Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                
0% acharam este documento útil (0 voto)
55 visualizações36 páginas

Paulo Mota Pinto Wrongful Birth

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1/ 36

AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR

“NASCIMENTO INDEVIDO” (WRONGFUL


BIRTH) E “VIDA INDEVIDA” (WRONGFUL LIFE)

Paulo Mota Pinto

Resumo: Tendo em conta o decurso de duas décadas sobre a primeira


decisão do Supremo Tribunal de Justiça em matéria de ações de indem-
nização por vida indevida, revisita-se a matéria, designadamente dando
conta de algumas posições e das decisões jurisprudenciais relevantes,
com destaque para a análise da argumentação do Acórdão do Supre-
mo Tribunal de Justiça de 16 de junho de 2001 e para o Acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 55/2016. Depois de analisar alguma ar-
gumentação contrária à concessão da indemnização, procede-se a uma
revisitação, reforço e precisão de alguns dos argumentos a favor, e que
sustentam a posição favorável a essas ações, defendida já desde 2008.
Palavras-chave: Responsabilidade Médica; Wrongful birth; Wrongful life
Abstract: two decades after the first decision of the Portuguese Supre-
mo Tribunal de Justiça in a wrongful life action (denying the ground
for such an action), the subject deserves to be reviewed again, to con-
sider the relevant legal literature and court decisions. The decisions
of the Supremo Tribunal de Justiça from 16 June 2001 and from the
Constitutional Court from 2016 (No. 55/2016) both deserve a spe-
cial attention. After an analysis of the arguments that have been put
forward in the literature and case law against damages in wrongful
life actions, the grounds for these actions are revisited. Some of the
arguments in favor of damages awards in those actions are reinforced
and refined with a view to support their admission, already defended
by the author in 2008.
Keywords: tort law; medical liability; wrongful birth; wrongful life

*
Faculdade de Direito . Instituto Jurídico . Universidade de Coimbra
Email: paulomotapinto@gmail.com
542 • Paulo Mota Pinto

A possibilidade de obter uma indemnização em casos ditos de “nas-


cimento indevido” (“wrongful birth”) ou de “vida indevida” (“wrongful
life”) tem sido discutida entre nós, pelo menos desde o final do sécu-
lo passado1. Cumprem-se em 2021 duas décadas sobre a primeira de-
cisão dos nossos tribunais superiores sobre a matéria2. É adequado
dedicar breves reflexões atualizadoras sobre o problema a um dos mais
reconhecidos Mestres portugueses da responsabilidade civil nas últimas
décadas, tratando-se de problemas que consabidamente põem em causa
as fronteiras e os requisitos da responsabilidade civil3, e cruzam o regime
desta e dos direitos de personalidade com o regime jurídico da interrup-
ção voluntária da gravidez e com argumentos éticos e pragmáticos
Nota-se, antes de mais, que a questão da indemnização em casos di-
tos de wrongful life e wrongful birth tem vindo a ser tratada profusamente
pela doutrina nacional nas últimas décadas4.

1
V. Guilherme de Oliveira, “O direito do diagnóstico pré-natal”, in Revista
de Legislação e de Jurisprudência, 1999, n.º 3898, págs. 6-19 (também em Temas de
direito da medicina, Coimbra, Coimbra Ed., 1999, págs. 203-223), João Álvaro
Dias, Procriação assistida e responsabilidade médica, Coimbra, Coimbra Ed., 1996,
n.º 45, págs. 380-3, Fernando Araújo, A procriação assistida e o problema da santi-
dade da vida, Coimbra, Almedina, 1999, págs. 84 e segs., 96-100.
2
Acórdão do STJ de 19 de junho de 2001 (relator Fernando Pinto Mon-
teiro), publicado e anotado por António Pinto Monteiro em RLJ, ano 134.º
(2001/2002), págs. 377 e segs. Sobre esta decisão, v. António Pinto Montei-
ro, “Direito a não nascer? Anot. ao Ac. STJ de 19/6/2001”, in RLJ, ano 134.º
(2001/2002), págs. 377 e segs., e na Revista do IASP — Instituto dos Advogados
de São Paulo, ano 10, n.º 19, 2007; Fernando Pinto Monteiro, “Direito à não
existência, direito a não nascer”, in Comemorações dos 35 anos do código civil e dos
25 anos da reforma de 1977, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,
Coimbra, Coimbra Editora, págs. 131-138.
3
V. Jorge Sinde Monteiro, “Rudimentos da responsabilidade civil”, RFDUP,
ano II, 2005, págs. 349390.
4
Além das obs. cits. nas n. anteriores, e do nosso “Indemnização em caso de
‘nascimento indevido’ e de ‘vida indevida’ (‘wrongful birth’ e ‘wrongful life’)”, in Nos
vinte anos do Código das Sociedades Comerciais — Estudos em homenagem aos Profs.
Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho, V. Lobo Xavier, vol. III, Coimbra,
Coimbra Editora, 2007, pág. 915-946, também in Lex Medicinae, n.º 7, Coimbra,
2007, págs 5-25, e em Direitos de personalidade e direitos fundamentais — Estudos,
Coimbra, Gestlegal, 2018, págs. 735-772 (por onde se cita), v., sem pretensões
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ...  • 543

de exaustividade: Manuel A. Carneiro da Frada, “A vida própria como dano:


perspectivas civis e constitucionais de um tema actual”, in Direitos fundamentais e
direito privado : uma perspectiva de direito comparado, orgs. António Pinto Mon-
teiro, Jörg Neuner, Ingo Wolfgang Sarlet, Coimbra, Almedina, 2007, págs.
305-326, idem, “A própria vida como um dano? dimensões civis e constitucionais
de uma questão-limite”, Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano 68, n.º 1
(jan. 2008), págs. 215-253; André Dias Pereira, O consentimento informado na
relação médico-paciente. Estudo de direito civil, Coimbra, Coimbra Ed., 2004, págs.
375-391, idem, “Deliberações éticas e deliberações jurídicas. A responsabilidade
civil por danos causados por médicos que atuaram com violação das leges artis no
âmbito da medicina pré-natal”, em curso de public. em Maria do Céu Patrão
Neves/Camila Vasconcelos (orgs.), Deliberações (bio)éticas e decisões jurídicas,
obra colectiva luso-brasileira, 2021; Vanessa Cardoso Correia, “Wrongful life
action : comentário ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Junho de
2001”, Lex Medicinae. Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Coimbra, ano 1, n.º
2 (2004), págs. 125-131, idem, “Wrongful birth e wrongful life: de Nicolas Perruche
a Kelly Molenaar”, Sub judice. Justiça e sociedade, Coimbra, n.º 38 (jan.-mar.2007),
págs. 101-108, idem, “Vida: dano indemnizável? A responsabilidade médica nas
acções por wrongful birth e wrongful life”, in Direito da saúde: estudos em Home-
nagem ao Prof. Doutor Guilherme de Oliveira, coord. João Loureiro/André Dias
Pereira/Carla Barbosa, Coimbra, Almedina, 2016; Vera Lúcia Raposo, “As
wrong actions no início da vida (wrongful conception, wrongful birth e wrongful life)
e a responsabilidade médica”, Revista Portuguesa do Dano Corporal, Coimbra, ano
19, n.º 21 (dez. 2010), págs. 61-99, idem, “Responsabilidade médica em sede de
diagnóstico pré-natal (wrongful life e wrongful birth)”, Revista do Ministério Público,
Lisboa, ano 33, n.º 132 (out.-dez. 2012), págs. 71-125; idem, “Processos judiciais
indevidos? Há espaço para indemnização nas acções de wrongful birth e de wrong-
ful life contra profissionais de saúde?”, in Responsabilidade na prestação de cuidados
de saúde, coord. por Carla Amado Gomes, Miguel Assis Raimundo, Cláudia
Monge, Lisboa, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, 2014, págs. 96-125; idem,
O direito à imortalidade. O exercício de direitos reprodutivos mediante técnicas de
reprodução assistida e o estatuto jurídico do embrião in vitro, Coimbra, Almedina,
2014, págs. 581-612; Luís Duarte Baptista Manso, “O dever de esclarecimen-
to e o consentimento informado em diagnóstico pré-natal e diagnóstico genético
pré-implantação”, Lex Medicinae. Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Coimbra,
ano 8, n.º 16 (2011), págs. 135-157; idem, “Responsabilidade civil em diagnóstico
pré-natal: o caso das acções de wrongful birth”, in Lex Medicinae. Revista Portuguesa
de Direito da Saúde, Coimbra, ano 9, n.º 18 (2012), págs. 161-182; idem, “Da obri-
gação de informar em diagnóstico pré-natal e diagnóstico genético pré-implantação:
as acções de ‘wrongful birth’ e ‘wrongful life’ e o instituto da responsabilidade civil”,
544 • Paulo Mota Pinto

in Direito da saúde: estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Guilherme de Oliveira,


coord. João Loureiro/André Dias Pereira/Carla Barbosa, Coimbra, Almedi-
na, 2016, vol. 4, págs. 129-142; idem, Responsabilidade civil médica nos cuidados de
saúde reprodutiva: a ginecologia-obstetrícia. Os deveres de informação e documentação
profissional, Coimbra, diss. de doutoramento, 2014, págs. 282-317; Sara Elisabe-
te Gonçalves da Silva, “Vida indevida (wrongful life) e direito à não existência”,
Lusíada Direito, 14 (2015), págs. 123-155; idem, “Responsabilidade civil dos pro-
genitores pela sua vida indevida: direito a nascer saudável”, Maia Jurídica. Revista de
Direito, Maia, ano 8, n.º 1 (jan.-jun. 2017), págs. 57-74; Marta Nunes Vicente,
“Wrongful life actions: the ethical maze between slippery slopes and the non-iden-
tity problem”, Lex Medicinae. Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Coimbra, ano
9, n.º 17 (2012), págs. 243-25; idem, “Algumas reflexões sobre as acções de Wron-
gful life: a jurisprudência perruche”, Lex Medicinae. Revista Portuguesa de Direito da
Saúde, Coimbra, ano 6, n.º 11 (2009), págs. 117-141; Fernando Dias Simões,
“Vida indevida? As acções por wrongful life e a dignidade da vida humana”, Re-
vista de Estudos Politécnicos, Polytechnical Studies Review, 2010, vol VIII, n.º 13, págs.
187-203; Lusa Correia de Paiva, Pretensões de wrongful life. Uma alternativa aos
quadros tradicionais da responsabilidade civil?, diss., Universidade Católica Portu-
guesa, Lisboa, 2011; Carlos E. Almeida Rodrigues, “A problemática inerente às
wrongful life claims: a sua não admissibilidade pela jurisprudência portuguesa”, Lex
Medicinae. Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Coimbra, ano 10, n.º 19 (2013),
págs. 171-188; Fernanda Almeida, “Cogito ergo (non volleo) sum. Reflexões em
torno das ações por nascimento e por vida indevidos”, diss. Instituto Superior Bis-
saya-Barreto, Coimbra, 2013; Marta Santos Silva, “Sobre a (in)admissibilidade
das ações por ‘vida Indevida’ (Wrongful life actions) na jurisprudência e na doutrina
; o Arrêt Perruche e o caso André Martins”, in Direitos de personalidade e sua tutela,
coord. por Manuel da Costa Andrade, Lisboa, Rei dos Livros, 2013, págs. 119-
150; José Alberto González, Wrongful birth wrongful life: o conceito de dano em
responsabilidade civil, Lisboa, Quid Juris, 2014; Luís Guimarães Pinto, “Ações
wrongful birth e wrongful life: uma controvérsia sobre responsabilidade médica ci-
vil”, Lusíada. Direito, Lisboa, seg. 2, n.º 12 (1.º e 2.º semestre 2014), págs. 357-
387; António Gonçalves de Queirós, “As acções de wrongful life e a legitimidade
das suas pretensões”, diss. de Mestrado, Coimbra, 2016; Paula Natércia Rocha,
“Desafios ético-jurídicos nas comummente designadas wrongful life actions ou “de
vida indevida” e tentativas para a sua superação”, Julgar online, novembro e 2018,
págs.1-21; Diogo Costa Gonçalves, “Wrongful life actions em Portugal, 20 anos
depois”, Revista de direito comercial, 2020, págs. 353-399.
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ...  • 545

1. Grupos de casos

Importa recordar brevemente os grupos de casos em causa e o estado


da questão nas nossas jurisprudência e doutrina.
Cruzando os critérios do evento lesivo e da titularidade da ação, po-
demos distinguir três categorias de ações relacionadas com danos verifica-
dos em caso de conceção ou de nascimento indesejados de uma criança.
Há hipóteses em que está em questão desde logo uma conceção inde-
sejada ou “indevida” (“wrongful conception”), também ditas de “gravidez
indevida” (“wrongful pregnancy”). O que pode acontecer por erro médico
ou similar (por exemplo, o emprego errado ou o mau funcionamento de
meios de diagnóstico ou contracetivo, errada prescrição de um medica-
mento ou a sua errada dispensa por um farmacêutico, falta de informação
ou informação errada sobre os riscos reprodutivos), mas também, mais
amplamente, noutros casos de violação da liberdade reprodutiva5 (negati-
va) — por exemplo, pela conceção de uma criança indesejada em caso de
violação. A criança concebida pode ser saudável ou pode padecer de uma
deficiência, por exemplo não tendo os pais sido informados — ou tendo
sido incorretamente informados — sobre os seus riscos genéticos6.

5
Sobre a “autodeterminação reprodutiva”, v. a interessante análise de Jörg Neu-
ner, “Das Recht auf reproduktive Selbstbestimmung: Facetten durchkreuzter Na-
chwuchsplanung”, AcP, 214 (2014), págs. 459-510.
6
  Não tratamos especificamente das hipóteses de eventual responsabilidade pelo
recurso, ou pela impossibilitação do recurso, à edição genética tornada possível pela
tecnologia CRISPR, em casos em que essa edição não fosse legalmente possível, ou,
inversamente (e futuramente) em que estaria acessível (por exemplo, para evitar uma
doença ou deficiência), mas o médico não informou sobre essa possibilidade. Cf., por
ex., Eduardo A. Figueiredo, "'Believe me, we have enough imperfection built-in
already' Breves reflexões sobre as denominadas ações de 'wrongful genetic makeup'",
Julgar online, maio de 2020, págs. 1-54, Graziella T. Clemente, "Responsabili-
dade civil, edição gênica e o Crispr", Nelson Rosenvald / Rafael Dresch / Tula
Wesendonck (orgs.), Responsabilidade civil — novos riscos, Indaiatuba, SP, Editora
Foco, 2019. págs. 301-317, Graziella T. Clemente / Nelson Rosenvald, "Edição
gênica e os limites da responsabilidade civil", G. M. Martins / N. Rosenvald (orgs.),
Responsabilidade civil e novas tecnologias, Indaiatuba, SP, Editora Foco, 2020. págs.
235-61, Dorota Krekora-Zajac "Civil liability for damages related to germline and
embryo editing against the legal admissibility of gene editing", in Palgrave Commun
6, 30 (2020), in https://doi.org/10.1057/s41599-020-0399-2.
546 • Paulo Mota Pinto

Diversamente, noutros casos está em questão apenas o “nascimento


indevido” (“wrongful birth”), relevando o facto de o evento lesivo ter con-
duzido a um nascimento indesejado. Nestes casos, ou há um nascimento
em resultado de uma situação de wrongful conception, ou, tendo a conce-
ção sido desejada, veio a verificar-se um nascimento na sequência de um
erro médico (também em sentido lato) que retirou à mãe a oportunidade
de tomar uma decisão informada e tempestiva sobre a continuação ou a
interrupção da gravidez, afirmando os demandantes que, se não fosse o
evento lesivo, a criança nunca teria nascido. A atuação do lesante afetou,
pois, também a autodeterminação reprodutiva dos pais. Interessa notar,
também, que esta lesão se pode verificar mesmo que o feto não tenha
qualquer deficiência7, em situações em que os eventos ilícitos originaram
simplesmente uma conceção ou um nascimento indesejados (ou indese-
jados naquelas condições). Pode, em consequência dessa lesão, pretender-
-se tanto a indemnização de um normal “dano de planeamento familiar”
(o “Familienplanungsschaden”), que é dano patrimonial correspondente
ao acréscimo de despesas com mais um filho, como, nas hipóteses de
criança com deficiência, do dano resultante de uma deficiência da criança
nascida — rectius, do prejuízo correspondente às necessidades acrescidas
(ao “Mehrbedarf ”) pelo facto de ter nascido com uma deficiência.
Já nas hipóteses ditas de ações por “vida indevida” (“wrongful life”)8, é
igualmente interposta uma ação com fundamento no facto de ter nascido

7
Incluímos aqui tanto a malformação congénita do feto como qualquer doença
grave, e congénita, de que o nascituro vem a sofrer. Sobre o sentido da indicação
embriopática ou fetopática que justifica a interrupção voluntária da gravidez nos
termos do art. 142.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, v. Jorge de Figueiredo Dias,
in Comentário Conimbricense ao Código Penal, vol. I, Coimbra, 1999, art. 142, §§
32 e segs., págs. 184 e segs.
8
Designação infeliz, não só por sugerir à partida muito mais do que aquilo que
real e concretamente pode estar em causa nos litígios respectivos, como por intuiti-
vamente impelir logo a uma resposta negativa sobre a admissibilidade destas ações.
Empregamos essa expressão, porém, por se ter tornado comum na doutrina para de-
signar as hipóteses em questão. É certo, aliás, que a expressão “criança como dano”
(“Kind als Schaden”, “bébé préjudice”), que também por vezes se encontra, ainda são
mais criticáveis, pois não é a própria criança, em si, que é o dano, antes este consiste
no aumento de despesas com o seu sustento (ou, para os danos não patrimoniais,
no sofrimento ligado à gravidez e nascimento, nos termos em que ocorreram, e,
eventualmente, também às deficiências da criança).
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ...  • 547

uma criança indesejada — designadamente, uma criança com uma gra-


ve deficiência —, mas a ação é interposta pela própria criança em causa
(ou pelos seus representantes em seu nome), pedindo uma indemnização
como que “por ter nascido”.

2. Estado da questão

A posição dominante na nossa jurisprudência orienta-se no sentido


de admitir as ações por “nascimento indevido”, interpostas pelos proge-
nitores relativamente a danos sofridos por estes, mas rejeitar as ações de
wrongful life, em que é pedida uma indemnização à própria criança, por
danos sofridos por esta.
O Supremo Tribunal de Justiça rejeitou estas últimas ações logo no
citado Acórdão de 16 de junho de 2001, entendendo que estaria em
causa um “direito à não existência”9, e que, em qualquer caso, uma tal
ação apenas poderia ser exercida pelo próprio filho, e não pelos pais em
sua representação10. Em 2013 o nosso tribunal superior rejeitou de novo
uma ação de wrongful life11, com fundamentação em parte semelhante,
e procurando argumentos adicionais nesse sentido12. Esta é também a
posição defendida por grande parte da doutrina13.

9
Como notámos, este direito, pela contradição que encerra em si mesmo, reme-
te logo o julgador para uma atitude negativista. Mas não é esse direito que está em
causa nessas ações, como diremos. Também criticamente, com razão, V. Cardoso
Correia, “Wrongful Life Action”, cit,. págs. 128 segs.: “não é a vida, em si, que
consubstancia o dano, mas sim a vida com deficiência”.
10
V. RLJ, ano 134.º (2001/2002), págs. 376, col. direita, 377, final da col. esquerda.
11
Acórdão de 17 de janeiro de 2013 (relatora: Ana Paula Boularot), proc.
9434/06.6TBMTS.P1.S1.
12
Como diremos, entendemos, porém, que também nesse aditamento a fun-
damentação do aresto é manifestamente claudicante. Este Acórdão tem duas de-
clarações de voto, uma das quais favoráveis à concessão da indemnização à criança,
embora só por danos não patrimoniais.
13
Contra as ações de wrongful life, cf. A. Pinto Monteiro, “Direito a não nas-
cer?”, cit., F. Pinto Monteiro, “Direito à não existência, direito a não nascer”, cit.,
A. Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil — IV: Parte Geral. Pessoas, 5.ª ed.,
com a colaboração de António Barreto Menezes Cordeiro, Coimbra, Almedi-
na, 2019, págs. 357 e segs., 363-364 (a solução estaria no alargamento dos escopos
548 • Paulo Mota Pinto

Já as ações intentadas pelos progenitores, de wrongful birth, têm sido


admitidas pela jurisprudência. Em 2012, o Tribunal da Relação do Porto
rejeitou a indemnização por danos da própria criança14, mas aceitou a
indemnização dos pais, por danos não patrimoniais e por danos patrimo-
niais, correspondentes às despesas adicionais causadas pelo nascimento
de uma criança deficiente15. O Tribunal da Relação de Lisboa aceitou

da responsabilidade civil e da tutela da confiança na execução dos contratos, mas


reconhecendo uma indemnização apenas aos pais por violação do contrato e do de-
ver de informar), M. Carneiro da Frada, “A vida própria como dano: perspectivas
civis e constitucionais de um tema actual”, cit., Luís Manso, Responsabilidade civil
médica…, cit., Marta Santos Silva, “Sobre a (in)admissibilidade das ações por
‘vida indevida’ (Wrongful life actions)…”, cit., C. Almeida Rodrigues, “A proble-
mática inerente às wrongful life claims: a sua não admissibilidade pela jurisprudên-
cia portuguesa”, Lex Medicinae. Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Coimbra,
ano 10, n.º 19 (2013), págs. 171-188, Marta N. Vicente, obs. cits., J. Alberto
González, Wrongful birth wrongful life, cit., págs. 88-89, D. Costa Gonçalves,
“Wrongful life actions em Portugal, 20 anos depois”, cit.
A favor, além do nosso “Indemnização em caso de ‘nascimento indevido’ e de
‘vida indevida’ (‘wrongful birth’ e ‘wrongful life’)”, cit., Guilherme de Oliveira, “O
direito do diagnóstico pré-natal”, cit., pág. 12, n. 14, Fernando Araújo, A pro-
criação assistida e o problema da santidade da vida, Coimbra, Almedina, 1999, págs.
84 e segs., 96-100, Fernando Dias Simões, “Vida indevida?...”, cit., Lusa Paiva,
Pretensões de wrongful life…, cit., António Queirós, “As acções de wrongful life e
a legitimidade das suas pretensões”, cit., P. Natércia Rocha, “Desafios ético-jurí-
dicos…”, cit., Sara Gonçalves da Silva, obs. cits., Fernanda Almeida, “Cogito
ergo (non volleo) sum...”, cit. Tendencialmente a favor também A. Dias Pereira,
O consentimento informado…, cit., idem, “Deliberações éticas e deliberações jurídi-
cas”, cit., Vera L. Raposo, O direito à imortalidade…, cit., págs. 609 e segs. Menos
claramente, cf. Luís Guimarães Pinto, “Ações wrongful birth e wrongful life. Uma
controvérsia sobre responsabilidade médica civil”, Lusíada Direito, 12 (2014), págs.
357-387, Vanessa Cardoso Correia, “Wrongful life action : comentário ao acór-
dão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Junho de 2001”, Lex Medicinae. Re-
vista Portuguesa de Direito da Saúde, Coimbra, ano 1, n.º 2 (2004), págs. 125-131.
14
Acórdão de 1 de março de 2012 (relator Filipe Carôço, proc. 9434/06.6TB-
MTS.P1), com o arg. de que o dano em causa não tem consagração legal, e de que
seria inadmissível por não se poder considerar preferível o “não-ser” ao ser, de que
o nascimento é um ato de vontade dos pais, e não do feto, pelo que este é produto
de uma decisão dos pais.
15
Também admitindo a ação de wrongful birth, cf. a decisão em matéria de
prova no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19 de junho de 2012
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ...  • 549

