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03 - Mulheres, Políticas Públicas e Combate À Violência de Gênero

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RELAÇÕES ENTRE CRIME E GÊNERO: UM BALANÇO

DOSSIÊ RELATIONS BETWEEN CRIME AND GENDER: A REVIEW


RELACIONES ENTRE CRIMEN Y GÉNERO: UN BALANCE

MULHERES, POLÍTICAS Samira de M. Maia


VIGANO*,**
PÚBLICAS E COMBATE À  samirammvigano@gmail.com
VIOLÊNCIA DE GÊNERO Maria Hermínia L. F.
Women, Public Policies and Fight Against Gender Violence LAFFIN**
 herminialaffin@gmail.com

*Instituto Federal de Educação,


Ciência e Tecnologia de
Santa Catarina
Florianópolis, SC, Brasil
**Universidade Federal de
Santa Catarina,
Florianópolis, SC, Brasil

RESUMO ABSTRACT
Este artigo enfoca políticas de ações This article focuses on affirmative action
afirmativas para as mulheres brasileiras, policies for Brazilian women, in their historical
no seu contexto histórico. O objetivo é context. The goal is to demonstrate how these
demonstrar como tais políticas se constroem, policies are built, engendered or articulated
se engendram ou se articulam por meio de through the rights guaranteed throughout
direitos assegurados ao longo da história. history. It is a theoretical text that points
Trata-se de um texto teórico que aponta out the trajectories of affirmative actions,
trajetórias das ações afirmativas, relações relations of inequality, violence and how the
de desigualdade, de violências e como o feminist movement became involved in these
movimento feminista envolveu-se nessas issues. The foundations used in this paper
questões. Os fundamentos utilizados na are theoretical frameworks that study gender
escrita têm como base os referenciais que relations; social movements, public policies
abrangem estudos das relações de gênero; and social inclusion. Two parts are presented
movimentos sociais, políticas públicas e here: feminism, gender and violence; and
inclusão social. O texto divide-se em duas affirmative action to combat violence against
partes: feminismo, gênero e violências; e women. It should be emphasized that this
ações afirmativas de combate à violência debate makes it possible to understand that
contra as mulheres. Ressalta-se que esse violence against women is a violation of
debate permite compreender essas violências human rights and therefore affects all social
como violações dos direitos humanos e, por classes.
isso, atingem todas as classes sociais.
Keywords: policies, women, violence,
Palavras-chave: políticas, mulheres, gender.
violências, gênero.

Dossiê Relações entre Crime e Gênero: um balanço


Organizadores: Marcos Bretas & Maíra Ines Vendrame

História (São Paulo) v.38, 2019, e2019054, ISSN 1980-4369


1 DE 18
DOI: https://dx.doi.org/10.1590/1980-4369e2019054
MULHERES, POLÍTICAS PÚBLICAS E
COMBATE A VIOLÊNCIA DE GÊNERO Samira de Moraes Maia VIGANO
Maria Hermínia Lage Fernandes LAFFIN

T
razer ao debate o tema de violência contra as mulheres parece algo que já
está ultrapassado, pois vários textos já trataram desse assunto ao longo dos
anos, entretanto a violência contra as mulheres está cada dia mais latente e
merece destaque nos trabalhos acadêmicos. Sendo assim, o contexto trazido neste
artigo busca enfocar algumas políticas públicas de ação afirmativa para as mulheres
brasileiras. O objetivo é demonstrar como tais políticas se constroem, engendram ou
se articulam por meio de direitos assegurados ao longo da história e alguns reflexos
nos processos de proteção às mulheres. A complexidade de trabalhar com um tema
deste porte tem como vantagem a ampliação dos debates e o reconhecimento de
temáticas invisibilizadas.
Este artigo é proveniente de leituras realizadas no decorrer dos estudos de
gênero e sexualidade no curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola
promovida pela Universidade Federal de Santa Catarina (GDE/UFSC), e pelos estudos
iniciados no Doutorado em Educação da mesma universidade.
Toma-se por base um conjunto de análises teóricas e dimensões qualitativas
que apontam trajetórias das políticas para as mulheres, compreendendo assim, as
relações de desigualdade vivenciadas pelas mesmas. Retratar esse tema é representar
historicamente como as violências foram culturalmente naturalizadas dentro de um
processo histórico de base patriarcal.
Nesse sentido, é importante situar o que se entende por políticas públicas e
políticas públicas sociais. Para Höfling (2001) as políticas públicas constituem o “Estado
em ação”, por meio de programas pensados para setores específicos da sociedade:

As políticas públicas são aqui compreendidas como as de


responsabilidade do Estado – quanto à implementação e
manutenção a partir de um processo de tomada de decisões que
envolve órgãos públicos e diferentes organismos e agentes da
sociedade relacionados à política implementada. Neste sentido,
políticas públicas não podem ser reduzidas a políticas estatais.
(HÖFLING, 2001, p. 31).

