Identidades de Gênero Na Perspectiva Da Teoria Do Self
Identidades de Gênero Na Perspectiva Da Teoria Do Self
Identidades de Gênero Na Perspectiva Da Teoria Do Self
RESUMO
Este artigo tem como intuito apresentar uma discussão sobre o conceito de
identidade de gênero a partir de uma leitura gestáltica focada na Teoria
do “Self” desenvolvida por Perls, Hefferline e Goodman (1997) no livro “Gestalt
Therapy: Excitement and Grouth in the Human Personality”. Pensar uma temática
como a sexualidade, especificamente sobre as identidades de gênero é ao mesmo
tempo uma resposta política e teórica à determinadas conjunturas específicas que
são históricas e culturalmente impostas. A sexualidade não é determinada pelo
sexo biológico nem se resume somente a este binarismo imposto socialmente como
normativo. Por sua vez, esta abrange as expressões de gênero, a orientação sexual
e as identidades de gênero. Esta última é o objeto deste estudo. A discriminação,
preconceito, violência gratuita e a imposição de padrões normativos sobre a
sexualidade atinge pessoas que possuem identidades de gênero que não se
resumem a papéis masculino ou feminino. Na sociedade instituições lhes retiram
um lugar de cidadania e impõem discursos totalitaristas de repressão e
abjeção. “Queer” é considerado aquilo que é estranho, desviante, termo utilizado
nos estudos sobre sexualidade. Neste sentido buscamos articular alguns
teóricos “queer” com a noção de formação da função personalidade, articulando o
estilo fenomenológico que origina a Teoria do” Self” numa leitura ética de
acolhimento a diversidade das experiências, tal como discutido por Müller-
Granzotto e Müller-Granzotto (2012). Também discutiremos, a partir das Teorias de
Paul Goodman, noções conceituais sobre ser “queer” numa possível construção
teórica sobre uma política de gênero. À luz das clínicas gestálticas propostas por
Müller-Gransoto e Müller-Granzonto (2012), descreve-se a vivência do sofrimento
ético-político-antropológico, frente à emergência de vulnerabilidades das funções
do “self” nas experiências de campo das identidades de gênero, pensando numa
ética anárquica inerente à Gestalt-terapia como intervenções possíveis como forma
de provocação de nível teórico-prático sobre acolher e promover desvios ao que
concerne ao sofrimento vivenciado pela comunidade LGBTQI.
ABSTRACT
This article has the intention to present a discussion of the concept of gender
identity from a gestalt reading focused on self theory developed by Perls, Hefferline
and Goodman (1951) in the book Gestalt Therapy: Excitement and grouth in the
Human Personality. Think a thematic as sexuality, specifically on gender identity is
both a political and theoretical response to certain specific situations that are
historical and culturally imposed. Sexuality is not determined by biological sex or
comes down only to this binary socially imposed as normative. In turn this extends
to expressions of gender, sexual orientation and gender identities. The latter is the
subject of this study. Discrimination, prejudice, gratuitous violence and the
imposition of regulatory standards on sexuality, affects people who have gender
identities that do not boil down to male or female roles. In society institutions
derive them a place of citizenship and impose totalitarian discourse of repression
and abjection. Queer is considered what is strange, deviant, a term used in studies
on sexuality. In this sense seeking some queer theorists we constitute the notion of
the formation of personality function, articulating phenomenological style that gives
the Self theory an ethical reading host the diversity of experiences. We will discuss
the experience of Goodman conceptual notions about being queer in a possible
theoretical construction of a gender policy. In light of the theory of self describes
the experience of ethical, political and anthropological suffering forward to the
emergence of vulnerabilities self functions in the field experiences of gender
identities, thinking of anarchic ethics inherent in gestalt therapy as possible
interventions as form of theoretical and practical level of provocation on host and
promote deviations with respect to the suffering experienced by LGBTQI
community.
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa visa, portanto, descobrir mais subsídios para a discussão sobre a
diversidade das identidades de gênero numa ótica de compreensão a partir da
teoria do “self” gestáltica e seus desdobramentos clínicos (MÜLLER-GRANZOTO e
MÜLLER-GRANZOTO, 2012). O aporte teórico utilizado tem como os trabalhos de
Guaciara Lopes Louro (2008), Merleau-Ponty (2005) e Ciampa (1984), reunindo-os
assim em publicações sobre identidade e contemporaneidade. Sobre a Teoria
do “Self” e a Gestalt-terapia destaca-se o uso de obras como Gestalt-terapia de
Perls, Hefferline e Goodman (1997), também, nós trouxemos como fundamento as
pesquisas produzidas em trabalhos anteriores (BELMINO, 2014,2015,2017).
