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O Conceito de Emancipação

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

Neyha Guedes Dariva

O CONCEITO DE EMANCIPAÇÃO: UM DIÁLOGO ENTRE A TEORIA


CRÍTICA DE ADORNO E AS PEDAGOGIAS CRÍTICAS NO BRASIL

Santa Maria, RS
2016
Neyha Guedes Dariva

O CONCEITO DE EMANCIPAÇÃO: UM DIÁLOGO ENTRE A TEORIA CRÍTICA


DE ADORNO E AS PEDAGOGIAS CRÍTICAS NO BRASIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM, RS) como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Educação.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Elisete Medianeira Tomazetti

Santa Maria, RS
2016
© 2016
Todos os direitos autorais reservados a Neyha Guedes Dariva. A reprodução de partes ou do
todo deste trabalho só poderá ser feita mediante a citação da fonte. E-mail:
neyhadariva@gmail.com
Neyha Guedes Dariva

O CONCEITO DE EMANCIPAÇÃO: UM DIÁLOGO ENTRE A TEORIA CRÍTICA


DE ADORNO E AS PEDAGOGIAS CRÍTICAS NO BRASIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Educação da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM, RS) como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Educação.

Aprovado em 19 de agosto de 2016:

______________________________________
Elisete Medianeira Tomazetti, Dra. (UFSM)
(Presidente/orientadora)

______________________________________
Amarildo Luiz Trevisan, Dr. (UFSM)

_____________________________________
Pedro Angelo Pagni, Dr. (UNESP)

Santa Maria, RS
2016
DEDICATÓRIA

Dedico esta dissertação ao meu maior incentivador e apoiador, meu pai. Meus passos são seus
também. Dedico ainda para o meu amor maior, minha irmã Lyvia Sophia.
AGRADECIMENTOS

Agradeço minha orientadora, Elisete M. Tomazetti, pelo apoio e parceria nesta


caminhada. Aos professores de minha banca, Pedro A. Pagni e Amarildo L. Trevisan, pelas
contribuições dadas desde minha qualificação e por se fazerem parte desta pesquisa. Ao meu
colega de estudos e namorado, Iván, pelo apoio e carinho nas horas difíceis e pelas longas
conversas filosóficas. Agradeço ainda minhas amigas amadas que me aturaram neste
processo, Michaela, Geise e Ana. Agradeço todos os professores que fizeram parte de minha
trajetória, em especial a professora Leandra Bôer Possa. Por fim, agradeço aos colegas e
familiares.
Parece que enquanto o conhecimento técnico expande o horizonte da
atividade e do pensamento humanos, a autonomia do homem enquanto
indivíduo, a sua capacidade de opor resistência ao crescente
mecanismo de manipulação de massas, o seu poder de imaginação e o
seu juízo independente sofreram aparentemente uma redução. O
avanço dos recursos técnicos de informação se acompanha de um
processo de desumanização. Assim, o progresso ameaça anular o que
se supõe ser o seu próprio objetivo: a idéia de homem.
(HORKHEIMER, 2002, p. 07)
RESUMO

O CONCEITO DE EMANCIPAÇÃO: UM DIÁLOGO ENTRE A TEORIA CRÍTICA


DE ADORNO E AS PEDAGOGIAS CRÍTICAS NO BRASIL

AUTORA: Neyha Guedes Dariva


ORIENTADORA: Elisete Medianeira Tomazetti

A presente dissertação de mestrado problematiza o conceito de emancipação e ocupa-se com a


sua apropriação pelas pedagogias críticas no cenário nacional brasileiro. Teve como objetivo
construir bases sólidas para uma efetiva prática de análise e de reflexão daquela prerrogativa
que rege a pedagogia brasileira, a saber: o objetivo de servir para a formação de sujeitos
autônomos e emancipados. Logo, o problema de pesquisa visa às possibilidades de
problematização e reflexão, desde uma perspectiva adorniana, do conceito de emancipação.
Nos valemos, para tanto, da teoria crítica de Theodor W. Adorno como cerne de nossa
problematização conceitual. Com isto, nosso objetivo foi o de conduzir o leitor para uma
reflexão acerca das potencialidades e, principalmente, das dificuldades em se pensar o
conceito de emancipação. Para tanto, analisamos três obras de diferentes autores que são
expoentes de uma pedagogia que se opôs ao modelo tradicional e pautou-se na luta pela
conscientização e pela democratização do ensino, a saber, uma pedagogia que nasce crítica
em sua essência. Paulo Freire, José Carlos Libâneo e Dermeval Saviani são os autores que
sustentam nossa investigação e a partir deles pudemos traçar a formulação da meta
emancipatória presente em tais pedagogias. A crítica adorniana ao conceito de emancipação é
a ferramenta que utilizamos para a problematização e teorização que cumprem o objetivo
desta pesquisa, sendo que primeiramente destacamos o conceito em sua formulação
iluminista, para em seguida adentrar a crítica de Adorno em relação a tal concepção.
Situamos, ainda, as pedagogias críticas e sua postura em relação ao conceito para,
posteriormente, fomentar a reflexão e discussão das rupturas possíveis entre ambas as
concepções e seus direcionamentos ao conceito de emancipação. Temos como resultado uma
reflexão acerca da meta de emancipação e de seus reais desafios de efetivação, procurando dar
suporte teórico a uma possível reflexão, por parte do leitor, de seu próprio fazer educativo. A
pesquisa realizada está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), na linha de pesquisa Práticas Escolares e
Políticas Públicas e teve financiamento através de bolsa CAPES.

Palavras-chave: Autonomia. Conscientização. Educação. Emancipação. Pedagogias Críticas.


