Dissertacao JULIA GARBOIS
Dissertacao JULIA GARBOIS
Dissertacao JULIA GARBOIS
VITÓRIA
2014
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VITÓRIA
2014
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
CDU: 614
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AGRADECIMENTOS
Agradeço à Mãe natureza por fazer parte desse momento de minha vida, inspirando-
me, acolhendo-me, renovando-me e despertando-me.
Agradeço ao Luiz Henrique, um grande companheiro que escolhi para seguir minha
caminhada, pessoa especial em minha vida. Agradeço pelo colo - de marido, de
mãe, de pai, de amigo, de amante - tão presente nesse percurso, em que minhas
ausências se fizeram em alguns momentos. Agradeço, sobretudo, por confiar em
mim no momento em que eu buscava a minha própria confiança. Obrigada por me
encorajar sempre. Te amo tanto!
A meus tios Maria do Carmo e Eduardo, meus ‘pais cariocas’, por participarem
afetuosamente de minha trajetória desde a graduação, acolhendo-me,
aconselhando-me e apoiando-me sempre. Amo vocês.
Agradeço à minha orientadora, Dr.ª Francis Sodré, que com sabedoria e afeto
acolheu minhas inquietações, respeitou os meus momentos e me ensinou nas
‘entrelinhas’ a arte de ser mestre. Sem dúvida, uma grande parte da Júlia de hoje
leva um precioso pedaço seu!
Agradeço também à tia Zilene e à Bartyra, que foram fundamentais no final desta
caminhada, acolhendo meus medos, fantasmas, angústias, despertares e
descobertas com tanto zelo, amor e carinho.
E à minha vida, que no encontro com tantas outras vidas, a cada dia se enche de
mais VIDA!
6
(Aristóteles)
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RESUMO
ABSTRACT
This study analyzes the relationship between 'health' and 'social' in the Brazilian
Public Health, specifically the notion of 'social determinants of health', focusing on
two important moments: the 70's, when the construction of this notion occurred from
the medical and social Latin American chain, and the resumption of this discussion in
the XXI century, over the seal of 'social determinants of health'. It possessed the
following objectives: characterize the notion of 'social determinants' from positivism in
the social sciences, search the construction of the notion of 'social determinants of
health' in the Brazilian Public Health; describe perspectives analysis on the field of
social determinants of health from the polarity between 'health' and 'social'. To
achieve the objectives, an exploratory study was conducted through literature (books
and virtual databases) and documentary research. Initially we present the theoretical
and philosophical assumptions upon which modern science was settled and that built
the foundation of positivist current. After, we characterized, in general, this line of
thought, to finally interpret the notion of 'social determinants' from Durkheim - one of
the main analyzes within the field of social sciences. Soon after, we bring the
construction of the concept of social determinants of health from the Latin American
criticism of the 70s to the hegemonic discourse of the period on the health-disease
process. The Latin American thought had great production in Brazilian’s theoretical
and policy at the forefront when compared to all the countries of South and Central
America. Among other agendas, the notion of social determinants of health, arising
from social movements, guided the Brazilian health reform, placing itself as the heart
of the debate. This notion sustained the 'political banner' advocated by health
movement in the struggle for better living conditions and health in Brazil. Then, we
present the latest scientific-political configuration of the field of social determinants of
health, emphasizing a predominantly reductionist focus on the social occurs. Soon
after, we bring the categories of the thought of critical’s sociology and contemporary’s
sociology in order to provide elements of analysis to the critique of how hegemonic
discourse has been guided within the field of social determinants of health. Both
perspectives are presented in a non-exclusive, non-hierarchical and non-competitive
way. We end with considerations that, far from being final, point to the need for a new
perspective from which to current studies in the field of social determinants of health.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 11
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 96
6. REFERÊNCIAS 100
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1. INTRODUÇÃO
Foram com essas expectativas que iniciei a minha primeira experiência profissional,
por meio da Estratégia Saúde da Família do município de Duque de Caxias, no
estado do Rio de Janeiro. Uma área de grande pobreza, onde famílias e também
nós, profissionais da saúde, sofríamos com as fragilidades de um sistema municipal
de saúde incapaz de corresponder às reais necessidades e demandas.
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Foi então que ingressei no mestrado em Saúde Coletiva desta instituição e não
imaginava que este ingresso iria trazer profundas mudanças em minha vida.
Mudanças essas que começaram por meio de um verdadeiro encanto com os novos
conhecimentos, com as novas formas de olhar o mundo, com novos desejos,
possibilitados pelas disciplinas cursadas e por um grupo mais que acolhedor: o
Grupo de Estudo em Trabalho e Saúde (GEMTES), coordenado pelas Professoras
Dra. Maristela Dalbello Araujo e Dra. Francis Sodré. Foi nesse grupo que as
sementes plantadas ao longo da minha trajetória encontraram terreno fértil para
serem germinadas, onde as minhas inquietações foram acolhidas e se aproximaram
das inquietações de Francis.
Um projeto de pesquisa que chegou tão ‘ingênuo’, mas que tinha por trás tanta sede
de conhecimento, de novas possibilidades de explorar a temática da determinação
social da saúde. Foi então que, nos encontros, nas orientações, nos diálogos, os
questionamentos foram surgindo, através de um convite da Francis a navegar em
‘mares’ por mim desconhecidos, mas bastante desejados. Uma única certeza: de
que, por mais desconhecido que fosse, ele me traria uma nova forma de ver, de lidar
e de viver a vida.
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1
A maior parte da pesquisa bibliográfica foi realizada através de fontes de papel: os livros. Foi possibilitada pelo
acesso às bibliotecas da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES.
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Os termos mais utilizados nessa busca foram: ciência antiga, ciência moderna, física
moderna, física aristotélica, revolução científica, história da ciência. Esse percurso
foi de grande importância para entendermos o contexto epistemológico que
sustentou o surgimento das ciências sociais como disciplina de um saber específico.
Em seguida, partimos para a literatura das ciências sociais e optamos por realizar
um corte no seu interior, a partir do positivismo, mais especificamente através das
obras de Durkheim (1999, 2007), visto ser a corrente de pensamento que mais
influência trouxe para o desenvolvimento de estudos científicos nessa área de saber.