A pesquisadora situa que as políticas sociais “se referem a ações que determinam
o padrão de proteção social implementado pelo Estado, voltadas, em princípio, para
a redistribuição dos benefícios sociais visando à diminuição das desigualdades
estruturais produzidas pelo desenvolvimento socioeconômico”. (HÖFLING, 2001, p. 31).
Para Azevedo (2004, p. 05), a concepção de políticas públicas “[...] são definidas,
implementadas, reformuladas ou desativadas com base na memória da sociedade ou
do Estado”. Nessa dimensão, constitui-se como fundamental a força dos movimentos
e da pressão social na memória da sociedade ou do Estado, com estreita relação às
representações sociais que cada sociedade desenvolve sobre si própria na busca
da garantia de seus direitos.
Assim, ressalta-se que as políticas públicas sociais são medidas destinadas a
atender demandas específicas da população, muitas vezes particularmente grupos
discriminados e vitimados por algum mecanismo de exclusão. Tais políticas pretendem

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atuar de forma reparatória nas desigualdades e desvantagens acumuladas durante


o percurso histórico de alguns grupos, buscando assegurar ou ampliar o acesso à
escolarização, bens materiais e culturais, saúde, trabalho e segurança.
No Brasil, há uma compreensão, quase sempre, equivocada das políticas públicas
de ações afirmativas, que acaba por vincular essas ações unicamente à adoção de cotas
raciais ou de escola pública para ingresso no ensino superior, adotadas em grande
parte das universidades públicas. Entretanto, há ações afirmativas em vários níveis;
um deles se relaciona diretamente aos aspectos das violências contra as mulheres.
As ações afirmativas para as mulheres são provenientes do reconhecimento de
um sofrimento discriminatório e violento sofrido ao longo dos tempos por esse grupo
social, resultando em um tipo especial de violência estruturado na hierarquia de
gênero, cunhado nos moldes do patriarcado. Tal contexto fez com que as mulheres
fossem reduzidas a uma fragilidade culturalmente apropriada que a fez dependente
dos homens e, assim, destinadas a serem violentadas fisicamente e psicologicamente.
As questões de gênero estão vinculadas às expressões do masculino e do
feminino, atribuídas historicamente, por meio de imposições sociais e culturais. Essas
imposições de caráter biológico, em nossa cultura, estão estritamente ligadas aos
papéis que cada um/a tem que assumir socialmente. Acabam sendo injunções sociais
e culturais, convenções de naturalização de papéis que designaram poder ao homem
e promoveram, como resultado, uma sociedade machista e sexista. Desse modo, a
discussão sobre gênero e violência é fundamental para evidenciar os determinismos
impostos na sociedade (POGGIO, 2012).

O conceito de gênero enfatiza, assim, a dimensão cultural


que apresenta um papel estruturante no processo de tornar-
-se homem ou mulher. Observa-se, portanto, que ao se falar
em gênero, não se fala exclusivamente de macho ou fêmea,
mas de masculino e feminino, em diferentes masculinidades
e feminilidades. Gênero, assim, remete a construções sociais,
históricas, culturais e políticas que dizem respeito a disputas
materiais, bem como simbólicas que abrangem processos de
configuração de identidades, definições de papéis e funções
sociais, des/construções de representações e imagens, distintas
distribuições de recursos e de poder entre os que são social-
mente definidos como homens e mulheres e o que é - e o que
não é - considerado de homem ou de mulher, nas diferentes
sociedades e ao longo do tempo. (SANTANA, 2015, p.124).

Para contextualizar essas políticas, dialogando com aspectos sociais e culturais


naturalizados em nossa sociedade heterocentrada, adotam-se os seguintes referenciais:
Heleith Saffioti (1987; 1999), Guacira Lopes Louro (1995), Mary Del Priore (2013) e
Miriam Grossi (1994). Para além dos referenciais mencionados, busca-se dialogar
com os dados do Relatório Anual Socioeconômico das Mulheres, organizado pela
Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM/PR), que
reúne uma variedade de dados a fim de traçar um diagnóstico sobre as mulheres e
suas condições de vida em todas as regiões do Brasil.

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COMBATE A VIOLÊNCIA DE GÊNERO Samira de Moraes Maia VIGANO
Maria Hermínia Lage Fernandes LAFFIN

Engloba-se na discussão as particularidades referentes às questões de gênero,


sexualidades e cultura. Vale ressaltar que, as estruturas baseadas no patriarcado
são contaminadas de relações hierárquicas que dão poder aos homens e submetem
as mulheres a situações de subalternidades que se fundamentam em uma suposta
inferioridade biológica. Nesse viés, compreender o ser humano em sua constituição
cultural e que os preconceitos, discriminações e violências são socialmente aprendidos,
revela-se como primeiro passo na desconstrução das normatizações impostas pelos
padrões de gênero e de sexualidade.
Afirma-se a necessidade desse debate no atual cenário brasileiro de supostas
retiradas de direitos sociais, já que há, uma onda de retrocessos que incidem
diretamente nas conquistas das mulheres. Além disso, há um aumento da violência
contra a mulher, que caminha com um processo de culpabilização da vítima.

Feminismo, gênero e violências


No dia que for possível à mulher amar em sua força e não em
sua fraqueza, não para fugir de si mesma, mas para se encontrar,
não para se renunciar, mas para se afirmar, nesse dia o amor
tornar-se-á para ela, como para o homem, fonte de vida e não
perigo mortal. (BEAUVOIR, 1980).

A epígrafe acima retrata exatamente o processo de força exercido sobre as


mulheres que, ao mesmo tempo, contribuiu com o pensar e lutar dos movimentos
sociais feministas, na organização de leis e garantia de direitos às mulheres. Esses
movimentos legitimaram-se no decorrer da história e fazem parte de um árduo processo
de modificações no campo legal e jurídico.
Ao abordar a temática de políticas públicas de ações afirmativas para as mulheres
faz-se necessário contextualizar os movimentos sociais feministas e as questões de
gênero. Isso porque, as ações afirmativas para mulheres decorrem de um longo período
em que o ser fêmea era sinônimo de fragilidade, devoção ao homem, competência
para afazeres domésticos e dom para a maternidade. Estereótipo, esse, que legitimou
as violências contra mulheres e as bases cunhadas na opressão, subalternidade e
desrespeito ao chamado sexo frágil. Esta desigualdade não é natural e sim construída
e absorvida por uma tradição cultural, ratificada por estruturas de poder que tendem a
hierarquizar as relações. Há uma supremacia masculina que se incumbiu de socializar
a mulher para a docilidade.