RESUMEN

EL CONCEPTO DE EMANPACIÓN: UN DIÁLOGO ENTRE LA TEORÍA CRÍTICA


DE ADORNO Y LAS PEDAGOGÍAS CRÍTICAS EN BRASIL

AUTORA: NEYHA GUEDES DARIVA


ORIENTADORA: ELISETE MEDIANEIRA TOMAZETTI

La presente disertación de Maestría problematiza el concepto de emancipación, ocupándose al


respecto de su apropiación desde las llamadas pedagogías críticas en el escenario nacional
brasileño. La misma tuvo como objetivo construir bases sólidas para una práctica efectiva de
análisis crítico y reflexión de aquella prerrogativa que rige a la pedagogía brasileña, a saber:
el objetivo de servir para la formación de sujetos autónomos y emancipados. Por lo tanto,
nuestro problema de investigación busca posibilidades de problematización y reflexión, desde
una perspectiva adorniana, del concepto de emancipación. Nos valimos, para esto, de la teoría
crítica de Theodor W. Adorno como núcleo de nuestra problematización conceptual. Con
esto, nuestro objetivo es conducir al lector a una reflexión acerca de las potencialidades, y
principalmente, de las dificultades de pensar el concepto de emancipación. Para ello,
analizamos tres obras de tres diferentes autores que representan los presupuestos de una
pedagogía que se opuso al modelo tradicional e se pautó por la lucha por la concientización y
democratización de la enseñanza, a saber, una pedagogía que nace crítica en su esencia. Paulo
Freire, José Libáneo y Dermeval Saviani son los autores que sustentan nuestra investigación y
a partir de ellos pudimos trazar la formulación de la meta emancipadora presente en tales
pedagogías. La crítica adorniana al concepto de emancipación es la herramienta que
utilizamos para la problematización y teorización que cumplen el objetivo de esta
investigación, siendo que primeramente destacamos el concepto en su formulación iluminista,
para enseguida, adentrar en la crítica de Adorno en relación a tal concepción. Situamos,
todavía, a las pedagogías críticas y su postura en relación al concepto para, posteriormente,
fomentar la reflexión y discusión de las rupturas posibles entre ambas concepciones y su
orientación al concepto de emancipación. Tenemos como resultado una reflexión acerca de la
meta de emancipación y sus reales desafíos de concretización, buscando dar soporte teórico a
una reflexión posible, por parte del lector, de su propia tarea educativa. La investigación está
vinculada al Programa de Pos Graduación en Educación (PPGE) de la Universidad Federal de
Santa María (UFSM), en su línea de investigación Prácticas Escolares y Políticas Públicas, y
tuvo financiación a través de una beca CAPES.

Palabras clave: Autonomía. Concientización. Educación. Emancipación. Pedagogías


Críticas.
SUMARIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ................................................................................. 17


CAPÍTULO 1 - APONTAMENTOS SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA
PESQUISA .................................................................................................................. 21
CAPÍTULO 2 - RAZÃO EMANCIPATÓRIA: ESCLARECIMENTO E A
CRÍTICA AO PROJETO DA MODERNIDADE ................................................... 29
2.1 O IDEAL DE ESCLARECIMENTO E UMA NOVA SOCIEDADE: O PROJETO
DA MODERNIDADE .................................................................................................. 30
2.2 A META EM CONTRADIÇÃO: UMA CRÍTICA AO CONCEITO DO
ILUMINISMO .............................................................................................................. 37
CAPÍTULO 3 - AS PEDAGOGIAS CRÍTICAS: AUTONOMIA PARA A
CONSCIENTIZAÇÃO............................................................................................... 49
3.1 GRAMSCI, MARXISMO E EDUCAÇÃO ................................................................. 49
3.2 CONSCIENTIZAÇÃO: A EMANCIPAÇÃO NO FOCO DAS PEDAGOGIAS
CRÍTICAS .................................................................................................................... 56
3.3 O PAPEL DO PROFESSOR E SUA PRÁTICA NAS PEDAGOGIAS CRÍTICAS ... 70
CAPÍTULO 4 - REVISITANDO O CONCEITO: A POSTURA
ADORNIANA DE UMA EDUCAÇÃO PARA A REFLEXÃO HUMANA.......... 85
4.1 CULTURA E MASSIFICAÇÃO: O ENFRAQUECIMENTO CRÍTICO NO
MUNDO ADMINISTRADO ....................................................................................... 88
4.2 EDUCAÇÃO PARA A REFLEXÃO ................................................................... 101
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 109
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 113
17

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A educação contemporânea experimenta, desde o século passado, uma reavaliação de


sua efetiva contribuição às demandas da sociedade. Os governos totalitários e, de maneira
mais expressiva, o regime nazista na Alemanha, serviram a este repensar acerca dos rumos
educacionais. De tempos em tempos parece surgir, nas perspectivas filosóficas, novas
maneiras de entender e prescrever as práticas educativas. Este fenômeno, obviamente, se deve
ao fato da educação refletir os anseios da própria sociedade. Foi assim que no século XVIII o
movimento da Ilustração1 redesenhou os objetivos educacionais das gerações futuras. A saída
da Idade Média marca essa transformação, justamente enquanto delimita uma mudança na
postura humana em relação ao seu modo de produzir conhecimento. A meta da Aufklärung2
considerava a capacidade humana de valer-se de sua razão ao máximo potencial, como forma
de se livrar das amarras da natureza e tornar-se único senhor de sua vontade. Kant definiu
bem este objetivo e professou, ―esta época é a época do Iluminismo‖ (2009, p. 16).

Assim nascia o projeto da modernidade, numa clara pretensão e confiança na


competência racional do homem para guiar-se para a emancipação que, segundo Kant, seria a
consequência de uma valoração racional e do desprendimento mitológico. Em outras palavras,
o novo homem de ciência, que nasceu no período de transição entre a Idade Média e a
Modernidade, seria capaz, conforme o Iluminismo, de se efetivar a si às gerações futuras
enquanto emancipado, conduzindo para uma moralização e, portanto, para um bem viver
social. O conceito de emancipação presente neste contexto é aquele objetivo máximo de
liberdade e de capacidade do sujeito em se valer de si e de seu juízo para alcançar os valores
morais pertinentes a um espírito evoluído. Logo, o homem civilizado alcançaria máximas
éticas da razão e serviria ao propósito desta nova, e melhor, civilização.