Dentro da literatura de Durkheim, as obras que mais trouxeram elementos de análise
para entendermos e interpretarmos a noção de determinação social foram: “Da
divisão do trabalho social” e “Regras do método sociológico”. Realizamos um
fichamento bibliográfico da literatura selecionada a fim de separar os elementos de
interesse para a análise.
2
Vale assinalar que, após o processo de qualificação dessa pesquisa, fizemos contato telefônico com um dos
membros da Comissão Nacional sobre os Determinantes Sociais da Saúde - o prof. Dr. Jairnilson da Silva Paim -
no sentido de buscarmos informações sobre as repercussões políticas da inserção desta temática e, dessa forma,
guiarmos a pesquisa para a exploração do campo das políticas públicas. No entanto, viemos a saber que a
comissão não mais existia e que essa temática se inseriu, de uma forma bastante fluida, nas ações ministeriais de
promoção da saúde. Assim, optamos por explorar a temática a partir de uma perspectiva teórica.
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Logo após, realizamos uma pesquisa bibliográfica nas bases de dados da Literatura
Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde –LILACS – e da Scientific
Electronic Library Online – SciELO - no intuito de buscar estudos científicos sobre a
temática a partir de uma abordagem teórica.
A pesquisa no banco de dados da LILACS foi antecedida pela leitura de seu tutorial
no intuito de entendermos o processo de busca dos artigos. Constatamos que os
‘Determinantes Sociais da Saúde’ faziam parte dos ‘Temas em Destaque’ – temas
definidos como prioritários em saúde pela OPAS/OMS -, logo em sua página inicial.
Como faz parte de um tema prioritário, o portal oferece uma busca ampla (1.706
artigos), quando se clica no link ‘Determinantes Sociais da Saúde’. Tal busca ampla
deve-se à ausência de um descritor indexado específico, ou seja, não existe
descritor tanto para ‘determinantes sociais da (de) saúde’ quanto para ‘determinação
social da (de) saúde’. Assim, o sistema oferece uma combinação variada de
descritores, tais como “educação em saúde”, “justiça social”, “participação
comunitária”, etc. Nesse sentido, mesmo sabendo da inexistência de tal descritor,
fizemos uma procura pelo termo, visto que o que nos interessava era uma
abordagem teórica sobre essa noção e não uma abordagem baseada em dados
empíricos.
Assim, esta dissertação foi organizada em três capítulos, que agora apresentamos.
O primeiro capítulo foi dedicado a apresentar a construção da noção de
determinação social a partir do positivismo nas ciências sociais. Inicialmente
apresentamos os pressupostos teórico-filosóficos sobre os quais a ciência moderna
se assentou e que construíram a base da corrente positivista. Após, caracterizamos,
em linhas gerais esta corrente de pensamento, para, finalmente, interpretarmos a
noção de ‘determinação social’ a partir de Durkheim – uma das principais análises
dentro do campo das ciências sociais.
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Assim, optamos por iniciar o desenvolvimento deste estudo trazendo, ainda que de
forma sucinta e sintética, as principais perspectivas da ciência antiga e as profundas
transformações na visão de mundo ocorridas com o advento da ciência moderna,
cuja máxima expressão se deu com a previsibilidade e com a formulação do
princípio do determinismo, segundo o qual, tudo o que acontece na natureza tem
uma causa e determina um efeito, e que cabe à ciência a descoberta destas
relações de causa e efeito. Vale ressaltar que, neste estudo, chamamos de ciência
antiga à ciência iniciada na Grécia Antiga por Aristóteles (ciência aristotélica) e que
permaneceu como base para o desenvolvimento da escolástica durante
praticamente toda a Idade Média (ARANHA; MARTINS, 2003; PORTO; PORTO,
2008). Apesar de nesse período terem ocorrido expressões diversas de produções
intelectuais, a escolástica não rompe com a visão de mundo estabelecida pela
ciência aristotélica, ainda que assumindo contornos específicos e coerentes com os
interesses da Igreja (ARANHA; MARTINS, 2003 PORTO; PORTO, 2008). É
importante ressaltar que traremos algumas concepções da ciência aristotélica a
partir do desenvolvimento de seus pensamentos no campo da física e da
astronomia. Segundo Porto e Porto (2008), a física e a astronomia de Aristóteles
22
O positivismo nas ciências sociais, do final do século XVIII e início do século XIX,
será abordado neste percurso como a corrente de pensamento que, a partir desses
pressupostos, desenvolveu uma das primeiras proposições teóricas sobre o ‘social’
e que estendeu para o domínio do ‘social’ a visão de mundo determinista. Enfim,
traremos a interpretação da noção de ‘determinação social’ a partir da perspectiva
teórica de Durkheim; esse que, ancorando-se no positivismo, foi um dos principais
responsáveis por trazer o rigor do método científico para o interior das ciências
sociais na investigação dos fenômenos sociais.
Tanto a distinção quanto a hierarquização entre os dois mundos serviu como base
não apenas para a sustentação do modelo geocêntrico, mas também estabeleceu a
distinção entre a natureza da astronomia – que se reservava ao estudo do mundo
celeste - e da física - reservada ao estudo dos corpos em movimento no mundo
terrestre (ARANHA; MARTINS, 1993).
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Vale registrar que a palavra ‘metafísica’ vem do grego, onde “meta” quer dizer “depois”; logo
metafísica significa “depois da física”. Ela busca explicar, através de conceitos, o ‘ser em geral’.
Apesar da menção à metafísica de Aristóteles ser costumeira, ele não usava este termo, mas sim
usava a denominação de Filosofia Primeira. O termo metafísica é posterior a ele, surgindo no século I
a.C. quando Andronico de Rodes, ao classificar as obras aristotélicas, colocou a Filosofia Primeira
depois das obras da Física de Aristóteles (CHAUÍ, 1995; ARANHA. MARTINS, 1993).
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Assim, entendendo que “[...] a mudança é de quatro tipos, que dizem respeito à
substância, ou à qualidade, ou à quantidade, ou ao lugar [...]” (ARISTÓTELES, 2006,
p. 294), Aristóteles estuda diferentes tipos de movimento: o local, que se refere ao
lugar ocupado pelo ser na natureza; o qualitativo, pelo qual o corpo tem uma
qualidade alterada (uma criança que aprende a ler), o quantitativo, no qual ocorre
uma transformação em termos de alterações de tamanho (uma criança que cresce
em altura); a mudança substancial, pela qual um ser começa a existir – geração - ou
deixa de existir – corrupção - (ou seja, a mudança da essência): passagem do não-
ser ao ser e vice-versa (ARISTÓTELES, 2006; ARANHA, MARTINS, 1993).
No, entanto, é com Galileu que as transformações no campo da física ganham uma
maior força e amplitude, sendo considerado por Aranha e Martins (2003, p. 178) “o
responsável pela superação do aristotelismo e pelo advento da moderna concepção
de ciência”. Ele é o precursor da matematização da natureza a partir da busca pela
exatidão dos corpos. Ou seja, é com ele que os objetos físicos passam a ser
investigados não mais pela definição de suas propriedades perceptivas (cor, odor,
sabor), mas pelas suas propriedades objetivas (massa, volume, figura), que se
mostram gerais e válidas para todos eles. Há uma passagem, então, da descrição
subjetiva dos objetos para sua descrição objetiva. O corpo físico deixa de ser uma
abstração, de poder ter uma “representação subjetiva” e passa a ser descrito pelas
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suas medidas objetivas. É também com Galileu que o movimento dos corpos
começa a ser desconsiderado a partir de suas caracterisiticas qualitativas (por,
exemplo: movimento natural dos corpos pesados e leves), reduzindo-se às suas
dimensões quantitativas:
No entanto, é com Newton que ocorre “a maior síntese científica sobre a natureza do
mundo físico” (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 181), a partir do estabelecimento de
suas três leis da mecânica e a lei da gravitação universal, expressas em equações
matemáticas e que possibilitaram a maior universalização dos fenômenos físicos. A
lei da gravitação universal foi capaz de fornecer uma explicação unificada, em uma
única equação matemática, para as questões relacionadas ao movimento dos
planetas e da queda dos corpos nas proximidades da superfície terrestre (PORTO;
PORTO; 2008). As três Leis da Mecânica possibilitaram a formulação ‘exata’ do seu
principal problema: o movimento. A primeira lei, também conhecida como princípio
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4
É importante ressaltar que foi com Galileu que o princípio de inércia foi retomado de forma decisiva. Porto e
Porto (2008, p. 4061-5) afirmam que “Galileu, através do conceito de inércia, mostrou que todos os objetos que
se encontram sobre a Terra, bem como os observadores nela situados, estão automaticamente dotados do
movimento do próprio planeta e, portanto, este movimento seria imperceptível para qualquer desses
observadores”. É com Newton que este princípio é elevado ao patamar de lei universal da mecânica.
29
Para Chauí (1995), foi a partir do século XIX, com Laplace, físico e astrônomo
francês, que houve a formulação do determinismo como um principio universal da
ciência e uma doutrina sobre a natureza:
Segundo Santos (2008) é a partir desse lugar central ocupado pela matemática na
ciência moderna que derivam duas consequências principais. A primeira delas está
ligada à idéia de que conhecimento científico é sinônimo de quantificação; sendo o
rigor científico vinculado ao rigor das medições. “As qualidades intrínsecas do objeto
são, por assim dizer, desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as
quantidades em que eventualmente se podem traduzir. O que não é quantificável é
cientificamente irrelevante” (SANTOS, 2008, p.27-28).
O positivismo não apenas exaltava a ciência como o único método capaz de obter
um conhecimento verdadeiro da realidade, como também a colocava como o único
meio em condições de resolver, ao longo do tempo, os problemas humanos e
sociais. A ‘positividade’ da ciência e a fé na racionalidade científica caracterizavam o
combate às concepções idealistas e espiritualistas pela mentalidade positivista
(REALE; ANTISERI, 2005). “O termo positivo designa o real em relação ao
quimérico, a certeza em oposição à indecisão, o preciso em oposição ao vago.”
(ARANHA; MARTINS, 2003, p.141).
Segundo esse autor, esse período utópico do positivismo pode ser encontrado nas
reflexões filosóficas de Condorcet e Saint-Simon, sendo o primeiro considerado pelo
autor como o ‘pai do positivismo’. Foi Condorcet o primeiro a formular mais
precisamente a idéia de que a ciência da sociedade, para se tornar uma ciência
verdadeiramente objetiva, deveria tomar um caráter matemático, numérico, ser um
5
Por dimensão utópica entende-se, aqui, de acordo com Löwy (2009, p.14-15) aquela que “aspira a
um estado não existente das relações sociais, o que lhe dá, ao menos potencialmente, um caráter
crítico, subversivo, ou mesmo explosivo”.
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Saint Simon, discípulo direto de Condorcet, fazendo eco ao sucesso que as ciências
naturais haviam alcançado, tratou de construir uma ciência da sociedade baseada
no modelo biológico, da fisiologia: a Fisiologia Social. Nesta ciência - que se
apresentava ora como ramo da física, ora como ramo da fisiologia (LÖWY, 2009) - a
sociedade, mais do que um simples aglomerado de seres vivos, seria estudada em
analogia aos ‘organismos vivos’ e entendida enquanto um verdadeiro ser animado e
complexo, cujas partes corresponderiam a distintas funções, tendo como sua base:
a produção material, a divisão do trabalho e a propriedade (QUINTANEIRO;
BARBOSA; OLIVEIRA, 2003). Saint Simon acreditava no industrialismo como
domínio humano sobre a natureza e no poder e capacidade científicas para o
progresso da humanidade. Foi ele quem empregou o termo ‘positivo’ à ciência da
sociedade, termo que significaria a necessidade de os fenômenos sociais serem
observados pelos mesmos métodos das ciências naturais, possibilitando que as leis
do desenvolvimento social fossem reveladas e permitindo uma organização racional
da sociedade (QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA, 2003).