depois, em Acórdão de 29 de abril de 2014, a existência de responsa-


bilidade em caso de wrongful birth, dizendo que, apesar de o dano não
residir na impossibilidade de decidir em determinado sentido (de efetuar
ou não o aborto), mas na impossibilidade de decidir de forma livre e es-
clarecida, independentemente de qual teria sido o sentido da decisão, tais
ações só serão admissíveis em ordenamentos jurídicos que não proíbam
o aborto fundado em doença ou malformação embrionária ou fetal. No
entanto, não considerou provado o dano e o nexo de causalidade no caso
concreto, por falta de manifestação de vontade da mãe em interromper
a gravidez16. Em 2015, o mesmo Tribunal concedeu de novo uma in-
demnização aos pais de uma criança nascida com uma malformação, em
caso de erro de diagnóstico, admitindo as wrongful birth actions, também
num caso de responsabilidade contratual, tendo o tribunal admitido que
existe nexo de causalidade relevante entre a vida portadora de deficiên-
cia e a correspondente omissão de informação do médico pelo virtual
nascimento do feto com malformação, devido a inobservância das leges
artis, mesmo que outros fatores tenham para ela concorrido, como seja a
deficiência congénita17.
Por sua vez, o Supremo Tribunal de Justiça admitiu também, em
Acórdão de 12 de março de 201518, uma indemnização aos pais que, em
caso de nascimento de uma criança com deficiência, reagem contra o mé-
dico, e/ou instituições hospitalares ou afins, por não terem efetuado os
exames pertinentes, ou porque os interpretaram erroneamente, ou por-
que não comunicaram os resultados verificados, tendo sido impedidos de
optarem pela interrupção da gravidez. Tratava-se também de um caso de
responsabilidade contratual, tendo sido considerados ressarcíveis danos
não patrimoniais e patrimoniais, mas apenas se incluindo nestes últimos
os relacionados com a deficiência, a partir de uma comparação entre os

(relatora Rosa Tching, proc. 1212/08.4TBBCL.G1) — tal como o anteriormente


cit., disponível em www.dgsi.pt.
16
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29 de abril de 2014 (relator
Roque Nogueira, proc. 57/11.9TVLSB.L1-7).
17
Acórdão de 30 de abril de 2015 (relatora Catarina Manso, proc.
2101-11.0TVLSB.L1-8).
18
Relator Hélder Roque, proc. 1212/08.4TBBCL.G2.S1.
550 • Paulo Mota Pinto

custos de criar uma criança nessas condições e as despesas inerentes a


uma criança normal (pois os pais aceitaram voluntariamente, a gravidez,
conformando-se com os encargos do primeiro tipo).
É indispensável também notar que o Tribunal Constitucional, em
recurso do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça por último cita-
do, se pronunciou sobre a conformidade constitucional — em particular
com a proteção constitucional da vida humana — da norma aplicada no
aresto citado do Supremo. Decidiu o Tribunal Constitucional, no seu
Acórdão n.º 55/201619 “não julgar inconstitucionais os artigos 483.°,
798.° e 799.° do Código Civil, interpretados no sentido de abrangerem,
nos termos gerais da responsabilidade civil contratual — no quadro de
uma ação designada por nascimento indevido (por referência ao concei-
to usualmente identificado pela expressão wrongful birth) —, uma pre-
tensão indemnizatória dos pais de uma criança nascida com uma defi-
ciência congénita, não atempadamente detetada ou relatada aos mesmos
em função de um erro médico, a serem ressarcidos (os pais) pelo dano
resultante da privação do conhecimento dessa circunstância, no quadro
das respetivas opções reprodutivas, quando esse conhecimento ainda
apresentava potencialidade para determinar ou modelar essas opções”. A
fundamentação desse Acórdão n.º 55/2016 é particularmente relevante,
designadamente pelas considerações que o levaram a contrariar a suposta
relevância da contradição ou “paradoxo da não identidade”, a incom-
patibilidade ética ou com o direito à vida das ações de wrongful birth,
ao situar a questão, corretamente, no plano abstrato do apuramento da
contrafactualidade relevante, e não da violação concreta da vida humana
já existente. E isto, igualmente com relevância para a avaliação das ações
de wrongful life, de tal sorte que ficaria necessariamente incompleto um
balanço da evolução da questão nas últimas duas décadas sem considerar
a fundamentação desse aresto20.

19
Relator Teles Pereira; disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
20
É, porém, o que faz D. Costa Gonçalves, “Wrongful life actions em Portu-
gal, 20 anos depois”, passim.
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ...  • 551

3. Argumentação contrária à indemnização

Em 2008, pronunciámo-nos21 a favor da admissibilidade da indem-


nização quer nas ações de wrongful birth, quer nas ações de wrongful life.
Como referimos, esta posição, acompanhada nalguma doutrina, não lo-
grou convencer a nossa jurisprudência superior, que (como aliás em mui-
tos países europeus) continuou a negar a indemnização por wrongful life,
bem como grande parte da doutrina. Não podemos, nesta sede, analisar
aprofundadamente toda a argumentação desenvolvida na questão, mas
apenas tratar de algumas das objeções que mais parecem impressionar a
posição que nega a indemnização.

a) A alegada irrelevância civilística da perda da possibilidade de inter-


romper a gravidez

Alguma doutrina entende que a perda da possibilidade, pelos proge-


nitores, de interromper a gravidez nunca pode constituir um ato lesivo,
uma vez que considera que está em causa a prática de um ato que, embo-
ra não seja punido, continuaria a ser ilícito para o direito civil22.
É certo que, como notámos já em 2008, o campo de possibilidade de
uma indemnização em casos de “nascimento indevido” ou de “vida indevi-
da” é delimitado pela licitude da interrupção da gravidez que foi impedida: o
problema só se põe na medida em que, se tivessem sido cumpridos corre-
tamente todos os deveres do lesante, a interrupção da gravidez não tivesse
sido ilícita. Caso contrário, a violação dos deveres, em hipóteses em que
não seria admitida a interrupção da gravidez, como ato lícito, não é, ob-

21
Primeiro em Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, Coim-
bra, 2008, vol. I, págs. 738 e segs., n. 2095; depois no artigo cit., “Indemnização em
caso de ‘nascimento indevido’ e de ‘vida indevida’ (‘wrongful birth’ e ‘wrongful life’)”.
22
Defendendo a ilicitude jurídico-civil do aborto, aparentemente sem restri-
ções, v. Diogo Costa Gonçalves, “O início da personalidade jurídica e a capaci-
dade jurídica parcial (Teilrechtsfáhigkeit)”, in Revista de direito civil, III (2018), 3,
págs. 583-614, Mafalda Miranda Barbosa, “Em busca da congruência perdida
em matéria de proteção da vida do nascituro. A perspetiva do direito civil”, BFD,
Coimbra, 92, n. 1 (2016), págs. 23-72 (35 e segs.).
552 • Paulo Mota Pinto

viamente, suscetível de fundar qualquer obrigação de indemnização pelo


nascimento ou pela deficiência, mas apenas, quando muito, pela conceção
indevida (nos casos em que o evento lesivo foi causa dessa conceção).
No direito português, porém, além de a interrupção da gravidez não
ser punida quando for efetuada, nas primeiras 10 semanas de gravidez,
por médico, ou sob a sua direção, em estabelecimento de saúde oficial
ou oficialmente reconhecido e por opção da mulher grávida, ela também
não é punida quando se verificarem certas indicações: a indicação médica
(artigo 142.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal: quando constituir
o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão
para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, ou
para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo
ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e for realizada nas
primeiras 12 semanas de gravidez); a indicação embriopática (alínea c) da
mesma norma: quando houver “seguros motivos para prever que o nas-
cituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação
congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excecio-
nando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá
ser praticada a todo o tempo”); e indicação baseada na proteção da liber-
dade sexual negativa (alínea d): quando a gravidez tenha resultado de crime
contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção for realizada
nas primeiras 16 semanas).
Concordamos, também, na recusa de qualquer dever dos progenitores,
baseado na mera licitude penal da interrupção voluntária da gravidez. Seria
a nosso ver valorativamente contraditório com a proteção constitucional
da vida humana e da paternidade aceitar um dever dos pais, no sentido da
destruição de vida humana pré-natal (mesmo que apenas como ónus de
não agravamento ou “mitigação” dos danos, para efeitos de valoração da
uma “culpa do lesado”).
Isto não significa, porém, que em todos os casos referidos — desig-
nadamente, naqueles em que a lei penal admitiu a existência de indica-
ções concretas que justifiquem a conduta — a interrupção voluntária
da gravidez continue a ser um ato ilícito civil. A fundamentação desta
ilicitude numa ideia de “capacidade jurídica parcial”23, para além de não

23
D. Costa Gonçalves, “O início da personalidade jurídica e a capacidade
jurídica parcial”, cit.
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ...  • 553

ter base legal (cf. os artigos 66.º, n.º 1, e 67.º do Código Civil), contraria
a ideia de ilimitabilidade da personalidade humana, e parece-nos mesmo
encerrar alguns perigos, para além de não ser imposta para a proteção
da vida humana pré-natal24. Nos casos de risco de morte ou risco grave
para a saúde da mãe, de grave doença ou malformação congénita, ou de
gravidez resultante de violação, não é, a nosso ver, aceitável a qualificação
do aborto como um ato ilícito civil, e apenas não punível.
São, aliás, injustificadas — ou têm outros fundamentos — as conse-
quências que alguma doutrina procura retirar25 da alegada ilicitude civil da
interrupção voluntária da gravidez. Assim, o eventual direito do pai a um
ressarcimento caso discorde da interrupção, a existir, deverá poder basear-
-se nos seus próprios direitos. E temos por muito duvidoso, pelo menos, o
pedido do pai de decretamento de providências para evitar a interrupção
da gravidez e forçar o nascimento, nos termos do artigo 70.º, n.º 2, do Có-
digo Civil, quando está em causa o aborto por opção da mãe nas primeiras
10 semanas de gravidez — afigurando-se mesmo repugnante nos casos em
que a interrupção se baseia numa indicação específica26.
Não consideramos, pois, que a interrupção voluntária da gravidez
seja um ato ilícito civil, pelo menos nos casos em que existe uma indi-
cação como aquelas que a lei penal considera para a despenalização do
aborto mesmo depois das 10 semanas de gravidez27. No caso de crian-

24
As soluções em que se procura fundamentar tal “capacidade jurídica parcial”
— como a possibilidade de ressarcimento de danos não patrimoniais sofridos pelo
nascituro devido ao falecimento do progenitor antes do seu nascimento — também
não a impõem, a nosso ver.
25
Manuel Carneiro da Frada, “A protecção juscivil da vida pré-natal. Sobre o
estatuto jurídico do embrião”, in Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2015, págs.
229-252 (231), Rabindranath Capelo de Sousa, O direito geral de personalidade,
Coimbra, Coimbra Editora, 1995, pág. 162, D. Costa Gonçalves, “O início da
personalidade jurídica e a capacidade jurídica parcial…”, cit., pág. 612, M. Miran-
da Barbosa, “Em busca da congruência perdida em matéria de proteção da vida do
nascituro. A perspetiva do direito civil”, cit., pág. 47
26
Ninguém nunca terá defendido essa possibilidade, tanto quanto sabemos,
quando o requerente for o violador.
27
Outras consequências práticas não dependem da ilicitude civil do aborto. É
o caso: da inviabilização da invocação pelo pai da criança que nasceu contra sua
vontade que a mãe poderia ter abortado, para se eximir das suas responsabilidades
554 • Paulo Mota Pinto

ças que vêm a nascer com malformações, na ação de indemnização é


normalmente invocada a perda da possibilidade de abortar com base na
indicação embriopática28, prevista na citada alínea c) do n.º 1 do artigo
142.º do Código Penal.
A perda da possibilidade de interromper a gravidez, por violação dos
deveres médicos ou similares, não é, pois, a perda da possibilidade de
prática de um ato ilícito. Antes pode relevar como lesão à liberdade re-
produtiva da mãe, nos casos e limites em que esta podia ser exercida
licitamente.

b) A alegada inaceitabilidade ético-jurídica

São, depois, dirigidas algumas objeções no plano ético-jurídico nos


casos que consideramos.
É de rejeitar, claramente — e foi rejeitada pelo Tribunal Constitucional
— a alegação de que tais ações seriam incompatíveis com a dignidade
da pessoa humana e com a proteção ou com a inviolabilidade da vida
humana29. Na verdade, é claro que não se questiona a inadmissibilida-

paternais; da existência de uma lesão do direito geral de personalidade, ou direito


à liberdade, se for exercido “terror psicológico” sobre a mãe para que aborte; ou da
ilicitude da publicidade a serviços de interrupção voluntária da gravidez, que nada
tem a ver com a alegada ilicitude civil destes serviços (aliás, prestados pelo Serviço
Nacional de Saúde, por exemplo, no caso de risco de morte ou para a saúde da mãe
ou de violação). Cf., porém, aparentemente querendo retirar daqui a ilicitude civil
do aborto, D. Costa Gonçalves, “O início da personalidade jurídica e a capacida-
de jurídica parcial…”, cit., pág. 612. Cf. também Cf. António Menezes Cordei-
ro, Tratado de direito civil, IV, pág. 369.
28
Poderá questionar-se a justificação, e até a legitimidade constitucional, desta
indicação, com fundamento na discriminação das pessoas com deficiência. Por esta
razão, ela foi eliminada no direito alemão. Mas não foi essa a ponderação do nosso
legislador penal, que considerou a probabilidade da existência de grave doença ou
malformação congénita incurável como razão justificativa da interrupção voluntária
da gravidez, para fins penais. E cremos que, se e enquanto não for revista, a mesma
ponderação deverá valer no direito civil.
29
Contra uma indemnização da mãe por danos não patrimoniais em resultado de
uma gravidez indesejada, por incompatibilidade com a dignidade humana e o direito
à vida da criança, v. Karl Larenz/Claus-Wilhelm Canaris, Lehrbuch des Schuldre-
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ...  • 555

de de uma qualquer “reconstituição natural”, consistente na eliminação


da criança deficiente, ou sequer o sancionamento da eficácia jurídica de
um ato tendente à disposição sobre a vida. E não se vê como pode a
indisponibilidade da vida humana ser afetada por se reconhecer uma
indemnização à própria criança (ou aos seus pais).
Recordemos o que se disse no citado Acórdão n.º 55/2016, do Tribu-
nal Constitucional, sobre esta matéria:
– nas referidas ações, a qualificação do nascimento como “indese-
jado” “traduz-se numa afirmação reportada à caracterização de
um facto passado que se tornou num dado imutável do presen-
te e cuja abordagem indemnizatória se esgota na fixação de uma
indemnização em dinheiro”, não estando em causa “qualquer
modificação de uma realidade física existencial, tudo se pas-
sando no domínio da abstração, relativamente àquilo de que
se fala a respeito da ‘interrupção da gravidez, esgotada na argu-
mentação em plano hipotético, equacionando algo que poderia
ter acontecido mas que, efetivamente, não aconteceu; trata-se
de uma operação intelectual de fixação dos pressupostos com
base nos quais se determinará qual o comportamento que era
devido pelos médicos, no sentido da realização de um exame de
diagnóstico pré-natal no quadro do relacionamento contratual
estabelecido com os pais da criança”;
– assim, “não procede, na discussão da viabilidade das ações por
wrongful birth, o modelo argumentativo traduzido na rejeição
da indemnização em virtude de a reposição da situação hipoté-
tica que pressuporia a ausência de dano conduzir a algum tipo
de afirmação retrospetiva (enquanto correspondência à situação
de ausência de dano) da ‘não existência’ do sujeito em função
do qual a verificação do dano é afirmada, em virtude da (hipo-
tética e não efetivamente verificada) interrupção da gravidez”;
– a construção referida — o “problema da não existência” ou “pa-

chts, II — Besonderer Teil, 2. Halbband, 13.ª ed., München, 1994, § 76, II, pág. 383.
Pondo o problema dos fundamentos da posição a adotar no plano da conceção da vida
humana em termos subjetivistas (existencialistas) ou como valor objetivo, v. Manuel
Carneiro da Frada, “A vida própria como dano…”, cit., págs. 321 e segs.
556 • Paulo Mota Pinto

radoxo da não existência” — contribuiu para, inicialmente, a


jurisprudência rejeitar as atribuições indemnizatórias nas wron-
gful birth claims, no sentido em que a observância do com-
portamento lícito teria conduzido os pais, tivessem estes sido
informados a tempo da deficiência do filho em gestação, à prá-
tica de um aborto e, assim, à supressão da vida em função da
qual a indemnização é (depois) pedida, pelo que a afirmação da
existência de um dano conduziria a uma contradição valorativa
insuperável; noutro plano, “por referência ao caráter inviolável
da vida humana, a negação da possibilidade de que um dano
possa ser construído com esta base assentaria na recusa de enca-
rar a vida de alguém, mesmo no quadro de uma mera operação
intelectual contrafáctica, como um dano”;
– estas reservas podem ser afastadas “desvalorizando-se o sentido
do paradoxo da não existência, por via da caracterização da rea-
lidade em causa nessas ações como substancialmente distinta
nos seus pressupostos da afirmação hipotética contida na for-
mulação do paradoxo”, tratando-se, “pelo contrário, de fixar
uma indemnização, necessariamente fora de qualquer quadro
de ‘reconstituição natural’, por danos atuais imutáveis, sempre
atribuída em função de uma efetiva situação de existência e
sempre estabelecida por referência a desvalores decorrentes das
peculiaridades da atividade de médicos agindo no quadro de
um diagnóstico pré-natal”;
– subjacente a esta posição “está a consideração de não se justificar
deixar fora da tutela indemnizatória a má-prática médica nestas
situações, vistas como correspondentes a obrigações de resulta-
do, e de não ser justo, igualmente, não conferir essa tutela aos
destinatários da informação contida nesse tipo de diagnóstico”
— a “circunstância de assentarem, de alguma forma, numa cons-
trução contendo algo de paradoxal, pouco ou nada muda nessa
essência reparatória de danos sofridos por pessoas determinadas
em resultado do desvaler da conduta de outras pessoas”;
– assim, “mesmo colocando-se o acento tónico na questão da não
existência, prevalece a circunstância de esta se esgotar numa
construção intelectual, sem qualquer repercussão efetiva na
existência de alguém, enquanto dado de facto que não sofre
alteração alguma com o estabelecimento de uma indemnização
em dinheiro”.
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ...  • 557

O Tribunal Constitucional concluiu, assim, que o direito à vida, no


contexto do n.º 1 do artigo 24.º da CRP, não exclui, no quadro da afir-
mação da sua inviolabilidade, “que a aferição da existência de um dano
envolva uma operação intelectual de cariz contrafactual que identifique,
como hipóteses não verificadas, as várias opções que se colocariam aos
pais de uma criança nascida com uma deficiência congénita, da qual não
foram informados durante a gestação, caso essa informação — da qual
eram contratualmente credores — lhes tivesse sido fornecida em deter-
minadas circunstâncias de tempo”.
Subscrevemos este percurso argumentativo. A afetação ou degrada-
ção do valor da vida só seria possível se a concessão de uma indemnização
nas ações em questão pressupusesse um juízo sobre esse valor, sobre o valor
da existência humana comparada com a “não-existência”. Mas tal pressu-
posto assenta num equívoco, potenciado em parte pelas designações da
problemática, que convidam à entrada numa “ladeira escorregadia”. An-
tes pelo contrário: no julgamento dos casos em apreço “ser ou não ser não
é a questão”, nem há, sequer, que “desempenhar o papel de Hamlet”30.
Do que se trata não é (pelo menos enquanto não estiverem em causa
danos não patrimoniais pelo mero facto do nascimento de uma criança
saudável) da vida como valor ou desvalor, mas antes, realmente, dos sofri-
mentos e das necessidades causadas, designadamente, pela deficiência31.
Como se disse na decisão holandesa do caso “baby Kelly”, “a perspectiva-
ção implícita do nascimento de uma criança seriamente deficiente como
‘dano’ não leva obviamente pressuposto qualquer juízo sobre a conside-
ração do valor dessa criança, ou da sua existência, como pessoa, e ainda
menos implica que a própria vida de Kelly seja marcada como um dano”.

30
Assim, Anne Morris/Severine Saintier, “To Be or Not To Be: Is That The
Question? Wrongful Life and Misconceptions”, in Medical Law Review, 11, 2003, págs.
167-193, e Ewoud Hondius, “The Kelly Case — Compensation for Undue Damage
for Wrongful Treatment”, in J. K. M. Gevers/E. W. Hondius/J. H. Hubben, orgs.,
Health Law, Human Rights and the Biomedicine Convention, Leiden-Boston, 2005, págs.
105-116, 113 e segs.(“Human Dignity and Embarking on a Slippery Slope: To Be or Not
To Be is Not the Question”); e já o nosso “Indemnização em caso de ‘nascimento indevido’
e de ‘vida indevida’ (‘wrongful birth’ e ‘wrongful life’)”, cit., pág. 761, nota.
31
Neste sentido, E. Deutsch/A. Spickhoff, Medizinrecht, cit., pág. 224, com
mais indicações de doutrina alemã.
558 • Paulo Mota Pinto

E mesmo a reparação de danos não patrimoniais dos pais “não implica


que a existência de Kelly seja para eles uma fonte de sofrimento, antes se
baseia exclusivamente em que o médico cometeu uma falta tão grave, pe-
rante um direito tão fundamental dos pais, que isso tem de ser reconhe-
cido na forma de uma reparação pela qual se dê aos pais uma satisfação
segura pela falta cometida”.
Salvo o devido respeito, nota-se mesmo no argumento ex adverso, que
invoca a seu favor a dignidade da pessoa humana, retórica a mais e lógica
ou análise a menos — traços semelhantes aos da objeção dirigida, em
tempos, à categoria dos direitos de personalidade, em nome da impossi-
bilidade de degradação da personalidade humana à condição de objeto de
direitos, esquecendo que tal categoria não restringe efetivamente a tutela
da personalidade. Cumpre, na verdade, perguntar32 se “se respeita mais a
dignidade humana quando se recusa a indemnização, ou, pelo contrário,
não será precisamente o respeito pela pessoa humana a exigir que se lhe re-
conheça esse direito a fim de suportar a vida com um mínimo de condições
materiais e de dignidade?” A nossa resposta mantém-se claramente neste
último sentido33. Também a indemnização aos pais não conflitua com a
dignidade da criança como pessoa, não nega o seu direito à existência ou
afirma, implicitamente, que teria sido preferível a não-existência a uma
existência tal como a que se verifica: “antes pelo contrário, é também no
interesse da criança [e da criança tal como existe, acrescentamos] que os
pais não podem ser privados da possibilidade de exigir, no interesse de
toda a família, incluindo a nova criança, uma compensação pelo custos”
acrescidos do seu sustento34. Tal não significa, porém, que haja que dei-

32
Como faz A. Pinto Monteiro, anot. cit., RLJ, pág. 383.
33
V. tb. E. Hondius, ob.cit., pág. 115. Negando a contradição entre a indem-
nização por wrongful life e o valor supremo da vida humana, tb., por ex., Chris-
toph Herrmann/Gisela Kern, “‘Wrongful Life’ claims and the Absolute Value
of Human Life — A Contradiction?”, in Gert Brüggemeier/ Aurelia Colombi
Ciacchi/Giovanni Comandé (orgs.), Fundamental Rights and Private Law in the
European Union. Vol. II.: Comparative Analyses of Selected Case Patterns, Cambridge
University Press, a publicar em 2008.
34
Assim, o Hoge Raad holandês, decisão de 21 de fev. de 1997 (aceitação da in-
demnização pelos custos de educação e pela perda de rendimentos por uma gravidez
indesejada na sequência da remoção de implante contraceptivo intra-uterino, sem
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ...  • 559

xar a criança dependente dessa exigência pelos pais, negando-lhe a ela


própria indemnização, quando os pais a não exijam ou (já) não existam.
Não vemos, aliás, como é que a atribuição de uma indemnização
também à própria criança atinge a sua dignidade, pois essa pretensão
indemnizatória não tem de assentar na conclusão de que a existência como
deficiente é menos valiosa do que a não-existência. Ao atribuir uma in-
demnização à própria criança que nasceu deficiente em consequência de
um erro ilícito está-se, pelo contrário, justamente a promover a dignida-
de humana da criança35.
Reconhece-se, sem dúvida, que a solução da atribuição de uma indem-
nização à criança pelo facto de ter nascido com uma deficiência que não
teria sido possível evitar depois de ter sido detetada é contraintuitiva. Mas
impõe-se aqui uma reanálise, ou um refinamento, das primeiras intuições
em jogo, centrado nos resultados práticos em questão, e não em problemas
abstratos, que não estão em causa, como os do valor comparativo da vida
e da não-vida ou da dignidade humana. É preciso distinguir claramente as
interpretações de certos princípios abstratos dos resultados práticos, por
vezes verdadeiramente inversos dos proclamados pelos valores em nome
dos quais os críticos da indemnizabilidade assumem as suas posições.
Na verdade, e como salientámos já em 2008, a negação de uma in-
demnização com fundamento na inadmissibilidade de uma bitola “con-
trafactual”, ou hipotética, a que aquela criança que formula a preten-
são possa almejar, envolve mesmo, nos resultados a que chega (que são
evidentemente o teste decisivo), como que um renovada afirmação da
ofensa que lhe foi feita: não só a criança nasceu com uma grave defi-

substituição e sem informação à paciente), anotada por Fernand Keuleneer, Is-


mene Androulidakis-Dimitriadis e Barbara Pozzo (resp. nas perspectivas belga,
grega e italiana), in ERPL, 1999, 2, págs. 241-256.
35
Como também salientou o Hoge Raad holandês, “antes se lhe possibilita, tanto
quanto um pagamento pecuniário o consegue, que leve uma existência, na medida
do possível, de acordo com a dignidade humana. Kelly seria antes prejudicada se,
por causa daquele ilícito, tivesse não só que viver uma vida com deficiência como,
além disso, de ser privada de todo o tipo de compensação monetária com base num
argumento que se baseia na situação — de não existência — que teria existido se
à mãe tivesse sido tornado possível o exercício do seu direito à escolha, o que não
aconteceu devido ao ilícito cometido”. Cit. decisão de 2005 (“baby Kelly”), n.º 4.15.
560 • Paulo Mota Pinto

ciência, como, na medida em que não teria podido existir de outro modo,
é-lhe vedado sequer comparar-se a uma pessoa “normal”, para o efeito de
obter uma reparação pelo erro médico. Não pode resistir-se a compa-
rar a proclamação do valor da dignidade como fundamento da negação
da indemnização, por um lado, e o resultado “pouco digno” de dizer à
criança que, qual “Untermensch”, não pode sequer comparar-se a um ser
humano completamente funcional porque nunca poderia ter concreta-
mente existido de outra maneira... Temos por claro que, mesmo que
individualmente não fosse possível o nascimento daquela criança sem
deficiência, existe um padrão contrafactual de comparação — que é o da
pessoa humana sem malformações e regularmente funcional. Para evitar
o referido resultado, é a esse padrão que há que recorrer36.
O que se impõe em nome da dignidade humana, pelo contrário, é
aproveitar, também aqui (e não só no direito sucessório ou para a proteção
contra lesões sofridas no ventre materno), todas as potencialidades da ideia
clássica de que “nasciturus pro jam nato habetur quotiens de commodis ejus
agitur” (“tenha-se o nascituro por nascido, na medida em que se trate dos
seus interesses”), como salientou já Orlando de Carvalho37, não no sentido
de uma personalidade jurídica parcial, no que favoreça os interesses do
nascituro, mas no sentido de que “a personalidade jurídica que lhes advirá
pelo nascimento é à medida da respetiva personalidade humana”38.

36
Assim, também H. Stoll, Haftungsfolgen im bürgerlichen Recht, cit., pág.
285. V., para a discussão e rejeição do referido contraargumento “contra-factual”, v.
já Joel Feinberg, “Wrongful Life and the Counterfactual Element in Harming”,
in id., Freedom and Fulfillment, Princeton, Univ. Press, 1992, págs. 3-36, Seana
V. Shiffrin, “Wrongful Life, Procreative Responsibility, and the Significance of
Harm”, Legal Theory, vol. 5, 1999, págs. 117 e segs., F. Allan Hanson, “Suits for
Wrongful Life, Counterfactuals and the Nonexistence Problem”, S. Cal. Interd. LJ,
5, 1996, págs. 1-24.
37
Teoria geral do direito civil (sumários desenvolvidos), 1980-81, reimpressão em
Teoria geral do direito civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, págs. 172, e já idem,
Teoria geral da relação jurídica — bibliografia e sumário desenvolvido, Coimbra, po-
licop., 1970, pág. 28.
38
Ibidem.
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ...  • 561

c) A fundamentação da jurisprudência que nega a indemnização por


wrongful life

Em qualquer caso, a fundamentação da jurisprudência do Supremo


Tribunal de Justiça — em particular no último Acórdão, de 2013, sobre
a matéria — deixa a desejar, por comparação com a profundidade do
debate que o tema suscitou. Esse Acórdão de 17 de janeiro de 2013 che-
ga mesmo a afirmar que “qualquer solução em contrário” da negação da
indemnização fere a “proteção da dignidade, inviolabilidade e integridade
da vida humana” — o que (quanto às ações de wrongful birth, mas de
modo inteiramente aplicável às ações de wrongful life no que tange ao
alegado desvalor para a dignidade humana e para a vida da indemnização
pelo nascimento indevido) foi contrariado de forma convincente pelo já
citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 55/2016.
Afirma-se, ainda, nesse aresto de 2013, que existiria “completa ine-
xistência de ilicitude, culpa e nexo de causalidade” entre a atividade dos
demandados e as malformações do demandante, porque “estas não fo-
ram devidas a qualquer ação ou omissão daqueles”, antes este “nasceria
sempre com tais maleitas, não tendo havido qualquer acto ou omissão”
dos demandados a provocá-las. Ora, é claro que a lesão em questão, que
competia ao tribunal ajuizar, não era uma lesão dos médicos à integrida-
de física do nascituro, mas antes a violação do contrato, ou de deveres de
tutela da saúde do nascituro, que impendiam sobre aqueles, pelo com-
portamento censurável e contrário às leges artis daqueles.
A consideração de que os pais poderiam ter optado por não interromper
a gravidez, que é exata, é, no entanto, inteiramente inepta para afastar a
pretensão indemnizatória. Esta assentava, justamente, na remoção ilícita
dessa possibilidade pelo comportamento dos médicos, e, portanto, que
eles teriam pelo menos tido essa opção — caso os demandantes tivessem
agido do mesmo modo, claro que não poderia ser pedida qualquer in-
demnização39. E a comparação com a possibilidade de ação do filho diri-

39
O que se verificou, como já vimos, no Acórdão do Tribunal da Relação de
Lisboa de 29 de abril de 2014, que por isso considerou não estar demonstrado o
nexo de causalidade.
562 • Paulo Mota Pinto

gida contra os pais, ou com uma suposta obrigação destes de interromper


a gravidez, é nada menos do que manifestamente improcedente40.
O referido aresto de 17 de janeiro de 2013 invoca, também
— como, aliás, já o de 2001 —, o facto de alegadamente a solução
oposta levar a questionar “outras situações paralelas tais como a eu-
tanásia e o suicídio”, apesar de se não poder chegar “à conclusão
que afinal poderá existir um “direito à não vida”. A questão da eu-
tanásia não tem, porém, paralelo relevante com a ação de wrongful
life, em que ninguém pede para uma vida concreta ser eliminada41.

40
Dela se distancia aliás (por faltar qualquer ato ilícito), na sua declaração de
voto no cit. Acórdão de 2013, a Cons. Maria dos Prazeres Beleza, apesar de acompa-
nhar a negação da indemnização por entender que esta “implicaria necessariamente
o reconhecimento da titularidade de um direito à não existência”, rejeitado pela
ordem jurídica.
Com efeito, não só a indemnização a pedir pela criança se não baseia num seu
“direito à não-existência”, ou, sequer, à interrupção da gravidez da qual veio a nas-
cer, como é claro que uma ação contra os pais envolve a convocação de dimensões
qualitativamente diversas daquelas que estão em causa na apreciação das consequên-
cias de um erro médico (para E. Hondius, “The Kelly Case…”, cit., pág. 114, o
arg. da ação contra os pais seria “o próximo passo na ladeira escorregadia” — e o
Acórdão do STJ de 2013 não deixa de o dar). Há aqui que ter em conta também
razões específicas do direito da família (Hermann Lange/Gottfried Schiemann,
Schadensersatz, 3.ª ed., Tübingen, Mohr, 2003, pág. 337), e, sobretudo, o conflito
com o exercício da liberdade reprodutiva dos próprios pais.
41
Sobre essa questão, recorde-se, em todo o caso, que no acórdão de 16 de fe-
vereiro de 2020, o Tribunal Constitucional Federal alemão decidiu que: “o direito
geral de personalidade (art. 2, I, em conjugação com art. 1, I, da Lei Fundamental)
inclui, como expressão de autonomia pessoal, um direito à morte autodeterminada
(“selbstbestimmtes Sterben”)”, que “o direito à morte autodeterminada inclui a liber-
dade de se tirar a própria vida”, e que “a decisão do indivíduo de, em conformidade
com o seu entendimento da qualidade e sentido da vida, pôr termo à própria exis-
tência, deve à partida ser respeitada pelo Estado e pela sociedade como ato autóno-
mo de autodeterminação”. E foi mais longe, decidindo que “a liberdade de se tirar
a própria vida inclui também a liberdade de para o efeito procurar ajuda junto de
terceiros e de aceitar ajuda na medida em que for oferecida”. Daqui concluiu o Bun-
desverfassungsgericht pela inconstitucionalidade da incriminação do incentivo profis-
sional ao suicídio (§217, I, do Código Penal alemão). V. a decisão em NJW, 2020,
págs. 905-21. Como se salientou em comentários à decisão (Stefan Muckel, “Ver-
fassungswidrigkeit des Verbots der geschäftsmäßigen Förderung der Selbsttötung”,
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ...  • 563

E o mesmo deve dizer-se do tratamento penal do suicídio42.


Nem sequer pode, aliás, concluir-se sobre as ações de indemnização
por wrongful life por causa da rejeição de um pretenso “direito à não
vida”, que também parece impressionar o citado aresto de 2013. Pois
não é esse direito que é invocado ou que está em causa nessas ações. A
questão da fundamentação da ilicitude — e a rejeição da violação de
um tal direito — parece, aliás, ser também considerada um obstáculo
relevante às ações de wrongful life. A citada decisão de 2013 do Supremo
Tribunal de Justiça não conseguiu fundamentar essa ilicitude contratual
“pois o Autor não foi parte no contrato” entre os médicos e os seus pro-
genitores e não poderia estar em causa um direito de um nascituro. A
transposição da responsabilidade perante os pais para o filho exigiria, as-
sim, uma “ficção jurídica responsabilizante a título, quiçá, humanitário,
permitindo ao Autor uma indemnização que lhe permitisse levar uma
existência na medida do possível de acordo com a dignidade humana”.
E também não poderia recorrer-se ao “contrato com eficácia de proteção
para terceiro”, porque não poderia considerar-se como terceiro o feto,
“inexistente enquanto ser humano — em gestação apenas — face ao pre-
ceituado no normativo inserto no artigo 66.º, n.º 1” do Código Civil: o
nascituro não poderia “ser parte interessada num contrato havido entre

JA, 2020, pág. 473-6, Michael Sachs, “Grundrechte: Recht auf selbstbestimmtes
Sterben”, JuS, 2020, págs. 580-2), o Tribunal Constitucional alemão reconheceu
um novo direito de personalidade, ou uma nova dimensão do direito geral de perso-
nalidade constitucionalmente garantido: o direito à morte autodeterminada. V., já
antes, na doutrina, por ex.: Friedhelm Hufen, “Selbstbestimmtes Sterben — Das
verweigerte Grundrecht”, NJW, 2018, págs. 1524-8, Udo Fink, Selbstbestimmung
und Selbsttötung –verfassungsrechtliche Fragestellungen im Zusammenhang mit Selbst-
tötungen, Köln, Heymann, 1992.
A questão tem sido, como é sabido, discutida entre nós, tendo o Tribunal Cons-
titucional declarado inconstitucional o decreto que descriminalizava a morte me-
dicamente assistida, no seu Acórdão n.º 123/2001, de 15 de março de 2021, por
indeterminabilidade da noção “lesão definitiva de gravidade extrema segundo o
consenso científico”.
42
O facto de este não poder ser punido, quando consumado, é, aliás, contra
o que se diz no cit. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2013, irrelevante,
pois sempre poderia ser punido quando tentado, o que também não é o caso. O
tratamento penal do suicídio nada releva, porém, para a questão que nos ocupa.
564 • Paulo Mota Pinto

aqueles que a conceberam, sendo a mesma na altura um nascituro e por


isso carecida de personalidade jurídica”, sem prejuízo de a lei lhe atribuir
alguns direitos43.
Não há, porém, qualquer obstáculo, nem muito menos é “paradoxal”
a inclusão do nascituro no âmbito de proteção do contrato celebrado
entre os progenitores e os médicos, antes do nascimento daquele. São per-
feitamente configuráveis deveres contratuais, e legais, dirigidos à proteção
da saúde de pessoas não nascidas (e até não concebidas), as quais, como é
evidente, não podem ser parte nesses contratos. No entanto, caso venham
a nascer, adquirirão a proteção resultante das disposições contratuais e le-
gais em causa — não existindo, aliás, qualquer taxatividade dos direitos
que podem ser atribuídos ao nascituro, que os adquirirá depois do seu nas-
cimento. Isto, sendo certo que a indemnização atribuída aos progenitores
pode ser insuficiente, quer por poder consumida nas suas despesas (ou dí-
vidas), quer por estes poderem já não existir, ou estar disponíveis, quando
a criança necessita de meios patrimoniais44.

43
“A defesa de uma aplicação analógica das regras de proteção de terceiros, em
sede estritamente obrigacional, à situação que nos ocupa, de acção por wrongful life
(…) é no mínimo paradoxal, pelo menos em casos flagrantes, como o que apreciamos,
em que as partes não conceberam tal hipótese como abrangida no plano negocial pre-
viamente estabelecido, nem o ‘terceiro’, no caso o então nascituro J, podia interagir
com os contraentes, porque terceiro ainda não era para os sobreditos efeitos”
44
Em declaração de voto, o Cons. Pires da Rosa defendeu a concessão da indem-
nização à criança, mas apenas a título de danos não patrimoniais, e só destes, “por-
que a completa ausência de autonomia atual e futura fez recair na autora sua mãe a
necessidade de patrimonializar por completo em si própria a indemnização de que,
por toda a vida, necessitará para garantir a dignidade mínima da vida de seu filho”,
embora “devendo ficar bem claro que a quantia que vier a receber a esse título será,
em absoluto, constrangida às necessidades do J” [a criança demandante]. O facto de
o montante da indemnização ter de ser gerido pelos progenitores representantes do
incapaz (como o património de qualquer incapaz) não é, porém, argumento contrá-
rio à concessão da indemnização. E além de não existir base legal para a distinção,
com negação da indemnização à criança dos seus danos patrimoniais, mas concessão
de uma compensação por danos não patrimoniais, não existe também previsão legal
para assegurar a proteção da indemnização em relação a atos de disposição, ou, por
exemplo, aos credores dos progenitores, salvo se se tratar de prestações alimentares.
Mas neste caso o dano que os pais podem liquidar corresponde às prestações alimen-
tares do seu filho a que ficam sujeitos, enquanto para este está em causa o acréscimo
de despesas devidas à deficiência.
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ...  • 565

4. Posição defendida

Como já recordámos, defendemos em 2008 a concessão de uma in-


demnização aos pais, pelos seus danos patrimoniais (designadamente, o
“dano do planeamento familiar” resultante do não cumprimento de um
contrato) ou não patrimoniais em resultado do nascimento da criança
indesejada, salvo, no caso dos danos não patrimoniais, quando se pre-
tenda uma compensação tão-só pelo nascimento de uma criança sau-
dável. Além disso, defendemos que, nos casos de nascimento de uma
criança com uma deficiência, deve também aceitar-se o ressarcimento da
própria criança, pelas suas necessidades acrescidas e até por danos não
patrimoniais — embora podendo discutir-se se esse pedido deve poder
ser deduzido pelos pais, enquanto a criança for menor (pelo menos nos
casos em que ela, provavelmente, não necessitará desse suprimento da
incapacidade natural por toda a vida).
Reexaminando a questão, entendemos que a posição então adotada
deve ser mantida, não tendo encontrado, nos contributos para o debate
ocorrido desde então, argumentos relevantes para a alterar. As objeções,
quer à indemnização dos pais (“wrongful birth”), quer à indemnização
pedida pela própria criança (“wrongful life”), são, a nosso ver, superáveis,
e sem que se tenha de sair do plano da responsabilidade civil, desde
que se atente nas consequências práticas da solução que se procura, não
nos deixando enredar em pretensos obstáculos lógicos, éticos ou jurídicos,
que, na realidade, não o são.
Referimos de seguida apenas alguns pontos aparentemente mais
controversos.

a) Ilicitude

Não parecem decisivos os argumentos que se procuram situar no


plano da ilicitude — embora no problema da “wrongful life” se note tam-
bém uma certa “flutuação” dos pressupostos contestados entre a ilicitu-
de, a noção de dano e o nexo de causalidade
Deve notar-se que, apesar de o campo da admissibilidade das ações
por wrongful birth e por wrongful life ser delimitado pela licitude da
interrupção da gravidez, não pode dizer-se que a ilicitude do comporta-
mento do responsável médico resulte, nos casos em questão, da violação
da norma que torna apenas justificada a interrupção voluntária da gra-
566 • Paulo Mota Pinto

videz, ou que prevê os requisitos para ela (artigo 142.º, n.ºs 1, alínea c),
e 2 do Código Penal). Não sendo da sua violação que resulta a eventual
responsabilidade civil nos casos de “wrongful birth” ou de “wrongful li-
fe”45, não é decisiva a questão de saber em benefício de quem se prevê tal
justificação, e os seus requisitos — ou seja, a questão de saber qual é o fim
de proteção dessas mesmas normas.
A ilicitude da conduta do responsável pode resultar tanto da vio-
lação de um contrato (e a nosso ver será até desejável que se aproxime
deste modelo, mesmo em relação aos cuidados de saúde prestados em
instituições públicas), cuja validade não é de pôr em causa, referido, por
exemplo, a uma operação de esterilização ou a uma interrupção volun-
tária de gravidez (evidentemente, apenas nos casos e nos termos em que
não é punida).
Quando está em causa a reparação dos prejuízos sofridos pelos pais
pelo nascimento de uma criança saudável, isto é, o normal “dano de pla-
neamento familiar”, a ilicitude pode resultar também da violação de um
direito subjetivo: a liberdade ou autodeterminação reprodutiva (negativa)
dos pais46, que é sem dúvida um aspeto integrante, se não do seu direito
à liberdade, pelo menos do direito geral de personalidade.

45
A interpretação teleológica (com determinação do “fim de proteção”) do art.
142.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, não nos parece decisiva porque apenas torna
justificada a interrupção voluntária da gravidez, mas não impõe um dever específi-
co ao médico; e, por sua vez, o n.º 2 prevê requisitos para aquela justificação (para a
“verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez”),
mas a eventual responsabilidade civil do médico que pode estar em causa nos casos
de wrongful birth e de wrongful life não resulta da violação dessa norma (que só pode
ter lugar pela realização da interrupção da gravidez sem preenchimento dos requisitos
em causa), mas antes de outros deveres (v. a seguir, no texto). Cf., porém, Miquel
Martín Casals/Josep Solé Feliu, comentário cit. à sentença do Tribunal Supremo
de 18 de maio de 2006, n.º 2.1., considerando decisivo o facto de a possibilidade de
interrupção da gravidez apenas visar proteger os progenitores, e não o nascituro.
46
V. a análise já cit. de Jörg Neuner, “Das Recht auf reproduktive Selbstbe-
stimmung: Facetten durchkreuzter Nachwuchsplanung”, AcP, 214 (2014), págs.
459-510. V. também, em geral sobre os direitos reprodutivos como direitos funda-
mentais, entre nós Vera L. Raposo, O direito à imortalidade. O exercício de direitos
reprodutivos mediante técnicas de reprodução assistida e o estatuto jurídico do embrião
in vitro, cit., esp. págs. 41-376.
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ...  • 567

Mas a ilicitude da conduta médica pode ainda resultar da violação


de um dever profissional, integrante das leges artis (cf. os arts. 142.º, n.º
1, al. c), e 150.º do Código Penal, e o art. 483.º, n.º 1, do Código Civil,
na 2.ª modalidade de ilicitude), dever para com os pais, mas que visa
também proteger a futura criança dos ónus (pelo menos dos financeiros)
de viver com uma pesada deficiência, tendo de ser sustentada toda a vida,
possibilitando para tal uma decisão dos seus pais47. Nada impede, aliás,
que existam também deveres jurídicos delituais dos profissionais médicos
para com pessoas futuras, com o sentido de os obrigar a atuar para pre-
venir que sejam concebidas com uma doença hereditária ou genética, ou
que nasçam com graves limitações à saúde48.
Mantemos a ideia de que não é útil, para fundamentar a ilicitude,
trabalhar com um pretenso direito subjetivo “a não nascer”, ou com um
“direito à não existência”49, que logo remete para uma atitude negativista.
Esta noção cria confusões, dando a entender que a posição da criança se
tem de fundamentar num tal “direito”, e obscurece a problemática subs-
tancial e os resultados práticos que estão em causa50.

47
V., por ex., Erwin Deutsch/Andreas Spickhoff, Medizinrecht: Arztrecht,
Arzneimittelrecht, Medizinprodukterecht und Transfusionsrecht, 5.ª ed., Berlin-Hei-
delberg-NewYork, Springer, 2003, pág. 224 (para os quais “a decisão da mãe para a
interrupção da gravidez pode interromper a sua vida, mas preserva-o de deficiências
que são, pelo menos, financeiramente onerosas”), e a cit. decisão do HR holandês
de 2005 (“baby Kelly”), n.º 4.13: a clínica e o médico “invocaram que Kelly não tem
(também contra eles) qualquer direito à própria não existência ou à interrupção da
gravidez da sua mãe. Porém, tal é improcedente pois o médico está vinculado por
força do seu dever de cuidado (…), existente primariamente para com a mulher
grávida, mas também para com o seu filho ainda por nascer, a realizar o diagnóstico
pré-natal exigido nas circunstâncias, e, se for o caso, a consultar um geneticista
clínico para examinar melhor o fruto da gravidez (…). Se o médico falhar no cum-
primento destes deveres para com a mulher, actua também para com o nascituro
em violação de regras não escritas”, vigentes na prática social para os profissionais.
48
Hans Stoll, Haftungsfolgen im bürgerlichen Recht: eine Darstellung auf rechts-
vegleichender Grundlage, Heidelberg, C.F. Müller, 1993, pág. 284.
49
Criticamente, com razão, tb. V. Cardoso Correia, “Wrongful Life Action”,
cit,. págs. 128 segs.
50
  No que, aliás, parece ser mais uma expressão dos inconvenientes da utilização
da forte “linguagem dos direitos” quando estão em causa problemas éticos e jurídicos
de fronteira. Sobre esse inconveniente, v. F. Araújo, ob. cit., págs. 16-8, 94 e segs.
568 • Paulo Mota Pinto

Acresce que, apesar de o nascituro não ser parte no contrato com o


médico (ou o outro profissional responsável), é claro que em regra a mãe
o inclui (tal como ao pai) no âmbito de proteção do contrato de trata-
mento51, pelo que pode aplicar-se aqui a figura do “contrato com eficácia
de proteção para terceiros”52. O risco do profissional é intensificado pela
consideração da criança como objeto de proteção pelo contrato, mas tal
não é obstáculo a um contrato com eficácia de proteção para terceiros.
Os requisitos deste contrato consistentes na relação de sustento do credor
(os pais) com a criança e na sua proximidade reconhecível ao credor, bem
como a sua necessidade de proteção, estão evidentemente verificados53.
Apenas poderia questionar-se se o dever violado tem como finalidade a
proteção da criança: da perspetiva desta, ser-se-ia tentado a negá-lo, pois
foi a violação do dever que conduziu ao nascimento e a não existência
daquela não pode ser considerada uma alternativa superior. Mas, como
nota Neuner54, não é determinante para a direção dos deveres dos médi-
cos a perspetiva da criança, antes aquilo que o tratamento médico tem
como objetivo. Este objetivo tem uma dimensão pessoal e uma dimensão
patrimonial: por um lado, deve ser impedida uma criança com deficiên-
cias graves; por outro lado, não devem surgir as necessidades financeiras
acrescidas causadas por uma criança nessa situação. Os pacientes que
concluem um contrato de diagnóstico ou tratamento não querem apenas
ter a possibilidade de se decidir contra o nascimento de uma criança com

51
Como, perante a dificuldade suscitada no cit. acórdão do STJ de 19 de jun.
de 2001, de desconformidade entre a causa de pedir e o pedido, notou também A.
Pinto Monteiro, anot. cit., RLJ, págs. 382-3.
52
Também neste sentido, v., por exemplo, na doutrina alemã, E. Deutsch/A.
Spickhoff, Medizinrecht, cit., págs. 220 e segs., n.º 344, págs. 223 e segs., Gott-
fried Schiemann, in J. von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch
:mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen, Berlin, Sellier-de Gruyter, 2005, § 249,
n.º 209 (cit. como Staudinger/nome do autor), Staudinger/Hager, § 823, n.º
51, e Johannes Hager, “Das Recht der unerlaubten Handlungen”, in J. v. Stau-
dingers Kommentar zum bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Neben-
gesetze. Eckpfeiler des Zivilrechts, Berlin, Sellier-De Gruyter, 2005, págs. 819-76,
827-8, J. Neuner, “Das Recht auf reproduktive Selbstbestimmung: Facetten
durchkreuzter Nachwuchsplanung”, cit., págs. 481 e segs.
53
J. Neuner, “Das Recht auf reproduktive Selbstbestimmung“, cit., pág. 482.
54
Ob. cit., págs. 482-483.
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ...  • 569

graves deficiências, mas também proteger-se contra os custos significati-


vos que isso traria55. Não é, por isso, decisivo saber se na perspetiva da
criança seria “melhor viver ou não viver”. Decisiva é antes a preferência
manifestada pelos progenitores no contrato de diagnóstico e tratamento,
no sentido de terem a opção da não existência. Não é relevante para isso
saber se a criança já existia e podia ser parte contratual, ou apenas virá a
surgir (ou até a ser concebida) no futuro. Nem é decisivo saber se as par-
tes realmente acordaram expressa ou tacitamente tal eficácia de proteção
a favor da criança, ou se ela apenas é obtida pelos critérios de integração
negocial (segundo a vontade hipotética ou a boa fé — artigo 239.º do
Código Civil).

b) Dano

Continuamos a ter por claro — logo fenomenologicamente — que


quando se dá, em consequência de erro médico, um nascimento de uma
criança deficiente, o primeiro e mais direto visado é a própria criança
(pelo menos pelas suas necessidades acrescidas). Isto é, o primeiro lesado
não são os pais (que só são lesados indiretamente, enquanto puderem e
deverem ocupar-se da criança), mas antes a própria pessoa que nasceu
com uma deficiência severa, e que tem despesas acrescidas para ser sus-
tentada e ajudada, eventualmente toda a vida.
Contra isto não vale argumentar que a existência da criança só era
concretamente concebível naquelas condições, e, portanto, dependente
da assistência paterna. Mesmo partindo da necessidade de um parâmetro
contrafactual para sua determinação, entendemos, como vimos, que é
inaceitável a negação da invocação pela concreta criança já nascida de
um parâmetro de “normalidade”, para efeitos da determinação do dano,
apenas porque ela nunca poderia ter existido de outra maneira. Tal limi-
tação afigura-se-nos, ela sim, contrária à dignidade da pessoa humana.
Não é, pois, inultrapassável a contra-argumentação que incide na própria
impossibilidade de se configurar um dano, o qual exigiria uma (impos-
sível) avaliação “contrafactual” da situação do concreto lesado, ou que

55
Ibidem.
570 • Paulo Mota Pinto

pressuporia que se considerasse preferível a morte (ou o não nascimento)


a uma vida com deficiência.
O mesmo vale, como vimos, para a argumentação lógica (ou de “ló-
gica pragmática”), no sentido de que nos casos de “wrongful life” a criança
não tem uma pretensão indemnizatória contra aquele sem cujo compor-
tamento errado não teria de todo chegado a vir ao mundo, seja porque
tal esbarraria com um “problema de não-identidade” entre a vítima que
formula a pretensão e a não existência da vítima, que sem o evento lesivo
não teria sido criada56, seja porque, noutra formulação, envolveria uma
autocontradição “pragmática”, ou mesmo “performativa”, “pela qual de
certa forma se põe em causa retroativamente a base sobre a qual assenta
a possibilidade de invocação da pretensão”57.
Vimos já que o nosso Tribunal Constitucional aprofundou e rejeitou
de forma convincente estas objeções. Quanto ao argumento da autocon-
tradição, ele envolve, por sua vez (como grande parte da argumentação
baseada na “contradição performativa”), a imputação, ao conteúdo pro-
posicional do próprio pedido de indemnização, da destruição dos pressu-
postos que tornam possível a realização de tal pedido. Mas tal destruição
está longe de ter de ser inevitável, pois a existência da criança é um dado
real, que evidentemente não é nem pretende ser afetado pela formulação
do pedido. A existência da criança é um dado que não pode estar em
causa, para efeitos da sua legitimidade.
Não aceitamos, além disso, a consequência, a que leva a rejeição
de uma indemnização à própria criança, de acrescentar à dependência
natural e geral desta uma dependência, para obter indiretamente uma
reparação, no plano jurídico, do exercício pelos pais do direito a uma
indemnização e do cumprimento do seu dever de alimentos, bem como

56
V. indicações em F. Araújo, ob. cit., págs. 97-8, e n. 169 e seg., referindo
modos de rebater aquele problema — designadamente, notando que a objeção filo-
sófica e valorativa poderia ser resolvida recorrendo à noção de “potencialidade” do
ser em questão, que se vai tornando, no devir presente, uma identidade.
57
Assim, Claus-Wilhelm Canaris, Grundrechte und Privatrecht — Eine Zwis-
chenbilanz, BerlinNew York, de Gruyter, 1999, pág. 67, n. 207 (na trad. port.,
Direitos fundamentais e direito privado, Coimbra, Almedina, 2003, págs. 96-7, n.
208); e já Dieter Medicus, Zivilrecht und werdendes Leben, München, Beck, 1985,
págs. 13 e seg.
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ...  • 571

logo da própria existência destes58 — ou de mecanismos de segurança


social que podem ser de duvidosa eficácia. Para além dos efeitos perversos
desta solução59 (recusar à criança “o direito à indemnização conduzirá,
muitas vezes, a que os tribunais aumentem a indemnização dos pais,
incluindo nos danos destes os danos do filho deficiente”), ela não parece
ser a melhor “até porque os pais podem descurar o acompanhamento da
criança, por negligência, por qualquer vicissitude conjugal ou até por
falecerem”60. Como se notou na nossa doutrina, existe uma contradição
interna entre reparar os danos aos pais, mas rejeitar reparar os do filho,
quando uns e outros resultam do mesmo comportamento culposo, sendo cer-
to que a indemnização aos pais poderia suscitar uma objeção semelhante,
pois a alternativa à vida do filho deficiente seria uma não-vida61.

c) Causalidade

O nexo de causalidade fundamentadora deve estabelecer-se entre a


conduta do profissional em causa e o evento lesivo consistente na perda
de faculdade de optar, em exercício da autodeterminação reprodutiva,
pela interrupção da gravidez. Quando estiverem em causa informações,
o principal problema de causalidade entre a violação do dever de infor-

58
V., porém, por ex., Hermann Lange, Schadensersatz, 2.ª ed., Tübingen,
Mohr, 1990, pág. 337: “consequência a aceitar é a de que a criança já nada recebe
depois da morte dos pais”.
59
Que, entre nós, são referidos por A. Pinto Monteiro, anot. cit., RLJ, pág. 383.
60
Ibidem.
61
A. Pinto Monteiro, anot. cit., RLJ, pág. 383 (“porque é que isso haverá de
repugnar, se for o filho a pedir a indemnização, e já não repugna se forem os pais
a pedirem essa indemnização?!”), A. Menezes Cordeiro, Tratado…, cit., IV, cit.,
pág. 364 e seg. (contradição de valorações).
Improcedente é também a invocação de possíveis prejuízos psicológicos para a
criança, para contrariar a possibilidade de uma indemnização dos pais pelo nascimen-
to do filho, saudável ou não (no primeiro caso, pelo menos por danos patrimoniais).
O ato de planeamento familiar (a prevenção do alargamento da família “anónimo”,
isto é, com membros ainda desconhecidos) é bem diverso do da aceitação eventual de
uma criança depois de ter nascido e de ter passado a integrar a família, e trata-se de
matéria que deve em primeira linha ser deixada à apreciação dos pais, que podem fazer
ver à criança que é errada qualquer impressão de não ser desejada.
572 • Paulo Mota Pinto

mação e as consequências da falta de informação — por exemplo, um


diagnóstico pré-natal ou a falibilidade de uma vasectomia — reside na
prova do comportamento do destinatário da informação, caso os deveres
tivessem sido cumpridos. A jurisprudência alemã ajuda nestes casos o
credor da informação com uma presunção de que se teria comportado de
forma adequada tendo em conta a informação (“Vermutung aufklärungs-
richtigen Verhaltens”), pelo que não teria deixado de adotar as corres-
pondentes condutas (por ex., a interrupção da gravidez, a abstenção de
relações sexuais)62.

d) Cômputo do dano

Quanto aos danos patrimoniais (dos pais ou da criança) os proble-


mas não têm estado na sua existência em si mesma, ou no seu cômputo
como correspondendo às despesas de sustento (obrigação de alimentos),
normais ou acrescidas pela deficiência, consoante os casos — mas antes
na compatibilização de tal indemnização com valores (constitucionalmen-
te protegidos) de maior nível. Vale, porém, o regime geral da obrigação
da indemnização, incluindo a possibilidade de fixação da indemnização
“equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos
causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação econó-
mica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem”

62
Para ClausWilhelm Canaris (“Die Vermutung ‘aufklärungsrichtigen Ver-
haltens’ und ihre Grundlagen”, Franz Häuser et alii, Festschrift für Walther Had-
ding zum 70. Geburststag, Berlin, De Gruyter, 2004, págs. 3-24), a decisão sobre a
conduta a adotar não dispondo da informação, isto é, uma decisão não informada,
é um resultado diverso, na sua configuração concreta, da decisão que o interessado
teria tomado com informação, pelo que tem de afirmar-se a causalidade entre a vio-
lação do dever de informação e este resultado, consistente na concreta decisão não
informada, ligando-se depois esta à lesão sofrida segundo as regras gerais da causali-
dade. Cabe, assim, ao devedor provar que um tal resultado diverso não teria (decisão
não informada) conduzido ao mesmo dano (v. tb. págs. 17-8, para uma justificação
alternativa, com fundamento em que é ao devedor que invoca o comportamento
alternativo lícito — isto é, o devedor da informação que invoca que o credor se teria
comportado de igual modo se ele o tivesse informado, isto é, se se tivesse compor-
tamento licitamente — que incumbe a prova das consequências deste). V. também
o nosso Interesse contratual negativo…, cit., II, págs. 1385 e segs.
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ...  • 573

(artigo 494.º), e o regime da compensatio lucri cum damno, designadamen-


te para a indemnização de danos patrimoniais, e desde que os benefícios
sejam igualmente suscetíveis de avaliação pecuniária (patrimoniais)63.

63
A discussão da “compensação de vantagens” na indemnização tem tido uma
relevância menor, nos casos de “wrongful birth” e de “wrongful life”, do que as con-
dicionantes constitucionais e éticas logo à própria admissibilidade de um dano res-
sarcível. Mas há uma aproximação quando se discute o problema de saber se as van-
tagens, materiais ou imateriais (a “alegria com a criança”), de um nascimento não
sobrelevam as desvantagens materiais do seu sustento, e se, portanto, uma indem-
nização, pelo menos por wrongful conception de uma criança saudável, não deveria
ser correspondentemente diminuída. Há quem o afirme (assim, decisivamente, já o
Landsgericht de Düsseldorf, 2 de Dez. de 1993, in NJW, 1994, págs. 805-7, 806),
para as vantagens imateriais, enquanto outros apenas concedem relevância no qua-
dro de uma reparação de danos não patrimoniais (v. Gregor Thüsing, Wertende
Schadensberechnung, München, Beck, 2001, págs. 37-8, 58, Gerda Müller, “For-
tpflanzung und ärztliche Haftung”, in Erwin Deutsch, org., Festschrift für Erich
Steffen zum 65. Geburtstag, Berlin, de Gruyter, 1995, págs. 355-72, 364). E, para as
vantagens e danos patrimoniais, já o BGH, na cit. decisão de 18 de Março de 1980
(NJW, 1980, págs. 1455-6), mandou deduzir aos custos com o sustento da criança
nascida de uma esterilização falhada o abono de família (Kindergeld) recebido pelo
seu nascimento (v. tb. mais tarde, por ex., a decisão de 19 de Jun. de 1984, in
NJW, 1984, págs. 2625-6). Sobre o problema, v., no direito italiano, G. Cassano,
“Nascita indesiderata e ‘compensatio’ (nota a Trib. Venezia, sez. III civ., 10 settembre
2002)”, D&G — Dir. e Giust., 2002, f. 39, pág. 68, e Antonino d’Angelo, Un
bambino non voluto e’ un danno risarcibile?, Milano, Giuffrè, 1999, págs. 84, segs.
Entendemos que o problema da “compensação de vantagens”, nos casos referi-
dos no texto, é, no domínio do dano não patrimonial, um problema de avaliação
deste, e se, para os danos patrimoniais, é de admitir nos termos gerais a compensação
com vantagens patrimoniais (como um “abono de família”, mas não, prestações ali-
mentares), para vantagens imateriais não defendemos a possibilidade de “compensa-
ção” (a que a jurisprudência norte-americana manifesta abertura — v. G. Thüsing,
Wertende..., cit., págs. 188 e segs., e, criticamente, págs. 477 e segs.).
Nem nos parece que a redução da indemnização por danos patrimoniais re-
sultantes da gravidez e do nascimento (“dano do planeamento familiar”), ou das
necessidades de uma criança gravemente deficiente, deva ter lugar atendendo ape-
nas a aspetos específicos destes casos, tais como possíveis objeções éticas a que do
nascimento de uma criança possam resultar danos. Antes defendemos, apenas, a
possibilidade de recurso, também nestes casos, ao mecanismo geral do art. 494.º,
desde que não exista dolo do lesante, e podendo entre as outras circunstâncias do
caso contar-se a evolução subsequente, não só da situação económica, mas dos po-
574 • Paulo Mota Pinto

Aliás, quanto ao caso de nascimento de uma criança saudável, se os


danos patrimoniais resultantes de um nascimento podem ser computados,
por exemplo, quando a gravidez resultou de uma violação (e não se vê que
não o possam ser), não se vê por que não é possível calculá-los nos casos de
wrongful conception ou de wrongful birth.
Encontram-se por vezes também objeções relativas à impossibilidade
de avaliação do dano resultante do nascimento com deficiência, quando
a única alternativa teria sido a interrupção da gravidez64. Mas essa não é,
a nosso ver, a alternativa relevante para o cômputo do dano. Antes este
dano consiste no acréscimo de custos, dos pais ou da própria criança, de-
vidos à deficiência, em relação ao que teriam de gastar em caso de inexis-
tência desta, e é perfeitamente calculável tendo como referência o padrão
dos gastos normais com uma criança que não esteja nessa situação. Isto,
sendo certo, porém, que, se se provar que, sem a falta médica, teriam li-
citamente interrompido a gravidez, ou que não teriam concebido a crian-
ça, não estarão em causa apenas despesas acrescidas pela deficiência, mas
todas as despesas com o seu sustento e educação.
A problemática da fixação da indemnização da criança — mas não
só — parece, aliás, apresentar proximidade com a das lesões pré-natais

sicionamentos dos pais, incluindo as vantagens imateriais que possam resultar para
eles da criança (já, porém, a circunstância de os pais passarem a ter direito a uma
eventual prestação de alimentos pelo filho não parece que possa ser relevante, sal-
vo em hipóteses excecionais). Essas vantagens, quando existirem realmente, devem
ser relevantes no quadro do art. 494.º, mas não podem, evidentemente, deixar de
ser apreciadas em termos estritamente individuais e concretos, e não “objetivos” ou
generalizantes — tal como não é de acompanhar certa jurisprudência alemã para a
qual bastaria uma melhoria geral da situação económica dos pais para que o dever
de indemnização desaparecesse (isto, pelo menos, quando as razões económico-so-
ciais não constituírem só por si indicação suficiente para legitimar a interrupção da
gravidez, como acontece entre nós, e diversamente do direito alemão, em que, por
isso, se defende que o dever de alimentos sai do âmbito de proteção do dever violado
quando uma apreciação superveniente vem a tornar injustificada tal indicação — v.
a decisão do BGH de 7 de Maio de 1985, in BGHZ, vol. 95, págs. 199-212, NJW,
1985, págs. 2752-5, e Hermann Lange/Gottfried Schiemann, Schadensersatz,
3.ª ed., 2003, pág. 334).
64
Cf., perguntando como se “confronta a vida de alguém deficiente com uma
não-vida dessa mesma pessoa”, v. A. Pinto Monteiro, anot. ao ac. do STJ de 19
de Jun. de 2001, RLJ, cit., pág. 384.
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ...  • 575

que o feto vem a sofrer, quer durante a gravidez, no ventre materno, quer
mesmo já antes da conceção ou nesta mesma65. E, como se sabe, a nossa
lei concede tutela ao nascituro contra tais lesões, no artigo 66.º, n.º 2,
do Código Civil.

e) O limite imposto pela necessidade de evitar contradições valorativas


(pela compensação de danos não patrimoniais alegadamente devidos
apenas ao nascimento de uma criança saudável)

Mantemos, também, a posição de que há que fazer uma restrição à


compensabilidade dos danos não patrimoniais quer dos pais quer da pró-
pria criança, para evitar uma contradição valorativa com a proteção da
vida humana — um limite como que correspondente ao “núcleo duro”
em que a intuição subjacente à solução dominante se afigura procedente,
e que não é mais discriminatório em relação à situação dos pais confron-
tados com a conceção ou o nascimento de uma criança deficiente do que
outras escolhas valorativas do legislador (como a admissão da indicação
embriopática, no artigo 142.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal).
Na verdade, não pode aceitar-se uma compensação de danos não
patrimoniais baseada no mero facto do nascimento da criança saudável,
quer tal compensação seja pedida pelos pais, quer pela própria criança
(embora neste último caso o problema raramente se deva pôr), pois tal
seria contraditório com a proteção da vida humana como valor. Não
distinguimos, aqui, entre a possibilidade de os pais ou a criança pedirem
indemnização, nem excluímos em geral a compensação dos danos não
patrimoniais da própria criança por wrongful life. A nosso ver, também os
pais não deverão poder obter uma indemnização baseada no mero facto

65
Cf. tb. E. Deutsch/A. Spickhoff, Medizinrecht, cit., pág. 225 (mesmo a
ação contra o profissional devido à sua concepção não deveria estar vedada à própria
criança, apesar de não estar ainda concebida à data do evento lesivo, tal como a
criança deve ter direito a ser indemnizada pela infeção da mãe e do filho com uma
doença sexualmente transmissível, antes ou depois da conceção, ou por uma lesão
sofrida no ventre materno), e, agora, H. Lange/G. Schiemann, Schadensersatz, cit.,
pág. 336 (“a problemática a discutir não é tão distante da das lesões pré-natais, e so-
bretudo da das lesões antes ou na conceção, que seria por isso adequada uma valora-
ção totalmente diversa”; mas o paralelismo não é incontestado na doutrina alemã).
576 • Paulo Mota Pinto

do nascimento de uma criança saudável, e, inversamente, a criança que


nasceu com uma deficiência deve poder obter a compensação também
dos seus danos não patrimoniais66, mesmo que a deteção pré-natal ape-
nas tivesse conduzido a uma interrupção da gravidez.
Há que distinguir cuidadosamente os danos em causa: apenas limi-
tamos a possibilidade de obtenção de uma compensação por danos não
patrimoniais, e desde que não resultantes de outros sofrimentos, como os
relacionados com a gravidez, o parto (ou, até, a educação da criança, con-
siderando, por exemplo, eventuais limitações ou deficiências dos pais)
ou com a deficiência da criança, antes alegadamente decorrentes apenas
do nascimento de uma criança saudável. Só a afirmação de tais danos não
patrimoniais apenas pelo surgimento de vida humana envolveria, a nosso
ver, uma contradição valorativa inultrapassável com os valores subjacentes às
normas que protegem o direito à vida e o bem jurídico “vida em formação”
(ou “vida humana prénatal”). Mas a rejeição, nesta medida, do pedido de
compensação pode enquadrar-se, sem dificuldade, no requisito de que os
danos não patrimoniais sejam tais que “pela sua gravidade, mereçam a tutela
do Direito”, formulado no artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, sendo que
a inexistência de uma deficiência grave pode e deve ser considerada em tal
juízo sobre o merecimento de tutela67.

66
Diferentemente, segundo A. Dias Pereira, O consentimento informado…,
cit., pág. 391, “o dano moral da própria criança (pensando numa ação de wrongful
life) afigura-se de mais difícil apreciação jurídica” (do que o dos pais, que poderiam
exigir a compensação dos danos não patrimoniais resultantes da “privação da possi-
bilidade de praticar a interrupção da gravidez não punível, autodeterminando-se na
sua paternidade e maternidade”).
67
O facto de apenas excluirmos o direito à compensação por danos não pa-
trimoniais baseado apenas no nascimento de uma criança saudável não é mais
discriminatório (entre crianças saudáveis e crianças deficientes) do que a admissão
da indicação embriopática para a interrupção da gravidez — que pode discutir-se,
mas é admitida na nossa lei. E corresponde também, sem dúvida, sociologicamente
a uma diferença nas consequências não patrimoniais para os progenitores, que não
deve ser ignorada pelo Direito — devendo embora ser combatida veementemente
qualquer discriminação no tratamento das pessoas em causa, em função da deficiên-
cia. O facto de toda a vida humana nascida gozar de dignidade plena não é obstá-
culo a isto. Antes, a nosso ver, a negação da indemnização pelo nascimento de um
filho com deficiência, com tal fundamento, é de novo retórica a mais, mas análise,
e sensibilidade aos factos a regular, a menos.

Você também pode gostar