A pretensão Iluminista deixou sua marca na posteridade. A educação, em nossa cultura


ocidental, absorve este projeto guiando-se para a concretização desse sujeito emancipado. No
contexto brasileiro, uma educação crítica se afirma e ganha forte repercussão nas décadas de
1980 e 1990. Tais tendências pedagógicas, talvez oriundas daquela reavaliação que citamos,
1
Movimento filosófico, político e social do séc. XVIII que pregava a libertação humana em relações aos dogmas
religiosos praticados durante a Idade Média. Neste trabalho utilizaremos as diferentes nomenclaturas, traduções
ao termo do original Aufklärung. Tais traduções podem ser conferidas no decorrer deste trabalho.
2
Termo de origem alemã que significa ―esclarecimento‖, ―Iluminismo‖. Neste trabalho está atrelado ao
movimento de mesmo nome que também chamaremos de movimento da ilustração, das luzes, esclarecimento e
Iluminismo. Ambas as traduções são válidas, uma vez que fazem alusão à ideia de ―dar luz‖, ―clarear‖; sendo
está a pretensão de tal filosofia.
18

que aqui chamaremos de pedagogias críticas, têm sua marca registrada na ideia de uma
possibilidade de libertação humana. Logo, acreditam numa emancipação. Em oposição ao
modelo tradicional de ensino, as pedagogias críticas se posicionam em favor de uma
educação mais humana e menos rígida, capaz de promover a autonomia dos alunos e não
produção de meros sujeitos espectadores da ordem vigente. Assim, tais pedagogias retomam,
em certa medida, o projeto de emancipação para a construção de uma sociedade de justiça e
igualdade. A grande meta das pedagogias críticas era a de superar as contradições sociais e
promover a conscientização coletiva. Para Paulo Freire, por exemplo, a elevação do
pensamento das massas começa pela autorreflexão. ―Auto-reflexão que as levará ao
aprofundamento conseqüente de sua tomada de consciência e de que resultará sua inserção na
História, não mais como espectadoras, mas como figurantes e autoras‖ (FREIRE, 1983, p.36).

Já para Adorno, em sua teoria crítica, o caminho de uma síntese salvadora não parece
encontrar a mesma positividade. O filósofo alemão teceu duras críticas ao projeto moderno
apontando para uma falha estrutural em sua meta, capaz de encerrar o objetivo emancipatório
numa contradição paralisadora. A emancipação, nos moldes do Iluminismo, não se efetiva;
ruída em sua própria metodologização; ou seja, perece em sua prática. A premissa primeira do
movimento, a morte do mito, é o passo inicial nesta trajetória. Sua conclusão acerca desta
contradição revela o caráter cíclico das pretensões do esclarecimento. Como descreve no livro
Dialética do esclarecimento (ADORNO, 1985, p. 26),

a própria mitologia desfecha o processo sem fim do esclarecimento, no qual toda


concepção teórica determinada acaba fatalmente por sucumbir a uma crítica
arrasadora, à crítica de ser apenas uma crença, até que os próprios conceitos de
espírito, de verdade, e até mesmo de esclarecimento tenham-se convertido em magia
animista.

A ―morte‖ dos valores universais denunciada por Adorno é a consequência do


assassinato Iluminista às tantas formas não científicas de busca pelo conhecimento. Para a
educação contemporânea a sequela deixada por este apagamento é a incapacidade crítica dos
sujeitos, justamente o oposto da pretensão emancipatória. A teoria crítica de Adorno nos dá
ferramentas para a problematização do conceito, trazendo à luz suas impossibilidades de
efetivação desde a racionalidade reforçada em sua prática. As diretrizes do projeto da
modernidade reforçam a frieza humana e a violência entre os homens, enquanto, diferente do
que pretendiam, eliminam da razão humana os elementos objetivos da filosofia contemplativa
19

e, de modo geral, de toda a forma de relação com o mundo que não entre nas prescrições do
saber científico.

Para a educação brasileira, desde os anos 1960, e mais fortemente nas décadas de 1980
e 1990, o conceito de emancipação se movimenta numa tendência marxista/gramsciana,
considerando a dicotomia das lutas de classes e da dominação social como alvos a serem
atingidos. Assim, o papel da educação tinha clara finalidade: emancipar o sujeito para que
este se rebelasse contra a realidade imposta, exercendo sua capacidade crítica para s
finalidade de uma nova sociedade. Aqui o conceito de emancipação se apresenta em inúmeras
formulações, tais como liberdade e conscientização, caracterizando o ideal pedagógico
presente nestas perspectivas educacionais.

Considerando ambas as discussões acerca do conceito de emancipação, tanto das


pedagogias críticas quanto da teoria crítica de Adorno, o objetivo desta pesquisa foi o de
estabelecer um diálogo entre essas duas teorias, a saber: as pedagogias críticas e a teoria
crítica de Adorno. Nosso intuito foi o de produzir uma problematização do conceito de
emancipação, pautando-se nas premissas das pedagogias críticas, no cenário nacional,
vinculando tal postura pedagógica com a teoria adorniana, utilizando destas ferramentas para
a discussão e reflexão conceitual. Uma educação verdadeiramente comprometida com a meta
emancipatória não pode desconsiderar a reflexão crítica, nem mesmo, de sua própria
convicção primordial. Assim, não tivemos como intuito desconstruir o conceito estudado,
nem mesmo desmerecê-lo. Ao contrário, o refinamento teórico é justamente tido enquanto
necessário para um constante exercício do passo primeiro de uma atitude autônoma: a crítica
reflexiva. Logo, nos esforçamos neste exercício, estabelecendo a problematização do conceito
que apoia nossas práticas educativas: o objetivo de emancipação.

No primeiro capítulo evidenciaremos a teoria que sustenta o olhar que movimenta


nossa pesquisa, bem como os passos teórico-metodológicos que nos guiaram. No capítulo
seguinte apresentamos um recorte das motivações históricas e sociais que influenciaram uma
mudança de postura em relação a si e ao meio no qual se relaciona, inaugurando o projeto
moderno de uma razão emancipatória. Em seguida, deslocamos nossa análise para a teoria
crítica e sua postura em relação aos rumos da razão humana, guiada pelas pretensões
iluministas. Num terceiro momento postulamos como objeto de análise as pretensões das
20

pedagogias críticas, com intuito de extrair a formulação conceitual de emancipação tida no


cenário educacional brasileiro. Neste capítulo buscamos compreender o cerne de nossa
constituição pedagógica, desde o conceito que modela esta postura educacional.
Posteriormente, no capítulo quatro, retomamos a narrativa adorniana desenvolvendo sua
análise educacional e revisitando sua construção do conceito que dá título a esta pesquisa.

