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Identidades de Gênero Na Perspectiva Da Teoria Do Self

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Identidades de gênero na perspectiva da teoria do self:

uma leitura gestáltica acerca da sexualidade na


contemporaneidade

Gender identity in the perspective of the theory of the self: a


Gestalt reading about sexuality in the contemporary world

José Ricardo de Souza Santana*; Marcus Cezar de Borba Belmino**

Centro Universitário Dr. Leão Ampaio - UNILEÃO - Juazeiro do Norte - CE

RESUMO

Este artigo tem como intuito apresentar uma discussão sobre o conceito de
identidade de gênero a partir de uma leitura gestáltica focada na Teoria
do “Self” desenvolvida por Perls, Hefferline e Goodman (1997) no livro “Gestalt
Therapy: Excitement and Grouth in the Human Personality”. Pensar uma temática
como a sexualidade, especificamente sobre as identidades de gênero é ao mesmo
tempo uma resposta política e teórica à determinadas conjunturas específicas que
são históricas e culturalmente impostas. A sexualidade não é determinada pelo
sexo biológico nem se resume somente a este binarismo imposto socialmente como
normativo. Por sua vez, esta abrange as expressões de gênero, a orientação sexual
e as identidades de gênero. Esta última é o objeto deste estudo. A discriminação,
preconceito, violência gratuita e a imposição de padrões normativos sobre a
sexualidade atinge pessoas que possuem identidades de gênero que não se
resumem a papéis masculino ou feminino. Na sociedade instituições lhes retiram
um lugar de cidadania e impõem discursos totalitaristas de repressão e
abjeção. “Queer” é considerado aquilo que é estranho, desviante, termo utilizado
nos estudos sobre sexualidade. Neste sentido buscamos articular alguns
teóricos “queer” com a noção de formação da função personalidade, articulando o
estilo fenomenológico que origina a Teoria do” Self” numa leitura ética de
acolhimento a diversidade das experiências, tal como discutido por Müller-
Granzotto e Müller-Granzotto (2012). Também discutiremos, a partir das Teorias de
Paul Goodman, noções conceituais sobre ser “queer” numa possível construção
teórica sobre uma política de gênero. À luz das clínicas gestálticas propostas por
Müller-Gransoto e Müller-Granzonto (2012), descreve-se a vivência do sofrimento
ético-político-antropológico, frente à emergência de vulnerabilidades das funções
do “self” nas experiências de campo das identidades de gênero, pensando numa
ética anárquica inerente à Gestalt-terapia como intervenções possíveis como forma
de provocação de nível teórico-prático sobre acolher e promover desvios ao que
concerne ao sofrimento vivenciado pela comunidade LGBTQI.

Palavras-chave: Identidades de gênero; Gestalt-terapia; Teoria do “Self”;


Goodman; “Queer”.

ABSTRACT

This article has the intention to present a discussion of the concept of gender
identity from a gestalt reading focused on self theory developed by Perls, Hefferline
and Goodman (1951) in the book Gestalt Therapy: Excitement and grouth in the
Human Personality. Think a thematic as sexuality, specifically on gender identity is
both a political and theoretical response to certain specific situations that are
historical and culturally imposed. Sexuality is not determined by biological sex or
comes down only to this binary socially imposed as normative. In turn this extends
to expressions of gender, sexual orientation and gender identities. The latter is the
subject of this study. Discrimination, prejudice, gratuitous violence and the
imposition of regulatory standards on sexuality, affects people who have gender
identities that do not boil down to male or female roles. In society institutions
derive them a place of citizenship and impose totalitarian discourse of repression
and abjection. Queer is considered what is strange, deviant, a term used in studies
on sexuality. In this sense seeking some queer theorists we constitute the notion of
the formation of personality function, articulating phenomenological style that gives
the Self theory an ethical reading host the diversity of experiences. We will discuss
the experience of Goodman conceptual notions about being queer in a possible
theoretical construction of a gender policy. In light of the theory of self describes
the experience of ethical, political and anthropological suffering forward to the
emergence of vulnerabilities self functions in the field experiences of gender
identities, thinking of anarchic ethics inherent in gestalt therapy as possible
interventions as form of theoretical and practical level of provocation on host and
promote deviations with respect to the suffering experienced by LGBTQI
community.

Keywords: Gender Identities; Gestalt Therapy; Self Theory; Goodman; Queer.

INTRODUÇÃO

O presente artigo procura apresentar uma discussão sobre o conceito de identidade


de gênero a partir de uma leitura gestáltica focada na Teoria do “Self” desenvolvida
por Perls, Hefferline e Goodman (1997) no livro Gestalt Therapy. O intuito maior
dos autores deste trabalho ao enfocar como o seu objeto de estudo a temática da
sexualidade e das identidades de gênero, é, ao mesmo tempo, uma resposta
política e teórica a determinadas conjunturas específicas que são históricas e
culturalmente impostas.

A sexualidade tornou-se efetivamente em um objeto privilegiado da compreensão


de cientistas, religiosos, psiquiatras, psicólogos, antropólogos e educadores,
especificamente nos dois últimos séculos. Por muitas vezes entende-se por
sexualidade uma distinção anatômica (ter pênis ou vagina), que diferencia os seres.
É este modelo sexista adotado pela sociedade que serve de base para dividir o
mundo entre homens e mulheres e também para definir quem deve se sentir
masculino ou feminino.

Para compreender os conceitos de identidade de gênero, expressão de gênero e


orientação sexual, é fundamental entender: o que é gênero? Gênero é uma
categoria de análise social e, assim como a sexualidade, é concebida como uma
produção da cultura, sendo que se entende as categorias de gênero como
hierarquizadas, binárias e relacionais. O sexo biológico refere-se aos órgãos
visíveis, hormônios e cromossomos, ou seja, a mulher possui vagina, ovários, útero
e cromossomos XX e o homem possui pênis, testículos e cromossomos XY.
Enquanto o Intersexo (Hermafrodita) seria a combinação de ambos os caracteres
sexuais. A identidade de gênero por sua vez pode ser traduzida pela convicção de
ser masculino ou feminino. É como cada sujeito, no seu entendimento, significa a si
mesmo conforme os atributos, comportamentos e papeis convencionalmente
estabelecidos para os machos e fêmeas. Consideremos neste caso poder-se
transitar entre Homem, Mulher e “Genderqueer”, ou seja, aqueles que se definem
em gênero de forma diferente. O termo “genderqueer”, que surgiu em
1990,tornou-se um termo genérico que engloba uma grande gama de gêneros de
forma a ser realmente diferentes para cada indivíduo (JESUS, 2012).

A noção de orientação sexual deve ser concebida no plural, admitindo a sua


diversidade na vida das pessoas, constituindo sensibilidades, expressões do desejo
e do prazer, afetos, que podem aparecer na vida de um indivíduo de muitas
maneiras, sem que sejam fixas e inevitáveis (SOUSA FILHO, 2009, p.72).
Considera-se homossexual, aquele que se sente atraído física e emocionalmente
por pessoas do mesmo sexo, heterossexual aquele que se atrai fisicamente e
emocionalmente por pessoas do sexo oposto e bissexual aquele que se sente
atraído fisicamente e afetivamente por pessoas de ambos os sexos. As diferentes
orientações sexuais também são produtos da cultura e apresentam uma história.
A comunidade LGBT luta por direitos humanos igualitários, por respeito e
visibilidade, buscando a libertação dessa força repressora que é fruto  da
sociedade. Assim, se faz necessário se interrogar: É possível compreender as
identidades de gênero na perspectiva da teoria do “self” gestáltica? É importante
compreender a vigência de uma suposta lógica cultural poderosa, este grande outro
social que espelha identidades normativas, que exigem conexão entre o sexo do
corpo (macho ou fêmea), a identidade e a orientação do desejo para o sexo oposto,
ou seja, machos devem desejar fêmeas e vice-versa. As identidades definem-se em
termos relacionais e, enquanto categorias, podem organizar e descrever a
experiência da sexualidade das pessoas. Na sociedade contemporânea, as
identidades tornam-se também instrumentais para reivindicação por legitimidade e
respeito. Eis aqui a dimensão antropológica presente no histórico das tentativas
malogradas para se reconhecer enquanto cidadão, aceito e acolhido na sua
diversidade, presente na invisibilidade, na exclusão e discriminação de toda e
qualquer ordem não somente a de gênero, na qual uma espécie de espelho social
(outro social) os torna privados de representações sociais que constituem, para
cada qual, uma identidade (função personalidade). Então o estado de aflição
representa uma situação de sofrimento ético-político-antropológico (trata-se de
uma vulnerabilidade antropológica), que reside na ausência de uma imagem social
pela qual se sentiria incluído, aceito, funcional e respeitado, logo o ajustamento
criador se faz presente em discretos pedidos de socorro, de solidariedade, que
denominamos de ajustamentos de inclusão (MÜLLER-GRANZOTO e MÜLLER-
GRANZOTO, 2012).

Objetiva-se com este trabalho, a partir da leitura de uma ética do acolhimento à


diferença enquanto princípio gestáltico, se pensar uma clínica das identidades de
gênero. Para tanto, se faz necessário compreender, por meio de uma análise sob a
ótica da Teoria do “Self” gestáltica, as identidades de gênero que incluem “Gays”,
Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transgênero, Transexuais, Intersexuais,
Assexuados, entre uma variabilidade de gêneros que se permitem ser e viver a sua
sexualidade.

A relevância deste estudo evidencia-se na escassez de publicações que abordem a


temática voltada para o estudo de gênero articulada com a leitura da Gestalt-
terapia. Neste sentido, torna-se preocupante o número restrito de publicações,
limitando o aprofundamento teórico sobre as identidades de gênero. A Gestalt-
terapia é uma abordagem consideravelmente recente e seu percurso ainda em
desenvolvimento requer um interesse teórico sobre questões pouco estudadas. Por
isso, busca-se promover um discernimento, de modo que o olhar aprofundado
através da sua ótica, torne a abordagem e a sua teoria cada vez mais consistente.

Nestes agrupamentos relacionais estes indivíduos apontam questões importantes


sobre a discussão da sexualidade de forma que pré-julgamentos e preconceitos
sejam aniquilados e os direitos respeitados. A identidade surge como aspecto
relacional, pois é na relação com o outro que se define a representação do ser e se
admite o caráter da identidade. Este é um fenômeno social de grande relevância
nos estudos de Psicologia, mas quando se trata de identidade de gênero, a
discussão torna-se ainda mais ampla. Porém as pesquisas ainda são escassas neste
campo. Ainda existem poucas pesquisas e publicações com o intuito de
compreender este fenômeno a partir da Gestalt-terapia.

Esta pesquisa visa, portanto, descobrir mais subsídios para a discussão sobre a
diversidade das identidades de gênero numa ótica de compreensão a partir da
teoria do “self” gestáltica e seus desdobramentos clínicos (MÜLLER-GRANZOTO e
MÜLLER-GRANZOTO, 2012). O aporte teórico utilizado tem como os trabalhos de
Guaciara Lopes Louro (2008), Merleau-Ponty (2005) e Ciampa (1984), reunindo-os
assim em publicações sobre identidade e contemporaneidade. Sobre a Teoria
do “Self” e a Gestalt-terapia destaca-se o uso de obras como Gestalt-terapia de
Perls, Hefferline e Goodman (1997), também, nós trouxemos como fundamento as
pesquisas produzidas em trabalhos anteriores (BELMINO, 2014,2015,2017).
Também foi fundamental as propostas gestálticas contemporâneas dos Müller-
Granzotto e Müller-Granzotto (2007, 2012a, 2012b), e outros autores que abordam
o contexto das identidades de gênero.
A pesquisa está dividida nas seguintes partes: “A reconquista do estilo
fenomenológico a partir da Teoria do ‘Self’ gestáltica: A Gestalt-terapia como um
projeto ético de acolhimento à diversidade”, em que propomos realizar um resgate
do estilo fenomenológico que impulsionou o desenvolvimento da Teoria do “Self” do
modo que permite ampliar o acolhimento à diversidade das experiências.

No segundo tópico, “Paul Goodman - um ser ‘queer’ no âmago da construção de


uma teoria política pós-identitária, evidencia-se a personalidade do escritor
Goodman, precursor da Gestalt-terapia e um ser “queer” assumido, o que lhe
atribui autoridade suficiente para nos conduzir a uma possível construção teórica
sobre uma teoria política de gênero.

No terceiro momento desta pesquisa, “as biografias de gênero das identidades na


sociedade: A função personalidade reconhecida diante do outro social”,baseado em
alguns teóricos que estudam as identidades de gênero constituímos a vivência de
formação da função personalidade articulando com a questão da sexualidade. No
quaro tópico, “A invisibilidade e a impossibilidade de ser das identidades de gênero:
as vulnerabilidades das funções do ‘self’”, é a articulação teórica da Gestalt-terapia
a partir da Teoria do “Self”,ondedescrevemos a experiência de sofrimento que
torna-se ainda mais clara no subtópico, “O sofrimento ético-político-antropológico
das experiências de campo das identidades de gênero”.

Por último e para concluir o modo de pensar empregado nesta pesquisa o


tópico, “A ética anárquica da Gestalt-terapia e a sexualidade: intervenções
possíveis na experiência de campo frente à emergência de vulnerabilidades das
funções do ‘self’ nas identidades de gênero” é uma provocação de nível teórico-
prático sobre como a Gestalt-terapia pode acolher e promover desvios frente ao
sofrimento vivenciado pela comunidade LGBTQI.

 
1 - A RECONQUISTA DO ESTILO FENOMENOLÓGICO A PARTIR DA TEORIA
DO “SELF” GESTÁLTICA: A GESTALT-TERAPIA COMO UM PROJETO ÉTICO DE
ACOLHIMENTO À DIVERSIDADE

A Gestalt-terapia surge como uma fronteira entre a prática clínica e a reflexão


teórica. Ambas não existiriam como empreendimento escrito sem que se reconheça
os esforços de seus fundadores, Fritz Perls com sua experiência prática em
psicoterapia, e mais especificamente na figura de Paul Goodman, seu confesso
autor e redator. A Teoria do “Self” surge como um projeto fenomenológico com
intuito de balizar uma prática consistente de psicoterapia (MÜLLER-GRANZOTTO &
MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a). O intento particular desta descrição consiste em
estabelecer as bases que possibilitem compreender um questionamento: Como o
rigor fenomenológico servirá de suporte para pensar a Gestalt-terapia a partir da
construção da Teoria do “Self”? A resposta servirá para balizar o histórico da
Gestalt-terapia, consequentemente o desenvolvimento da Teoria do “Self”, neste
sentido, uma clínica que parte deuma noção ética de acolhimento ao estranho que
surge na experiência entre consulente e clínico.

O fulcro para pensar a Teoria do “Self” surge com os esforços teóricos e


experimentais de diversas gerações de pesquisadores e discípulos de Brentano
(1874), condensados na noção de “Gestalt”.  Brentano criticava o modelo
associacionista de Wundt que por mais que ainda trabalhasse com a ideia de que o
conhecimento como uma ocorrência imanente de um ego psicofísico (no caso o eu
como existente empírico), não se admitia era que este resultasse de uma
compreensão associacionista de atos mentais. Neste sentido Brentano compreendia
que havia uma orientação indeterminada de um modo intuitivo e espontâneo que
se impusesse a esses atos, o que não seria uma parte ou o resultado da soma das
partes da experiência, mas sim uma totalidade dotada de sentido que este
denominou de “Gestalt”, e chamou de intencionalidade a capacidade de reunir
várias “Gestalten” (unidades espontâneas) ao mesmo tempo que estas instituem
uma orientação aos atos mentais (MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER-GRANZOTTO,
2007).
Apontam os Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2007), que Husserl em sua
publicação de “Investigações lógicas” (1900-1901), reconheceu a elucidação do seu
mestre Brentano, porém inquietou-se e procurou repensar a sua tese dos objetos
intencionais. Insatisfeito com a dimensão privativa e individual dos fenômenos
psíquicos exacerbada pelo positivismo lógico - em detrimento da potencialidade do
caráter público destas ocorrências negando assim o caráter mundano da
experiência - Husserl enfatiza tais potencialidades, partindo do princípio que o
mundo, ele mesmo, nos doa, nos oferece. Esta é a razão pela qual passou a
chamá-los de essências no sentido de admitir uma “forma” partilhada por muitos,
que pudesse ser comum a muitos e por muitos passíveis de observação. Assim,
Husserl admitia, que os objetos são idealidades intersubjetivas compartilhadas e
que tais fenômenos são vividos como uma unidade que é a “nossa” unidade. Por
isso se configuram transcendentes à nossa subjetividade, e por isso,
intersubjetivos, muito embora sejam diferentes entre si. Através de intuições
lógico-matemática buscou explicar que os objetos psíquicos (a exemplo como os
matemáticos) possuem em si uma vivência intuitiva, que não se verifica no caso de
um objeto físico. Este último depende de que um ato psíquico venha reunir as
partes (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2004).

A Psicologia da Gestalt nasce com um rigor de uma psicologia genética a partir da


influência de Husserl, e tinha como objetivo compreender o que eram as essências
enquanto fatos elementares. O legado deixado pela psicologia eidética de Husserl, a
saber, as essências ou intuições (totalidades), foramfundamentais para a formação
da primeira geração da Psicologia da Gestalt e as concepções que preferiram tratar
como estruturas objetivas chamadas “gestalten”. Esses primeiros gestaltistas foram
Wertheimer, Köhler e Koffka (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2007).

As críticas de Husserl à maneira como a psicologia da Gestalt leram suas teses


culminam numa segunda geração de pesquisadores mais comprometidos em
superar o dualismo ontológico por meio da noção de “Gestalt” assumindo a vigência
de um campo que no entendimento seria transcendental. É nessas condições que
Fritz Perls encontraria sinais que o indicassem propor um retorno a fenomenologia.
Conquanto a vivência de tempo proposta por Husserl representa a tradição
fenomenológica que se arrastará como legado para a Teoria do “Self” sendo
considerada matriz para pensar todas as outras noções, a vivência de tempo como
uma correlação espontânea entre nossa materialidade (atual) e a inatualidade
(passado e do futuro). Em outras palavras é como “se o próprio passado retornasse
feito emoção viva, noutras, é o futuro que nos desaloja de nossas ocupações
presentes” (MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a, p. 14).

Apontam os Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012a) que a segunda geração


de psicólogos da Gestalt surge nos termos de uma teoria sobre autorregulação do
organismo, através dos esforços de Kurt Goldstein (1967), Adhémar Gelb e outros
de seus assistentes como Perls (seus assistente e aprendiz) e sua futura esposa
Lore Polner (passa a adotar o nome de Laura Perls quando chega aos EUA).
Goldstein (1933), profundo conhecedor das teses de Husserl, incorporou a ideia da
intencionalidade operativa que ele compreendeu vigorar nas mais simples formas
de organização da natureza, o que levou a falar de uma intencionalidade
organísmica. Ele concebe que a “Gestalt” possui seu caráter dinâmico presente na
natureza dos organismos no contínuo processo de conservação e modificação, em
outras palavras, uma “Gestalt” é a dinâmica figura e fundo no interior dos
processos de autorregulação organísmica junto ao meio que na interpretação de
Perls tratava-se de um novo modo de compreender essa experiência da retomada
dos vívidos temporais numa reconfiguração espontânea em proveito de nossa
materialidade cotidiana: ou seja, a psicoterapia. Mais tarde outro importante
membro da segunda geração de psicólogos da Gestalt, Kurt Lewin (1936),
introduziu a noção de espaço vital que, em certo sentido, procura reapresentar a
noção fenomenológica de campo. O espaço vital é a incidência do processo amplo
de emergência de figuras no interior de um campo, que é a “Gestalt”. Esse
pressuposto também será, mais tarde, uma influência no modo de conceber a
Gestalt-terapia (MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER-GRANZOTTO, 2007).

Fritz Perls, em sua proposta de releitura da psicanálise, faz uso da noção de


intencionalidade organísmica para intitular o inconsciente das pulsões, distinguindo
claramente do inconsciente freudiano, para evitar recair em um psicologismo. O
mesmo ressaltou o caráter espontâneo daquela noção com uma expressão que
aprendeu na língua inglesa logo que fugiu para a África do Sul no período de
guerra: “Awareness”.Fritz Perls, um psicanalista alemão, torna-se dissidente do
movimento psicanalítico no instante em que apresenta em sua obra esforços para
verter a psicanálise para uma linguagem organísmica (MÜLLER-GRANZOTTO;
MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a) e mais tarde, a partir das contribuições fundamentais
de Paul Goodman, traduz essas ideias em uma compreensão fenomenológica
(BELMINO, 2017). No contexto daquela época, Fritz Perls criticava o método e a
técnica freudiana, apontando a necessidade de se repensar novos direcionamentos
para seu aprimoramento. Em seu primeiro livro “Ego, Fome e Agressão: Uma
revisão da teoria e do método de Freud” (PERLS, 2002) Fritz Perls propõe para a
psicanálise uma nova leitura teórica que desconstrua a metapsicologia a partir de
uma leitura organísmica e gestaltista (baseado em Kurt Goldstein) para substituir
as pulsões de morte e de vida pensadas agora segundo a Teoria Organísmica da
Intencionalidade. Entretanto, o livro despertou a curiosidade de alguns e, em
contraponto, fora extremamente criticado pela comunidade psicanalítica. Vale
salientar que a articulação entre a Teoria Organísmica e a Psicanálise, inicia-se com
Perls na sua obra “Ego, Fome e Agressão: Uma revisão da teoria e do método de
Freud” (PERLS, 2002). Mais tarde quando se mudam para os Estados Unidos, Laura
e Perls encontram no grande escritor americano Paul Goodman, porto seguro para
desenvolver mais ainda as noções de “awareness”, contato e a teoria
fenomenológica emprestada de Husserl (BELMINO, 2014).

Ao elaborar uma fenomenologia da “awareness”, ao entendimento dos autores PHG


(1951), a psicoterapia seria descrita como uma “Gestalt”. Neste sentido,
estabelecer a fenomenologia dos processos intencionais operativos inerentes a
prática clínica, é compreender os processos de “awareness” que formam a prática
clínica, ou seja, um todo espontâneo de correlação entre o clínico e seu consulente.
Compreendemos a Teoria do “Self” como a apresentação sistemática dessa
fenomenologia. A Teoria do “Self” é a representação temporal das funções e das
dinâmicas específicas desse todo espontâneo de correlação que se configura no
campo clínico como um tipo de enlace ambíguo entre clínico e o seu consulente. A
Teoria do “Self” caracteriza uma fenomenologia peculiar, pois ela tem como tarefa
descrever as “Gestaltens” no plano da experiência empírica. Goodman, inspirado
pela pragmática de John Dewey e na fenomenologia do corpo de Merleau-Ponty
(1945) diz que, tratando-se da experiência clínica, na qual a ambiguidade da
relação entre clínico e consulente é mais importante do que qualquer verdade, as
intuições são mais reveladoras do que os pensamentos e conhecimentos, não sendo
necessário que nessa relação se recorra ao campo da idealidade. Segundo Müller-
Granzoto e Müller-Granzoto (2012ª) é a partir das proposições de Merleau-Ponty
sobre o problema husserliano que propriamente se fundamenta o que vem a ser
dito sobre uma deriva da fenomenologia em direção à ética. É no lugar de dar
direito a cidadania e acolher o estranho que Merleau-Ponty desloca a fenomenologia
elucidativa para um discurso com sentido ético de acolhida e tolerância aquilo que
se mostra irredutível. E as “Gestalten”, na clínica, são antes manifestações do
estranho do que de objetos do conhecimento (MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER-
GRANZOTTO, 2012a).

Encontram-se, nos apontamentos contemporâneos sobre a Gestalt-terapia, os


esforços dos Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012a), para retomar a ideia
inicial proposta por PHG (1951). Com este intuito afirmam que a Teoria
do “Self” caracteriza uma fenomenologia muito peculiar, ou seja, um modo de
descrever temporalmente a experiência clínica que acontece no plano da própria
experiência. Para os autores supramencionados deve-se considerar que ela é antes
uma ética do que uma ciência. Tal prevalência da acolhida ética faz como que opere
uma fenomenologia transcendental.

Rememoremos o entendimento sobre a noção de “self” sendo necessário suspender


a noção de uma subjetividade privatizada, ou seja, a presença de um ego
psicofísico interior, para então adotar uma postura gestáltica de entendimento a
partir de uma leitura de campo. O “self” nada mais é do que o sistema de contatos
no campo organismo/ambiente (PHG, 1997). É nessa compreensão que Goodman
faz da Teoria do “Self” uma brilhante articulação de ferramentas críticas como a
Fenomenologia do tempo de Husserl, da teoria do hábito (motor e linguageiro) de
Merleau-Ponty e o Criticismo Social Pragmatista de John Dewey (MÜLLER-
GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).

Para os autores PHG (1997, p.179), fundadores da Gestalt-Terapia a definição de


Teoria do “Self” vem a ser descrita como “sistema complexo de contatos
necessários ao ajustamento no campo imbricado. O ‘Self’ pode ser considerado
como estando na fronteira do organismo, mas a própria fronteira não esta isolada
do ambiente; entra em contato com este; e pertence a ambos, ao ambiente e ao
organismo”. Noutras palavras estes nomeiam “Self”, “chamaremos de ‘self’ o
sistema de contatos em qualquer momento. [...] o ‘self’ é a fronteira-de-contato
em funcionamento; sua atividade é formar figurar e fundos” (PHG, 1951, p.49). Na
minudência da obra “Gestalt-therapy” (PHG, 1951, p.184) os autores reafirmam o
propósito que une a nova abordagem ao que se intuía ser objeto de uma
fenomenologia aplicada, propor estudar um “tema de uma psicologia formal seria a
classificação, descrição e análise exaustiva das estruturas possíveis de ‘self’”.

