03 - Mulheres, Políticas Públicas e Combate À Violência de Gênero
03 - Mulheres, Políticas Públicas e Combate À Violência de Gênero
03 - Mulheres, Políticas Públicas e Combate À Violência de Gênero
RESUMO ABSTRACT
Este artigo enfoca políticas de ações This article focuses on affirmative action
afirmativas para as mulheres brasileiras, policies for Brazilian women, in their historical
no seu contexto histórico. O objetivo é context. The goal is to demonstrate how these
demonstrar como tais políticas se constroem, policies are built, engendered or articulated
se engendram ou se articulam por meio de through the rights guaranteed throughout
direitos assegurados ao longo da história. history. It is a theoretical text that points
Trata-se de um texto teórico que aponta out the trajectories of affirmative actions,
trajetórias das ações afirmativas, relações relations of inequality, violence and how the
de desigualdade, de violências e como o feminist movement became involved in these
movimento feminista envolveu-se nessas issues. The foundations used in this paper
questões. Os fundamentos utilizados na are theoretical frameworks that study gender
escrita têm como base os referenciais que relations; social movements, public policies
abrangem estudos das relações de gênero; and social inclusion. Two parts are presented
movimentos sociais, políticas públicas e here: feminism, gender and violence; and
inclusão social. O texto divide-se em duas affirmative action to combat violence against
partes: feminismo, gênero e violências; e women. It should be emphasized that this
ações afirmativas de combate à violência debate makes it possible to understand that
contra as mulheres. Ressalta-se que esse violence against women is a violation of
debate permite compreender essas violências human rights and therefore affects all social
como violações dos direitos humanos e, por classes.
isso, atingem todas as classes sociais.
Keywords: policies, women, violence,
Palavras-chave: políticas, mulheres, gender.
violências, gênero.
T
razer ao debate o tema de violência contra as mulheres parece algo que já
está ultrapassado, pois vários textos já trataram desse assunto ao longo dos
anos, entretanto a violência contra as mulheres está cada dia mais latente e
merece destaque nos trabalhos acadêmicos. Sendo assim, o contexto trazido neste
artigo busca enfocar algumas políticas públicas de ação afirmativa para as mulheres
brasileiras. O objetivo é demonstrar como tais políticas se constroem, engendram ou
se articulam por meio de direitos assegurados ao longo da história e alguns reflexos
nos processos de proteção às mulheres. A complexidade de trabalhar com um tema
deste porte tem como vantagem a ampliação dos debates e o reconhecimento de
temáticas invisibilizadas.
Este artigo é proveniente de leituras realizadas no decorrer dos estudos de
gênero e sexualidade no curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola
promovida pela Universidade Federal de Santa Catarina (GDE/UFSC), e pelos estudos
iniciados no Doutorado em Educação da mesma universidade.
Toma-se por base um conjunto de análises teóricas e dimensões qualitativas
que apontam trajetórias das políticas para as mulheres, compreendendo assim, as
relações de desigualdade vivenciadas pelas mesmas. Retratar esse tema é representar
historicamente como as violências foram culturalmente naturalizadas dentro de um
processo histórico de base patriarcal.
Nesse sentido, é importante situar o que se entende por políticas públicas e
políticas públicas sociais. Para Höfling (2001) as políticas públicas constituem o “Estado
em ação”, por meio de programas pensados para setores específicos da sociedade:
A pesquisadora situa que as políticas sociais “se referem a ações que determinam
o padrão de proteção social implementado pelo Estado, voltadas, em princípio, para
a redistribuição dos benefícios sociais visando à diminuição das desigualdades
estruturais produzidas pelo desenvolvimento socioeconômico”. (HÖFLING, 2001, p. 31).
Para Azevedo (2004, p. 05), a concepção de políticas públicas “[...] são definidas,
implementadas, reformuladas ou desativadas com base na memória da sociedade ou
do Estado”. Nessa dimensão, constitui-se como fundamental a força dos movimentos
e da pressão social na memória da sociedade ou do Estado, com estreita relação às
representações sociais que cada sociedade desenvolve sobre si própria na busca
da garantia de seus direitos.