Caberá ao leitor encontrar a validade, ou não, desta investigação. Como afirmado,


nosso objetivo tem sua relevância assegurada na necessidade de expor à crítica até mesmo
àquelas verdades mais consolidadas. Assim, não poderia ser diferente com este conceito.
Emancipar se apresenta como a meta da educação contemporânea, meta que podemos
verificar em documentos legais e planos escolares. Nossas práticas cotidianas enquanto
professores podem corroborar com esta afirmação; afinal, nossa meta se concentra em
propiciar ao aluno uma maturidade que lhe permita uma postura autônoma e crítica na
sociedade. Nas próximas páginas convidamos o leitor a participar conosco das reflexões que
movimentam esta pesquisa, para que se faça possível cumprir com o objetivo de reflexão e
análise a que nos propomos.
21

CAPÍTULO 1 - APONTAMENTOS SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA

Neste capítulo evidenciaremos os motivadores da pesquisa, assim como o referencial


teórico que o guiou. Em seguida demarcaremos sua metodologia e os autores selecionados
para análise, bem como as motivações destas escolhas e as obras correspondentes. Por fim,
delimitaremos a problemática que dá corpo a esta investigação e que motiva todas as
considerações que seguem.

Considero que nos apaixonamos por um autor não porque ele nos revela verdades
antes obscuras ou nos mostra aquilo que nem imaginávamos, mas sim porque encontramos
em suas afirmações nossas próprias posturas e visões de mundo. Afinal, parece que a
identificação com uma teoria tem sempre relação com aquilo que ela nos diz do mundo,
aquilo que já se sentia e que se pode concordar com força e verdade. Não faz muito tive um
desses insights. Estava lendo um desses autores, que me causam esse sentimento, e me dei
conta do porque escolhi na teoria crítica de Adorno minha morada conceitual. A resposta é
simples: porque sou intensa e apaixonada, assim como ele. E porque sinto, mesmo que
intuitivamente, o descompasso social que Adorno teoriza em sua filosofia. De fato, parece que
nos tornamos menos humanos em nosso relacionamento com o outro, na inversa proporção
em que avançamos e progredimos em nossa capacidade tecnológica e científica. Apresentarei,
rapidamente, a teoria que exponho para introduzir o leitor ao referencial teórico que move esta
investigação.

Theodor W. Adorno3 foi um dos pensadores que compôs a chamada Escola de


Frankfurt. Fundado em três de fevereiro de 1923, o Institut für Sozialforschung4 (que mais
tarde viria a se chamar Escola de Frankfurt) foi fruto de uma inciativa de seu idealizador,
Felix Weil5. A Escola de Frankfurt tinha como preocupação inicial a documentação e
teorização sobre os movimentos operários na Europa. Logo o caráter do instituto se ampliou
passando a assumir a forma de um centro de pesquisas, engajado com análises críticas do
capitalismo. Adorno se insere nesta perspectiva, comum aos autores da Escola, e se volta a

3
Filósofo alemão e judeu nascido em 1903. Foi importante pensador da Escola de Frankfurt, se dedicando aos
temas sociais principalmente relacionados com a Indústria Cultural e com os rumos da educação pós-guerra.
Também foi crítico de arte, musicólogo e compositor.
4
Tradução do autor: ―Instituto para a pesquisa social‖.
5
Félix José Weil era filho de um rico produtor de trigo alemão. Financiou o instituto mesmo em tempos de
guerra, permitindo a autonomia deste centro.
22

pensar questões ligadas a esta problemática. De fato, o estudo social de Adorno está, até certo
ponto, bastante conectado com a teoria marxista e suas categorias de análise.

Judeu e alemão, Adorno experimentou uma triste demonstração da crueldade humana,


durante o regime nazista da segunda guerra mundial. O holocausto culminou em uma cruel
prova das constatações a que chegavam os estudos sociais do instituto. O fio condutor que
transpassava a obra de todos os autores da Escola de Frankfurt era certamente o tema da
Aufklaerung. O esclarecimento, ou Iluminismo, como podemos traduzir do termo em alemão,
foi o tema gerador de uma série de escritos da perspectiva teórica destes autores 6. Nossa
trajetória racional, desde a modernidade, o interessava na medida em que poderia revelar
traços de nossa constituição social e explicar uma dupla constatação acerca dos resultados do
projeto moderno: um logro, enquanto progresso em termos científicos e, por outro lado, um
nítido fracasso daquele ideal moral de condução para uma emancipação humana. No caso de
Adorno, a obra, escrita em conjunto com Max Horkheimer, Dialética do Esclarecimento,
expressa exatamente esta reflexão acerca de nossa racionalidade e das contradições oriundas
ao projeto moderno de elevação da razão humana. Segundo Freitag (1993, p. 34),

a Dialética do Esclarecimento descreve uma dialética da razão que em sua trajetória,


originalmente concebida como processo emancipatório que conduziria à autonomia
e à autodeterminação, se transforma em seu contrário: em um crescente processo de
instrumentalização para a dominação e repressão do homem.

Esta repressão, a que se refere Freitag, se caracteriza na obra de Adorno de duas


formas: a dominação oriunda do sistema e das formas de produção e a não canalização da
repressão do próprio processo civilizatório. Ambas as caracterizações não se dissociam; pelo
contrário, se conectam e se revelam como facetas de um mesmo gerador. Quando Adorno
trata de dominação e pressão social sua crítica está voltada para nossa própria organização
material, de produção, e neste ponto sua análise está totalmente imersa na ideologia que o
constitui – a si e aos autores da Escola de Frankfurt. Porém, sua crítica ultrapassa a dicotomia
evidenciada por Marx e inaugura uma nova dialética. Adorno se apropria da dialética marxista
ao tratar das contradições existentes no interior do próprio sistema, mas se recusa a considerar
o momento mais importante desta perspectiva: a síntese. Em suma o que Adorno faz é uma
análise de seu tempo, de sua própria realidade. Ele critica o projeto da modernidade porque

6
É importante destacar que a crítica à modernidade – tema da Aufklaerung – é comum aos autores do instituto.
Porém as ramificações e respostas a esta problemática se mostra bastante divergente em cada um.
23

olha para a sociedade e se recusa a acreditar que a mesma sociedade capaz de produzir a
barbárie da segunda guerra mundial pode ser considerada emancipada. Assim, ele se
posiciona e se coloca a pensar as condições que nos levaram a esta falha e as possibilidades de
resistência a estes mecanismos.

Partindo destas considerações, Adorno chega casualmente às temáticas que envolvem


a educação. Sua postura em relação ao tema se mostra atual e necessária, uma vez que opera
em torno de nosso objetivo maior. Pensar-se enquanto educador, segundo Adorno, é assumir
um compromisso para com o mundo e com as futuras gerações. É evitar aquilo que já se sabe
maléfico à humanidade. A única certeza que Adorno nos aponta, neste sentido, é que a
educação deve evitar tudo àquilo que nos afasta de nossa humanidade, daquilo que resulta, em
última instância, em violência cega e em crueldade maciça. Em suma, a educação deve
humanizar o homem e evitar que o horror (como o holocausto, por exemplo) se repita. É
assim que para mim o filósofo se apresenta como aquele que dá voz as impressões de minha
própria experiência no mundo. A educação que tive prometeu a condução para um mundo
melhor, mas tudo que consigo enxergar é a repetição das condições criticadas pela mesma. A
violência cotidiana, que todos os dias nos chegam pelas mídias ou que experimentamos, é a
maior prova que algo deu errado em nossa tarefa de emancipar.