Também foi fundamental as propostas gestálticas contemporâneas dos Müller-
Granzotto e Müller-Granzotto (2007, 2012a, 2012b), e outros autores que abordam
o contexto das identidades de gênero.
A pesquisa está dividida nas seguintes partes: “A reconquista do estilo
fenomenológico a partir da Teoria do ‘Self’ gestáltica: A Gestalt-terapia como um
projeto ético de acolhimento à diversidade”, em que propomos realizar um resgate
do estilo fenomenológico que impulsionou o desenvolvimento da Teoria do “Self” do
modo que permite ampliar o acolhimento à diversidade das experiências.
1 - A RECONQUISTA DO ESTILO FENOMENOLÓGICO A PARTIR DA TEORIA
DO “SELF” GESTÁLTICA: A GESTALT-TERAPIA COMO UM PROJETO ÉTICO DE
ACOLHIMENTO À DIVERSIDADE
2 - PAUL GOODMAN UM SER "QUEER" NO ÂMAGO DA CONSTRUÇÃO DE UMA
TEORIA POLÍTICA PÓS-IDENTITÁRIA
Outro autor que também utilizava o termo “queer” era Paul Goodman, que, por
vivenciar e sofrer o preconceito no corpo, Goodman (2012) dizia que: “em
maneiras essenciais, minhas necessidades homossexuais me tornaram um
‘nigger’”, gíria pejorativa utilizada na época para designar os negros. Goodman
aproximava a vivência queer (que na época era usado de forma pejorativa, algo
como viado, ou bixa, em português) da vivência dos negros dos subúrbios devido a
vivência de exclusão social. Preocupados com as questões da sexualidade o
termo “queer” foi apropriado por vários autores antes mesmo da fluência corrente
do termo “gay”, assim como foi citado por Goodman em um de seus textos “Ser
Queer” (GOODMAN, 2012):
Tal como aponta Belmino (2014, p.29), Goodman era muito mais que um escritor.
Seu intento era unir pensamento e ação numa espécie de nova atitude social. Seu
profundo conhecimento da dimensão filosófica e sociológica lhe permitia ironizar e
artisticamente denunciar a incongruência do sistema. Mas isso não significou dizer
que o moralismo americano o deixasse ficar tranquilo. Muitas vezes foi perseguido,
acusado de seduzir e se envolver com seus alunos, tendo sido expulso de várias
instituições e universidades que lecionava e teve principalmente sua vida exposta.
Sua bissexualidade assumida, seus ideais de estimular uma sexualidade livre aos
seus alunos, muitos casamentos e simultaneamente suas experiências
homossexuais publicamente abertas o fizeram alvo de preconceito.
Ao percorrer pelos caminhos que se enveredam na obra de Louro (2004), tal como
esta exalta na sua descrição do que venha a ser este o termo “queer”, em sua
afirmação um ser “queer” tem um jeito de pensar e de ser que desafia as normas
regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade, do “entre
lugares”, do indecidível. “Queer” é um corpo estranho que incomoda, perturba,
provoca e fascina (LOURO, 2004, p.7). Corroborando com esta afirmação sobre
ser “queer”, Paul Goodman (1962/2012) diz: “o que me torna um ‘nigger’ é que
não se pressupõe que meu impulso para abordar alguém seja um direito meu.
Então fico com a sensação de que essa não é minha rua. [...] que lhe concede o
direito de existir, que só fica abaixo de sermos aceitos. Eu raramente desfrutei
desse tratamento” (p.33). Nos termos da afirmação supramencionada Goodman
representou nas suas alfinetadas literárias irônicas sobre o sentimento de não ser
aceito.
Para Goodman, tão absurda quanto à repressão sexual, são as formas de racismo,
preconceito e discriminação. Tais atitudes não fazem o menor sentido para se
assegurar o bem-estar social. Por exemplo, a homofobia ou qualquer discriminação
voltada à identidade de gênero de uma pessoa é completamente um despautério e
improcedente. Goodman que escreveu muito sobre a falta de sentido nas relações
humanas e as incongruências das pessoas em comunidades, partia do pressuposto
da natureza antropológica da neurose, ou do preço que é pago abrindo mão do
excitamento em prol da segurança e do funcionamento harmônico, tal qual muitos
outros excitamentos que se perderam quando aceitamos ser civilizados. Porém
quanto maior a repressão sexual, mais ela se torna uma saída criativa para lidar
com o excitamento (BELMINO, 2014).