Assim, ressalta-se que as políticas públicas sociais são medidas destinadas a
atender demandas específicas da população, muitas vezes particularmente grupos
discriminados e vitimados por algum mecanismo de exclusão. Tais políticas pretendem
Entende-se assim que gênero diz respeito à construção social do que é feminino e
do que é masculino (SAFFIOTI, 1999, p. 16) imbricado em relações de poder estruturadas
por um padrão do que é certo e do que é errado. Isso significa que “a identidade social
da mulher, assim como a do homem, é construída através da atribuição de distintos
papéis, que a sociedade espera ver cumpridos pelas diferentes categorias de sexo”.
(SAFFIOTI, 1987, p. 10). Saffioti (1987, p. 08) ressalta que ao compreender os papéis
sociais historicamente atribuídos aos sexos é possível refletir sobre o escrito por
Simone de Beauvoir: “ninguém nasce mulher, com estereótipos femininos, torna-se
mulher, pelo aprendizado cultural”.
Em consonância com Del Priore (2013, p. 6), “não importa a forma como as culturas
se organizaram”, essa diferença entre homens e mulheres sempre foi hierarquizada. Há
registro na história do Brasil, no período colonial, do patriarcalismo que apresentava
uma pretensa superioridade masculina em relação às mulheres, que se respaldou em
castigos físicos, agressões verbais e assassinatos, autorizados inclusive pela legislação.
Essa “desigualdade longe de ser natural, é posta pela tradição cultural, por estruturas
de poder e agentes envolvidos na trama de relações sociais”. (SAFFIOTI, 1999, p. 83).
Del Priore esclarece que:
Vale ressaltar que a noção de violência contra as mulheres nem sempre foi
compreendida da mesma forma, ou seja, como algo negativo, como um problema
social. A violência era naturalmente aceita já que a mulher era considerada um ser
inferior, que tinha obrigações, devia obediência e servidão ao homem e ao casamento.
Inclusive essa visão era respaldada pelos médicos da época: “por ter ossos, cartilagens,
ligamentos e fibra mais frágeis, a mãe apenas carregava o ovo com que o sexo fêmeo
concorre para a propagação, assim como sucede com os ovíparos”. (DEL PRIORI,
2013. p. 114).
A violência era compreendida como uma espécie de “educação”, para disciplinar
as mulheres que desrespeitassem os seus homens, sejam eles maridos, pais ou
outros. Esse “trabalho de reprodução esteve garantido, até época recente, por três
instâncias principais, a família, a igreja e a escola, que, objetivamente orquestradas,
tinham em comum o fato de agirem sobre as estruturas inconscientes” (BOURDIEU,
2007, p. 103) e, principalmente, “à família cabe o papel principal na reprodução da
dominação e da visão masculina”. (BOURDIEU, 2007, p. 103). Todo esse processo de
classificação repercute como um habitus. Compreende-se o conceito de habitus como
a relação com as formas de socialização humana, guiadas por meio de dispositivos
culturais, repassados de geração para geração, que simulam certa neutralidade e
naturalidade das ações cotidianas (BOURDIEU, 1983). “Ora, longe de afirmar que as
estruturas de dominação são a-históricas, eu tentarei, pelo contrário, provar que elas
são produto de um trabalho incessante (e como tal, histórico) de reprodução [...]”.
(BOURDIEU, 2014, p. 56).
Com o passar dos anos, as desigualdades de gênero começam a ser alteradas e são
dispostas relações mais igualitárias. A caminhada dos movimentos feministas obteve
transformações sociais, sobretudo no campo dos direitos das mulheres, repercutindo
mudanças em todas as dimensões sociais e no entendimento dos papéis a serem
desempenhados por homens e mulheres.
