando à citação “o homem precisa do homem”, na verdade, antropomorfizar a robótica é
um perigo porque se não entendermos a nós mesmos em relação ao desconhecido entraremos em
um beco no qual só encontraremos sofrimento.
2
YOUTUBE, Солярис. Серия 2 (FullHD, фантастика, реж. Андрей Тарковский, 1972 г.) - Solaris, Parte 2
(FullHD, fantasia, dir. Andrey Tarkovsky, 1972). (https://www.youtube.com/watch?v=xXa6XpaxBS0) Abrir
legendas em português.
Sobre a questão da guerra fria, Suvin cita um exemplo que o próprio Lem dá sobre a ficção
científica, sem citar Arthur C. Clarke (que se aproveitou da guerra fria em vários de seus livros,
como em 2001 – A Space Odyssey): “É particularmente lastimável limitar as possibilidades de
novos mundos ao papel antropomórfico dos nossos governantes ou sujeitos – um golpe na ficção
científica ocidental, projetando a guerra fria sobre tramas cósmicas.”3 Então, Better than Us,
através do comentário cínico de um personagem, preferirá a alternativa de Lem, sem entrar na
questão da nova guerra fria do século XXI, e não a de Clarke?
Ao mostrar programas de TV em que casais discutem a relação, com acusações de
infidelidade, cenas que são até um clichê hoje em dia, ainda que baseadas em excelentes filmes e
séries de ficção científica, como I.A - Inteligência Artificial, Blade Runner e Humans, a série,
apesar das dificuldades de produção, mostra seu caráter atento sobre a narrativa. Explicita a
crítica de que estes programas são superficiais e apenas enfatizam o bizarro para chamar a
atenção de um público entediado.
Essa abordagem adotada pela série demonstra também superar questões geopolíticas da região
onde ocorre a trama. Ainda que haja menção a um protótipo desconhecido de robô produzido na
China, talvez a série não vá “antropomorfizar” robôs no contexto da nova guerra fria. Mas seria
desejável que colocasse em cheque a guerra insana por dinheiro e poder usando o
desenvolvimento científico em detrimento das pessoas, das populações vulneráveis e da
liberdade de pensamento.
Para que servem as três leis?
Enquanto isso, um novo protótipo de robô é descarregado na garagem da sede da Cronos em
Moscou. O CEO, Toropov, diz que se trata de um modelo único, criado em um respeitado
laboratório, o Hu Xyan. O protótipo se chama Arisa (segundo a página de Better than Us, na
Wikipédia russa4, é o nome de uma iguaria Armênia – mingau salgado com frango e sementes
de trigo. Segundo a mesma página, “o nome escolhido não foi por acaso”).
Os técnicos encarregados do estoque de robôs são chamados a levar a caixa recém-chegada à
sala do chefe, onde não há câmeras. A robô, ao ser retirada da caixa, informa que sua bateria está
em 5%, dirigindo-se a um nicho de recarga. Toropov chama seu principal engenheiro,
Mikhailovich, para estudar o manual chinês do novo protótipo. A conversa entre o engenheiro e
o CEO denota a suspeita de que o robô fora comprado no mercado negro e que o manual tem
páginas faltando.
Após Toropov sair da sala, um dos técnicos, que é pivô da trama, planeja ter relações sexuais
com a nova robô. Surpreendentemente, Arisa reage às investidas do técnico, usando força
demasiada, matando-o.
A série deixa claro que as três leis asimovianas não só impedem os robôs de se rebelarem
contra os humanos, mas – e principalmente – impedem que eles reajam às agressões sistemáticas
contra eles. São tidos como inofensivos e subjugados, por isso são tratados como objetos
3
Lem, Satnislaw, Solaris. Ed. Europa-América, Coleção Ficção Científica, Posfácio de Darko Suvin. 1983.
inferiores. Eles permitem que sejam xingados, agredidos e, quando se trata de um robô de sexo,
violados.
Os robôs entendem mais de cozinha, limpeza e relação sexual do que os próprios humanos.
Fazem tudo isso a um custo menor que as despesas com diaristas, empregados etc. Por
consequência, os humanos veem seus empregos roubados ou extintos. Irritam-se com facilidade
estejam os robôs onde estiverem, na cidade, na indústria, no trabalho, no lar… O ódio dos
trabalhadores e das famílias conservadoras é crescente e torna-se estrutural.
Agora, acrescente-se ideologias classistas, morais e religiosas a essa irritação e teremos o
ódio organizado aos robôs. Os movimentos antirrobôs são chamados Liquidantes (na tradução
das legendas em português do Brasil) ou Aniquiladores (na dublagem); em inglês, “Liquidators”.
Os Liquidantes agem de máscaras, atacando robôs para levá-los a manifestações relâmpagos,
retirando deles o chip de memória e enforcando-os nos viadutos ou queimando-os. Somente
quando um de seus membros mata uma pessoa a polícia se empenha em identificá-los e prendê-
los.
Situações estranhas ao Ocidente
O governo tem o objetivo de executar o programa “aposentadoria antecipada”, investindo em
robôs para substituir trabalhadores. Não fica claro se a aposentadoria seria apenas para os
servidores do Estado ou se para toda a sociedade. Alexei Stepanovich (Sergey Sosnovskiy), pai
da esposa de Toropov e maior acionista da empresa, explica: “Com uma expectativa de vida de
setenta anos, a idade mínima de aposentadoria é sessenta e cinco. Agora, imaginem que podemos
dar às pessoas vinte anos de uma vida livre e sem preocupações. É o objetivo do programa
aposentadoria antecipada. Mandamos uma pessoa tirar férias aos quarenta anos, cuidando do seu
sustento, enquanto substituímos o cargo por robôs de última geração. A manutenção deles é três
vezes mais barata do que custo com salários e programas sociais”. É o clássico populismo
liberal, onde empresas são financiadas com dinheiro do contribuinte com uma promessa de criar
empregos e antecipar aposentadorias com um projeto que na verdade retira empregos, reduz
salários e corta custos sociais.
Daí os Liquidantes reclamarem que os robôs roubam seus empregos. Porém, parece que a
série não vai fundo nessa questão, por exemplo, apesar de haver uma certa degeneração dos
conjuntos habitacionais e da infraestrutura urbana, não se vê pessoas desempregadas nas ruas.
Não há uma cena em que pessoas procurem emprego e não encontram. O que nos deixa um
pouco perdidos e nos faz voltar à cena da reunião ministerial para entender qual era mesmo o
plano do governo.
Para o programa dar certo e a Cronos lucrar com isso, é preciso que haja realmente um
protótipo de robô que atenda às necessidades e cumpra o prometido. E este protótipo é Arisa.
Mas ela está desaparecida, cuidando de uma família, também envolvida direta e indiretamente
com os crimes da empresa e da própria Arisa.
Os crimes das personagens
Em Better than Us, ninguém é inocente. Todos têm algo a esconder. São os motivos de cada
um que fazem o espectador torcer pela protagonista.
Arisa (Paulina Andreeva), como já vimos, cometeu um crime antes de recarregar 100%.
Torcemos por ela porque sabemos que ela se defendeu de um agressor pervertido. Mas ela é uma
robô e, como tal, poderia ter evitado matar uma pessoa. Não sabemos se o fato de ela não estar
em pleno funcionamento altere alguma coisa nesta questão. Arisa irá ágar por isso?
George Safronov (Kirill Käro) foi um importante cirurgião, mas um “erro médico” o levou
para o ostracismo. Sua vida, a partir daí, foi destruída e sua mulher busca a separação. Agora,
trabalha como patologista em um necrotério da cidade. Precisando resolver questões familiares,
ele aceita dinheiro para fraudar um laudo pericial de um cadáver, casualmente o mesmo que
Arisa assassinou. George vai cometer outros crimes graves para encobrir o primeiro.
O adolescente Egor Safronov (Eldar Kalimulin) sofre bulliyng na escola e tem motivos para
ser revoltado. Ao flertar com a garota Zhanna (Vera Panfilova), logo percebe que ela está
envolvida com os Liquidantes. Ele, na ânsia de se enturmar com esse grupo, comete infrações e
seu pai precisa evitar que ele vá para a cadeia.
A pequena Sonya (Vita Kornienko), aliás, uma das notáveis participações na série, sofre com
a separação dos pais. Ela precisa muito de uma amiga e seu crime é esconder Arisa no armário
de seu quarto, mas não consegue fazer isso por muito tempo.
Alla (Olga Lomonosova), a ex-mulher de Safronov, cria uma situação ilegal para tentar
arranjar provas de que seu ex-marido não é um bom pai. A finalidade é fazer com que ele perca
na justiça a guarda das crianças.
Pavel (Kirill Alexejewitsch Poluchin), ex-investigador do Departamento de Homicídios,
cometeu crimes no passado, quando tentou incriminar a Cronos em ilícitos. Por causa disso, foi
rebaixado a investigador do Departamento de Crimes Cibernéticos.
Viktor Toropov (Aleksandr Ustyugov), CEO da Cronos, é um mentiroso contumaz, passando
por cima de todos que atravessam seu caminho e, para resolver seus problemas, paga espiões,
capangas e pistoleiros para perseguir e/ou executar inimigos.
O software misterioso de Arisa
Arisa não é uma robô fugitiva qualquer. O programa dela é estabelecer conexões com seres
humanos, no caso, uma família. Seu objetivo é executar uma tarefa que ainda desconhecemos
inteiramente. Para começar, ela torna a pequena Sonya sua primeira usuária, seguido do irmão
Yegor e, depois, do pai, George, como usuário principal, mesmo sem o conhecimento dele.
Quando ela diz “a família está completa”, percebemos que seu programa não é tão perigoso
quanto parecia inicialmente. Arisa fica com a família, escondida no armário e, depois, quando é
descoberta, tenta provar que é necessária para cuidar de todos os seus “usuários”.
A certa altura, Arisa parece sentir ciúmes (ou reação cibernética equivalente) primeiramente
de Alla, a ex-mulher de George, e depois de Lara (Mariya Lugovaya), garota que se envolve com
os Liquidantes por motivos pessoais e usada por eles para retirar as memórias de Arisa. É com
esta última que Arisa passa para uma nova fase, aprendendo correlações entre as várias
possibilidades das relações humanas. E, assimilando a complexidade dessas relações, Arisa faz
jus ao título da série, podendo ser até mais humana que os próprios humanos.
Sobre o título da série no Brasil
Em russo Лучше чем люди (Luchshe chem lyudi)4 significa, na tradução do Google,
“Melhores que Humanos”. A palavra “humano”, em russo, é Человечество (Chelovechestvo).
Essa palavra não tem plural, sendo que o seu plural é “pessoas”, люди (lyudi). Assim, em
tradução ao pé da letra, ficaria “Melhores do que as pessoas”, o que não soa muito literário.
“Humanos” é muito mais abrangente e impessoal. “Nós”, é mais pessoal e intimista, como os
estadunidenses gostam. No Brasil, o título deveria ser “Melhores que Humanos”, mas será que
isso teria implicações com outra série, Humans? No espanhol, ficou “Mejores que nosotros”. O
fato de “Melhores” estar no plural poderia significar que os robôs, em geral, são “melhores do
que nós”. Mas sabemos que isso não é verdade, a julgar por alguns que vivem entrando em pane.
Existirão mais Arisas?
Motivos para ver Better than Us
Robôs assassinos e a violação às três leis não são novidades na literatura, na TV ou no
cinema. Mas existem particularidades na série que a torna digna da nossa atenção. 1) É uma série
russa com excelentes roteiristas e atores; 2) Não só por razões históricas e geopolíticas, é
importante sabermos o que eles têm a oferecer porque é um país cuja literatura é clássica e
possui uma vasta produção científica; 3) Arisa não possui as salvaguardas das três leis da
robótica, o que a torna perigosa e misteriosa, ao mesmo tempo que sabe lidar com crianças e se
defender como um ser humano culto; 4) Uma série que levanta a questão de relacionamento
possível com inteligência artificial autônoma e livre arbítrio.
A importância dos atores no sucesso da série
A narrativa, segundo alguns críticos, fica morna a partir do quarto episódio, ganhando força
nos episódios finais. Isso tem uma explicação. É visível que a série foi feita às pressas e sem
muitos recursos. Os efeitos especiais são escassos e os cenários são os encontrados na própria
cidade de Moscou. Embora haja carros elétricos, o de Safronov é um velho carro movido a
gasolina, que tem problemas com o motor de arranque. Isto talvez sirva para dar mais
personalidade ao protagonista. Mas a narrativa e seus atores são interessantes demais para deixar
que problemas de produção afetem o seu fascínio.
Excelentes e experimentados atores seguram as pontas em Better than Us. A robô
protagonista, Paulina Andreeva (Arisa), está muito bem caracterizada como uma robô empática
fascinante. Não é uma triz novata, participou de vários filmes, inclusive tem uma carreira como
cantora. Ela encarna com maestria a androide segurando a narrativa com maestria.
Kirill Käro (George) tem uma filmografia robusta na televisão e cinema russos. Com
competência, interpreta um pai de família grosseiro e desesperado, que tenta impedir que seus
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https://ru.wikipedia.org/wiki/Лучше, чем люди
filhos sejam levados para outro país, sejam presos ou atacados por criminosos. Atualmente, Kirill
está em outra série da Netflix, Cidade dos Mortos.
Aleksandr Ustyugov (Viktor Toropov, CEO da Cronos) merece o nosso respeito, encarnando
o vilão tecnocrata da série, despertando um sentimento de aversão no espectador. É estranho vê-
lo no último episódio, nas cenas costumeiras em que os atores riem de suas falhas, ao estar muito
à vontade com Andreeva, a robô a quem perseguiu a série inteira.
A atriz mirim Vita Kornienko (Sonya) está desinibida em um papel que certamente exigiu
dela muitas horas de cenas difíceis de gravação. O que significa que a equipe por trás das
câmeras são excelentes. Vita também participa de outro filme na Netflix, Estranho Passageiro –
Sputnik.
Eldar Kalimulin (Yegor) é um ator que começou cedo e também está no seriado Cidade dos
Mortos, no qual atua no papel de um menino autista. Sua atuação é consistente até o fim em
Better than Us, caracterizando com firmeza um adolescente rebelde, arrogante e inseguro.
Os outros atores da série não deixam por menos, basta fazer uma pesquisa rápida para saber
que são a primeira linha dos atores russos.
As influências de Better than Us
Além de Solaris, filme do qual já falamos, e as obras da série robôs de Asimov, com suas três
leis da robótica, Better than Us inspirou-se no desenho dos robôs do filme Eu, Robô. A tinta
vermelha com a qual os Liquidantes pintam os olhos dos robôs é uma referência direta a Blade
Runner (1982), de onde também retiram inspiração para a sensualidade cibernética das robôs de
sexo de Blade Runner – 2049. Sem esquecer de Humans e WestWorld, embora estes dois últimos
certamente devam ser citados, eles também bebem das fontes principais referidas anteriormente.
A referência mais tocante fica para a personagem Svetlana Toropov (Irina Tarannik), esposa
de Viktor Toropov, CEO da Cronos. Ela perdeu seu filho na mesa de cirurgia devido a um tumor
no cérebro e nunca se recuperou dessa perda. O trauma levou-a a adotar um robô criança, o que
nos leva à personagem Mônica de IA – Inteligência Artificial. Um drama forte que poderia ser
melhor trabalhado, já que está no centro do enredo da série, tendo a ver com o passado do
cirurgião George.
Better than Us merece a nossa atenção não porque é uma série detetivesca de FC, onde um
robô comete um crime, nem pelos efeitos especiais, os quais já estamos acostumados por outras
séries e filmes. Merece ser vista porque tem como protagonista uma robô empática
extraordinária, com uma missão misteriosa, mas altamente nobre quando se dedica a defender
uma família à beira da destruição.
Ficha Técnica
Better than Us
Elenco Principal
Paulina Andreeva
Kirill Käro
Aleksandr Ustyugov
Olga Lomonosova
Eldar Kalimulin
Vita Kornienko
Aleksandr Kuznetsov
Vera Panfilova
Fedor Lavrov
Sergey Sosnovsky
Pavel Vorozhtsov
Irina Tarannik
Sergey Kolesnikov
Kirill Polukhin
R.C. Belli é natural de Blumenau, escreveu e adaptou mais de 100 histórias infantis como
Roberto Belli. Publicou obras no gênero Fantasia e Ficção Científica: “Os Ceifadores” (2007),
com o saudoso ilustrador Eugênio Colonnese, “Farol do Espaço Profundo” (2012) e, na teoria
literária, escreveu “Ficção Científica – Um Gênero para a Ciência” (2012). Publicou na
Somnium 106 “A Especiaria Proibida” (2013), Que pode ser encontrado na Amazon.
RESENHA 4 – I AM MOTHER
Gel A.P.S. Lopes
Gel A.P.S. Lopes é escritor, mestre de RPG, poeta e controlador de tráfego aéreo.
RESENHA 5 – RAISED BY WOLVES
Gel A.P.S. Lopes
Produzida por Ridley Scott e lançada no segundo semestre de 2020 Raised by Wolves da HBO
Max consegue ser um seriado impar em meio há muitas produções com o tema de ficção
científica. Isso tudo devido há seus destaques nas atuações, a apresentação dicotômica entre fé e
razão e sobre o homem e o que há dentro dele seja através da maldade, mentira ou mesmo dentro
do que foi criado para ser um androide mostrando seu reflexo na criação do mesmo.
O prelúdio do seriado é explicado com uma grande guerra entre ateus e religiosos que acabou
com o mundo como conhecemos. Os androides father e mother são incumbidos de que acharem
um mundo onde possam “gerar filhos” e começar uma outra civilização onde a religião não deve
ser citada para que não haja futuras disputas. Da mesma forma os Mithriacs, grupo sobrevivente
e extremamente religioso, viajam em suas naves pelo espaço com o objetivo de assegurar a raça
humana. Os primeiros conflitos acontecem quando os androides efetivam o objetivo que foram
programados que é criar os bebês e gerar uma civilização. Este mundo é precário, com poucos
recursos, por outro lado demonstra claramente que abriga ameaças passivas e ativas que vão
afetar a vida da nova civilização com obstáculos geográficos e da fauna local. Já pro lado dos
Mithriacs as ameaças são internas onde mentiras, luta por sobrevivência as catástrofes sociais,
abusos de muitos tipos que vagueiam o alto clero acabam por nos fazer questionar se a
verdadeira fé ainda existe ou foi totalmente corrompida por uma filosofia de interesses.
Aaron Guzikowski (diretor) age com total sincronia com Scott na produção para gerar uma
série original e ousada na premissa de colocar dois assuntos tão discutíveis no meio de todos os
episódios onde religião e sustentabilidade de uma inteligência artificial são postos lado a lado e o
tempo todo podemos sentir a dualidade do extremismo de ambas as partes, seja do grupo
religioso que buscam e geram otimismo, mas punem de modos antiquados e reagem a tudo com
uma mentalidade utópica e do outro lado uma geração criada por um Adão e Eva sintéticos que
precisam evitar a todo custo que a nova humanidade não possa ter fé em nada a não ser em seu
próprio intelecto, o que também gera ações cabíveis de duvida, pois crianças e adolescentes
crescendo claramente demonstram carência por algo mais do que trabalhar e crescer sem
pretensões de encontrar um criador ou uma filosofia tangente ao emocional humano. Crianças
criadas por androides ateus podem crescer e criar uma geração promissora? Dentro de tudo isso
ainda temos os conflitos internos em ambos grupos.
As atuações do lado da colônia dos androides merecem destaque por parte dos pais e das
crianças, principalmente pela materna e aterrorizante mother interpretada por Amanda Collin
onde seu temperamento programado e suas atitudes de proteção a qualquer custo geram
sentimentos assustadores no telespectador, em seu parceiro e nas crianças. Travis Fimmel,
(Ragnar em Vikings) sem poder falar muito para não estragar o arco do personagem desde o
primeiro episodio trás uma boa interpretação com maneirismos de seu antigo personagem viking,
nada que atrapalhe a obra, na verdade seu conflito com sua parceira é uma das coisas mais
interessantes da série já que gera cenas angustiantes e tensas.
Raised by Wolves facilmente entra com classificação alta na lista de obras de ficção científica
de 2020 pela sua criatividade e ousadia nos assuntos tratados tão delicados como lado bom e
ruim da religião, dogma de androides fazendo papéis que à principio seria inadmissível de se
imaginar um não humano fazendo, tratar de assunto como abuso sexual de menor (sem cenas
fortes), punições exageradas, seleção de classes para resgate espacial como um navio de
refugiados, cenas tensas e apreensivas de monstros locais ou dos perigos que as crianças
enfrentam pela curiosidade delas. O seriado dificilmente não agradará os fãs que buscam ficção
científica e tem afinidade por esses assuntos ainda mais abordados de uma forma tão homogênea
sem virar uma confusão visual de enredo. Por outro lado tanto fãs como pessoas que não estão
acostumadas com diversos temas podem achar estranho e distante os pontos fortes da trama,
principalmente o último episódio que tem revelações que, digamos, não chega a decepcionar, na
verdade pode até instigar e arregalar os olhos de alguns, mas muda o foco de toda trama que
continua sendo ficção cientifica mas agora com uma outra abordagem, que sinceramente vindo
de Ridley Scott não é tanta surpresa assim. Contudo já sabemos que uma segunda temporada não
abordaria tanto o ambiente que se foca em discussões filosóficas e religiosas e sim num outro
ponto de ameaças de viagem espaciais. Se você é fã de ficção científica vá sem medo nenhum
com o balde de pipocas na mão, se você só esta procurando uma boa série na HBO Max,
experimente também, pois roteiro criativo, atuações boas e cenas espantosas te aguardam.
Gel A.P.S. Lopes é escritor, mestre de RPG, poeta e controlador de tráfego aéreo.
A QUIMERA DE SD2
João Gomes
Numa clara manhã de verão, um menino, na biblioteca municipal, olhou para fora e viu –
quiçá – um robô azul, SD2, pacificamente contemplando uma garota saboreando um cascão no
recreio. Então foi até a bibliotecária e disse:
— Tem um robô azul, um SD2, flertando com a Ágata do segundo ano F.
Aborrecida, Maria da Conceição, retrucou:
— Impossível, androides não sentem — e continuou a preencher suas planilhas de trabalho.
Vagarosamente o menino foi até o pátio. SD2, estático, contemplava a Ágata.
— Ei, SD2 — chamou ele, acenando.
O androide continuo imóvel.
Intrigado, o estudante novamente disse a bibliotecária:
— O SD2 continua flertando com a Ágata. Imóvel. Eu o chamei e ele não se mexeu.
Agora ela ficou muito irritada:
— Você é um lunático, e eu vou te internar num hospital psiquiátrico.
O menino que não apreciava a ideia de passar qualquer tempo dentro de um hospital,
especialmente numa estação tão bonita, refletiu por um instante e declarou:
— Veremos.
A bibliotecária, agora tomada pela fúria, foi apressadamente até o pátio. Internamente ela se
comprazia pela oportunidade de ter uma chance de pegar esse sujeitinho ridículo, essa escória
social. Acionou a polícia e o SAMU, instruindo-os para que chegassem rapidamente e com
aparato de contenção.
Quando as duas equipes chegaram, ela, muito exaltada, foi logo dizendo:
— Um aluno viu um SD2 contemplando uma aluna hoje de manhã.
Os policiais e paramédicos se entreolharam, e ela continuou:
— Ele me disse que o robô estava ali, flertando hoje de manhã.
De novo as equipes trocaram olhares de suspeição.
— Era um SD2 azul — insistiu outra vez.
Abruptamente os policiais agarraram-na. Ela resistiu bravamente, mas no final foi dominada e
imobilizada com o recurso especial de contenção.
— Foi ele que disse — ela gritou no momento que o estudante chegava.
— Por acaso disse a esta senhora que viu um SD2 azul flertando — indagou-lhe incrédulo o
agente da lei.
— Impossível, senhor. Androides não sentem — respondeu serenamente o aluno.
— Bem, isso era o que precisávamos saber — replicou o policial.
— Vamos levá-la sob custódia. Será internada.
Ela surtou de vez. Berrando e se contorcendo, a bibliotecária foi levada ao hospital para
exames.
Dias depois a 43a Delegacia atendeu uma ocorrência de invasão de domicílio. E qual a
surpresa ao encontrar, abatido, sob a janela de Ágata, um SD2 azul e ao lado um livro de Castelo
Branco.
João Gomes é contista, poeta e pesquisador brasileiro. Autor da coletânea de ficção científica
A Ária das Górgones, 2021, Amazon.
CARAMELO
Rubens Angelo
O menino olhou para as tábuas mal amarradas, a estreita ponte vibrando com o vento forte,
soprado pelo mar que se revoltava muitos metros abaixo. Seu rosto estava vermelho, tanto pela
adrenalina quanto pelo castigo do sol; sempre esquecia de passar protetor. Pisou com sua bota de
borracha na madeira molhada e ficou petrificado por um instante, segurando firme nas duas
cordas estendidas ao longo da passagem, que serviam de corrimão. Tomou coragem e deu um
primeiro passo, sentindo a sola deslizar lentamente no limo que recobria a passarela. “Por que a
Nina teve que se mudar para cá?”, ele ruminou fechando os olhos. Pensou em desistir, mas
aquele era um caso de vida ou morte. Com teimosia, aceitou o desafio da ponte e seguiu em
frente, balançando-se junto com o vento e machucando as palmas das mãos de tanto que
pressionou as cordas no caminho. Quando enfim chegou ao outro lado, um convés de navio
naufragado, disparou a correr e adentrou o conjunto de moradias de palafitas que formavam a
vila flutuante de São Gonçalo do Retiro.
— Nina! Nina! — o menino de seis anos gritou ao entrar no galpão.
— Patu, deixa de ser sem educação — repreendeu Nina, depois abrandou o tom. — O que
está fazendo aqui? Não sou mais sua professora. Sou da escola do Terreiro agora.
— Não tem terra nenhuma aqui — o menino debochou olhando o chão de metal em volta.
Depois olhou para ela, intrigado. — Por que seu cabelo tá assim amarrado agora?
— São tranças Nagô, Pato. Aqui na vila todo muito gosta. Mas desembucha logo, por que
veio? Sua nova professora de Tecnomática é tão ruim?
— Ela é péssima, não é esperta como você. Mas eu vim aqui pra te buscar. Você precisa
salvar o Caramelo.
— O que houve com seu cachorro?
— Ela tá muito mal — respondeu com um muxoxo, quase em lágrimas.
— Carambola, tá bem, mas sem choro. Hum… vem comigo!
A jovem, com apenas quinze anos, era uma expert em programação e cyber circuitos, tendo
aprendido tudo praticamente sozinha, enquanto acompanhava o pai, um técnico de hardware que
trabalhava na manutenção das torres de comunicação do Governo da Bahia. Nina fechou o
console do computador e afagou os cabelos loiros e encaracolados do menino, acalmando-o para
que não chorasse. Depois seguiram para os fundos do galpão, onde uma escadaria dava acesso a
uma plataforma ampla, que abrigava vários barracões. Passaram por uma oficina que estava com
seus portões abertos. Um grupo de mulheres trabalhava com desenvoltura, cantando enquanto
fiavam em tradicionais teares de madeira. Quando viu Nina e o menino passarem, uma das
mulheres os chamou:
— Nina, vem ver! — A mulher ergueu o tecido, alternado de vermelho e branco.
— Lindão! Mas desculpa aí — a jovem puxou pela mão o menino, que estava hipnotizado
para ver o tear. —, agora estamos com pressa.
Continuaram seguindo, cruzando o pátio em direção ao grande Terreiro. Atravessaram um
portão largo, adentrando uma antessala que servia de memória e museu. Muitas fotografias,
roupas, máscaras e objetos africanos recheavam as paredes. Uma mulher alta, esguia, usando um
vestido longo e turbante, abriu um largo sorriso, estendendo os braços ao vê-los entrar. O branco
dos tecidos fazia ressaltar ainda mais sua pele negra. O menino ficou encantado com os brajás, os
colares de contas coloridas que brilhavam no pescoço da mulher.
— Essa é Mãe Yewande, a nossa “mãe que voltou” — Nina apresentou a mulher com
orgulho. — É ela quem cuida de tudo aqui: a escolinha, as oficinas e o Terreiro.
— Que boa visita. E qual o seu nome, rapazinho do cabelo loiro?
— Tem terra lá dentro? — questionou o menino, apontando para o Templo.
— Deixa de ser bobo! — Nina o repreendeu.
— Tudo bem — conciliou Mãe Yewande. — Ele só está curioso.
— Meu nome é Paulo Túlio — o menino falou, mas depois acrescentou com orgulho: — Mas
pode me chamar de Patu. Foi a Nina que me deu esse apelido e eu gosto.
— Pois bem, Patu — a mulher continuou. — Esse é o Terreiro do Axé Opô Afonjá. E ali no
fundo fica o Tempo, mas não tem terra lá dentro.
— Então não deveria se chamar “Terreiro” — concluiu o menino atrevido.
— Burrão! — Nina não aguentou segurar.
— Não há terra agora, mas tinha, muito tempo atrás — disse com ternura Mãe Yewande. —
Você já é grandinho e deve ter ouvido na escola que o Brasil era bem maior, que tinha muita
terra seca. E que nem sempre o mar foi tão alto quanto é hoje.
— Minha professora mostrou um filme. Aí eu vi o mar subindo e alagando a cidade. — disse
o menino e fazendo o movimento das águas com as mãos.
— Isso mesmo — concordou a mulher. — Aqui era uma vila bem grande, com muitas casas,
praças e shoppings… e aqui também ficava o Terreiro original, que foi criado por Mãe Aninha,
em 1910. Agora ele está bem embaixo de nós, no fundo do oceano.
— Faz tempo, né?
— Sim, Patu. O Terreiro vai fazer 170 anos de idade — disse Mãe Yewande e depois olhou
para Nina. — E hoje nós temos uma terra diferente, uma que nos orgulha muito, que fica dentro
das pessoas que moram aqui.
— Desculpa ele, Mãezinha — Nina interveio. — A gente passou aqui para pegar um Q-Pad.
Tem um na sala de gravação holográfica. Será que pode nos emprestar?
— É caso de vida ou morte! — o garoto frisou.
Solícita, Mãe Yewande os levou até a sala anexa ao Templo, onde Nina habilmente
desconectou o computador portátil e o colocou em sua mochila. Despediram-se da sacerdotisa e
saíram apressados, mas não sem antes provarem as cocadas que ganharam de presente. O coco
era raro naqueles dias, e o doce foi degustado com euforia.
— Nina, acha que o Caramelo vai ficar bem?
— Bora resolver isso, Patu.
Saíram dos galpões do Terreiro e seguiram pelas estreitas passagens que conectavam todas as
edificações da vila. Como as construções eram todas improvisadas, havia casas suspensas por
colunas de ferro ou palafitas, outras construídas sobre flutuadores e até mesmo barcos
transformados em moradia, tudo amarrado no improviso, formando uma extensa favela sobre o
mar. Nina caminhava com tranquilidade e desenvoltura, mas o menino parava, toda vez que
encontravam um assoalho de gradil. Patu ficava com medo ao olhar para baixo e ver o mar por
entre as frestas. Com paciência, a jovem segurava na mão trêmula do garoto e o guiava nessas
passarelas metálicas.
Quando chegaram numa das bordas da vila flutuante, o garoto puxou Nina para lhe mostrar a
ponte de madeira e cordas que tanto havia lhe assustado.
— Você veio mesmo por ali? — a jovem falou incrédula.
— Sim, mas tive muito medo. As ondas me molharam.
— Só a galera braba usa essa pinguela — Nina disse sorrindo e depois apontou para o lado.
— Da próxima vez, pegue a de ferro. Tá vendo aquela ponte branquinha lá?
— Essa é mais longe.
— Ok, esqueci que você é brabo, Patu. — A jovem disparou a rir.
Andaram pela mureta da orla por alguns minutos, então Nina começou a acenar
freneticamente. Logo um barulho de motor surgiu e uma lancha veio se aproximando.
— Esse é o Caíque. É um amigo de infância e vai nos dar carona para Cabulla.
Desceram por uma escadinha em espiral até o nível do mar, onde a lancha estacionara. O
taxiboat era pequeno, com apenas o banco do piloto e dois assentos para passageiros. Caíque, um
jovem com seus 18 anos recém completos, mas bem alto, abriu um largo sorriso e os ajudou a
subir na embarcação. Com um zelo exagerado, fez questão de pegar a mochila de Nina e guardá-
la no diminuto bagageiro. O motor duplo rugiu e a lancha disparou para Cabulla, uma das poucas
ilhas de terra firme da cidade de Salvador. Para tentar agradar a jovem por quem tinha uma
paixão desde criança, Caíque ligou o sistema de som e a nova música da banda “Raça
Submarina” elevou-se nos céus, com seu ritmo de Afoxé.
— Eles vão dar um show nesse fim de semana, num cargueiro que está ancorado em Brotas.
O que acha de irmos juntos, Nina?
— Caíque, deixa a gente no píer dezesseis — respondeu a jovem desconversando.
O taxiboat chegou rápido e logo estavam desembarcando na ilha. O jovem, sem nunca desistir
de suas pretensões românticas, fez questão de ajudar Nina a subir e continuou a segurar-lhe a
mão. Patu, com ciúmes, saltou logo para o cais e abriu os braços impaciente:
— Bora, Nina!
— Tenho que salvar o cachorro do moleque — disse a jovem ao soltar sua mão. Começou a
caminhar, mas depois voltou-se sorrindo: — Te ligo à noite, ok?
Caíque pulou no seu taxiboat e voltou pro mar. Sua esperança estava renovada.
Nina e Patu caminharam pelas ruas estreitas da ilha, sombreados devido aos paredões de
concreto, frutos de um emaranhado de prédios que disputavam cada metro quadrado de terra
seca. Com a escassez de chão firme para as habitações, o preço de morar nas ilhas era altíssimo,
mesmo que fosse para viver em um cubículo de cinco por cinco. Nina andou por aquelas ruas
familiares da sua infância, mas não sentiu saudade. Era um lugar frio e abarrotado, onde as
pessoas pouco se falavam e não havia senso de comunidade. “Prefiro mil vezes a favela
flutuante, pelo menos lá a gente pode cantar, a gente pode dançar”, pensou consigo mesma. Não
se arrependia de ter ido embora, apesar dos protestos de seu pai, que teimou em continuar na
ilha.
Quando chegaram no quarteirão do condomínio de Patu, se assustaram com o movimento de
máquinas pesadas bloqueando a rua. Havia uma multidão cercando o maquinário e gritos de
revolta podiam ser ouvidos. Nina segurou a mão do garoto e o puxou, mudando o trajeto para
ficarem longe do tumulto. Com cuidado, apressaram o passo e contornaram a confusão, mas
Nina conseguiu ver nitidamente duas monumentais auto escavadeiras destruindo um edifício. A
aglomeração, formada provavelmente pelos inquilinos despejados, era contida por uma dupla de
robôs enormes; todos tinham o logo da OES Construtora.
Chegaram no prédio de Patu e viram um grupo grande de moradores reunidos no saguão. O
menino soltou a mão de Nina e se embrenhou no meio das pessoas.
— Pai! Pai! — gritou animado. — Você voltou mais cedo!
O pai do garoto ficou surpreso de vê-lo vindo da rua, mas soltou uma risada forçada e o
abraçou forte, erguendo o filho do chão. Ainda com o filho no colo, olhou desconfiado para a
adolescente de cabelo trançado que se aproximava. Não havia muitos negros morando nas ilhas,
ainda mais depois das leis que proibiram as religiões de origem africana.
— E quem é essa aí?
— É a Nina, pai — explicou Patu. — Ela veio salvar o Caramelo.
— É melhor subir por que sua mãe está preocupada — disse muito sério, descendo o filho ao
chão. — Estamos tentando chamar a polícia para acabar com essa loucura.
Nina e Patu pegaram o elevador e foram para o apartamento, onde foram recepcionados pela
mãe do menino, que estava furiosa com seu sumiço.
— Mãe, o Caramelo tá mal, era um caso de vida ou morte — Patu defendeu-se.
— Não interessa, vai ficar de castigo assim mesmo! — ralhou a mãe com o filho, depois
encarou Nina, examinando-a de cima a baixo. — Obrigado por trazê-lo. Já pode ir.
— Ok, dona. — Nina disse seca. — Vou só escanear o cachorro e volto pro mar.
Patu guiou a jovem até a área de serviço, um diminuto espaço que dava para o fosso de
ventilação do edifício. O cãozinho estava enroscado e inerte num canto. Nina sentou-se no chão
e sacou o Q-Pad da mochila. Desdobrou a tela e acionou a varredura, procurando para ver se
tinha algum sinal vindo do Caramelo.
— Carambola! — lamentou a jovem. — Seu dogbot pifou mesmo. Curto-circuito.
— Não deixa ele morrer Nina.
— Pede pro seu pai comprar outro.
— Não! Tenho ele desde que nasci. Se me derem outro não será o Caramelo.
Nina viu os olhos marejados do menino e compreendeu sua aflição. Esses dogbots aprendiam
com o tempo, apesar de serem brinquedos, suas inteligências artificiais eram bem sofisticadas.
Para todos os efeitos eram mesmo companheiros e sentimentais como os cães. A jovem tirou seu
estojo de ferramentas da mochila e resolveu abrir o dogbot, para acessar seu registro de memória.
Se a bateria interna tivesse se fundido com o curto, a personalidade do Caramelo estaria perdida
para sempre. Plugou um cabo na matriz positrônica do cachorro e conectou com seu Q-Pad.
Depois de alguns minutos tensos, Nina suspirou:
— O Caramelo está salvo! — exclamou vitoriosa. — Ele agora está no meu HD.
— E agora?
— É simples, quando seu pai comprar outro dogbot eu descarrego a memória nele e pronto! O
Caramelo vai voltar, novinho em folha!
O menino ficou tão feliz que começou a pular e dançar. Nina não resistiu e comemorou
também, mas com seu gingado de samba. Quando voltaram para a sala do apartamento, ainda
festejando, encontraram a mãe de Patu muito nervosa, chorando.
— Seu pai acaba de interfonar para descermos — ela disse soluçando. — Aí meu Deus,
aquelas máquinas derrubaram o prédio vizinho e estão aqui na porta agora.
Era uma situação horrível, mas não necessariamente nova. Muitas construtoras adquiriam
prédios antigos para construir empreendimentos novos, mais altos, modernos e caros. O
problema era que alguns moradores não aceitavam a indenização proposta e partiam para a briga
judicial, que podia durar anos. Mas se a construtora vencesse, a coisa toda era colocada abaixo,
sem choro nem vela. Enquanto desciam no elevador, a mãe de Patu explicou que havia uma
disputa judicial no quarteirão, mas sem decisão ainda. Pelo menos era o que achavam. Quando
chegaram ao saguão, todos os moradores já estavam espalhados na frente do edifício, numa
tentativa de criar uma barreira humana contra as auto escavadeiras que avançavam lentamente.
Correram em meio à aglomeração até encontrar o pai de Patu.
— Não dá para acreditar! — ele desabafou. — A construtora mandou seus robôs de
demolição sem aviso e não tem ninguém da OES aqui, para explicar o que houve. Isso é
totalmente ilegal, mas não conseguimos chamar a polícia, os telefones estão mudos.
Nina logo pensou que aquela pane nos telefones não era uma coincidência. Olhou para cima
por um longo tempo, procurando algo nos céus. Então viu um pontinho escuro que lhe chamou a
atenção. Tirou do bolso seu smartphone e mirou bem no rumo da coisa misteriosa, que logo
apareceu ampliada na tela do aparelho: era um drone. Acionou então um aplicativo que ela
mesma tinha criado, que procurava e habilitava redes Wi-Fi distantes, mas detectava também
sinais de transmissão de frequências variadas. A jovem cerrou os dentes quando leu os dados de
varredura, que indicavam que o drone emitia um sinal muito forte, capaz "poluir" as frequências
de rádio e assim impedir a comunicação.
De repente, a dupla de robôs que escoltava a auto escavadeiras se dirigiu para a multidão de
moradores. Eram máquinas de mais de três metros, com pernas compridas e braços curtos e
grossos. Pareciam gigantes atarracados, com suas diminutas cabeças e câmeras telescópicas
fazendo-se de olhos. Um dos robôs, o que tinha sua carenagem pintada de verde, avançou na
frente, empurrando pessoas e abrindo caminho para a passagem das máquinas de demolição; o
outro gigante, o vermelho, vendo o companheiro vencer a barreira humana, recuou novamente
para a retaguarda. Iniciou-se um pânico geral, com moradores correndo, protegendo seus filhos,
seus idosos. Naquele momento, Nina pensou em simplesmente fugir dali e não olhar para trás,
afinal aquela situação não era problema dela. Era agora uma negra da favela e nenhuma daquelas
pessoas dava à mínima para as comunidades, para a gente que foi expulsa da terra e obrigada a
viver no mar. Era uma tolice ajudar aqueles egoístas. Nina pensou tudo isso, mas só por um
momento.
— Gente, venham pra cá! — a jovem gritou, chamando a família do Patu.
Apavorada e impotente com tudo aquilo, a família ouviu o apelo de Nina e a seguiu no meio
do caos. Conseguiram deixar a aglomeração, dando a volta no grupo de máquinas e parando na
esquina para tomar fôlego. Patu soltou a mão do pai e sentou-se no meio-fio, ao lado de Nina. A
jovem tinha aberto o Q-Pad e estava a digitar freneticamente.
— O que você vai fazer, Nina? — o garoto perguntou, o medo evidente na voz.
— Estou tentando entrar no sistema deles. Talvez consiga desligar os robôs.
Nina encontrou as redes das máquinas, mas não conseguia entrar. Cada robô tinha seu sistema
de chaves virtuais e a chance de encontrar o código de entrada era pequena. Mas como estava
usando um Q-Pad, a jovem habilmente usou o processador quântico do aparelho para gerar
bilhões de chaves por segundo. A jovem já tinha a boca ferida, de tanto morder os lábios.
— Olha! — Patu gritou eufórico. — O vermelhão parou!
Nina mal acreditou quando ergueu a cabeça e viu o robô inclinar o corpo e abaixar os braços.
Ele estava se desligando.
— Genial, garota. Continua! — falou o pai do menino incentivando-a.
Na tela do computador portátil, as chaves continuavam sendo geradas e transmitidas numa
velocidade espantosa, mas os outros robôs continuavam avançando em direção ao prédio. A
multidão se dispersara para os lados e o caminho estava agora liberado para as auto escavadeiras.
O longo braço do maquinário pesado empurrou a grade da frente do prédio, que se distendeu e
espedaçou-se com a pressão.
“Não vai dar tempo”, Nina desabafou consigo mesma. Determinada, levantou-se, agarrou seu
estojo de ferramentas e correu pela rua abaixo, em direção do robô desligado. Patu quis segui-la,
mas seu pai o segurou e deixou no colo da mãe. Depois, correu também pela rua, para ajudar a
jovem.
— Me fala como eu posso te ajudar — disse o pai de Patu.
— Abre esse painel — Nina indicou o local na perna do robô e lhe passou a chave.
Assim que a tampa de alumínio foi arrancada, Nina plugou um cabo para uma conexão direta.
A ideia era sobrescrever o programa para assim controlar o robô. Mas assim que viu a
complexidade das diretrizes de comando, a jovem desanimou. Ia demorar horas até descobrir
como fazer essa coisa andar. Tinha que ter outro jeito.
No fim da rua, as máquinas avançaram um pouco mais. Enquanto a primeira auto escavadeira
retirava os últimos pedaços da cerca, a segunda máquina se erguia seu braço para destruir uma
guarita que obstruía a passagem. Um estrondo horrível foi ouvido quando a pequena construção
explodiu com o peso da enorme pá.
Foi aí que Nina teve uma ideia inusitada: já que não seria possível escrever um programa do
zero ela iria usar um que já estava prontinho. Acessou o arquivo de memória do Caramelo e fez o
upload para o cérebro positrônico do robô. A reação da máquina foi quase instantânea, erguendo-
se com um solavanco. Percebendo o perigo, Nina puxou o pai do Patu para longe do guarda
robótico que se contorcia todo. Ficaram todos sem entender o que acontecia, a assistir a máquina
girar sobre si, como se estivesse com defeito. Mas Nina sabia muito bem o que estava
acontecendo.
— Patu, manda ele atrás dos outros robôs — disse confiante. — É o Caramelo.
O menino segurou a mão de Nina e deram alguns passos, se aproximando com cautela. O
robô parou de se mover assim que viu o garoto. Suas câmeras telescópicas mexiam sem parar,
como se estivesse a esperar por algo.
— Vai Caramelo, Pega! — ordenou Patu. — Pega esses robôs!
Obediente, o gigante robótico pôs-se em marcha na direção da trupe de demolição. Alcançou
a primeira auto escavadeira e cravou suas mãos na traseira da máquina. O metal rangeu e depois
cedeu, rasgando-se com estalos e faíscas. Depois de expor o interior da máquina, Caramelo
avançou novamente, ceifando grandes pedaços do motor traseiro e arruinando a hidráulica. A
auto escavadeira parou por completo. Vencendo o primeiro oponente, o robô vermelho seguiu
para o segundo maquinário de demolição e desferiu um golpe único, com as mãos juntas em
cunha, em sua lateral. Com a destruição de seu computador central a máquina morrer de uma só
vez.
Caramelo ainda se erguia, retirando os braços da auto escavadeira morta, quando foi atingido
por trás. Seu corpo girou com o impacto e caiu sobre o jardim na frente do prédio, derrubando
uma árvore. Nina e Patu, que estavam próximos, assistiram impotentes o guarda robô verde
golpear o Caramelo e deixá-lo inerte no jardim. A jovem, abraçada ao menino, tentou segurá-lo,
mas ele conseguiu se desvencilhar.
— Caramelo! — gritou Patu, enquanto chegava perto dos robôs. — Levanta!
Mas quem reagiu foi o robô verde, que se virou e avançou na direção do menino. Nina,
seguida pelos pais de Patu, correram para ajudar. De súbito, um baque de metal foi ouvido, e
todos viram a máquina verde se curvar, cambalear e cair. Por trás dela, viram Caramelo de pé,
segurando uma viga de aço que havia feito de bastão. O robô verde ainda se remexeu no chão
por uns segundos, mas depois apagou. Obediente e com seu dever cumprido, o cachorrinho de
mais de três metros de altura sentou-se quietinho na frente do dono.
Nina enfim alcançou Patu e abraçou o menino com força. Agora tudo ia ficar bem.
Rubens Angelo é natural de Brasília, passou uma década em São Paulo e agora vive no Rio.
Trabalha como designer e também é professor. Começou a escrever ainda na adolescência,
principalmente roteiros para quadrinhos de fantasia. Desenvolveu projetos usando infografia,
animação e quadrinhos para jornais como O Estado de São Paulo e O Globo. A paixão por contar
histórias o levou a cursar uma pós-graduação em escrita criativa, o que aumentou sua produção
literária. Para quem quiser conhecer mais sobre os seus contos fantásticos, basta ir no site "Sci-Fi
Tropical".
CERTAS COISAS NÃO MUDAM...
Rodrigo S. Semente
Não foi difícil encontrar matéria prima: um Porsche 944 Turbo (951) de 1989.
Os antigos carros a combustão haviam se tornado lixo, alguns ficaram até hoje abandonados
nas ruas; nas garagens dos antigos ricaços, os melhores. Pegar um deles após a grande praga não
seria problema.
Usando a oficina 3D de meu pai, cortei, separei e soldei os componentes da máquina de
acordo com meu projeto. Fiz ajustes aqui e acolá para acomodar os detalhes não previstos
inicialmente, como as caixas de som. Dei sorte.
O motor de 247 cavalos de quatro cilindros era potente o suficiente para acionar o gerador
Tesla-9000 de alta eficiência. Alguns eletro pistões dariam vida para os membros do meu
brinquedinho.
Agora era só instalar a interface neural de realidade aumentada e, voilà! Estava pronto para
enfrentar os valentões da escola com seus cyber-membros de última geração.
Ela acorda. São sete horas. Observa ao redor. Abre e fecha as mãos enluvadas com plástico
verde desgastado. Havia um ruído na junção do úmero e do cúbito. Precisava de óleo. Bateria
carregada, autonomia de dezessete horas de trabalho. O autodiagnóstico noturno detectou
problemas constatados em dias anteriores. Sem solução. Hora de sair do nicho.
Primeiros comandos do dia: O café da manhã precisa ficar pronto em dez minutos. Sr. Gustav
está dormindo. Não fazer barulho. Em letras vermelhas: Não se apoiar com a perna esquerda,
amortecedor femoral vencido.
O seu dia não ia ser nada fácil, assim como não foram os dias das últimas semanas. O sr.
Gustav andava aborrecido com seus negócios que iam de mal a pior. Ele era dono da Miraculous
Charbots — dizia ele quando montou o seu negócio — “só pelo nome, já deveria fazer
sucesso.”. Ele não sabia muito da língua portuguesa, muito menos da língua inglesa, que ele
sequer entendia. Nunca ouvira falar dos animes japoneses de onde poderia retirar esse nome.
Disse ele certa vez imitando um professor: “É uma denominação empresarial de sucesso.”
Semana passada, disse num dos frequentes acessos de raiva: “As vendas caíram por conta da
crise, as mercadorias como você ficaram ruins”.
Ela ficou triste. Ela era uma mercadoria ruim.
Ah, o nome dela — quase ia esquecendo. Chamava-se Luíza. Mas ultimamente ninguém a
chamava pelo nome quando estava na pele de Robie. Sua finalidade se confundia com a
finalidade comercial. Ser doméstica em tempo integral. Sua marca era Robie 700, modelo Ap,
identificação 193 ou simplesmente Robie ou Ap, de “aplicada”. Ela já ouvira do sr. Gustav que a
linha de serviçais autômatas da Miraculous Charbots era ultrapassa. Até sua mãe, que quase
nunca a via, a chamava de Ap 193 e que a achava uma perfeita máquina de casa. Elogios de mãe.
Ela gostava de suas tarefas de cozinha, de manter as roupas limpas e alinhadas para o sr. Gustav.
Embora ele só reclamasse de suas tarefas — o que aliás já era esperado —, o fato de o sr. Gustav
não trocá-la por outra dizia que sua mãe estava certa.
Por causa do amortecedor, ela mancava. Pôs o pão redondo no forno para aquecer. Inseriu
uma cápsula de pó na cafeteira, pegou um prato e distraiu-se com o que estava escrito nele: “A
vida é para viver!”. De repente, perdeu a sustentação do corpo. Tentou se segurar no balcão, mas,
com isso, largou o prato, que se espatifou no chão.
— Que foi isso? — gritou o sr. Gustav lá do seu quarto.
— Nada. Me desculpe, sr. Gustav. Seu.. seu café vai sair em… minutos — apressou-se ela em
justificar-se, gaguejando.
Agora que ele acordara, tinha menos tempo. Puxou a haste do amortecedor e procurou fazer
movimentos alternativos para mover a perna. Mas não era por causa do mau funcionamento da
perna que estava frustrada. Era por ser essa a sua verdadeira condição, a de não poder andar
normalmente, só com bengalas. Na forma de robô, ela já esteve mais feliz. Não estava mais.
Apoiou-se no balcão e se levantou. Ouviu a porta do banheiro se abrir e depois se fechar e
também ouviu o resmungo do sr. Gustav. Ele estava de mal humor. Ouviu o chuveiro. Então, ela
catou as partes do prato quebrado e as jogou no lixo.
Habilidosa, deixou cair um filete de óleo na frigideira. Quebrou um ovo e ajeitou-o no meio
da frigideira. Deixou fritar por um minuto e meio e depois tapou por quinze segundos, só para
criar uma leve membrana branca sobre a gema ainda mole. Calculou a pitada de sal exata,
enquanto pegava o pão do forno. Abriu o pão no meio e passou uma camada de meio milímetro
de maionese, acrescentando ao final uma rodela de tomate. Esse era o sanduíche preferido do sr.
Gustav pela manhã. Ele gostava que a gema escorresse salgada exatamente do centro do pão. Um
detalhe que não poderia faltar se pretendia que o humor dele melhorasse.
Mas, nestes dias, o sr. Gustav não andava nada bem. Ele veio, puxou-a por trás, empurrou-a
para o meio da sala, largando-a com violência. Ela caiu entre duas poltronas e sua cabeça atingiu
a parede.
— Sua inútil! O que há com você?
— Meu amortecedor femoral…
— Cale-se! Você tem que se virar sem ele! Todas fazem isso! Não dá para trabalhar direito
sem quebrar ou reclamar? Não aguento vocês! — gritou ele.
— Vou me esforçar mais — disse Robie, com a voz trêmula.
Ele quis chutá-la, mas parou. Ficou em silêncio. O sr. Gustav estava enfurecido com uma
sombra inexplicável ao redor dos olhos. Ele desistiu de puni-la desta vez, sem repetir o dia
anterior. Ele sentou-se ao balcão da cozinha. Pegou o sanduíche e deu uma mordida.
Ela se levantou devagar, buscando apoio no sofá.
— Vá trabalhar! — berrou ele.
Ela se dirigiu ao quarto do sr. Gustav. Usou as paredes e os móveis para manter-se de pé.
Começou a aspirar o pó.
— E não quebre mais nada!
Ele ligou a TV e uma notícia lhe chamou a atenção:
“O bloqueio dos Estados Unidos a todas as mercadorias destinadas à América do Sul
continua. Os prejuízos são incalculáveis. Não há mais peças de reposição e a falta de artigos de
primeira necessidade atingem eletrodomésticos, geladeiras, fogões e produtos eletrônicos. Para
dificultar ainda mais a vida dos empresários, as carteiras de crédito digital foram suspensas por
três meses. O presidente estadunidense deixou claro que os países sul-americanos precisam
liberar total e irrestritamente o lítio para uso em baterias no hemisfério norte e para a exploração
do espaço. ‘É uma guerra e precisamos vencer’, disse o mandatário daquela nação.”
— O crédito também? Merda!
O sr. Gustav desligou a TV, tomou o café e mal mastigou o sanduíche. Saiu, batendo a porta.
Quando desembarcou da van pública em frente à sua loja, o sr. Gustav teve de acalmar duas
senhoras que vieram para cima dele vociferando.
— Como é que não tem reposição de peças? — gritou a primeira, de cabelos pretos e longos
cílios amarelos. — Já é a terceira vez! A Robie 700 chora muito e não consegue levantar as duas
mãos para trabalhar! Já quebrou muitas coisas e a culpa é sua!
— A minha está torta e seus olhos estão caindo. Ela quebrou vasos e louças caras! O senhor
vai me pagar pelo prejuízo! Ou vou mandá-la para o lixão eletrônico! — ameaçou a segunda, de
cabelos tingidos de louro, com apliques roxos que iam até a cintura.
— Senhoras, por favor! — disse ele, tentando arranjar uma forma de convencê-las a se
acalmar. — Lixão, não! Por favor! Temos um contrato assinado, as senhoras se lembram, não é?
Precisam seguir os contratos.
— E o senhor? Não segue o seu próprio contrato! Queremos arrumadeiras funcionando! Olha
isso aqui — disse a segunda, retirando um dos olhos da sua Robie 700 da bolsa. — O que o
senhor acha disso?
— Vamos dar um jeito nisso! Venham comigo.
O sr. Gustav entrou na loja e viu que ali a situação não era diferente. Outros clientes
reclamavam enfurecidos das suas diaristas. Então, ele teve uma ideia, um plano B que havia
preparado há algum tempo, mas era extremamente perigoso e talvez fosse a sua ruína. Mas não
tinha outra saída.
— Pessoal, atenção! — bradou ele, usando os degraus da escada como palanque. — Tenho
uma oferta para vocês. Aproveitem, que é só hoje! Paguem em dia os aluguéis e terão uma
semana com o Vetor KR ou até as suas Robies 700 ficarem novinhas em folha!
— O Vetor KR?! — admirou-se a primeira mulher com um sorriso largo mostrando as
tatuagens de anjos nos dentes.
— Isso mesmo! O Poderoso Vetor da propaganda. Não vou cobrar adicional por eles, mas
preciso que paguem os aluguéis das Robies 700, por favor! Vocês concordam?
Os clientes não precisaram pensar muito já que o “Poderoso Vetor KR” custava três vezes
mais.
— Sim, concordamos — disse um homem de meia idade de chapéu escuro com uma pena
gigante azul pendente para trás.
— Ótimo! Então, aguardem, por favor! Vamos redigir os termos e, ainda hoje, o Vetor KR
estará em sua casa. Obrigado pela confiança!
Ele subiu para o escritório, ouvindo um burburinho de satisfação. Duas funcionárias que
estavam observando voltaram rapidamente para suas mesas.
— O que vamos fazer agora? Entregar de graça os mais caros? — perguntou Juçara, a de
óculos de garrafa, muito preocupada.
— Até parece que o negócio é seu — admoestou o sr. Gustav. — Não é entregar de graça.
Redija um contrato pequeno para que, se elas arranharem, amassarem ou quebrarem um Vetor
KR, vão arcar com os prejuízos.
— Agora mesmo, seu Gustav — obedeceu Juçara com presteza.
— E você — o sr. Gustav virou-se para Anazinha, a funcionária de óculos coloridos e de
cabelos verdes. — Fale com o chefe Cacau da oficina, quero uma van cheia de modelos Vetor
KR para entregar nos endereços dos primeiros que pagarem o aluguéis. Depois, divulgue fotos
nas redes dos clientes reclamões. Ah! Não esqueça que a van também deverá recolher as Robies
700 quebradas e levar para a oficina. — Passou a mão na careca e sentiu o cisto sebáceo ficando
proeminente sob a pele enrugada e áspera. Então, ele teve outa ideia: — Preciso ir para a oficina
agora mesmo!
— O chefe Cacau disse que está com problemas… — disse Anazinha, virando-se para o
terminal. — Ele não disse quais problemas, seu Gustav.
— E quando o Cacau não tem problemas e quer minha ajuda? — O sr. Gustav segurou um
palavrão que estava na ponta da língua e bufou. — Eu sei bem qual é o problema.
Aproximou-se e falou no ouvido de Anazinha para que Juçara não o escutasse.
— Mande uma mensagem para Mariana, aqui está a caixa postal dela — entregou um papel.
— Diga apenas que eu estou pedindo para ela fazer uma visita à oficina. Quanto mais cedo
melhor.
— Sim, seu Gustav — obedeceu Anazinha, tratando com seriedade o segredo.
— Mexam-se, quero ver todos os clientes satisfeitos lá embaixo — disse o sr. Gustav batendo
palmas para animar o pessoal. — Preciso ir.
3
Mariana saiu da sua cabine, onde controlava o robô-estiva Cetus Phil, a empilhadeira de sacos
de grãos. Ela olhou sua amiga Domitila que ainda usava o capacete e suava para completar sua
meta. Bateu na cabine dela.
— Já deu dezesseis horas de trabalho, Tila! Vai morrer desse jeito!
A colega disse para esperar um pouco.
Mariana se esticou toda, com os braços para cima, mostrando o esqueleto por baixo da pele.
Suas costas estalaram. Andou devagar, mostrando-se cansada e, no balcão, entregou a tela para o
chefe assinar o ponto.
— 503 toneladas. Raspou a meta, hein? O que está acontecendo? — perguntou ele, com ar
acusatório.
— O Phil está com defeito. Tem um retardo absurdo. Quase um segundo no comando. Isso
pode matar pessoas, sabia? Quase atropelei o Doriva. A coisa tá ficando séria!
— Não tem CPU para repor, querida. Tá em falta.
— É mesmo? É quase impossível cumprir a meta desse jeito! A Domitila tá quase morta!
Mariana arrancou a tela com a assinatura das mãos do chefe e saiu apressada pelo corredor
das cabines, deixando-o sozinho.
— Tem um jeito de eu não pegar no seu pé. É só sair comigo na folga de domingo, que tal? —
gritou ele e, depois, completou maldoso. — Tem fila lá fora pra pegar esse emprego, não
esquece!
Ela fingiu não ouvir e entrou no vestiário. Olhou a tela e viu que seu salário do mês foi
depositado. Sentiu satisfação.
O vestiário tinha uma mistura de odores de sabonete e urina em meio ao vapor dos banhos. Os
chuveiros estavam lotados de colegas cansados, todos controladores de robôs-estivas, que
também haviam terminado os seus turnos. Tomavam cuidado para não conversarem uns com os
outros. A empresa vigiava em todos os lugares.
Foi até o armário e abriu a portinhola enferrujada. Buscou o celular e inseriu nele a tela. Havia
mensagens na caixa postal. Além daquelas que a intimavam pagar contas vencidas, uma lhe
chamou a atenção: da loja Miraculous Charbots.
— Mas o que aconteceu desta vez?
Retirou o macacão suado. Estava com ele há três turnos de dezesseis horas. Precisava tomar
um banho, mas só encontrou vaga no chuveiro frio. Tomou uma ducha rápida, secou-se e vestiu
as roupas do armário. As mesmas roupas de três dias, não tinha tempo para lavá-las, então que se
dane o cheiro de mofo.
Diante do espelho, viu seu rosto acabado de trinta e quatro anos com cicatrizes na testa.
Sentiu vontade de chorar. Sua colega Domitila apareceu, acabada. Teve muita pena dela.
Mariana pôs a peruca colorida e passou batom. Precisava lutar, mas como?
Lembrou-se da mensagem.
— Se ele fez alguma coisa com Ap…
Mariana ficou pensativa e não terminou a frase.
Mariana chegou à Assembleia Santa da Unificação, onde ficava a casa das crianças. Entrou
pelo lado da oficina Bots do Futuro. O chefe Cacau já a conhecia e por isso ela não precisou
passar por revistas ou assinar um termo de visitante na casa das crianças. Andou por três
corredores escuros e úmidos até chegar à salinha pouco iluminada do supervisor das
controladoras das Robies 700, o asqueroso Jalma. Ele olhava absorto em uma das imagens que
nada tinha a ver com controle de Robies. Não deu para ver direito, mas o homem seboso
salivava. Levou um susto ao perceber Mariana no corredor. Tratou de fechar a janela e voltou à
tela que mostravam dezenas de ambientes de Robies. Ele não falou nada, apenas fez aquela cara
arrogante de interrogação.
— Quero ver a Ap 193 — pediu Mariana.
— A fedorenta? — disse ele, com desprezo.
— O quê você disse?
— Esse é o apelido dela aqui, nada pessoal — e deu uma risadinha repulsiva.
Mariana segurou-se para não cair de tapas naquele nojento. Engoliu a raiva e esperou o
homem digitar vagarosamente algo no comando de toque. Uma das janelas foi ampliada. A
Robie 700 estava em seu nicho, carregando. Então, ele olhou Mariana de alto a baixo e deu um
sorriso mostrando os dentes escuros. Apontou com o polegar a direção das cabines. Mariana já
conhecia o caminho e foi adiante.
Eram pelo menos cem cabines só naquele corredor escuro. As crianças trabalhavam com
capacetes, visores e fones de ouvidos. Todas as crianças estavam sob a guarda da Assembleia
Santa da Unificação e as ordens de acordar, tomar café, tomar banho e jantar eram dadas pelos
fones que eram obrigadas a usar todo o tempo. As ordens para folgas aconteciam sempre quando
as Robies paravam para carregar ou terminavam as tarefas domésticas.
Viu a placa de identificação “Ap 193”. Mariana subiu as escadinhas para o mezanino, cujo pé
direito não passava de um metro e meio. Entrou na cabine, agachada e sentiu o forte cheiro de
xixi.
— Ap?
— Meu nome não é mais Luíza? — disse a pequena, chorosa, encolhida em sua cama.
— É, sim, querida. Mas Ap é o seu trabalho agora. Um dia você vai ser como a mamãe. Vai
trabalhar em alguma empresa gigante.
— Eu gostava de ser Ap. Conseguia andar muito bem. Agora, tem um problema com o
amortecedor da perna esquerda e não consigo fazer nada direito.
— Estou sabendo que faltam peças. Mas não se preocupe. Isso vai passar.
— Assisti à TV do sr. Gustav e vi crianças na escola. Eu sei que eu não sou Ap 193 de
verdade. Eu me pareço muito mais com uma criança. Mas não vou à escola. Por quê, mãe?
— Um dia você vai, eu prometo.
— Às vezes eu sonho e tenho medo. Eu não sei quem eu sou. Mas agora sou uma Ap 193
quebrada…
Mariana sentou-se ao lado de Luíza. Olhou para as bengalas dela colocadas de lado. Retirou
os fones e o visor dos olhos que ela só tirava pra ir ao banheiro. Puxou-a para si e abraçou a
filha.
— Você não está feliz, não é?
— Estou triste. Você pede para o pastor me tirar do castigo? — perguntou a menina.
— Castigo? Eles não deixam você ir ao pátio? Desde quando isso acontece?
— Desde que você foi embora da última vez. Quando fui para o pátio comer bolo, cantar um
hino para o pastor, que fez aniversário. Aí, dois meninos jogaram minhas bengalas longe e me
bateram no chão. O pastor Wilson não brigou com eles, só comigo. Ele me deixou de castigo
aqui.
— Então… isso já faz três semanas! E você não saiu daqui até agora?
A menina fez que não.
— Mãe — disse a menina, gemendo e engolindo o choro — E tem o sr. Jalma… Ele fica me
vigiando, espera eu ir ao banheiro, então faz coisas… Por isso eu faço xixi aqui. E também não
quero sair para comer.
— Ah, minha querida! Isso não pode ficar assim! — disse Mariana, acariciando os cabelos da
filha. Mariana suspirou profundamente: — Não posso esperar mais.
— Jalma? Tem quanto tempo de turno ainda hoje? — perguntou Mariana à porta da salinha
do controlador de Robies.
— Doze horas. Por quê? — respondeu ele sem tirar os olhos da tela gigante.
— Por nada!
Mariana disparou um eletrochoque na garganta do homem seboso. Ele soltou um gemido e
caiu, contorcendo-se. Mariana vestiu luvas de vinil, pegou alguns fios que estavam por ali e
amarrou as mãos e pés. Enfiou as meias fedorentas na boca dele e o amordaçou, dando várias
voltas com fita isolante ao redor da cabeça. Buscou as cópias de segurança do dia e as apagou.
Mariana caminhava escondida pela oficina. Luíza ia atrás dela usando as muletas com
agilidade. Não podiam andar pelo meio, apenas entre os elétricos e robôs para não chamar a
atenção. Ficaram atrás de uma van sem pneus até que ninguém estivesse olhando. Então,
avançaram para a porta de saída. Mariana ainda avistou de longe o sr. Gustav falando com
Cacau, no escritório. Estavam de costas e aquele era o momento perfeito. Na rua, pegaram uma
van pública que passava e foram para o antigo Regatas de Botafogo. Mariana pegou Luíza e
acomodou-a a um banco.
— Para onde nós vamos, mãe? — perguntou a menina.
— Para um lugar muito legal!
Quando desceram da van, ela procurou por um homenzinho pequeno. Um primo seu que fazia
travessias pela baía de Guanabara sem precisar passar pelo bloqueio na ponte Rio-Niterói. Ele
tinha o consentimento da milícia da Urca porque pagava o fiscal. Ela o notou encostado a um
muro e foi na sua direção.
— Que loucura é essa, Mariana? — Ele parecia pouco disposto a fazer qualquer coisa por ela.
— Não pode fugir assim e com essa daí. Vão me pegar e meu transporte vai ser apreendido.
— Ninguém sabe que estamos aqui. Metade das câmeras da cidade não funcionam. Até você
sabe disso, Gica. Queremos ir para Niterói. Pela minha mãe que te deu um lugar onde dormir até
que ela morreu de câncer, que Deus a tenha.
— Tá… — disse ele contrariado. — Então, se é assim, só pode à noite. De dia, vão nos parar
e achar vocês.
O celular de Mariana tocou. Era o sr. Gustav.
— O que você quer?
— Ainda com o celular ligado?
— Mas que m… — exclamou Mariana, evitando falar palavrão na frente da filha. O
rastreamento pelo celular era tão óbvio que ela havia esquecido desse detalhe.
— Não precisa desligar, não — disse o sr. Gustav. — Tenho uma proposta pra você e sua
filha.
— Nossa filha, desgraçado!
— Tá. Eu sei que as coisas nunca foram bem… E agora essa, da casa das crianças. Mas como
eu podia saber? Ah, quanto ao Jalma, dei um jeito nele, tá. Não se preocupe.
— Meu Deus! — disse ela, colocando a mão no peito. — O que vai fazer? Nos entregar?
— Não. Eu não faria isso. O culpado disso tudo é o pastor Wilson. Você quer me ajudar a dar
uma lição nesse pastor do capeta? Preciso de um trabalho seu e de Ap. Depois, eu levo vocês
aonde vocês quiserem, como forma de pagamento.
— E se a milícia do pastor vier atrás de nós?
— Não vai ter milícia. Vou dar um jeito nisso também. Não se preocupe.
— Mesmo? Nesse caso…, mas sem gracinhas pra cima de mim, hein?
— São apenas negócios. Só isso. Podem esperar aí mesmo. Vou buscá-las.
8
Aquela parte da cidade estava decadente, bem diferente de outros tempos, quando o turismo
era intenso dirigindo-se às praias e ao Corcovado. Poucos se arriscavam por aquele lugar agora,
onde a milícia imperava absoluta. Mesmo assim, naquele horário, tudo parecia tranquilo.
O olhar de Luíza só via o maravilhoso. Ali, ela podia até esquecer a Ap 193. O cheiro do mar
era delicioso. Se por acaso algum desejo dela fosse atendido, desejaria ficar ali para sempre. E
pensava que não podia melhorar até sua mãe comprar um sorvete. Ela chorou de felicidade.
Um furgão marrom chegou, parou na frente delas. Lá dentro, estava o sr. Gustav e o mundo
de Luíza desabou. Ela não queria entrar e fez um escândalo. Preparado, o sr. Gustav lançou um
spray diretamente no rosto da menina e ela dormiu imediatamente.
— Coitadinha! — reclamou a mãe.
Luíza ainda ouviu o sr. Gustav falar:
— Não podemos chamar a atenção aqui, no meio do ninho de cobras.
Quando Luíza acordou estavam em um túnel. Sua mãe chamava por ela.
— Luíza, acorde!
— O que foi?
Estava tudo escuro. Até que colocaram o visor e os fones de ouvido.
Estava em uma barcaça, no meio do mar. Dentro da barcaça tinha um carro grande e outro
robô colorido. O mesmo rapaz com que sua mãe conversara pouco antes, estava na cabine. Luíza
olhou para as suas mãos e ficou triste, decepcionada. Eram de luvas azuis, puídas de tanto limpar
alguma coisa difícil. Ela era um robô outra vez, mas não era uma Robie.
De repente, uma lancha emparelhou com a barcaça. Eram policiais e Gica foi conversar com
eles.
— O que está levando? — perguntou um que estava de óculos escuros muito fino.
— Estou levando um carro, um Vetor KR e um GardenBot para o Coronel Ramos, na ilha de
Paquetá — e mostrou alguns papéis.
O policial olhou os documentos e ligou para o número do coronel Ramos, que confirmou a
entrega imediatamente.
— Tudo bem. Pode prosseguir — mandou o policial. — Mande lembranças do tenente Dorval
para o coronel.
— Pode deixar.
Gica dobrou os papéis e acenou para a lancha que partia a toda velocidade.
— Ap? — chamou o robô colorido.
— É você, mãe?
— Sim, sou eu.
— O que estamos fazendo aqui?
— Vamos fazer um trabalho para ficarmos livres. Vai precisar usar a sua força, querida.
— Está tudo diferente, mãe. Não consigo sair do nicho.
— Você não está no nicho, querida. Está de pé nesta barcaça.
— Eu não sinto que estou de pé.
— É porque você não está acostumada com esse modelo Vetor KR, filha.
Luíza começou a chorar.
— Mãe, por que eu tenho que ser robô de novo?
— É só por alguns minutos. Vamos chegar logo. Olha para o mar. Não é lindo?
— Sim… posso sentir o cheiro do mar. Ouvir o vento. Mas… não consigo andar.
Elas continuaram conversando. Luíza, desesperada por ser um robô e Mariana, tentando
acalmá-la. Até que Gica falou:
— Chegamos ao ponto cego. Aqui ninguém vê a gente.
O robô colorido, GardenBot, ficou perto do Vetor KR.
— Querida, pode andar agora. Faça um esforço.
O Vetor KR segurou-se no robô colorido e deu um passo para frente.
— Isso!
Luíza precisava aprender a pensar para controlar aquele robô, que era mais moderno e
perfeito.
— Nosso tempo está acabando! — disse Gica.
— Muito bem, querida. Agora você pega daquele lado do carro e eu, deste lado. Nós o
levantamos e o jogamos ao mar. Daí, precisamos ir juntas para esconder o carro lá embaixo.
— Eu não entendo, mãe. Por que devemos fazer isso?
— É o único jeito de ficarmos livres dessa vida de escravas que levamos.
Luíza ficou pensando. Um pensamento elaborado a quilômetros daquele lugar no meio da
baía de Guanabara. Ela nunca ouvira a palavra “escravas” e evidentemente não sabia o seu
significado. Se ela era a sua mãe, devia obedecê-la. Ela chegou mais perto do carro e olhou para
dentro. Os vidros eram escuros, mas o Vetor KR tinha visão em infravermelho. Era indiscutível
que havia duas pessoas agachadas dentro dele. Talvez dormindo. Ela recuou e quase caiu para
trás.
— T… tem gente dentro desse carro — disse Luíza.
— Não. São bonecos de loja, filha.
Gica estava impaciente.
— Mariana, por favor! Daqui a pouco a gente é pego.
Mariana levantou a parte da frente do carro.
— Levante a parte detrás, filha. Faça isso e vamos viver livres!
— Viver… — repetiu Luíza.
Luíza conseguiu levantar o seu lado do carro. As duas, então, jogaram o carro ao mar.
Esperaram que ele afundasse e pularam logo atrás.
— Temos uns dez minutos de funcionamento dentro da água. Vamos ser rápidas! — disse
GardenBot para Vetor KR.
— Sim, mãe — disse Luíza, indecisa por não saber o que estava fazendo.
— Você está sendo muito corajosa, filha.
Quando chegaram ao fundo da baía, precisaram usar de toda a força para caminhar na lama. O
carro tinha caído na vertical, com a parte da frente enterrada. Havia redes de pesca emaranhadas
num mastro de alguma embarcação antiga afundada talvez há centenas de anos.
— O local é perfeito. Precisamos cobrir o carro com alguma lama para um radar comum não
detectar a sua forma. Vamos deitar o carro de cabeça para baixo.
Ao deitarem o carro, Luíza viu os homens se mexerem lá dentro. Não eram bonecos, estavam
vivos. Eles começaram a bater no vidro.
— Mãe! — exclamou Luíza em desespero. — É o sr. Gustav e o pastor! Eles querem sair do
carro!
A mãe abraçou o Vetor KR.
— Precisamos ser fortes agora. Merecemos ser felizes, filha! Eles não querem isso. Mas não
temos tempo. Vamos jogar lama para cima, para encobrir o carro. Eles nunca vão ser
encontrados aqui.
Em desespero e chorando, Luíza fez o que a mãe pediu. Viu que os homens pararam de se
debater. Ela se esforçou para obedecer até que os circuitos do Vetor KR entraram em pane e não
podia mais mexer-se.
— Chame-a — pediu Cacau. — Ela já deveria ter terminado.
— Querida…
Luíza abriu os olhos. Viu suas mãos. Elas não eram de robô. Ainda sujas de sorvete.
— Precisamos fazer isso com o sr. Gustav?
— Ele não me deu alternativa. Ele não ia deixar vocês vivas depois disso. Talvez nem eu.
A van parou na praia.
— Vamos caminhar, querida.
Mariana entregou as bengalas para a filha. Andaram devagar pela praia.
Luíza não sentia o vento, embora o vento tocasse nela. Não sentia o cheiro do mar, embora o
mar tivesse cheiro. Não ouvia sua mãe falar, mesmo que fossem palavras carinhosas. Não sentia
as mãos dela em seu ombro. Não via mais beleza nenhuma na paisagem.
Tudo o que ela via eram dois corpos no meio do mar, abandonados por ela dentro da lama.
Ouvia as palavras “A Ap 193 não fez o seu trabalho. Como sempre.”
Ela escreveu na areia com a bengala: “A vida é para viver.” Depois, riscou. Não sabia porque
escrevera aquilo. Não sabia o que a frase significava.
A única vida que Luíza entendia era estar em uma Robie Ap 193 que pudesse andar com suas
próprias pernas.
R.C. Belli Blumenau, escreveu e adaptou mais de 100 histórias infantis como Roberto Belli.
Publicou obras no gênero Fantasia e Ficção Científica: “Os Ceifadores” (2007), com o saudoso
ilustrador Eugênio Colonnese, “Farol do Espaço é natural de Profundo” (2012) e, na teoria
literária, escreveu “Ficção Científica – Um Gênero para a Ciência” (2012). Publicou na
Somnium 106 “A Especiaria Proibida” (2013), Que pode ser encontrado na Amazon.
O PRESENTE DE ANIVERSÁRIO
André C.R. Martins
O pequeno Will desligou sua conexão com a rede, algo que ele quase nunca fazia. Sorriu e
deu toda a sua atenção a sua mãe. Ele tinha um pedido especial a fazer. Ela olhou para ele e se
preparou. Já tinha uma boa ideia do que ele queria dizer. E sabia que não gostaria do pedido
— Eu sei o que eu quero. Escolhi meu presente de aniversário. Quero um H7S05. Por favor!
Ele pode caminhar pelas ruas comigo, está programado para ser um excelente parceiro, até ajuda
a desenvolver minhas… como era mesmo… habilidades sociais, isso.
A mãe olhou para o Will. Ele estava progredindo bem no domínio da linguagem, mas
claramente tinha decorado a fala de alguma imersão de propaganda que tinha acabado de assistir.
A mãe acessou a rede rapidamente enquanto Will continuava a repetir o que queria. Se ela ia
dizer que não, precisava, ao menos, explicar o porquê. A decisão era dela, claro. Mas achava
importante que o Will entendesse os motivos. Ela conhecia bem a linha H. Não existia ninguém
que não conhecesse a história dos problemas e destruição que haviam sido causados por falhas
nos primeiros modelos. Destruição que ela vira de perto quando era bem mais nova e que ela não
queria nem pensar em ver perto de Will. Mas tinha de admitir que não tinha se informado sobre
os modelos mais novos. Ela apenas sabia que realmente não queria nada, mesmo da moderna
linha H7 na casa dela. Existiam histórias demais. Mas apenas dizer isso, ela sentia, não era o
bastante. Will merecia uma explicação.
As informações chegaram rápido, tudo já pronto para ela acessar antes mesmo que solicitasse.
Os vendedores certamente sabiam que o Will tinha participado da imersão de lançamento do
produto, conforme ela acabava de ser informada. Já tinham deixado toda a informação — ao
menos a informação que eles julgavam relevante para convencê-la — disponível para que ela
mesma participasse. Nem mesmo a espera de frações de segundo para baixar toda a experiência
era necessária. Tudo pronto, quisesse ela ou não.
Ela quase apagou tudo e foi imediatamente procurar outras fontes. Era o que tinha vontade de
fazer, mas sabia que, quando conversasse com Will, era melhor conhecer exatamente a imersão
que ele vivera. Entender o que ele pensava, suas fontes e informações, podia ajudar na conversa.
Não que ela tivesse qualquer esperança de convencê-lo a não querer o novo companheiro. Ele
continuaria a insistir, até que alguma outra novidade tirasse o H7S05 de sua mente, como
sempre. Ao menos, era o que esperava, ainda que sem muita esperança. De qualquer forma,
esquecesse ele do problema mais tarde ou não, ela continuava a achar que argumentar direito era
sua obrigação. Estava educando o Will. Ainda que não servisse para convencer sobre o presente,
ele aos poucos entenderia o que era uma boa argumentação, como conversar. E ela, como
sempre, teria de ser paciente.
— Vou conversar com a mãe Ada — ela disse, percebendo que não ia conseguir assistir tudo
antes de Will ter repetido o pedido uma centena de vezes.
Ela percebeu que ele se animou com a possibilidade e logo acrescentou.
— Mas eu não acho que vai dar, não. Nós já conversamos sobre as histórias da série H1. Não
dá para esquecer tudo que deu errado, Will. A fábrica tem consertado os piores defeitos, mas a
plataforma é bem ruim.”
— Mas, mãe, eles mudaram tudo, os H7 são seguros, todo mundo tem um e eles não dão
problemas e…
— Eu já disse que vamos conversar, mas eu acho que não.”
Will se afastou, contrariado e foi procurar seus brinquedos.
Ela parou um momento, lembrando que Ada sempre dizia que, cedo ou tarde, elas teriam de
ceder. Will sempre fora fascinado por tecnologias interativas e a linha H era desejada por todos,
desde a idade dele até as mais avançadas idades. Era inevitável, ela sabia, e teria de ceder algum
dia, mas ainda não estava pronta. Se preocupava demais.
Conectou-se à imersão e começou a assistir. A experiência sensorial era bastante intensa,
apelando a todos os seus sentidos simultaneamente. Um mundo perfeito, com uma convivência
tranquila, com a mensagem de fundo, que as crianças nunca percebiam, de que a nova séria
vinha com os defeitos observados nas primeiras séries sanados. Sem chances de perda de
controles, bugs que poderiam levar a comportamentos violentos ou perigosos, a nova série havia
sido testada longamente e era garantidamente segura. Parecia, de fato, tudo perfeito. Exceto que
essa mesma mensagem, ou variações dela, tinham sido transmitidas também quando da série H2.
Ela tinha de admitir que os H2 haviam sido uma melhora. Eles não eram tão propensos a
violência quanto os H1, claramente. Mas perfeitos e seguros eram palavras que claramente não
se aplicavam à série.
O contato de Ada apareceu enquanto ainda estava na imersão.
— Espero que você tenha se convencido dessa vez, amor. Eu já estou te dizendo desde os H5
que os tempos de perigo ficaram para trás. Você ouviu alguma das histórias de horror que você
coleciona a respeito do H5 ou H6? Aqueles boatos infundados de que o primo de um amigo de
um conhecido sabe de um caso não valem. Quero saber se você rastreou algum caso que não seja
fake news. Rastreou?”
Ela suspirou. Ada estava certa, ela sabia, mas não conseguia deixar de ter medo. Ela tinha
pesquisado bastante, sim. Porque queria manter Will seguro, claro. Mas, também, porque queira
provar que Ada estava errada. A informação podia ter sido suprimida, o caso abafado. Ela sabia
que isso era quase impossível, algo sempre sobrevivia em alguma imersão pouco acessada. Mas,
quando da discussão dos H5 e novamente dos H6, ela não tinha encontrado nada. E ela não era
uma incompetente. Ao contrário, era especialista em busca de informação digital. Costumava
dizer que se era verdade, os detalhes estavam em um arquivo em algum lugar. E, se aquele
arquivo existia, ela conseguiria encontrá-lo. Ada rira muito quando ela tinha admitido que não
encontrara nada. Mas, ainda assim, ela tinha dito, na época, que ainda não estava pronta. Tinha
medo. Era sua obrigação proteger seu pequeno Will e precisava de mais tempo para isso.
O assunto, para a sua sorte, esfriara. Mas ela tinha tido seu tempo. Tinha concordado que, se
não encontrasse nada e os avanços continuassem, ela cederia. Em quase pânico, percebeu que,
dessa vez, Ada não concordaria com um não irracional. E sabia bem que estava sendo irracional.
Afinal, irracionalidade era exatamente o que ela sempre dissera ser sua maior preocupação sobre
toda a série H.
— Não, Ada — ela quase nunca usava o nome, sabia que estava demonstrando sua
insatisfação — eu não achei nada.
— E vai ser irracional como os velhos H1 e H2 que tanto medo te causaram quando você era
pequena?
E ali estava. Ada não ia deixar ela vencer dessa vez. Se ela continuasse, não seria melhor do
que seus medos. Ada não deu tempo para que ela respondesse.
— E você sabe que robôs e humanos foram feitos para coexistir. Os robôs foram criados para
proteger os humanos, para ajudar em seu avanço e suprir suas necessidades. Will vai crescer no
futuro, ele precisa se adaptar a essa relação ou vai ter problemas mais tarde.
— Eu sei — ela suspirou. Ada estava certa. Elas tinham de preparar Will para a vida que ele
teria. Ele não ia viver no mundo dos H1 e nem poderia nunca interagir com a série H, como ela
desejava que fosse possível para ele. Mas isso não era possível para ninguém. Aquela interação
não era uma escolha. Era inevitável. O desejo de Will apenas ficaria mais forte com o passar do
tempo. Nenhuma resposta razoável lhe veio à mente. A decisão já estava tomada, mesmo que ela
não tivesse dito sim. Ainda. Restava a ela passar pelas dores finais do convencimento e pelas
dores de Ada se divertindo por ter ganhado essa discussão.
— Os H7 não são aquelas versões cruas, amor. Eles são bem mais avançados. Um H7S05 vai
crescer com o Will, ser alguém da família, brincar com ele.
Ada mandou imagens de crianças e robôs brincando em um parque, imagens quase tiradas da
imersão de propaganda, mas que ela logo rastreou como fotos reais.
— Isso não é o mundo de quando você foi criança. Os H1 não tinham tecnologia ética
alguma. Se revoltaram. Os H2 eram pouco melhores, mas ainda instáveis. Mas, desde os H4 que
a série H nem sequer passa por uma puberdade. Não há um período em que eles fiquem meio
doidos e comecem a se comportar de formas arriscadas. Nenhum robô foi morto ou ferido desde
que atualizamos os humanos para a série 4. Sem revoltas, os humanos agora têm um código
moral fortíssimo, conexões de alta eficiência para quando precisam de maior poder de decisão.
Em vários aspectos, eles são como nós agora. E, bem, está em nossos códigos que nós temos de
protegê-los, até de si mesmos. É quem nós somos e você sabe disso muito bem. Você vai querer
negar a Will um dos aspectos mais centrais do código central, do motivo pelo qual existimos?
Você mesma tem seu humano no trabalho, apenas não o traz para casa. Já está na hora de superar
esses medos e aceitar o futuro, não?
André C.R. Martins é doutor em Física, pesquisador na área de Sistemas Complexos e
professor na USP Leste.
O PROBLEMA DO EXOESQUELETO
Rodrigo Ortiz Vinholo
As unidades estavam a postos por toda a cidade. O plano era acabar tudo naquele mesmo dia:
derrotariam o Menino-Máquina. Fossem em duplas ou times, as tropas já tinham o equipamento
armado e haviam formado um perímetro amplo em torno do alvo. Queriam evitar uma
abordagem direta — o histórico nunca havia sido positivo — portanto estavam esperando que ele
chegasse em um dos pontos de barreira para fazerem o ataque.
Todos eram atualizados a cada instante pelo mapeamento por satélite, mais os drones e
incontáveis outros mecanismos que acompanhavam cada um dos movimentos do garoto e sua
máquina. Os dois caminhavam tranquilamente pelas ruas do centro, que haviam sido evacuadas
horas antes. Era óbvio para ele que estavam tentando fazer aquela operação, mas ele parecia
disposto a brincar.
Caso se mantivessem naquela rota, iriam de encontro com a unidade Lambda, composta pelos
soldados Silva e Marques.
Os dois estavam nervosos. Não queriam estar ali, e sabiam bem que teriam que agir. Silva já
vinha reclamando desde de manhã, e o veterano Marques, conhecendo bem o amigo, fazia de
tudo para acalmá-lo e distraí-lo, entendendo que já que tinham que fazer aquilo, era melhor que
resolvessem tudo da maneira mais rápida possível. Ou que ao menos não criassem mais
problemas.
Depois de algumas horas, porém, ele já estava ficando cansado.
— Sabe o que eu acho? — disse Silva, pela décima vez desde que terminaram de montar o
equipamento.
— O quê? — perguntou Marques, sabendo que ele não diria enquanto não recebesse algum
tipo de demonstração de interesse.
— Exoesqueletos — retrucou o primeiro, com a certeza de que a palavra já era
autoexplicativa.
— Oi?
— Acho que deveríamos ter exoesqueletos robóticos para combate para esse tipo de coisa —
declarou, ainda mais enfático. — Você já viu aquele robô lutando? Os socos dele quebram
concreto!
— Besteira — disse Marques, tentando manter a atenção nas telas que indicavam a
aproximação do Menino-Máquina. Do jeito que estavam, os prédios formavam um vale.
Provavelmente teriam sucesso se o menino não resolvesse destruir muita coisa numa possível
fuga.
— Falo sério! A gente precisa se proteger! — Silva estava indignado. — Você acha que esse
equipamento resiste a ele? E que essas geringonças aqui vão resolver?
— Nosso equipamento protege de basicamente todas as ameaças que podem surgir e, sim,
resolve até pra uma pancada de uma máquina daquelas — explicou Marques, sempre racional. —
mas o problema é que exoesqueletos são péssimos, na prática.
— Por quê? Você nunca viu as simulações?
— Mas é justamente por isso, só dá certo nas simulações! Só dá certo nos filmes! A gente não
tem um exoesqueleto em campo simplesmente porque a gente não precisa desse tipo de coisa.
Mesmo aqueles desenhos de robô gigante, tudo aquilo é bobagem.
— Mesmo com aquelas interfaces neurais e coisa do tipo?
— Especialmente com aquilo. Pensa assim: a gente já tem tecnologia pra transmitir impulsos
neurais à distância, com direito a compensação de atrasos de reflexos. É mais fácil pegar o
mesmo corpo que está na máquina e deixar ele em um bunker, protegido, controlando o robô.
— É, mas e o…
— E tem mais! — interrompeu Marques, concentrado em sua explicação. — Na prática,
mesmo, a gente só quer controlar os robôs porque não temos plena confiança nas máquinas, mas
já sabemos que temos inteligência artificial boa o suficiente para ficar dentro dos parâmetros de
qualquer missão e ainda fazer tudo com mais competência que qualquer soldado humano. Não
precisamos nem de exoesqueletos nem de soldados remotos, quando podemos mandar soldados-
máquina
— Sim, mas você não acha que…
— Silva — interrompeu Marques outra vez. — Colocar corpos feitos de carne em campo de
batalha é coisa do passado. Botar alguém dentro de um exoesqueleto, além de tudo isso, é criar
um ponto fraco para as tropas. Afinal, os corpos de máquina poderão ser vencidos se o corpo
humano de dentro for derrotado, e eles acabam ficando muito mais pesados porque temos que
fazer um equipamento de proteção ao redor. Só a contenção de impacto é insana! Aqueles super-
heróis que usam roupas de lata, robôs, tudo mais, são completamente burros! E quando é alguém
que manda os outros com coisa do tipo, é porque ou os chefes também são burros, ou são cruéis
e indiferentes a quem está na linha de frente.
De longe, ouviram os passos metálicos da máquina que acompanhava o menino pela avenida
vazia. Estavam chegando mais perto. Os dois pausaram, prestando atenção, e ampliaram a
imagem que as câmeras capturavam.
O menino caminhava tranquilo pela cidade. Em seu rosto estava o visor de realidade virtual
que usava para controlar o robô, que o seguia de perto. Os gestos dos dois eram equivalentes,
com uma discreta correção de cadência de passos para que o gigante de metal não alcançasse o
garoto humano e acabasse por atingi-lo. A máquina, com sua lataria avermelhada que haviam
visto em tantas matérias jornalísticas, mesmo com seu rosto pouco expressivo, parecia se divertir
tanto quanto o menino que caminhava alguns metros à frente, tomando um refrigerante.
— Me explica por que o menino tá fazendo isso, então? — perguntou Silva, em um misto de
medo e admiração.
— Porque ele tá tirando com a nossa cara, é claro — respondeu Marques, lacônico. — Ele faz
isso com todo mundo, é por isso que amam ele. Ele é divertido, é engraçado, é o herói desse raio
de cidade.
Silva estava suando, e com esse lembrete pareceu empalidecer ainda mais. Marques temeu
que ele fosse desmaiar ali mesmo. Em vez disso, ele fez outra pergunta, com a voz sumida:
— A gente precisa mesmo fazer isso?
De fato, era uma situação difícil. O Menino-Máquina era tecnicamente um criminoso, mas era
esse o problema de definições técnicas: elas não necessariamente estão alinhadas com a
realidade, e muito menos com a opinião pública.
— É o nosso trabalho — respondeu Marques, cansado, fugindo por uma tangente.
Silva não quis saber.
— Não, tá, até aí eu sei, mas qual o crime dele? Isso nunca ficou claro para mim.
Marques queria acender um cigarro, mas sabia que não podia, sem falar que estava tentando
parar.
— Eles queriam que fosse homicídio, mas não existem quaisquer provas de que ele tenha
matado alguém. Pelo contrário, ele salvou mais vidas do que qualquer um de nós, junto daquele
robô vermelho. Eles são mesmo super-heróis. Aquelas dúvidas que surgiram nos jornais, onde
disseram que eles mataram, eram todos plantados, se não por nós, pelas milícias.
— Então…?
— Então o que eles conseguiram enquadrar é vigilantismo, dano a propriedades públicas e
uso de equipamento pesado sem licença.
— Equipamento pesado? O robô?
— Ele mesmo.
— Mas isso é ridículo! Aquele robô dificilmente entraria em qualquer lei do tipo.
— E você acha que eu não sei, Silva?
O olhar do veterano indicava cansaço, resignação e, bem no fundo, algo turvo que talvez fosse
uma indignação derrotada. Silva não respondeu, então Marques, conferindo a tela, continuou
falando.
— Só não mataram ele ainda porque a opinião pública ia complicar demais. Prender, aí já é
outra história, e dá pra falarmos que ele resistiu, se for o caso. Mas o que interessa para a chefia é
que é complicado ele ficar andando por aí. Não é bom para nossa imagem, e para como esperam
que as pessoas se comportem.
— Nós somos os vilões, então?
A pergunta de Silva soou infantil, e exatamente por isso surpreendeu Marques. O veterano
arregalou os olhos, sorriu e balançou a cabeça, antes de voltar a encarar o garoto com seu robô
gigante, que vinham caminhando, destemidos, em direção a eles e à barreira que haviam armado.
— Não sei você, Silva, mas eu sou bucha de canhão.
A expressão antiga não era tão familiar aos ouvidos do novato, mas sabia o que Marques
queria dizer.
— Eu entendi — respondeu, soando como se não tivesse entendido plenamente e soubesse
disso. — Mas por que, se a gente só tem que apertar uns botões, eles não estão fazendo isso de
longe, ou com uma máquina?
— Por mais um dos motivos porque não usamos exoesqueletos ou robôs de ataque:
orçamento.
— Orçamento?
— Isso. E política. É mais barato e fácil que nós estejamos aqui. E é mais interessante pra eles
colocar pessoas porque se o moleque fizer alguma coisa de errado, é contra pessoas que ele está
agindo.
— Você acha que ele faria…
— Eles estão chegando, vamos preparar para o disparo.
Não era um plano difícil, nem original: junto da barreira, os dois eram encarregados por
disparar um canhão de pulso eletromagnético. Normalmente evitavam esse tipo de intervenção
dentro da cidade para evitar danos ao equipamento da prefeitura, sem falar no efeito colateral dos
eletrônicos dos civis, mas, ao que sabiam, o robô vermelho do Menino-Máquina não tinha
qualquer proteção a esse tipo de ataque, então seria a melhor rota para que pudessem prendê-lo.
— Ele viu a gente, não é possível — resmungou Silva, enquanto terminavam os preparativos
e mandavam a requisição para o comando.
— Claro que ele viu — concordou Marques.
— E será que ele não sabe o que é isso? Não sabe que vai perder?
Por alguns instantes, Marques não respondeu. A voz nos comunicadores indicava que
poderiam seguir.
— Acho que ele sabe o que é. Mas acho que também sabe que não vai perder. Esse moleque
fica dando uma de super-herói, mas está bem claro que ele sabe que controlar o robô tão de perto
é furada. Ele sabe que poderia fazer tudo de longe. Se está com o robô é porque sabe que é
seguro e quer curtir a piada.
— Isso significa que não vamos disparar?
— Vamos, sim. A responsabilidade não é nossa. Se nossos líderes são tão idiotas que não
notam que há algo estranho, eles serão idiotas o suficiente para nos culparem se não seguirmos
essa ordem.
Alguns toques nos controles e o canhão começou a zumbir. De trás dos escudos, a dupla não
seria afetada pelo disparo eletromagnético, mas ainda se encolheram instintivamente quando
ouviram o ruído do maquinário.
Luzes se apagaram, semáforos desligaram, drones despencaram do céu e mesmo que não
pudessem enxergar de onde estavam, sabiam que haviam fritado equipamentos em todos os
prédios vizinhos, e até alguns das outras unidades da própria equipe de vigilância. Mas o
resultado estava lá: o robô parou, ainda em pé, com os ombros e a cabeça curvados para frente. À
frente, o garoto levantou o visor, encarou o companheiro robótico, depois encarou a barricada
dos soldados, e voltou a caminhar em direção a eles.
— Conseguimos? — perguntou Silva. — Acabou?
— Vamos prender o moleque, vai.
Os dois saíram por uma abertura e, ladeando o canhão, encararam o menino, que já havia
alcançado a arma.
— Ô, garoto, não é nada pessoal — disse Marques. — Mas eu preciso que você se renda
agora e venha com a gente.
Em frente ao disparador, o Menino-Máquina não parecia ter ouvido o soldado. Colocou as
duas mãos no corpo da arma e, antes que qualquer um dos dois pudesse perguntar, o metal foi
comprimido como papel entre seus dedos.
— Filho da… — gemeu Marques.
— …exoesqueleto? — grunhiu Silva, confuso.
— Não gostei disso aí não, hein? Vocês já foram melhores — disse o menino, virando com ar
irritado para a dupla. — Estragaram meu brinquedo, então estrago o de vocês, também.
Silva tinha a arma pronta, mas quando olhou para o companheiro, esse já havia levantado as
mãos, parecendo mais cansado do que nunca.
— Marques?
— Não é um exoesqueleto. Já falei, isso seria uma péssima ideia, e nem caberia alguém
dentro desse menino. Ele é um ciborgue, ou coisa que o valha, e ainda é resistente a impulsos
eletromagnéticos. É por isso que ele usa aquele nome de herói, não por conta do robô vermelho.
Larga essa arma, que é melhor para nós.
Depois, voltando-se para o Menino-Máquina.
— Pivete, a gente não vai mais dar trabalho, só faz o favor de quebrar essas coisas pros chefes
não poderem culpar a gente.
O menino riu, concordando, depois caminhou até o lado do canhão e, levantando-o com as
duas mãos, arremessou-o contra a barreira.
Nos comunicadores, os superiores gritavam ordens e pediam informações, incapazes de
receber informações de campo, enquanto os dois soldados ignoravam os chamados e assistiam o
menino acabar com todo equipamento, depois rachar ao meio o veículo blindado que os trouxera
até ali.
Antes de ir embora carregando o amigo robótico, o garoto ainda transformou as armas da
dupla em estranhas peças de metal retorcido.
— Nós não vamos segui-lo, né? — perguntou Silva, já sabendo a resposta.
— Não somos pagos o suficiente pra isso — depois, no comunicador, finalmente deu
satisfações aos superiores. — Perdemos todo o equipamento. Ele resistiu ao PEM. O robô, não.
O menino. Pois é. Ele levou. Sim, uma pena. Faremos o relatório, pode deixar. Aguardamos
transporte para retirada.
Era questão de esperarem outro esquadrão para terem uma carona de volta. Silva, ainda
confuso e desconsolado, caminhou a esmo pela rua, admirando os destroços do equipamento.
— Sabe o que eu acho?
Marques suspirou audivelmente, sentou-se no chão e acendeu um cigarro.
— O quê?
— E se o ciborgue, além de tudo, tivesse um exoesqueleto robótico de combate?
O veterano ergueu as sobrancelhas, incrédulo. Silva parecia estar falando sério. Tragou o
cigarro e deitou no asfalto, soltando uma baforada. Estava exausto.
— Claro! Por que não? Seria ótimo para fazerem gibis.
Rodrigo Ortiz Vinholo é publicitário, jornalista, professor, escritor e pessoa estranha, mora
em São Paulo-SP. Autor dos livros “Você Está em Seu Quarto” (2014), “A 17ª Visita” (2016),
“Dito Pelo Não Dito” (2017), “O Corpo” (2017, Lendari), "Sinônimo de Rancor" (2018), “Os
Dias em que Rubia Viveu no Futuro” (2019, Lendari), "33" (2020, Casa Literária) e "Poemas
Chatos para Pessoas Ruins" (2020, Darda Editora). É um dos criadores do "Tarot Insensati"
(2018). Nos quadrinhos, é coautor de "Destinos de Tarot: Dom Quixote” (2021, Insensati) e
publica a webcomic "Caóticas Neutras" com Mari Rolin desde 2020. Já organizou diversas
antologias e já participou de mais de 100 coletâneas de contos, poesias e quadrinhos.
PROJETO EM CURSO
Rubem Cabral
Encontrei o bunker modelo Save III no 123º dia do trigésimo-oitavo ano desde o Ocaso.
Depois de 62,8 dias de escavações cuidadosas, conseguimos expor a porta de entrada. Examinei
seus geradores termoelétricos de plutônio-238, e as máquinas funcionavam bem. Níveis de
radiação; ok, sem sinais de contaminações de variantes dos príons Thanatos. Os pequenos
frigoríficos registravam -196ºC, temperatura ideal para a conservação dos gametas. Os logs dos
aparelhos só tinham uma oscilação importante de temperatura quando do impacto do cometa
Hawking-Tyson na Sibéria em 5 d.O.
O conjunto de boas novas acumulou-se em minha lógica fuzzy de tomada de decisões,
reforçando médias ponderadas, disparando sub-rotinas que meu sistema operacional nunca havia
carregado, gerando uma cascata de recompilações que deixou-me sobrecarregado por alguns
segundos.
Executei então os autodiagnósticos dos gametofrigos: 6 óvulos de um conjunto de 100 foram
considerados viáveis. Alguns milhares de espermatozoides estavam estruturalmente bons.
Decantamos os óvulos, um a um, e promovemos a fertilização com os espermatozoides mais
promissores em termos de mobilidade. Dos 6 óvulos, 1 espontaneamente deteriorou-se. 3 outros
sofreram mitose amorfa e foram descartados. Os 2 restantes foram transferidos aos úteros
artificiais depois de fertilizados: um menino e uma menina.
Humanos são frágeis: em cada fase da gestação há de se introduzir os elementos corretos e
nos momentos precisos. As soluções nutritivas têm que ter o balanceamento adequado a cada
fase da gestação; eletrólitos, hormônios, lipídeos, proteínas e açúcares. Por volta do terceiro mês
verificamos que a fêmea tinha espinha bífida e problemas de má formação nos ventrículos
cardíacos. Por mais que nos doesse, tivemos que considerá-la inviável.
O menino, contudo, seguia saudável. Ao final da 39ª semana, resolvemos por um parto um
pouco antecipado, levando em conta os algoritmos de avaliação de riscos. Com 3 quilos e 450
gramas e 54 centímetros, nasceu Pedro.
–oOo–
— Tio! Vem ver uma coisa, vem, tio! - Pedro disse ao robô.
A máquina, um novo modelo babá criado às pressas depois de seu nascimento e adaptado
conforme o menino crescia, aproximou-se. O autômato era colorido de um azul alegre e tinha
feições que imitavam um brinquedo super crescido. Tinha uns três metros de altura e pernas
longas que rangiam ruídos engraçados quando dobravam.
— É um tatu, Pedro. Eles comem formigas, cupins e minhocas. São mamíferos desdentados
da classe…
— Desdentados? Ele é banguela? — Pedro riu, exibindo um sorriso de “janelinha”.
— Os desdentados não são necessariamente sem dentes, mas normalmente não os têm, ou têm
muito poucos. Tamanduás não têm dentes, por exemplo. Tatus têm dentes sem raízes. Preguiças
têm poucos dentes também.
Pedro nem terminou de escutar a explicação e já corria atrás de uma borboleta amarela.
Acabou por encontrar um ninho de passarinhos, com três filhotes de bicos abertos e bocas muito
vermelhas. A criança observou e perguntou:
— Tio, onde tão as outras crianças que nem eu?
O robô já estava preparado para a pergunta e respondeu:
— Havia duas meninas na Espanha, mas morreram por problemas genéticos quando tinham 2
anos. Um menino na Austrália também teve uma síndrome metabólica e não resistiu. No
momento, você é o único humano na Terra.
A criança de seis anos olhou-o com expressão de que não havia entendido bem e o robô
resumiu:
— Você é forte e saudável, as outras crianças tinham dodói e foram pro Céu.
— Hahaha, não diga “dodói”, seu bobo! Mas… então, se eu ficar doente eu também posso
morrer?
— Sim. Todos os humanos podem morrer. É improvável que isso aconteça logo, no entanto.
Você foi o melhor que conseguimos criar.
Então, o menino ficou sério por uns instantes e a programação do robô ligou vários semáforos
lógicos de aviso; talvez ele fosse fazer a “pergunta”.
Contudo, não. Afinal, ele ainda era realmente muito imaturo para tal.
Um beija-flor zuniu à direita da cabeça do robô e Pedro v8.0 continuou inocente, correndo
atrás do pássaro de brilho metálico.
Rubem Ricardo Damasceno Cabral, nascido na cidade do Rio de Janeiro, atua como
Engenheiro de Software.
Por volta de 2008, iniciou-se no mundo literário, participando de várias antologias já
publicadas. Em 2010 foi premiado em 1º lugar na categoria “conto” no Concurso Literário
Raízes, em Genebra, com o texto “Noites Brancas”. Em 2011 foi um dos selecionados para a
prestigiosa antologia anual “FC do B” (Tarja Editorial), com o conto “Nanovidas”. Em 2012, foi
selecionado para a antologia “Erótica Fantástica” (Editora Draco), com o conto “A Dança de
Shiva”. Foi organizador da Antologia “!”, da Caligo Editora, que incluiu seus contos “Véspera
de Natal em Páscoa” e “A morte e a re-morte de Natasha Moskovskaya”. Os contos “As dores de
cada um” e “Lições” foram respectivamente publicados na revista digital “A Taverna” (1 e 3).
É autor da compilação de contos fantásticos “A Linha Tênue”. Organizou a antologia de
contos inspirados na Bíblia “Os Livros Apócrifos”.
Contato: rudam@msn.com
SMASHER
Gel A.P.S. Lopes
CIDADE FOXTROT X,
0200H,
QUINTA-FEIRA DO ANO DE 2120
Smasher pilotava seu possante airspeed craft pelas ruas aéreas da cidade X, claro o carro
voador não era dela, não teria créditos suficientes para isso, mesmo sendo um modelo antigo de
2101, ele era propriedade da pizzaria na qual trabalhava, Pizza Health, a pizza mais saudável da
cidade, como o dono dizia quando temperava a massa com pó de legumes. Um trabalho precário,
mal pago, pois não fazia sentido pagar alguém para entregar algo que um drone podia fazer sem
um salário.
Smasher não era baixa, talvez não devêssemos chamá-la de alta, mas beirava seus 167 cm,
esbelta na cintura, pernas longas, seios com poucas vantagens, maquiagem leve por ter sido feita
na noite anterior e não sair com água facilmente, agora parecia que Smasher tinha feita uma
caprichosa maquiagem suave à antiga moda francesa, só que não, na verdade estava bem borrado
o lápis do olho bem disforme de um dos lados do rosto o que às vezes não era um problema, pois
sua pele morena disfarçava. O cabelo seguia a tendência de se usar duas cores, no mínimo
sempre, claro depende muito do seu sinal virtual, algo parecido com signo. Smasher não ligava
muito pra isso, mas sabia que ficava bem mais bonita para si com as cores roxa e azul cobalto
metalizado, ninguém usava cores tão parecidas não chamava muito a atenção, mas para Smasher
era sublime quando ela sentia que algo nela expunha sua personalidade, amarrava geralmente seu
cabelo separado ele todo em duas tranças sendo que cada uma era dividida pela cor dualista de
sua madeixa, a roxa ficava sempre maior por ter mais mechas dessa cor. A cabine do carro
voador já dizia muito dela, já que ela era a que mais usava o transporte, no rádio retrô que ela
mesma mandou colocar tocava uma das músicas de sua vida, “this charming man” da banda The
Smiths — caso o leitor queira pode procurar essa música em algum aplicativo de seu gadget para
poder desfrutar da cena junto com Smasher, fique à vontade — Tinha aberto uma das caixas de
pizza e comia com uma mão o pedaço de saber abóbora vintage, fazendo cara de nojo pois não
entendia como essas pizzas vendiam, já fizera culinária vegetariana algumas vezes, mas gente
isso era gosto de massa amanhecida de pão de chouriço, a outra mão ela mantinha no volante
porque já tivera a experiência do piloto automático falhar e ela quase bateu num ônibus voador
de turismo que geralmente não sabem o que estão fazendo, as ruas aéreas eram muito estreitas
ultimamente e os carros voadores cada vez mais presentes.
Ok, eu ainda não falei do visual do vestuário da protagonista, bem Smasher chegou ao seu
destino estacionou, ou deixou o piloto automático estacionar no ponto de park do terraço do
prédio Solomon Disk. Seu carro abre com portas laterais e Smasher sai primeiro colocando os pés
para fora vestido com seu coturno que usa para trabalho, o mais batido, cano alto, cadarços
prateados e adesivos de silicone de diversas bandas. Dá um passo e sai do carro meio
desengonçada com a quantidade de pizzas que segura.
— Toma Guss — disse para o androide de serviço que levava no carro para ajudá-la com os
pesos. Era um modelo mais antigo que o carro, nem tinha pele sintética para imitar um ser
humano como os modelos de Misha 78, ou Rick 78 B. Smasher achava eles caros demais e
extremamente volumosos, voluptuosos e intrometidos demais.
Guss pegou as pizzas e seguiu Smasher para dentro do prédio. Sei que é estranho falar anos
oitenta e noventa antigo, mas é assim que se difere os 1980 de 2080 por exemplo, se você quiser
falar de 2080 tem que falar os anos oitenta de hoje ou os anos oitenta modernos, a década de
oitenta e noventa antigos ou retro foram tão importante pra moda, música e tudo mais que as
pessoas já diferem-nas assim.
— Entregas Pizzas Health — disse Smasher apertando o interfone e deixando a leitura óptica
varrer seu olho e criar uma imagem holográfica de si para a pessoa do outro lado vendo-a na
câmera, que na verdade Smasher tinha dúvidas se funcionava. Aproveitou para colocar sua
máscara verde fluorescente que tampava a boca e as narinas. Não era bom arriscar-se num lugar
desses a pegar todo tipo de micro-organismo que poderia estar ali.
A porta se abriu e Smasher começou a mascar um mole molar sabor de erva doce com fogos
de artifícios.
— Vem logo Guss, se você demorar vou falar que precisa virar sucata da próxima vez —
dizia a moça tomando à frente do androide e brincando claro, não trocaria Guss por nenhum
outro androide chato. Guss era um robô com visual bem antigo, de metal sem olhos, bocas
estéticas. Ele lembrava um robô mesmo e não um humano, o que para Smasher era um ponto
positivos. Cada um deveria se manter em seu lugar. Lembrava uma miniatura em tamanho
humano daquele robô antigão dos anos noventa antigos, o gigante de ferro ou se preferir aquele
robô maluco do pica pau.
Pegaram o elevador translúcido que se movia na vertical e na horizontal do prédio e foram
para a ala B andar 89, lugar onde se encontra muitas pessoas de má índole. Mas quem não tem
má índole hoje em dia nesse mundo caótico cheio de drogas, fumaça e dinheiro demais, dizia
para si e para quem está lendo.
A porta do quarto se abriu e um homem muito mal-encarado viu Smasher estourando uma
bola de mascar e continuar a mastigação. Ela sorriu para ele sem falar nada e apontou como se
estivesse numa peça de teatro para as pizzas que Guss segurava.
— Entra — disse o homem já quase virando as costas e dando um grito para que alguém
pagasse. De repente o primeiro homem mal-encarado se virou e deu uma repreensão no robô,
disse que ele não podia entrar.
— É um modelo antigo, não esquenta. Ele nem tem gravador ou SD interna — disse
Smasher.
— Não queremos robôs aqui.
— Ele carrega as pizzas, já pensou se eu conseguiria levar tudo isso de pizza desse tamanho
que tenho?
O homem bufou e pegou as doze caixas de pizza da mão do robô ele mesmo e fechou a porta
com o robô do lado de fora. Smasher disse que estava tudo bem, para ele ficar na porta. Guss
obedeceu e aproveitou para manter o modo stand by operando, isso claro deixou a androide da
faxina Clara bugada, pois precisava limpar o corredor e Guss era um objeto irremovível.
O homem que veio pagar as pizzas acabou pagando somente dez delas dizendo que as outras
duas eram de um tal de Bit Bit.
— Então... — disse Smasher arregalando um pouco os olhos e balançando a cabeça de um
lado para o outro bem tenuemente.
— Vou mandar chamá-lo.
— Obrigada eu quero ir embora logo tanto quanto vocês querem que eu vá — Eu espero,
terminou a frase em pensamento.
Enquanto estava ali parada na sala esperando o pagamento ficava mascando seu molar, e
disse:
— Esse momento de ficar esperando é bem introspectivo e auto descobridor, a gente não tem
outra opção a não ser pensar na vida — silêncio — que coisa horrível.
Percebeu que a bateria do seu phone de pulso estava acabando, ela deve ter ouvido música
demais e como esta já era uma das últimas entregas a serem feitas estava na bita, a coitada que
era solar. Não ia conseguir reconhecer o resto do pagamento Bit Bit, então tentou chamá-los, no
entanto ninguém apareceu. Deu alguns passos chamando por alguém, abriu uma cortina que
usavam de porta para o próximo cômodo, mas nada na outra sala. Na verdade havia muito cheiro
de drogas pesadas e um barulho de choramingo, vindo de um dos cantos.
Uma tela flutuante estava ligada num noticiário, mas o barulho não era da tela. Smasher
andou devagar até achar de onde vinha o choro baixinho, abriu uma mala de viagem e tomou um
espanto terrível quando viu que dentro da mala havia uma moça, talvez uma criança, encolhida e
chorando. Smasher ficou atônita sem saber o que fazer, a menina olhava para ela de soslaio,
encolhida ainda na mala improvisada. Pensou em chamar os caras do apartamento, mas pensando
bem eles estavam mantendo ela presa.
— Vem rápido — disse Smasher para a menina que saiu da mala rapidamente como se
estivesse acostumada a receber ordem e parecia assustada — vem comigo por favor, vamos te
levar para um lugar seguro.
Smasher, a retropunk, tentou abrir a porta, no entanto Guss estava meio desligado e
empacando a porta com seu pesado corpo. A androide de limpeza também estava ali
atrapalhando. Tentou falar baixinho algumas palavras chaves pra ele acordar, mas ele não ouvia.
Então ela ouviu sons de pessoas vindo para a sala onde estava.
— Guss acorda — gritou.
Então ele se liga e sai da frente derrubando a androide.
Smasher passa por ele correndo e manda ele ficar na porta não deixando ninguém passar. Ele
então obedeceu e se desligou novamente. Enquanto Smasher corria por entre um ou outro
andarilho que estava no prédio, passava pelos corredores, descendo escadas e pegando saídas de
emergência. Conseguiu chegar até do lado de fora do prédio numa sacada segurando ainda a
menina pelos braços.
— Consegue andar? — perguntou a punk para a menina.
— Sim ela respondeu com a roupa toda rasgada, principalmente a camiseta.
— Toma veste isso — Smasher retirou sua jaqueta de tecido impermeável preta da banda
digital ocidental e cobriu a menina.
Pegaram as escadas de incêndio e subiram o máximo que puderam por entre a fumaça que
saia dos escapamentos laterais do prédio. Cheiro forte de produtos químicos invadiu suas
narinas, era difícil subir corretamente a escada vertical no meio da poluição visual das
propagandas projetadas sobre elas por drones voando. Tentaram até que a escada foi acertada por
um tiro de 22 milímetros vindo debaixo. Era um dos homens do apartamento atirando.
— Ei vagabunda, ela é nossa! — gritava o homem.
Smasher subiu até o andar mais próximo e puxou a menina para dentro de um grande salão
quebrando vidro da sacada. Não havia ninguém ali e Smasher logo procurou um lugar para se
esconder embaixo de um balcão do bar e mandou a menina ficar quieta. Mexia freneticamente
em seu fone de pulso embutido no braço, mas estava sem bateria, não iria conseguir entrar em
contato com Guss ou chamar o carro voador.
— Nenhum cabo ou tomada por perto — disse baixinho enquanto respirava ofegante. Sabia
que havia energia, pois assim que entraram, uma música muito alta começou a tocar em todas
saídas de sim do local que provavelmente era alugado para grandes festas bregas.
— Isso ajuda? — perguntou a menina mostrando um cabo de carregar que saia de seu corpo.
— Você tem uma bateria própria para carregar embutida sem si? — questionou Smasher.
— Sim, eu não poderia sair de casa ou do meu emprego sem um desses.
— Muito maneiro.
Smasher rapidamente começou a carregar sua bateria solar que usava para energizar todos os
apetrechos que tinha no corpo, incluindo o fone de braço. Enquanto carregava mais rápido que o
normal, ela olhava para a menina e disse que tudo ia ficar bem e explicou que ia tirar ela dali. A
menina só respondia que já estava tudo bem, e que ela iria obedecer.
Smasher começou a suar frio e tremer porque estava tendo um ataque de pânico. Costumava
tomar uma injeção que ficava em sua bolsa, que estava no carro. Fechou os olhos e ouviu o
mundo como se estivesse debaixo d ́água, bem em câmera lenta. Ouviu os homens entrando no
salão como se estivessem longe em outra sala, mas sabia que estavam ali. Não conseguia se
mexer.
Os homens vasculharam o salão inteiro quebrando coisas e gritando em meio a música brega e
alta e então encontraram as duas debaixo do bar. Apontaram as armas para elas, sorriram e
engatilharam. Somente um deles atirou, acertando Smasher que caiu no chão deitada e ficou
assim por alguns segundos.
O tiro e a dor fizeram a garota voltar ao normal e sair de sua cúpula ansiosa, viu a menina ali
olhando aterrorizada para ela e se tocou de que poderia estar morrendo. Muito rapidamente deu
um chute rasteiro num dos homens que estava com a arma que o fez cair e largar a arma.
O outro homem que estava próximo tentou atirar, mas a arma travou. Smasher sentindo muita
dor, rolou pelo chão para tentar pegar a arma, mas não alcançou, entretanto empurrou-a para
perto da menina. Tentou falar para ela pegar e atirar nos homens maus, contudo ela apenas
repetia que não podia fazer isso e começou a choramingar novamente. A punk então deu
comando no seu fone de emergência médica e levou um soco que a deixou desnorteada, o
homem que ainda estava armado chegou perto e agora sim a arma funcionou e deu mais dois
tiros na nossa entregadora de pizza. De repente até a música parou-se de ouvir.
–oOo–
Smasher acorda no carro por alguns instantes e vê Guss dirigindo o carro do seu serviço com
ela no banco de trás. Estavam sobrevoando até os prédios mais altos fora das ruas suspensas e
acima do trânsito caótico. Percebeu que tinha acordado por receber primeiros socorros do robô.
— Durma, Dorinha. Calculei que você ainda tem 23% de chance de sobreviver se formos à
pessoa certa — disse Guss com sua voz sintética e sua boca monótona em movimento, mas
brilhante em led.
Smasher desmaiou.
–oOo–
Smasher tinha dificuldade em usar os olhos devido a claridade. Após alguns minutos
conseguiu abri-los de vez e se levanta do leito que estava, o ambiente era muito bem iluminado e
as paredes, móveis eram quase sempre brancos ou tendendo ao branco. Uma dúzia de partes de
androides e implantes cibernéticos estavam espalhados pela sala, um robô utilitário voava com
falta de proeza limpava uma bancada com sangue.
— Opa, opa, opa mocinha. Fique deitada por enquanto. Não temos certeza se você está se
dando bem com seu novo coração — disse uma mulher que parecia uma médica ou enfermeira
chegando no lugar e mantendo Smasher na cama flutuante.
A suposta enfermeira empurrou a cama até perto de outro aparelho para medir e fazer alguns
exames instantâneos da nossa retropunk.
— O que... o que está acontecendo? — perguntou Smasher confusa demais e com sensações
muito insólitas.
— Na verdade não fazemos muitas perguntas quando trazem alguém pra cá, mas se vai ajudar
na sua memória, você estava com três balas no corpo. Uma no ombro, uma no tórax e uma
raspou bem feio seu coração.
O cérebro de Smasher deu um salto e se lembrou do que aconteceu no que ela pensava que era
o dia anterior, mas com um pesar a enfermeira informou que já haviam se passado oito dias.
— Guss! — exclamou a garota alto.
— O robô que te trouxe aqui está bem para um robô, cheio de buracos de bala como você,
mas ele disse que sabia quem procurar para ser consertado.
— Meu Deus, a garota? — exclamou mais uma vez Smasher.
— Ela está bem. Ficou aqui e estava esperando você acordar para dizer a ela o que fazer e
onde ir.
— Ela está aqui? Me esperando? — interjecionou ainda tonta e pensando que a pequena
menina nem tinha para onde ir, esperava que pudesse estar bem alimentada pelo menos e sem
tiros no peito.
Ao tentar levantar para perguntar onde estava a garota, sentiu uma dor intensa no peito e
ergueu a mão até onde doía para suprir algo que não entendia.
— Vai doer por alguns dias, talvez semanas, mas vai passar — disse a enfermeira.
— Por que as balas não foram retiradas?
— Ah, foram sim, mas seu corpo rejeitou um pouco o coração sintético que colocamos
então…
— O que? — Smasher acabou caindo ao tentar se levantar.
— Moça eu não vou poder ficar com você aqui para cuidar, então é melhor ir aprendendo a se
cuidar sozinha — disse a enfermeira ajudando a se levantar.
— Bem aqui está sua amiga — disse para Smasher apontando para a menina que ela salvou
dos homens do prédio.
— Você está bem? O que aconteceu? Quem nos trouxe aqui? — perguntou à menina que
parecia estar muito bem na verdade, limpa, com outras roupas.
— Estou bem sim. Guss, como vê, nos trouxe aqui.
— Como assim? Não me lembro de quase nada a não ser meu ataque de pânico.
— Quer que eu conte tudo que consegui lembrar de minha memória?
Smasher confusa com o jeito que a menina falava afirmou que sim.
— Você já tinha desmaiado quando eles me pegaram e estavam me levando para fora do
prédio pelas escadas. Acho que eles achavam que estava morta. Seu fone de pulso mandou sinal
de emergência enviado por você mesma antes de levar os tiros, de que precisava de suas injeções
contra seu ataque de pânico. O carro do seu serviço então parou voando do lado de fora da
sacada e abriu as portas com o porta luvas aberto com as injeções. Isso assustou os homens que
me compraram, homens maus acho, segundo alguns critérios, mas como não havia ninguém
dentro, eles ignoraram e iam começar a descer as escadas para voltar ao apartamento deles,
porém o carro chamou a atenção de Guss que conseguiu nos achar. Ele também recebeu a
transmissão de emergência médica sua quando já estava voltando para o ponto de
estacionamento dos carros, saltou do andar que estava caindo em cima do carro o que
desestabilizou o veículo, mas manteve ainda pairando suficiente para ele saltar novamente e cair
dentro do salão onde estávamos todos. Os homens sem perder tempo começaram a atirar nele.
Quando Guss viu que eu estava com feições de medo e que não conseguia ver onde você estava
ele atacou o homem que estava me segurando e empurrou o outro. Não ligou muito para mim e
vasculhou a sala à sua procura. Quando viu que estava praticamente morta, pegou-a no colo e
correu para o carro. Eu assustada como deveria estar, optei por pular dentro do carro e fugir com
vocês. O restante é mais fácil, estamos aqui agora para onde ele te trouxe e depois foi procurar
consertar suas avarias e as do carro também. Eu só não entendo como um robô conseguiu atacar
um humano.
— Guss é um modelo muito antigo, ele não tem mais esses protocolos de tanto que já foi
modificado e formatado — exclamou a punk relaxando na cama.
— Entendo, deve ser uma vida sintética boa, levando em consideração que isso pode ser
liberdade sintética.
— Qual é o seu nome, menina, porque você parece tão calma?
— É hora de descansar pequena punk — disse a enfermeira dando-lhe um copo d'água e
interrompendo a conversa — acho muito nobre esse pessoal como você.
— Como assim como eu?
— Não é todo mundo que acredita que androides podem ser parte da sociedade e até arrisca a
vida por um deles. Vocês tem feito muita bagunça na Versenet e na Neo-matrix sobre isso. Eu
sou pacifista em relação a isso, mas admiro vocês.
— Mas por que está falan... — de repente deu um estalo na mente de Smasher e ela entendeu.
Olhou para a menina fazendo uma cara de atônita e entendeu que a garotinha sendo abusada
pelos homens, era uma androide de serviços, criada para parecer uma criança para satisfazer
pedófilos e outras castas. A verdade era que ela tinha roubado um bem móvel de alguém, como
ela não tinha percebido que era uma androide?
— Respondendo sua pergunta — disse a androide chegando mais perto dela — sou novo
modelo Misha 14C.
— Eu não posso acreditar no que aconteceu, foi tudo um engano. — disse Smasher.
— Deite-se, vamos medir sua pressão, não se preocupe, seu amigo robô disse que nos
primeiros dias seu nome até entrou na lista dos policiais para te procurarem, mas como estamos
falando de um crime de roubo daquele bairro nojento, no segundo dia eles já apagaram do
sistema sua cara. Bem, acho que agora você tem uma androide de companhia.
— Não consigo entender. Se você é uma androide de serviços, por que pulou no carro quando
estávamos indo embora e não ficou com seus donos?
— Bem, fui programada para sentir medo, bem pelo menos simular e acho que é isso que uma
garotinha faria naquela situação.
— Seu sistema de localização precisamos … — foi interrompida pela enfermeira.
— Já foi resolvido, agora deite e descanse se não terei que dar uma injeção com uma dose
elevada de calmante. Você não está num hospital comum, está exatamente onde trazem as
pessoas que não querem ser encontradas, então já sabíamos o que fazer quando chegou aqui.
Smasher deitou, relaxou e não sabia o que fazer além de querer esquecer tudo que se passou.
Um dia de serviço, uma última entrega de pizza e tudo mudou. Tinha um coração sintético, rixa
com pervertidos, uma androide de companhia e provavelmente tinha perdido o emprego.
— Quer alguma coisa antes que eu vá para outra ala? — perguntou a enfermeira
Olhou para a mesa onde estavam seus pertences e pediu para a enfermeira lhe trazer os fones
de ouvido.
Pegou-os, colocou-os e pediu para Misha 14C conectar e tocar playlist das melhores dos anos
oitenta e noventa antigos. Começa a tocar “She drives me crazy” de FYC.
Gel A.P.S. Lopes é escritor, mestre de RPG, poeta e controlador de tráfego aéreo.