O que constitui a nossa identidade? Dizer quem alguém é significa dizer de quais
grupos faz parte: familiar, religioso, étnico, profissional, etário, sexual etc. Ao
mesmo tempo, dizer quem é alguém é, é o mesmo que dizer que ele é ele, e não
outro. Assim, a noção de identidade pode ser definida como sendo “aquilo que nos
apresenta a nós mesmos, nos identifica para os outros ou que os outros veem,
reconhecem (identificam) em nós” (ALMEIDA, 2005, p.17). Segundo os Müller-
Granzotto & Müller-Granzotto (2012a), é no âmbito das representações sociais
instituídas pela função personalidade que o sistema “self” adquire o status de
humanidade, pois nela se desenvolvem a vida moral, os valores éticos, as
instituições e os diversos modos de conhecimento sobre nós mesmos. Todavia,
essa consistência é constantemente perfurada pelo vazio do hábito, do passado
retido no fundo impessoal (função Id) e ultrapassada pelas criações em direção a
um horizonte de futuro (função de Ato).
Fazer-se mulher dependia das marcas, dos gestos, dos comportamentos, das
preferências e dos desgostos que lhes eram ensinados e reiterados,
cotidianamente, conforme normas e valores de uma dada cultura. Desde o final dos
anos 1940 (quando Beauvoir publicou o seu livro O Segundo sexo) muita coisa
mudou e o fazer-se mulher transformou-se, pluralizou-se, de um modo tal que
talvez nem mesmo a filósofa ousasse imaginar.
Especificamente, esta ideia supramencionada nos faz remeter a diferença, tal como
as formas de vivenciar a sexualidade. Por exemplo, em relação à
homossexualidade, uma das estratégias tem sido a utilização preferencial do termo
homossexualidade a homossexualismo, que durante muitos anos designava
categorias psiquiátricas patológicas, associadas às práticas de perversão. Em seus
estudos sobre o tema, o psicanalista Jurandir Freire Costa (1992) “apud” Dinis
(2008) vai ainda mais longe, ao propor a substituição dos termos homossexualismo
e homossexualidade pelo termo homoerotismo. Longe de ser mero jogo de
palavras, para o autor, as categorias que criam as identidades sexuais não são
universais, mas efeitos histórico-culturais também produzidos pela linguagem. Uma
dessas estratégias é designar o sujeito por determinadas partes do seu ser,
transformando o que é adjetivo em substantivo, e, com isso, transformar as
relações particulares da vida privada, o estar homossexual, em uma categoria
identitária que passa a abranger mais um campo de possibilidades experiencial do
sujeito. O nome é uma representação da imagem no laço social, identifica-se quem
se é, pelo nome que lhe é dado.
A forma mais simples, habitual e inicial é fornecer um nome, um substantivo que
na sua acepção é a palavra que nomeia o ser, que designa o ser. Nos chamamos
da forma como os outros no chamam (CIAMPA, 1984). Entretanto, nas identidades
trans, a travesti e a transexual escolhe o seu nome social sendo este o nome que
ela escolhe como identidade e nele se reconhece. De acordo com Ciampa (1984,
p.63), “diferença e igualdade. É uma primeira noção de identidade”. Podemos
imaginar as mais diversas combinações para configurar uma identidade como uma
totalidade. Uma totalidade contraditória, múltipla e mutável, porém una. Por mais
contraditório, por mais mutável que seja, sei que sou eu que sou assim, ou seja,
sou uma unidade de contraditórios, sou uno na multiplicidade e na mudança
(CIAMPA, 1984).
Por sua vez, em resposta a esta invisibilidade das identidades de gênero por uma
parte da estrutura da comunidade, surgem os esforços advindos dos coletivos
sociais e grupos de militantes que tomam partido em defesa dos direitos ofertados
a parte da população de um todo maior com direitos iguais.
4 - A INVISIBILIDADE E A IMPOSSIBILIDADE DE SER DAS IDENTIDADES
DE GÊNERO: AS VULNERABILIDADES DAS FUNÇÕES DO SELF
Existem muitas razões pelas quais numa relação de campo a função personalidade
pode malograr, podendo-se inclusive classificar pelo menos três grandes motivos
em que ajustamentos de inclusão podem emergir na relação: por motivos
antropológicos quando nos deparamos com um contexto que envolve uma
catástrofe, um acidente de ordem natural que ceifa as representações dos sujeitos
e apaga suas biografias, como no grave acidente da cidade de Mariana que foi
devastada pela onda de lama de minérios de uma reserva industrial (Samarco).