Mas, a partir de meados do século XIX, um novo cenário sócio-político irá imprimir
outra visão no desenvolvimento das idéias positivistas. A partir de 1830, com a
revolução burguesa e a tomada do poder pela burguesia na França, esta, de uma
classe contestadora e revolucionária, passa a ser a classe dominante e
conservadora, “força social associada ao exercício do poder” (LÖWY, 2009, p.29). É
com Comte e a sua crítica aos pensamentos ‘revolucionários’ de Condorcet e Saint-
Simon que o positivismo irá se consagrar teórica e praticamente à defesa da ordem
industrial-burguesa, considerada necessária para o progresso da sociedade (LÖWY,
2006). O método positivo, em Comte, visava afastar a ameaça das idéias
revolucionárias, críticas, ‘negativas’ e subversivas da filosofia iluminista e da utopia
socialista. No entanto, para executar essa tarefa, Comte irá utilizar, de forma
paradoxal, o mesmo princípio que servira para as análises de Condorcet e Saint
Simon, ou seja, o princípio metodológico de uma ciência natural da sociedade
(LÖWY, 2009).
Dentre os vários postulados do pensamento de Comte pode-se citar a lei dos três
estados, segundo a qual o progresso da inteligência humana passaria por três
estados progressivos: do teológico - no qual as explicações dos fenômenos são
dadas a partir de uma causa divina e sobrenatural – para o metafísico – os agentes
sobrenaturais são substituídos por forças abstratas como essências, idéias ou forças
– e desse para o positivo, que seria aquele correspondente ao aparecimento das
ciências. Nesse estado, as ilusões são superadas graças ao uso bem combinado do
raciocínio e da observação para se chegar ao conhecimento das relações invariáveis
dos fatos (REALE; ANTISERI, 2005). Assim, Comte entende que a teologia e a
metafísica eram percebidas como afirmações sem sentido, já que pesquisavam
questões inacessíveis ao ser humano (“qual a essência da vida?”) e, portanto, não
passíveis de comprovação. Por outro lado, a ciência positiva seria o avanço da
ciência na interpretação lógica da realidade, no conhecimento estritamente baseado
nos fatos (REALE; ANTISERI, 2005; RIBEIRO JUNIOR, 1991).
química, biologia e ‘física social’ (que seria, mais tarde, cunhada por Comte em
‘Sociologia’). Esta nova concepção de ciência social não somente ocupa o topo da
hierarquia das ciências, mostrando-se como dominante em relação à totalidade do
saber científico, como também se mostra uma ciência eminentemente natural: “A
física social é uma ciência que tem por objeto o estudo dos fenômenos sociais,
considerados no mesmo espírito que os fenômenos astronômicos, físicos, químicos
e fisiológicos” (COMTE apud LÖWY, 2006, p. 42).
inclusive aos campos dos males políticos (COMTE apud LÖWY, 2006, p.
43).
É a partir dessa análise que Löwy (2006, 2009) entende o sentido profundamente
conservador do positivismo a partir de Comte, na medida em que desloca a sua
direção inicial de um campo crítico e utópico-revolucionário para o campo de um
conservadorismo legitimador da ordem social estabelecida, que se deu com a
tomada do poder pela burguesia: “A apologia ideológica da ordem
(industrial/burguesa) estabelecida não é mais do que o avesso, o revestimento do
discurso positivista, cujo lado direito, a face visível, é o axioma de uma ciência
natural, neutra e rigorosamente objetiva, dos fatos sociais (LÖWY, 2009, p.29- grifos
do autor). Essa perspectiva positivista trouxe as bases para que Durkheim
desenvolvesse as regras do método científico e os estudos sociais concretos no
interior das ciências sociais em âmbito acadêmico.
Segundo Löwy (2009), a ciência social positiva de Durkheim possui como preceito
central a ‘lei social natural’. Esse preceito afirma a possibilidade de estender para o
domínio dos fenômenos humanos a idéia das leis naturais, considerando tais
fenômenos como explicáveis ‘naturalmente’. A idéia de leis naturais ancora-se no
princípio do determinismo, o qual afirma que a natureza é regida por leis constantes,
universais e regulares e que caberia à ciência a descoberta destas leis. Esse
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Visto que a lei da causalidade foi verificada nos outros reinos da natureza e
que progressivamente ela estendeu o seu domínio do mundo físico-químico
ao mundo biológico, e deste ao mundo psicológico, é lícito admitir que ela
igualmente seja verdadeira para o mundo social; e é possível afirmar hoje
que as pesquisas empreendidas sobre a base desse postulado tendem a
confirmá-lo (DURKHEIM, 2007, p.146).
tenha desprendido um produto novo. E como esta síntese tem lugar fora de
cada um de nós (uma vez que para ela concorre uma pluralidade de
consciências), seu efeito é necessariamente fixar, instituir certas maneiras
de agir e certos julgamentos que existem fora de nós e que não dependem
de cada vontade particular tomada à parte (DURKHEIM, 2007, p.XXIX).
Por mostrarem-se como uma realidade externa, que existe anteriormente aos
indivíduos, ou seja, que foram elaboradas por gerações anteriores às existências
atuais, a ‘internalização’ dessas maneiras coletivas de agir e pensar se dá através
da educação. Esta, segundo o autor, consiste em um contínuo esforço por socializar
o indivíduo no meio em que ele vive, impondo-o, desde os primeiros anos de vida,
maneiras de agir, de sentir e de ver às quais não chegaria de forma espontânea,
como comer e dormir em horários regulares, ter hábitos higiênicos, ser obediente e
paciente, estudar, trabalhar. Aos poucos, essas maneiras de agir vão dando lugar a
hábitos e tendências internas que resultam desta coerção.
42
Desta regra fundamental, Durkheim (2007) extrai as consequentes. Uma delas diz
respeito ao afastamento das prenoções e dos preconceitos - daquelas idéias
formadas e cristalizadas pelo senso comum - do pesquisador na observação dos
fatos sociais. Esse afastamento requer do sociólogo um rompimento com conceitos
formados em domínios exteriores ao científico e que o autor julga como “falsas
evidências”. A ciência seria o lócus de um saber neutro, desprovido de julgamentos
de valor. O preceito cartesiano da dúvida metódica encontra-se como arcabouço de
sua regra:
Essa definição, segundo o autor, deve ser mais objetiva possível, de maneira que
seja capaz de exprimir os fenômenos através de propriedades inerentes a eles
próprios, e não daqueles que provenham de uma idéia do pesquisador. Isto significa
que a investigação deve partir das manifestações mais exteriores de um fenômeno,
o que implica desconsiderá-los de suas essências mais profundas. É também a
partir desta forma que o objeto de uma ciência, segundo o autor deve ser definido.
impomos uma rubrica comum; chamaremos crime todo ato que recebe uma
punição e fazemos do crime assim definido objeto de uma ciência especial,
a criminologia (DURKHEIM, 2007, p. 36).
A definição dos fenômenos sociais a partir de seus caracteres mais exteriores requer
também que o pesquisador considere-os naqueles aspectos em que se apresentam
isolados de suas manifestações individuais, de forma que sejam representados da
maneira mais objetiva possível (DURKHEIM, 2007). Isso quer dizer que o que
prevalece é a forma como o fenômeno apresenta-se na coletividade, em sua
generalidade. O individual é subsumido frente ao coletivo, o todo prevalece às
partes. O geral se impõe ao detalhe, ao particular.
Esse caráter fixo e rigidamente definido do fato social mostra-se incapaz de dar
conta da dinamicidade e da mutabilidade da vida coletiva. O autor já assinalava essa
limitação da abordagem científica dos fenômenos sociais:
cingindo mais de perto esta realidade fugidia, que o espírito humano talvez
não possa jamais abarcar completamente (DURKHEIM, 2007, p.47).
Como podemos notar, as regras estabelecidas pelo autor trazem para o interior das
ciências sociais os pressupostos da objetividade e da neutralidade científicas na
análise dos fenômenos sociais. Além disso, mostra a necessidade de se construir
novos conceitos, que sejam apropriados às necessidades da ciência e que sejam
sempre expressos através de uma terminologia particular (DURKHEIM, 2007).
absorção do indivíduo pelo grupo e a forma de uma massa composta por partes
indiferenciadas, indistintas de sua totalidade (DURKHEIM, 1999).
segmentos ainda eram marcados internamente pela forte similitude entre seus
membros (DURKHEIM, 1999).
A consciência coletiva é entendida, então, como uma força externa, capaz de unir e
mover similarmente os indivíduos dentro desta coletividade; uma realidade distinta
dos indivíduos, um “sistema determinado que tem vida própria” (DURKHEIM, 1999,
p. 50). Essa consciência comum que é criada, “tipo psíquico da sociedade” é a forma
que o autor usa para caracterizar e delimitar a ‘natureza externa’ do social; na
medida em que ela é criada pela coletividade. Mas, ao mesmo tempo em que se
mostra como algo externo dotado de vida própria, ela se inscreve de uma forma bem
precisa nos indivíduos. Assim, o ser social é posterior ao ‘social’ e se forma pela
internalização de uma consciência que foi construída pelas relações de sociabilidade
instituídas pela coletividade.
Durkheim (1999) segue sua análise da vida social a partir de uma corrente
progressista, mostrando que essa ‘estrutura social’, inicialmente formada pela
solidariedade mecânica, vai sendo lenta e progressivamente substituída por tipos
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sociais mais organizados. Isto ocorre pela extensão das relações sociais e pela
intensificação da divisão do trabalho social, possibilitando que ocorra a diferenciação
dos indivíduos desse seio coletivo.
Essa estrutura social então formada diferencia-se das outras na medida em que não
se constitui mais pela repetição de segmentos homogêneos. Ao contrário, ela se
organiza a partir de um sistema composto por ‘órgãos’ diferentes (administrativos,
econômicos, judiciários, corporativos, artísticos, entre outros). Os indivíduos não se
assemelham, são diferentes e necessários, como os órgãos de um ser vivo. A
crescente divisão do trabalho nestas sociedades tem por função o desenvolvimento
da solidariedade orgânica. Quanto mais complexas, mais dividido é o trabalho social
e mais especializadas são as funções individuais.
A solidariedade orgânica diz respeito aos vínculos que mantém a organização dos
indivíduos nestas sociedades: a ‘natureza’ particular da atividade social que lhes
cabe, e não mais pelas relações de descendência, consaguinidade ou parentesco.
“Seu meio natural e necessário não é mais o meio natal, mas o meio profissional.”
(DURKHEIM, 1999, p.166). Ela se forma como consequência do processo de
diferenciação social dos indivíduos a partir das diferentes atividades profissionais
desenvolvidas, possibilitando que o individuo apareça e se distinga do grupo social a
que pertence.
individualidade das partes. “As diversas partes do agregado, por cumprirem funções
diferentes, não podem ser facilmente separadas” (DURKHEIM, 1999, p.130).
Outro alvo da crítica ao modelo multicausal da história natural da doença que foi
defendida por Arouca (2003) é a forma como tal modelo aborda o ‘social’.
Participando, de forma simultânea, como fator causal ligado ao hospedeiro e ao
meio ambiente, o ‘social’ não apenas aparece como um atributo individual (status
econômico, social, atitudes em relação ao sexo, etc.), mas também se mostra
combinado de forma homogênea com fatores físicos, químicos e biológicos, ou seja,
o ‘social’ passa a ter um peso idêntico aos demais ‘fatores’ a partir de uma
determinação mecânica de equilíbrio entre hóspede e meio ambiente (AROUCA,
2003).
Mas esse poder não se dirige ao corpo individual e sim ao corpo coletivo, à
“população”, ou seja, dirige-se aos “fenômenos globais”, aos aspectos biológicos das
“massas humanas” (FOUCAULT, 1999, p.299). “Não se trata, por conseguinte, em
absoluto, de considerar o indivíduo no nível do detalhe, mas, pelo contrário,
mediante mecanismos globais, de agir de tal maneira que se obtenham estados
globais de equilíbrio, de regularidade” (FOUCAULT, 1999, p.294).
O estudo dos perfis patológicos de uma mesma sociedade ao longo dos tempos
enfatizou que, em distintos momentos históricos, esses se mostram bem diferentes.