Foi em 2010, ainda no segundo semestre da graduação, que tive contato com o autor
pela primeira vez. Passando por diferentes modalidades de bolsas de pesquisa, a teoria crítica
da Escola de Frankfurt – na figura de Adorno e Horkheimer – foi o tema que me acompanhou
por todo o curso de filosofia e culminou em minha monografia7. Pensar essa educação crítica
foi minha motivação. Ao ingressar no mestrado tive oportunidade de clarear algumas
concepções e ampliar meu referencial. Ao me inserir no grupo de pesquisa coordenado por
minha orientadora, profa. Elisete M. Tomazetti, grupo FILJEM (Filosofia, Cultura e Ensino
Médio) , passei a refinar meu objeto de análise e moldei minha pesquisa para a temática atual.
Em contato com a obra de Maria M. A. Garcia, Pedagogias críticas e subjetivação: uma
perspectiva foucaultiana (2002), passei a indagar se o conceito de emancipação presente nas
pedagogias críticas – termo empregado pela autora - teria alguma similitude ou aproximação
com aquele que vinha me constituindo como educadora desde o curso de graduação em
filosofia. Percebemos, então, que meu contato com a temática da teoria crítica poderia servir
7
Trabalho de conclusão de curso de graduação em filosofia intitulado A dialética do esclarecimento de Adorno e
a educação como possibilidade emancipatória.
24

de alavanca conceitual para uma pesquisa que abordasse o conceito desde o contexto
brasileiro, problematizando-o por meio de uma crítica externa. Somado a isto estava minha
própria angústia com o tratamento do conceito de emancipação dado no dia a dia da escola.
Minha impressão pessoal é a de que consideramos o conceito como autoexplicativo e
deixamos de questioná-lo, o que acarreta, como consequência, um conformismo da educação
em relação a si mesma. Logo, um diálogo entre essas duas perspectivas pareceu-me servir de
suporte para o não comodismo e para a constante crítica e melhoria de nossas práticas
educativas enquanto professores.

Por fim, apresento a pesquisa que teve como objetivo um estudo conceitual acerca de
nosso objetivo educacional de emancipação, assumindo a postura da teoria crítica de Adorno
como ferramenta analítica de uma atitude que se justifica por meio da própria postura da
autora desta pesquisa, de sua reivindicação teórica e de sua lente para diagnóstico do real. A
pesquisa realizada é de cunho bibliográfico e conceitual. Sendo assim, sua materialidade foi
composta por algumas obras selecionadas, que julgamos estabelecerem relevância ao tema.
Dos autores destacados utilizamos como norteador teórico o filósofo Theodor W. Adorno.
Sua teoria em relação ao conceito de emancipação motivou e deu rumo a esta pesquisa em sua
intencionalidade. Para a materialidade escolhemos três obras de importantes autores da
educação brasileira, a saber: Paulo Freire (1921-1997), José Carlos Libâneo (1945) e
Dermeval Saviani (1943). Suas respectivas obras são:

 FREIRE. P. Educação como prática da liberdade. 14ªed. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1983.
 LIBÂNEO. J.C. Democratização da escola pública: a pedagogia crítico – social dos
conteúdos. 9ªed. São Paulo: Loyola, 1990.
 SAVIANI, D. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze
teses sobre educação e política. 32ed. São Paulo: Cortez/Autores associados, 1999.

Apesar destes três autores não poderem ser ingenuamente encarados como iguais em
sua pedagogia, gostaríamos de fazer uma pequena ressalva sobre a opção desta pesquisa em
seus enquadramentos. Nosso objetivo se encontra nas finalidades que tais pedagogias
consideram em sua proposta educacional. Assim, consideramos que englobá-las em uma
categoria maior de análise nos seria mais fortuito. Logo, nos valeremos aqui da definição de
25

Garcia que estabelece um núcleo norteador para aquilo que defini por pedagogias críticas.
Segundo a autora, as pedagogias críticas

são discursos que tanto propõem problematizações morais da ordem social, de como
a ordem social deve e deveria ser tendo por fundamento determinados princípios e
valores morais, como também posicionam os indivíduos como agentes morais, que
se relacionam consigo mesmos e uns com os outros de um modo moral e com uma
certa representação moral da sociedade. Os indivíduos serão mais ou menos
(auto)conscientes e (auto)críticos, mais ou menos ingênuos ou alienados, segundo
sua maior ou menor adesão a determinadas leituras do mundo social e a projetos
políticos específicos. São discursos que propõem certa forma de experiência de si
(as relações que o indivíduo deve ter consigo mesmo) e de experiência com os
outros. Além disso propõem formas de experiência do mundo, ou melhor, formas
dos indivíduos experimentarem o mundo e nele se experimentarem. (GARCIA,
2002, p. 21)

Assim, dado que o objetivo de tais pedagogias nasce como contraposição ao modelo
tradicional instituído e assumem a meta de conduzir para a autonomia e para a
conscientização, consideramos como válido utilizarmos a definição de Garcia, a saber:
pedagogias críticas. Tais autores foram escolhidos segundo sua relevância ao contexto
educacional brasileiro e o profundo legado de suas obras. É inquestionável a afirmativa
contribuição destes pensadores, no que diz respeito ao recorte desta pesquisa. Esta escolha foi
tomada em conjunto pelo grupo de pesquisa FILJEM, sendo fruto de inúmeras discussões até
chegar ao recorte presente. Os autores escolhidos fazem parte daqueles nomes lembrados
enquanto grandes pensadores que subjetivaram positivamente a educação brasileira nas
ultimas décadas e a prática pessoal de cada um. Assim, a relevância desta escolha está
assegurada na relevância dos próprios autores selecionados.