Destarte os Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012a) nos informam que do


ponto de vista gestáltico a Teoria do “Self” possibilita descrever pelo menos três
funções diferentes operando no processo de contato que se estabelece no decorrer
de uma relação, sendo estas (id, ego e personalidade) dos três processos
intencionais (“awareness” sensorial, “awareness” deliberada
e “awareness” reflexiva) que compõe os ajustamentos criativos produzidos em
regime de contato. Para PHG (1997) “enquanto aspectos do ‘self’ num ato simples
espontâneo, o Id, o Ego e a Personalidade são etapas principais do ajustamento
criativo” (p.154).  Tais estruturas, por sua vez, são três perspectivas copresentes
na experiência que é o sistema “self” em funcionamento, em qualquer relação, em
toda e qualquer experiência vivida (ou seja, toda experiência em que há um fluxo
de “awareness”) as três se apresentam concomitantemente. Nas palavras de PHG
(1997), estes descrevem tais estruturas como:

"o Id é o fundo determinado que se dissolve em suas possibilidades, incluindo as


excitações orgânicas e as situações passadas  inacabadas que se tornam
conscientes, o ambiente percebido de maneira vaga e os sentimentos incipientes
que o conectam o organismo e o ambiente. O Ego é a indentificação progressiva
com as possibilidades e a alienação destas, a limitação e a intensificação do contato
em andamento, incluindo o comportamento motor, a agressão, a orientação e a
manipulação. A Personalidade é a figura criada na qual o self se transforma e
assimila ao organismo, unindo-a com os resultados de um crescimento anterior"
(p.184).

No entanto, o intento desta pesquisa sobre as identidades de gênero à luz da Teoria


do “Self”, se propõe a focar em uma destas dimensões do self, a saber, a função
personalidade. A função personalidade pode ser descrita como a capacidade para
representar nossas próprias vivências de contato, não somente, é tudo aquilo que
permite nosso poder para reconhecer, nessas representações, uma identidade
objetiva, figuras e papéis sociais, para qual, então passamos a fruir. Neste sentido
PHG (1997, p.184) entendem que a função personalidade “é o sistema de atitudes
adotadas nas relações interpessoais; é a admissão do que somos, que serve de
fundamento pelo qual poderíamos explicar nosso comportamento, se nos pedissem
uma explicação”. Ou seja, é tudo que é biográfico, histórico ou nomeado sobre
identidades das quais se assumem em nossa descrição essencialmente. PHG (1997,
p.188) afirmam que “a personalidade é essencialmente uma réplica verbal do
‘self’”. É na dimensão da função personalidade que se desenvolvem a vida moral,
os valores éticos, as instituições e principalmente a nossa historicidade, nossas
identidades reconhecidas no laço social. No decorrer deste “corpus” científico outras
questões referentes à vivência das identidades de gênero na sociedade serão
dissertadas a fim de entender o sofrimento presente nestas experiências quando se
é impedido de ser quem se é. Essa vulnerabilidade de nossas identidades sociais,
no entendimento de Müller-Granzoto e Müller-Granzoto (2012a) pode ser chamada
de uma vulnerabilidade antropológica.

 
2 - PAUL GOODMAN UM SER "QUEER" NO ÂMAGO DA CONSTRUÇÃO DE UMA
TEORIA POLÍTICA PÓS-IDENTITÁRIA

Sempre sendo remetido ao lugar de estranheza, de raridade ao passo que também


é esquisito aos olhares, “queer” é também, o sujeito da sexualidade desviante.
Estas palavras ecoam na definição situada na obra “Um Corpo Estranho - ensaios
sobre a sexualidade e a teoria Queer” da autora Guacira Louro Lopes (2004),
referência nos estudos de gênero no Brasil. Pensar no termo “queer” é colocar-se
frente ao que é estranho, raro, esquisito, e também, desvio – homossexuais,
bissexuais, transexuais, travestis, “drags”, entre outras pluralidades sexuais. Todos
esses modos de experiências são excêntricas aos olhares da sociedade que não
deseja que estes sejam “integrados” e muito menos “tolerados”. “Queer” é um jeito
de pensar e de ser que não aspira o âmago e não pretende tê-lo (LOURO, 2004).

Outro autor que também utilizava o termo “queer” era Paul Goodman, que, por
vivenciar e sofrer o preconceito no corpo, Goodman (2012) dizia que: “em
maneiras essenciais, minhas necessidades homossexuais me tornaram um
‘nigger’”, gíria pejorativa utilizada na época para designar os negros. Goodman
aproximava a vivência queer (que na época era usado de forma pejorativa, algo
como viado, ou bixa, em português) da vivência dos negros dos subúrbios devido a
vivência de exclusão social. Preocupados com as questões da sexualidade o
termo “queer” foi apropriado por vários autores antes mesmo da fluência corrente
do termo “gay”, assim como foi citado por Goodman em um de seus textos “Ser
Queer” (GOODMAN, 2012):

"Em geral, na América, ser um 'nigger queer' não é econômica e profissionalmente


uma desvantagem tão grande quanto ser um 'nigger' negro, a não ser em algumas
áreas como o serviço público, em que há medo e dissimulação consideráveis (em
regimes mais puritanos, como a Cuba de hoje, ser 'queer' é um mau negócio
profissional e civilmente. Regimes totalitários, sejam comunistas, sejam fascistas,
parecem ser intrinsecamente puritanos). Porém, minha experiência pessoal tem
sido bem mista. Já fui despedido três vezes por causa do meu
comportamento 'queer' ou por reivindicar meu direito a ele, foram as únicas vezes
em que fui despedido" (GOODMAN, 1962/2012 p.33).

Esta descrição de Goodman nos aproxima de um sofrimento arbitrário


contingencialmente advindo de regimes totalitários ou adeptos do puritanismo em
excesso que oprimem os que são “queer”. No amplo quadro de referência dos
escritores e intelectuais que “põe a cara no sol”, que assumiram a identidade de
gênero que possuem, no caso a identidade “gay”, bissexual – ou “queer” – entre
outras, Goodman representa um destes que “saíram do armário” para expor tais
conflitos. Os escritos literários de Goodman estão implicados direta ou
indiretamente na questão de se discutir abertamente a homossexualidade, tema
este que surge na sua própria vivência bissexual. Sá (2009) traz contribuições
riquíssimas sobre a importância de Goodman, entendendo que ele “foi, então, um
dos precursores do Movimento de Liberação Sexual, que se desenvolveu na década
de 70, após o conflito de ‘Stonewall’, embora ele mesmo tivesse críticas sobre a
postura adotada pelos militantes ‘gays’”.

Tal como aponta Belmino (2014, p.29), Goodman era muito mais que um escritor.
Seu intento era unir pensamento e ação numa espécie de nova atitude social. Seu
profundo conhecimento da dimensão filosófica e sociológica lhe permitia ironizar e
artisticamente denunciar a incongruência do sistema. Mas isso não significou dizer
que o moralismo americano o deixasse ficar tranquilo. Muitas vezes foi perseguido,
acusado de seduzir e se envolver com seus alunos, tendo sido expulso de várias
instituições e universidades que lecionava e teve principalmente sua vida exposta.
Sua bissexualidade assumida, seus ideais de estimular uma sexualidade livre aos
seus alunos, muitos casamentos e simultaneamente suas experiências
homossexuais publicamente abertas o fizeram alvo de preconceito.

Ler os escritos e as autobiografias de Goodman implica prioritariamente em


perceber o quanto acreditava que as pessoas poderiam construir uma sociedade
mais justa e honesta consigo mesma e com a comunidade. Quanto a sociedade,
este não lhe atribuía por completo ser anti-social, nem tão pouco Goodman
considerava como alternativa destruir os paradigmas vigentes, ou sair por aí
liderando uma revolução intercontinental. O que almejava Goodman era apenas ser
aceito, poder andar nas ruas, “dar cantadas”, viver em sociedade, ser bissexual ou
homossexual, ou apenas “queer” como preferia ser chamado (BELMINO, 2014,
p.92).

Ao percorrer pelos caminhos que se enveredam na obra de Louro (2004), tal como
esta exalta na sua descrição do que venha a ser este o termo “queer”, em sua
afirmação um ser “queer” tem um jeito de pensar e de ser que desafia as normas
regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade, do “entre
lugares”, do indecidível. “Queer” é um corpo estranho que incomoda, perturba,
provoca e fascina (LOURO, 2004, p.7). Corroborando com esta afirmação sobre
ser “queer”, Paul Goodman (1962/2012) diz: “o que me torna um ‘nigger’ é que
não se pressupõe que meu impulso para abordar alguém seja um direito meu.
Então fico com a sensação de que essa não é minha rua. [...] que lhe concede o
direito de existir, que só fica abaixo de sermos aceitos. Eu raramente desfrutei
desse tratamento” (p.33). Nos termos da afirmação supramencionada Goodman
representou nas suas alfinetadas literárias irônicas sobre o sentimento de não ser
aceito.

De acordo com Louro (2001) o que se denomina “minorias” sexuais na verdade


deveria ser revisto. Nessa concepção, tais minorias não podem se traduzir como
uma inferioridade numérica, contudo deve-se analisar como maiorias silenciosas
que, ao se politizarem, convertem o gueto em território, o estigma em orgulho.
Atualmente o mais complexo neste sistema não é apenas assumir que as posições
de gênero e sexuais se multiplicaram sendo impossível lidar com elas apoiadas em
esquemas binários (homem e mulher), como normativos. A fronteira está sempre
sendo atravessada, o que implica em dar lugar social aos sujeitos que vivem
exatamente nela.

Goodman critica o caráter de repressão e a deturpação do ato sexual como algo


sujo. Segundo ele as atitudes higienistas de educação sexual e afins são tão
agressivas quanto se pensarmos na repressão total (BELMINO, 2014). Neste
sentido ainda afirma acreditar não ser possível à desconstrução de toda forma de
repressão, sendo estas constituídas no laço social exclusivamente com intuito de
controle, é como se instituíssem contratos sociais e a repressão seria uma das
cláusulas. “É danoso para as sociedades reprimir qualquer vitalidade espontânea.
Às vezes é necessário, mas raramente” (GOODMAN, 1962/2012 p.39). Faz-se
necessário interrogar quais contratos sociais são impostos pela sociedade atual e
que dano estes oferecem ao nosso bem-estar social e à saúde.

Para Goodman, tão absurda quanto à repressão sexual, são as formas de racismo,
preconceito e discriminação. Tais atitudes não fazem o menor sentido para se
assegurar o bem-estar social. Por exemplo, a homofobia ou qualquer discriminação
voltada à identidade de gênero de uma pessoa é completamente um despautério e
improcedente. Goodman que escreveu muito sobre a falta de sentido nas relações
humanas e as incongruências das pessoas em comunidades, partia do pressuposto
da natureza antropológica da neurose, ou do preço que é pago abrindo mão do
excitamento em prol da segurança e do funcionamento harmônico, tal qual muitos
outros excitamentos que se perderam quando aceitamos ser civilizados. Porém
quanto maior a repressão sexual, mais ela se torna uma saída criativa para lidar
com o excitamento (BELMINO, 2014).

Dialogar sobre a solução dos problemas contemporâneos não implica em destruir os


dispositivos de controle, mas, ao invés disso, profaná-los. Citando o pensamento de
Agamben (2014, p.45) “apud” Belmino  (2015, p.27) “A profanação é o contra
dispositivo que restitui o uso comum àquilo que o sacrifício tinha
separado”.Ademais, cabe encontrar uma solução no presente que seja possível, é
preciso, na leitura de Goodman, produzir saídas e é necessário assumir o risco e
buscar dar cidadania e acolhimento àquilo que não podemos compreender. Apenas
desse modo estaríamos agindo sobre o mundo, tentando reestabelecer nossa
implicação sobre ele, ou seja, profaná-lo. Dessa forma, a Gestalt-Terapia pensada
por Goodman pode ser entendida como uma forma anarquista. Além de uma
reflexão profunda sobre o contemporâneo, a Gestalt-terapia é um modo de agir
sobre o mundo (BELMINO, 2015).

Alguns teóricos “queer” alertam para a possibilidade factual de que uma política de


identidade pode se tornar cúmplice do sistema contra o qual ela pretende se
insurgir. Portanto sugerem uma teoria e uma política pós-identitárias. Tal
posicionamento intercala-se com a leitura que Goodman realiza sobre a saída que
supramencionou-se, para este a anarquia é o único caminho para o progresso e o
desenvolvimento social. De acordo com Louro (2001), isso implica direta e
totalmente no pressuposto de uma teoria e uma política pós-identitárias, nas quais
a anarquia não é uma condição de proposta política, mas um convite a se pensar os
processos de institucionalização e burocratização aos quais estamos submetidos, ao
mesmo tempo que o alvo dessa política e dessa teoria não seriam propriamente as
vidas ou os destinos de homens e mulheres homossexuais, mas sim a crítica à
oposição heterossexual/homossexual, compreendida como a categoria central que
organiza as práticas sociais, o conhecimento e as relações entre os sujeitos. Trata-
se, portanto, de uma mudança no foco e nas estratégias de análise para a cultura,
para as estruturas linguísticas ou discursivas e para os contextos institucionais que
os cercam.

3 - AS BIOGRAFIAS DE GÊNERO DAS IDENTIDADES NA SOCIEDADE: A


FUNÇÃO PERSONALIDADE RECONHECIDA DIANTE DO OUTRO SOCIAL

O que constitui a nossa identidade? Dizer quem alguém é significa dizer de quais
grupos faz parte: familiar, religioso, étnico, profissional, etário, sexual etc. Ao
mesmo tempo, dizer quem é alguém é, é o mesmo que dizer que ele é ele, e não
outro. Assim, a noção de identidade pode ser definida como sendo “aquilo que nos
apresenta a nós mesmos, nos identifica para os outros ou que os outros veem,
reconhecem (identificam) em nós” (ALMEIDA, 2005, p.17). Segundo os Müller-
Granzotto & Müller-Granzotto (2012a), é no âmbito das representações sociais
instituídas pela função personalidade que o sistema “self” adquire o status de
humanidade, pois nela se desenvolvem a vida moral, os valores éticos, as
instituições e os diversos modos de conhecimento sobre nós mesmos. Todavia,
essa consistência é constantemente perfurada pelo vazio do hábito, do passado
retido no fundo impessoal (função Id) e ultrapassada pelas criações em direção a
um horizonte de futuro (função de Ato).

Corroborando com tal questionamento, Ciampa (1984) já afirmava que em relação


ao termo identidade, “há mudanças mais ou menos previsíveis, mais ou menos
desejáveis, mais ou menos controláveis, mais ou menos... mudanças” (p.61).
Numa leitura da Teoria do “Self”, o “self” por conseguinte, não dispõe dela (função
personalidade) eternamente, o que esclarece em que sentido a função
personalidade é também a capacidade do sistema “self” para replicar, reescrever a
si mesmo (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2012). Afirma também o
quanto o laço social confirma representações identitárias de nós mesmos. A
identidade do outro reflete na minha e a minha na dele e, por conseguinte, somos
mudança o tempo todo. Não há nenhuma identidade estática. Este é um processo
dinâmico de constante construção.

Nada há de puramente “natural e dado” (grifo da autora) em tudo isso: ser homem


e ser mulher constitui-se em processos que acontecem no âmbito da cultura. Ainda
que teóricos e intelectuais disputem quanto aos modos de compreender e atribuir
sentido a esses processos, elas e eles costumam concordar que não é o momento
do nascimento e da nomeação de um corpo como macho ou como fêmea que faz
deste um sujeito masculino ou feminino. A construção do gênero e da sexualidade
dá-se ao longo de toda a vida, continuamente, infindavelmente (LOURO, 2008).
Mas é necessário remontar o contexto histórico que gerou tanto impacto na noção
supramencionada, de acordo com Guaciara Louro Lopes (2008):

"Simone de Beauvoir sacudiu a poeira dos meios intelectuais com a frase 'Ninguém


nasce mulher: torna-se mulher' (grifo nosso), o impacto desta expressão
imediatamente ganhou o mundo às mulheres das mais diferentes posições,
militantes e estudiosas passaram a afirma-la para descrever seu modo de ser e de
estar no mundo não estaria condicionado ao aparelho biológico herdado, mas que,
em vez disso, constituía-se numa construção (p.2).

Fazer-se mulher dependia das marcas, dos gestos, dos comportamentos, das
preferências e dos desgostos que lhes eram ensinados e reiterados,
cotidianamente, conforme normas e valores de uma dada cultura. Desde o final dos
anos 1940 (quando Beauvoir publicou o seu livro O Segundo sexo) muita coisa
mudou e o fazer-se mulher transformou-se, pluralizou-se, de um modo tal que
talvez nem mesmo a filósofa ousasse imaginar.

É assim que uma série de binarismos como homem-mulher, adulto-criança,


heterossexual-homossexual é correntemente escrita mesmo nos textos científicos,
produzindo uma lógica de dualidades que tem seu fundamento em pares opostos
de identidade, nos quais, um dos termos, quase sempre o primeiro, tem primazia
sobre o outro, sendo um a referência, o padrão; o outro é a margem, o derivado
(DINIS, 2008).

A frase de S. Beauvoir se perpetuou e pode ser tomada como uma espécie de


disparo provocador de um conjunto de reflexões e teorizações exuberantes e
férteis, polêmicas e disputadas, não só no campo do feminismo e dos estudos de
gênero, como também no campo dos estudos da sexualidade. A mesma frase foi
ampliada, passando a ser compreendida também no masculino. Sim,
decididamente, fazer de alguém um homem requer, de igual modo, investimentos
continuados. Aqueles que fogem dos padrões determinados pelo pensamento
binário de entender a sexualidade tão somente como retida ao masculino e
feminino, logo são descartados e ditos como desviantes ou promíscuos, e, por isso,
se tornam muitas vezes vítimas de violência (LOURO, 2008).

Comum a todos os casos, a violência gera um quadro de sofrimento ético, tendo


em vista o ataque às representações políticas e aos valores antropológicos
construídos pelas etnias e gêneros diversificantes. Ocasiona risco quando há
efetividade da aniquilação do corpo de atos de cada sujeito. Quando se refere à
exclusão social e discriminação, podemos presumir uma leitura a partir da Teoria
do “Self”, no entendimento de que um corpo de atos está impedido de operar num
campo, imputado de possibilidades de conquistar representações sociais e desfrutar
destas, de modo que considerem ser os motivos éticos de destruição das
representações sociais os mais severos (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-
GRANZOTTO, 2012a).

Segundo Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012b), mulheres, negros, mestiços,


homoeróticos e transexuais são todos reduzidos à condição de pessoas senão
matáveis e desprezíveis, ao menos inferiores e indesejáveis, para quem não se
pode reconhecer nem cidadania (política), nem humanidade (antropológica) que
lhes valesse lugar social horizontal.

Especificamente, esta ideia supramencionada nos faz remeter a diferença, tal como
as formas de vivenciar a sexualidade. Por exemplo, em relação à
homossexualidade, uma das estratégias tem sido a utilização preferencial do termo
homossexualidade a homossexualismo, que durante muitos anos designava
categorias psiquiátricas patológicas, associadas às práticas de perversão. Em seus
estudos sobre o tema, o psicanalista Jurandir Freire Costa (1992) “apud” Dinis
(2008) vai ainda mais longe, ao propor a substituição dos termos homossexualismo
e homossexualidade pelo termo homoerotismo. Longe de ser mero jogo de
palavras, para o autor, as categorias que criam as identidades sexuais não são
universais, mas efeitos histórico-culturais também produzidos pela linguagem. Uma
dessas estratégias é designar o sujeito por determinadas partes do seu ser,
transformando o que é adjetivo em substantivo, e, com isso, transformar as
relações particulares da vida privada, o estar homossexual, em uma categoria
identitária que passa a abranger mais um campo de possibilidades experiencial do
sujeito. O nome é uma representação da imagem no laço social, identifica-se quem
se é, pelo nome que lhe é dado.
A forma mais simples, habitual e inicial é fornecer um nome, um substantivo que
na sua acepção é a palavra que nomeia o ser, que designa o ser.  Nos chamamos
da forma como os outros no chamam (CIAMPA, 1984). Entretanto, nas identidades
trans, a travesti e a transexual escolhe o seu nome social sendo este o nome que
ela escolhe como identidade e nele se reconhece. De acordo com Ciampa (1984,
p.63), “diferença e igualdade. É uma primeira noção de identidade”. Podemos
imaginar as mais diversas combinações para configurar uma identidade como uma
totalidade. Uma totalidade contraditória, múltipla e mutável, porém una. Por mais
contraditório, por mais mutável que seja, sei que sou eu que sou assim, ou seja,
sou uma unidade de contraditórios, sou uno na multiplicidade e na mudança
(CIAMPA, 1984).

Na sociedade, a identidade de gênero está relacionada à discriminação e


preconceito que sofrem os vários atores sociais que vivem formas de identidades
ditas diferentes ou desviantes. Talvez por isso a alguns, escape a força dos
embates culturais. Mas os movimentos sociais organizados (dentre eles o
movimento feminista e os das minorias sexuais) compreenderam, desde logo, que
o acesso e o controle dos espaços culturais, como a mídia, o cinema, a televisão, os
jornais, os currículos das escolas e universidades, eram fundamentais (LOURO,
2008).

Por sua vez, em resposta a esta invisibilidade das identidades de gênero por uma
parte da estrutura da comunidade, surgem os esforços advindos dos coletivos
sociais e grupos de militantes que tomam partido em defesa dos direitos ofertados
a parte da população de um todo maior com direitos iguais.

 
4 - A INVISIBILIDADE E A IMPOSSIBILIDADE DE SER DAS IDENTIDADES
DE GÊNERO: AS VULNERABILIDADES DAS FUNÇÕES DO SELF

4.1 - O sofrimento ético-político-antropológico das experiências de campo


das identidades de gênero

A dimensão antropológica das biografias de gênero se faz figura diante do contexto


da variabilidade de identidades de gênero a ser compreendidas como as ampliações
das experiências que constituem a sexualidade humana. Estas categorias de
identidades de gênero compostas por “Gays”, Lésbicas, Bissexuais, Travestis,
Transgêneros, Transexuais, Intersexuais, entre outras concepções de identidades,
sofrem a repressão de regimes totalitários excludentes. Nesse sentido, entendemos
que a clínica gestáltica pode ocupar-se dessas questões entendendo que a
dimensão antropológica da experiência pode ser prejudicada por motivos éticos,
políticos e antropológicos (MULLER-GRANZOTTO E MULLER-GRANZOTTO, 2012b).
Essas formas de experiências são pensadas a partir dos modos como os sujeitos
foram privados das representações sociais que constituem, para cada um, uma
identidade considerada na Teoria do “Self” como a função personalidade, e que
envolve a história e as identidade de cada um em suas experiências constituídas a
partir de um campo (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).

As representações que se juntam e que constituem o outro social junto ao qual


experimentamos nossa identidade é o que chamamos função personalidade (PHG,
1997). A função personalidade assegura os meios sem os quais um corpo de atos
não poderia repetir uma perda (função Id), tampouco criar um horizonte de desejo
(função de Ego ou de Ato) (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).
Como é possível pensar o termo invisibilidade diante da possibilidade de
experenciar no campo o conjunto de representações que nomeiam minha
identidade? Existe a possibilidade de o próprio outro social privar a participação de
uma realidade ou de muitas, como se a estas últimas não fossem reconhecidos os
direitos de desempenharem a função personalidade ou dela se servir. Esta privação
se dá nos casos de experiências que denominamos de surto, que ocorre nos casos
em que o outro social não se interessa em escutar o ajustamento de busca
(psicose) ou, mais do que isso, busca destruir a possibilidade de se produzir
respostas psicóticas perante os excitamentos (ou seja, destitui a possibilidade do
sujeito ser reconhecido como alguém humanamente capaz de reconhecer-se
identitariamente). Essa vulnerabilidade antropológica também ocorre nas
experiências envolvendo luto, adoecimento somático, experiências envolvendo
emergências e desastres, em que o sujeito de atos parece estar privado de sua
realidade objetiva (identidade), como se não pudesse dispor de representações que
lhe assegure um pertencimento a um dado grupo ou identidade, do mesmo modo
quando se vive conflitos socioeconômicos, ou discriminações de toda ordem
(MÜLLER-GRANZOTTO E MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b).

A perda da espontaneidade social caracteriza-se como uma vulnerabilidade da


função personalidade, emergindo um sentimento de sofrimento, ao qual os autores
denominaram de “misery”, termo para o qual Muller-Granzotto e Muller-Granzotto
(2012b) propõem a tradução como “sofrimento”, ao invés de “aflição” tal como fora
posta na versão brasileira do livro Gestalt Therapy. A vulnerabilidade da função
personalidade gera um tipo de ajustamento criativo que nada mais são que
discretos pedidos de socorro, aos quais denominamos de ajustamento de inclusão
(Idem).

Existem muitas razões pelas quais numa relação de campo a função personalidade
pode malograr, podendo-se inclusive classificar pelo menos três grandes motivos
em que ajustamentos de inclusão podem emergir na relação: por motivos
antropológicos quando nos deparamos com um contexto que envolve uma
catástrofe, um acidente de ordem natural que ceifa as representações dos sujeitos
e apaga suas biografias, como no grave acidente da cidade de Mariana que foi
devastada pela onda de lama de minérios de uma reserva industrial (Samarco).
Nesta devastação das representações antropológicas que se fundem numa
identidade social de um sujeito ou comunidade devemos incluir a situações de luto,
de adoecimento somático além das emergências e desastres (MÜLLER-GRANZOTTO
& MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a). A vulnerabilidade da função personalidade
também pode ocorrer por motivos políticos, onde uma ostensiva dominação que
visa alienação de um desejo dominante se impõe sobre os submissos submetendo-
os a um regime de despersonalização a favor de um ideal de projeto político
dominador que envolve a produtividade de riqueza com base na lógica de consumo,
como nos casos envolvendo a escravidão, o trabalho assalariado privado de direitos
civis e submetido à ilegalidade de condições e privação da liberdade. E, por motivos
éticos, que são os mais severos. Quando há a destruição das representações
sociais, referindo-se a exclusão social dos corpos de atos que se encontram
completamente desprovidos da possibilidade de conquistar representações sociais
ou mesmo desfrutá-las. Neste sentido a exclusão é em sua forma mais cruel, de
experiências desumanas vividas em condições que podem ser nomeadas de estados
de exceção. Podemos citar os casos de hospitais de custódia e tratamento
psiquiátricos, campos de refugiados, sistemas presidiários, bem como a
discriminação racial e de gênero, especificamente, as mulheres vítimas das
decisões arbitrárias e violência gratuita, ou violência gratuita a todos aqueles da
comunidade LGBTQI (“Gays”, Lésbicas, Bissexuais, Travesti,
Transgênero, “Queer” e Intersexuais). Pensemos no regime patriarcado e uma
cultura machista que se sobrepõe tal como um dominador já instaurado e
coexistindo historicamente com um conjunto de minorias lutando para enfraquecer
este regime e nas lutas de militâncias buscando visibilidade para os direitos
garantidos a qualquer cidadão, a qualquer ser humano. E aqui também devemos
nos lembrar das vítimas da violência racial e homofóbica, dos foragidos nos campos
de refugiados ou nos cinturões de pobreza. Todos eles são excluídos das relações
políticas, despido de suas prerrogativas, reduzidos à condição de vida nua (segundo
a terminologia de Giorgio Agamabem, 1995) (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-
GRANZOTTO, 2012a).

Na construção histórica deste grande outro social é possível perceber claramente


que há um regime conservador da essência do patriarcado que se apresenta como
dominador, coexistindo com este viés dominador organismos com desejos diversos
que se propagam. Neste sentido, há uma luta de minorias tentando se defender e
enfrentar este regime, e nas lutas dos militantes (muitas vezes denominados de
alienados pelos dominadores ou pelos próprios dominados). O sofrimento que
envolve as pessoas vítimas de violência racial e de gênero vai além do que o efeito,
um simples conflito, é muito mais do que o efeito dos conflitos políticos intrínsecos
às relações que envolvem pessoas diferentes (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-
GRANZOTTO, 2012b).

Se presumirmos que no sentido político das relações no campo, toda relação está
pautada pelo desejo, sempre existirá o ímpeto da dominação sobre algo ou alguém.
Assim, nos conflitos de gênero não se trata de impor uma normatividade, ou definir
uma norma padrão, não se trata apenas de dominar o diferente, mas quaisquer
desejos diversos daqueles ditados pelos dominantes (no caso
heterossexuais “cis” normativos, ditos normais, brancos, etc) que surgirem devem
ser aniquilados, pois não satisfazem a condição de se submeterem ao objeto
dominado (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b).

Corroborando com a ideia de vivência da sexualidade retomemos aos escritos de


Merleau-Ponty (2006) em sua obra “Fenomenologia da Percepção” onde o autor
afirma que “o corpo é um ser sexuado” (grifo nosso). Sobre a vivência e a
expressão da sexualidade humana, segundo ele, infinitas são as possibilidades e
estas igualmente apontam para uma subjetividade encarnada. Há uma descoberta.
O sujeito, ao passo que baliza sua expressão sexual a partir de modelos
socialmente instituídos, é possível descobrir por seu próprio corpo um modo
intersubjetivo, intercorpóreo, próprio de viver sua sexualidade: “Há uma
‘compreensão’ (grifo do autor) erótica que não é da ordem do entendimento, já que
o entendimento compreende percebendo uma experiência sob uma ideia, enquanto
o desejo compreende cegamente, ligando um corpo a um corpo” (MERLEAU-PONTY,
2006, p. 217).

Falar em nome da diversidade das possibilidades de viver o desejo na sua


sexualidade ou estar identificado com qualquer outro gênero além da configuração
masculino e feminino é corromper à lógica de produção de saberes e poderes
dominados. A impossibilidade de viver uma identidade antropológica com
biografias, narrativas de direito, acolhimento e principalmente o lugar de cidadão
que lhes é retirado, promove a falência desta dimensão ética de modo que se
caracteriza pelo ataque às representações políticas e aos valores antropológicos
amplamente reivindicados pelas pessoas privadas de assumir sua identidade de
gênero (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b).

Neste viés de dominação, os homens brancos heterossexuais não fazem objeção às


mulheres, aos negros, amarelos, mestiços, homossexuais, transexuais, desde que
estes possam servi-los ou não colocar em questão sua suposta superioridade.
Todavia, os sujeitos diferentes constituem identidades rivais porque facilmente
contestam este contexto de submissão que favorece satisfação às identidades
dominantes. Se começam a reclamar a voz, direitos, e a poder participar dos meios
de produção de riqueza, então eles passam a representar claramente riscos, uma
ameaça à manutenção do estado de direito que favorece lucros e poder às
identidades dominantes. Se começam a reclamar a voz, direitos, poder participar
dos meios de produção de riqueza, então representam claramente riscos, uma
ameaça a manutenção do estado de direito que favorece lucros e poder às
identidades dominantes. Considere aqui um homem branco, cis-heteronormativo
(MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b).

Nesse contexto de aniquilação da função personalidade como a identidade que cada


função de ato pode assumir diante do outro social seja qual for o motivo
antropológico, político ou ético, desnuda a função de ato que acaba por sucumbir
ao sofrimento e tornar-se, então, desamparado, explorado ou perseguido. Mas
engana-se quem compreende que a função de ato perde sua capacidade de
vislumbrar uma possibilidade perante esse campo. Ao contrário do que se imagina,
a função de ato não desiste de criar. O sistema “self” ainda assim é capaz de criar
tal qual a interdição da função de ato que as produções criativas são nomeadas de
neurose, ou no comprometimento da função id quando busca a suplência aos
excitamentos produz ajustamentos psicóticos. O prejuízo da função personalidade
tem como produção criativa um pedido de socorro, o qual são intitulados de
ajustamentos de inclusão (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b).

 
5 – A ÉTICA ANÁRQUICA DA GESTAL-TERAPIA E A SEXUALIDADE:
INTERVENÇÕES POSSÍVEIS NA EXPERIÊNCIA DE CAMPO FRENTE À
EMERGÊNCIA DE VULNERABILIDADES DAS FUNÇÕES DO “SELF” NAS
IDENTIDADES DE GÊNERO

A Gestalt-terapia se constitui enquanto ética de acolhimento sob o primado da


experiência no campo relacional organismo/ambiente, quanto ao subsistente ôntico
e dinâmico que é o sistema “Self” (presente em toda fronteira de contato
organismo ambiente em um campo relacional), permite compreender os modos de
ajustamento da relação que envolve o consulente e o clínico (entende-se por
consulente qualquer público para além da clínica, nos espaços de rua, nos
dispositivos públicos, no sistema prisional, nas organizações, etc.). Ao considerar a
noção de “Self” da Gestalt-terapia, pode-se afirmar na prática gestáltica, uma
clínica ampliada que se apresenta em qualquer ocorrência de um sistema “Self”. A
Teoria do “Self” caracteriza uma fenomenologia muito peculiar, que descreve a
ocorrência das “Gestalten” numa leitura temporal (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-
GRANZOTTO, 2012a).

Corroborando com Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012a), esta


fenomenologia se dá na própria experiência e é antes uma ética do que uma
ciência. Destina-se a clínica (entenda esta noção de clínica ampliada), a um espaço
de prática de desvio que para os Gestalt-terapeutas é uma maneira de favorecer o
surgimento do inesperado mediante o exercício do deslocamento e do desvio ao
desconhecido. Em toda situação de contato, inclusive nas situações de
vulnerabilidade, podemos encontrar sempre mais de uma forma de ver e, por
consequência, de nos posicionar e intervir. A Teoria do “Self” autoriza o
reconhecimento de pelo menos três dimensões ou funções. O ajustamento criativo
seria a tendência de autorregulação do processo de figura/fundo no contato
organismo/ambiente. Uma série de questionamentos se abrem neste momento.
Neste sentido, como se descreve a ética de acolhimento da Gestalt-terapia? Como a
Gestalt-terapia pode ser entendida como uma ética influenciada pelo ideal
anarquista? Como intervir nas vulnerabilidades das funções do “self” no contexto
da violência de gênero, homofobia, lesbofobia, transfobia, entre outras formas?

Primeiramente recorremos a Stoehr (1994), que apontam que o livro “Gestalt


Therapy” não é somente um livro com intuito de fundar uma nova abordagem
psicoterapêutica, de certo modo, a importância da obra está no fato de procurar
pensar novas bases para questões da natureza humana. Esta proposição se funda
na ideia de uma nova leitura política e ética, ou seja, há aí uma ética gestáltica
oriunda dessa nova concepção de “self”, mas também de toda a incursão que Paul
Goodman já tinha no anarquismo.

Partimos deste lugar inicial para que possamos pensar uma ética gestáltica, comum
ao modelo psicoterápico, político ou educacional (BELMINO, 2017). Primordialmente
a gênese do fundamento desta leitura ética é reconhecer a capacidade de cura do
organismo e da sociedade a partir da confiança no processo de autorregulação
organísmica. A saída para a crise entre o campo social e o biológico apontada por
Goodman concerne à integração criativa do processo figura/fundo. Ademais,
éimportante confiar na capacidade autorregulatória do organismo adotando este
discernimento imediato, pois podemos ter uma postura ética que não está
submetida ao modo moralista ou higienista ao qual as praticas psicoterápicas e
psiquiatras sucumbiram no século XIX (BELMINO, 2017).

Embasando-se em PHG (1997, p.45) “todo contato é ajustamento criativo do


organismo e ambiente”, quem, nas experiências do contato, busca a emergência de
uma novidade, se depara com um processo de autorregulação. Contudo, é
fundamental reconhecer que este processo não é infalível, portanto as experiências
se constituindo a partir do ajustamento criativo, ainda são os critérios mais
confiáveis de desenvolvimento. Sem dúvida alguma entender a ética da Gestalt-
terapia é primordialmente acreditar, ter a confiança na autorregulação organísmica.

Poderia suscitar as discussões sobre uma Gestalt-política, uma interlocução


sustentada por Goodman até mesmo em outros campos como a educação e a
política. Numa questão de tempo o mesmo debruça-se mais em retomar as
discussões políticas com um olhar mais acurado pelas suas novas experiências
como psicoterapêutica, propondo um olhar crítico sobre as instituições e a
institucionalização das esferas da vida, pensando sobre a educação de crianças e
jovens nos Estado Unidos. Seus ensaios psicológicos continham propostas sobre a
natureza humana organizados no livro “Nature Heals: The Psychological Essays of
Paul Goodman” (STOEHR, 1991), bem como no livro “Gestalt Therapy” (1997),
com discussões iluminadas com a perspectiva acerca da política anarquista e da
educação libertária (especificamente ideias vinculadas à desescolarização). Para
Goodman, somente se fôssemos capazes de abandonar “o medo social da
criatividade” (grifo do autor)(PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p.199) só
então seríamos capazes de criar e superar os modelos políticos e educacionais
vigentes atravessados pela opressão da centralização do poder, que nos afastam
das nossas reais necessidades organísmicas, inibindo formas de criatividade e
espontaneidade que não interessam nenhum pouco aos ideais do sistema, daqueles
que perpetuam uma estrutura rígida social, segura e previsível (BELMINO, 2014).

Ademais, os modos de criação são implacáveis à necessidade de se constituir


espaços genuínos de produções criativas do organismo. Enquanto não acolhermos
esta necessidade o organismo sempre vai buscar estratégias de sabotar o modelo
vigente, seja através das patologias, da rebeldia ou da apatia. De acordo com
Belmino (2014, p.139), “talvez seja este o grande aprendizado de uma ética
gestáltica tal como pensada por Paul Goodman: as funções organísmicas, mesmo
em suas produções adoecidas, sempre estão buscando encontrar novos caminhos
de sobreviver e criar”. Os dois primeiros questionamentos supramencionados foram
pontualmente esclarecidos neste momento, mas ainda restam dúvidas enquanto
Gestalt-terapeutas como podemos intervir nesta ocorrência de ajustamentos de
inclusão social quando a vulnerabilidade das funções do “self” se dá na função
personalidade, primordialmente no contexto de violência de gênero, homofobia,
lesbofobia, transfobia, entre outras formas?

Na discussão precedente evidenciou-se que a aniquilação da função personalidade


por qualquer que seja o motivo antropológico, político ou ético, desnuda a função
de ato que só encontra afetado pelo sofrimento, mas mesmo assim ela produz uma
criação, um pedido de socorro e estes são denominados de ajustamentos de
inclusão. Vale salientar que o sofrimento não se deve confundir com a dor, sendo
então o correlativo de afeto de aflição como se fosse o saldo de uma perda, conflito
ou exclusão, precisamente, a ausência de uma imagem social pela qual nos torne
incluídos, aceitos, funcionais e respeitados (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-
GRANZOTTO, 2012a).

Ao pensar nas formas de intervir, o desafio que se impõe aos clínicos gestálticos,
segundo os Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012b), é manterem-
se “identificados à posição cínica de salva-guarda daquilo que não tem lugar no
estado de direito”. Assim, de que modo é possível acolher a diferença sem
arregimentá-la em um programa imposto? Como dar voz ao sofrimento sem
comprometê-lo com uma teologia militante? A criação que o corpo de atos continua
a desempenhar mesmo com o comprometimento da função personalidade soa como
pedido de socorro ou de modos inclusivos, que tem absoluta relação com apelos
por gratuidade se configura como pedidos genuínos de inclusão, na forma da qual
efetivamente atribuíram e reconheceram poder do semelhante para os ajudar.

Ao clínico gestáltico, é fundamental estar disponível para escutar, para deixar-se


arrebatar pelo pedido de socorro. Da mesma forma que a função de ato aliena seu
poder de deliberação em favor do meio social que lhe acolhe, dá a esse meio o
status objetivo de alteridade. O pedido de socorro faz do meio um ato auxiliar.
Assim, deixamos de ser, enquanto clínicos, o demandante ou um impedidor de
nossas possibilidades para se tornar semelhante. Como clínico somos convocados a
ocupar este lugar de semelhante, sendo possível ajudar, oferecer apoio, sendo
assim simultaneamente reconhecido na condição de “ato fazedor” (grifo do autor)
(MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).

Sobre a intervenção nos ajustamentos de inclusão Müller-Granzotto & Müller-


Granzotto (2012b), afirmam que se funda na experiência com este tipo de clínica
do sofrimento, um sentimento de ajuda desinteressada e um tipo especial de
identificação personalista que é a solidariedade. A solidariedade ao outro como
semelhante possibilita a ele a emergência de uma gratidão. A vida social, assim
alcança um patamar propriamente humano, eminentemente cínico, se por cínico
entendermos como a capacidade de cada sujeito de doar-se a outrem de modo
independente dos valores ou projetos políticos a que esteja ligado ou submetido.
Deste modo, pensar na discriminação e violência gratuita de gênero é lidar com
essas formas de experiências de exclusão, em que pessoas sofrem por viver no
corpo expressões de sexualidade distintas das determinadas por uma suposta
normatividade. Tais indivíduos pedem inclusão, nos convocam a ser solidários e
emprestar nosso corpo, compartilhar nossa identidade de modo que consigam criar
novas possibilidades de identificação possíveis.

 
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa teve como intento realizar proposições sobre as identidades de


gênero articuladas com a Teoria do “Self”, referencial fenomenológico que conduz a
Gestalt-terapia a uma ética de acolhimento às formas de vulnerabilidade que
podem emergir nas experiências de campo, e, para a construção do arcabouço
teórico deste trabalho, propôs-se uma detalhada descrição das experiências de
gênero, temática ainda pouco explorada pela Gestalt-terapia o que faz deste e
outros estudos posteriores grandes estudos que contribuam com a elucidação de tal
forma de sofrimento, específico destes casos de exclusão nos quais sujeitos são
desumanizados e tidos como identidades distintas das normas, no caso das
identidades “trans”, ainda percebidas como patológicas.

A invisibilidade social das identidades de gênero está escancarada e é mais nítida


do que se imagina. Estas são vítimas de preconceito e discriminação e exprimem
uma vulnerabilidade antropológica. Portanto, a pesquisa possibilitou discutir uma
compreensão da Gestalt-terapia pela ótica da Teoria do “Self” proposta pela
Gestalt-terapia de Paul Goodman, Fritiz Perls e Laura Perls, permitindo abrir outros
questionamentos que podem firmar novas contribuições para o desenvolvimento da
teoria da Gestalt-terapia.

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