O estudo realizado por Laurell (1982) no México nos anos de 1940 e 1970 foi
utilizado para demonstrar essa diferença. Os perfis patológicos dos anos 40
mostram-se bem distintos daqueles dos anos 70. O estudo mostrou uma diminuição
importante na frequência de doenças infecciosas - como a febre tifóide, a malária, a
sífilis e a tuberculose – e um aumento absoluto da frequência de doenças crônicas
como as cardíacas, diabetes, do sistema nervoso central e acidentes. Segundo a
autora, as transformações ocorridas nestes perfis patológicos não podem ser
explicadas como resultantes do desenvolvimento das tecnologias médicas. Apesar
de o decréscimo de algumas doenças infecciosas ser atribuído a medidas de
prevenção específica, como as vacinas e as campanhas – e não do
desenvolvimento do modelo médico-hospitalar- outras como as pneumonias e
infecções intestinais não poderiam ser explicadas como resultantes do
desenvolvimento das técnicas médicas. Assim, segundo a autora, a explicação para
60
Apesar disso, para essa autora, a busca pela resolução dessa problemática deve ser
feita no sentido de entendê-la a partir de uma perspectiva que compreenda o seu
caráter duplo: biológico e social (LAURELL, 1982). Segundo a autora, entender a
saúde-doença como um processo social não significa contrapor o social ao
biológico, mas o social ao natural, já que o biológico é em si mesmo histórico e
social (LAURELL, 1982). Nesse sentido, a busca se daria no sentido de
compreender como o caráter histórico e social dos fenômenos assume a forma
biológica. (FACCHINI, 1994).
Já Breilh (1991) partiu das relações entre o movimento ‘social mais geral’ e o
movimento ‘biológico’ procurando explicitar que o segundo estaria subsumido no
primeiro:
Como notaremos adiante, essas tensões vão se refletir, da mesma forma, no campo
político.
69
Tambellini e Schütz (2009) nos trazem uma interessante perspectiva histórica desta
temática, não do ponto de vista de sua ‘origem’, mas como um ‘processo social já
inventado’. Estes autores consideram a publicação do Relatório Lalonde, em 1974,
no Canadá como o primeiro registro da noção de ‘determinação da saúde’ a ganhar
forte repercussão no campo da Saúde pública. Este relatório foi fruto de um
documento de trabalho destinado à discussão de reformas no sistema de saúde do
Canadá e trouxe, pela primeira vez, o reconhecimento governamental de um país
ocidental quanto à falência do paradigma biomédico do seu sistema nacional de
saúde. Embora a noção de determinação ainda não tivesse recebido o adjetivo de
‘social’ no referido relatório, esse propõe uma nova abordagem para o campo da
saúde, que para além da biologia humana, envolvesse também o entorno ambiental,
os estilos de vida e a organização dos sistemas de saúde pública (TAMBELLINI;
SCHÜTZ, 2009).
De certa forma, este relatório ecoou com a Conferência de Alma Ata, em 1978, que
se destacou como um importante marco político sobre a questão dos determinantes
sociais, dando ênfase aos mesmos como um dos pilares fundamentais para a
Estratégia de Atenção Primária à Saúde, deslocando novamente o pêndulo da OMS
para uma abordagem sócio-política e ambiental em saúde pública.
No entanto, esta importância dada pela OMS ao enfoque social nas políticas de
saúde encontra nas décadas seguintes (80 e 90) uma forte resistência à sua
propagação com as grandes transformações na política econômica mundial que
culminaram no crescimento da onda neoliberal e no deslocamento do enfoque para
uma concepção voltada para a assistência médica individual (BUSS; PELLERGINI-
FILHO, 2007).
Assim, a partir das décadas de 80 e 90 a OMS perde grande parte de sua influência
não apenas na condução da política de saúde mundial, mas também na condução
das pesquisas em saúde. Nesta época, o Banco Mundial passa a assumir um lugar
de destaque na liderança do debate internacional acerca das políticas de saúde,
dando prioridade às pesquisas relacionadas à construção de critérios de custo-
efetividade e ao redimensionamento da atuação governamental nestas políticas,
priorizando aquelas focalizadas nos pobres e vinculadas a pacotes de mínimos
sociais, aliadas à expansão da assistência privada (MATTOS, 2001).
É nesse contexto em que, a partir de 2005, este tema volta a ser debatido na
agenda política mundial quando a OMS cria a Comissão sobre os Determinantes
Sociais da Saúde com o objetivo de promover, em âmbito internacional, uma tomada
de consciência sobre a importância dos determinantes sociais na situação de saúde
de indivíduos e populações e sobre a necessidade do combate às iniquidades em
saúde por eles geradas.
Por ser um dos países pioneiros na introdução desta temática em sua pauta
política, o Brasil sediou, em outubro de 2011, a 1ª Conferência Mundial sobre os
Determinantes Sociais da Saúde, organizada pela OMS. A Declaração Rio,
documento final desta conferência, destacou cinco áreas estratégicas para o
74
Algumas críticas têm sido dirigidas à abordagem feita pela OMS em relação à forma
como esta temática reaparece em seu discurso. Para Nogueira (2009), o contexto
político-econômico internacional no qual ocorre a retomada do tema fez com que, no
próprio relatório da OMS, a análise dos determinantes sociais da saúde ocorresse
de forma reducionista e fragmentada. Este debate foi apresentado e discutido no
posicionamento da Associação Latino-Americana de Medicina Social – ALAMES - e
publicado pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – CEBES - no ano de 2011,
solicitando que o conceito de determinantes sociais não fosse banalizado ou
reduzido, mas que fosse lembrado que, por trás de todo reducionismo do conceito,
estava uma clara idéia de mercantilização da vida.
Por outro lado, Pellegrini-Filho (2011a) afirma tratar-se de um movimento novo que
alia a combinação de novas ferramentas, metodologias e abordagens capazes de
imprimir uma nova característica à saúde pública. Nesse mesmo caminho, Akerman
et al. (2011) declaram valorizar o esforço da OMS, especialmente no sentido de
impulsionar a discussão político-científica sobre os determinantes sociais da saúde
no âmbito internacional. No entanto, afirmam compartilhar da análise de que muito
78
Para uma discussão que sustente uma abordagem do ‘social’ para além de fatores e
estratificações entendemos que a visão da sociologia crítica possa trazer elementos
que auxiliem em uma compreensão mais problematizada e menos fragmentada;
visto que a ‘questão social’ tem sido objeto de estudo de vários pesquisadores
clássicos e contemporâneos dentro do campo das ciências sociais.
Um exemplo que bem expressa essa questão são as propostas para o combate à
pobreza na América Latina trazidas por três organismos internacionais: Comissão
Econômica para a América Latina - CEPAL - , Banco Mundial e o Projeto Regional
para a Superação da Pobreza do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento - PNUD (WANDERLEY, 2004). Segundo Wanderley (2004),
apesar de apresentarem importantes divergências no que tange às metodologias
empregadas, assim como na conceituação e quantificação da pobreza nesta região,
todos apresentam a mesma postura enfática ao afirmarem o crescimento econômico
como condição sine qua non para combatê-la.
A terceira ótica apresentada pelo autor se assenta sobre uma perspectiva mais
restrita do social, na medida em que, para seus defensores, a pobreza e as
desigualdades sociais, por serem consideradas históricas, devem ser tratadas pelos
governos de forma marginal, a não atrapalhar o crescimento econômico, ou seja,
através de políticas compensatórias. Em outros termos, convertem problemas
estruturais em demandas conjunturais, sob o pretexto de que demandariam
demasiado tempo, incompatível com as temporalidades governamentais, para serem
superadas (WANDERLEY, 2004).
Não é preciso fazer muito esforço para constatar que, na verdade, essa é a visão do
social predominantemente adotada pelos governos no Brasil, tanto em sua visão de
sociedade, como nos projetos e planos de desenvolvimento que implementa,
fazendo com que predominem políticas setoriais isoladas que abordem a questão
social de forma fragmentada e descontextualizada da própria dinâmica social
(WANDERLEY, 2004). Como veremos adiante, a propagação da onda neoliberal
encontra sustentação nesta visão fragmentada do social.
A questão social diz respeito aos vínculos históricos, que amalgamam cada
sociedade, e às tensões e contradições que levam à sua ruptura. Nesse
sentido, ela é parte constitutiva dos componentes básicos da organização
social – Estado, Nação, cidadania, trabalho, etnia, gênero, entre outros –
81
assim como administra todas as necessidades para uma única finalidade: a de gerar
capital.
A questão social passa, então, a ser tratada e analisada do ponto de vista setorial,
de forma que os esforços para combatê-la se concentrem em certos setores e
instituições, como o setor saúde, o setor trabalho, previdência ou assistência social.
Não se trata mais de problematizar de que forma a precarização do trabalho, o
desemprego, as mais variadas manifestações da violência social, incidem sobre a
vida cotidiana de cada indivíduo, assim como fazem parte do processo saúde-
doença das pessoas; mas sim, de transferir para setores e instituições, como o setor
saúde, as responsabilidades para dar conta de suas últimas consequências: a
doença seja ela abordada de forma curativa, preventiva, ou ainda, em programas de
‘promoção da saúde’:
Nogueira (2010b) nos traz a crítica ao termo ‘determinantes sociais’, quando coloca
que este termo, tal como vem sendo predominantemente usado pela abordagem
epidemiológica, denota que os fenômenos de saúde devam estar sempre fundados
na evidenciação de relações de causa-efeito. Neste sentido, o autor retorna aos
fundamentos filosóficos sobre causa e determinação, pautados pelo pensamento de
Heidegger, no sentido de nos mostrar como, ao longo da história, o termo
‘determinantes’ foi sendo tratado de forma causal:
Nesta linha de análise crítica, Fleury-Teixeira e Bronzo (2010, p. 37) trazem para o
debate o resgate do termo ‘determinação social’ a partir de uma releitura da obra de
Marx de forma a possibilitar uma melhor compreensão da determinação social dos
86
indivíduos. Estes autores trazem esta leitura para o campo da saúde, defendendo a
noção de que a determinação social da saúde seja entendida como apenas uma
única dimensão da determinação social dos indivíduos.
Segundo os autores, a saúde, como uma dimensão da vida humana, também está
intimamente relacionada tanto com as possibilidades dos indivíduos, no curso de
suas existências, de terem acesso aos meios materiais e espirituais para
desenvolverem e realizarem suas capacidades, quanto com a “teia de relações
peculiares nas quais cada indivíduo se forma e realiza a sua existência” (FLEURY-
TEIXEIRA; BRONZO, 2010, p. 37), ‘teia’ essa que explicita a própria interatividade
dos indivíduos e é ‘tecida’ de acordo com a inserção de cada indivíduo no
ordenamento social.
Segundo Santos (2008) este modelo foi introduzido no campo das ciências sociais a
partir do pressuposto de que os fenômenos sociais deveriam ser estudados da
mesma maneira que os naturais, fazendo com que eles fossem concebidos como
coisas. Para isso, seria necessário reduzi-los à suas dimensões mais externas,
capazes de serem mensuradas.
88
Latour (2012) afirmará, no mesmo caminho, que esta concepção conduz a uma
chuva de fragmentos, alterando os modos de existência através de uma grande
proliferação de objetos “de risco” que evidenciam que os laços sociais também se
tornaram fragmentos nas mãos das organizações técnicas.
Essa duas idéias, juntas, fizeram com que os estudos nelas baseados não apenas
partissem do fim (sociedade), como também partissem este fim, de tal maneira a não
somente desagregar o ‘social’ - remetendo a uma visão de sociedade fragmentada -,
mas dotando-o de certa homogeneidade e racionalidade histórica; de modo a tornar
o seu comportamento previsível ao longo do tempo, confundindo o que deviam
explicar com a própria explicação (QUIJANO, 1992; LATOUR, 2012).
É neste sentido que Latour (2012) desenvolve a sua critica aos estudos da
modernidade sobre o ‘social’. Segundo ele, a racionalidade científica da
modernidade julgou necessário distinguir e separar o domínio da sociologia de
outros domínios, tais como a economia, o direito, a psicologia, a biologia, a
geografia, dentre outros. Desta forma, a sociologia definiria e especificaria um
domínio social da realidade como algo particular e diferencial dos demais. Nesta
perspectiva racional, à sociologia caberia estudar o ‘social’ como um objeto
específico e diferenciado dos demais saberes, de forma que pudesse fornecer um
certo tipo de explicação para as demais disciplinas daquilo a que elas julgassem não
ser de sua competência.
Esta visão restrita do social tornou-se senso comum, não apenas para os mais
‘leigos’ no assunto, mas também no próprio âmbito das ciências sociais (LATOUR,
2012). E mesmo dentro deste senso comum, este ‘fenômeno específico’ recebeu os
mais variados rótulos - “sociedade”, “prática social”, “estrutura social”, “ordem social”
(LATOUR, 2012, p.19) - a ser ‘escolhido’ de acordo com o objetivo específico
daquilo que se pretende analisar; evidenciando, inclusive, uma clara tendência
etimológica do termo ‘social’ que, como bem destacou o autor foi adquirindo um
significado não só cada vez mais variado e segmentado, mas também mais restrito:
Outro exemplo mais evidente é o das chamadas ‘causas externas’, nomeação dada
na área da saúde para denominar os acidentes e as mais variadas formas de
violência. O próprio termo já revela, por si só, como esses complexos fenômenos
sociais se reduzem e aglutinam-se em uma mera categoria externa e
descontextualizada ao setor saúde, na medida em que não se trata de problematizá-
los como fenômenos intrínsecos à dinâmica da vida coletiva, expressão do modo de
organização e reprodução da sociedade (no qual a saúde é parte constitutiva), mas
92
Além disso, essas duas exemplificações, bastante cotidianas para aqueles que
trabalham no ‘setor saúde’, evidenciam o conflito, a polaridade que se estabelece
entre o ‘ser biológico’ e o ‘ser social’, como se fossem seres distintos. É nessa lógica
que um indivíduo portador de certas doenças específicas, além de ser ‘dissecado’
pelas diversas especialidades médicas, é desconsiderado como aquele mesmo
indivíduo que sofre violência familiar, que vive em condições precárias de vida e de
trabalho, que sofre. E assim, o ser, em toda a sua complexidade de existência, é
‘fatiado’ em distintas dimensões: ‘ser biológico’ – a ser ‘investigado’ por médicos,
enfermeiros, fisioterapeutas, dentistas, dentre outros profissionais de saúde; ‘ser
social’ para os assistentes sociais; ‘ser psicológico’ para os psicólogos.
No campo dos determinantes sociais da saúde esta lógica pode ser encontrada
através do pressuposto de que a saúde do indivíduo é determinada pelo contexto
social em que se insere, trazendo portanto um certo ‘aprisionamento’ do indivíduo
frente às possibilidades próprias, singulares, de produzir e transformar o seu
processo saúde-doença.
Outras mudanças que podem ser incluídas nesta discussão referem-se àquelas
decorrentes do desenvolvimento das intervenções tecnológicas sobre a vida através
das biotecnologias, tais como práticas de reprodução assistida, transplantes e
implantes de órgãos e tecidos, produção de fármacos, amplo desenvolvimento de
transgênicos, produtos biodegradáveis, entre outros. Estas mudanças forçam
pesquisadores a pensar em uma nova forma de produção social: “Assim como a
cultura é natural, a natureza torna-se finalmente artificial; o ‘social’, como categoria
típica do século XIX evapora” (IANNI, 2011, p.35).
94
Latour (2012) sustenta sua defesa em uma nova abordagem ao social, que o
compreenda como ponto de chegada, de convergência e não como ponto de partida.
Abordagem esta que seja capaz de afirmar que não há nada de específico na ordem
social, que o social não deve ser compreendido como uma coisa particular ou como
uma realidade específica. Ela trata de reagrupar, de redefinir e de restabelecer
conexões e associações fornecidas por domínios específicos e heterogêneos da
realidade social de modo a entender os fenômenos a partir das relações sociais
estabelecidas. Enfim, uma ciência que possa estudar os fenômenos naturais a partir
dos sociais (SANTOS, 2008).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procuramos mostrar que tal crítica, que se iniciou nos próprios departamentos de
Medicina Preventiva nas décadas de 70 e 80, emergiu a partir da corrente médico-
social latino-americana. Dentro dessa corrente, as produções brasileiras tiveram um
lugar de destaque dentre os países da América do Sul e Central.
97
Por outro lado, o pensamento de Latour (2012) também trouxe argumentos para
repensarmos o que entendemos atualmente como ‘social’. Para além de um domínio
específico e limitado da realidade, como algo sempre externo ao sujeito e à sua
própria saúde, ela convoca a todos, especialistas de diferentes áreas disciplinares, a
rediscuti-lo como uma realidade complexa e imanente a todos estes domínios e que,
por isso, necessita da contribuição de cada saber para compreendê-lo num
movimento convergente, de chegada, e não de partida.
Reconhecemos que o social não é algo externo ao sujeito, à sua saúde e muito
menos à Saúde Coletiva, e que a esta urge resgatar a base social que deu
sustentação à sua própria constituição como um campo de saberes, práticas e
valores historicamente construídos, coletivamente transformado, comprometido com
a valorização da vida e com um mundo mais justo, menos desigual e, portanto, mais
feliz.
100
6. REFERÊNCIAS
AKERMAN, M.; MAYMONE, C.C.; GONÇALVES C.B.; CHIORO, A.; BUSS, P.M. As
novas agendas de saúde a partir de seus determinantes sociais. In: GALVÃO, L.A.C,
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de Janeiro: Fiocruz, 2011.
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critica de la determinación social de la vida y la salud. In: NOGUEIRA, R.P.(org).
Determinação Social da Saúde e Reforma Sanitária. Rio de Janeiro: Cebes, 2010,
p.87-125.
GIL, A.C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2009.
LAURELL, A.C. A saúde-doença como processo social. In: NUNES, E.D. (org.).
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133-158.
LEAVELL, H.R.; CLARK, E.G. Medicina Preventiva. Tradução: Maria Cecília Ferro
Donnangelo, Moisés Goldbaum, Uraci Simões Ramos. Editora McGraw-Hill do
Brasil, 1976.
PELLEGRINI FILHO, A. Public policy and the social determinants of health: the
challenge of the production and use of scientific evidence. Cad. Saúde Pública. Rio
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TELLES, V.S. Questão social: afinal do que se trata? São Paulo em Perspectiva.
São Paulo, v.10, n.4, 1996.