[...] as relações de poder suscitam necessariamente, apelam


a cada instante, abrem a possibilidade a uma resistência, e é
porque há possibilidade de existência e resistência real que
o poder daquele que domina tenta se manter com tanto mais
força, tanto mais astúcia quanto maior for a resistência. De
modo que é mais a luta perpétua e multiforme [...]. (FOUCAULT,
2003, p. 232).

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Contudo, as lutas dos movimentos sociais feministas questionaram esse poder e


essa cultura. Tendo em vista que a cultura não é estanque, se modifica através dos
tempos, há atualmente uma série de debates acerca dessas violências. Ou seja, muitos
costumes antes aceitos, hoje se modificaram, assim a inferiorização e a violência contra
as mulheres não são mais culturalmente aceitas. Todavia é preciso compreender
que as diferenças entre homens e mulheres ainda pertencem ao reino da natureza
biológica. “A prova de que os gêneros masculino e feminino são construções sociais
está na própria escola, que já chegou a separar meninos e meninas em salas distintas,
contribuindo para fabricar sujeitos diferentes”. (MISKOLCI, 2005, p. 14).
As perspectivas em torno do conceito de gênero surgem meados dos anos
1970, debate iniciado por feministas americanas e inglesas, que buscavam explicar a
desigualdade existente entre homens e mulheres. A partir da problemática levantada
no movimento feminista, as ciências sociais passaram a questionar essa naturalidade
supostamente existente entre os sexos (LOURO, 1995, p. 103). De acordo com Guacira
Lopes Louro, essa compreensão sobre gênero, leva a pensar como os sujeitos situam-
se dentro da cultura.

Uma compreensão mais ampla de gênero exige que pensemos


não somente que os sujeitos se fazem homem e mulher num
processo continuado, dinâmico [...]; como também nos leva a
pensar que gênero é mais do que uma identidade aprendida,
é uma categoria imersa nas instituições sociais (o que implica
admitir que a justiça, a escola, a igreja etc. são “genereficadas”,
ou seja, expressam as relações sociais de gênero). (LOURO,
1995, p.103).

Ao pensar sobre essa compreensão de gênero numa articulação com as relações


sociais construídas historicamente, é possível formular a ideia de que os estereótipos e
papéis de gênero são produtos de uma situação histórico-cultural e política estruturada
em moldes patriarcais, hegemônicos, cristãos e brancos, constatando assim, que não
existe naturalmente o gênero masculino ou feminino, mas uma construção cultural
de corpos, gêneros e sexualidades. Esses papéis, em geral, privilegiam os homens,
como expõe Bourdieu no trecho a seguir.

A dominação masculina encontra assim reunidas todas as


condições de seu pleno exercício. A primazia universalmente
concedida aos homens se afirma na objetividade de estruturas
sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas
em uma divisão sexual do trabalho e produção e reprodução
biológica e social, que confere ao homem a melhor parte, bem
como nos esquemas imanentes a todos os habitus. (BOURDIEU,
2014, p. 54).

Entende-se assim que gênero diz respeito à construção social do que é feminino e
do que é masculino (SAFFIOTI, 1999, p. 16) imbricado em relações de poder estruturadas
por um padrão do que é certo e do que é errado. Isso significa que “a identidade social
da mulher, assim como a do homem, é construída através da atribuição de distintos

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COMBATE A VIOLÊNCIA DE GÊNERO Samira de Moraes Maia VIGANO
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papéis, que a sociedade espera ver cumpridos pelas diferentes categorias de sexo”.
(SAFFIOTI, 1987, p. 10). Saffioti (1987, p. 08) ressalta que ao compreender os papéis
sociais historicamente atribuídos aos sexos é possível refletir sobre o escrito por
Simone de Beauvoir: “ninguém nasce mulher, com estereótipos femininos, torna-se
mulher, pelo aprendizado cultural”.
Em consonância com Del Priore (2013, p. 6), “não importa a forma como as culturas
se organizaram”, essa diferença entre homens e mulheres sempre foi hierarquizada. Há
registro na história do Brasil, no período colonial, do patriarcalismo que apresentava
uma pretensa superioridade masculina em relação às mulheres, que se respaldou em
castigos físicos, agressões verbais e assassinatos, autorizados inclusive pela legislação.
Essa “desigualdade longe de ser natural, é posta pela tradição cultural, por estruturas
de poder e agentes envolvidos na trama de relações sociais”. (SAFFIOTI, 1999, p. 83).
Del Priore esclarece que:

A soma dessa tradição portuguesa com a colonização agrária e


escravista resultou no chamado patriarcalismo brasileiro. Era ele
que garantia a união entre parentes, a obediência dos escravos
e a influência política de um grupo familiar sobre os demais.
Tratava-se de uma grande família reunida em torno de um chefe,
pai e senhor, forte e destemido, que impunha sua lei e ordem
nos domínios que lhe pertenciam. Sob essa lei, a mulher tinha
de se curvar. (DEL PRIORE, 2013, p. 9-10).