Nesta devastação das representações antropológicas que se fundem numa
identidade social de um sujeito ou comunidade devemos incluir a situações de luto,
de adoecimento somático além das emergências e desastres (MÜLLER-GRANZOTTO
& MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a). A vulnerabilidade da função personalidade
também pode ocorrer por motivos políticos, onde uma ostensiva dominação que
visa alienação de um desejo dominante se impõe sobre os submissos submetendo-
os a um regime de despersonalização a favor de um ideal de projeto político
dominador que envolve a produtividade de riqueza com base na lógica de consumo,
como nos casos envolvendo a escravidão, o trabalho assalariado privado de direitos
civis e submetido à ilegalidade de condições e privação da liberdade. E, por motivos
éticos, que são os mais severos. Quando há a destruição das representações
sociais, referindo-se a exclusão social dos corpos de atos que se encontram
completamente desprovidos da possibilidade de conquistar representações sociais
ou mesmo desfrutá-las. Neste sentido a exclusão é em sua forma mais cruel, de
experiências desumanas vividas em condições que podem ser nomeadas de estados
de exceção. Podemos citar os casos de hospitais de custódia e tratamento
psiquiátricos, campos de refugiados, sistemas presidiários, bem como a
discriminação racial e de gênero, especificamente, as mulheres vítimas das
decisões arbitrárias e violência gratuita, ou violência gratuita a todos aqueles da
comunidade LGBTQI (“Gays”, Lésbicas, Bissexuais, Travesti,
Transgênero, “Queer” e Intersexuais). Pensemos no regime patriarcado e uma
cultura machista que se sobrepõe tal como um dominador já instaurado e
coexistindo historicamente com um conjunto de minorias lutando para enfraquecer
este regime e nas lutas de militâncias buscando visibilidade para os direitos
garantidos a qualquer cidadão, a qualquer ser humano. E aqui também devemos
nos lembrar das vítimas da violência racial e homofóbica, dos foragidos nos campos
de refugiados ou nos cinturões de pobreza. Todos eles são excluídos das relações
políticas, despido de suas prerrogativas, reduzidos à condição de vida nua (segundo
a terminologia de Giorgio Agamabem, 1995) (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-
GRANZOTTO, 2012a).
Se presumirmos que no sentido político das relações no campo, toda relação está
pautada pelo desejo, sempre existirá o ímpeto da dominação sobre algo ou alguém.
Assim, nos conflitos de gênero não se trata de impor uma normatividade, ou definir
uma norma padrão, não se trata apenas de dominar o diferente, mas quaisquer
desejos diversos daqueles ditados pelos dominantes (no caso
heterossexuais “cis” normativos, ditos normais, brancos, etc) que surgirem devem
ser aniquilados, pois não satisfazem a condição de se submeterem ao objeto
dominado (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b).
5 – A ÉTICA ANÁRQUICA DA GESTAL-TERAPIA E A SEXUALIDADE:
INTERVENÇÕES POSSÍVEIS NA EXPERIÊNCIA DE CAMPO FRENTE À
EMERGÊNCIA DE VULNERABILIDADES DAS FUNÇÕES DO “SELF” NAS
IDENTIDADES DE GÊNERO
Partimos deste lugar inicial para que possamos pensar uma ética gestáltica, comum
ao modelo psicoterápico, político ou educacional (BELMINO, 2017). Primordialmente
a gênese do fundamento desta leitura ética é reconhecer a capacidade de cura do
organismo e da sociedade a partir da confiança no processo de autorregulação
organísmica. A saída para a crise entre o campo social e o biológico apontada por
Goodman concerne à integração criativa do processo figura/fundo. Ademais,
éimportante confiar na capacidade autorregulatória do organismo adotando este
discernimento imediato, pois podemos ter uma postura ética que não está
submetida ao modo moralista ou higienista ao qual as praticas psicoterápicas e
psiquiatras sucumbiram no século XIX (BELMINO, 2017).
Ao pensar nas formas de intervir, o desafio que se impõe aos clínicos gestálticos,
segundo os Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012b), é manterem-
se “identificados à posição cínica de salva-guarda daquilo que não tem lugar no
estado de direito”. Assim, de que modo é possível acolher a diferença sem
arregimentá-la em um programa imposto? Como dar voz ao sofrimento sem
comprometê-lo com uma teologia militante? A criação que o corpo de atos continua
a desempenhar mesmo com o comprometimento da função personalidade soa como
pedido de socorro ou de modos inclusivos, que tem absoluta relação com apelos
por gratuidade se configura como pedidos genuínos de inclusão, na forma da qual
efetivamente atribuíram e reconheceram poder do semelhante para os ajudar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS