ARTE TÊXTIL - ORIGENS E AFRICANIDADES - Revista O Menelick 2° Ato
ARTE TÊXTIL - ORIGENS E AFRICANIDADES - Revista O Menelick 2° Ato
ARTE TÊXTIL - ORIGENS E AFRICANIDADES - Revista O Menelick 2° Ato
AFRICANIDADES
Redação
Uma das referências sobre o provável surgimento da técnica da tecelagem data do ano 6000 a.C., época que
engloba o período neolítico, caracterizado pelo surgimento da agricultura, da criação de animais e das aldeias.
O homem pré-histórico, observando a natureza, aprendendo e recolhendo dela o material necessário, valeu-se
“de peles de animais e posteriormente de folhas de plantas para proteger-se”, passando “a utilizar-se, de forma
sistemática, de fibras vegetais e tecidos animais”, salienta Maria Rita Webster, pesquisadora e tecelã.
Para chegar até a construção do tecido, passando por todo o processo de fabricação do fio desde plantar, cardar,
fiar, tingir e, por fim, tecer, o homem despendeu muita energia para suprir suas necessidades têxteis básicas. Ao
confeccionar qualquer peça tecida ou trançada, utiliza-se diversas fibras provenientes da natureza. O produto
final exibi características próprias que surpreendem pela qualidade e originalidade tão diferentes da matéria que
o constituiu.
Encontramos, na Bíblia, na literatura e nas artes plásticas, documentos valiosíssimos que exemplificam a
diversidade de técnicas e materiais dentro do universo têxtil.
Pintores e escritores nos legaram, com suas obras, provas irrefutáveis do uso dessas técnicas em diversas
épocas e lugares. Por se tratar de matéria-prima perecível, os testemunhos fixados nas artes plásticas e na
escrita acabam sendo, quase que exclusivamente, a única documentação que sobreviveu às intempéries e nos dá
uma datação precisa do uso da tecelagem em épocas muito remotas.
ÁFRICA
O extenso continente africano possui uma vasta tradição têxtil. A primeira matéria-prima utilizada para
confecção de roupas foi, provavelmente, a pele de animais, extremamente numerosos no continente. Outro
material que precedeu e muitas vezes até hoje chega a substituir as roupas tecidas, principalmente na África
Central, são as cascas de árvores batidas, decoradas com pinturas à base de pigmentos vegetais, que servem
também como cama e cobertura para as tendas.
Os tecidos sempre tiveram um grande valor na cultura africana, sendo muitas vezes utilizados como moeda
corrente até para pagamentos de multas, como em Serra Leoa.
Armazenar grandes quantidades de tecidos foi, por muito tempo, indicação de elevado status e poder. Em
ocasiões especiais como o nascimento ou o casamento, costuma-se presentear com tecidos, que também são o
melhor presente em situações mais tensas, para amenizar as rivalidades.
Na Costa do Marfim ainda existe o hábito, principalmente entre os mais idosos, de preparar o próprio funeral.
Além de providenciar antecipadamente a urna funerária, armazenam-se tecidos de boa qualidade que serão
utilizados no dia do sepultamento. Um missionário católico na África relata que “antes do momento do enterro,
muitas pessoas trazem uma peça de pano, às vezes de qualidade, para oferecer ao defunto, que será embrulhado
nele. Serão estes panos, conforme a crença, que ele apresentará aos seus antepassados que estão em outra vida,
dizendo-lhes: ‘Veja o que meus parentes e amigos me ofereceram; eles foram generosos comigo’. Desta forma,
os antepassados continuarão a abençoar e proteger aquela aldeia e todos os seus habitantes”.
O contato com tribos nômades árabes propiciou a incrementação da técnica da tecelagem. Os árabes iniciaram
sua dominação na África do Norte, no ano de 640, a partir do Egito. Na África Oriental, estabeleceram
pequenos postos de comércio e troca de mercadorias entre o século 7 e o século 11. Esse intercâmbio não só
favoreceu o comércio de marfim, ouro e metais, mas também o de tecidos e, sobretudo, o tráfico de escravos
para a China, Índia e a difusão da fé mulçumana entre os habitantes da corte.
A partir do século 15 iniciou-se a penetração européia na África, primeiramente com a conquista dos
portugueses, que estabeleceram o monopólio do tráfico de escravos, até a chegada dos espanhóis em 1580. Em
seguida vieram os franceses, os holandeses e os ingleses.
Os tecidos africanos, que são geralmente confeccionados com lã de carneiro, pêlo da cabra, o pêlo de camelo,
algodão, ráfia e seda, estão intimamente associados à cultura africana e são tão diversificados quanto os grupos
étnicos existentes no continente. Ao contrário do que acontece em outras culturas, os homens que tecem têm
grande prestígio.
Tanto para vestir como para decorar a casa, ou mesmo para enterrar seus mortos, existe uma ritualidade e um
significado inerente aos têxteis confeccionados para cada ocasião. Nas vestimentas, os padrões, as cores e os
ornamentos estão imediatamente associados às posses, riquezas e status de quem os usa, e os que não possuem
riquezas guardam suas melhores vestes para ocasiões especiais. “Cores particulares, tipos de decoração ou
padrões de vestimenta podem ter significados políticos e rituais”, afirma o professor John Picton em seu livro
African Textiles (Tecidos africanos), de 1989.
Para algumas tribos, por exemplo, o vermelho usado em algumas cerimônias pode estar relacionado ao perigo e
às guerras, enquanto em outras pode estar associado ao sucesso e às grandes realizações. Segundo o
africanólogo Alberto da Costa e Silva, em entrevista à TV Cultura na inauguração da mostra Arte da África, no
Rio de Janeiro, essas diferenças contribuem para concluirmos que existem “várias Áfricas”. Em alguns casos, a
distância entre os diversos grupos étnicos é pequena, mas o significado dado a certos objetos ou mesmo a
relação deles com a cor utilizada, como no exemplo mencionado, é bastante diversificada.
Na questão da classificação dos teares usados na África, por exemplo, nos quais se fabrica uma enorme
variedade de tecidos com diferentes tamanhos e padrões, alguns autores chegaram à divisão consensual em dois
grupos: o tear com liço único (single-heddle loom) e o tear com duplo liço (double-heddle loom).
O liço é um conjunto de cordas ou fios verticais por onde passam os fios do urdume, de modo a que estes sejam
separados em fios pares e ímpares, facilitando o trabalho na hora da passagem da trama. A separação dos fios
do urdume se chama cala.
No tear com liço único, o urdume é preso em duas barras paralelas e os liços são movimentados manualmente.
Após a passagem da trama, os fios são batidos com o auxílio de um pente. Esse tear, o mais difundido na
África, pode ser montado verticalmente, horizontalmente ou formando um ângulo oblíquo com a parede, e é
fixado ao solo, com o que se obtém a tensão do urdume necessária para a passagem da trama. Tanto os homens
quanto as mulheres se utilizam do tear com liço único para confeccionar tecidos para as tendas, roupas e
esteiras, empregando lã de cabra, algodão, ráfia e couro.
Tecelões na Nigéria.
A origem do tear horizontal com liço único entre as tecelãs do Norte da África deve-se ao contato com as tribos
nômades árabes, que possibilitou a utilização da lã na confecção de tecidos para a cobertura das tendas, no
lugar do couro e da esteira. Antes disso, o tear mais utilizado era o tear vertical com liço único. Outras regiões
que também se utilizam do tear de liço único montado horizontalmente são a Nigéria e o Zaire.
Entre as várias etnias africanas há ainda uma outra forma de tecer. O tear empregado é o tear com liço único,
mas, enquanto nas outras possibilidades já citadas tanto a trave de baixo quanto a trave de cima estão presas a
uma estrutura, neste outro o corpo do próprio tecelão faz com que o urdume mantenha-se tenso e, assim,
possibilite a passagem da trama. A trave de cima do tear fica presa a uma estrutura fixa e a trave de baixo é
ancorada ao corpo do tecelão, formando um ângulo de 45º. Para tecer, o tecelão senta-se embaixo desse ângulo
e seu corpo é o responsável por manter os fios do urdume esticados. Esse tipo de tear é encontrado na parte
noroeste do Zaire, usado para tecer roupas de ráfia. Toda a dificuldade que esse método apresenta, e que o faz
ser chamado “método de tortura”, tornou limitada a sua difusão.
No tear com duplo liço, o movimento do urdume se dá com o auxílio dos dedos dos pés ou pedais que acionam
os liços para cima e para baixo, preparando a cala para receber a trama. A trama é passada com uma lançadeira
e batida com o pente fixo do próprio tear. Esse tipo de tear, utilizado exclusivamente por homens e que
empregam fios de algodão, lãs e seda para tecer roupas, é encontrado nas regiões Oeste e Nordeste da África
(Somália, Etiópia, Sudão e sul do Egito) e na parte leste de Madagascar. Atualmente, na parte Oeste, tece-se
também com rayon e lurex. No Nordeste africano, a fibra mais empregada é o algodão.
A peça da imagem a baixo, originária da Guiné Bissau, Oeste da África, mostra um exemplo de tecelagem
confeccionada no tear com duplo liço. A urdidura escura é a base para os desenhos geometrizados e coloridos
da trama. Alguns autores se referem a esse tipo de trabalho como “trama flutuante” (weft-float patterns), pois,
ao sobrepor dois ou mais fios do urdume, a trama fica aparente, formando uma espécie de alça para, em
seguida, prender-se novamente ao urdume.
176 X 20 cm
Os desenhos e padrões africanos não sofreram grande influência européia. As influências estrangeiras se deram
mais por intermédio dos fios importados, corantes e tecidos. Há, porém, algumas exceções, sobretudo no oeste
africano, onde escravos assimilaram de tecelões portugueses os padrões geométricos.
Entre as numerosas técnicas têxteis exploradas pelos africanos, existem duas, além da tecelagem já citada. A
primeira são as aplicações em tecidos e a segunda são os trabalhos realizados com miçangas.
As aplicações são pedaços de tecidos que se adicionam a outro tecido base já pronto. Na África, a origem dessa
técnica está associada aos aborígenes e foi difundida por todo o continente.
Entre os africanos, as aplicações são usadas em roupas de cerimônia, banners e flâmulas, e têm significados
muito precisos. A roupa identifica e distingue o usuário e é um código de leitura para quem olha. Os banners
recordam os feitos militares de oficiais e as flâmulas contam, em cenas narrativas, esses feitos.
Os trabalhos com miçangas aparecem tanto aplicados aos tecidos quanto em adornos. O sul da África tem
grande tradição nesse tipo de trabalho. No século 16, o comércio de miçangas de vidro foi introduzido pelos
portugueses, que trocavam essa mercadoria por escravos, ouro e marfim. As miçangas, que eram fabricadas na
Europa, eram destinadas ao comércio no continente africano. Um dos principais centros produtores era a cidade
de Veneza.
No século 18, devido à expansão do Império Zulu, houve uma maior penetração do comércio de miçangas, na
região ao norte da atual cidade sul-africana de Natal. O rei Shaka Zulu decretava quais os tipos de pedras que
deveriam entrar em seu território e escolhia quem teria a honra de usá-las. Os comerciantes se reportavam
primeiramente a ele para poder comercializar suas mercadorias, principalmente as contas de vidro.
No Império Zulu, além de mercadoria de troca, as miçangas eram um adorno espetacular na vida social e
possuíam um significado cultural e simbólico. Nas variedades de cores das miçangas identificava-se a posição
social e as façanhas extraordinárias individuais. Estilos particulares caracterizavam roupas masculinas em
oposição às vestes femininas e distinguiam jovens de velhos, casados de solteiros, plebeus de nobres e senhores
de servos. Grande quantidade de miçangas eram usadas nas vestimentas de uso diário de feiticeiros e médicos,
diferenciando-os do restante da população.
Estas tradições sofreram contemporaneamente algumas transformações na vida cotidiana dos Zulus,
principalmente com relação ao seu significado. A razão principal disso está diretamente ligada à colonização e
às religiões que passaram a se difundir após a chegada dos colonizadores. Mesmo assim, as miçangas ainda
guardam alguns simbolismos que estão diretamente ligados ao mistério que envolve esse intrincado sistema de
comunicação não-verbal que a linguagem das miçangas transmite a quem as observa.