A hermenêutica foi uma valiosa ferramenta utilizada. Seguindo esta perspectiva


intentamos uma leitura rigorosa, extraindo as formulações conceituais com objetivo de
apreender as concepções educacionais em voga nestas pedagogias. Em nossa busca, seguimos
a recomendação de Trevisan (2011, p. 1193), que defende que ―a hermenêutica propõe em sua
abordagem encontrar um ponto médio, ou seja, buscar um ponto desencadeador da
interpretação‖. Assim, procuramos evidenciar, nas obras estudadas, o conceito de
emancipação e dar luz às suas formulações, interpretações e práticas constituintes, como
processo indispensável para exercer a prática interpretativa, necessária a um posterior diálogo
e problematização. Ainda sobre o método hermenêutico, Trevisan (2011, p. 1194) aponta que:
26

a hermenêutica procura expressar a ideia da necessidade de deixar que o texto diga


algo, o que implica abdicar do que é sabido para se colocar na posição de escuta ou
de reconhecimento do sentido comunicado no saber do outro. A confirmação ou não
da expectativa inicial de sentido se faz presente nessa ocasião, em que tudo deve
confluir para compreender a ―fala‖ do objeto analisado. É claro que isso depende da
apropriação dos pressupostos de base da abordagem utilizada, dos instrumentos ou
técnicas disponíveis e da competência teórica do intérprete na sua utilização.

Logo, não nos pareceu necessário e nem prudente, dado o tempo máximo desta
pesquisa, selecionar um grande número de obras a serem analisadas. Encontrar o conceito de
emancipação considerado pelas pedagogias críticas implicava numa análise cautelosa de suas
formulações teóricas. Independente do número de obras, o importante era a capacidade de
extrair os pressupostos e as formulações conceituais que guiam tais pedagogias. Como
apontou Trevisan, trata-se, pois, de uma postura de escuta e implicação com o objeto de
análise, que resultará em uma ―fala‖ do mesmo. Assim, as obras analisadas foram tidas
enquanto ―palavras a serem escutadas‖.

Por fim, procuramos, de maneira não arbitrária, mostrar alguns aspectos conceituais
que podem servir de base para a reflexão e problematização do conceito de emancipação,
objetivo deste trabalho. O leitor perceberá que não foi construído um capítulo que faça algum
tipo de consideração, apontando uma delimitação rígida das diferenças e descontinuidades
encontradas entre o conceito de emancipação nas pedagogias críticas, no campo educacional
brasileiro, e na teoria crítica de Adorno. Esta ―falta‖, na verdade, é uma postura teórica, que
visa a conformidade com o método estabelecido. Não se intenciona, aqui, apontar verdades,
diferenças e divergências conceituais que estabeleçam um tipo de hierarquia entre as duas
perspectivas. Nem mesmo procuramos estabelecer um novo conceito de emancipação, que
harmonize um meio termo entre ambas as perspectivas. Construir a reflexão seria negar o
exercício pretendido ao próprio leitor, resultando em uma contradição entre nossa proposta e
sua efetivação. Além do mais, como já destacamos, seguimos imersos na perspectiva
adorniana, que não considera em sua teoria a síntese de uma postura dialética. Logo,
mantivemo-nos neste passo negativo de uma reflexão de potência assegurada em sua crítica e
tomada de consciência, sem ambições salvacionistas ou otimistas em demasia. Esperamos que
ao final cumpramos de fato com estas pretensões.

Para tanto, a pesquisa se organiza ao entorno do conceito de emancipação que rege as


teorias educacionais analisadas. Já destacamos que a formulação deste conceito nasce numa
27

meta audaciosa da sociedade que emergia na Modernidade, como expressão de uma ruptura
com o instituído. As relações com o mundo e as formas de busca e validação do conhecimento
se alteram neste período de transição entre a Era Medieval e a Modernidade, servindo de
motivação ao conceito de emancipação. Logo, como melhor explicaremos no capítulo que
segue, a expressão de uma razão emancipatória culminaria numa meta de sujeito da
posteridade, aquele que seria capaz de um pleno aperfeiçoamento moral e de sua capacidade
racional. O projeto moderno pretendia iniciar os passos seguros desta trajetória, confiando em
suas prescrições para tal finalidade.

Desde o século XVIII, até o presente, vivemos conforme alguns destes preceitos,
seguindo a herança que nos foi deixada por este período. Considerando que alguns séculos já
se passaram, a conclusão que se esperava, desde a promessa moderna, é de que o objetivo
emancipatório já estivesse cumprido em sua totalidade. Todavia, a realidade que
experimentamos não nos deixa assumir esta afirmação. As condições que asseguram a efetiva
emancipação do sujeito passam, segundo Kant (2009), por uma postura moral absoluta, numa
plena capacidade de valer-se de seus próprios juízos, por uma razão altruísta e, por fim, por
uma maioridade intelectual. Tais preceitos não podem ser verificados por completo no
presente uma vez que ainda constatamos comportamentos de violência em nossa sociedade,
entre outros exemplos. Seguindo a afirmação adorniana, não pode existir progresso social em
uma civilização capaz de crueldades desumanas contra seus iguais. É a partir deste
diagnóstico que se configura a crítica de Theodor W. Adorno ao conceito de emancipação,
evidenciando suas problemáticas inerentes e suas (im)possibilidades.

A crítica de Adorno, apesar de muito difundida academicamente, não aparece com


força no cenário educacional brasileiro no que diz respeito ao conceito de emancipação e sua
apropriação pelas pedagogias críticas, que também se vale do conceito em suas práticas e
metas educacionais. Em nosso contexto nacional, os rumos de uma educação humanista se
concretizam naquelas pedagogias críticas, que muito nos influenciou desde, mais fortemente,
as décadas de 1980 e 1990. O conceito de emancipação presente nestas pedagogias
educacionais se molda apropriando-se de certos referenciais marxistas, ganhando uma nova
roupagem em relação ao Iluminismo. Mas afinal, quais seriam as premissas e conclusões que
norteiam a afirmação da importância do conceito de emancipação nestas pedagogias? Nesta
28

discussão conceitual, o que a teoria crítica de Adorno nos revela com potencialidade
problematizadora?

Assim, a pesquisa se constituiu a partir do seguinte problema: como o conceito de


emancipação se apresenta no contexto educacional brasileiro das pedagogias críticas e
quais são as possibilidades de problematização e reflexão desde uma perspectiva
adorniana? Nossa intensão foi promover um diálogo entre estas duas perspectivas para que
fosse possível uma problematização potencializadora deste conceito, tão caro e importante às
nossas práticas educacionais. Assim, o objetivo geral desta investigação foi o de analisar o
conceito de emancipação das pedagogias críticas no Brasil, contextualizando e o discutindo a
partir da teoria crítica de Theodor W. Adorno. Logo, tivemos como suporte os seguintes
objetivos específicos:

 Destacar e problematizar o conceito adorniano de emancipação,


 Situar as pedagogias críticas no contexto educacional brasileiro,
 Apreender o conceito de emancipação enunciado como objetivo pelas pedagogias
críticas,
 Fomentar a análise crítica, contribuindo para tecer, por meio da leitura adorniana, uma
reflexão conceitual de nosso próprio contexto.

Tais objetivos são contemplados nos capítulos que seguem, servindo ao interesse de
responder a questão que guiou esta pesquisa. Ao final, esperamos contribuir para a
reflexão conceitual a que nos propomos.
29

CAPÍTULO 2 - RAZÃO EMANCIPATÓRIA: ESCLARECIMENTO E A CRÍTICA


AO PROJETO DA MODERNIDADE

Ao tratarmos de emancipação parece sempre prudente nos situarmos historicamente,


com intuito de melhor compreendermos nossa localização dentro do projeto – legado - que
nos foi deixado pela modernidade. A saída da Idade Média, nestes termos, representou muito
mais do que uma mudança política ou de cunho econômico. A passagem entre estes dois
períodos históricos é marcada, antes, pela mudança de contexto social. Ou seja, pela mudança
de comportamento iniciada com a revolução científica, que significou toda uma nova forma
de compreensão do homem em relação a si e ao seu meio – o que podemos denominar como
sendo uma mudança de paradigma. Se tratamos hoje daquilo que chamamos de projeto da
modernidade é porque estamos imersos nas ideias e ideais que revolucionaram este momento
da história. Nossa estrutura racional, comportamental e, de maneira geral, toda a nossa forma
de nos relacionarmos com o mundo está envolta nestas transformações, uma vez que são
frutos de uma profunda mudança paradigmática ocorrida neste período.

O cenário ao qual precisamos nos voltar é o da modernidade. Para sermos mais


específicos, o início deste período histórico e seus motivadores. Quando tratamos de um
momento da história não temos como pretensão uma análise estanque que desconsidere as
inúmeras interferências e descontinuidades que formam tal contexto. Não faz parte de uma
boa leitura histórica fechar cada período em uma ―caixa‖ de acontecimentos isolados, nem
mesmo amarrar tais fatos como premissas que conduzem, necessariamente, a uma conclusão
definitiva. Assim, não queremos analisar a modernidade como algo isolado que explica e
condiciona o momento atual; mas sim, ressaltar algumas características desta fase de
transição, entre a era medieval e a modernidade, que nos foram herdadas e de, alguma
maneira, ecoam até o presente.

Se por um lado não parece prudente concentrar nossa análise numa leitura linear e
restritiva da história, por outro não podemos desconsiderar nossa maquinaria social mais
importante: a cultura. Com isso defendemos que uma análise do presente não pode deixar de
considerar o fenômeno da cultura enquanto elo de repasse de conhecimento entre os homens
e, também, como mecanismo de ligação entre o antigo e o novo. Coincidindo com o próprio
estudo adorniano (1985), ao considerarmos o século XXI por meio desta perspectiva
30

poderemos ressaltar inúmeros pontos, acontecimentos e condutas, que nos servem de base e
guiam nosso tempo presente. O ideal do projeto moderno nos importa nesse sentido e servirá
ao nosso interesse de apreensão do conceito de emancipação.

2.1 O IDEAL DE ESCLARECIMENTO E UMA NOVA SOCIEDADE: O PROJETO DA


MODERNIDADE

A modernidade nasce marcando o fim da era medieval. Isso significa que muitas
mudanças fundamentais ocorreram em tal período, propiciando o que comumente
conhecemos por mudança de paradigma. O que tratamos por mudança de paradigma aqui é
uma transformação maciça de caráter social; ou seja, uma mudança substancial na sociedade.
Consideramos que a transição entre a Idade Média e a Modernidade se efetiva nessa mudança
paradigmática enquanto transformação de cunho social bastante amplo, também motivado
pelas descobertas científicas. Neste caso, pelas novas ideias que muito se relacionam com as
revoluções do pensamento desde importantes descobertas científicas.

Atrelado ao nascimento da ciência experimental, inúmeras ideias, teorias e descobertas


influenciaram mudanças marcantes até o presente. Se num sistema antigo de conhecimento as
explicações aos anseios e curiosidades humanas eram fortemente atreladas à religião, agora o
conhecimento ganha status de científico sempre que pode ser verificado e analisado dentro de
regras específicas. O que antes denominamos por mudança de paradigma se encaixa
perfeitamente neste contexto, afinal o que se consolidava na saída da Idade Média era uma
ruptura com as formas tradicionais de busca pelo conhecimento. Essa quebra, entendida como
parte formadora da cultura, motivou também inúmeras mudanças sociais mais gerais que o
âmbito restrito da ciência. Nessa afirmação máxima de ruptura do velho para instauração do
novo, o que estava em jogo era mais do que uma nova maneira de fazer ciência, era, antes, a
necessidade de uma forma diferente do homem se relacionar com a natureza e, assim,
interagir e se compreender no mundo. A revolução científica que marca o início da
modernidade é causa e, ao mesmo tempo, efeito deste anseio social.

Se pensarmos no contexto da referida época saberemos que o grande controle social


exercido pela religião teve figura central para aquela ruptura que estamos tratando por
paradigma. A filosofia especulativa da época privilegiava a capacidade de abstração como
31

método de captura da verdade. Ricardo Costa, em publicação sobre o tema, nos elucida que ―a
Idade Média herdou dos antigos o conceito de ciência (scientia). Aristóteles (384-322 a.C.)
definiu-a como um ‗conhecimento demonstrativo‘, isto é, o conhecimento da causa de um
objeto e do por que o objeto não ser diferente do que ele é‖ (2009, p. 132). Nota-se que a
própria definição de ciência dada pelos filósofos da Grécia Antiga privilegia a abstração, não
diferenciando filosofia e ciência. Assim se efetivava a busca pelo conhecimento; a filosofia
era considerada ciência – entendida enquanto episteme. A episteme se expressa como aquele
conhecimento que conduz a uma purificação conceitual. Em outras palavras, conhecer um
determinado conceito ou objeto era o mesmo que dizer tudo aquilo que é e o que não é o tal
objeto, isto é, purificá-lo conceitualmente. Este refinamento garantiria um conhecimento do
todo do objeto de estudo. Assim se efetiva a busca pela verdade. Verdade que por sinal que
era tida no singular, enquanto ―A‖ verdade. O exercício de reflexão e refinamento de teorias
por meio das categorias lógicas era a forma do saber filosófico. Assim, nossa maneira de
interagir com o mundo estava intimamente relacionada a este modelo. Para entendermos
melhor basta nos lembrarmos dos diálogos platônicos e de seu método. Sócrates exercia sua
maiêutica como método para a verdade. Sua técnica consistia em indagar seu interlocutor para
conduzi-lo ao conhecimento, que é imanente. Se a verdade é parte constituinte do sujeito,
então apenas é preciso purificar as ideias e afastar-se das contradições. Logo, é possível
encontrar as respostas desde que o exercício reflexivo seja tomado como ferramenta. Mesmo
que não possamos defender uma unanimidade em relação ao método de socrático podemos
nos valer deste como exemplo de conduta da ciência pré-moderna. Ou seja, a análise do
objeto sem, necessariamente, a sua utilização prática. Assim se efetiva algumas importantes
discussões conceituais do período, como: o que é o belo, a justiça, a felicidade e etc. Talvez
ainda melhor exemplo seja o filósofo Aristóteles e sua coleção batizada de órganon. Neste
conjunto de obras Aristóteles apresenta sua lógica formal e traça caminhos para a organização
do conhecimento, em termos de um fazer científico. Como ponto central de sua teoria estava a
observação minuciosa da natureza e da sociedade, uma relação de análise e contemplação
tendo como ferramenta de interação a razão. A ciência da época, ou a filosofia natural, tinha
nessas características sua identidade. Como ressalta Chibeni (2016, p. 03),

a utilização do termo ‗ciência‘ no sentido contemporâneo é bastante recente,


consolidando-se somente no século XX. Porém, a ciência – neste sentido do termo –
é mais antiga, remontando mais ou menos ao século XVII. No meio tempo, era
usualmente denominada filosofia natural. Tal denominação reflete, é claro, a origem
da ciência naquela busca do saber pelo saber destacada pelos Antigos. Eles não
distinguiam ciência de filosofia; tudo era filosofia. A palavra ‗ciência‘, que já existia
32

(em latim scientia; em grego episteme), era usada para diferençar o tipo especial de
conhecimento a que Aristóteles cantou louvores: o conhecimento universal e certo
acerca dos fenômenos naturais, dos números, das figuras geométricas, etc., buscado
sem preocupações práticas.

O conhecimento universal exaltado por Aristóteles revela a maneira como o homem


interagia e se posicionava no mundo. Em uma razão contemplativa a natureza pode ser
desvelada, descoberta. Já existe uma verdade objetiva, que pode, no máximo, ser revelada ao
observador. A apropriação religiosa das teorias filosóficas propiciou a difusão desta forma de
conhecimento por todo o ocidente e foi fortemente empregada por ilustres filósofos da Idade
Média. Santo Agostinho, por exemplo, se vale de referências platônicas em sua teoria para
assegurar a prova da existência de Deus. Além de Agostinho, Tomás de Aquino,
posteriormente, também se inspirou em filósofos da Grécia Antiga, em especial Aristóteles e
seu racionalismo. Tal filosofia especulativa estava intimamente relacionada com nossa
capacidade objetiva de apreensão do todo, por meio da busca dos valores universais e da
verdade máxima da existência. Este era o modelo epistemológico até à modernidade.

A ciência que se efetiva na modernidade não nasce como ruptura polarizada ao modelo
anterior, é fruto de um processo gradual de mudanças. As necessidades sociais se modificam
e, assim, se modifica também a maneira pelo qual se constrói e constitui o conhecimento. As
relações estabelecidas já não são as mesmas, a percepção do homem em relação ao seu lugar
no mundo se altera. O tipo de explicação e de alcance das teorias formuladas da maneira
tradicional já não é suficiente. Durante a Idade Média a igreja concentrou toda a energia
filosófica ao entorno da figura da santidade, teorizando sobre sua veridição. Mas a curiosidade
humana avançava e as revelações da ciência se distanciavam rapidamente dos dogmas
religiosos.

Francis Bacon é conhecido por ser o pai da ciência experimental. Nascido em 1561
esse importante filósofo tinha como meta a reforma completa do fazer científico. Como base
de seu pensamento está a necessidade da experiência para a verificação de teorias. Ou seja,
não basta, para a teoria ser considerada válida, passar pelo refinamento lógico ou pelos
sentidos de nossa sensibilidade é preciso ser comprovada na realidade. Percebe-se claramente
que o foco de análise científico muda do universal para o singular, do abstrato para o
concreto. Teorizar sobre os conceitos universais deixa de fazer sentido, o que interessa é
somente aquilo que possa ser comprovado. Como esclarece Boaventura (1988, p. 49),
33

ao contrário da ciência aristotélica, a ciência moderna desconfia sistematicamente


das evidências da nossa experiência imediata. Tais evidências, que estão na base do
conhecimento vulgar, são ilusórias. (...) A natureza é tão-só extensão e movimento;
é passiva, eterna e reversível, mecanismos cujos elementos se podem desmontar e
depois relacionar sob a forma de leis; não tem qualquer outra qualidade ou
dignidade que nos impeça de desvendar os seus mistérios, desvendamento que não é
contemplativo, mas antes ativo, já que visa conhecer a natureza para a dominar e
controlar. Como diz Bacon, a ciência fará da pessoa humana "o senhor e o possuidor
da natureza".

Se pensarmos que o fim da Idade Média está intimamente ligado com a queda da
soberania da igreja católica e seus dogmas, então o pensamento baconiano não nos parecerá
estranho. Por vários séculos a igreja freou importantes descobertas e limitou a produção de
conhecimento. As explicações religiosas foram superadas por pensadores como Nicolau
Copérnico (1473-1543), Giordano Bruno (1548-1600), Galileu Galilei (1564-1642) entre
outros. Assim, o anseio social da época se voltava ao conhecimento para além do estabelecido
pela religião. Era necessidade humana se tornar senhor de si e da natureza para não se sujeitar
novamente ao falso e ilusório. É nesse contexto que Francis Bacon pode ser encarado como
influente pensador que captou em sua teoria o seu próprio tempo, as demandas de seu
presente. