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Dissertacao JULIA GARBOIS

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0

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO


CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA
MESTRADO EM SAÚDE COLETIVA

JÚLIA ARÊAS GARBOIS

PARA CRÍTICA AO CAMPO DOS DETERMINANTES SOCIAIS DA


SAÚDE

VITÓRIA
2014
1

JÚLIA ARÊAS GARBOIS

PARA CRÍTICA AO CAMPO DOS DETERMINANTES SOCIAIS DA


SAÚDE

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Saúde Coletiva do
Centro de Ciências da Saúde da
Universidade Federal do Espírito Santo,
como requisito parcial para obtenção do grau
de Mestre em Saúde Coletiva, na área de
concentração Política, Planejamento e
Gestão em Saúde.
Orientadora: Profª Drª Francis Sodré.

VITÓRIA
2014
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

Garbois, Júlia Arêas, 1986-


G214p Para crítica ao campo dos determinantes sociais da saúde /
Júlia Arêas Garbois. – 2014.
105 f.

Orientador: Francis Sodré.

Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Universidade


Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências da Saúde.

1. Determinantes sociais da saúde. 2. Ciências. 3.


Sociologia. 4. Saúde coletiva. I. Francis Sodré. II. Universidade
Federal do Espírito Santo. Centro de Ciências da Saúde. III.
Título.

CDU: 614
3

Ao meu esposo Luiz Henrique, por todo amor,


compreensão, apoio e incentivo a cada passo desta
caminhada.
4

AGRADECIMENTOS

Agradeço à Mãe natureza por fazer parte desse momento de minha vida, inspirando-
me, acolhendo-me, renovando-me e despertando-me.

Agradeço ao Luiz Henrique, um grande companheiro que escolhi para seguir minha
caminhada, pessoa especial em minha vida. Agradeço pelo colo - de marido, de
mãe, de pai, de amigo, de amante - tão presente nesse percurso, em que minhas
ausências se fizeram em alguns momentos. Agradeço, sobretudo, por confiar em
mim no momento em que eu buscava a minha própria confiança. Obrigada por me
encorajar sempre. Te amo tanto!

Agradeço à minha querida família Arêas-Garbois que eu tanto amo. Em especial a


meus pais, Ovídio e Nilcéa, por estarem sempre me apoiando e contribuindo para
que a Júlia se realize. Às minhas irmãs Carolina e Bárbara pelo incentivo e apoio e
ao meu amado sobrinho-afilhado Gabriel que tanta alegria e aprendizado traz para
minha vida.

A meus tios Maria do Carmo e Eduardo, meus ‘pais cariocas’, por participarem
afetuosamente de minha trajetória desde a graduação, acolhendo-me,
aconselhando-me e apoiando-me sempre. Amo vocês.

Agradeço à minha orientadora, Dr.ª Francis Sodré, que com sabedoria e afeto
acolheu minhas inquietações, respeitou os meus momentos e me ensinou nas
‘entrelinhas’ a arte de ser mestre. Sem dúvida, uma grande parte da Júlia de hoje
leva um precioso pedaço seu!

Agradeço muito a todos os amigos do Grupo de Estudos em Trabalho e Saúde


(GEMTES) que me acolheram - física, espiritual e intelectualmente - em tantos
momentos. As amizades conquistadas, as trocas realizadas, serão levadas comigo
para sempre, para muito além deste trabalho.

Aos professores e funcionários da instituição, pela convivência prazerosa e valiosas


contribuições. Especialmente à professora Dra. Rita de Cássia Duarte Lima por ter
me permitido vivenciar, pela primeira vez, a experiência incrível da docência e por
confiar em meu trabalho. E à prof. Dra. Maristela, que em sua sabedoria de mestre,
acolheu as minhas inseguranças e participou de forma especial no incentivo a este
trabalho.

Também não poderia deixar de incluir nestes agradecimentos as minhas professoras


de graduação Dra. Liliana Angel Vargas, por fazer parte da trajetória que culminou
com o interesse em pesquisar o ‘social’, e Dra. Florence Romijn Tocantins, por me
ajudar carinhosa e sabiamente na construção do projeto que veio a culminar nessa
dissertação. A vocês, um abraço carregado de afeto!
5

Agradeço também à tia Zilene e à Bartyra, que foram fundamentais no final desta
caminhada, acolhendo meus medos, fantasmas, angústias, despertares e
descobertas com tanto zelo, amor e carinho.

E à minha vida, que no encontro com tantas outras vidas, a cada dia se enche de
mais VIDA!
6

Onde meus talentos e paixões encontram as


necessidades do mundo, lá está o meu caminho, o meu
lugar.

(Aristóteles)
7

RESUMO

GARBOIS, J.A. Para crítica ao campo dos determinantes sociais da saúde.


Dissertação de mestrado (Saúde Coletiva) – Programa de Pós-Graduação em
Saúde Coletiva, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2014, 105 p.

O presente estudo analisa as relações entre a ‘saúde’ e o ‘social’ na Saúde Pública


brasileira, especificamente a partir da noção de ‘determinação social da saúde’,
focando-a em dois momentos importantes: a década de 70, quando ocorre a
construção dessa noção a partir da corrente médico-social latino-americana, e a
retomada dessa discussão no século XXI sobre a chancela de ‘determinantes
sociais da saúde’. Possuiu como objetivos: Caracterizar a noção de ‘determinação
social’ a partir do positivismo nas ciências sociais; pesquisar a construção da noção
de ‘determinação social da saúde’ na Saúde Pública brasileira; descrever
perspectivas de análises sobre o campo dos determinantes sociais da saúde a partir
da polaridade entre a ‘saúde’ e o ‘social’. Para o alcance dos objetivos, foi realizado
um estudo exploratório, através da pesquisa bibliográfica (livros e bases de dados
virtuais) e da pesquisa documental. Inicialmente apresentamos os pressupostos
teórico-filosóficos sobre os quais a ciência moderna se assentou e que construíram
a base da corrente positivista. Após, caracterizamos, em linhas gerais, essa corrente
de pensamento, para, finalmente, interpretarmos a noção de ‘determinação social’ a
partir de Durkheim – uma das principais análises dentro do campo das ciências
sociais. Logo após, trazemos a construção da noção de determinação social da
saúde a partir da crítica latino-americana da década de 70 ao discurso hegemônico
do período sobre o processo saúde-doença. O pensamento latino-americano teve
grande produção teórico-política brasileira em um lugar de vanguarda quando
comparado a todos os países da América do Sul e Central. Entre outras agendas, a
noção de determinação social da saúde, oriunda dos movimentos sociais, pautou a
reforma sanitária brasileira, colocando-se como cerne do debate. Noção esta que
sustentou a ‘bandeira política’ defendida pelo movimento sanitário na luta por
melhores condições de vida e de saúde no Brasil. Em seguida, apresentamos a
configuração político-científica mais recente do campo dos determinantes sociais da
saúde, destacando que ocorre um enfoque predominantemente reducionista sobre o
social. Logo após, trazemos categorias do pensamento da sociologia crítica e da
sociologia contemporânea, de forma a oferecer elementos de análise para a crítica à
forma como hegemonicamente vem se pautando o discurso no interior do campo
dos determinantes sociais da saúde. Ambas as perspectivas apresentam-se de
forma não excludentes, não hierárquicas e não concorrentes. Finalizamos tecendo
considerações que, longe de serem finais, sinalizam para a necessidade de uma
nova perspectiva de partida para os estudos atuais no campo dos determinantes
sociais da saúde.

Palavras-chave: Determinantes Sociais da Saúde. Determinação Social da Saúde.


Determinação Social. Ciência Moderna. Sociologia
8

ABSTRACT

GARBOIS, J.A. For a critical to the field of social determinants of health.


Dissertation (Public Health) - Graduate Program in Public Health, Federal University
of Espírito Santo, Vitória, 2014, 107 p.

This study analyzes the relationship between 'health' and 'social' in the Brazilian
Public Health, specifically the notion of 'social determinants of health', focusing on
two important moments: the 70's, when the construction of this notion occurred from
the medical and social Latin American chain, and the resumption of this discussion in
the XXI century, over the seal of 'social determinants of health'. It possessed the
following objectives: characterize the notion of 'social determinants' from positivism in
the social sciences, search the construction of the notion of 'social determinants of
health' in the Brazilian Public Health; describe perspectives analysis on the field of
social determinants of health from the polarity between 'health' and 'social'. To
achieve the objectives, an exploratory study was conducted through literature (books
and virtual databases) and documentary research. Initially we present the theoretical
and philosophical assumptions upon which modern science was settled and that built
the foundation of positivist current. After, we characterized, in general, this line of
thought, to finally interpret the notion of 'social determinants' from Durkheim - one of
the main analyzes within the field of social sciences. Soon after, we bring the
construction of the concept of social determinants of health from the Latin American
criticism of the 70s to the hegemonic discourse of the period on the health-disease
process. The Latin American thought had great production in Brazilian’s theoretical
and policy at the forefront when compared to all the countries of South and Central
America. Among other agendas, the notion of social determinants of health, arising
from social movements, guided the Brazilian health reform, placing itself as the heart
of the debate. This notion sustained the 'political banner' advocated by health
movement in the struggle for better living conditions and health in Brazil. Then, we
present the latest scientific-political configuration of the field of social determinants of
health, emphasizing a predominantly reductionist focus on the social occurs. Soon
after, we bring the categories of the thought of critical’s sociology and contemporary’s
sociology in order to provide elements of analysis to the critique of how hegemonic
discourse has been guided within the field of social determinants of health. Both
perspectives are presented in a non-exclusive, non-hierarchical and non-competitive
way. We end with considerations that, far from being final, point to the need for a new
perspective from which to current studies in the field of social determinants of health.

Keywords: Social Determinants of Health Social. Social Determination of


Determination. Modern Science. Sociology.
9

LISTAS DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ALAMES Associação Latino-Americana de Medicina Social


CEBES Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
CEPAL Comissão Econômica para a América Latina
DSS Determinantes Sociais da Saúde
GEMTES Grupo de Estudos em Trabalho e Saúde
LILACS Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde
OMS Organização Mundial da Saúde
PNUD Projeto Regional para a Superação da Pobreza do Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento
PPGSC Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva
RIO + 20 Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável
SciELO Scientific Electronic Library Online
UFES Universidade Federal do Espírito Santo
10

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 11

2. DA CIÊNCIA ARISTOTÉLICA À CIÊNCIA MODERNA: A


CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA VISÃO DE MUNDO 21
2.1 A CIÊNCIA ARISTOTÉLICA 22
2.2 A CIÊNCIA MODERNA 26
2.3 O POSITIVISMO E OS CAMINHOS PARA A CONSTITUIÇÃO DAS
CIÊNCIAS SOCIAIS 34
2.4 AS CIÊNCIAS SOCIAIS E A INFLUÊNCIA DE DURKHEIM NA
NOÇÃO E DETERMINAÇÃO SOCIAL 39
2.4.1 A determinação social nas primeiras organizações sociais 46
2.4.2 A determinação social nas sociedades organizadas 49

3. O DEBATE LATINO-AMERICANO E A SAÚDE COLETIVA


BRASILEIRA: A NOÇÃO DE DETERMINAÇÃO SOCIAL DA SAÚDE 54
3.1 A MUDANÇA DO LÉXICO E A MUDANÇA DO MÉTODO 59
3.2 A QUESTÃO DA DETERMINAÇÃO E A REINTERPRETAÇÃO DO
SOCIAL-BIOLÓGICO 64

4. O CAMPO DOS DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE: DO


CENÁRIO MUNDIAL AO CENÁRIO BRASILEIRO 69
4.1 O DEBATE NA SOCIOLOGIA: DUAS PERSPECTIVAS CRÍTICAS
SOBRE OS ‘DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE’ 78
4.1.1 A Perspectiva da sociologia crítica 79
4.1.2 A perspectiva da sociologia contemporânea 87

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 96

6. REFERÊNCIAS 100
11

1. INTRODUÇÃO

O interesse pelo ‘social’ faz parte de minha história de vida.

Educada em berço espírita, em família que pregava e realizava a caridade, desde


pequena já entrava em contato com atividades sociais na perspectiva da ação contra
a miséria e a pobreza, acompanhando meu avô nas distribuições de cestas básicas
às famílias ‘carentes’: o social como miséria, pobreza e o meu ‘dever’, como ser
humano, de aliviar o sofrimento dos mais pobres, praticando a caridade.

Durante a graduação em enfermagem, o ‘andar da vida’ me proporcionou um grande


encontro com a prof. Dra. Liliana Angel Vargas, através de um convite feito para eu
enveredar pela senda da pesquisa de iniciação científica. Durante três anos da
graduação tive a grata oportunidade de participar, como bolsista de iniciação
científica, da pesquisa denominada “O direito à saúde em tempos de exclusão
social”. A pesquisa tinha como cerne de sua discussão a análise das possibilidades
de se garantir o direito à saúde na sociedade brasileira, marcada pela desigualdade
e injustiça social. Possuía como um dos cenários priorizados para sua análise a
Estratégia Saúde da Família, uma prioridade dentro da política de saúde brasileira.

A participação nessa pesquisa possibilitou discussões que transformaram não


apenas minha formação acadêmica, mas também meu projeto de vida, uma vez que
me proporcionava um novo olhar sobre o social e também sobre a saúde. O social
na perspectiva das contradições entre a ‘injustiça’ e o ‘direito’. A saúde como um
direito social em sua amplitude e não apenas como um direito ao acesso aos
serviços de saúde. E o meu compromisso, como enfermeira, de ampliar as
possibilidades do ‘cuidar’. Para além da técnica.

Foram com essas expectativas que iniciei a minha primeira experiência profissional,
por meio da Estratégia Saúde da Família do município de Duque de Caxias, no
estado do Rio de Janeiro. Uma área de grande pobreza, onde famílias e também
nós, profissionais da saúde, sofríamos com as fragilidades de um sistema municipal
de saúde incapaz de corresponder às reais necessidades e demandas.
12

Inquietações, angústias e frustrações faziam parte dessa experiência, principalmente


quando ia realizar as visitas domiciliares e entrava em contato direto com famílias
destituídas de qualquer possibilidade de garantia de um direito à vida. Um
sofrimento entrar em casas onde imperava a negação a todos os direitos e ter que
me colocar como enfermeira nos ‘moldes’ da Estratégia Saúde da Família:
vacinação, prevenção e orientações.

Três anos depois, permiti-me dar vazão a essas inquietações, sentimentos,


questionamentos, desejos não silenciados e até mesmo ainda mais despertados
pela minha prática profissional. Buscar respostas (ou ainda mais questionamentos)
para as inquietações vivenciadas no meu cotidiano de trabalho. Outros ‘ares’ me
aguardavam na mudança para Vitória, na minha licença de Duque da Caxias, no
meu ‘casamento’ com outras possibilidades de vida.

Foi então que ingressei no mestrado em Saúde Coletiva desta instituição e não
imaginava que este ingresso iria trazer profundas mudanças em minha vida.
Mudanças essas que começaram por meio de um verdadeiro encanto com os novos
conhecimentos, com as novas formas de olhar o mundo, com novos desejos,
possibilitados pelas disciplinas cursadas e por um grupo mais que acolhedor: o
Grupo de Estudo em Trabalho e Saúde (GEMTES), coordenado pelas Professoras
Dra. Maristela Dalbello Araujo e Dra. Francis Sodré. Foi nesse grupo que as
sementes plantadas ao longo da minha trajetória encontraram terreno fértil para
serem germinadas, onde as minhas inquietações foram acolhidas e se aproximaram
das inquietações de Francis.

Um projeto de pesquisa que chegou tão ‘ingênuo’, mas que tinha por trás tanta sede
de conhecimento, de novas possibilidades de explorar a temática da determinação
social da saúde. Foi então que, nos encontros, nas orientações, nos diálogos, os
questionamentos foram surgindo, através de um convite da Francis a navegar em
‘mares’ por mim desconhecidos, mas bastante desejados. Uma única certeza: de
que, por mais desconhecido que fosse, ele me traria uma nova forma de ver, de lidar
e de viver a vida.
13

Foi nessa trajetória que a temática da determinação social da saúde começou a


ganhar alguns questionamentos. Se queremos pesquisar sobre a determinação
social da saúde, por que não começar buscando, na sociologia, elementos capazes
de nos fazer compreender, inicialmente, a noção de ‘determinação social’? Como
esta noção de determinação social é incorporada no discurso da Saúde Pública
brasileira, através da noção de ‘determinação social da saúde’? Como se configura
atualmente o debate sobre a determinação social da saúde? Que elementos teóricos
a sociologia atualmente pode nos trazer para dialogar com esta temática?

Para responder a essas questões enveredamos pelo percurso de um estudo


exploratório, que se tornou possível através da pesquisa bibliográfica1 e da pesquisa
documental.

A pesquisa bibliográfica levou em consideração as orientações dadas por Gil (2009)


para coleta de informações, uma vez que buscamos uma profunda análise do tema,
em fontes bibliográficas de variadas naturezas, como livros, publicações periódicas,
além de outros impressos diversos, portais eletrônicos, dentre outras fontes. Para o
referido autor:

A principal vantagem da pesquisa bibliográfica reside no fato de permitir ao


investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do
que aquela que poderia pesquisar diretamente. Essa vantagem torna-se
particularmente importante quando o problema de pesquisa requer dados
muito dispersos pelo espaço (GIL, 2009, p. 45).

Assim, a pesquisa bibliográfica iniciou-se em referenciais da filosofia e das ciências


sociais no intuito de entender o termo ‘determinação’. Deparamos-nos com o termo
‘determinismo’. Visto tratar-se de um termo científico, pesquisamos na filosofia da
ciência a trajetória histórica que culminou com a aplicação desse termo na ciência. A
busca priorizou o entendimento das principais rupturas estabelecidas entre a ciência
antiga e a ciência moderna, assim como se focou nos principais pressupostos
teórico-filosóficos que deram sustentação a uma visão de mundo determinista.

1
A maior parte da pesquisa bibliográfica foi realizada através de fontes de papel: os livros. Foi possibilitada pelo
acesso às bibliotecas da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES.
14

Os termos mais utilizados nessa busca foram: ciência antiga, ciência moderna, física
moderna, física aristotélica, revolução científica, história da ciência. Esse percurso
foi de grande importância para entendermos o contexto epistemológico que
sustentou o surgimento das ciências sociais como disciplina de um saber específico.

Em seguida, partimos para a literatura das ciências sociais e optamos por realizar
um corte no seu interior, a partir do positivismo, mais especificamente através das
obras de Durkheim (1999, 2007), visto ser a corrente de pensamento que mais
influência trouxe para o desenvolvimento de estudos científicos nessa área de saber.
Dentro da literatura de Durkheim, as obras que mais trouxeram elementos de análise
para entendermos e interpretarmos a noção de determinação social foram: “Da
divisão do trabalho social” e “Regras do método sociológico”. Realizamos um
fichamento bibliográfico da literatura selecionada a fim de separar os elementos de
interesse para a análise.

Em seguida, a pesquisa bibliográfica partiu para a exploração da determinação


social no interior da Saúde Pública/Saúde Coletiva, através da noção de
‘determinação social da saúde’. Iniciamos a pesquisa procurando dentre as
produções científicas da corrente médico-social latino-americana, aquelas que mais
se destacaram nas três últimas décadas do século XX, no sentido de trazer suporte
teórico para a construção de um pensamento social na área da saúde (AROUCA,
2003, DONNÂNGELO, 1979, LAURELL, 1982; BREILH, 1991; GARCIA, 1983).
Demos preferência para aqueles autores que não somente realizaram estudos com
importantes contribuições da teoria social, mas também que marcaram a entrada de
correntes do pensamento social na realização de uma nova leitura da Saúde
Pública, a partir de uma perspectiva crítica à abordagem positivista que predominava
na época. Essa nova leitura crítica demarca a construção, no plano teórico, de um
novo campo de conhecimento, genuinamente brasileiro: o campo da Saúde Coletiva.

Almeida-Filho (2010, p.13), em avaliação dos eixos teóricos das publicações


geradas por esses estudos, afirma haver “[...] clara hegemonia de marcos
referenciais vinculados ao materialismo histórico, com especial destaque para as
dimensões políticas dos processos de produção (condições de trabalho) e
15

reprodução (estruturas de classes) da sociedade”. Foi principalmente na década de


70 que essas correntes teóricas penetraram nos meios acadêmicos brasileiros.

Na década de 80, o Brasil vivia um de seus principais momentos políticos, marcado


por intensas lutas sociais pela redemocratização do país e por grandes e
importantes discussões política e científica de redefinição dos rumos da Saúde
Pública brasileira. Sem dúvida, a noção de ‘determinação social da saúde’ foi uma
ferramenta teórica de valiosa importância dos movimentos sociais na luta pela
garantia dos direitos, dentre eles, o direito à saúde (ESCOREL, NASCIMENTO,
EDLER, 2005).

A leitura dessas referências bibliográficas também foi sucedida pela realização de


fichamento do material, no intuito de captarmos como foi construída a noção de
‘determinação social da saúde’ no interior da Saúde Pública brasileira.

Desde a virada do século, especialmente nos países do Norte, houve um processo


de revitalização da temática da determinação social da saúde, através da
atualização de suas raízes “neo-durkheimianas” (ALMEIDA-FILHO, 2004; 2010).
Nessa atualização:

[...] o vetor central da produção teórica e empírica sobre determinação da


saúde, doença e cuidado desloca-se para temas clássicos da pesquisa
social em saúde, tais como estresse, pobreza e miséria, exclusão e
marginalidade, incorporados à pauta de investigação como efeito de
desigualdades sociais (ALMEIDA-FILHO, 2010, p.13).

A retomada da discussão sobre a determinação social da saúde na epidemiologia


social contemporânea ocorre no sentido de fomentar um debate quase monopolista
do tema ‘desigualdades’, por meio da constatação de importantes disparidades nas
condições de vida, no acesso diferenciado a serviços assistenciais e na distribuição
desigual de recursos de saúde (ALMEIDA-FILHO, 2010).

É nesse contexto que a problemática da determinação social da saúde é capturada


pelos organismos políticos internacionais, especialmente através da criação de uma
comissão pela Organização Mundial da Saúde – OMS - em 2005, com a proposta de
combater as desigualdades em saúde geradas pelos ‘determinantes sociais da
16

saúde’. Na América Latina, o Brasil ‘importa’ de prontidão esse discurso, criando


uma comissão nacional especialmente para discutir estratégias que fossem capazes
de viabilizá-lo em sua agenda política.

Assim, iniciamos a pesquisa documental no sentido de recolher fontes capazes de


auxiliar-nos a estabelecer uma caracterização, ainda que geral, do atual campo de
discussão política sobre a determinação social da saúde, agora vulgarizado sobre a
chancela de ‘determinantes sociais da saúde’. Foi o momento de buscarmos
informações em portais oficiais nacionais e internacionais – Ministério da Saúde,
Organização Mundial da Saúde, portais específicos de ambas as comissões – sobre
o atual discurso político dos determinantes sociais da saúde.

A análise documental mostrou-se relevante por permitir-nos o acesso a documentos


de ‘segunda mão’ (GIL, 2009), que de alguma forma já foram analisados: os
relatórios de pesquisa da Comissão dos Determinantes Sociais da Saúde da OMS e
da Comissão Nacional (brasileira) sobre os Determinantes Sociais da Saúde2. São
importantes ainda porque possibilitam resgates históricos relevantes aos temas de
pesquisas, colaboram com a reflexão crítica a respeito dos mesmos e com
compreensão da realidade atual (GIL, 2009).

Também visitamos o site do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – Cebes. A


visita ao site nos possibilitou o acesso a fontes importantes sobre a temática,
principalmente a Revista Saúde em Debate (v.33, n.83, 2009) e um livro
(‘Determinação Social da Saúde e Reforma Sanitária’). Ambas as publicações foram
dedicadas especialmente à temática da ‘Determinação Social da Saúde’. Outra fonte
de informação em base de dados virtual que fez parte do percurso - no sentido de
recolher dados para entendermos a discussão política sobre a temática - foi o site da
Associação Latino-Americana de Medicina Social – Alames.

2
Vale assinalar que, após o processo de qualificação dessa pesquisa, fizemos contato telefônico com um dos
membros da Comissão Nacional sobre os Determinantes Sociais da Saúde - o prof. Dr. Jairnilson da Silva Paim -
no sentido de buscarmos informações sobre as repercussões políticas da inserção desta temática e, dessa forma,
guiarmos a pesquisa para a exploração do campo das políticas públicas. No entanto, viemos a saber que a
comissão não mais existia e que essa temática se inseriu, de uma forma bastante fluida, nas ações ministeriais de
promoção da saúde. Assim, optamos por explorar a temática a partir de uma perspectiva teórica.
17

Todas essas plataformas nos possibilitaram o acesso a documentos importantes


(decretos, relatórios, publicações) sobre a temática e a sua repercussão político-
científica na atualidade.

Logo após, realizamos uma pesquisa bibliográfica nas bases de dados da Literatura
Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde –LILACS – e da Scientific
Electronic Library Online – SciELO - no intuito de buscar estudos científicos sobre a
temática a partir de uma abordagem teórica.

A pesquisa no banco de dados da LILACS foi antecedida pela leitura de seu tutorial
no intuito de entendermos o processo de busca dos artigos. Constatamos que os
‘Determinantes Sociais da Saúde’ faziam parte dos ‘Temas em Destaque’ – temas
definidos como prioritários em saúde pela OPAS/OMS -, logo em sua página inicial.
Como faz parte de um tema prioritário, o portal oferece uma busca ampla (1.706
artigos), quando se clica no link ‘Determinantes Sociais da Saúde’. Tal busca ampla
deve-se à ausência de um descritor indexado específico, ou seja, não existe
descritor tanto para ‘determinantes sociais da (de) saúde’ quanto para ‘determinação
social da (de) saúde’. Assim, o sistema oferece uma combinação variada de
descritores, tais como “educação em saúde”, “justiça social”, “participação
comunitária”, etc. Nesse sentido, mesmo sabendo da inexistência de tal descritor,
fizemos uma procura pelo termo, visto que o que nos interessava era uma
abordagem teórica sobre essa noção e não uma abordagem baseada em dados
empíricos.

Usamos os termos ‘determinantes sociais da saúde’, ‘determinantes sociais de


saúde’, ‘determinação social da saúde’ e ‘determinação social de saúde’. Aplicamos
os seguintes filtros: texto completo disponível, país/região como assunto: Brasil,
idioma: português. Além disso, o recorte temporal dos artigos publicados foi feito
entre os anos de 2008 a 2013, período que marca as repercussões científicas da
retomada do debate sobre a ‘determinação social da saúde’ na agenda política. Dos
67 textos resultantes da busca inicial, foram lidos os títulos no intuito de selecionar
aqueles que interessavam aos objetivos da pesquisa, o que resultou em cinco
textos: 3 artigos, 1 livro e 1 relatório. Esses textos serviram de ponto inicial para
18

exploração do campo teórico da determinação social da saúde, assim como para a


busca de outras referências bibliográficas.

No banco de dados da Scielo, utilizamos os termos: ‘determinantes sociais de


saúde’, ‘determinantes sociais da saúde’, ‘determinantes sociais’, ‘determinação
social’, ‘determinação da saúde-doença’. Esses termos foram combinados através
do operador ‘OR’. A busca recuperou treze artigos situados período de 2004 a 2012.
O corte temporal nessa base de dados foi aumentado para possibilitar a inclusão de
um artigo que trazia contribuições importantes sobre a temática e que também se
mostrava fonte para a busca de outras referências bibliográficas. Após leitura dos
títulos e resumos, obtivemos apenas quatro artigos que pudessem responder aos
interesses desta pesquisa (abordagem da determinação social da saúde a partir de
uma perspectiva teórico-política). Esses artigos nos ajudaram na exploração da
discussão teórico-política da determinação social da saúde, assim como
possibilitaram a busca de outras fontes bibliográficas.

Tanto a pesquisa documental, como a bibliográfica possibilitaram-nos o


entendimento de que o debate atual sobre o processo de determinação social da
saúde ocorre predominantemente de forma fragmentada, especialmente sobre a
denominação de ‘determinantes sociais da saúde’, uma vez que o termo
‘determinantes’ pressupõe o processo de determinação. Tal constatação acabou por
nos ‘provocar’ a pesquisar, no interior das ciências sociais, correntes de pensamento
que pudessem dialogar de uma forma crítica com essa atual configuração científica
sobre a temática.

Diante desse cenário multifacetado, entendemos essa configuração, do ponto de


vista epistemológico, como um ‘campo’: o campo dos determinantes sociais da
saúde. Esse entendimento se sustenta no conceito de campo segundo o referencial
produzido por Bourdieu (2004), que entende ser esse um espaço particular e
heterogêneo, aonde se manifestam relações de poder através de uma infindável
correlação de forças entre seus agentes na busca de sua conservação ou
transformação; “[...] um mundo social como os outros, mas que obedece a leis
sociais mais ou menos específicas” (BOURDIEU, 2004, p.20).
19

Recorremos, então, à pesquisa bibliográfica em fontes das ciências sociais, a partir


de duas correntes teóricas distintas - porém não excludentes e não competitivas. A
primeira corrente de pensamento focou autores que seguem a perspectiva da
sociologia clássica, mais especificamente da sociologia crítica (pensamento
marxista) e que problematizam o social a partir da ‘questão social’, além de trazerem
uma releitura da ‘determinação social da saúde’. A segunda corrente de pensamento
focou autores da sociologia contemporânea (novas correntes de pensamento dentro
da sociologia) que problematizam o ‘social’ a partir de sua segmentação e
disciplinarização científica, assim como trazem dilemas postos na
contemporaneidade que também atualizam o debate sobre a determinação social da
saúde. Ambas as correntes teóricas foram apropriadas no sentido de buscarmos
elementos de análise, categorias e conceitos que pudessem sustentar uma crítica ao
campo da forma como ele aparece hegemonicamente como paradigma científico na
atualidade.

Dessa forma, emergiram os objetivos dessa pesquisa:

• Caracterizar a noção de ‘determinação social’ a partir do positivismo nas


ciências sociais;

• Pesquisar a construção da noção de ‘determinação social da saúde’ na


Saúde Pública brasileira;

• Descrever perspectivas de análises sobre o campo dos determinantes sociais


da saúde a partir da polaridade entre a ‘saúde’ e o ‘social’.

Assim, esta dissertação foi organizada em três capítulos, que agora apresentamos.
O primeiro capítulo foi dedicado a apresentar a construção da noção de
determinação social a partir do positivismo nas ciências sociais. Inicialmente
apresentamos os pressupostos teórico-filosóficos sobre os quais a ciência moderna
se assentou e que construíram a base da corrente positivista. Após, caracterizamos,
em linhas gerais esta corrente de pensamento, para, finalmente, interpretarmos a
noção de ‘determinação social’ a partir de Durkheim – uma das principais análises
dentro do campo das ciências sociais.
20

O segundo capítulo disserta sobre a construção da noção de determinação social da


saúde a partir da crítica latino-americana da década de 70 ao discurso hegemônico
do período sobre o processo saúde-doença. O pensamento latino-americano teve
grande produção teórico-política brasileira, em um lugar de vanguarda quando
comparado a todos os países da América do Sul e Central. Entre outras agendas, a
noção de determinação social da saúde, oriunda dos movimentos sociais, pautou a
reforma sanitária brasileira, colocando-se como cerne do debate. Noção essa que
sustentou a bandeira política defendida pelo movimento sanitário na luta por
melhores condições de vida e de saúde no Brasil.

O terceiro capítulo apresenta o campo dos determinantes sociais da saúde para, em


seguida, trazer categorias do pensamento da sociologia crítica e da sociologia
contemporânea, de forma a oferecer os elementos de análise para a crítica à forma
como hegemonicamente vem se pautando o discurso no interior desse campo. Vale
ressaltar que ambas as perspectivas apresentam-se de forma não excludentes, não
hierárquicas e não concorrentes.

Finalizamos tecendo considerações que, longe de serem finais, sinalizam para a


necessidade de uma nova perspectiva de partida para os estudos atuais no campo
dos determinantes sociais da saúde.
21

2. DA CIÊNCIA ARISTOTÉLICA À CIÊNCIA MODERNA: A CONSTRUÇÃO DE


UMA NOVA VISÃO DE MUNDO

Na tentativa de proporcionar uma maior compreensão da noção de ‘determinação


social’ no interior das ciências sociais, optamos por um percurso que nos permita
situar a construção desta noção a partir do processo histórico caracterizado pela
revolução científica. Entendemos que, a partir dela, aconteceram as grandes
transformações que implicaram em um novo entendimento de ciência e no
estabelecimento de uma nova visão de mundo pelos cientistas (HENRY, 1998;
PORTO; PORTO, 2008; ARANHA; MARTINS, 2003; CHAUÍ 2008). Segundo Henry
(1998, p.13), a revolução científica pode ser entendida como o período estabelecido
pelos historiadores da ciência, no qual “de maneira inquestionável, os fundamentos
conceituais, metodológicos e institucionais da ciência moderna foram assentados
pela primeira vez”. Na temporalidade, o século XVII é visto como o foco principal
desse processo (HENRY, 1998); no entanto, o processo de desconstrução da visão
de mundo antiga se inicia ainda no século XV (PORTO; PORTO, 2008).

Assim, optamos por iniciar o desenvolvimento deste estudo trazendo, ainda que de
forma sucinta e sintética, as principais perspectivas da ciência antiga e as profundas
transformações na visão de mundo ocorridas com o advento da ciência moderna,
cuja máxima expressão se deu com a previsibilidade e com a formulação do
princípio do determinismo, segundo o qual, tudo o que acontece na natureza tem
uma causa e determina um efeito, e que cabe à ciência a descoberta destas
relações de causa e efeito. Vale ressaltar que, neste estudo, chamamos de ciência
antiga à ciência iniciada na Grécia Antiga por Aristóteles (ciência aristotélica) e que
permaneceu como base para o desenvolvimento da escolástica durante
praticamente toda a Idade Média (ARANHA; MARTINS, 2003; PORTO; PORTO,
2008). Apesar de nesse período terem ocorrido expressões diversas de produções
intelectuais, a escolástica não rompe com a visão de mundo estabelecida pela
ciência aristotélica, ainda que assumindo contornos específicos e coerentes com os
interesses da Igreja (ARANHA; MARTINS, 2003 PORTO; PORTO, 2008). É
importante ressaltar que traremos algumas concepções da ciência aristotélica a
partir do desenvolvimento de seus pensamentos no campo da física e da
astronomia. Segundo Porto e Porto (2008), a física e a astronomia de Aristóteles
22

permaneceram como os únicos pensamentos sistemáticos formulados a respeito


dos fenômenos físicos e da estrutura do Universo, desde o período que se estende
do século IV a.C. até o século XVI.

Após trazermos algumas rupturas estabelecidas a partir da revolução científica no


campo da física e da astronomia, apontaremos o racionalismo e o empirismo como
as principais correntes filosóficas que sustentaram os pressupostos da ciência
moderna, pressupostos esses que foram estabelecidos a partir das ciências
naturais, servindo posteriormente para a constituição das ciências sociais.

O positivismo nas ciências sociais, do final do século XVIII e início do século XIX,
será abordado neste percurso como a corrente de pensamento que, a partir desses
pressupostos, desenvolveu uma das primeiras proposições teóricas sobre o ‘social’
e que estendeu para o domínio do ‘social’ a visão de mundo determinista. Enfim,
traremos a interpretação da noção de ‘determinação social’ a partir da perspectiva
teórica de Durkheim; esse que, ancorando-se no positivismo, foi um dos principais
responsáveis por trazer o rigor do método científico para o interior das ciências
sociais na investigação dos fenômenos sociais.

2.1 A CIÊNCIA ARISTOTÉLICA

É importante situar a ciência aristotélica dentro de sua cosmologia filosófica. Para os


gregos, não havia distinção entre ciência e filosofia, ou seja, ambas estavam
interligadas, sendo o filósofo o sábio que refletia sobre todos os aspectos da vida
humana. Nesse sentido, podemos entender a ciência como parte integrante dos
grandes sistemas filosóficos. “Na ordem do saber estipulada por Platão, o homem
começa a conhecer pela forma imperfeita da opinião (doxa), depois passa ao grau
mais avançado da ciência (episteme), para só então ser capaz de atingir o nível
mais alto do pensamento filosófico” (ARANHA; MARTINS, 1993, p.72). Dessa forma,
a ciência aristotélica era marcada pelo seu interesse na explicação dos fenômenos
naturais a partir da busca pelo “por quê?”, enveredando pela procura das causas
23

destes fenômenos e desembocando na discussão metafísica3 da essência dos


corpos. Além disso, ela restringia o conhecimento ao saber contemplativo, sendo
marcadamente uma ciência desligada e desinteressada pela técnica (CHAUÍ, 1995;
2008; ARANHA; MARTINS, 2003).

Para uma melhor visualização, trazemos as principais idéias da ciência antiga a


partir da física e da astronomia desenvolvidas por Aristóteles. A astronomia
aristotélica era profundamente impregnada pela noção de ordem, na qual os corpos
encontravam-se dispostos de modo bem determinado conforme sua natureza
(PORTO; PORTO, 2008; ARANHA; MARTINS, 1993). Ela era caracterizada, em
linhas gerais, pela concepção de um universo finito e marcado pela distinção entre
dois mundos: o mundo terrestre e o celeste, cujas diferenças eram dadas pelo tipo
de substância, de matéria e de forma dos seres de cada uma delas. Nesse universo
há uma hierarquização entre os mundos, onde a natureza do mundo celeste é
considerada superior à natureza da Terra.

Tanto a distinção quanto a hierarquização entre os dois mundos serviu como base
não apenas para a sustentação do modelo geocêntrico, mas também estabeleceu a
distinção entre a natureza da astronomia – que se reservava ao estudo do mundo
celeste - e da física - reservada ao estudo dos corpos em movimento no mundo
terrestre (ARANHA; MARTINS, 1993).

A física aristotélica, profundamente marcada pelas noções metafísicas,


caracterizava-se por ser uma ciência que tratava do ser em movimento: “a ciência do
filósofo natural [a física] ocupa-se de coisas que contêm em si mesmas uma fonte de
movimento” (ARISTÓTELES, 2006, p.278). O movimento era entendido como
transformação, mudança e explicado a partir de alterações qualitativas, quantitativas
e locais (ARAUJO, 2009).

3
Vale registrar que a palavra ‘metafísica’ vem do grego, onde “meta” quer dizer “depois”; logo
metafísica significa “depois da física”. Ela busca explicar, através de conceitos, o ‘ser em geral’.
Apesar da menção à metafísica de Aristóteles ser costumeira, ele não usava este termo, mas sim
usava a denominação de Filosofia Primeira. O termo metafísica é posterior a ele, surgindo no século I
a.C. quando Andronico de Rodes, ao classificar as obras aristotélicas, colocou a Filosofia Primeira
depois das obras da Física de Aristóteles (CHAUÍ, 1995; ARANHA. MARTINS, 1993).
24

Assim, entendendo que “[...] a mudança é de quatro tipos, que dizem respeito à
substância, ou à qualidade, ou à quantidade, ou ao lugar [...]” (ARISTÓTELES, 2006,
p. 294), Aristóteles estuda diferentes tipos de movimento: o local, que se refere ao
lugar ocupado pelo ser na natureza; o qualitativo, pelo qual o corpo tem uma
qualidade alterada (uma criança que aprende a ler), o quantitativo, no qual ocorre
uma transformação em termos de alterações de tamanho (uma criança que cresce
em altura); a mudança substancial, pela qual um ser começa a existir – geração - ou
deixa de existir – corrupção - (ou seja, a mudança da essência): passagem do não-
ser ao ser e vice-versa (ARISTÓTELES, 2006; ARANHA, MARTINS, 1993).

Especificamente em relação ao movimento local, ele poderia ser de dois tipos: o


movimento natural e o movimento violento. O movimento natural era aquele em que
os corpos, deixados por si, ou seja, na ausência de forças aplicadas sobre eles,
realizariam movimentos espontâneos buscando retornar às suas posições naturais:
os elementos mais pesados (nos quais predomina o elemento terra e água)
possuem o centro da Terra como lugar natural e, por isso, movem-se naturalmente
em direção a ele, tendo a queda como o movimento; enquanto os mais leves (ar e
fogo) tenderiam a mover-se naturalmente para cima, afastando-se do centro. Assim,
as qualidades materiais dos corpos definiriam os seus lugares naturais e os corpos
tenderiam para esses locais de acordo com a sua natureza (ARANHA; MARTINS,
1993; 2003).

Diferentemente do movimento natural, que possuía como fonte a natureza do próprio


corpo, os corpos poderiam ser submetidos a uma força externa, a movimentos
violentos, ou seja, aqueles que eram contrários à sua natureza e que os impedia de
alcançar o seu lugar natural. Por exemplo, quando se lança uma pedra para cima,
imprime-se sobre ela um movimento violento, já que a força a permanecer no ar,
embora o seu lugar natural seja a terra e seu movimento natural seja a queda.
Assim, no movimento violento, uma vez afastado de seu lugar próprio, todo corpo
tendia a retornar a ele (ARANHA; MARTINS, 1993; 2003).

Essa descrição do movimento local ressalta uma característica importante da física


aristotélica, que é aquela que se refere à fonte do movimento. O movimento dos
corpos poderia ser buscado por um princípio interno, já que cada corpo traria em si o
25

fundamento de seu modo de existir, aparecendo segundo sua própria natureza: a


capacidade de adquirir movimento era imanente ao corpo, não sendo necessária a
atuação de agentes externos para que esse movimento acontecesse (ARAUJO,
2009).

Sendo um princípio interno do corpo, os seus movimentos e mudanças dependiam


da qualidade de suas matérias e da quantidade com que os quatro elementos
materiais - terra, água, ar e fogo – existiam combinando uns com os outros no corpo.
Assim, na física aristotélica, o estudo do movimento dos objetos físicos e naturais se
dava a partir de suas características qualitativas; ou seja, era baseado não somente
nas qualidades perceptivas dos corpos (leves, pesados, líquido, sólido, etc.), como
também nas distinções qualitativas do espaço (alto, baixo, perto, longe, etc.). Além
disso, ela procurava investigar e caracterizar o objeto físico ou natural pela
propriedade de existir e operar independentemente da presença, da vontade e da
ação humanas; sendo o objeto físico visto como um ser em movimento, em devir, e
que sofria alterações não apenas qualitativas, mas também quantitativas e locais.
(CHAUÍ, 1995; 2008).

Outra concepção aristotélica que marcava profundamente a sua investigação sobre


a natureza está inscrita na sua teoria sobre as quatro causas, que é explicitada tanto
na metafísica quanto na física aristotélicas (RELAE, 2005; ARISTÓTELES, 2006).
São elas: a causa formal, a causa material, a causa eficiente e a causa final. A
causa formal é a forma ou a essência que as coisas possuem - a estrutura de uma
estátua de mármore, por exemplo. A causa material é aquilo de que é feita uma
coisa, ou seja, a sua matéria – ex: carne e osso são a matéria dos animais, a
matéria da estátua de mármore é o mármore. A causa eficiente ou motora é aquilo
de que provém a mudança e o movimento das coisas – ex: o escultor é a causa
eficiente que faz o mármore se transformar em uma estátua de mármore. A causa
final constitui a finalidade, ou seja, o propósito, o fim das coisas e das ações
(REALE, 2005). Uma importante característica dessas causas está relacionada à
sua localização em relação à coisa. Enquanto as causas formal e material são
intrínsecas à coisa, a causa eficiente é externa a ela (REALE, 2005).
26

2.2 A CIÊNCIA MODERNA

O processo de transformação na forma de conhecer e abordar a compreensão do


mundo que culminou na Revolução Científica não pode ser considerado obra de
autoria única. Como a própria palavra ‘processo’ indica, é fruto de uma mudança
gradual, em que vários pensadores e estudiosos reconhecidos historicamente vêm
dar continuidade aos pensamentos introduzidos pelos seus predecessores.

Porto e Porto (2008) consideram que o primeiro grande marco no processo de


desconstrução da concepção cosmológica de Aristóteles está situada no alvorecer
da Renascença, ainda no século XV. A filosofia do cardeal Alemão Nicolau de Cusa,
ao declarar que o universo não possuía qualquer centro, produziu um significativo
abalo na ciência aristotélica, já que, contrariamente ao que Aristóteles afirmava a
respeito da Terra, nenhum corpo ocuparia posição privilegiada nesse universo. No
entanto, o abalo definitivo do modelo cosmológico aristotélico vem com as
descobertas de Nicolau Copérnico e a hipótese heliocêntrica proposta por ele,
segundo a qual o Sol passava a ocupar o centro do Universo, enquanto a Terra e os
demais planetas giravam ao seu redor. Além disso, Copérnico rompe com a
separação essencial entre a Terra e o Céu, presente no pensamento aristotélico. Um
dos adeptos de Copérnico, Giordano Bruno, dá um passo à frente na sua teoria
heliocêntrica, ao romper com a idéia de um Universo finito. Assim, a concepção de
um Cosmo aristotélico rigidamente ordenado e hierarquizado metafisicamente
começa a ser destruída (PORTO; PORTO, 2008).

No, entanto, é com Galileu que as transformações no campo da física ganham uma
maior força e amplitude, sendo considerado por Aranha e Martins (2003, p. 178) “o
responsável pela superação do aristotelismo e pelo advento da moderna concepção
de ciência”. Ele é o precursor da matematização da natureza a partir da busca pela
exatidão dos corpos. Ou seja, é com ele que os objetos físicos passam a ser
investigados não mais pela definição de suas propriedades perceptivas (cor, odor,
sabor), mas pelas suas propriedades objetivas (massa, volume, figura), que se
mostram gerais e válidas para todos eles. Há uma passagem, então, da descrição
subjetiva dos objetos para sua descrição objetiva. O corpo físico deixa de ser uma
abstração, de poder ter uma “representação subjetiva” e passa a ser descrito pelas
27

suas medidas objetivas. É também com Galileu que o movimento dos corpos
começa a ser desconsiderado a partir de suas caracterisiticas qualitativas (por,
exemplo: movimento natural dos corpos pesados e leves), reduzindo-se às suas
dimensões quantitativas:

Ao explicar ‘como’ os corpos caem (e não ‘porquê’ caem), Galileu descobre


a relação entre o tempo que um corpo leva para percorrer o plano inclinado
e o espaço percorrido. Repetidas experiências confirmam as relações
constantes e necessárias, donde decorrre a lei da queda dos corpos,
traduzida numa forma geométrica (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 179 –
grifo dos autores).

Galileu também estabelece profundas mudanças em relação ao valor da ciência,


que começa a deixar de ser apenas contemplativa para ser ativa. Dando um grande
mérito à observação e à experimentação, ele também acabou por inventar e
aprimorar uma série de instrumentos, como lentes, termômetros, relógios,
telescópios, bússolas (ARANHA; MARTINS, 2003; PORTO; PORTO, 2008). A
valorização da técnica está ligada à sua preocupação na descrição quantitativa dos
fenômenos e na busca por sua maior precisão, o que significa dizer medição. Além
disso, é Galileu que, ao relacionar a hipótese heliocêntrica de Copérnico às leis da
mecânica, liga a ciência da astronomia à física, dando início à física moderna
(ARANHA; MARTINS, 2003). Aqui ocorre mais uma ruptura com a ciência
aristotélica, que diferenciava as leis da física e as da astronomia, já que os corpos
celestes possuiam uma natureza diferente daquela presente nos corpos terrestres.

No entanto, é com Newton que ocorre “a maior síntese científica sobre a natureza do
mundo físico” (ARANHA; MARTINS, 2003, p. 181), a partir do estabelecimento de
suas três leis da mecânica e a lei da gravitação universal, expressas em equações
matemáticas e que possibilitaram a maior universalização dos fenômenos físicos. A
lei da gravitação universal foi capaz de fornecer uma explicação unificada, em uma
única equação matemática, para as questões relacionadas ao movimento dos
planetas e da queda dos corpos nas proximidades da superfície terrestre (PORTO;
PORTO; 2008). As três Leis da Mecânica possibilitaram a formulação ‘exata’ do seu
principal problema: o movimento. A primeira lei, também conhecida como princípio
28

da inércia4 trouxe, de forma definitiva e universal, radicais transformações na


concepção de movimento. Segundo esta lei, “todo corpo permanece em seu estado
de repouso ou de movimento uniforme em linha reta, a menos que seja obrigado a
mudar seu estado por forças impressas nele” (NEWTON, 1987, p.162). Assim,
abandona-se a concepção aristotélica de movimento como mudança/transformação,
que se reduz a uma concepção restrita de deslocamento espacial de um corpo, ou
seja, a modificação da sua posição em relação ao espaço: “O movimento deixa de
significar qualquer processo de transformação ao qual os corpos estejam
submetidos, em razão de suas naturezas ou em vista de uma finalidade a ser
cumprida” (PORTO, PORTO, 2008, p. 4061-8). A busca pela sua causa (do ‘por
quê?’ para o ‘como?’) reduz-se à causa eficiente – excluindo-se as causas formal,
material e final - justamente aquela causa que possui a característica de ser distinta
e exterior ao corpo; ou seja, a causa do movimento passa a ser buscada a partir de
uma fonte que é sempre externa ao corpo (ARANHA, MARTINS, 2003; PORTO;
PORTO, 2008). Além disso, o movimento passa a ser compreendido de uma forma
mecânica, tornando-se “um estado, determinado de fora por agentes físicos, através
de mecanismos de causalidade expressos por leis matemáticas e impessoais”
(PORTO; PORTO, 2008, p. 4061-8).

Essa mudança de concepção de movimento dos corpos está atrelada à mudança no


próprio significado de natureza: “Natureza não é mais o princípio interno de que
resulta o movimento do corpo; natureza, pelo contrário, é o modo da multiplicidade
das variáveis, relação de posição dos corpos [...]” (HEIDEGGER, 1992 apud
ARAUJO, 2009, p. 95). Uma vez que a nova física deixa de lado as características
qualitativas dos corpos – deixando de lado o ‘princípio interno’ - assim como
reduzindo o movimento de um corpo ao seu deslocamento no espaço – com
ascensão para o conceito de posição – a natureza, antes compreendida como um
aspecto interno e qualitativo do corpo físico, passa a ser vista a partir de um
‘quantum’ entre relações de posição (ARAUJO, 2009). O espaço heterogêneo dos
lugares naturais, ao ser submetido à mensuração, é homogeneizado, despojado de

4
É importante ressaltar que foi com Galileu que o princípio de inércia foi retomado de forma decisiva. Porto e
Porto (2008, p. 4061-5) afirmam que “Galileu, através do conceito de inércia, mostrou que todos os objetos que
se encontram sobre a Terra, bem como os observadores nela situados, estão automaticamente dotados do
movimento do próprio planeta e, portanto, este movimento seria imperceptível para qualquer desses
observadores”. É com Newton que este princípio é elevado ao patamar de lei universal da mecânica.
29

suas qualidades, tornando-se um “espaço abstrato, representável através de


conceitos geométricos” (PORTO; PORTO, 2008, p. 4061-8).

Assim, a física newtoniana passa a ser compreendida como uma mecânica


universal, já que passa a restringir o estudo da natureza à articulação de um
complexo de corpos formados em diferentes proporções de movimento e repouso. A
mecânica newtoniana transforma o mundo da matéria em uma máquina, cujas
operações se podem determinar exatamente por meio de leis físicas e matemáticas.
Esta idéia de mundo-máquina irá se transformar na grande hipótese universal da
época moderna, o mecanicismo (SANTOS, 2008; CHAUÍ, 2008).

As corroborações da mecânica newtoniana e o sucesso de suas aplicações


tecnológicas influíram de forma decisiva para o fortalecimento da concepção de
mundo determinista (SILVEIRA, 1993). Nesta concepção, a natureza é entendida
pela explicação de relações de causa e efeito, vistas como necessárias, cabendo à
ciência a descoberta dessas relações de causalidade. Essa concepção determinista
afirma que sempre será possível determinar a causa de um dado fenômeno, assim
como seus efeitos, ou seja, “todos os acontecimentos do mundo são pré-
estabelecidos ou que o futuro é fixo como o passado” (SILVEIRA, 1993, p. 137).
Segundo Aranha e Martins (2003), o mundo explicado por esta concepção é o
mundo do necessário, daquilo que tem de ser.

Segundo Tambellini e Schütz (2009, p. 376), o determinismo pode ser entendido, em


termos filosóficos, como “uma corrente metafísica que afirma que todo fenômeno
está determinado necessariamente pelas circunstâncias ou condições em que se
produz e, portanto, os atos e as ações que envolvem os indivíduos não são
resultado da livre escolha, mas de determinações que o condicionam”.

Para Chauí (1995), foi a partir do século XIX, com Laplace, físico e astrônomo
francês, que houve a formulação do determinismo como um principio universal da
ciência e uma doutrina sobre a natureza:

Devemos considerar o estado presente do Universo como efeito de seu


estado passado e como causa daquilo que virá a seguir. Uma inteligência
que, num único instante, pudesse conhecer todas as forças existentes na
30

Natureza e as posições de todos os seres que nela existem poderia


apresentar numa única fórmula uma lei que englobaria todos os
movimentos do Universo, desde os maiores, até os mínimos e invisíveis.
Para ela, nada seria incerto e, aos seus olhos, o passado, o futuro e o
presente seriam um único e só tempo (LAPLACE apud CHAUÍ, 1995, p.
264).

Parte daí tanto a afirmação de um princípio universal de causalidade restrita, que


aspira à formulação de leis, a partir de regularidades observadas, quanto a idéia de
previsibilidade absoluta dos fenômenos naturais, uma idéia que se transformará em
uma das principais apostas da ciência moderna e que tem como pressuposto a idéia
de ordem e estabilidade do mundo. Essa idéia de previsibilidade sustentará a crença
da ciência moderna no desenvolvimento da tecnologia como a possibilidade de
intervir na natureza das coisas e dos fenômenos:

Duas afirmações mostram a diferença dos modernos em relação aos


antigos: a afirmação do filósofo inglês Francis Bacon, para quem “saber é
poder”, e a afirmação de Descartes, para quem “a ciência deve tornar-nos
senhores da natureza”. A ciência moderna nasce vinculada à idéia de
intervir na Natureza, de conhecê-la para apropriar-se dela, para controlá-la
e dominá-la (CHAUÍ, 1995, p. 255).

As transformações ocorridas a partir da física provocaram indagações e reflexões no


campo do conhecimento, que culminaram na ruptura da ciência com a filosofia. Além
disso, a ciência moderna vai se caracterizar pela fragmentação do saber; ou seja, as
ciências, a partir daí, vão se tornando autônomas, o que despertou a crescente
preocupação e necessidade de classificá-las, cada uma delimitando o seu campo de
saber específico (ARANHA. MARTINS, 2003; CHAUÍ, 2008). Da mesma forma, o
princípio do determinismo, inicialmente formulado no campo da física, serviu como
ponto de partida para que a ciência moderna se estabelecesse, inicialmente com as
ciências naturais (física, biologia, química) e, mais tarde, como veremos, sendo
tomado como um fundamento para a compreensão dos fenômenos humanos –
positivismo e na própria constituição das ciências sociais. (ARANHA; MARTINS,
2003; SILVEIRA, 1993).

A filosofia, que até então se interessava no problema do ‘ser’, volta-se para a


discussão do ‘conhecer’. Desdobrando a reflexão cujo pano de fundo é a existência
da ciência, a questão do método será uma de suas principais preocupações
31

(ARANHA; MARTINS, 2003). As duas correntes filosóficas que irão pensar as


questões relativas aos caminhos que levam ao conhecimento e que darão
sustentação à ciência moderna, estabelecendo os seus pressupostos são: o
racionalismo e o empirismo (HENRY, 1998).

A corrente racionalista tem sua origem a partir das reflexões e indagações de


Descartes - que é considerado o “pai da filosofia moderna” - sobre o problema do
conhecimento. A existência do ser que pensa - “Penso, logo existo” - é a afirmação
primeira para a construção de toda a sua filosofia. A partir da dúvida metódica, o
filósofo, segundo o pensamento de Descartes, deveria sair em busca das verdades
do mundo no eterno esforço de conhecer o objeto a partir de uma realidade externa
ao pensamento (ARANHA; MARTINS, 2003). O percurso realizado por Descartes é
marcado pela valorização da razão, do entendimento e do intelecto. Acentuando o
caráter universal e absoluto da razão, Descartes dá importância a um método de
pensamento que garanta não somente que as representações da razão sejam
exteriores ao sujeito pensante, mas também que correspondam aos objetos a que
se referem. É a ele que a ciência moderna deve um de seus principais pressupostos:
a objetividade. Além disso, estabelece o ideal matemático da ciência, ou seja, a
aplicação da racionalidade matemática na busca do conhecimento objetivo da
realidade das coisas (ARANHA; MARTINS, 2003).

A corrente racionalista pauta-se, então, em uma concepção matemática do


conhecimento, a partir do estabelecimento de um método dedutivo, que afirma ser
capaz de provar a verdade necessária e universal de seus enunciados a partir da
definição do objeto e de suas leis e da posterior dedução de suas propriedades,
efeitos e previsões. Estabelece como fundamentais para o processo de investigação
os procedimentos de análise – nos quais a realidade pesquisada deve ser recortada
em tantas partes quanto forem necessárias para melhor explicá-la – e de síntese,
que leva à reconstituição do todo que foi previamente decomposto pela análise
(MARCONI; LAKATOS, 2011). Entende a ciência a partir de uma “unidade
sistemática de axiomas, postulados e definições, que determinam a natureza e as
propriedades de seu objeto, e de demonstrações, que provam as relações de
causalidade que regem o objeto investigado” (CHAUÍ, 2008, p. 221). Segundo esta
32

corrente, o objeto científico corresponde a uma representação própria e verdadeira


da realidade das coisas e possui uma natureza matemática.

A corrente empirista, que teve Bacon como um de seus principais representantes, ao


contrário do racionalismo, enfatiza o papel da experiência sensível no processo de
conhecimento. A palavra empirismo vem do grego empeiria, que significa
“experiência”. Ela possui no método indutivo o caminho para a interpretação dos
fatos. Esse método é baseado em observações e experimentos que permitem
estabelecer induções e que, ao serem completadas, oferecem a definição do objeto,
suas propriedades e suas leis de funcionamento (CHAUÍ, 2008).

Essas duas concepções de ciência, embora pautadas em métodos bastante


distintos, compartilhavam um pressuposto único: o de que a teoria científica era uma
explicação e uma representação verdadeira da própria realidade, tal como ela é em
si mesma. Juntas, elas estabeleceram os pressupostos filosóficos que por mais
tempo influenciaram e pautaram a produção de conhecimento da ciência moderna
(SANTOS, 2008). Um deles é a distinção fundamental, que se estabelece a partir de
uma ruptura, entre o conhecimento científico e o senso comum (SANTOS, 2008).
Essa ruptura está ligada ao estabelecimento da própria idéia de ‘método’ - como um
conjunto de regras, normas e procedimentos gerais necessários para a definição ou
construção de objeto de pesquisa - que possibilitaria à ciência sair do campo das
evidências imediatas do objeto, para construir um novo universo conceitual, a partir
da criação de uma linguagem específica e própria, bem distante da linguagem
cotidiana (CHAUÍ, 2008).

Outro pressuposto seria aquele referente ao rigor do conhecimento científico, que


seria alcançado através da observação sistemática e rigorosa dos fenômenos
naturais, tendo as idéias matemáticas como aquelas que tornam possível esse
conhecimento mais profundo e rigoroso da natureza, na medida em que estas se
mostram claras e simples: “A matemática fornece à ciência moderna, não só o
instrumento privilegiado de análise, como também a lógica da investigação, como
ainda o modelo de representação da própria estrutura da matéria” (SANTOS, 2008,
p.26-27). Como já dizia Galileu:
33

A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se


abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode
compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os
quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres
são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos
meios é impossível entender humanamente as palavras: sem eles nós
vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto (GALILEU, 1973, apud
ARANHA; MARTINS, 2003).

Segundo Santos (2008) é a partir desse lugar central ocupado pela matemática na
ciência moderna que derivam duas consequências principais. A primeira delas está
ligada à idéia de que conhecimento científico é sinônimo de quantificação; sendo o
rigor científico vinculado ao rigor das medições. “As qualidades intrínsecas do objeto
são, por assim dizer, desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as
quantidades em que eventualmente se podem traduzir. O que não é quantificável é
cientificamente irrelevante” (SANTOS, 2008, p.27-28).

A segunda consequência está ligada aos procedimentos do método científico que


visem reduzir a complexidade. A lógica científica moderna ampara-se, assim, nos
procedimentos de divisão e classificação do objeto para que seja possível analisá-lo
e determinar, posteriormente, as relações sistemáticas entre as suas partes
(SANTOS, 2008). A progressiva especialização do saber científico, através da
delimitação específica dos diferentes objetos de estudo são a marca da ciência
moderna.

Esta nova racionalidade científica, através do estabelecimento desses princípios e


pressupostos epistemológicos e de suas regras metodológicas estabaleceu um
modelo global de conhecimento que, segundo Santos (2008) pode ser entendido
como um “modelo totalitário”, já que negava o caráter de racionalidade a outras
formas de conhecimento que não se baseassem nestas regras e pressupostos. Esse
autor afirma ser esta a caracterísitca que maior simboliza o paradigma científico
moderno.

Esse modelo de racionalidade desenvolvido a partir da revolução científica e


estabelecido para as ciências da natureza será utilizado nos séculos seguintes como
um modelo igualmente válido para a constituição das ciências sociais. Assim, os
pressupostos filosóficos da ciência moderna, que tiveram inicialmente no
34

racionalismo cartesiano e no empirismo baconiano a formulação dos métodos de


excelência para a investigação dos fenômenos naturais, virão a se condensar no
positivismo (SANTOS, 2008).

2.3 O POSITIVISMO E OS CAMINHOS PARA A CONSTITUIÇÃO DAS CIÊNCIAS


SOCIAIS

Um dos movimentos de pensamento de grande influência na filosofia do século XIX


é o positivismo. Ele surge na Europa, em um contexto histórico marcado pelos
avanços no desenvolvimento das ciências naturais, assim como pelo processo de
industrialização crescente que culminou em conquistas tecnológicas surgidas
através da revolução industrial. Em outros termos, o positivismo tem no
desenvolvimento das ciências e na revolução industrial os pilares do meio
sociocultural que não apenas interpreta como também exalta e favorece (REALE;
ANTISERI, 2005; QUINTANEIRO; BARBOSA, OLIVEIRA, 2003).

O positivismo não apenas exaltava a ciência como o único método capaz de obter
um conhecimento verdadeiro da realidade, como também a colocava como o único
meio em condições de resolver, ao longo do tempo, os problemas humanos e
sociais. A ‘positividade’ da ciência e a fé na racionalidade científica caracterizavam o
combate às concepções idealistas e espiritualistas pela mentalidade positivista
(REALE; ANTISERI, 2005). “O termo positivo designa o real em relação ao
quimérico, a certeza em oposição à indecisão, o preciso em oposição ao vago.”
(ARANHA; MARTINS, 2003, p.141).

Segundo LÖWY (2006) o positivismo possui como pressuposto fundamental a idéia


de que a sociedade mostra-se regulada por leis naturais, leis que se mostram
invariáveis:

A sua hipótese fundamental é de que a sociedade humana é regulada por


leis naturais, ou por leis que têm todas as características das leis naturais,
invariáveis, independentes da vontade e da ação humana, tal como a lei da
gravidade ou do movimento da terra em torno do sol [...] Deste modo, a
pressuposição fundamental do positivismo é de que essas leis que regulam
o funcionamento da vida social, econômica e política, são do mesmo tipo
35

que as leis naturais e, portanto, o que reina na sociedade é uma harmonia


semelhante à da natureza, uma espécie de harmonia natural (LÖWY 2006,
p.38).

A consequência epistemológica decorrente desse pressuposto é a de que os


métodos e procedimentos usados para a pesquisa das sociedades devem ser iguais
aos utilizados pelas ciências naturais. Assim, por mostrarem-se regidas pelos
mesmos métodos das ciências naturais, as ciências da sociedade devem limitar o
estudo dos fenômenos sociais à observação e à explicação causal, tornando
possível interpretar os ‘fatos naturais’ que regem as relações humanas e sociais
(LÖWY, 2006; 2009; RIBEIRO JUNIOR, 1991). Da mesma forma que as ciências
naturais mostram-se objetivas, neutras, livres de juízo de valor, as ciências sociais
também devem proceder, usando o mesmo modelo de objetividade científica. Assim,
a concepção positivista afirma a possibilidade de que as ciências sociais
desvinculem-se de qualquer visão de mundo, de julgamentos de valor, de ideologias,
afastando previamente todos os preconceitos e prenoções (LÖWY, 2006; 2009).

Ao fazer uma interpretação histórico-social do pensamento positivista, Löwy (2006;


2009) mostra as transformações sofridas por ele desde a sua concepção. O autor
entende e analisa a origem desse pensamento a partir de suas explicitações mais
concretas no século XVIII – o Século das Luzes – e mostra que ele surge
inicialmente com uma dimensão utópica e crítica5, em um contexto social marcado
pela luta da burguesia contra a ordem feudal-clerical dominante.

Pode-se dizer que o positivismo moderno é filho legítimo da filosofia das


luzes e, da mesma maneira que esta filosofia, ele tem em um primeiro
período um caráter utópico, quer dizer, é uma visão social do mundo de
dimensão utópica, crítica e até certo ponto, revolucionária (LÖWY, 2006, p.
39-40).

Segundo esse autor, esse período utópico do positivismo pode ser encontrado nas
reflexões filosóficas de Condorcet e Saint-Simon, sendo o primeiro considerado pelo
autor como o ‘pai do positivismo’. Foi Condorcet o primeiro a formular mais
precisamente a idéia de que a ciência da sociedade, para se tornar uma ciência
verdadeiramente objetiva, deveria tomar um caráter matemático, numérico, ser um

5
Por dimensão utópica entende-se, aqui, de acordo com Löwy (2009, p.14-15) aquela que “aspira a
um estado não existente das relações sociais, o que lhe dá, ao menos potencialmente, um caráter
crítico, subversivo, ou mesmo explosivo”.
36

‘objeto de estudo matemático’, e basear-se no cálculo de probabilidades. Esse


esforço em pensar uma ciência social objetiva e livre de preconceitos deve ser
entendido, segundo Löwy (2006; 2009), como uma tentativa de romper com o
controle do conhecimento pelas estruturas sociais dominantes da época (Igreja,
poder feudal, Estado monárquico). Assim, em Condorcet, o apelo pela ampliação do
modelo científico-natural para as ciências da sociedade (economia e política) situa-
se na luta revolucionária de emancipação deste conhecimento social das “doutrinas
teológicas, dos argumentos de autoridade papal, da autoridade de São Tomás de
Aquino, enfim, de todos os dogmas fossilizados que se arrogavam o monopólio do
conhecimento social” (LÖWY, 2006, p. 40).

Saint Simon, discípulo direto de Condorcet, fazendo eco ao sucesso que as ciências
naturais haviam alcançado, tratou de construir uma ciência da sociedade baseada
no modelo biológico, da fisiologia: a Fisiologia Social. Nesta ciência - que se
apresentava ora como ramo da física, ora como ramo da fisiologia (LÖWY, 2009) - a
sociedade, mais do que um simples aglomerado de seres vivos, seria estudada em
analogia aos ‘organismos vivos’ e entendida enquanto um verdadeiro ser animado e
complexo, cujas partes corresponderiam a distintas funções, tendo como sua base:
a produção material, a divisão do trabalho e a propriedade (QUINTANEIRO;
BARBOSA; OLIVEIRA, 2003). Saint Simon acreditava no industrialismo como
domínio humano sobre a natureza e no poder e capacidade científicas para o
progresso da humanidade. Foi ele quem empregou o termo ‘positivo’ à ciência da
sociedade, termo que significaria a necessidade de os fenômenos sociais serem
observados pelos mesmos métodos das ciências naturais, possibilitando que as leis
do desenvolvimento social fossem reveladas e permitindo uma organização racional
da sociedade (QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA, 2003).

Segundo Löwy (2006), as análises de Saint-Simon em sua fisiologia social eram


revestidas de interesses sociais utópicos, revolucionários, como a finalidade de
mostrar o parasitismo e inutilidade de certas classes sociais (aristocracia e clero) ao
organismo da nova sociedade industrial que estava se formando, colocando a
fisiologia social como uma forte crítica de oposição à ordem clerical-feudal até então
estabelecida.
37

Mas, a partir de meados do século XIX, um novo cenário sócio-político irá imprimir
outra visão no desenvolvimento das idéias positivistas. A partir de 1830, com a
revolução burguesa e a tomada do poder pela burguesia na França, esta, de uma
classe contestadora e revolucionária, passa a ser a classe dominante e
conservadora, “força social associada ao exercício do poder” (LÖWY, 2009, p.29). É
com Comte e a sua crítica aos pensamentos ‘revolucionários’ de Condorcet e Saint-
Simon que o positivismo irá se consagrar teórica e praticamente à defesa da ordem
industrial-burguesa, considerada necessária para o progresso da sociedade (LÖWY,
2006). O método positivo, em Comte, visava afastar a ameaça das idéias
revolucionárias, críticas, ‘negativas’ e subversivas da filosofia iluminista e da utopia
socialista. No entanto, para executar essa tarefa, Comte irá utilizar, de forma
paradoxal, o mesmo princípio que servira para as análises de Condorcet e Saint
Simon, ou seja, o princípio metodológico de uma ciência natural da sociedade
(LÖWY, 2009).

Dentre os vários postulados do pensamento de Comte pode-se citar a lei dos três
estados, segundo a qual o progresso da inteligência humana passaria por três
estados progressivos: do teológico - no qual as explicações dos fenômenos são
dadas a partir de uma causa divina e sobrenatural – para o metafísico – os agentes
sobrenaturais são substituídos por forças abstratas como essências, idéias ou forças
– e desse para o positivo, que seria aquele correspondente ao aparecimento das
ciências. Nesse estado, as ilusões são superadas graças ao uso bem combinado do
raciocínio e da observação para se chegar ao conhecimento das relações invariáveis
dos fatos (REALE; ANTISERI, 2005). Assim, Comte entende que a teologia e a
metafísica eram percebidas como afirmações sem sentido, já que pesquisavam
questões inacessíveis ao ser humano (“qual a essência da vida?”) e, portanto, não
passíveis de comprovação. Por outro lado, a ciência positiva seria o avanço da
ciência na interpretação lógica da realidade, no conhecimento estritamente baseado
nos fatos (REALE; ANTISERI, 2005; RIBEIRO JUNIOR, 1991).

Comte também se empenha em estabelecer uma classificação e ordenamento das


ciências. A partir desta classificação, as ciências positivas são hierarquizadas
segundo um grau decrescente de generalidade e crescente de complicação, onde as
ciências mais complexas pressupõem as menos complexas: astronomia, física,
38

química, biologia e ‘física social’ (que seria, mais tarde, cunhada por Comte em
‘Sociologia’). Esta nova concepção de ciência social não somente ocupa o topo da
hierarquia das ciências, mostrando-se como dominante em relação à totalidade do
saber científico, como também se mostra uma ciência eminentemente natural: “A
física social é uma ciência que tem por objeto o estudo dos fenômenos sociais,
considerados no mesmo espírito que os fenômenos astronômicos, físicos, químicos
e fisiológicos” (COMTE apud LÖWY, 2006, p. 42).

Para Comte, o princípio dinâmico do progresso da civilização deveria se subordinar


ao princípio estático da manutenção da ordem social. Caberia à sociologia o
conhecimento das leis sociais para, então, ser possível prever de forma objetiva e
racional os fenômenos e, dessa forma, intervir com eficácia, “explicar e antever,
combinando a estabilidade e a atividade, às necessidades simultâneas de ordem e
progresso – condições fundamentais da civilização moderna” (QUINTANEIRO;
BARBOSA; OLIVEIRA, 2003, p.18).

O positivismo comtiano possui como pressuposição essencial uma identidade


rigorosa entre a sociedade e a natureza, o caráter natural da vida social. Leva às
últimas consequências o papel reservado à razão de descobrir as leis que regem os
fenômenos sociais, expulsando dos mesmos a noção de liberdade, já que, como
vimos anteriormente, as leis invariáveis da física se sustentam pelo postulado do
determinismo, segundo o qual o lugar da ciência é o lugar do necessário, daquilo
que tem de ser, que independe da vontade e da ação humana. Estabelece, assim,
uma naturalização dos fenômenos sociais, ao submeter debates sociais como a
miséria, a fome, o desemprego, as desigualdades sociais a um caráter de
‘necessários’, de inevitáveis, deslegitimando as lutas revolucionárias e promovendo
a ordem social baseada no consenso moral e na autoridade (LÖWY, 2006;
QUINTANEIRO; BARBOSA; OLIVEIRA, 2003).

O positivismo tende poderosamente, pela sua natureza, a consolidar a


ordem pública, pelo desenvolvimento de uma sábia resignação. Porque
não pode existir uma verdadeira resignação, isto é, uma disposição
permanente a suportar com constância e sem nenhuma esperança de
mudança, os males inevitáveis que regem todos os fenômenos naturais
que, senão, através do profundo sentimento dessas leis invariáveis. A
filosofia positiva, que cria essa disposição, se aplica a todos os campos,
39

inclusive aos campos dos males políticos (COMTE apud LÖWY, 2006, p.
43).

É a partir dessa análise que Löwy (2006, 2009) entende o sentido profundamente
conservador do positivismo a partir de Comte, na medida em que desloca a sua
direção inicial de um campo crítico e utópico-revolucionário para o campo de um
conservadorismo legitimador da ordem social estabelecida, que se deu com a
tomada do poder pela burguesia: “A apologia ideológica da ordem
(industrial/burguesa) estabelecida não é mais do que o avesso, o revestimento do
discurso positivista, cujo lado direito, a face visível, é o axioma de uma ciência
natural, neutra e rigorosamente objetiva, dos fatos sociais (LÖWY, 2009, p.29- grifos
do autor). Essa perspectiva positivista trouxe as bases para que Durkheim
desenvolvesse as regras do método científico e os estudos sociais concretos no
interior das ciências sociais em âmbito acadêmico.

2.4 AS CIÊNCIAS SOCIAIS E A INFLUÊNCIA DE DURKHEIM NA NOÇÃO DE


DETERMINAÇÃO SOCIAL

Durkheim é considerado o “pai da sociologia positivista enquanto disciplina


científica” (LÖWY, 2009, p.30), pois trouxe para o interior das ciências sociais
institucionalizadas o rigor da metodologia científica e a necessidade de se
estabelecer um método de pesquisa semelhante ao estabelecido pelas ciências
naturais. Esse método deveria ser capaz de investigar as relações de causalidade
no ‘reino social’, descobrir as constâncias e uniformidades da conduta humana e
mostrar que a sociedade é regida por leis próprias de reprodução e transformação
(QUINTANEIRO, 2003).

Segundo Löwy (2009), a ciência social positiva de Durkheim possui como preceito
central a ‘lei social natural’. Esse preceito afirma a possibilidade de estender para o
domínio dos fenômenos humanos a idéia das leis naturais, considerando tais
fenômenos como explicáveis ‘naturalmente’. A idéia de leis naturais ancora-se no
princípio do determinismo, o qual afirma que a natureza é regida por leis constantes,
universais e regulares e que caberia à ciência a descoberta destas leis. Esse
40

princípio, aplicado ao campo científico, aponta para a busca das relações de


causalidade entre os fenômenos:

Visto que a lei da causalidade foi verificada nos outros reinos da natureza e
que progressivamente ela estendeu o seu domínio do mundo físico-químico
ao mundo biológico, e deste ao mundo psicológico, é lícito admitir que ela
igualmente seja verdadeira para o mundo social; e é possível afirmar hoje
que as pesquisas empreendidas sobre a base desse postulado tendem a
confirmá-lo (DURKHEIM, 2007, p.146).

Em ‘Regras do método sociológico’, Durkheim (2007) estabelece as principais regras


que considerava necessárias para que a sociologia tornasse uma ciência autônoma,
procurando demonstrar que poderia haver uma ciência sociológica objetiva e
científica, como nas ciências físico-matemáticas. Para isso, essa esfera de
conhecimento precisava constituir e delimitar o seu próprio objeto de investigação:
os fatos sociais.

É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer


sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda maneira de fazer
que é geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo,
possui uma existência própria, independente de suas manifestações
individuais (DURKHEIM, 2007, p.13).

O fato social, como um objeto passível de observação e explicação científica,


precisaria apresentar características bem definidas: a exterioridade, ou seja, a
capacidade de revelar-se independentemente dos indivíduos, como algo que fosse
dotado de vida e força próprias; a coercitividade, mostrando-se capaz de exercer
uma imposição sobre os pensamentos e sentimentos dos indivíduos; a generalidade,
ou seja, a capacidade de mostrar-se comum a todos ou à maioria dos indivíduos a
partir de determinadas maneiras de pensar, agir e sentir (DURKHEIM, 2007).

Os fatos sociais são entendidos enquanto maneiras coletivas de agir ou de pensar,


constituindo uma realidade objetiva, que se encontra fora dos indivíduos e possui
ascendência sobre eles. O autor mostra que, apesar de os indivíduos possuírem um
papel na constituição destes fatos, esses se revelam independentes daqueles:

Certamente o indivíduo desempenha um papel na gênese destes fatos.


Mas, para que exista o fato social, é preciso que pelo menos vários
indivíduos tenham misturado suas ações, e que desta combinação se
41

tenha desprendido um produto novo. E como esta síntese tem lugar fora de
cada um de nós (uma vez que para ela concorre uma pluralidade de
consciências), seu efeito é necessariamente fixar, instituir certas maneiras
de agir e certos julgamentos que existem fora de nós e que não dependem
de cada vontade particular tomada à parte (DURKHEIM, 2007, p.XXIX).

Alguns destes fatos possuem um formato bastante cristalizado na sociedade, como


as regras jurídicas, morais, os sistemas financeiros e os dogmas religiosos. Por
consistirem todos em crenças e práticas bem constituídas – como as formas de
comunicação, os modos de vestir-se, alimentar-se, negociar - eles forçam os
membros de uma sociedade a adotarem determinadas formas de ser. Outros podem
se apresentar de uma forma mais fluida e menos consolidada, como as maneiras de
agir comuns a todos de uma coletividade e que se manifestam por correntes de
opinião (que tem por objetos assuntos dos mais diversos: religiosos, políticos,
literários, artísticos, etc.) e por movimentos coletivos, como os movimentos
migratórios (DURKHEIM, 2007).

Quando desempenho meus deveres de irmão, de esposo ou de cidadão,


quando me desincumbo de encargos que contraí, pratico deveres que
estão definidos fora de mim e de meus atos, no direito e nos costumes.
Mesmo estando de acordo com sentimentos que me são próprios,
sentindo-lhes interiormente a realidade, esta não deixa de ser objetiva; pois
não fui eu quem os criou, mas recebi-os através da educação. [...] Assim
também o devoto, ao nascer, encontra prontas as crenças e as práticas da
vida religiosa; existindo antes dele, é porque existem fora dele. O sistema
de sinais de que me sirvo para exprimir pensamentos, o sistema de
moedas que emprego para pagar as dívidas, os instrumentos de crédito
que utilizo nas relações comerciais, as práticas seguidas na profissão, etc.,
etc., funcionam independentemente do uso que delas faço (DURKHEIM,
2007, p.1-2).

Por mostrarem-se como uma realidade externa, que existe anteriormente aos
indivíduos, ou seja, que foram elaboradas por gerações anteriores às existências
atuais, a ‘internalização’ dessas maneiras coletivas de agir e pensar se dá através
da educação. Esta, segundo o autor, consiste em um contínuo esforço por socializar
o indivíduo no meio em que ele vive, impondo-o, desde os primeiros anos de vida,
maneiras de agir, de sentir e de ver às quais não chegaria de forma espontânea,
como comer e dormir em horários regulares, ter hábitos higiênicos, ser obediente e
paciente, estudar, trabalhar. Aos poucos, essas maneiras de agir vão dando lugar a
hábitos e tendências internas que resultam desta coerção.
42

O caráter coercitivo destes tipos de conduta e de pensamento pode também ser


demonstrado através das penas impostas aos indivíduos que a elas não se aderem,
seja através do sistema de sanções jurídicas, como as punitivas (um indivíduo que
comete um crime, violando as leis do direito – e, portanto, ofende a consciência
pública – tem o seu ato reprimido através da prisão), seja através do afastamento ou
do desconforto social que um indivíduo sofre se não se submete às convenções da
sociedade - quando, por exemplo, um indivíduo não se veste de acordo com a moda
ou não se comporta de acordo com as ‘normas sociais’, ou ainda quando não fala o
mesmo idioma que os seus conterrâneos (DURKHEIM, 2007).

A abordagem científica dos fenômenos sociais enquanto ‘fatos’ traz como


consequência a primeira e mais fundamental regra do método sociológico
estabelecido pelo autor: considerá-los como coisas. “É coisa, com efeito, tudo o que
é dado, tudo o que se oferece, ou melhor, se impõe à observação. Tratar fenômenos
como coisas é tratá-los na qualidade de data que constituem o ponto de partida da
ciência. Os fenômenos sociais apresentam incontestavelmente esse caráter”
(DURKHEIM, 2007, p.28). O caráter de ‘coisa’ atribuído à análise científica da vida
social retira dos indivíduos a idéia ou noção que fazem dos fenômenos - pois,
segundo o autor, estas são inacessíveis- e se foca no dado, no estabelecido pela
coletividade e corporificado através de normas jurídicas, de valores econômicos, etc.

Essa ‘coisificação’ do social representa um esforço de Durkheim (2007) em delimitar


a sociologia como um domínio científico específico e diferenciado. Para diferenciá-lo,
por exemplo, da psicologia, o autor coloca no domínio desta a investigação das
ações individuais a partir dos fatos psíquicos. Diferentemente, a sociologia deveria
se concentrar nos dados que se mostram externos ao indivíduo por ‘natureza’ e que
independem dele para serem estudados. O trecho adiante ilustra essa idéia:

Com efeito, os fatos psíquicos são naturalmente dados como estados do


sujeito, do qual eles não parecem sequer separáveis. Interiores por
definição, parece que só se pode tratá-los como exteriores violentando a
sua natureza. É preciso não apenas um esforço de abstração, mas todo um
conjunto de procedimentos e de artifícios para chegar a considerá-los
desse viés. Ao contrário, os fatos sociais têm mais naturalmente e mais
imediatamente todas as características da coisa. O direito existe nos
códigos, os movimentos da vida cotidiana se inscrevem nos dados
estatísticos, nos monumentos da história, as modas nas roupas, os gostos
nas obras de arte. Em virtude de sua natureza mesma eles tendem a se
43

constituir fora das consciências individuais, visto que as dominam


(DURKHEIM, 2007, p.31).

Desta regra fundamental, Durkheim (2007) extrai as consequentes. Uma delas diz
respeito ao afastamento das prenoções e dos preconceitos - daquelas idéias
formadas e cristalizadas pelo senso comum - do pesquisador na observação dos
fatos sociais. Esse afastamento requer do sociólogo um rompimento com conceitos
formados em domínios exteriores ao científico e que o autor julga como “falsas
evidências”. A ciência seria o lócus de um saber neutro, desprovido de julgamentos
de valor. O preceito cartesiano da dúvida metódica encontra-se como arcabouço de
sua regra:

A dúvida metódica de Descartes, no fundo, não é senão uma aplicação


disso. Se, no momento em que vai fundar a ciência, Descartes impõe-se
como lei por em dúvida todas as idéias que recebeu anteriormente, é que
ele quer empregar apenas conceitos cientificamente elaborados, isto é,
construídos de acordo com o método que ele institui; todos os que ele
obtém de outra origem devem ser, portanto, rejeitados, ao menos
provisoriamente (DURKHEIM, 2007, p.32).

Assim, o sociólogo, em uma investigação científica, dirigindo-se a um grupo


determinado de fenômenos, deve defini-los previamente. Essa regra é colocada
como a condição primeira e mais indispensável para que exista a possibilidade de
prova e verificação dos fatos. Além disso, o autor coloca que é por ela que o próprio
objeto da ciência é definido. O fato social enquanto ‘coisa’ deve-se à maneira pela
qual for feita a sua definição (DURKHEIM, 2007).

Essa definição, segundo o autor, deve ser mais objetiva possível, de maneira que
seja capaz de exprimir os fenômenos através de propriedades inerentes a eles
próprios, e não daqueles que provenham de uma idéia do pesquisador. Isto significa
que a investigação deve partir das manifestações mais exteriores de um fenômeno,
o que implica desconsiderá-los de suas essências mais profundas. É também a
partir desta forma que o objeto de uma ciência, segundo o autor deve ser definido.

Constatamos, por exemplo, a existência de certo número de atos que


apresentam todos determinado caráter exterior, isto é, uma vez
executados, determinam por parte da sociedade esta reação particular
chamada punição. Constituímos com eles um grupo sui generis, ao qual
44

impomos uma rubrica comum; chamaremos crime todo ato que recebe uma
punição e fazemos do crime assim definido objeto de uma ciência especial,
a criminologia (DURKHEIM, 2007, p. 36).

A definição dos fenômenos sociais a partir de seus caracteres mais exteriores requer
também que o pesquisador considere-os naqueles aspectos em que se apresentam
isolados de suas manifestações individuais, de forma que sejam representados da
maneira mais objetiva possível (DURKHEIM, 2007). Isso quer dizer que o que
prevalece é a forma como o fenômeno apresenta-se na coletividade, em sua
generalidade. O individual é subsumido frente ao coletivo, o todo prevalece às
partes. O geral se impõe ao detalhe, ao particular.

Fora dos atos individuais que suscitam, os hábitos coletivos se exprimem


por meio de formas definidas: regras jurídicas, morais, provérbios
populares, fatos de estrutura social, etc. Como estas formas existem de
maneira permanente, como não mudam com as diversas aplicações que
delas são feitas, constituem um objeto fixo, uma medida constante que está
sempre à disposição do observador e que não deixa lugar às impressões
subjetivas e às observações pessoais (DURKHEIM, 2007, p.45-46).

Vemos aí, como a propriedade de ‘coisa’ atribuída ao ‘social’ retira-lhe a sua


dinamicidade e organicidade inerentes. Para que os fenômenos sociais possam ser
objetivamente abordados, esses precisam apresentar uma fixidez, uma medida
precisa, que se mostre por si mesma e que independa do ponto de vista do
pesquisador, pois “a condição de toda objetividade é a existência de um ponto de
referência, constante e idêntico, ao qual a representação pode ser relacionada e que
permite eliminar tudo o que ela tem de variável, de subjetivo” (DURKHEIM, 2007,
p.45).

Esse caráter fixo e rigidamente definido do fato social mostra-se incapaz de dar
conta da dinamicidade e da mutabilidade da vida coletiva. O autor já assinalava essa
limitação da abordagem científica dos fenômenos sociais:

Não há dúvida de que, procedendo assim, deixaremos fora do âmbito da


ciência a matéria concreta da vida coletiva; e todavia, por mais mutável que
seja esta matéria, não temos o direito de postular a priori sua
ininteligibilidade. Porém, se desejarmos seguir uma abordagem metódica,
será necessário estabelecer os primeiros fundamentos da ciência, não em
areia movediça, mas em terreno firme. É preciso abordar o domínio do
social pelos aspectos que oferecem melhor possibilidade de apreensão à
investigação científica. Somente em seguida será possível levar mais longe
a pesquisa e, por meio de trabalhos progressivos de abordagem, ir
45

cingindo mais de perto esta realidade fugidia, que o espírito humano talvez
não possa jamais abarcar completamente (DURKHEIM, 2007, p.47).

Como podemos notar, as regras estabelecidas pelo autor trazem para o interior das
ciências sociais os pressupostos da objetividade e da neutralidade científicas na
análise dos fenômenos sociais. Além disso, mostra a necessidade de se construir
novos conceitos, que sejam apropriados às necessidades da ciência e que sejam
sempre expressos através de uma terminologia particular (DURKHEIM, 2007).

Essas regras foram sendo desenvolvidas a partir do seu estudo sobre a


solidariedade social e que se encontra em sua obra clássica, o livro ‘Da Divisão do
Trabalho Social’. É importante destacar que, em Durkheim (1999), a solidariedade é
utilizada no seu estudo sobre o ‘social’ como uma primeira categoria para explicar as
relações de sociabilidade que constituem as diferentes sociedades e que dão
‘humanidade’ ao ser. O autor mostra que a divisão do trabalho pelos diferentes
grupos sociais tem por função a produção de relações de solidariedade entre os
seus membros (DURKHEIM, 1999). Mas, como um fenômeno moral, a solidariedade
não pode ser integralmente exprimida em suas manifestações passíveis de
observação e constatação (direito e costumes). Em outros termos, ela possui um
‘estado interno’, próprio do indivíduo, campo que não se mostra de domínio do
conhecimento sociológico. Para que assuma uma forma apreensível, é preciso que
algumas consequências sociais traduzam-na exteriormente.

A solidariedade social, porém, é um fenômeno totalmente moral, que, por


si, não se presta à observação exata, nem, sobretudo, à medida. Para
proceder tanto a essa classificação quanto a essa comparação, é
necessário, portanto, substituir o fato interno que nos escapa por um fato
externo que o simbolize e estudar o primeiro através do segundo
(DURKHEIM, 1999, p.31).

Assim, a solidariedade, para ser estudada cientificamente, deve ser buscada em


suas expressões coletivas, na medida em que, em âmbito individual, ela se mostra
indistinta, imprecisa e inespecífica. Cientificamente abordada como uma ‘coisa’, ela
deve ser capaz de existir independente do indivíduo, deve perder seu caráter
subjetivo. A solidariedade social passa a ser estudada pelos efeitos externos que
46

produz, efeitos que se mostram passíveis de observação, descrição, caracterização


e medição: as regras jurídicas.

Mas só podemos conhecer cientificamente as causas pelos efeitos que


elas produzem; e, para melhor determinar a sua natureza, a ciência apenas
escolhe entre esses resultados os que são mais objetivos e que melhor se
prestam à medida. Ela estuda o calor através das variações de volume que
as mudanças de temperatura produzem nos corpos, a eletricidade através
de seus efeitos físico-químicos, a força através do movimento. Por que a
solidariedade social seria uma exceção? (DURKHEIM, 1999, p.33)

Para tanto, classificando as diferentes formas de penalidade jurídica (a sanção


repressiva, representada pelo direito penal; e a sanção cooperativa, que
compreende os direitos civil, comercial, processual, administrativo e constitucional)
procura demonstrar a existência de dois tipos de solidariedade social: uma de
natureza mecânica (que corresponde à sanção repressiva) e a outra de natureza
orgânica (que corresponde à sanção cooperativa) (DURKHEIM, 1999).

Para o autor, essas diferentes formas de solidariedade possuem, por


correspondência, estruturas sociais de naturezas distintas. Essas estruturas e seus
correspondentes tipos de solidariedade serão abordados a seguir. O ‘movimento’
que gostaríamos de mostrar, a seguir, é aquele que primeiro captura o social, por
‘natureza’, como um domínio específico, externo e independente da realidade
individual para depois colocá-lo como ordenador da vida individual.

2.4.1 A determinação social nas primeiras organizações sociais

A formação da sociedade é estudada, em Durkheim (1999), a partir de uma corrente


evolucionista, acreditando que a humanidade avança no sentido de seu
aperfeiçoamento progressivo. Segundo a tese defendida por ele, as primeiras
formas de organização social iniciaram-se a partir da agregação de indivíduos e
ocorreu porque esses, não possuindo uma individualidade própria, confundiam-se
uns com os outros em suas semelhanças que os marcavam por natureza. Essas
organizações mais “primitivas” (em suas palavras) tinham como característica a
47

absorção do indivíduo pelo grupo e a forma de uma massa composta por partes
indiferenciadas, indistintas de sua totalidade (DURKHEIM, 1999).

Encontramos um modelo quase perfeitamente puro dessa organização


social entre os índios da América do Norte. Cada tribo iroquesa, por
exemplo, é formada por certo número de sociedades parciais (a mais
volumosa compreende oito). Os adultos de ambos o sexos são iguais uns
aos outros. Os caciques e chefes que se encontram à frente de cada um
desses grupos e cujo conselho administra os negócios comuns da tribo não
gozam de nenhuma superioridade. A própria parentela não é organizada,
porque não se pode dar esse nome à distribuição da massa por camadas
de gerações. Na época tardia em que esses povos foram observados,
havia algumas obrigações especiais que uniam o filho a seus parentes
maternos, mas essas relações se reduziam ainda a pouca coisa e não se
distinguiam sensivelmente das que a criança mantinha com os outros
membros da sociedade. Em princípio, todos os indivíduos da mesma idade
eram parentes uns dos outros no mesmo grau. (DURKHEIM, 1999, p. 158)

Durkheim (1999) chama de solidariedade mecânica esses vínculos que unem


inicialmente os indivíduos. O adjetivo ‘mecânica’ deriva-se da ‘natureza’ dessa
agregação: os indivíduos, por serem desprovidos de individualidade, exteriorizam a
sua dimensão de ‘coisa’, de ‘corpos brutos’, na medida em que se movem e
modificam, não por eles mesmos, mas tão somente devido a uma força externa que
lhes é imposta:

As moléculas sociais que só seriam coerentes dessa maneira não


poderiam, pois, mover-se em conjunto, a não ser na medida em que não
têm movimentos próprios, como fazem as moléculas dos corpos
inorgânicos. É por isso que propomos chamar de mecânica essa espécie
de solidariedade. Essa palavra não significa que ela seja produzida por
meios mecânicos e de modo artificial. Só a denominamos assim por
analogia com a coesão que une entre si os elementos dos corpos brutos,
em oposição à que faz a unidade dos corpos vivos (DURKHEIM, 1999,
p.107).

O autor refere-se a essas ‘estruturas’ sociais inicialmente formadas como ‘hordas’, já


que se constituem por uma “massa absolutamente homogênea, cujas partes não se
distinguiriam umas das outras” (DURKHEIM, 1999, p.157), um tipo de sociedade
simples e não organizada e na qual a coesão de seus membros dá-se pelas
similitudes. À medida que se torna mais complexa, a sociedade passa a se formar
não mais por uma, mas por um conjunto de hordas, denominadas de ‘clãs’; que, por
sua vez, se associam em segmentos constituindo-se ‘sociedades segmentárias à
base de clãs’, de natureza familiar e política. Embora distintos entre si, esses
48

segmentos ainda eram marcados internamente pela forte similitude entre seus
membros (DURKHEIM, 1999).

Como quer que a denominemos, porém, essa organização, tal como a


horda, de que não mais é do que um prolongamento, não comporta
evidentemente outra solidariedade além da que deriva das similitudes, pois
a sociedade é formada de segmentos similares e estes, por sua vez,
compreendem apenas elementos homogêneos (DURKHEIM, 1999, p.160).

Nesses ‘tipos’ coletivos, os indivíduos partilham de um conjunto muito forte de


crenças e de sentimentos comuns que é manifestada por um sistema de regras de
conduta, na medida em que impõem, a todos da coletividade, maneiras de agir bem
uniformes. As idéias e as tendências, pertencentes a toda a sociedade, são em
maior número e mais intensas que as possuídas individualmente por seus membros
(DURKHEIM, 1999). O social é uma massa tão fortemente homogênea quanto se
apresenta de forma intensa e predominante na vida das pessoas a partir da criação
de uma ‘consciência comum’ que é compartilhada por todos. É essa consciência
comum que determina o modo de pensar, agir e se relacionar dos indivíduos,
criando hábitos comuns a todos eles, assim como sentimentos correspondentes a
cada um desses hábitos/ações.

A consciência coletiva é entendida, então, como uma força externa, capaz de unir e
mover similarmente os indivíduos dentro desta coletividade; uma realidade distinta
dos indivíduos, um “sistema determinado que tem vida própria” (DURKHEIM, 1999,
p. 50). Essa consciência comum que é criada, “tipo psíquico da sociedade” é a forma
que o autor usa para caracterizar e delimitar a ‘natureza externa’ do social; na
medida em que ela é criada pela coletividade. Mas, ao mesmo tempo em que se
mostra como algo externo dotado de vida própria, ela se inscreve de uma forma bem
precisa nos indivíduos. Assim, o ser social é posterior ao ‘social’ e se forma pela
internalização de uma consciência que foi construída pelas relações de sociabilidade
instituídas pela coletividade.

Durkheim (1999) segue sua análise da vida social a partir de uma corrente
progressista, mostrando que essa ‘estrutura social’, inicialmente formada pela
solidariedade mecânica, vai sendo lenta e progressivamente substituída por tipos
49

sociais mais organizados. Isto ocorre pela extensão das relações sociais e pela
intensificação da divisão do trabalho social, possibilitando que ocorra a diferenciação
dos indivíduos desse seio coletivo.

2.4.2 A determinação social nas sociedades organizadas

Para Durkheim (1999), as sociedades consideradas do tipo ‘superiores’ possuem


uma estrutura bem diferente daquelas em que ele considera como sendo as formas
mais simples da vida social. Essa distinção está associada à existência de uma
maior ou menor divisão do trabalho entre a coletividade. Esta divisão não se
restringe ao plano econômico, mas perpassa todas as esferas da vida social
(científica, religiosa, familiar, artística, etc.) e é a responsável por desenvolver um
vínculo social que se diferencia, por ‘natureza’, daquele que era o responsável pela
coesão social nos agrupamentos coletivos mais simples. Este vínculo é a
solidariedade orgânica, um vínculo que está ligado à criação de relações de
interdependência entre os indivíduos.

Esse tipo de solidariedade começa a se construir a partir do momento em que o


meio social se amplia, tornando o campo das relações sociais cada vez mais vasto,
abrindo um espaço para que as diferenças entre os indivíduos se manifestem.
Assim, Durkheim vai mostrar que a dissolução daquelas sociedades segmentárias
que, embora distintas umas das outras, eram marcadas internamente por uma forte
consciência coletiva, torna possível uma aproximação entre os seus membros,
multiplicação das relações intersociais, generalização da vida social e uma
concomitante formação de sociedades parciais (QUINTANEIRO, 2003). O progresso
da divisão do trabalho está ligado à condensação da sociedade, ou seja, o “trabalho
se divide mais à medida que as sociedades se tornam mais volumosas e mais
densas” (DURKHEIM, 1999, p.263).

Mas a divisão do trabalho não é específica do mundo econômico: podemos


observar sua influência crescente nas regiões mais diferentes da
sociedade. As funções políticas, administrativas, judiciárias especializam-
se cada vez mais. O mesmo ocorre com as funções artísticas e científicas.
Estamos longe do tempo em que a filosofia era a ciência única; ela
50

fragmentou-se numa multidão de disciplinas especiais, cada uma das quais


tem seu objeto, seu método, seu espírito (DURKHEIM, 1999, p.2).

Essa estrutura social então formada diferencia-se das outras na medida em que não
se constitui mais pela repetição de segmentos homogêneos. Ao contrário, ela se
organiza a partir de um sistema composto por ‘órgãos’ diferentes (administrativos,
econômicos, judiciários, corporativos, artísticos, entre outros). Os indivíduos não se
assemelham, são diferentes e necessários, como os órgãos de um ser vivo. A
crescente divisão do trabalho nestas sociedades tem por função o desenvolvimento
da solidariedade orgânica. Quanto mais complexas, mais dividido é o trabalho social
e mais especializadas são as funções individuais.

A solidariedade orgânica diz respeito aos vínculos que mantém a organização dos
indivíduos nestas sociedades: a ‘natureza’ particular da atividade social que lhes
cabe, e não mais pelas relações de descendência, consaguinidade ou parentesco.
“Seu meio natural e necessário não é mais o meio natal, mas o meio profissional.”
(DURKHEIM, 1999, p.166). Ela se forma como consequência do processo de
diferenciação social dos indivíduos a partir das diferentes atividades profissionais
desenvolvidas, possibilitando que o individuo apareça e se distinga do grupo social a
que pertence.

Quanto mais o meio social se amplia, menos o desenvolvimento das


divergências privadas é contido. Mas, entre as divergências, existem
aquelas que são específicas de cada indivíduo, de cada membro da
família, elas mesmas tornam-se sempre mais numerosas e mais
importantes à medida que o campo das relações sociais se torna mais
vasto. Ali, então, onde elas encontram uma resistência débil, é inevitável
que elas se provenham de fora, se acentuem, se consolidem, e como elas
são o âmago da personalidade individual, esta vai necessariamente se
desenvolver. Cada qual, com o passar do tempo, assume mais sua
fisionomia própria, sua maneira pessoal de sentir e pensar (DURKHEIM,
1921 apud QUINTANEIRO, 2003, p.71).

Isso acontece na medida em que um tipo de consciência se desenvolve cada vez


mais nesses indivíduos e que é a marca de sua individualidade: a consciência
individual. Esta é entendida como um tipo de estado mental que é próprio de cada
indivíduo, que é a definidora de sua personalidade, daquilo que o diferencia dos
demais. Isso não quer dizer que o indivíduo não compartilhe com a coletividade uma
51

consciência comum, ou que ela esteja ameaçada de desaparecer. O que o autor


demonstra é que, nestes ‘tipos sociais superiores’, esta consciência comum (que era
bastante forte e determinada nos ‘tipos inferiores’) consiste “cada vez mais em
maneiras de pensar e sentir muito gerais e indeterminadas, que deixam o espaço
livre para uma multidão crescente de dissidências individuais” (DURKHEIM, 1999,
p.155).

Há em nós duas consciências: uma contém apenas estados que são


pessoais a cada um de nós e nos caracterizam, ao passo que os estados
que a outra compreende são comuns a toda a sociedade. A primeira
representa apenas nossa personalidade individual e a constitui; a segunda
representa o tipo coletivo e, por conseguinte, a sociedade sem a qual ela
não existiria. Quando é um dos elementos desta última que determina
nossa conduta, não agimos tendo em vista o nosso interesse pessoal, mas
perseguimos finalidades coletivas. Ora, embora distintas, essas duas
consciências são ligadas uma à outra, pois, em suma, elas constituem uma
só coisa, tendo para as duas um só e mesmo substrato orgânico. Logo,
elas são solidárias (DURKHEIM, 1999, p.79).

O processo de diferenciação do indivíduo frente ao grupo coletivo a que pertence


está ligado ao desenvolvimento crescente da consciência individual, que por sua vez
está ligada ao lugar e à função específica que começa a ocupar na parte do trabalho
social que lhe cabe. As regras de conduta passam a se tornar menos determinadas,
já que passam a ser aplicadas e adaptadas às particularidades das funções
individuais.

É necessário, pois, que a consciência coletiva deixe descoberta uma parte


da consciência individual, para que nela se estabeleçam essas funções
especiais que ela não pode regulamentar; e quanto mais essa região é
extensa, mais forte é a coesão que resulta dessa solidariedade. De fato, de
um lado, cada um depende tanto mais estreitamente da sociedade quanto
mais dividido for o trabalho nela e, de outro, a atividade de cada um é tanto
mais pessoal quanto mais for especializada (DURKHEIM, 1999, p.109).

Para o autor, as personalidades individuais estão ligadas tanto ao uso e costumes


corporativos, quanto ao desenvolvimento de habilidades profissionais; o que mostra
que elas, apesar de circunscritas, não se mostram completamente próprias e
originais. Além disso, o desenvolvimento da individualidade pressupõe uma maior
mobilidade dos indivíduos na estrutura social, mas, ao mesmo tempo, uma maior
interdependência dos mesmos: o todo cresce ao mesmo tempo que a
52

individualidade das partes. “As diversas partes do agregado, por cumprirem funções
diferentes, não podem ser facilmente separadas” (DURKHEIM, 1999, p.130).

Estabelece-se uma relação necessária entre a evolução social e a preponderância


da solidariedade orgânica sobre a mecânica; ou seja, nos ‘tipos’ sociais mais
organizados, a solidariedade orgânica sobrepõe-se à mecânica, já que os indivíduos
se vinculam à sociedade mais devido às consequências da divisão do trabalho do
que pelas crenças e sentimentos em comum. Nesse sentido, a solidariedade
orgânica é a responsável por conferir a unidade e a coesão nas estruturas sociais
mais complexas. “Não só, de maneira geral, a solidariedade mecânica liga os
homens menos fortemente do que a solidariedade orgânica, como também, à
medida que avançamos na evolução social, ela vai se afrouxando cada vez mais”
(DURKHEIM, 1999, p.133).

Assim, Durkheim (1999, 2007) abre para a sociologia a possibilidade de estudar e


classificar as diferentes ‘espécies sociais’ a partir da caracterização de suas
estruturas internas. A divisão do trabalho social é uma lei que rege a sociedade, mas
que não é própria desta. Como vimos, as ciências sociais se formam e estabelecem
seus métodos de análise e interpretação da realidade a partir da visão de mundo
estabelecida pelas ciências naturais, que busca as leis que regem a natureza.
Assim, a divisão do trabalho social se insere numa lei maior que é a lei da divisão do
trabalho:

Sabe-se, com efeito, desde os trabalhos de Wolff, Von Baer, Milne-


Edwards, que a lei da divisão do trabalho se aplica tanto aos organismos
como às sociedades; pôde-se inclusive dizer que um organismo ocupa uma
posição tanto mais elevada na escala animal quanto mais as suas funções
forem especializadas. Essa descoberta teve por efeito, ao mesmo tempo,
estender imensamente o campo de ação da divisão do trabalho e recuar
suas origens até um passado infinitamente remoto, pois ela se torna quase
contemporânea do advento da vida no mundo (DURKHEIM, 1999, p.3).

Entendemos que a noção de “determinação social” pode ser interpretada, em


Durkheim (1999, 2007), a partir de um pressuposto positivista fundamental: a de que
a sociedade é regida por leis naturais, passíveis de serem descobertas pelo estudo
científico sistemático, a partir da delimitação e caracterização de suas partes, suas
funções e as relações que estabelecem com o todo.
53

A partir desse pressuposto positivista, entendemos que essa noção de


“determinação social” pode ser apreendida quando o autor demonstra que é ‘social’
todo fato que é geral, ou seja, que se aplica a todos ou à maioria dos indivíduos e
que se apresenta ‘por natureza’ como algo externo a eles. Assim, a delimitação do
caráter exterior do ‘social’ coloca-o passível de ser ‘isolado’ e classificado como
campo de estudo específico da sociologia. O conhecimento científico do ‘social’ é
dado pela fragmentação da ciência em ‘ciência social’.

Mas o ‘social’ não apenas se apresenta como um fato exterior e dotado de


generalidade, como também se estabelece uma preeminência desse em relação ao
individual: a partir da ação de uma força externa (a ‘força social’) sobre as ações dos
indivíduos, independente de suas vontades ou de suas adesões. O autor não se
refere à coerção do ponto de vista dos constrangimentos do meio físico, mas à
coerção moral ou social, aquela pressão exercida por um ou por vários grupos sobre
a ação dos indivíduos que os integram e que leva esses indivíduos a se
conformarem com as regras (morais, jurídicas, por exemplo) da sociedade do qual
eles vivem. Assim, tende a mostrar que a vida individual é inteiramente determinada,
em última instância, por estruturas ou condições sociais dominantes.

O estabelecimento de relações de causalidade entre os fenômenos individuais e os


sociais deve ser feito a partir da explicação dos primeiros pelos segundos. Portanto,
a noção de “determinação social” em Durkheim (1999, 2007) segue a perspectiva de
que as ações humanas são determinadas (no sentido de ordenadas/motivadas) pela
vida coletiva.
54

3. O DEBATE LATINO-AMERICANO E A SAÚDE COLETIVA BRASILEIRA: A


NOÇÃO DE DETERMINAÇÃO SOCIAL DA SAÚDE

A partir do final dos anos sessenta houve um profundo questionamento do


paradigma biomédico da doença, que a conceituava como um fenômeno biológico
individual. Este movimento de crítica ao paradigma médico-biológico se situa em um
contexto social marcado pela dificuldade da medicina na produção de um novo
conhecimento que fosse capaz de compreender e explicar os principais problemas
de saúde que emergiam nos países industrializados, como as doenças
cardiovasculares e os tumores malignos. Não apenas do ponto de vista da produção
de conhecimento, mas também da insuficiência mostrada pelas práticas médicas,
calcadas na medicina clínica, de não oferecer soluções satisfatórias para a melhoria
das condições de saúde da coletividade (FACCHINI, 1994; TAMBELLINI-AROUCA,
1984a).

No Brasil, os Departamentos de Medicina Preventiva constituíram a base


institucional da produção de conhecimento sobre a saúde da população e a
organização das práticas sanitárias. Os primeiros departamentos foram criados na
década de 1950, na Faculdade Paulista de Medicina e na de Ribeirão Preto, a partir
de uma lei que visava a reforma dos currículos de medicina, tornando obrigatória a
incorporação de uma abordagem preventiva na formação dos médicos, em
complemento a uma abordagem estritamente curativa (ESCOREL; NASCIMENTO;
EDLER, 2005).

O discurso preventivista se ancorava na abordagem da saúde-doença como um


processo natural e tinha o modelo ecológico como umas das principais
fundamentações teóricas para as intervenções médicas (AROUCA, 2003). Tal
modelo foi considerado por Facchini (1994) como uma sofisticação do modelo de
multicausalidade simples – ou seja, a simples análise das múltiplas causas das
doenças – a partir do conhecimento da história natural da doença.

Nesse modelo ecológico, a história da doença segue um caminho linear e passível


de sofrer intervenção médica-sanitária em diferentes períodos. O modelo possui na
tríade ecológica - agente, hospedeiro e meio ambiente – o ponto chave para a
55

explicação inicial do desencadeamento da doença, que é vista como o resultado de


um desequilíbrio entre o homem e o seu ambiente. A história natural da doença é
abordada a partir das inter-relações desses três componentes, desde as primeiras
forças criadoras do estímulo patológico no meio ambiente, passando pela resposta
do hóspede aos estímulos ambientais, até as alterações que culminarão nos
desfechos de doença (LEAVELL; CLARCK, 1976).

A partir desse modelo, o conhecimento epidemiológico se apropria de um novo


método para delinear, de forma sistemática, a prevenção e o controle de doenças
nas populações a partir da exposição de dois domínios: o ‘domínio externo’ - no qual
interagem agentes em relação ao meio ambiente a partir de distintos estímulos
(físicos, químicos, biológicos, sociopolíticos e culturais) – e o ‘domínio interno’ – o
lugar individual - que é aquele em que a doença se processa no organismo vivo, a
partir de modificações fisiológicas, químicas e histológicas (PUTTINI; PEREIRA-
JÚNIOR; OLIVEIRA, 2010). Além de analisar o objeto saúde-doença a partir dos
métodos estabelecidos pelas ciências naturais, esta abordagem está interessada na
explicação que forneça subsídios para a intervenção direta na natureza da doença, e
que, no modelo preventivista, baseia-se nos diferentes momentos de intervenção
médica: prevenção, proteção, recuperação e reabilitação.

No Brasil, a crítica à forma como a doença é tratada neste modelo ecológico é


estabelecida por Arouca (2003) em sua tese de doutoramento. A crítica deste autor
ao método positivista de abordagem da doença nesse modelo considerava que a
sua história foi geometrizada a partir de um esquema cartesiano, em que o tempo é
visto de uma forma reducionista e a-histórica, ou seja, a doença é considerada
dentro de um espaço estritamente cronológico, a partir de certa regularidade em que
se inscreve, sendo desprovida de historicidade. Segundo Melo-Filho (2003, p.55), o
positivismo, na tentativa de ocultar o sistema de valores que dão arcabouço à sua
visão de mundo “acredita que pode ‘escapar’ da história, impingindo a seus critérios
de verdade uma estabilidade ‘eterna’”. Assim, segundo essa corrente, o
conhecimento seria considerado válido universalmente e de forma independente dos
momentos históricos em que é produzido.
56

Outro alvo da crítica ao modelo multicausal da história natural da doença que foi
defendida por Arouca (2003) é a forma como tal modelo aborda o ‘social’.
Participando, de forma simultânea, como fator causal ligado ao hospedeiro e ao
meio ambiente, o ‘social’ não apenas aparece como um atributo individual (status
econômico, social, atitudes em relação ao sexo, etc.), mas também se mostra
combinado de forma homogênea com fatores físicos, químicos e biológicos, ou seja,
o ‘social’ passa a ter um peso idêntico aos demais ‘fatores’ a partir de uma
determinação mecânica de equilíbrio entre hóspede e meio ambiente (AROUCA,
2003).

A crítica rigorosa de Arouca (2003) ao conceito de multicausalidade impresso na


história natural da doença assinalou a necessidade de superação dos limites do
pensamento causal e a adoção de modelos de determinação, considerados de
grande importância para a transição da epidemiologia dos fatores de risco para a
epidemiologia social (ALMEIDA-FILHO, 2004; BARATA; ALMEIDA-FILHO;
BARRETO, 2012).

Laurell (1982), nessa mesma vertente, faz a crítica a este modelo de


multicausalidade. Segundo a autora, esta busca pela exatidão dos conceitos, na
pretensão de explicar partindo da suposição da impossibilidade de conhecer a
essência das coisas é um grande paradoxo. Assim,

[...] a limitação mais imediata do modelo multicausal, sem dúvida reside em


sua redução da realidade complexa a uma série de fatores que não se
distinguem em qualidade e cujo peso no aparecimento da doença é dado
por sua distância dela. Assim conceituada a causalidade, o social e o
biológico não se colocam como instâncias distintas, pois ambos são
reduzidos a ‘fatores de risco’, que atuam de maneira igual (LAURELL,
1982, p.154).

O método positivista de abordagem, que enfatiza o caráter ‘neutro’ da ciência, se


inscreve, na história natural da doença, a partir da despolitização e desteorização de
conceitos tais como ‘população’, ‘comunidade’, ‘contextos econômico e político’.
Além disso, desvincula o social de uma relação direta com a teoria à qual ele se
articula focando sua contribuição apenas como um atributo para os elementos e não
como explicação dos processos sociais (AROUCA, 2003).
57

A cisão que o positivismo realiza entre os “juízos de fato” e os “juízos de valor” e a


sustentação de que o conhecimento só pode ser verdadeiro se despido dos juízos
de valor, no qual os fatos devem ser descritos e explicados e não avaliados,
desenha um perfil de ciência ‘asséptica de valores morais’, neutra, livre dos efeitos
do movimento social ao redor (MELO-FILHO, 2003, BREILH, 1991). Para Breilh
(1991) essa separação, elevada ao plano do pressuposto básico do método do
conhecimento, deu-se a partir da redução do estatuto legal da sociedade às leis da
natureza e da redução da observação das coisas sociais à sua aparência ou
conteúdo externo. Nesse caminho, o processo saúde-doença também não escapou
de uma definição enquanto ‘coisa’, que se desenvolve sujeita a leis naturais e
exposta a alterações do meio exterior, induzidas apenas por fatores deste meio
(natural), tais como os agentes físicos, químicos, orgânicos e a “coisa social”.

Esse método positivista se inscreve na Epidemiologia Tradicional, que parte do


processo de decomposição do objeto através de um processo de análise, porém não
torna a reconstruí-lo através da síntese (BREILH; GRANDA, 1989). Segundo Breilh
e Granda (1989, p. 18- grifos dos autores) “seu ponto de partida são abstrações
denominadas fatores que de uma forma isolada se supõe intervir com maior ou
menor força no aparecimento do problema estudado”. Neste modelo, o “social” entra
como componente fatorial e a sociedade é interpretada como um agregado de
elementos homogêneos, de caráter natural.

[...] Essa manobra de naturalização ou ecologização dos problemas atua


como base teórica para delinear do ponto de vista epidemiológico que as
leis que os regem e as ações que se fazem necessárias são do tipo
fundamentalmente ecológico e biológico, deslocando a consideração dos
fundamentos econômicos sobre os quais se desenvolve a vida social
(BREILH; GRANDA, 1989, p.18).

Tambellini-Arouca (1984a) enfatiza, nessa discussão crítica, que a abordagem


‘fatorial’ do processo saúde-doença incorpora uma discussão a posteriori do
problema, mobilizada por correlações estatísticas, colocadas por uma perspectiva
divisionista e fracionadora da realidade.

Assim, o social indiferenciado e inespecífico num meio ambiente natural


agressivo, fragmentado e dissolvido nos emaranhados da fatoração perde
sua força enquanto elemento de explicação, raíz de um sofrer e viver
58

definidos, instância das relações que organizam e instauram a ordem dos


riscos para a vida, para a morte (TAMBELLINI-AROUCA, 1984a).

Foucault (1999), em “Em Defesa da Sociedade”, nos mostra como este


conhecimento estatístico, de medições globais, baseado em previsões e
prevenções, se coloca como uma efetiva ferramenta tecnológica da biopolítica: “é da
natalidade, da morbidade, das incapacidades biológicas diversas, dos efeitos do
meio, é disso tudo que a biopolítica vai extrair seu saber e definir o campo de
intervenção de seu poder” (FOUCAULT, 1999, p.292).

Esse poder se dirige à vida, no sentido de controlá-la, de estimulá-la, de


esquadrinhá-la: o biopoder. O poder como campo de intervenção da biopolítica, que
lida com a “população como problema político, como problema a um só tempo
científico e político”, onde “vai ser preciso modificar, baixar a morbidade; vai ser
preciso encompridar a vida; vai ser preciso estimular a natalidade [...], fixar um
equilíbrio, manter uma média, estabelecer uma espécie de homeostase, assegurar
compensações [...]” (FOUCAULT, 1999, p.293).

Mas esse poder não se dirige ao corpo individual e sim ao corpo coletivo, à
“população”, ou seja, dirige-se aos “fenômenos globais”, aos aspectos biológicos das
“massas humanas” (FOUCAULT, 1999, p.299). “Não se trata, por conseguinte, em
absoluto, de considerar o indivíduo no nível do detalhe, mas, pelo contrário,
mediante mecanismos globais, de agir de tal maneira que se obtenham estados
globais de equilíbrio, de regularidade” (FOUCAULT, 1999, p.294).

A crítica latino-americana a essa forma de abordagem naturalizada e a-histórica do


processo saúde-doença emerge a partir da corrente médico-social, corrente esta
que irá sustentar que a doença pode e deve ser analisada de uma forma diferente,
como um processo social.
59

3.1 A MUDANÇA DO LÉXICO E A MUDANÇA DO MÉTODO

A corrente médico-social latino-americana, a partir da crítica à abordagem positivista


do processo saúde-doença, coloca como tarefa primordial a necessidade de
mudança de perspectiva na abordagem do processo de adoecimento, trazendo a
possibilidade de abordar a problemática a partir de um ângulo diferente (LAURELL,
1982; BREILH, 1991). Esta abordagem compreende a produção das doenças no
plano do coletivo e a construção de uma idéia científica dos processos que operam
como determinantes das mesmas, através da ampliação da explicação do princípio
da causalidade (ALMEIDA-FILHO, 2004).

A mudança de compreensão irá se assentar na afirmação de que o enfoque médico-


hospitalar e as tecnologias de intervenção médica tem pouco a ver com o processo
saúde-doença na sociedade (LAURELL, 1982; TAMBELLINI-AROUCA, 1984a).
Laurell (1982) buscou comprovar essa afirmação a partir de distintas perspectivas: o
estudo dos perfis patológicos de uma mesma sociedade ao longo dos tempos; o
estudo comparativo entre diferentes sociedades; o estudo interno das sociedades, a
partir da comparação das condições de saúde entre as distintas classes sociais.

O estudo dos perfis patológicos de uma mesma sociedade ao longo dos tempos
enfatizou que, em distintos momentos históricos, esses se mostram bem diferentes.
O estudo realizado por Laurell (1982) no México nos anos de 1940 e 1970 foi
utilizado para demonstrar essa diferença. Os perfis patológicos dos anos 40
mostram-se bem distintos daqueles dos anos 70. O estudo mostrou uma diminuição
importante na frequência de doenças infecciosas - como a febre tifóide, a malária, a
sífilis e a tuberculose – e um aumento absoluto da frequência de doenças crônicas
como as cardíacas, diabetes, do sistema nervoso central e acidentes. Segundo a
autora, as transformações ocorridas nestes perfis patológicos não podem ser
explicadas como resultantes do desenvolvimento das tecnologias médicas. Apesar
de o decréscimo de algumas doenças infecciosas ser atribuído a medidas de
prevenção específica, como as vacinas e as campanhas – e não do
desenvolvimento do modelo médico-hospitalar- outras como as pneumonias e
infecções intestinais não poderiam ser explicadas como resultantes do
desenvolvimento das técnicas médicas. Assim, segundo a autora, a explicação para
60

a mudança desses padrões de morbidade deveriam ser buscadas a partir das


características das formações sociais em cada um dos momentos históricos
(LAURELL, 1982).

A segunda perspectiva de análise usada pela autora para demonstrar e aprofundar o


caráter social da doença foi feita em estudo comparativo entre diferentes
sociedades. O estudo analisou e comparou México e Cuba, países que possuem
semelhanças quanto ao desenvolvimento econômico, mas que se diferem quanto às
relações sociais de produção. A comparação estatística evidenciou que, no México,
o peso das doenças infecto-contagiosas era muito maior do que o de Cuba, sendo
que neste último país dominam as doenças cardiovasculares e os tumores malignos.
Segundo a autora, as estatísticas demonstraram que o grau de desenvolvimento
econômico não está necessariamente ligado às condições coletivas de saúde, mas
sim na forma como se distribuem as relações sociais de produção nessas diferentes
sociedades, que é o fator que distingue Cuba do México (LAURELL, 1982).

A terceira perspectiva de análise focou-se no estudo da distribuição das doenças no


interior de uma sociedade, a partir de seus diversos grupos sociais. A articulação
entre o processo saúde-doença e o processo social partiu da demonstração de que
existem diferenças na distribuição das doenças entre estes grupos e que estas
diferenças estão ligadas a distintas características conforme o modo diferencial com
que estes grupos se inserem na produção e se relacionam com os demais grupos
sociais. A autora traz então exemplos de estudos latino-americanos sobre a
mortalidade infantil segundo a classe social, estudos que mostram que crianças
filhas de pais proletários morrem mais do que aquelas cujos pais fazem parte da alta
burguesia (LAURELL, 1982).

Essas três perspectivas de estudos, segundo a autora, permitiriam verificar, através


de dados empíricos, o caráter de produção social do processo saúde-doença, como
um fenômeno material objetivo. Enquanto um processo histórico, o perfil patológico
de uma população muda de acordo com o momento histórico. Enquanto um
processo social, o perfil varia não apenas de acordo com as diferentes formações
sociais - que se distinguem conforme o modo particular de se combinar o
desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção – mas
61

também dentro de uma mesma sociedade, conforme a inserção dos diferentes


grupos sociais no processo produtivo (LAURELL, 1982).

Em ‘Saúde e Sociedade’, Donnangelo (1979) focou seus estudos na compreensão


das complexas relações sociais existentes no processo de produção da saúde e da
doença através da análise dos diversos vínculos que existem entre os processos de
extensão de cobertura dos cuidados médicos, as políticas públicas de saúde e as
necessidades do capitalismo no sentido de manter e reproduzir a força de trabalho,
controlar as tensões e antagonismos sociais e realizar a acumulação de capital do
setor industrial de equipamentos e de insumos médicos. Assim, a ótica de análise
passou a ser estabelecida pela abordagem da dimensão coletiva como produtora e
reprodutora das formas, tanto de adoecimento, quanto de vitalidade. Ou seja, se a
finalidade era compreender a saúde-doença como um fenômeno coletivo, o objeto
de estudo não partia mais do indivíduo, mas sim do grupo. O objeto de estudo
escolhido e que passou a ser privilegiado pela corrente médico-social na produção
de conhecimento sobre a saúde foi o processo saúde-doença coletivo:

Por processo saúde-doença da coletividade, entendemos o modo


específico pelo qual ocorre no grupo o processo biológico de desgaste e
reprodução, destacando como momentos particulares a presença de um
funcionamento biológico diferente com consequência para o
desenvolvimento regular das atividades cotidianas, isto é, o surgimento da
doença (LAURELL, 1982, p.152).

A reformulação da natureza da doença, que passa a ser vista como um processo da


coletividade – no qual o que interessa é o estudo do modo como o processo
biológico acontece socialmente - trouxe como consequência a mudança do léxico:
de fator para processo. Essa nova visão da saúde-doença traduziu-se na
reinterpretação das causas das doenças: de entidades estáticas, passíveis de
abstração formal, ao entendimento de seu caráter dinâmico, como parte integrante
do movimento global da vida social (BREILH, 1991, p.200). Segundo Breilh (1991),
este movimento deve ser compreendido desde as suas menores expressões, desde
o inorgânico (físico), passando pelo orgânico, biológico, até chegar ao social:

O que queremos destacar aqui é que, para a concepção científica, o objeto


está constituído por um todo unitário em movimento ou mudança
permanente, e por isso dizemos que está composto por processos. Como a
matéria se transformou ao longo do tempo, do simples ao complexo, do
62

inferior ao superior, mantendo a concatenação e a unidade de cada novo


domínio que surgiu pelos saltos qualitativos da matéria, então, os domínios
do inorgânico e do social que foram surgindo passaram a constituir um todo
regido hierarquicamente pelas leis sociais (BREILH, 1991, p. 189).

Para explicar o processo social em que ocorre a produção da saúde-doença, Breilh


(1991) utilizou um conceito fundamental no quadro teórico do marxismo: o de
reprodução social. A categoria ‘classes sociais’ passou a explicar os processos
típicos de reprodução social em cada um dos modos de produção que constituem
uma dada formação social. No desenvolvimento de cada classe social aparecem
condições benéficas e condições negativas que são o resultado do processo
histórico no qual esta classe social está inscrita. Tanto as condições favoráveis, que
se denominaram valores ou bens, quanto as condições adversas, que se
denominaram contravalores, constituem um conjunto de contradições que se
estabelecem como perfil reprodutivo social da classe. Cada vez que se intensificam
os contravalores da classe, seja em suas condições objetivas, assim como em suas
expressões de consciência e organização de classe, desenvolve-se o eixo doença e
a mortalidade do perfil de saúde-doença deste grupo social (BREILH; GRANDA,
1989; BREILH, 1991).

Como um processo social, o objeto geral corresponde às formas


econômicas estruturais em meio das quais ocorrem processos particulares
de reprodução social e, como consequência, processos epidemiológicos
particulares nos quais situam-se os processos dos indivíduos. Vai-se
produzindo legalmente (sujeito a leis) a saúde-doença, em cada um dos
níveis de generalidade descritos (BREILH, 1991, p.198).

Ou seja, data-se, nesse momento, a entrada do pensamento marxista como


demarcação de uma teoria social crítica que dialoga com o campo da saúde pública.
Essa corrente de pensamento constrói não somente um deslocamento dentro do
campo do saber, mas a “crítica da crítica” à saúde pública: por dentro dela. Começa
a se configurar um novo campo de conhecimento: o campo da Saúde Coletiva.

O deslocamento de uma produção científica que migra do “fator social” para um


“processo social” cria a concatenação de idéias que conotam a formação de um
novo campo. Um campo que propõe um movimento ao invés de ser analisado ou
estudado como algo estático. Mesmo porque as categorias do pensamento marxista
63

auxiliam na produção de conceitos sociais que podem mudar em cada tempo


histórico. E cada vez que muda a história, muda também o método.

O foco de análise recai sobre a necessidade de observação das leis históricas de


produção e organização das sociedades na explicação das causas mais profundas
das doenças, valorizando a essência dos fatos sociais e não apenas as suas
manifestações fenomênicas. Breilh (1991) acredita na potencialidade desta vertente
teórica no sentido de evidenciar os estratos mais profundos da estrutura social onde
surge a determinação dos grandes processos sociais, desmitificando, assim, a
aparente igualdade dos homens frente ao risco de adoecer. Ainda segundo o autor,
nessa tarefa de reproposição da abordagem teórico-metodológica à saúde-doença,
o materialismo histórico surge como possibilidade de integrar o ponto de vista
popular, o rigor de um método de análise científica, assim como uma ferramenta
efetiva de transformação política.

O materialismo histórico possui como objeto de estudo a sociedade e as


leis gerais de seu desenvolvimento. É materialista porque sustenta que a
produção material é a base sobre a qual se estabelece o modo de viver dos
homens, o que determina toda a vida da sociedade. O materialismo
histórico atribui caráter histórico aos fenômenos sociais, considerando-os
suscetíveis de serem transformados pela ação dos homens (GARCIA,
1983, p.108).

A partir dessa perspectiva histórica, Tambellini-Arouca (1984b) dá ênfase nas


relações entre o trabalho e o processo saúde doença – porque serão estas as
principais categorias retiradas do pensamento marxista para auxiliar na leitura aos
fenômenos considerados estritos à saúde -, colocando no processo de trabalho a
dimensão da determinação do processo de adoecimento, ao considerar o trabalho
como o mediador das relações estabelecidas entre o homem e a natureza e entre os
próprios homens.

Do ponto de vista metodológico, para que essa forma coletiva de manifestação da


saúde-doença fosse estudada, o estudo concreto se realizaria nos indivíduos:

[...] porém, a interpretação dos dados não se dá em função de cada caso,


mas do conjunto deles. Ou seja, a construção do grupo significa considerá-
lo em seu caráter propriamente social, isto é, pelo modo como se relaciona
com o restante dos grupos no processo de trabalho da sociedade. A
64

investigação do padrão de desgaste e do perfil patológico tem que ser feita


relativamente aos organismos dos membros do grupo pesquisado não com
a singularidade de cada caso individual, como é feito pela medicina clínica,
mas estabelecendo-se o comum, isto é, o que caracteriza o grupo.
(LAURELL, 1982, p.153).

Esta forma de abordar o processo saúde-doença, segundo a corrente médico-social,


abriria a possibilidade para estudá-lo a partir da descrição das condições de saúde
deste grupo articuladas com as suas condições sociais (LAURELL, 1982). O estudo
de suas manifestações comuns partiria de uma dupla caracterização dos grupos:
não apenas do ponto de vista de suas características sociais, mas também a partir
da qualificação dos modos específicos de adoecer destes grupos. Para Laurell
(1982), a constituição dos grupos não deveria partir de suas características
biológicas, mas sim de suas características sociais, colocando somente em segundo
lugar as biológicas. A constituição dos grupos sociais, segundo a autora, deveria
possuir a sustentação de uma teoria social que fosse capaz de oferecer os
elementos teóricos necessários para a construção desses grupos.

As características biológicas dos grupos seriam buscadas através de diversos


indicadores tais como expectativa de vida, condições nutricionais, perfis de
morbidade e mortalidade dos grupos. Segundo Laurell (1982), estes indicadores são
maneiras diversas de mostrar a forma como o processo saúde-doença se manifesta
empiricamente. Aqui, a objetividade é garantida, por um lado, pela descrição de
características que se mostram comuns entre os grupos sociais e, por outro,
mediante a descrição de indicadores e taxas de morbi-mortalidade.

3.2 A QUESTÃO DA DETERMINAÇÃO E A REINTERPRETAÇÃO DO SOCIAL-


BIOLÓGICO

A abordagem do aspecto histórico-social do fenômeno saúde-doença trouxe a


necessidade de se repensar a questão da causalidade, através da busca pelo
entendimento das leis das determinações que operam na vida social. Esse
entendimento buscava uma hierarquização dos elementos causais, através da
65

exposição de seus mecanismos de ação e uma reinterpretação do ‘azar’ além dos


limites ordinários da observação e do conhecimento (FACCHINI, 1994).

Breilh (1991) situou os principais tipos de determinação do fato epidemiológico


através das seguintes leis:

1. a lei da determinação dialética, que estabelece a totalidade do processo pela


luta interna e pela eventual síntese subsequente de seus componentes
essenciais opostos;

2. a determinação causal ou causação que dá ênfase nas relações de causa-


efeito, através da determinação do efeito por uma causa externa a ele (causa
eficiente);

3. a lei da interação (ou causação recíproca ou interdependência funcional) que


atua em todos os chamados “sistemas” (sistemas orgânicos, de atenção
médica, etc.) e que faz uma leitura da determinação do consequente pela
ação recíproca; ou seja, explica o desenvolvimento de funções executadas
em determinados níveis da realidade; funções que se caracterizam por uma
sequência de ações e reações que, em conjunto, estabelecem uma
“retroalimentação” no interior de cada sistema;

4. a determinação probabilística que é explicada pelas leis estatísticas de


distribuição quantitativa dos processos e a probabilidade de ocorrência de
certas manifestações.

Ainda segundo o autor, todas essas categorias de determinação encontram-se


mutuamente relacionadas e nenhuma atua de forma independente da outra
(BREILH, 1991).

A passagem da interpretação da ‘causação’ para a ‘determinação’ do processo


saúde-doença recolocou a problemática da relação entre o processo social e o
processo biológico. Tal problemática converteu-se em um dos principais ‘nós’ da
epidemiologia moderna, o qual Laurell (1982) denominou de “caixa negra”:
66

Na verdade, enfrentamos uma ‘caixa negra’, na qual o social entra de um


lado e o biológico sai de outro, sem que se saiba o que ocorre dentro dela.
Esse é, talvez, o problema mais candente para a explicação causal social
do processo saúde-doença. Este problema não está resolvido (LAURELL,
1982, p. 156).

Apesar disso, para essa autora, a busca pela resolução dessa problemática deve ser
feita no sentido de entendê-la a partir de uma perspectiva que compreenda o seu
caráter duplo: biológico e social (LAURELL, 1982). Segundo a autora, entender a
saúde-doença como um processo social não significa contrapor o social ao
biológico, mas o social ao natural, já que o biológico é em si mesmo histórico e
social (LAURELL, 1982). Nesse sentido, a busca se daria no sentido de
compreender como o caráter histórico e social dos fenômenos assume a forma
biológica. (FACCHINI, 1994).

O fato de se haver definido que o processo saúde-doença tem caráter


histórico em si mesmo e não apenas porque está socialmente determinado,
permite-nos afirmar que o vínculo entre o processo social e o processo
biológico saúde-doença é dado por processos particulares, que são ao
mesmo tempo sociais e biológicos. Por exemplo, o modo concreto de
trabalhar, cujo caráter social é evidente, é ao mesmo tempo biológico, pois
implica em determinada atividade neuro-muscular, metabólica, etc. Outro
exemplo poderia ser o comer, uma vez que o que se come e como se faz
isso são fatos sociais, que têm sua contraparte biológica (LAURELL, 1982,
p. 156).

Já Breilh (1991) partiu das relações entre o movimento ‘social mais geral’ e o
movimento ‘biológico’ procurando explicitar que o segundo estaria subsumido no
primeiro:

O social, as leis da reprodução social, o sistema de contradições dentro


das quais sucede a história pessoal e o movimento biológico subsumido;
mas também as condições naturais do ambiente, os fenômenos do dia-a-
dia e da biologia humana participam na determinação da saúde-doença,
seja através da experiência biológica acumulada que define as normas de
reação do genótipo dos indivíduos, seja através dos processos fisiológicos
que são possíveis num fenótipo em circunstâncias históricas específicas
(configuração ergonômica, configuração imune, estado nutricional e
metabólico-endócrino, capacidade de reposição, etc.) (BREILH, 1991,
p.81).

Em outro fragmento, é possível constatar a inversão das relações entre o social e o


biológico no plano do conhecimento das doenças:
67

Com efeito, pelo fato de leis econômicas, políticas e culturais atuarem na


base do movimento epidemiológico, isto não quer dizer que não exista
espaço para o individual-biológico definir, como parte decisiva, sua própria
realidade. Por conseguinte, embora os processos da natureza, onde se
desenvolve a vida de uma população, e os processos biológicos
(fisiopatológicos e etiopatogênicos), que ocorrem nos organismos-atores da
vida social, subordinem-se aos processos da vida social mais ampla,
integrando-os, ambos participam também como determinantes desta vida e
como condições decisivas do comportamento epidemiológico. Essa forma
de entender a relação entre o social mais geral e o biológico rompe com a
idéia de que há uma separação entre essas duas instâncias como a que
existiria entre duas partes distintas do mundo, que só se tocassem
externamente. Pelo contrário, entre o social mais amplo e o biológico há
um profundo entrelaçamento. (BREILH, 1991, p. 203-204).

Assim, a corrente médico-social, ao propor uma nova forma de abordagem do


processo de adoecimento, trouxe para o cerne da discussão a necessidade de lidar
com a problemática da antinomia biológico-social, problemática esta que ainda abre
amplos debates (MELO-FILHO, 2003; IANNI, 2008). Ianni (2008), em pesquisa feita
nos anais dos Congressos Brasileiros de Epidemiologia – textos compilados no
período de 1990 a 2002 -, retrata bem a tensão entre essas duas esferas, através do
incômodo reconhecimento com o fato de que biológico e social formam um
‘constructu’ com fronteiras cada vez mais difusas.

Essa autora partiu do pressuposto de que a Epidemiologia avançou


significativamente na incorporação da determinação social, sem rediscutir, no
entanto, do ponto de vista epistemológico, o conceito de biológico, ficando, de certa
forma, “refém” do objeto biomédico que criticou. A pesquisa apontou que na maioria
dos textos analisados predominavam concepções do biológico como “depositário” do
social, de forma que “as coisas sociais” explicassem as naturais, “como se
sociedade e natureza pertencessem a universos diferentes, não constitutivos de
uma única totalidade, constante e mútua relação, interação” (IANNI, 2008, p.32).

O conceito de ‘social’ referia-se predominantemente, nos textos analisados, à esfera


do “societário”, fundado na dissociação disciplinar das ciências sociais e naturais.
Além disso, evidenciou-se que o pensamento epidemiológico baseava-se na noção
de identificação do biológico como um atributo individual, “como se as coisas
coletivas fossem necessariamente da esfera do social e as do indivíduo,
necessariamente, da esfera biológica” (IANNI, 2008, p.33). A autora chama atenção
68

para as armadilhas que perpetuam concepções simplificadoras dessas interações,


tendo em vista a extrema complexidade envolvida nesses conceitos e reitera:

Biológico é atributo de seres orgânicos, vivos, coletivos e individuais.


Sendo assim, biológico e social não configuram uma contraposição,
diferentemente, por exemplo, das oposições clássicas encontradas no
campo das ciências sociais, como aquela entre individual e coletivo,
natureza e cultura. O biológico é social, seja na esfera dos seres individuais
ou dos seres em comunidades, coletividades, populações. Portanto, torna-
se necessário desenvolver esforços no sentido de trabalhar (por dentro do
objeto epidemiológico) essas interações, essas relações, aprofundando o
diálogo interdisciplinar, epistemológico, menos como delimitação de
territórios de saberes disciplinarmente disciplinados, e mais como
processos e interações como de fato o são (IANNI, 2008, p.37-38).

Como notaremos adiante, essas tensões vão se refletir, da mesma forma, no campo
político.
69

4. O CAMPO DOS DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE: DO CENÁRIO


MUNDIAL AO CENÁRIO BRASILEIRO

Apesar de seu reaparecimento recente no cenário político e científico, o tema dos


determinantes sociais da saúde possui uma trajetória histórica que se confunde com
a própria trajetória de construção de conhecimento e de práticas em saúde pública.
Essa trajetória foi marcada, desde o seu início, por tensões e conflitos que se
refletiam em um movimento pendular, ora dando ênfase a uma leitura ‘social’, ora
deslocando-se para uma abordagem mais ‘biológica’ da saúde. Isso, além de
reforçar as trincheiras colocadas entre o ‘biológico’ e o ‘social’ e associar o biológico
estritamente ao individual, revela a intrínseca relação entre a produção de
conhecimento científico no campo da saúde com o cenário sócio-político, que
alimenta e é alimentada pelas prioridades que se colocam em sua ‘agenda’.

Assim, no início do século XIX, entre os vários paradigmas explicativos dos


problemas de saúde, predominavam os estudos sobre as relações entre as
condições sócio-econômicas e o processo saúde-doença dos indivíduos, assim
como a necessidade de que essas relações fossem submetidas à pesquisa
científica. Virchow, um dos mais importantes e destacados cientistas desta época, já
mostrava em seus estudos a intrínseca relação existente entre a ciência médica e as
ciências sociais, assim como chamava a atenção para a necessidade da intervenção
da medicina nos campos político e social (ROSEN, 1980).

Apesar disso, no final do século XIX, o paradigma bacteriológico é que ganha


destaque no campo de conhecimento e de práticas em saúde, através das
descobertas de Kock e Pasteur e da criação da primeira Escola de Saúde pública
nos Estados Unidos, na Universidade Johns Hopkins no início do século XX; o que
fez predominar, durante muito tempo, o enfoque biológico do processo saúde-
doença no centro de debate da saúde pública, em detrimento dos enfoques
sociopolíticos ou ambientais (BUSS; PELLERGINI-FILHO, 2007).

Com a criação da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1948, a saúde passa a


ser considerada em sua Constituição como um completo estado de bem estar físico,
mental e social, e não apenas a ausência de doenças, trazendo novamente o
70

contexto social na análise da saúde (VILLAR, 2007). A criação desta organização


internacional - braço técnico da Organização das Nações Unidas - marca a
retomada da influência dos interesses político-econômicos norte-americanos neste
campo de ‘saber e fazer’.

Essa agência internacional, juntamente com a criação do Fundo Monetário


Internacional e do Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento
(BIRD – a primeira organização do Banco Mundial), faz parte de uma arquitetura
institucional desenhada logo no pós-guerra pelo governo norte-americano como
parte de sua estratégia política de hegemonia mundial (MATTOS, 2001). Apesar de
trazer em sua criação o contexto social para dentro da análise das políticas de
saúde, os conflitos e tensões decorrentes entre o enfoque sociopolítico e o
paradigma biológico marcaram a trajetória de influência política mundial da OMS
durante todo século XX.

Tambellini e Schütz (2009) nos trazem uma interessante perspectiva histórica desta
temática, não do ponto de vista de sua ‘origem’, mas como um ‘processo social já
inventado’. Estes autores consideram a publicação do Relatório Lalonde, em 1974,
no Canadá como o primeiro registro da noção de ‘determinação da saúde’ a ganhar
forte repercussão no campo da Saúde pública. Este relatório foi fruto de um
documento de trabalho destinado à discussão de reformas no sistema de saúde do
Canadá e trouxe, pela primeira vez, o reconhecimento governamental de um país
ocidental quanto à falência do paradigma biomédico do seu sistema nacional de
saúde. Embora a noção de determinação ainda não tivesse recebido o adjetivo de
‘social’ no referido relatório, esse propõe uma nova abordagem para o campo da
saúde, que para além da biologia humana, envolvesse também o entorno ambiental,
os estilos de vida e a organização dos sistemas de saúde pública (TAMBELLINI;
SCHÜTZ, 2009).

Esses autores fazem uma importante análise do contexto histórico-político em que


este relatório se insere, que foi marcado por uma forte crise econômica mundial (a
“Crise do Petróleo”), pelo crescente desenvolvimento da tecnologia médica e por um
intenso movimento social de lutas reivindicativas de mudanças políticas que
ameaçavam os poderes instituídos. Este contexto apontou a urgência em se
71

legitimar reformas no sistema de saúde devido aos crescentes gastos com os


cuidados médicos. Nesse sentido, os autores evidenciam que, embora este relatório
tenha contribuído - ainda que de forma não intencional - para a introdução da
questão dos determinantes no campo oficial da gestão em saúde, ele se restringiu à
discussão das políticas públicas capazes de interferir nos ‘maus hábitos’ e à
necessidade de se melhorar o entorno das pessoas, passando longe de se
aprofundar na questão da ‘determinação social da saúde’ (TAMBELLINI; SCHÜTZ,
2009). O “dilema preventivista” apresentado por Arouca (2003) retrata de forma
metódica e exemplar este contexto de emergência do discurso preventivista.

De certa forma, este relatório ecoou com a Conferência de Alma Ata, em 1978, que
se destacou como um importante marco político sobre a questão dos determinantes
sociais, dando ênfase aos mesmos como um dos pilares fundamentais para a
Estratégia de Atenção Primária à Saúde, deslocando novamente o pêndulo da OMS
para uma abordagem sócio-política e ambiental em saúde pública.

No entanto, esta importância dada pela OMS ao enfoque social nas políticas de
saúde encontra nas décadas seguintes (80 e 90) uma forte resistência à sua
propagação com as grandes transformações na política econômica mundial que
culminaram no crescimento da onda neoliberal e no deslocamento do enfoque para
uma concepção voltada para a assistência médica individual (BUSS; PELLERGINI-
FILHO, 2007).

Assim, a partir das décadas de 80 e 90 a OMS perde grande parte de sua influência
não apenas na condução da política de saúde mundial, mas também na condução
das pesquisas em saúde. Nesta época, o Banco Mundial passa a assumir um lugar
de destaque na liderança do debate internacional acerca das políticas de saúde,
dando prioridade às pesquisas relacionadas à construção de critérios de custo-
efetividade e ao redimensionamento da atuação governamental nestas políticas,
priorizando aquelas focalizadas nos pobres e vinculadas a pacotes de mínimos
sociais, aliadas à expansão da assistência privada (MATTOS, 2001).

No entanto, no final da década de 90 o modelo neoliberal de intensa priorização do


crescimento econômico e de redução do papel dos Estados no plano social começa
72

a mostrar sinais de desgastes, ligado ao aumento dos problemas ambientais e das


iniquidades sociais. Dentro do setor saúde isto se traduziu em um aumento das
tensões geradas pelas iniquidades em saúde, o que fez reaparecer a preocupação
com a justiça social (VILLAR, 2007).

Esse período surge associado à tendência mundial de formação de blocos de países


com integração de mercados, que repudia a desigualdade extrema, não devido à
justiça social, senão por interesses mercadológicos, na medida que tal desigualdade
impossibilita o acesso de certos grupos sociais à participação plena do novo
mercado integrado que começa a emergir (NOGUEIRA, 2009).

É nesse contexto em que, a partir de 2005, este tema volta a ser debatido na
agenda política mundial quando a OMS cria a Comissão sobre os Determinantes
Sociais da Saúde com o objetivo de promover, em âmbito internacional, uma tomada
de consciência sobre a importância dos determinantes sociais na situação de saúde
de indivíduos e populações e sobre a necessidade do combate às iniquidades em
saúde por eles geradas.

Essa comissão foi incumbida de recolher, sistematizar e sintetizar evidências sobre


os determinantes sociais e o seu impacto sobre as desigualdades na saúde, assim
como de produzir recomendações para ação sobre os mesmos. Para ela, “os
determinantes estruturais e as condições de vida cotidianas constituem os
determinantes sociais da saúde e são responsáveis pela maior parte das
desigualdades na saúde dentro e entre países” (COMISSÃO PARA OS
DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE, 2010, p.1). Assim, os determinantes
sociais da saúde são entendidos como as “circunstâncias em que as populações
crescem, vivem, trabalham e envelhecem, bem como os sistemas implementados
para lidar com a doença”. Tais circunstâncias são moldadas, por outro lado, por
“forças de ordem política, social e econômica”. Neste sentido, as condições de vida
mostram-se “determinadas”, pelo lugar em que cada um ocupa na “hierarquia social”
(COMISSÃO PARA OS DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE, 2010, p.1).

Em seu relatório final intitulado ‘Redução das Desigualdades no Período de uma


Geração’, esta comissão faz uma convocação à OMS e aos governos nacionais no
73

sentido de liderarem a ação à escala global sobre os determinantes sociais da


saúde, de forma a alcançarem a meta da igualdade na saúde. Para isso, estabelece
três recomendações gerais: melhorar as condições de vida cotidianas; abordar a
distribuição desigual de poder, dinheiro e recursos; quantificar e compreender o
problema e avaliar o impacto das ações (COMISSÃO PARA OS DETERMINANTES
SOCIAIS DA SAÚDE, 2010).

Em resposta à proposta em torno dos determinantes sociais da saúde


desencadeada pela OMS, em março de 2006 foi criada no Brasil a Comissão
Nacional sobre os Determinantes Sociais da Saúde. Estabelecida através de
Decreto Presidencial, com um mandato de dois anos, ela trouxe para a agenda
política brasileira a discussão, já iniciada, sobre a necessidade de intervir nos
determinantes sociais na busca pela equidade em saúde (BRASIL, 2006). Esta
comissão foi constituída por variados atores do cenário acadêmico, científico,
cultural e empresarial brasileiro. Pellegrini-Filho e Vettore (2011, p.133), acreditam
que a criação desta comissão “responde a uma tradição do movimento sanitário
brasileiro de aprofundar o conhecimento das relações entre os determinantes
socioeconômicos e a situação de saúde, e de promover ações concretas baseadas
nesse conhecimento”.

Em abril de 2008, a citada comissão, através da publicação do seu Relatório Final


intitulado ‘As Causas Sociais das Iniquidades em Saúde no Brasil’, recomenda que
a atuação sobre os DSS deva ser baseada em três pilares fundamentais: ações
intersetoriais que visem à melhoria da qualidade de vida e saúde, a participação
social e a promoção da autonomia dos grupos mais vulneráveis da população e a
evidência científica, que incorpore a produção sistemática de informações e
conhecimentos sobre as relações entre DSS e a saúde, assim como a avaliação
das intervenções produzidas (COMISSÃO NACIONAL SOBRE DETERMINANTES
SOCIAIS DA SAÚDE, 2008).

Por ser um dos países pioneiros na introdução desta temática em sua pauta
política, o Brasil sediou, em outubro de 2011, a 1ª Conferência Mundial sobre os
Determinantes Sociais da Saúde, organizada pela OMS. A Declaração Rio,
documento final desta conferência, destacou cinco áreas estratégicas para o
74

alcance da equidade em saúde: melhor governança em saúde, a participação social


na formulação e implementação das políticas públicas, sistemas de saúde
orientados para a redução das iniquidades em saúde, melhor governança global
para a saúde e monitorização dos avanços. (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA
SAÚDE, 2011). Vale destacar que a retomada desta temática e mobilização
internacional realizada pela OMS se situa em uma nova conjuntura política mundial,
marcada por uma possível retomada de sua liderança acerca das políticas de saúde
após o seu apagamento na década de 90.

Algumas críticas têm sido dirigidas à abordagem feita pela OMS em relação à forma
como esta temática reaparece em seu discurso. Para Nogueira (2009), o contexto
político-econômico internacional no qual ocorre a retomada do tema fez com que, no
próprio relatório da OMS, a análise dos determinantes sociais da saúde ocorresse
de forma reducionista e fragmentada. Este debate foi apresentado e discutido no
posicionamento da Associação Latino-Americana de Medicina Social – ALAMES - e
publicado pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – CEBES - no ano de 2011,
solicitando que o conceito de determinantes sociais não fosse banalizado ou
reduzido, mas que fosse lembrado que, por trás de todo reducionismo do conceito,
estava uma clara idéia de mercantilização da vida.

Tambellini e Schütz (2009) acrescentam que o modelo teórico conceitual resultante


deste trabalho coletivo acaba por trazer um ofuscamento dos processos que
compõem as articulações dinâmicas do objeto saúde-doença. Reforçam ainda que

[...] Ao mesmo tempo, a definição esboçada do objeto ‘saúde’ carece de


um desenvolvimento conceitual que permita sua abordagem enquanto um
objeto complexo cujas determinações estão sujeitas a graus variáveis de
incerteza e diversidade. Nesse sentido, pode-se considerar a tentativa de
separar o par saúde/doença operada pela Comissão da OMS como uma
forma malograda de resolver as contradições inerentes ao próprio objeto
saúde. Um objeto situado em um processo de ‘vir a ser’ no qual
acontecimentos, ações, determinações e acasos imprimem suas
características desordenadas dentro do grande número de relações e
articulações de natureza e formas variadas constituindo-se num sistema
complexo de determinações (TAMBELLINI ; SCHÜTZ, 2009, p. 377).

Já Arellano, Escudero e Carmona (2008) discutem a insuficiência das


recomendações da OMS em avançar na compreensão da origem dos problemas
75

relativos às iniquidades em saúde. Dentre várias limitações apontadas por estes


autores no referido relatório, destacamos:

• a redução do problema das desigualdades sociais a um problema distributivo,


limitado ao plano da ‘melhoria das condições de vida’ e do ‘repartir recursos’;

• a fragmentação da realidade social na análise da situação de saúde a fatores


sociais, perdendo a sua dimensão de processos sócio-históricos;

• a ausência de uma reflexão e análise crítica sobre a desvalorização da vida e


da saúde de populações, impostas pela fase atual de desenvolvimento do
capitalismo; assim como um silêncio quanto a problemas como as guerras e o
genocídio, que causam mortes massivas e enorme sofrimento das
populações (ARELLANO; ESCUDERO; CARMONA, 2008).

Mais recentemente a temática dos DSS foi lembrada na discussão ocorrida na


Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável - a RIO +20 -
evento de caráter mundial, também sediado no Brasil, menos de um ano após a
Conferência Mundial sobre os DSS. A RIO +20 caracterizou-se pela definição de
uma agenda global e pela renovação de um compromisso político, entre os vários
países envolvidos, com o desenvolvimento sustentável para as próximas décadas,
destacando a importância da atuação intergovernamental em suas dimensões
social, econômica e política.

Especificamente na área temática destinada à saúde, o documento cita os


determinantes sociais da saúde como uma condição prévia, um resultado e um
indicador dessas três dimensões do desenvolvimento sustentável. O parágrafo 138
do documento reitera a necessidade de ação sobre os DSS na busca pela equidade
ao afirmar: “Nós estamos convencidos de que a ação sobre os determinantes sociais
e ambientais da saúde, tanto na população pobre e vulnerável quanto em toda a
população, é importante para criar sociedades saudáveis, inclusivas, equitativas e
economicamente produtivas” (UNITED NATIONS, 2012, p.27, tradução nossa).
76

Revisitado o cenário político atual em que se inserem os determinantes sociais da


saúde vale perguntar de que forma vem se configurando o campo de produção
acadêmico-científica sobre o tema. No Brasil, essa produção de conhecimento
científico ganha destaque no campo da saúde pública/saúde coletiva, campo que
tem apresentado atualmente uma crescente quantidade de estudos que envolvem a
relação dos determinantes sociais com as iniquidades em saúde. Em geral, estes
estudos tem se caracterizado pela importância dada ao uso da evidência científica
na abordagem ao tema. Pellegrini-Filho (2011a) dá ênfase a esta ferramenta,
principalmente no sentido de reforçar a sua capacidade em auxiliar na definição de
políticas públicas intersetoriais. Este autor faz, em seu artigo, uma breve análise
sobre as dificuldades na produção e utilização da evidência científica que
fundamentem a ação sobre os DSS, como aquelas advindas do uso de estudos
clínicos randomizados (considerados, segundo o autor, como as fontes mais
confiáveis de evidência científica) para a avaliação de intervenções em
comunidades. Este autor, neste mesmo artigo, também apresenta algumas
recomendações para a superação das dificuldades apresentadas como, por
exemplo, a criação de observatórios, instâncias responsáveis para fazer a interface
entre as instituições que produzem as informações e aquelas responsáveis pelo
processo de tomada de decisões.

Nesse sentido, o Centro de Estudos, Políticas e Informação sobre DSS da


Fundação Oswaldo Cruz mantém recentemente um observatório a fim de promover
estudos sobre iniquidades em saúde e seus determinantes, espaço que integra o
intercâmbio de conhecimento conformado pelo portal de determinantes sociais da
saúde (www.dssbr.org) e pela Biblioteca Virtual em Saúde sobre DSS
(www.bvsdss.icict.fiocruz.br) (AKERMAN et al, 2011; PELLEGRINI-FILHO, 2011b).
O Observatório se caracteriza pela publicação e análise de especialistas sobre um
conjunto de diversos indicadores (sociais, demográficos, econômicos e de saúde),
que buscam identificar os determinantes da saúde e os efeitos de políticas de
intervenção sobre eles, com ênfase nas implicações de seus resultados para as
políticas de combate às iniquidades em saúde.

Nessa ênfase dada à necessidade da evidência científica nota-se uma priorização


pela abordagem epidemiológica sobre os DSS (CENTRO BRASILEIRO DE
77

ESTUDOS DE SAÚDE, 2009; NOGUEIRA, 2010a). Por esta perspectiva, os


determinantes sociais são abordados isoladamente, de acordo com o objetivo de
cada estudo, segundo camadas/estratificações (características demográficas,
condições socioeconômicas, culturais e ambientais; redes de apoio social, condições
de vida e trabalho, estilo de vida) e correlacionados com eventos de
morbimortalidade entre distintos grupos sociais.

Frente a esta constatação, Nogueira (2010a) afirma que o ‘aparentemente novo


campo’ de estudos sobre os DSS acaba por reproduzir e fortalecer a perspectiva
positivista que norteia a epidemiologia tradicional. Segundo este autor, o tema
reaparece notavelmente desprovido de um peso teórico e político que assumira nas
décadas de 70 e 80, quando então era analisado à luz da teoria marxista, com uma
perspectiva crítica. Épocas estas que marcaram a profunda influência destes
referenciais na própria constituição do Movimento Sanitário Brasileiro e em sua luta
política tanto do ponto de vista mais restrito, setorial - pela garantia do direito à
saúde, criação do conceito ampliado de saúde - quanto daquele mais abrangente
que englobava a luta por uma reforma da própria sociedade brasileira.

Fleury-Teixeira e Bronzo (2010, p.41) reiteram essa fragilidade analítica no que se


refere aos contextos econômicos, sociais ou políticos ao afirmarem que “a impressão
disseminada é que o amontoado de pesquisas empíricas vinculando as condições
de saúde de grupos populacionais a determinantes sociais diversos não consegue
atingir um significado mais ativo nos espaços de deliberação e decisão públicas”.
Estes autores defendem a idéia de que já existem demasiadas evidências para que
seja feita a ação sobre os DSS e o que falta atualmente é, sobretudo, uma vontade
política, no sentido de ir de encontro às raízes das desigualdades sociais.

Por outro lado, Pellegrini-Filho (2011a) afirma tratar-se de um movimento novo que
alia a combinação de novas ferramentas, metodologias e abordagens capazes de
imprimir uma nova característica à saúde pública. Nesse mesmo caminho, Akerman
et al. (2011) declaram valorizar o esforço da OMS, especialmente no sentido de
impulsionar a discussão político-científica sobre os determinantes sociais da saúde
no âmbito internacional. No entanto, afirmam compartilhar da análise de que muito
78

do que foi dito precisa ser traduzido em experiências concretas e vivências no


âmbito local.

Como podemos notar, longe de apresentar consensos, o campo de exploração da


‘determinação social da saúde’ apresenta-se permeado por conflitos epistemológicos
e atravessado por contextos históricos e atores sociais diversos, traduzindo-se em
concepções sujeitas a diferentes interesses (TAMBELLINI; SCHÜTZ, 2009).

4.1 O DEBATE NA SOCIOLOGIA: DUAS PERSPECTIVAS CRÍTICAS SOBRE OS


‘DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE’

A seguir, traremos duas perspectivas sociológicas de análise crítica ao campo dos


determinantes sociais da saúde, da forma como ele predomina como paradigma
científico. Ambas nos trazem distintos olhares teóricos, de forma a tornar possível a
apropriação de elementos de análise, categorias e conceitos úteis para estabelecer
a crítica que por ora propomos.

A primeira perspectiva a ser apresentada é a da sociologia crítica, que se ampara


em autores que realizam uma leitura baseada em referenciais marxistas,
particularmente sobre a ‘questão social’, além de trazerem uma releitura da noção
de ‘determinação social da saúde’.

A segunda perspectiva é a da sociologia contemporânea, que traz correntes teóricas


no interior das ciências sociais atuais e que realiza a crítica ao campo,
principalmente a partir de duas categorias de análise: a idéia do social que precisa
ser ‘reagregado’ de Latour (2012) e a passagem de uma ciência do controle para
uma ciência da compreensão defendida por Santos (2008).

Vale ressaltar que apresentamos essas perspectivas teóricas de forma não


hierárquica, não excludente e não competitiva. O que queremos enfatizar é a
possibilidade de dois olhares distintos, que se complementam.
79

4.1.1 A Perspectiva da Sociologia Crítica

Para uma discussão que sustente uma abordagem do ‘social’ para além de fatores e
estratificações entendemos que a visão da sociologia crítica possa trazer elementos
que auxiliem em uma compreensão mais problematizada e menos fragmentada;
visto que a ‘questão social’ tem sido objeto de estudo de vários pesquisadores
clássicos e contemporâneos dentro do campo das ciências sociais.

Na tentativa de uma maior elucidação teórico-conceitual com este termo, Wanderley


(2004) nos faz uma primeira aproximação com o tema a partir do que ele considera
como o ‘social parcial’. Uma visão do senso comum, ou seja, aquela que está
presente em todas as classes sociais, tanto na sociedade civil, como nas ações de
governo; visão esta que se apresenta sob três óticas.

A primeira ótica refere-se ao seu lugar subordinado ao econômico, ou seja, trazendo


o social como efeito do econômico. Nesta perspectiva, se há crescimento econômico
deve haver desenvolvimento social. Na verdade, o que esta visão mascara é que o
desenvolvimento social está necessariamente ligado ao caráter redistributivo da
riqueza e não apenas ao crescimento econômico, ou seja, não apenas importa o
quanto se cresce, mas também, e principalmente, a quem esse crescimento
beneficia. O Brasil é um exemplo paradigmático desta tensão, na medida em que se
mostra como uma das maiores potências mundiais em termos de economia,
apresentando níveis crescentes de superação da pobreza absoluta, ao mesmo
tempo em que se encontra em um dos primeiros lugares no ranking dos países em
desigualdade social (WANDERLEY, 2004).

Uma segunda ótica compreende o social na perspectiva do setorial, como sendo


uma dimensão específica da sociedade no seu todo: economia, política, cultural e
‘social’. Na realidade, ela se traduz na divisão e fragmentação dos ‘setores sociais’
na organização governamental de um determinado país: saúde, educação,
habitação, transporte, dentre outros, vinculando-se à primeira visão na medida em
que considera que se a economia crescer, todos esses setores serão contemplados
pelos recursos públicos; desconsiderando a complexa relação existente entre todas
essas dimensões (WANDERLEY, 2004).
80

Um exemplo que bem expressa essa questão são as propostas para o combate à
pobreza na América Latina trazidas por três organismos internacionais: Comissão
Econômica para a América Latina - CEPAL - , Banco Mundial e o Projeto Regional
para a Superação da Pobreza do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento - PNUD (WANDERLEY, 2004). Segundo Wanderley (2004),
apesar de apresentarem importantes divergências no que tange às metodologias
empregadas, assim como na conceituação e quantificação da pobreza nesta região,
todos apresentam a mesma postura enfática ao afirmarem o crescimento econômico
como condição sine qua non para combatê-la.

A terceira ótica apresentada pelo autor se assenta sobre uma perspectiva mais
restrita do social, na medida em que, para seus defensores, a pobreza e as
desigualdades sociais, por serem consideradas históricas, devem ser tratadas pelos
governos de forma marginal, a não atrapalhar o crescimento econômico, ou seja,
através de políticas compensatórias. Em outros termos, convertem problemas
estruturais em demandas conjunturais, sob o pretexto de que demandariam
demasiado tempo, incompatível com as temporalidades governamentais, para serem
superadas (WANDERLEY, 2004).

Não é preciso fazer muito esforço para constatar que, na verdade, essa é a visão do
social predominantemente adotada pelos governos no Brasil, tanto em sua visão de
sociedade, como nos projetos e planos de desenvolvimento que implementa,
fazendo com que predominem políticas setoriais isoladas que abordem a questão
social de forma fragmentada e descontextualizada da própria dinâmica social
(WANDERLEY, 2004). Como veremos adiante, a propagação da onda neoliberal
encontra sustentação nesta visão fragmentada do social.

Uma abordagem mais abrangente da questão social busca justamente superar


esses reducionismos e fragmentações entre os planos econômico, político e social,
de maneira a incorporá-los de forma orgânica e inseparável do social: o ‘social
universal’ (WANDERLEY, 2004). Assim:

A questão social diz respeito aos vínculos históricos, que amalgamam cada
sociedade, e às tensões e contradições que levam à sua ruptura. Nesse
sentido, ela é parte constitutiva dos componentes básicos da organização
social – Estado, Nação, cidadania, trabalho, etnia, gênero, entre outros –
81

considerados essenciais para a continuidade e mudança da sociedade


(BÓGUZ; YAZBEK; BELFIORE-WANDERLEY, 2004, p.9).

Nesta perspectiva, Castel (2004), ao analisar a questão social - mais


especificamente a partir da Europa Ocidental –, ressalta que esta definição do social
universal pode ser perfeitamente ilustrada na primeira metade do século XIX, nos
primórdios da industrialização, quando então a questão social é explicitada pela
primeira vez. Para este autor, ela foi descrita por grande parte dos observadores da
época do ponto de vista do pauperismo, de forma a caracterizar a ameaça à ordem
social representada pelos proletários dos primeiros agrupamentos industriais,
situados de forma marginal à sociedade industrial.

É neste contexto em que o Estado passa a adquirir centralidade e legitimidade no


controle, regulação e mediação deste processo imposto pela industrialização: a
“socialização da economia”. Trata-se de um termo usado por Santos (1998) ao
referir-se ao longo percurso histórico de luta das classes trabalhadoras pelo
reconhecimento dos direitos de cidadania, tais como a regulação do tempo e das
condições do trabalho, a criação da seguridade social, dos movimentos grevistas,
dos sindicatos. Ainda segundo este autor, a socialização da economia é fruto do
“reconhecimento progressivo da luta de classes enquanto instrumento, não de
superação, mas de transformação do capitalismo” (SANTOS, 1998, p.12).

Assim, a expansão da capacidade reguladora do Estado nas sociedades capitalistas


faz com que, ao longo do século XX, a questão social passe a ser analisada no
âmbito do desenvolvimento do Estado Providência no Ocidente, fundado de forma a
responder aos conflitos sociais gerados pela Revolução Industrial, através de
sistemas de garantias de proteção social (RIBEIRO, 2010).

Dessa forma, a questão social é vista fundamentalmente, durante quatro décadas no


século XX, sob o modo de produção capitalista, a partir do que Castel (2004) vem a
denominar de ‘sociedade salarial’, na qual as relações sociais se estabelecem a
partir do trabalho, considerado como um “lócus social privilegiado de inserção e de
sociabilidades de pessoas e grupos” (LUZ, 2010, p.131). Em outros termos, foi sob o
modo de produção capitalista, que se instituiu e que vem se reproduzindo
82

historicamente, um conjunto de relações sociais, nos mais diversos planos:


socioeconômico, jurídico, político e ideológico (CASTEL, 1995 apud LUZ, 2010).

Este regime de sociabilidade política, econômica e cultural das sociedades


modernas é, na verdade, o resultado de um longo processo de negociação política
entre diferentes atores sociais, que culminou na definição de um contrato social.
Neste caso, definiram-se as obrigações sociais entre os atores envolvidos e coube
ao Estado a regulação entre as várias dimensões das relações sociais, de forma a
garantir o controle das tensões existentes entre interesses divergentes, em um
campo social que se designou por sociedade civil (SANTOS, 1998).

No entanto, em um cenário atual marcado pela expansão do processo de


globalização, pela mundialização da economia, pela propagação da onda neoliberal
- frutos das novas exigências do capital mundial - todo aquele conjunto das relações
sociais fundado na solidez e estabilidade da sociedade salarial voltam a
complexificar ainda mais a questão social (CASTEL, 2004).

As atuais exigências do capital mundial se configuram através da fragmentação e


dispersão da produção econômica, do acirramento da concorrência e da
competitividade, da extrema rotatividade de mão de obra, das exigências cada vez
maiores de qualificação para o trabalho (CHAUÍ, 2005; ARREAZA, 2012). Isto incide
diretamente sobre a força de trabalho, na medida em que trata de minimizar os seus
custos e aumentar a sua produtividade. Para responder a estas exigências, a
condição estratégica que se coloca é a flexibilidade, tanto no nível interno à empresa
que submete a força de trabalho às novas regras de adaptabilidade, quanto no nível
externo, que se traduz nas mais variadas formas de contratação de serviços e de
mão de obra, sem qualquer tipo de estabilidade e sob condições mais precárias
(CASTEL, 2004).

Nesse contexto, a precarização do trabalho põe em xeque a estabilidade de


sociedades que se mostram tipicamente marcadas pela condição de vulnerabilidade.
Para Castel (2004), a precarização do trabalho se mostra como um dos maiores
desafios atuais, inclusive, segundo o autor, mais grave que o desemprego. Vale
ressaltar, todavia, que este autor possui a sociedade francesa como o seu foco de
83

análise e, quando refletimos sobre estas questões no cenário brasileiro, o que


vamos encontrar é uma realidade diferenciada, na medida que, aqui, esta condição
de vulnerabilidade se caracteriza pela sobreposição do desemprego, trabalho
informal e da precarização do trabalho. Particularmente no contexto latino-
americano, a desigualdade e injustiças sociais, traços marcantes dessas sociedades
desde o colonialismo, são reatualizadas e aprofundadas pelas novas expressões da
questão social (TELLES, 1996).

Atualmente, as manifestações da questão social se relacionam às profundas


mudanças ocorridas nas relações entre o capital e o trabalho - de forma a suscitar o
questionamento do trabalho como eixo integrador da sociedade - e na gestão do
social pelo Estado, que se traduz pela desestabilização e desintegração dos
sistemas de proteção social, “[...] primeiramente da ordem do trabalho, que
repercute como uma espécie de choque em diferentes setores da vida social, para
além do mundo do trabalho propriamente dito” (CASTEL, 2004, p.239-240).

De um lado, a crescente e assustadora massa de ‘sobrantes’ (CASTEL, 2004),


daqueles que perderam - ou nunca alcançaram - o seu espaço de utilidade social, de
relações de interdependência com o conjunto da sociedade; que transitam pelo
mundo do desemprego, do subemprego, do trabalho informal, mundo esse que
desconhece as prerrogativas das garantias sociais, do espaço de sociabilidade
mantido pelo cotidiano do trabalho, assim como dos espaços de representação
sindical. De outro lado, aqueles trabalhadores que ainda fazem parte do contrato
social, que ainda se situam no mercado formal, mas que se mostram regidos por
novas regras e padrões de organização do processo do trabalho, em que as
flexibilizações, as desvalorizações e as novas regras de adaptação combinam-se à
tradicional, mas agora modificada, ordem regulatória e autoritária das relações
sociais (TELLES, 1996).

Breilh (2010, p.94) traz de forma clara como o sistema de desenvolvimento


capitalista em sua fase atual se mostra como o eixo central da determinação social,
na medida em que vem desenvolvendo em todo o mundo “[...] um conjunto de
mecanismos e estratégias para acelerar a imposição de um modelo civilizatório que
nega a vida”, já que agudiza as desigualdades sociais e os problemas ambientais,
84

assim como administra todas as necessidades para uma única finalidade: a de gerar
capital.

E assim, em decorrência das exigências desta nova fase da acumulação flexível do


capital, o que prepondera é a fragmentação das dimensões econômica, social e
política, o que evidencia a predominância da visão restrita do social – o ‘social
parcial’, como colocamos no início. O “social” passa, então, a ser projetado para
uma esfera externa, que escapa à ação responsável, já que se mostra totalmente
dependente das leis do mercado e de seus imperativos de crescimento (TELLES,
1996).

O aprofundamento das iniquidades sociais, o aumento da competitividade, a


imposição da cultura da produtividade, a precarização das condições de trabalho, a
perda de proteções sociais, acabam por repercutir na vida cotidiana das pessoas,
nas relações sociais estabelecidas, assim como passam a gerar, cada dia mais, um
grande sofrimento e mal estar coletivos, que repercutem, inevitavelmente, no
processo saúde-doença das pessoas (LUZ, 2008; 2010; ARREAZA, 2012).

A questão social passa, então, a ser tratada e analisada do ponto de vista setorial,
de forma que os esforços para combatê-la se concentrem em certos setores e
instituições, como o setor saúde, o setor trabalho, previdência ou assistência social.
Não se trata mais de problematizar de que forma a precarização do trabalho, o
desemprego, as mais variadas manifestações da violência social, incidem sobre a
vida cotidiana de cada indivíduo, assim como fazem parte do processo saúde-
doença das pessoas; mas sim, de transferir para setores e instituições, como o setor
saúde, as responsabilidades para dar conta de suas últimas consequências: a
doença seja ela abordada de forma curativa, preventiva, ou ainda, em programas de
‘promoção da saúde’:

Consequentemente há, de nosso ponto de vista, um processo social em


marcha que tende a concentrar em um conjunto de instituições específicas
os “nós górdios” sociais, isto é, não solucionáveis, da presente formação
social, ou pelo menos ainda não equacionados em termos sociais. (LUZ,
2011, p.25).
85

É neste contexto que, atualmente, se dá a grande parte da produção de


conhecimento sobre o campo dos determinantes sociais da saúde,
hegemonicamente organizado a partir do saber epidemiológico, pautado na
combinação de diversos modelos teóricos explicativos baseados em análises
estatísticas multivariadas que consideram o social como uma dimensão
descontextualizada e externa ao indivíduo, e, portanto, ao processo saúde-doença
(SILVA, 2010).

Esses estudos, na medida em que responderam prontamente às solicitações de


geração de evidências da OMS, contribuíram para reforçar a persistência das
abordagens gerencialistas da ONU; de grande utilidade na perpetuação da “tradição
de racionalidade instrumental da modernidade liberal” (TAMBELLINI; SCHÜTZ,
2009, p.377). Isto possibilitou uma verdadeira ‘feira de idéias’, que foi prontamente
‘acolhida’ pelo Banco Mundial e pelo “establishment econômico globalizado”, já que
operam com a lógica do conservar-mudando, ou seja, admitem a necessidade de
corrigir os efeitos indesejáveis da lógica de acumulação capitalista, sem, no entanto,
transformá-la (GALAFASSI, 2005 apud TAMBELLINI; SCHÜTZ, 2009, p.377).

Nogueira (2010b) nos traz a crítica ao termo ‘determinantes sociais’, quando coloca
que este termo, tal como vem sendo predominantemente usado pela abordagem
epidemiológica, denota que os fenômenos de saúde devam estar sempre fundados
na evidenciação de relações de causa-efeito. Neste sentido, o autor retorna aos
fundamentos filosóficos sobre causa e determinação, pautados pelo pensamento de
Heidegger, no sentido de nos mostrar como, ao longo da história, o termo
‘determinantes’ foi sendo tratado de forma causal:

Na etapa epistemológica da Filosofia ocidental, o conceito de determinante


foi reduzido ao de fator causal empírico pelo neopositivismo e pela própria
ciência contemporânea, mediante o uso de métodos estatísticos de
probabilidade [...] Estes são os mesmos critérios que epidemiologia utiliza
para avaliar os chamados determinantes sociais da saúde, a partir de
estudos de campo (NOGUEIRA, 2010b, p. 140).

Nesta linha de análise crítica, Fleury-Teixeira e Bronzo (2010, p. 37) trazem para o
debate o resgate do termo ‘determinação social’ a partir de uma releitura da obra de
Marx de forma a possibilitar uma melhor compreensão da determinação social dos
86

indivíduos. Estes autores trazem esta leitura para o campo da saúde, defendendo a
noção de que a determinação social da saúde seja entendida como apenas uma
única dimensão da determinação social dos indivíduos.

Segundo os autores, a saúde, como uma dimensão da vida humana, também está
intimamente relacionada tanto com as possibilidades dos indivíduos, no curso de
suas existências, de terem acesso aos meios materiais e espirituais para
desenvolverem e realizarem suas capacidades, quanto com a “teia de relações
peculiares nas quais cada indivíduo se forma e realiza a sua existência” (FLEURY-
TEIXEIRA; BRONZO, 2010, p. 37), ‘teia’ essa que explicita a própria interatividade
dos indivíduos e é ‘tecida’ de acordo com a inserção de cada indivíduo no
ordenamento social.

Pode-se, portanto, considerar a determinação social desde o seu nível


mais amplo, em que encontramos as relações econômicas e macrossociais
que hoje são, certamente, definidas no plano mundial; esses
macrodeterminantes se farão presentes na vida individual por meio de uma
imensa série de mediações, caracterizando condições comuns de
existência próprias dos diversos grupos sociais (FLEURY-TEIXEIRA;
BRONZO, 2010, p.38).

Apesar das individualidades serem conformadas por essa sequência de mediações


de relações, desde os macrodeterminantes socioeconômicos, até as situações mais
particulares, dos pequenos grupos, das relações interpessoais, os indivíduos se
mostram ativos em suas escolhas e atos e, assim, não só reproduzem, mas também
modificam as relações sociais, os grupos sociais e o próprio ordenamento social em
que estão inseridos. “Dessa forma, para os próprios indivíduos, que são
concentrações vivas e pontos de interação da rede social, a transformação da
sociedade resulta em novas condições de ser, novas condições de sua existência,
inclusive psicofisiológica; portanto, de sua saúde” (FLEURY-TEIXEIRA; BRONZO,
2010, p.38).

Para que a determinação social da saúde seja analisada sob a perspectiva da


sociologia crítica, ela requer pensar no social, não como algo estático e passivo,
mas como um fenômeno complexo, processual, em constante transformação, assim
como devem ser levados em conta essa série de mediações que se estabelecem
entre o nível macrossocial e microssocial, de forma a compreender cada
87

individualidade como um ser social, com suas histórias, experiências, meios e


possibilidades próprias de vivenciar, historicamente, a sua existência, inclusive o seu
processo saúde-doença.

4.1.2 A perspectiva da sociologia contemporânea

No campo científico, o modelo de racionalidade - que preside de forma hegemônica


a ciência moderna - tem sido questionado e criticado por muitos autores.
Inicialmente desenvolvido no âmbito das ciências naturais (a partir da revolução
científica do século XVI), no qual tinha como principal característica a formulação de
leis universais, estabeleceu um pressuposto teórico baseado na idéia de ordem e
estabilidade do mundo; tendo mais tarde (a partir do século XIX) se estendido para o
domínio das ciências sociais, como um modelo igualmente possível para se
descobrir as leis da sociedade. Possui como principais paradigmas: a separação
total entre natureza e o ser humano e a centralidade da matemática na
caracterização de uma investigação científica, resultando, então, na prioridade dada
à quantificação, assim como na divisão e classificação de elementos (SANTOS,
2008).

Particularmente em relação ao domínio das ciências sociais, alguns autores


(SANTOS, 2008; QUIJANO, 1992, LATOUR, 2012) vêm em seus estudos
estabelecendo críticas sustentadas no sentido de evidenciar a maneira pela qual
este modelo de racionalidade, originário do campo das ciências naturais, também
vem pautando de forma hegemônica os estudos sobre o social, assim como as
consequências advindas desta forma de abordagem.

Segundo Santos (2008) este modelo foi introduzido no campo das ciências sociais a
partir do pressuposto de que os fenômenos sociais deveriam ser estudados da
mesma maneira que os naturais, fazendo com que eles fossem concebidos como
coisas. Para isso, seria necessário reduzi-los à suas dimensões mais externas,
capazes de serem mensuradas.
88

Latour (2012) afirmará, no mesmo caminho, que esta concepção conduz a uma
chuva de fragmentos, alterando os modos de existência através de uma grande
proliferação de objetos “de risco” que evidenciam que os laços sociais também se
tornaram fragmentos nas mãos das organizações técnicas.

Já Quijano (1992) problematiza a grande influência desta racionalidade nos estudos


sobre a sociedade, que fez com que os mesmos adotassem uma visão reducionista
da totalidade social. Segundo este autor, isto aconteceu a partir de duas idéias: a
primeira fragmentou a sociedade em partes de modo a entendê-la como uma
resultante de relações funcionais estabelecidas entre cada uma dessas partes e
vinculadas à ação de uma única lógica, ou seja, como uma totalidade fechada, algo
‘estabilizado’. Na outra, a sociedade como uma estrutura regida por relações
hierárquicas, de forma análoga às regras de hierarquia entre os órgãos de um
indivíduo: o cérebro, órgão nobre, regendo os demais, mas prescindindo dos outros
órgãos para existir. É aquela imagem bastante difundida no interior das empresas,
onde o cérebro é o empresário e os braços são os trabalhadores, polarizando ações
de mando e obediência legitimadas na lógica dicotômica entre pensar- agir
(QUIJANO, 1992).

Essa duas idéias, juntas, fizeram com que os estudos nelas baseados não apenas
partissem do fim (sociedade), como também partissem este fim, de tal maneira a não
somente desagregar o ‘social’ - remetendo a uma visão de sociedade fragmentada -,
mas dotando-o de certa homogeneidade e racionalidade histórica; de modo a tornar
o seu comportamento previsível ao longo do tempo, confundindo o que deviam
explicar com a própria explicação (QUIJANO, 1992; LATOUR, 2012).

Os atuais estudos epidemiológicos no campo dos determinantes sociais da saúde


são uma possível exemplificação da força como ainda prevalece esse pressuposto,
na medida em que partem de recortes de fenômenos sociais no qual julgam
passíveis de serem delimitados, isolados e quantificados; como por exemplo,
quando elegem variáveis como os níveis de renda ou de escolaridade para
investigarem o fenômeno da desigualdade social. Neste sentido, Latour (2012, p.21)
afirma que “não importa quão difícil seja levar a cabo tais estudos, eles conseguem
até certo ponto imitar o sucesso das ciências naturais quando se mostram tão
89

objetivos quanto as outras disciplinas graças ao emprego de ferramentas


quantitativas”.

Essa idéia organicista da totalidade social é sustentada pelo paradigma hegemônico


da racionalidade científica da modernidade: a relação sujeito-objeto. Nesta lógica, o
rigor científico exige que o pesquisador, primeiro componente desta relação, seja um
indivíduo isolado de si e do mundo ao seu redor. O objeto refere-se a uma categoria
não apenas diferente do sujeito, mas também e, principalmente, externo a ele por
sua natureza (QUIJANO, 1992).

Este paradigma está sendo posto em questão na atualidade, principalmente por


duas constatações: a primeira mostra o quanto o caráter individualista atribuído a
este sujeito, ao negar a ausência do “outro”, acaba por desvirtuar o problema já que
nega a intersubjetividade e a totalidade social como sedes da construção de todo
conhecimento (1992). Segundo Quijano (1992, p. 442) esta constatação:

[...] é hoje inadmissível no campo atual do conhecimento. A subjetividade


individual diferenciada é real, mas não existe só diante de si e por si. Existe
como parte diferenciada, mas não separada, de uma intersubjetividade.
Todo discurso, toda reflexão individual remete a uma estrutura de
intersubjetividade. Esta é constituída nela e perante ela. O conhecimento,
nesta perspectiva, é uma relação intersubjetiva a propósito de algo e não
uma relação entre uma subjetividade isolada, constituída em si e diante de
si e esse algo.

A segunda se assenta no falseamento da suposta incomunicabilidade que se busca


obter na relação estabelecida entre sujeito-objeto, quando se somam esforços a fim
de interiorizar e individualizar o sujeito e, ao mesmo tempo, exteriorizar o objeto.
Segundo Santos (2008), os limites deste tipo de conhecimento se encontram
justamente em sua natureza quantitativa em que se busca, cada vez mais, uma
maior precisão dos dados, precisão esta que se mostra limitada justamente pela
extrema e progressiva “parcelização do objeto”, que distorce o conhecimento do
todo ao fragmentá-lo em tantas partes quanto sejam possíveis.

As palavras “social” e “natureza” costumavam ocultar dois projetos


inteiramente distintos [...]: traçar conexões entre entidades improváveis e
torná-las duradouras num todo até certo ponto consistente. O equívoco não
está em tentar fazer duas coisas ao mesmo tempo – toda ciência é também
90

um projeto político -, mas em sustar a primeira por causa da urgência da


segunda (Latour, 2012, p.368).

É neste sentido que Latour (2012) desenvolve a sua critica aos estudos da
modernidade sobre o ‘social’. Segundo ele, a racionalidade científica da
modernidade julgou necessário distinguir e separar o domínio da sociologia de
outros domínios, tais como a economia, o direito, a psicologia, a biologia, a
geografia, dentre outros. Desta forma, a sociologia definiria e especificaria um
domínio social da realidade como algo particular e diferencial dos demais. Nesta
perspectiva racional, à sociologia caberia estudar o ‘social’ como um objeto
específico e diferenciado dos demais saberes, de forma que pudesse fornecer um
certo tipo de explicação para as demais disciplinas daquilo a que elas julgassem não
ser de sua competência.

No processo de sua constituição e delimitação de seu campo específico de


investigação, as ciências sociais, no esforço por garantir a sua identidade científica,
relegou o domínio da ‘natureza’ para as ciências naturais, ocupando-se apenas das
questões sociais, mais especialmente aquelas relacionadas ao momento histórico
em que se deu a sua constituição, o século XIX (IANNI, 2011). A formação dos
Estados Nacionais, a emergência das classes sociais, o desenvolvimento do
processo de trabalho industrial, o processo de urbanização foram as questões mais
investigadas no domínio de constituição destas ciências. A preocupação com o
‘natural’ não entrou em sua pauta de análise. Ao contrário, os fenômenos sociais
foram explicados recorrendo-se exclusivamente à sociedade, partindo da premissa
de que as suas causas seriam buscadas principalmente nas relações e fenômenos
sociais. Ocorreu, assim, uma presumida clivagem entre o ‘biológico’ e o ‘social’
nestas ciências, que se assentou na negação da natureza, por um lado, e na
afirmação da sociedade, por outro (IANNI, 2011).

Assim, o “contexto” do social como um domínio específico da realidade poderia ser


usado como um tipo de causalidade de forma a explicar aqueles aspectos ‘residuais’
que as outras disciplinas não pudessem dar conta: “o social esclarecendo o social”.
Exemplificando, o direito, embora dotado de uma capacidade própria, seria mais
compreensível se a ele fosse acrescentado uma ‘dimensão social’, assim como a
91

psicologia, que recorreria a certos aspectos da influência social para explicar as


motivações internas do indivíduo (LATOUR, 2012, p.20).

Esta visão restrita do social tornou-se senso comum, não apenas para os mais
‘leigos’ no assunto, mas também no próprio âmbito das ciências sociais (LATOUR,
2012). E mesmo dentro deste senso comum, este ‘fenômeno específico’ recebeu os
mais variados rótulos - “sociedade”, “prática social”, “estrutura social”, “ordem social”
(LATOUR, 2012, p.19) - a ser ‘escolhido’ de acordo com o objetivo específico
daquilo que se pretende analisar; evidenciando, inclusive, uma clara tendência
etimológica do termo ‘social’ que, como bem destacou o autor foi adquirindo um
significado não só cada vez mais variado e segmentado, mas também mais restrito:

A raiz é seq-, sequi, e a primeira acepção é “seguir”. O latim socius denota


um companheiro, um associado. Nas diferentes línguas, a genealogia
histórica da palavra “social” designa primeiro “seguir alguém” e depois
“alistar” e “aliar-se a”, para finalmente exprimir “alguma coisa em comum”.
Outra significação é “ter parte num empreendimento comercial”. “Social”
como em “contrato social” é uma invenção de Rousseau. “Social” como em
“problemas sociais” ou “questão social” é uma inovação do século 19
(LATOUR, 2012, p.24).

O campo da saúde é um dos exemplos paradigmáticos desta situação, a começar


pela divisão das disciplinas no âmbito acadêmico, em que a sociologia é dada de
modo paralelo e sem relação com as demais disciplinas, colocando-se o social como
uma ‘dimensão externa’ ao processo saúde-doença. O termo ‘determinantes sociais
da saúde’ explicita de forma bastante evidente este conflito, esta polaridade que se
estabelece entre o ‘social’ e a ‘saúde’, quando se tenta procurar uma ‘explicação
social’ específica para um fenômeno (saúde) que já é uma dimensão inseparável da
totalidade social.

Outro exemplo mais evidente é o das chamadas ‘causas externas’, nomeação dada
na área da saúde para denominar os acidentes e as mais variadas formas de
violência. O próprio termo já revela, por si só, como esses complexos fenômenos
sociais se reduzem e aglutinam-se em uma mera categoria externa e
descontextualizada ao setor saúde, na medida em que não se trata de problematizá-
los como fenômenos intrínsecos à dinâmica da vida coletiva, expressão do modo de
organização e reprodução da sociedade (no qual a saúde é parte constitutiva), mas
92

tão somente de reduzi-los a ‘fatores sociais’ capazes de explicar o crescente


aumento de mortes, mutilações e incapacidades dele decorrentes. E assim, o ‘setor
saúde’, além de mostrar-se como aquele em que o fenômeno é canalizado em suas
manifestações mais ‘finais’, coloca-se à margem de uma discussão política (e
também teórica) problematizadora, já que as ‘causas’ da violência são ‘sociais’ e,
portanto, situam-se em um plano ‘externo’ ao alcance deste setor.

Além disso, essas duas exemplificações, bastante cotidianas para aqueles que
trabalham no ‘setor saúde’, evidenciam o conflito, a polaridade que se estabelece
entre o ‘ser biológico’ e o ‘ser social’, como se fossem seres distintos. É nessa lógica
que um indivíduo portador de certas doenças específicas, além de ser ‘dissecado’
pelas diversas especialidades médicas, é desconsiderado como aquele mesmo
indivíduo que sofre violência familiar, que vive em condições precárias de vida e de
trabalho, que sofre. E assim, o ser, em toda a sua complexidade de existência, é
‘fatiado’ em distintas dimensões: ‘ser biológico’ – a ser ‘investigado’ por médicos,
enfermeiros, fisioterapeutas, dentistas, dentre outros profissionais de saúde; ‘ser
social’ para os assistentes sociais; ‘ser psicológico’ para os psicólogos.

A crescente inclusão da assistência social aos serviços de saúde revela as


insuficiências, tanto do setor como um todo quanto das próprias equipes de saúde,
em particular, para ‘lidar com o social’, já que é algo que sempre que ‘diagnosticado’
deve ser encaminhado para outra instância, pois ‘foge do alcance das equipes de
saúde’. E aí, já que o setor saúde não consegue ‘dar conta do social’, começa-se,
então, a correr atrás de outros setores para ajudá-lo nesta ‘tarefa’; em outros termos,
trata-se de unir o que foi disperso, de reagrupar o que foi desagregado, de socializar
o que foi individualizado: a tão aclamada intersetorialidade, recomendada pela
grande maioria dos documentos técnicos e políticos do campo dos determinantes
sociais da saúde.

Mas este modelo de racionalidade setorializada - posto em questão na atualidade -


não apenas fragmentou e externalizou o social, como também e, principalmente
enfatizou a idéia de que o social determinaria o individual, de forma que, para
entender cada indivíduo fazia-se necessário – condição sine qua non - entender a
lógica social externa a ele, sempre considerada mais ‘poderosa’ do que a vontade
93

individual; em outros termos, trouxe o individual como mera reprodutibilidade das


estruturas coletivas.

No campo dos determinantes sociais da saúde esta lógica pode ser encontrada
através do pressuposto de que a saúde do indivíduo é determinada pelo contexto
social em que se insere, trazendo portanto um certo ‘aprisionamento’ do indivíduo
frente às possibilidades próprias, singulares, de produzir e transformar o seu
processo saúde-doença.

Na contemporaneidade, um dos desafios postos para o avanço do campo científico


está ligado, portanto, às bases históricas sobre as quais se constituiu o pensamento
das ciências sociais ‘clássicas’, já que a emergência de profundas mudanças sociais
vem forçando a teoria social contemporânea a se ocupar pelos fenômenos e
contextos sociais de sua atualidade (IANNI, 2011). “Emergem conceitos como
reflexivo, risco, líquido, mundialização, global, cosmopolítico etc. Agora os
problemas já não são mais da afirmação de objetos disciplinares da natureza ou da
cultura, do biológico e do social (e nem poderiam sê-lo)” (IANNI, 2011, p.35).

Os atuais problemas ambientais - tais como as mudanças climáticas ocorridas em


decorrência do aquecimento global, as catástrofes naturais, a diminuição dos
recursos hídricos, a diminuição e extinção de espécies, o aumento da produção de
lixo, as contaminações de produtos agrícolas por agrotóxicos - acabam por
desvendar a aparente e equivocada divisão entre o natural e o social, uma vez que,
na perspectiva de Ianni (2011, p.35) estes fenômenos nada mais são do que
“natureza produzida socialmente, pelas mãos humanas”.

Outras mudanças que podem ser incluídas nesta discussão referem-se àquelas
decorrentes do desenvolvimento das intervenções tecnológicas sobre a vida através
das biotecnologias, tais como práticas de reprodução assistida, transplantes e
implantes de órgãos e tecidos, produção de fármacos, amplo desenvolvimento de
transgênicos, produtos biodegradáveis, entre outros. Estas mudanças forçam
pesquisadores a pensar em uma nova forma de produção social: “Assim como a
cultura é natural, a natureza torna-se finalmente artificial; o ‘social’, como categoria
típica do século XIX evapora” (IANNI, 2011, p.35).
94

Frente a esta crise do paradigma moderno da racionalidade científica que fragmenta


e dispersa o social, alguns autores (LATOUR, 2012; SANTOS, 2008; QUIJANO,
1992) vem apostando no crescimento de um novo paradigma. Este paradigma
emergente se sustenta na condução de uma ciência pós-moderna que supere a
idéia de um mundo controlado e manipulado para um mundo que deva ser
compreendido e contemplado; um paradigma que afirme a necessidade que os
pressupostos metafísicos, culturais, os sistemas de crenças sejam parte integrante
da explicação científica da natureza e da sociedade; um paradigma que supere a
dicotomia entre sujeito-objeto, observador-observado, natural-social, mente-matéria,
coletivo-individual (SANTOS, 2008).

Latour (2012) sustenta sua defesa em uma nova abordagem ao social, que o
compreenda como ponto de chegada, de convergência e não como ponto de partida.
Abordagem esta que seja capaz de afirmar que não há nada de específico na ordem
social, que o social não deve ser compreendido como uma coisa particular ou como
uma realidade específica. Ela trata de reagrupar, de redefinir e de restabelecer
conexões e associações fornecidas por domínios específicos e heterogêneos da
realidade social de modo a entender os fenômenos a partir das relações sociais
estabelecidas. Enfim, uma ciência que possa estudar os fenômenos naturais a partir
dos sociais (SANTOS, 2008).

Isso requer incorporar, para além de métodos capazes de quantificar a realidade,


aqueles métodos que possam se debruçar na compreensão da realidade subjetiva
do ‘outro’, da vida em coletividade. Pressupõe, desta forma, partir do
aprofundamento da compreensão do senso comum – a que a ciência moderna tanto
repudia – já que ele “reproduz-se colado às trajetórias e às experiências de vida de
um dado grupo social e nessa correspondência se afirma fiável e securizante”
(SANTOS, 2008, p. 70).

Nesta abordagem, o social deixaria de ser usado como um objeto específico e


externo ao campo da saúde de tal forma que o termo ‘determinantes sociais da
saúde’ vire uma redundância; o que significaria repensar e recompor saberes e
práticas para além do caráter biomédico, setorial e especializado. Retirar de vez a
noção de saúde como um ‘dado’; desconstruir para reconstruir saberes, valores e
95

práticas; incorporar definitivamente os conhecimentos advindos das ciências


humanas e sociais, da antropologia, da história, dentre outros, no intuito de se
chegar a uma compreensão mais próxima do que seja o social, mais próxima, mas
nunca ‘exata’, porque o social não é dado, mas é vivido, é dinâmico, é construído e
transformado por cada um e por todos ao mesmo tempo.
96

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo partiu da interpretação da noção de “determinação social” através do


positivismo nas ciências sociais. Baseado no pressuposto das obras de Durkheim
(1999, 2007), entendemos que essa noção de “determinação social” pode ser
apreendida quando o autor demonstra que é ‘social’ todo ‘fato’ que é geral, ou seja,
que se aplica a todos ou à maioria dos indivíduos e que se apresenta ‘por natureza’
como algo externo a eles. A delimitação do caráter exterior do social coloca-o
passível de ser isolado e classificado como campo de estudo específico da
sociologia.

Nessa interpretação, o social não apenas se apresenta como um fato exterior e


dotado de generalidade, como também se estabelece uma preeminência desse em
relação ao individual: a partir da ação de uma força externa (a ‘força social’) sobre as
ações dos indivíduos, independente de suas vontades ou de suas adesões. Essa
‘coerção moral ou social’ - pressão exercida por um ou por vários grupos sobre a
ação dos indivíduos que os integram e que leva esses indivíduos a se conformarem
com as regras (morais, jurídicas, por exemplo) da sociedade do qual eles vivem -
tende a mostrar que a vida é inteiramente determinada, em última instância, por
estruturas ou condições sociais dominantes. Portanto, a noção de “determinação
social”, em Durkheim (1999, 2007), segue a perspectiva de que as ações humanas
são determinadas (no sentido de ordenadas/motivadas) pela vida coletiva.

Após interpretarmos a noção de “determinação social”, pesquisamos a noção de


“determinação social da saúde”. Partimos da crítica latino-americana à forma de
abordagem naturalizada e a-histórica do processo saúde-doença - abordagem essa
proveniente da corrente positivista presente no modelo ecológico da história natural
da doença.

Procuramos mostrar que tal crítica, que se iniciou nos próprios departamentos de
Medicina Preventiva nas décadas de 70 e 80, emergiu a partir da corrente médico-
social latino-americana. Dentro dessa corrente, as produções brasileiras tiveram um
lugar de destaque dentre os países da América do Sul e Central.
97

A crítica destacou a necessidade de mudança de perspectiva na abordagem do


processo de adoecimento, trazendo a possibilidade de abordar a problemática a
partir de um ângulo diferente. Essa abordagem compreendia a produção das
doenças em um plano coletivo e a construção de uma idéia científica dos processos
que operam como determinantes das mesmas, através da ampliação da explicação
do princípio da causalidade.

Essa reformulação da natureza da doença, que passou a ser vista como um


processo da coletividade – no qual o que interessava era o estudo do modo como o
processo biológico ocorria socialmente - trouxe como consequência a mudança do
léxico: de ‘fator’ para ‘processo’. Tal visão da saúde-doença traduziu-se não
somente na reinterpretação das causas das doenças - de entidades estáticas,
passíveis de abstração formal, ao entendimento de seu caráter dinâmico, como
parte integrante do movimento global da vida social -, mas também trouxe a
concatenação de idéias que conotavam a formação de um novo campo de
conhecimento: o campo da Saúde Coletiva.

A passagem da interpretação da ‘causação’ para a ‘determinação’ do processo


saúde-doença recolocou a problemática da relação entre o processo social e o
processo biológico. Tal problemática converteu-se em um dos principais ‘nós’ da
epidemiologia moderna e que, ainda nos dias de hoje, abre-se para amplos debates,
uma vez que se trata de um ‘constructu’ no qual o biológico e o social aparecem com
fronteiras cada vez mais difusas.

Anos mais tarde, a discussão sobre a determinação social da saúde é capturada


pelos organismos internacionais, através da OMS. Essa ‘captura’ ocorre em uma
conjuntura político-econômica específica, de caráter pós-neoliberal e de progressiva
formação de mercados integrados, no qual os interesses de expansão do capital se
situam nas entrelinhas dos objetivos de promoção à justiça social.

É nesse cenário político-econômico que ocorre a criação da Comissão sobre os


Determinantes Sociais da Saúde, em 2005, pela referida instituição, de forma a
retomar a discussão do social na análise e compreensão do processo saúde-
doença, assim como para oficializar, dentro do discurso político mundial, o alerta
98

para a necessidade de intervir nos mesmos para a superação das iniquidades em


saúde por eles geradas. A temática entra na agenda política mundial sobre a
chancela de “determinantes sociais da saúde”.

Essa retomada agitou de forma intensa o âmbito da produção de conhecimento


científico sobre os determinantes sociais da saúde, com uma crescente priorização e
ênfase na produção de estudos, em distintas abordagens, com o intuito de
compreender e/ou explicar, a partir de distintas perspectivas teórico-metodológicas,
as relações estabelecidas entre o social e a saúde.

Nesse sentido, entendemos configurar-se o “campo dos determinantes sociais da


saúde”, já que encontra longe de ser homogêneo, na medida em que revela os
próprios conflitos de interesses entre seus agentes, em uma constante correlação de
forças, na busca pela legitimidade. Segundo Bourdieu (2004, p. 22), “[...] a
heteronomia de um campo manifesta-se, essencialmente, pelo fato de que os
problemas exteriores, em especial os problemas políticos, aí se exprimem
diretamente”.

O estudo apontou que, nesse campo, o enfoque predominante na abordagem à


determinação social da saúde, ao reduzir e fragmentar o dinâmico e complexo
fenômeno social a ‘fatores sociais’, acaba por reproduzir a noção de saúde como um
objeto externo ao sujeito e a dicotomizar, ainda mais, o individual e o social.

Acreditamos que a permanência desta abordagem fragmentada dos aspectos


sociais, longe de mostrar avanços do ponto de vista acadêmico e político, apenas
mantém e reproduz a lógica racionalista, tão cara aos grupos economicamente
dominantes, aos interesses mundiais e à manutenção do status quo.

Ao trazer as contribuições da sociologia crítica, o estudo possibilitou a reflexão sobre


o campo de produção de conhecimento e de práticas em saúde, de modo a
problematizar e ampliar o debate sobre o social a partir da ‘questão social’ e também
a discussão sobre a determinação social da saúde, para além de indicadores,
fatores e causalidades. Dessa forma, alertamos para os reducionismos cada vez
mais presentes nesta forma de abordagem social - que limita a complexidade da
99

vida em sociedade ao poder sobre a vida de forma normatizadora e medicalizante


do modelo biomédico. Apresenta-se fragmentado como produção científica e reforça
mecanismos de controle, mercantilização e banalização da vida. Ou seja, uma
ciência que fragmenta sua abordagem para melhor se tornar ferramenta de captura.

Em uma perspectiva distinta, porém não excludente, a sociologia contemporânea


trouxe argumentos para repensarmos o que entendemos atualmente como ‘social’.
Dos caminhos apontados por Santos (2008), destacamos aquele que nos alerta para
a modernização da ciência, uma suposta revolução científica que ocorre em nosso
tempo, no nosso atual tempo histórico. Santos (1988) observa que esta ciência não
pode ser somente a produção de um paradigma científico - o paradigma de um
conhecimento prudente -, tem de ser também um paradigma social - o paradigma de
uma vida decente.

Por outro lado, o pensamento de Latour (2012) também trouxe argumentos para
repensarmos o que entendemos atualmente como ‘social’. Para além de um domínio
específico e limitado da realidade, como algo sempre externo ao sujeito e à sua
própria saúde, ela convoca a todos, especialistas de diferentes áreas disciplinares, a
rediscuti-lo como uma realidade complexa e imanente a todos estes domínios e que,
por isso, necessita da contribuição de cada saber para compreendê-lo num
movimento convergente, de chegada, e não de partida.

Reconhecemos que o social não é algo externo ao sujeito, à sua saúde e muito
menos à Saúde Coletiva, e que a esta urge resgatar a base social que deu
sustentação à sua própria constituição como um campo de saberes, práticas e
valores historicamente construídos, coletivamente transformado, comprometido com
a valorização da vida e com um mundo mais justo, menos desigual e, portanto, mais
feliz.
100

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