Vale ressaltar que a noção de violência contra as mulheres nem sempre foi
compreendida da mesma forma, ou seja, como algo negativo, como um problema
social. A violência era naturalmente aceita já que a mulher era considerada um ser
inferior, que tinha obrigações, devia obediência e servidão ao homem e ao casamento.
Inclusive essa visão era respaldada pelos médicos da época: “por ter ossos, cartilagens,
ligamentos e fibra mais frágeis, a mãe apenas carregava o ovo com que o sexo fêmeo
concorre para a propagação, assim como sucede com os ovíparos”. (DEL PRIORI,
2013. p. 114).
A violência era compreendida como uma espécie de “educação”, para disciplinar
as mulheres que desrespeitassem os seus homens, sejam eles maridos, pais ou
outros. Esse “trabalho de reprodução esteve garantido, até época recente, por três
instâncias principais, a família, a igreja e a escola, que, objetivamente orquestradas,
tinham em comum o fato de agirem sobre as estruturas inconscientes” (BOURDIEU,
2007, p. 103) e, principalmente, “à família cabe o papel principal na reprodução da
dominação e da visão masculina”. (BOURDIEU, 2007, p. 103). Todo esse processo de
classificação repercute como um habitus. Compreende-se o conceito de habitus como
a relação com as formas de socialização humana, guiadas por meio de dispositivos
culturais, repassados de geração para geração, que simulam certa neutralidade e
naturalidade das ações cotidianas (BOURDIEU, 1983). “Ora, longe de afirmar que as
estruturas de dominação são a-históricas, eu tentarei, pelo contrário, provar que elas
são produto de um trabalho incessante (e como tal, histórico) de reprodução [...]”.
(BOURDIEU, 2014, p. 56).

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DOSSIÊ RELAÇÕES ENTRE CRIME E GÊNERO: UM BALANÇO

A respeito das instituições e dos estereótipos de feminino convém salientar que:

Os pressupostos acerca da inferioridade feminina, presentes no


discurso da Igreja Católica, paradoxalmente, são reafirmados
pelo iluminismo, legitimando-se a exclusão das mulheres da
cidadania política e civil com a Revolução Francesa, apesar do
papel relevante que as mulheres desempenharam no movimento.
Tais teorias ganham força durante o século XIX, adquirindo o
respaldo da ciência, o ídolo do momento. A medicina social
assegura constituírem-se como características femininas, por
razões biológicas, a fragilidade, o recato, o predomínio das
faculdades afetivas sobre as intelectuais, a subordinação da
sexualidade à vocação maternal. (SOIHET, 2002, p. 274).

Em consonância aos estudos da teórica Miriam Grossi (1994, p. 474), a violência


como se compreende hoje foi resultado de uma construção história de lutas do
movimento feminista que não aceitava mais a justificativa da legítima defesa da honra
em favor dos homens que matavam as mulheres. Uma das primeiras manifestações do
movimento feminista contra a violência veio com o slogan “Quem ama não mata”, em
1979. Na ocasião, o Brasil estava estarrecido com o julgamento de Doca Street, que
matou sua companheira Ângela Diniz. Ângela Diniz foi uma socialite brasileira morta
a tiros em Búzios em 1976, pelo marido Doca Street que alegou “legítima defesa da
honra”, e que, em um primeiro momento, o júri o absolveu. Após pressão da opinião
pública e dos movimentos sociais feministas, um novo julgamento o condenou a 15
anos de prisão. Percebe-se, nesse caso, como a violência contra as mulheres estava
naturalizada e legalizada.
A sexualidade da mulher sempre foi vigiada e reprimida, não só pela família, mas
também a igreja foi uma forte influência nos padrões de comportamento das mulheres
(DEL PRIORE, 2013, p. 37). Cabia às mulheres brancas serem trancadas em casa, já
as negras “serviam para a fornicação”. (DEL PRIORE, 2013, p. 37).
Até mesmo o matrimônio era escolha do pai para a filha, principalmente se havia
bens da família a preservar. Todavia, independentemente de ser uma mulher pobre ou
rica, ela tinha um papel estabelecido: cuidar da casa, filhos/as e obedecer ao marido
ou ao pai. Para as desobedientes restava o castigo e os maus-tratos, já às que traiam,
a morte era o destino. E assim ocorriam “as divisões constitutivas de ordem social e,
mais precisamente, as relações sociais de dominação e de exploração são instituídas
entre os gêneros [...]”. (BOURDIEU, 2007. p. 49).
Mediante às violências cada vez mais em alta, e os crimes contra a vida das mulheres
sendo largamente divulgados na mídia, os movimentos sociais a partir da militância
do feminismo pressionaram instâncias do Estado a pensarem políticas públicas de
atendimento e acolhimento das mulheres, resultando em ações afirmativas em diversos
espaços sociais – escola, universidade, trabalho, moradia e bens culturais. Todas as
justificativas para o tratamento desigual e do uso de violência contra as mulheres
estão hoje em constante desconstrução, constituindo-se base para os movimentos
feministas que incorporam em suas pautas a violência doméstica e o direito das
mulheres em viver, trabalhar e “circular” socialmente.

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MULHERES, POLÍTICAS PÚBLICAS E
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Com o passar dos anos, as desigualdades de gênero começam a ser alteradas e são
dispostas relações mais igualitárias. A caminhada dos movimentos feministas obteve
transformações sociais, sobretudo no campo dos direitos das mulheres, repercutindo
mudanças em todas as dimensões sociais e no entendimento dos papéis a serem
desempenhados por homens e mulheres.
Entretanto, apesar das conquistas feministas, ainda perduram assimetrias de
gênero, os conflitos originados nas questões relativas às construções de gênero e de
identidade, assim como uma visão heteronormativa, incapaz de transcender a esses
dualismos. Reforça-se assim, a necessidade de compreensão das políticas de ações
afirmativas voltadas para as mulheres.

Ações afirmativas de combate à violência contra as mulheres


Falar sobre políticas de ações afirmativas é sempre falar de algo polêmico, um
campo de direitos individuais, cuja compreensão por parte de alguns, conduz a um
entendimento errôneo, voltado a privilégios ofertados para determinados grupos.
As políticas de ações afirmativas são provenientes de reivindicações feitas por
movimentos sociais que pressionaram o estado a posicionar-se diante das mazelas
sociais. Elas são mecanismos que pretendem por meio da inclusão social, o atendimento
prioritário a determinadas pessoas e conferir igualdade de direitos a grupos que tiveram
historicamente seus direitos negados, ou seja, nada mais são que políticas públicas
sociais que buscam concretizar a igualdade substancial ou material. (GOMES, 2001).
As ações afirmativas constituem em um tipo de um remédio de razoável eficácia
para esses males, eliminando ou reduzindo as desigualdades sociais que operam em
detrimento das minorias (GOMES, 2001).

Consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à


concretização do princípio constitucional da igualdade material
e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero,
de idade, de origem nacional, de compleição física e situação
socioeconômica (adição nossa). Impostas ou sugeridas pelo
Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades
puramente privadas, elas visam a combater não somente as
manifestações flagrantes de discriminação, como também
a discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na
sociedade. De cunho pedagógico e não raramente impregnadas
de um caráter de exemplaridade, têm como meta, também, o
engendramento de transformações culturais e sociais relevantes,
inculcando nos atores sociais a utilidade e a necessidade de
observância dos princípios do pluralismo e da diversidade nas
mais diversas esferas do convívio humano. (GOMES, 2001, p. 6-7).

As mulheres, como grupo social, foram historicamente destituídas de direitos e


excluídas por aspectos vinculados ao gênero. Denominadas frequentemente como
“sexo frágil”, proibidas de gerenciar suas vidas e seus corpos, as mulheres uniram-se por
meio de movimentos sociais, a fim de fazer uma interlocução com o estado, buscando

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garantir os seus direitos, demonstrando que as discriminações e desigualdades nas


relações de gênero constituem-se dentre várias nuances. (RODRIGUES, 2005).
Vale destacar que, muito “embora se encontre diversos significados em diferentes
culturas, as relações de sexo e gênero são, impreterivelmente, correlacionadas aos
componentes políticos e econômicos de cada sociedade”. (POGGIO, 2012, p. 91).
Assim, a ideia de inferioridade e fragilidade vinculada ao universo feminino funciona
como um “selo ou como um carimbo” que validou o preconceito e a violência. O que
fez com que a sociedade delimitasse, com bastante precisão, os campos em que a
mulher pudesse operar. A socialização dos filhos/as, por exemplo, constituiu em uma
tarefa tradicionalmente atribuída as mulheres. (SAFFIOTI, 1987).
Tais relações de subalternidade, discriminação, opressão e violências,
fundamentaram a criação de políticas de ações afirmativas para as mulheres.
Compreende-se que “discriminar nada mais é do que uma tentativa de se reduzirem
as perspectivas de uns em benefício de outros” (GOMES, 2001, p. 11), ou seja, “quanto
mais intensa a discriminação e mais poderosos os mecanismos inerciais que impedem
o seu combate, mais ampla se mostra a clivagem entre discriminador e discriminado”.
(GOMES, 2001, p. 11).
No que tange ao campo penal, gradativamente, leis discriminatórias foram alteradas
ou excluídas do ordenamento jurídico, como por exemplo, o crime de adultério, inscrito
em todos os códigos penais brasileiros e somente afastado, definitivamente, muito
recentemente, pela Lei 11.106, de 2005.
No que diz respeito à Lei do Divórcio, (n°. 6.515, de 1977), obteve-se mais um degrau
para a igualdade entre homens e mulheres. Essa Lei previu o dever de manutenção
dos filhos/as por ambos os cônjuges, na proporção de seus recursos, e abriu nova
possibilidade de separação, o que refletiu positivamente para as mulheres em situação
de violência. (PIOVESAN, 2009).
Como marco histórico para a construção dos direitos das mulheres, ressalta-se
a Constituição Federal de 1988 que demarcou em seu texto vários dispositivos a
respeito do princípio da igualdade entre homens e mulheres em todos os campos
da vida social (art. 5º, I), na vida conjugal (art. 226, inciso 5º) e, também, a inclusão do
art. 226, inciso 8º, em que o Estado se compromete com as questões de violências
contra as mulheres. Segundo Alvarez (1988, p.54), “[...] no que tange os direitos das
mulheres, a Constituição Brasileira de 1988, pode ser considerada uma das mais
progressistas hoje, no mundo”.
A esse mesmo período merece total destaque os movimentos de mulheres e
feministas, movimentos populares e o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
(CNDM) que se organizaram em uma intensa mobilização, com o intuito de defender
as mulheres das mais variadas classes, idades e raças, fazendo com que elas fossem
ouvidas no Plenário Nacional.

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COMBATE A VIOLÊNCIA DE GÊNERO Samira de Moraes Maia VIGANO
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Com o processo de democratização no país, os movimentos


feministas e de mulheres conquistaram uma interlocução o
Governo dando início outra fase, a de reconhecimento do Estado
de que as discriminações e desigualdades nas relações de
gênero constituem umas questões para ser enfrentada por meio
da legislação e de políticas públicas. O marco fundamental nesse
processo foi à criação do Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher, em 1985. (RODRIGUES, 2005, p. 30).

Um importante movimento que marcou o movimento feminista ficou conhecido


como o Lobby do Batom, ele deu ênfase para que nos anos de 1990 fosse incluída a
categoria analítica de gênero e crescesse o debate sobre a cidadania das mulheres
em relação ao acesso à direitos e a justiça.
No decorrer dos debates no processo da constituinte, as mulheres se fizeram ouvir
e solicitaram os “mesmos direitos e deveres para homens e mulheres na esfera do
matrimônio, a inclusão do planejamento familiar, o aperfeiçoamento do conceito de
família, a proteção ao trabalho exercido pela mulher etc.”. (SENADO FEDERAL, 2004,
p.49). “As mulheres brasileiras conseguiram aprovar mais de 80% de suas demandas,
que oscilavam entre o princípio geral da igualdade de gênero e demandas específicas
tais como a licença maternidade de quatro meses”. (SIMÕES; MATOS, 2010, p.18).
Várias ações começaram a eclodir em todo o mundo sendo fundamental naquele
momento, a presença da Organização das Nações Unidas – ONU como um mecanismo
importante para estabelecer garantias vitais para as mulheres, contribuindo para a
escrita de materiais, pactos e declarações, priorizando as mulheres.
Apresentam-se como importantes documentos: a Declaração Universal de Direitos
Humanos (1948), o Pacto internacional de Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto
internacional dos Direitos econômicos, sociais e culturais (1966); ambos abordam
a igualdades de direitos entre os sexos, mas não são documentos diretamente
dirigidos para mulheres, mesmo que as incorpore nos seus artigos; a Convenção
sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres de
1979; a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra
a mulher assinada em 1994 e o Compromisso de Dakar (2000) realizado junto ao
Fórum Mundial de Educação referente à universalização da educação e a igualdade
entre os gêneros, buscando eliminar as “disparidades existentes entre os gêneros
na educação primária e secundária e, até 2015, atingir a igualdade entre os gêneros
em educação”. (UNESCO, 2001, p. 20).
Quanto a um documento diretamente direcionado para mulheres, pode-se citar a
Convenção para a Eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher
(1979 - ONU) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994 - Organização dos Estados
Americanos - OEA) (PIOVESAN, 2009).
Dentre os aparatos de luta dos movimentos feministas é importante atentar para
algumas datas históricas (Quadro 1) para os direitos das mulheres.

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DOSSIÊ RELAÇÕES ENTRE CRIME E GÊNERO: UM BALANÇO

Quadro I: diretos das mulheres ao longo da história


Direitos da Mulher
1915 – Foi instituído um novo regulamento para a Caixa Econômica Federal que, dentre
outras alterações no seu funcionamento, permitia que a mulher casada possuísse
depósitos bancários em seu nome quando não houvesse oposição do marido.
1916 – Até 1916 o marido tinha o direito de aplicar castigos na sua mulher.
1932 – As mulheres receberam o direito ao voto.
1945 – A igualdade de direitos entre homens e mulheres é reconhecida em documento
internacional, através da Carta das Nações Unidas.
1962 – É criado o Estatuto da Mulher casada, que garantiu entre outras coisas que
a mulher não precisava mais de autorização do marido para trabalhar, receber
herança e em caso de separação ela poderia requerer a guarda dos filhos.
1980 – Recomendada a criação de centros de autodefesa, para coibir a violência
doméstica contra a mulher. Surge o lema: Quem ama não mata.
1985 – Foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM).
1988 – Foi consagrada a igualdade jurídica entre homens e mulheres.
2002 – O termo “patrio poder” foi substituído pelo “poder familiar”.
2006 – Foi promulgada a Lei Maria da Penha.
2015 – Promulgada a Lei do Feminicídio.

Fonte: Elaboração própria a partir de vários materiais.

A partir de 1990, várias outras formas de violência contra as mulheres começam


a ser problematizadas, aceitas e visibilizadas, tais como: a destruição de objetos
pessoais, a humilhação e tensão conjugal, a violência física e simbólica durante
a gravidez, práticas discriminatórias no trabalho, preconceitos e violências contra
grupos específicos de mulheres, como negras e indígenas. (GROSSI, 1994, p. 475).
Saffioti (1999) afirma que a violência contra as mulheres é uma expressão do
patriarcado e incorpora a violência familiar, intrafamiliar (vai além dos limites do
domicílio) e a violência doméstica (atinge pessoas que moram no mesmo espaço).
Sobre o conceito de violência de gênero, esse é mais amplo, pois abrange dentre
as vítimas, mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos. (SAFFIOTI, 1999).
A violência contra as mulheres em razão do gênero deve ser relacionada com os
demais marcadores de desigualdade social, compreendendo, assim, as intersecções
como fatores que agregam as violências. É essencial atentar as interseccionalidades
em relação às violências, pois as mulheres negras são duplamente violentadas, em
virtude da cor e do sexo. Perceber as singularidades de cada violência é perceber que
os marcadores sociais são mais desiguais em relação à raça, etnia, classe, orientação
sexual, idade e identidade de gênero.
Sobre a violência simbólica, pode-se compreender que ela se revela como um
espaço ao qual “se manifestam relações de poder, o que implica afirmar que ela

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se estrutura a partir da distribuição desigual de um quantum social que determina


a posição que um agente específico ocupa em seu seio”. (BOURDIEU, 1983, p. 21).
Miriam Abramovay et al. (2002, p. 335) retrata que é importante perceber as
diversas manifestações da violência simbólica embasadas no abuso do poder e
fundamentadas no que ou em quem se vê como autoridade. Já para Roger Chartier
(1995) falar de violência simbólica é “compreender como a relação de dominação,
em seus aspectos históricos, culturais e linguísticos, é sempre afirmada como uma
diferença de natureza, radical, irredutível, universal”. (CHARTIER, 1995, p. 42).
Cabe aqui esclarecer que as ações afirmativas para as mulheres não são apenas
para a eliminação das violências, há outras leis que fazem parte da luta por políticas
públicas de direito, tais como:

y Lei n.º 9.100, de 1995, que determinou uma reserva mínima de 20% das vagas
dos partidos políticos ou coligações para serem preenchidas por mulheres
candidatas.
y Lei n.º 9.029, de 1995, proíbe qualquer prática discriminatória ou limitante
com relação ao emprego.
y Lei n.º 8.213, de 1991, estabelece o pagamento, pela empresa, do salário
maternidade.

Mesmo considerando a importância dessas leis, não há como fazer um comparativo


delas em relação às leis de proteção à vida das mulheres tais como: as delegacias
especiais, a Lei Maria da Penha (nº 11.340, de 2006) e os canais de atendimentos.
Nesse sentido, apresentam-se na Tabela 1 alguns dados estatísticos em relação a
essas violências, já que o Brasil está na sétima posição mundial, chegando ao número
de onze mortes de mulheres por dia (BRASIL, 2013, p. 103).

Tabela 1: Tipos de Violências Sofridas pelas Mulheres no Brasil


Tipo de Violência Total Percentual
Total 88.668 100
Violência física 50.236 56,6
Violência psicológica 24.478 27,6
Violência moral 10.372 11,7
Violência sexual 1.686 1,9
Violência patrimonial 1.426 1,6
Cárcere privado 430 0,4
Tráfico internacional de pessoas 21 0,1
Tráfico interno de pessoas 19 0,1

Fonte: Central de atendimento à mulher – Brasília-DF, 2012 (Brasil, 2013) – Elaboração própria.

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Destaca-se o caso das violências psicológicas e morais que se configuram como


violência simbólica. Os dois tipos de violências somam 39,3%, um índice bem elevado
e que merece atenção. Em geral, essas violências não são entendidas como tais, pois
se tornam naturalizadas nas práticas cotidianas. Pesquisas mostram que a violência
psicológica e moral (simbólicas) são praticadas por pessoas próximas as mulheres,
como maridos, namorados, companheiros, chefes ou parentes, e se apresentam, de
certo modo, como “brincadeiras” que não devem ser levadas a sério, nem sequer
denunciadas, conforme salienta Saffioti (2015), há uma naturalização da violência
enquanto um destino traçado para as mulheres.

As violências física, sexual, emocional e moral não ocorrem


isoladamente. Qualquer que seja a forma assumida pela
agressão, a violência emocional está sempre presente.
Certamente, se pode afirmar o mesmo da moral. O que se mostra
de difícil utilização é o conceito de violência como uma ruptura
de diferentes tipos de integridade: física, sexual, emocional,
moral, Sobretudo em se tratando de violência de gênero, e mais
especificamente intrafamiliar e doméstica, são muito tênues os
limites entre quebra de integridade e obrigação de suportar o
destino de gênero traçado para mulheres: sujeição aos homens,
sejam pais ou maridos. (SAFFIOTI, 2015, p. 79-80).

Percebe-se que as violências não ocorrem de forma isolada, mesmo porque há


um certo “ritual” nas formas de fazer acontecer cada ato. Eles podem iniciar com
cerceamentos de vontades e desejos, como comprar uma roupa, cortar o cabelo,
conversar com as amigas, chegando a atos físicos. Algumas vezes os atos físicos
não ocorrem, mas a carga emocional decorrente das violências psicológicas pode
ser maior que qualquer agressão. “Desta maneira, cada mulher colocará o limite em
um ponto distinto do continuum entre a agressão e o direito dos homens sobre as
mulheres. Mais do que isto, a mera existência desta tenuidade representa violência”.
(SAFFIOTI, 2015, p. 80).

Tabela 2: Tipos de Violências Psicológicas


Violência Psicológica Total Percentual
Total 24.478 100
Ameaça 11.630 47,5
Dano emocional/diminuição da autoestima 10.353 42,3
Outros 1.264 5,2
Perseguições 1.147 4,7
Assédio moral 84 0,3

Fonte: Central de atendimento à mulher – Brasília-DF, 2012 (Brasil, 2013) – Elaboração própria.

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Na tabela 2 estão discriminados os tipos de violências psicológicas que as mulheres


relataram por meio das ligações para a Central de atendimento à mulher. Essa Central
foi criada em 2005, e se tornou um importante instrumento de denúncia, por ter como
objetivo ajudar as mulheres em situação de violência, informando-as sobre os seus
direitos e sobre os serviços disponíveis para atendê-las. De acordo com

A análise dos registros de violência psicológica segundo o tipo


evidencia uma clara predominância de ameaças (47,5%) e de
danos emocionais, além da diminuição da autoestima (42,3%).
As perseguições somam 5% do total dos registros de violência
psicológica, o patamar mais estruturado e organizado da prática
desse tipo de violência. O assédio moral, como modalidade de
violência psicológica, foi relativamente pouco mencionado nos
registros da Central. Uma possível explicação para essa baixa
notificação é o fato de que muitos casos de assédio moral são
classificados como pedido de informações pelas atendentes
da Central, o que dificulta dimensionar mais precisamente o
fenômeno. (BRASIL, 2013, p. 106).

É necessário analisar as informações contidas nas tabelas, como indicadores que


apontam a situação das mulheres na nossa sociedade, buscando assim, ampliar as
políticas públicas para o atendimento das mulheres em situação de violência, já que
“a supremacia masculina nas esferas públicas e privadas se traduz em consenso e
muitas vezes se estabelece por meio da violência”. (POGGIO, 2012, p. 90).

Quando analisamos os dados a partir de uma visão de gênero,


verificamos que a distribuição dos homicídios não é equitativa,
nem igualitária. Acompanha bem de perto nossas mazelas
sociais. Por esse motivo, é um indicador privilegiado dos
conflitos e mecanismos de segregação social que os discursos
(público e privado) tendem a ocultar. Os estudos existentes
demonstram coincidentemente que a vitimização homicida
no país é notada e fundamentalmente masculina. A feminina
representa aproximadamente 8% do total de homicídios, mas
com características bem diferenciadas da mortalidade masculina.
(BRASIL, 2013, p. 105).

Ressalta-se aqui, novamente, a interseccionalidade existente nas violências, em


relação a questão da cor juntamente com o gênero. As mulheres negras somam 60%
dos assassinatos entre 2001 e 2011, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada - IPEA (BRASIL, 2013).
Sobre a Lei Maria da Penha (Lei 11340/06 | Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006),
ela deve ser subsidiada por delegacias de atendimento e proteção às mulheres vítimas
de violência, entretanto não são todas as regiões do Brasil que as possuem, todavia,
na falta delas, o atendimento deve ser priorizado nas demais delegacias, porém, os
profissionais não são treinados para esse tipo de atendimento.

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A Lei Maria da Penha atua para a redução das desigualdades de gênero, isso
porque, as questões das violências estão imbricadas nas “relações de gênero se
instituem de modo hierárquico e pressupõe em última análise, relações de dominação
e submissão” (POGGIO, 2012, p. 90), “a força da ordem masculina se evidencia no fato
de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não
tem necessidade de se anunciar em discursos que visem legitimá-la”. (BOURDIEU,
2007, p. 22).
Durante um longo período no Brasil a legítima defesa da honra era um argumento
utilizado por juristas para absolver os acusados de matar mulheres. Desse modo,
a criação de ações afirmativas específicas para as mulheres, incluindo as leis de
proteção e atendimento, as delegacias especiais para atender as vítimas, agregam
um fortalecimento nas relações de gênero.
Muitos obstáculos foram rompidos, principalmente após a criação da Lei Maria da
Penha, por conseguinte, lutar contra as desigualdades, obter mudanças nos hábitos
e comportamentos misóginos ainda está na pauta dos movimentos feministas.

Considerações Finais
Muito mais que apenas debater uma questão de gênero, o artigo apresenta
elementos para compreensão do feminismo, das violências institucionalizadas contra as
mulheres e sobre a necessidade das ações afirmativas adotadas ao longo dos tempos.
Dentro de vários aspectos problematizados, buscou-se enfatizar como o movimento
feminista contribuiu para pensar a relação das mulheres com a desigualdade, as
relações de poder e a determinação biológica culturalmente naturalizada. O importante
aqui foi, sobretudo, identificar os mecanismos que enunciam e representam como
“naturais” as violências cometidas contra as mulheres. (CHARTIER, 1995).
O movimento feminista efetuou mudanças na sociedade ocidental, iniciando
pelo sufrágio feminino, o acesso à educação, salários mais equitativos com os dos
homens, o direito de iniciar o processo de divórcio, o direito da mulher de tomar
decisões individuais relativas à gravidez (acesso aos contraceptivos) e até mesmo o
direito de propriedade privada.
Entretanto, as representações culturais disseminadas ao logo da história
enraizaram e naturalizaram a violência contra mulher. Interiorizada em uma cultura
predominantemente machista, essa violência ainda possui índices muito elevados.
As ações afirmativas para combater a violência contra as mulheres originam-se do
reconhecimento das violações vivenciadas pelo gênero feminino que historicamente
foi posto em situação de desvantagem e de discriminação.
Assim, mais do que uma questão de gênero, é preciso demonstrar como os
discursos misóginos, machistas e sexistas estão articulados a uma ideologia cultural
que reforça a superioridade do macho sobre a fêmea, sustentando desde a infância
um alinhamento dos corpos a estereótipos daquilo que se configura como feminino
e do que é ser masculino.

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A cultura, por intermédio das mídias, da família ou da literatura, impregna de todos


os lados uma representação de felicidade relacionada ao casamento, à maternidade
ou ao lar. A mulher acaba sendo sempre a que cuida e a que está relacionada com
a docilidade, como se isso foi intrínseco de cada uma.
Vale lembrar que o mundo machista também faz mal aos homens, que são
cobrados para serem viris, durões, não chorar e não terem fraquezas. Isso fez com
que se tornassem cada vez mais agressivos e não admitissem que a mulher lhe
fosse superior, a cultura patriarcal acarretou em violências para ambos os gêneros,
todavia, para as mulheres, isso resultou em perdas nos processos de escolarização
e empregabilidade.
Por fim, ressalta-se que esse debate permite compreender que as violências
contra as mulheres são violações de direitos humanos e, por isso, atingem todas
as classes sociais. A igualdade de direitos é alvo de lutas realizadas ao longo dos
séculos, sendo ainda hoje uma das principais preocupações de grupos dos movimentos
sociais feministas.

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Samira de Moraes Maia VIGANO é Doutora em Educação e Professora no Instituto Federal de


Educação Ciência e Tecnologia de Santa Catarina e Orientadora Pedagógica na Universidade
Federal de Santa Catarina.

Maria Hermínia Lage Fernandes LAFFIN é Doutora em Educação pela Universidade Federal
de Santa Catarina e Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da mesma
Universidade. Coordena o Grupo de Pesquisa em Educação de Jovens e Adultos (EPEJA).

Recebido em 09 fevereiro 2019


Aprovado em 17 novembro 2019

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