Entretanto, apesar das conquistas feministas, ainda perduram assimetrias de
gênero, os conflitos originados nas questões relativas às construções de gênero e de
identidade, assim como uma visão heteronormativa, incapaz de transcender a esses
dualismos. Reforça-se assim, a necessidade de compreensão das políticas de ações
afirmativas voltadas para as mulheres.
y Lei n.º 9.100, de 1995, que determinou uma reserva mínima de 20% das vagas
dos partidos políticos ou coligações para serem preenchidas por mulheres
candidatas.
y Lei n.º 9.029, de 1995, proíbe qualquer prática discriminatória ou limitante
com relação ao emprego.
y Lei n.º 8.213, de 1991, estabelece o pagamento, pela empresa, do salário
maternidade.
Fonte: Central de atendimento à mulher – Brasília-DF, 2012 (Brasil, 2013) – Elaboração própria.
Fonte: Central de atendimento à mulher – Brasília-DF, 2012 (Brasil, 2013) – Elaboração própria.
A Lei Maria da Penha atua para a redução das desigualdades de gênero, isso
porque, as questões das violências estão imbricadas nas “relações de gênero se
instituem de modo hierárquico e pressupõe em última análise, relações de dominação
e submissão” (POGGIO, 2012, p. 90), “a força da ordem masculina se evidencia no fato
de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não
tem necessidade de se anunciar em discursos que visem legitimá-la”. (BOURDIEU,
2007, p. 22).
Durante um longo período no Brasil a legítima defesa da honra era um argumento
utilizado por juristas para absolver os acusados de matar mulheres. Desse modo,
a criação de ações afirmativas específicas para as mulheres, incluindo as leis de
proteção e atendimento, as delegacias especiais para atender as vítimas, agregam
um fortalecimento nas relações de gênero.
Muitos obstáculos foram rompidos, principalmente após a criação da Lei Maria da
Penha, por conseguinte, lutar contra as desigualdades, obter mudanças nos hábitos
e comportamentos misóginos ainda está na pauta dos movimentos feministas.
Considerações Finais
Muito mais que apenas debater uma questão de gênero, o artigo apresenta
elementos para compreensão do feminismo, das violências institucionalizadas contra as
mulheres e sobre a necessidade das ações afirmativas adotadas ao longo dos tempos.
Dentro de vários aspectos problematizados, buscou-se enfatizar como o movimento
feminista contribuiu para pensar a relação das mulheres com a desigualdade, as
relações de poder e a determinação biológica culturalmente naturalizada. O importante
aqui foi, sobretudo, identificar os mecanismos que enunciam e representam como
“naturais” as violências cometidas contra as mulheres. (CHARTIER, 1995).
O movimento feminista efetuou mudanças na sociedade ocidental, iniciando
pelo sufrágio feminino, o acesso à educação, salários mais equitativos com os dos
homens, o direito de iniciar o processo de divórcio, o direito da mulher de tomar
decisões individuais relativas à gravidez (acesso aos contraceptivos) e até mesmo o
direito de propriedade privada.
Entretanto, as representações culturais disseminadas ao logo da história
enraizaram e naturalizaram a violência contra mulher. Interiorizada em uma cultura
predominantemente machista, essa violência ainda possui índices muito elevados.
As ações afirmativas para combater a violência contra as mulheres originam-se do
reconhecimento das violações vivenciadas pelo gênero feminino que historicamente
foi posto em situação de desvantagem e de discriminação.
Assim, mais do que uma questão de gênero, é preciso demonstrar como os
discursos misóginos, machistas e sexistas estão articulados a uma ideologia cultural
que reforça a superioridade do macho sobre a fêmea, sustentando desde a infância
um alinhamento dos corpos a estereótipos daquilo que se configura como feminino
e do que é ser masculino.
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Maria Hermínia Lage Fernandes LAFFIN é Doutora em Educação pela Universidade Federal
de Santa Catarina e Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da mesma
Universidade. Coordena o Grupo de Pesquisa em Educação de Jovens e Adultos (EPEJA).