Paulo Mota Pinto Wrongful Birth
Paulo Mota Pinto Wrongful Birth
Paulo Mota Pinto Wrongful Birth
*
Faculdade de Direito . Instituto Jurídico . Universidade de Coimbra
Email: paulomotapinto@gmail.com
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1
V. Guilherme de Oliveira, “O direito do diagnóstico pré-natal”, in Revista
de Legislação e de Jurisprudência, 1999, n.º 3898, págs. 6-19 (também em Temas de
direito da medicina, Coimbra, Coimbra Ed., 1999, págs. 203-223), João Álvaro
Dias, Procriação assistida e responsabilidade médica, Coimbra, Coimbra Ed., 1996,
n.º 45, págs. 380-3, Fernando Araújo, A procriação assistida e o problema da santi-
dade da vida, Coimbra, Almedina, 1999, págs. 84 e segs., 96-100.
2
Acórdão do STJ de 19 de junho de 2001 (relator Fernando Pinto Mon-
teiro), publicado e anotado por António Pinto Monteiro em RLJ, ano 134.º
(2001/2002), págs. 377 e segs. Sobre esta decisão, v. António Pinto Montei-
ro, “Direito a não nascer? Anot. ao Ac. STJ de 19/6/2001”, in RLJ, ano 134.º
(2001/2002), págs. 377 e segs., e na Revista do IASP — Instituto dos Advogados
de São Paulo, ano 10, n.º 19, 2007; Fernando Pinto Monteiro, “Direito à não
existência, direito a não nascer”, in Comemorações dos 35 anos do código civil e dos
25 anos da reforma de 1977, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,
Coimbra, Coimbra Editora, págs. 131-138.
3
V. Jorge Sinde Monteiro, “Rudimentos da responsabilidade civil”, RFDUP,
ano II, 2005, págs. 349390.
4
Além das obs. cits. nas n. anteriores, e do nosso “Indemnização em caso de
‘nascimento indevido’ e de ‘vida indevida’ (‘wrongful birth’ e ‘wrongful life’)”, in Nos
vinte anos do Código das Sociedades Comerciais — Estudos em homenagem aos Profs.
Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho, V. Lobo Xavier, vol. III, Coimbra,
Coimbra Editora, 2007, pág. 915-946, também in Lex Medicinae, n.º 7, Coimbra,
2007, págs 5-25, e em Direitos de personalidade e direitos fundamentais — Estudos,
Coimbra, Gestlegal, 2018, págs. 735-772 (por onde se cita), v., sem pretensões
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ... • 543
1. Grupos de casos
5
Sobre a “autodeterminação reprodutiva”, v. a interessante análise de Jörg Neu-
ner, “Das Recht auf reproduktive Selbstbestimmung: Facetten durchkreuzter Na-
chwuchsplanung”, AcP, 214 (2014), págs. 459-510.
6
Não tratamos especificamente das hipóteses de eventual responsabilidade pelo
recurso, ou pela impossibilitação do recurso, à edição genética tornada possível pela
tecnologia CRISPR, em casos em que essa edição não fosse legalmente possível, ou,
inversamente (e futuramente) em que estaria acessível (por exemplo, para evitar uma
doença ou deficiência), mas o médico não informou sobre essa possibilidade. Cf., por
ex., Eduardo A. Figueiredo, "'Believe me, we have enough imperfection built-in
already' Breves reflexões sobre as denominadas ações de 'wrongful genetic makeup'",
Julgar online, maio de 2020, págs. 1-54, Graziella T. Clemente, "Responsabili-
dade civil, edição gênica e o Crispr", Nelson Rosenvald / Rafael Dresch / Tula
Wesendonck (orgs.), Responsabilidade civil — novos riscos, Indaiatuba, SP, Editora
Foco, 2019. págs. 301-317, Graziella T. Clemente / Nelson Rosenvald, "Edição
gênica e os limites da responsabilidade civil", G. M. Martins / N. Rosenvald (orgs.),
Responsabilidade civil e novas tecnologias, Indaiatuba, SP, Editora Foco, 2020. págs.
235-61, Dorota Krekora-Zajac "Civil liability for damages related to germline and
embryo editing against the legal admissibility of gene editing", in Palgrave Commun
6, 30 (2020), in https://doi.org/10.1057/s41599-020-0399-2.
546 • Paulo Mota Pinto
7
Incluímos aqui tanto a malformação congénita do feto como qualquer doença
grave, e congénita, de que o nascituro vem a sofrer. Sobre o sentido da indicação
embriopática ou fetopática que justifica a interrupção voluntária da gravidez nos
termos do art. 142.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, v. Jorge de Figueiredo Dias,
in Comentário Conimbricense ao Código Penal, vol. I, Coimbra, 1999, art. 142, §§
32 e segs., págs. 184 e segs.
8
Designação infeliz, não só por sugerir à partida muito mais do que aquilo que
real e concretamente pode estar em causa nos litígios respectivos, como por intuiti-
vamente impelir logo a uma resposta negativa sobre a admissibilidade destas ações.
Empregamos essa expressão, porém, por se ter tornado comum na doutrina para de-
signar as hipóteses em questão. É certo, aliás, que a expressão “criança como dano”
(“Kind als Schaden”, “bébé préjudice”), que também por vezes se encontra, ainda são
mais criticáveis, pois não é a própria criança, em si, que é o dano, antes este consiste
no aumento de despesas com o seu sustento (ou, para os danos não patrimoniais,
no sofrimento ligado à gravidez e nascimento, nos termos em que ocorreram, e,
eventualmente, também às deficiências da criança).
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ... • 547
2. Estado da questão
9
Como notámos, este direito, pela contradição que encerra em si mesmo, reme-
te logo o julgador para uma atitude negativista. Mas não é esse direito que está em
causa nessas ações, como diremos. Também criticamente, com razão, V. Cardoso
Correia, “Wrongful Life Action”, cit,. págs. 128 segs.: “não é a vida, em si, que
consubstancia o dano, mas sim a vida com deficiência”.
10
V. RLJ, ano 134.º (2001/2002), págs. 376, col. direita, 377, final da col. esquerda.
11
Acórdão de 17 de janeiro de 2013 (relatora: Ana Paula Boularot), proc.
9434/06.6TBMTS.P1.S1.
12
Como diremos, entendemos, porém, que também nesse aditamento a fun-
damentação do aresto é manifestamente claudicante. Este Acórdão tem duas de-
clarações de voto, uma das quais favoráveis à concessão da indemnização à criança,
embora só por danos não patrimoniais.
13
Contra as ações de wrongful life, cf. A. Pinto Monteiro, “Direito a não nas-
cer?”, cit., F. Pinto Monteiro, “Direito à não existência, direito a não nascer”, cit.,
A. Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil — IV: Parte Geral. Pessoas, 5.ª ed.,
com a colaboração de António Barreto Menezes Cordeiro, Coimbra, Almedi-
na, 2019, págs. 357 e segs., 363-364 (a solução estaria no alargamento dos escopos
548 • Paulo Mota Pinto
19
Relator Teles Pereira; disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
20
É, porém, o que faz D. Costa Gonçalves, “Wrongful life actions em Portu-
gal, 20 anos depois”, passim.
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ... • 551
21
Primeiro em Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, Coim-
bra, 2008, vol. I, págs. 738 e segs., n. 2095; depois no artigo cit., “Indemnização em
caso de ‘nascimento indevido’ e de ‘vida indevida’ (‘wrongful birth’ e ‘wrongful life’)”.
22
Defendendo a ilicitude jurídico-civil do aborto, aparentemente sem restri-
ções, v. Diogo Costa Gonçalves, “O início da personalidade jurídica e a capaci-
dade jurídica parcial (Teilrechtsfáhigkeit)”, in Revista de direito civil, III (2018), 3,
págs. 583-614, Mafalda Miranda Barbosa, “Em busca da congruência perdida
em matéria de proteção da vida do nascituro. A perspetiva do direito civil”, BFD,
Coimbra, 92, n. 1 (2016), págs. 23-72 (35 e segs.).
552 • Paulo Mota Pinto
23
D. Costa Gonçalves, “O início da personalidade jurídica e a capacidade
jurídica parcial”, cit.
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ... • 553
ter base legal (cf. os artigos 66.º, n.º 1, e 67.º do Código Civil), contraria
a ideia de ilimitabilidade da personalidade humana, e parece-nos mesmo
encerrar alguns perigos, para além de não ser imposta para a proteção
da vida humana pré-natal24. Nos casos de risco de morte ou risco grave
para a saúde da mãe, de grave doença ou malformação congénita, ou de
gravidez resultante de violação, não é, a nosso ver, aceitável a qualificação
do aborto como um ato ilícito civil, e apenas não punível.
São, aliás, injustificadas — ou têm outros fundamentos — as conse-
quências que alguma doutrina procura retirar25 da alegada ilicitude civil da
interrupção voluntária da gravidez. Assim, o eventual direito do pai a um
ressarcimento caso discorde da interrupção, a existir, deverá poder basear-
-se nos seus próprios direitos. E temos por muito duvidoso, pelo menos, o
pedido do pai de decretamento de providências para evitar a interrupção
da gravidez e forçar o nascimento, nos termos do artigo 70.º, n.º 2, do Có-
digo Civil, quando está em causa o aborto por opção da mãe nas primeiras
10 semanas de gravidez — afigurando-se mesmo repugnante nos casos em
que a interrupção se baseia numa indicação específica26.
Não consideramos, pois, que a interrupção voluntária da gravidez
seja um ato ilícito civil, pelo menos nos casos em que existe uma indi-
cação como aquelas que a lei penal considera para a despenalização do
aborto mesmo depois das 10 semanas de gravidez27. No caso de crian-
24
As soluções em que se procura fundamentar tal “capacidade jurídica parcial”
— como a possibilidade de ressarcimento de danos não patrimoniais sofridos pelo
nascituro devido ao falecimento do progenitor antes do seu nascimento — também
não a impõem, a nosso ver.
25
Manuel Carneiro da Frada, “A protecção juscivil da vida pré-natal. Sobre o
estatuto jurídico do embrião”, in Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2015, págs.
229-252 (231), Rabindranath Capelo de Sousa, O direito geral de personalidade,
Coimbra, Coimbra Editora, 1995, pág. 162, D. Costa Gonçalves, “O início da
personalidade jurídica e a capacidade jurídica parcial…”, cit., pág. 612, M. Miran-
da Barbosa, “Em busca da congruência perdida em matéria de proteção da vida do
nascituro. A perspetiva do direito civil”, cit., pág. 47
26
Ninguém nunca terá defendido essa possibilidade, tanto quanto sabemos,
quando o requerente for o violador.
27
Outras consequências práticas não dependem da ilicitude civil do aborto. É
o caso: da inviabilização da invocação pelo pai da criança que nasceu contra sua
vontade que a mãe poderia ter abortado, para se eximir das suas responsabilidades
554 • Paulo Mota Pinto
chts, II — Besonderer Teil, 2. Halbband, 13.ª ed., München, 1994, § 76, II, pág. 383.
Pondo o problema dos fundamentos da posição a adotar no plano da conceção da vida
humana em termos subjetivistas (existencialistas) ou como valor objetivo, v. Manuel
Carneiro da Frada, “A vida própria como dano…”, cit., págs. 321 e segs.
556 • Paulo Mota Pinto
30
Assim, Anne Morris/Severine Saintier, “To Be or Not To Be: Is That The
Question? Wrongful Life and Misconceptions”, in Medical Law Review, 11, 2003, págs.
167-193, e Ewoud Hondius, “The Kelly Case — Compensation for Undue Damage
for Wrongful Treatment”, in J. K. M. Gevers/E. W. Hondius/J. H. Hubben, orgs.,
Health Law, Human Rights and the Biomedicine Convention, Leiden-Boston, 2005, págs.
105-116, 113 e segs.(“Human Dignity and Embarking on a Slippery Slope: To Be or Not
To Be is Not the Question”); e já o nosso “Indemnização em caso de ‘nascimento indevido’
e de ‘vida indevida’ (‘wrongful birth’ e ‘wrongful life’)”, cit., pág. 761, nota.
31
Neste sentido, E. Deutsch/A. Spickhoff, Medizinrecht, cit., pág. 224, com
mais indicações de doutrina alemã.
558 • Paulo Mota Pinto
32
Como faz A. Pinto Monteiro, anot. cit., RLJ, pág. 383.
33
V. tb. E. Hondius, ob.cit., pág. 115. Negando a contradição entre a indem-
nização por wrongful life e o valor supremo da vida humana, tb., por ex., Chris-
toph Herrmann/Gisela Kern, “‘Wrongful Life’ claims and the Absolute Value
of Human Life — A Contradiction?”, in Gert Brüggemeier/ Aurelia Colombi
Ciacchi/Giovanni Comandé (orgs.), Fundamental Rights and Private Law in the
European Union. Vol. II.: Comparative Analyses of Selected Case Patterns, Cambridge
University Press, a publicar em 2008.
34
Assim, o Hoge Raad holandês, decisão de 21 de fev. de 1997 (aceitação da in-
demnização pelos custos de educação e pela perda de rendimentos por uma gravidez
indesejada na sequência da remoção de implante contraceptivo intra-uterino, sem
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ... • 559
ciência, como, na medida em que não teria podido existir de outro modo,
é-lhe vedado sequer comparar-se a uma pessoa “normal”, para o efeito de
obter uma reparação pelo erro médico. Não pode resistir-se a compa-
rar a proclamação do valor da dignidade como fundamento da negação
da indemnização, por um lado, e o resultado “pouco digno” de dizer à
criança que, qual “Untermensch”, não pode sequer comparar-se a um ser
humano completamente funcional porque nunca poderia ter concreta-
mente existido de outra maneira... Temos por claro que, mesmo que
individualmente não fosse possível o nascimento daquela criança sem
deficiência, existe um padrão contrafactual de comparação — que é o da
pessoa humana sem malformações e regularmente funcional. Para evitar
o referido resultado, é a esse padrão que há que recorrer36.
O que se impõe em nome da dignidade humana, pelo contrário, é
aproveitar, também aqui (e não só no direito sucessório ou para a proteção
contra lesões sofridas no ventre materno), todas as potencialidades da ideia
clássica de que “nasciturus pro jam nato habetur quotiens de commodis ejus
agitur” (“tenha-se o nascituro por nascido, na medida em que se trate dos
seus interesses”), como salientou já Orlando de Carvalho37, não no sentido
de uma personalidade jurídica parcial, no que favoreça os interesses do
nascituro, mas no sentido de que “a personalidade jurídica que lhes advirá
pelo nascimento é à medida da respetiva personalidade humana”38.
36
Assim, também H. Stoll, Haftungsfolgen im bürgerlichen Recht, cit., pág.
285. V., para a discussão e rejeição do referido contraargumento “contra-factual”, v.
já Joel Feinberg, “Wrongful Life and the Counterfactual Element in Harming”,
in id., Freedom and Fulfillment, Princeton, Univ. Press, 1992, págs. 3-36, Seana
V. Shiffrin, “Wrongful Life, Procreative Responsibility, and the Significance of
Harm”, Legal Theory, vol. 5, 1999, págs. 117 e segs., F. Allan Hanson, “Suits for
Wrongful Life, Counterfactuals and the Nonexistence Problem”, S. Cal. Interd. LJ,
5, 1996, págs. 1-24.
37
Teoria geral do direito civil (sumários desenvolvidos), 1980-81, reimpressão em
Teoria geral do direito civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, págs. 172, e já idem,
Teoria geral da relação jurídica — bibliografia e sumário desenvolvido, Coimbra, po-
licop., 1970, pág. 28.
38
Ibidem.
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ... • 561
39
O que se verificou, como já vimos, no Acórdão do Tribunal da Relação de
Lisboa de 29 de abril de 2014, que por isso considerou não estar demonstrado o
nexo de causalidade.
562 • Paulo Mota Pinto
40
Dela se distancia aliás (por faltar qualquer ato ilícito), na sua declaração de
voto no cit. Acórdão de 2013, a Cons. Maria dos Prazeres Beleza, apesar de acompa-
nhar a negação da indemnização por entender que esta “implicaria necessariamente
o reconhecimento da titularidade de um direito à não existência”, rejeitado pela
ordem jurídica.
Com efeito, não só a indemnização a pedir pela criança se não baseia num seu
“direito à não-existência”, ou, sequer, à interrupção da gravidez da qual veio a nas-
cer, como é claro que uma ação contra os pais envolve a convocação de dimensões
qualitativamente diversas daquelas que estão em causa na apreciação das consequên-
cias de um erro médico (para E. Hondius, “The Kelly Case…”, cit., pág. 114, o
arg. da ação contra os pais seria “o próximo passo na ladeira escorregadia” — e o
Acórdão do STJ de 2013 não deixa de o dar). Há aqui que ter em conta também
razões específicas do direito da família (Hermann Lange/Gottfried Schiemann,
Schadensersatz, 3.ª ed., Tübingen, Mohr, 2003, pág. 337), e, sobretudo, o conflito
com o exercício da liberdade reprodutiva dos próprios pais.
41
Sobre essa questão, recorde-se, em todo o caso, que no acórdão de 16 de fe-
vereiro de 2020, o Tribunal Constitucional Federal alemão decidiu que: “o direito
geral de personalidade (art. 2, I, em conjugação com art. 1, I, da Lei Fundamental)
inclui, como expressão de autonomia pessoal, um direito à morte autodeterminada
(“selbstbestimmtes Sterben”)”, que “o direito à morte autodeterminada inclui a liber-
dade de se tirar a própria vida”, e que “a decisão do indivíduo de, em conformidade
com o seu entendimento da qualidade e sentido da vida, pôr termo à própria exis-
tência, deve à partida ser respeitada pelo Estado e pela sociedade como ato autóno-
mo de autodeterminação”. E foi mais longe, decidindo que “a liberdade de se tirar
a própria vida inclui também a liberdade de para o efeito procurar ajuda junto de
terceiros e de aceitar ajuda na medida em que for oferecida”. Daqui concluiu o Bun-
desverfassungsgericht pela inconstitucionalidade da incriminação do incentivo profis-
sional ao suicídio (§217, I, do Código Penal alemão). V. a decisão em NJW, 2020,
págs. 905-21. Como se salientou em comentários à decisão (Stefan Muckel, “Ver-
fassungswidrigkeit des Verbots der geschäftsmäßigen Förderung der Selbsttötung”,
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ... • 563
JA, 2020, pág. 473-6, Michael Sachs, “Grundrechte: Recht auf selbstbestimmtes
Sterben”, JuS, 2020, págs. 580-2), o Tribunal Constitucional alemão reconheceu
um novo direito de personalidade, ou uma nova dimensão do direito geral de perso-
nalidade constitucionalmente garantido: o direito à morte autodeterminada. V., já
antes, na doutrina, por ex.: Friedhelm Hufen, “Selbstbestimmtes Sterben — Das
verweigerte Grundrecht”, NJW, 2018, págs. 1524-8, Udo Fink, Selbstbestimmung
und Selbsttötung –verfassungsrechtliche Fragestellungen im Zusammenhang mit Selbst-
tötungen, Köln, Heymann, 1992.
A questão tem sido, como é sabido, discutida entre nós, tendo o Tribunal Cons-
titucional declarado inconstitucional o decreto que descriminalizava a morte me-
dicamente assistida, no seu Acórdão n.º 123/2001, de 15 de março de 2021, por
indeterminabilidade da noção “lesão definitiva de gravidade extrema segundo o
consenso científico”.
42
O facto de este não poder ser punido, quando consumado, é, aliás, contra
o que se diz no cit. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2013, irrelevante,
pois sempre poderia ser punido quando tentado, o que também não é o caso. O
tratamento penal do suicídio nada releva, porém, para a questão que nos ocupa.
564 • Paulo Mota Pinto
43
“A defesa de uma aplicação analógica das regras de proteção de terceiros, em
sede estritamente obrigacional, à situação que nos ocupa, de acção por wrongful life
(…) é no mínimo paradoxal, pelo menos em casos flagrantes, como o que apreciamos,
em que as partes não conceberam tal hipótese como abrangida no plano negocial pre-
viamente estabelecido, nem o ‘terceiro’, no caso o então nascituro J, podia interagir
com os contraentes, porque terceiro ainda não era para os sobreditos efeitos”
44
Em declaração de voto, o Cons. Pires da Rosa defendeu a concessão da indem-
nização à criança, mas apenas a título de danos não patrimoniais, e só destes, “por-
que a completa ausência de autonomia atual e futura fez recair na autora sua mãe a
necessidade de patrimonializar por completo em si própria a indemnização de que,
por toda a vida, necessitará para garantir a dignidade mínima da vida de seu filho”,
embora “devendo ficar bem claro que a quantia que vier a receber a esse título será,
em absoluto, constrangida às necessidades do J” [a criança demandante]. O facto de
o montante da indemnização ter de ser gerido pelos progenitores representantes do
incapaz (como o património de qualquer incapaz) não é, porém, argumento contrá-
rio à concessão da indemnização. E além de não existir base legal para a distinção,
com negação da indemnização à criança dos seus danos patrimoniais, mas concessão
de uma compensação por danos não patrimoniais, não existe também previsão legal
para assegurar a proteção da indemnização em relação a atos de disposição, ou, por
exemplo, aos credores dos progenitores, salvo se se tratar de prestações alimentares.
Mas neste caso o dano que os pais podem liquidar corresponde às prestações alimen-
tares do seu filho a que ficam sujeitos, enquanto para este está em causa o acréscimo
de despesas devidas à deficiência.
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ... • 565
4. Posição defendida
a) Ilicitude
videz, ou que prevê os requisitos para ela (artigo 142.º, n.ºs 1, alínea c),
e 2 do Código Penal). Não sendo da sua violação que resulta a eventual
responsabilidade civil nos casos de “wrongful birth” ou de “wrongful li-
fe”45, não é decisiva a questão de saber em benefício de quem se prevê tal
justificação, e os seus requisitos — ou seja, a questão de saber qual é o fim
de proteção dessas mesmas normas.
A ilicitude da conduta do responsável pode resultar tanto da vio-
lação de um contrato (e a nosso ver será até desejável que se aproxime
deste modelo, mesmo em relação aos cuidados de saúde prestados em
instituições públicas), cuja validade não é de pôr em causa, referido, por
exemplo, a uma operação de esterilização ou a uma interrupção volun-
tária de gravidez (evidentemente, apenas nos casos e nos termos em que
não é punida).
Quando está em causa a reparação dos prejuízos sofridos pelos pais
pelo nascimento de uma criança saudável, isto é, o normal “dano de pla-
neamento familiar”, a ilicitude pode resultar também da violação de um
direito subjetivo: a liberdade ou autodeterminação reprodutiva (negativa)
dos pais46, que é sem dúvida um aspeto integrante, se não do seu direito
à liberdade, pelo menos do direito geral de personalidade.
45
A interpretação teleológica (com determinação do “fim de proteção”) do art.
142.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, não nos parece decisiva porque apenas torna
justificada a interrupção voluntária da gravidez, mas não impõe um dever específi-
co ao médico; e, por sua vez, o n.º 2 prevê requisitos para aquela justificação (para a
“verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez”),
mas a eventual responsabilidade civil do médico que pode estar em causa nos casos
de wrongful birth e de wrongful life não resulta da violação dessa norma (que só pode
ter lugar pela realização da interrupção da gravidez sem preenchimento dos requisitos
em causa), mas antes de outros deveres (v. a seguir, no texto). Cf., porém, Miquel
Martín Casals/Josep Solé Feliu, comentário cit. à sentença do Tribunal Supremo
de 18 de maio de 2006, n.º 2.1., considerando decisivo o facto de a possibilidade de
interrupção da gravidez apenas visar proteger os progenitores, e não o nascituro.
46
V. a análise já cit. de Jörg Neuner, “Das Recht auf reproduktive Selbstbe-
stimmung: Facetten durchkreuzter Nachwuchsplanung”, AcP, 214 (2014), págs.
459-510. V. também, em geral sobre os direitos reprodutivos como direitos funda-
mentais, entre nós Vera L. Raposo, O direito à imortalidade. O exercício de direitos
reprodutivos mediante técnicas de reprodução assistida e o estatuto jurídico do embrião
in vitro, cit., esp. págs. 41-376.
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ... • 567
47
V., por ex., Erwin Deutsch/Andreas Spickhoff, Medizinrecht: Arztrecht,
Arzneimittelrecht, Medizinprodukterecht und Transfusionsrecht, 5.ª ed., Berlin-Hei-
delberg-NewYork, Springer, 2003, pág. 224 (para os quais “a decisão da mãe para a
interrupção da gravidez pode interromper a sua vida, mas preserva-o de deficiências
que são, pelo menos, financeiramente onerosas”), e a cit. decisão do HR holandês
de 2005 (“baby Kelly”), n.º 4.13: a clínica e o médico “invocaram que Kelly não tem
(também contra eles) qualquer direito à própria não existência ou à interrupção da
gravidez da sua mãe. Porém, tal é improcedente pois o médico está vinculado por
força do seu dever de cuidado (…), existente primariamente para com a mulher
grávida, mas também para com o seu filho ainda por nascer, a realizar o diagnóstico
pré-natal exigido nas circunstâncias, e, se for o caso, a consultar um geneticista
clínico para examinar melhor o fruto da gravidez (…). Se o médico falhar no cum-
primento destes deveres para com a mulher, actua também para com o nascituro
em violação de regras não escritas”, vigentes na prática social para os profissionais.
48
Hans Stoll, Haftungsfolgen im bürgerlichen Recht: eine Darstellung auf rechts-
vegleichender Grundlage, Heidelberg, C.F. Müller, 1993, pág. 284.
49
Criticamente, com razão, tb. V. Cardoso Correia, “Wrongful Life Action”,
cit,. págs. 128 segs.
50
No que, aliás, parece ser mais uma expressão dos inconvenientes da utilização
da forte “linguagem dos direitos” quando estão em causa problemas éticos e jurídicos
de fronteira. Sobre esse inconveniente, v. F. Araújo, ob. cit., págs. 16-8, 94 e segs.
568 • Paulo Mota Pinto
51
Como, perante a dificuldade suscitada no cit. acórdão do STJ de 19 de jun.
de 2001, de desconformidade entre a causa de pedir e o pedido, notou também A.
Pinto Monteiro, anot. cit., RLJ, págs. 382-3.
52
Também neste sentido, v., por exemplo, na doutrina alemã, E. Deutsch/A.
Spickhoff, Medizinrecht, cit., págs. 220 e segs., n.º 344, págs. 223 e segs., Gott-
fried Schiemann, in J. von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch
:mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen, Berlin, Sellier-de Gruyter, 2005, § 249,
n.º 209 (cit. como Staudinger/nome do autor), Staudinger/Hager, § 823, n.º
51, e Johannes Hager, “Das Recht der unerlaubten Handlungen”, in J. v. Stau-
dingers Kommentar zum bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Neben-
gesetze. Eckpfeiler des Zivilrechts, Berlin, Sellier-De Gruyter, 2005, págs. 819-76,
827-8, J. Neuner, “Das Recht auf reproduktive Selbstbestimmung: Facetten
durchkreuzter Nachwuchsplanung”, cit., págs. 481 e segs.
53
J. Neuner, “Das Recht auf reproduktive Selbstbestimmung“, cit., pág. 482.
54
Ob. cit., págs. 482-483.
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ... • 569
b) Dano
55
Ibidem.
570 • Paulo Mota Pinto
56
V. indicações em F. Araújo, ob. cit., págs. 97-8, e n. 169 e seg., referindo
modos de rebater aquele problema — designadamente, notando que a objeção filo-
sófica e valorativa poderia ser resolvida recorrendo à noção de “potencialidade” do
ser em questão, que se vai tornando, no devir presente, uma identidade.
57
Assim, Claus-Wilhelm Canaris, Grundrechte und Privatrecht — Eine Zwis-
chenbilanz, BerlinNew York, de Gruyter, 1999, pág. 67, n. 207 (na trad. port.,
Direitos fundamentais e direito privado, Coimbra, Almedina, 2003, págs. 96-7, n.
208); e já Dieter Medicus, Zivilrecht und werdendes Leben, München, Beck, 1985,
págs. 13 e seg.
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ... • 571
c) Causalidade
58
V., porém, por ex., Hermann Lange, Schadensersatz, 2.ª ed., Tübingen,
Mohr, 1990, pág. 337: “consequência a aceitar é a de que a criança já nada recebe
depois da morte dos pais”.
59
Que, entre nós, são referidos por A. Pinto Monteiro, anot. cit., RLJ, pág. 383.
60
Ibidem.
61
A. Pinto Monteiro, anot. cit., RLJ, pág. 383 (“porque é que isso haverá de
repugnar, se for o filho a pedir a indemnização, e já não repugna se forem os pais
a pedirem essa indemnização?!”), A. Menezes Cordeiro, Tratado…, cit., IV, cit.,
pág. 364 e seg. (contradição de valorações).
Improcedente é também a invocação de possíveis prejuízos psicológicos para a
criança, para contrariar a possibilidade de uma indemnização dos pais pelo nascimen-
to do filho, saudável ou não (no primeiro caso, pelo menos por danos patrimoniais).
O ato de planeamento familiar (a prevenção do alargamento da família “anónimo”,
isto é, com membros ainda desconhecidos) é bem diverso do da aceitação eventual de
uma criança depois de ter nascido e de ter passado a integrar a família, e trata-se de
matéria que deve em primeira linha ser deixada à apreciação dos pais, que podem fazer
ver à criança que é errada qualquer impressão de não ser desejada.
572 • Paulo Mota Pinto
d) Cômputo do dano
62
Para ClausWilhelm Canaris (“Die Vermutung ‘aufklärungsrichtigen Ver-
haltens’ und ihre Grundlagen”, Franz Häuser et alii, Festschrift für Walther Had-
ding zum 70. Geburststag, Berlin, De Gruyter, 2004, págs. 3-24), a decisão sobre a
conduta a adotar não dispondo da informação, isto é, uma decisão não informada,
é um resultado diverso, na sua configuração concreta, da decisão que o interessado
teria tomado com informação, pelo que tem de afirmar-se a causalidade entre a vio-
lação do dever de informação e este resultado, consistente na concreta decisão não
informada, ligando-se depois esta à lesão sofrida segundo as regras gerais da causali-
dade. Cabe, assim, ao devedor provar que um tal resultado diverso não teria (decisão
não informada) conduzido ao mesmo dano (v. tb. págs. 17-8, para uma justificação
alternativa, com fundamento em que é ao devedor que invoca o comportamento
alternativo lícito — isto é, o devedor da informação que invoca que o credor se teria
comportado de igual modo se ele o tivesse informado, isto é, se se tivesse compor-
tamento licitamente — que incumbe a prova das consequências deste). V. também
o nosso Interesse contratual negativo…, cit., II, págs. 1385 e segs.
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ... • 573
63
A discussão da “compensação de vantagens” na indemnização tem tido uma
relevância menor, nos casos de “wrongful birth” e de “wrongful life”, do que as con-
dicionantes constitucionais e éticas logo à própria admissibilidade de um dano res-
sarcível. Mas há uma aproximação quando se discute o problema de saber se as van-
tagens, materiais ou imateriais (a “alegria com a criança”), de um nascimento não
sobrelevam as desvantagens materiais do seu sustento, e se, portanto, uma indem-
nização, pelo menos por wrongful conception de uma criança saudável, não deveria
ser correspondentemente diminuída. Há quem o afirme (assim, decisivamente, já o
Landsgericht de Düsseldorf, 2 de Dez. de 1993, in NJW, 1994, págs. 805-7, 806),
para as vantagens imateriais, enquanto outros apenas concedem relevância no qua-
dro de uma reparação de danos não patrimoniais (v. Gregor Thüsing, Wertende
Schadensberechnung, München, Beck, 2001, págs. 37-8, 58, Gerda Müller, “For-
tpflanzung und ärztliche Haftung”, in Erwin Deutsch, org., Festschrift für Erich
Steffen zum 65. Geburtstag, Berlin, de Gruyter, 1995, págs. 355-72, 364). E, para as
vantagens e danos patrimoniais, já o BGH, na cit. decisão de 18 de Março de 1980
(NJW, 1980, págs. 1455-6), mandou deduzir aos custos com o sustento da criança
nascida de uma esterilização falhada o abono de família (Kindergeld) recebido pelo
seu nascimento (v. tb. mais tarde, por ex., a decisão de 19 de Jun. de 1984, in
NJW, 1984, págs. 2625-6). Sobre o problema, v., no direito italiano, G. Cassano,
“Nascita indesiderata e ‘compensatio’ (nota a Trib. Venezia, sez. III civ., 10 settembre
2002)”, D&G — Dir. e Giust., 2002, f. 39, pág. 68, e Antonino d’Angelo, Un
bambino non voluto e’ un danno risarcibile?, Milano, Giuffrè, 1999, págs. 84, segs.
Entendemos que o problema da “compensação de vantagens”, nos casos referi-
dos no texto, é, no domínio do dano não patrimonial, um problema de avaliação
deste, e se, para os danos patrimoniais, é de admitir nos termos gerais a compensação
com vantagens patrimoniais (como um “abono de família”, mas não, prestações ali-
mentares), para vantagens imateriais não defendemos a possibilidade de “compensa-
ção” (a que a jurisprudência norte-americana manifesta abertura — v. G. Thüsing,
Wertende..., cit., págs. 188 e segs., e, criticamente, págs. 477 e segs.).
Nem nos parece que a redução da indemnização por danos patrimoniais re-
sultantes da gravidez e do nascimento (“dano do planeamento familiar”), ou das
necessidades de uma criança gravemente deficiente, deva ter lugar atendendo ape-
nas a aspetos específicos destes casos, tais como possíveis objeções éticas a que do
nascimento de uma criança possam resultar danos. Antes defendemos, apenas, a
possibilidade de recurso, também nestes casos, ao mecanismo geral do art. 494.º,
desde que não exista dolo do lesante, e podendo entre as outras circunstâncias do
caso contar-se a evolução subsequente, não só da situação económica, mas dos po-
574 • Paulo Mota Pinto
sicionamentos dos pais, incluindo as vantagens imateriais que possam resultar para
eles da criança (já, porém, a circunstância de os pais passarem a ter direito a uma
eventual prestação de alimentos pelo filho não parece que possa ser relevante, sal-
vo em hipóteses excecionais). Essas vantagens, quando existirem realmente, devem
ser relevantes no quadro do art. 494.º, mas não podem, evidentemente, deixar de
ser apreciadas em termos estritamente individuais e concretos, e não “objetivos” ou
generalizantes — tal como não é de acompanhar certa jurisprudência alemã para a
qual bastaria uma melhoria geral da situação económica dos pais para que o dever
de indemnização desaparecesse (isto, pelo menos, quando as razões económico-so-
ciais não constituírem só por si indicação suficiente para legitimar a interrupção da
gravidez, como acontece entre nós, e diversamente do direito alemão, em que, por
isso, se defende que o dever de alimentos sai do âmbito de proteção do dever violado
quando uma apreciação superveniente vem a tornar injustificada tal indicação — v.
a decisão do BGH de 7 de Maio de 1985, in BGHZ, vol. 95, págs. 199-212, NJW,
1985, págs. 2752-5, e Hermann Lange/Gottfried Schiemann, Schadensersatz,
3.ª ed., 2003, pág. 334).
64
Cf., perguntando como se “confronta a vida de alguém deficiente com uma
não-vida dessa mesma pessoa”, v. A. Pinto Monteiro, anot. ao ac. do STJ de 19
de Jun. de 2001, RLJ, cit., pág. 384.
AINDA A INDEMNIZAÇÃO POR “NASCIMENTO INDEVIDO” ... • 575
que o feto vem a sofrer, quer durante a gravidez, no ventre materno, quer
mesmo já antes da conceção ou nesta mesma65. E, como se sabe, a nossa
lei concede tutela ao nascituro contra tais lesões, no artigo 66.º, n.º 2,
do Código Civil.
65
Cf. tb. E. Deutsch/A. Spickhoff, Medizinrecht, cit., pág. 225 (mesmo a
ação contra o profissional devido à sua concepção não deveria estar vedada à própria
criança, apesar de não estar ainda concebida à data do evento lesivo, tal como a
criança deve ter direito a ser indemnizada pela infeção da mãe e do filho com uma
doença sexualmente transmissível, antes ou depois da conceção, ou por uma lesão
sofrida no ventre materno), e, agora, H. Lange/G. Schiemann, Schadensersatz, cit.,
pág. 336 (“a problemática a discutir não é tão distante da das lesões pré-natais, e so-
bretudo da das lesões antes ou na conceção, que seria por isso adequada uma valora-
ção totalmente diversa”; mas o paralelismo não é incontestado na doutrina alemã).
576 • Paulo Mota Pinto
66
Diferentemente, segundo A. Dias Pereira, O consentimento informado…,
cit., pág. 391, “o dano moral da própria criança (pensando numa ação de wrongful
life) afigura-se de mais difícil apreciação jurídica” (do que o dos pais, que poderiam
exigir a compensação dos danos não patrimoniais resultantes da “privação da possi-
bilidade de praticar a interrupção da gravidez não punível, autodeterminando-se na
sua paternidade e maternidade”).
67
O facto de apenas excluirmos o direito à compensação por danos não pa-
trimoniais baseado apenas no nascimento de uma criança saudável não é mais
discriminatório (entre crianças saudáveis e crianças deficientes) do que a admissão
da indicação embriopática para a interrupção da gravidez — que pode discutir-se,
mas é admitida na nossa lei. E corresponde também, sem dúvida, sociologicamente
a uma diferença nas consequências não patrimoniais para os progenitores, que não
deve ser ignorada pelo Direito — devendo embora ser combatida veementemente
qualquer discriminação no tratamento das pessoas em causa, em função da deficiên-
cia. O facto de toda a vida humana nascida gozar de dignidade plena não é obstá-
culo a isto. Antes, a nosso ver, a negação da indemnização pelo nascimento de um
filho com deficiência, com tal fundamento, é de novo retórica a mais, mas análise,
e sensibilidade aos factos a regular, a menos.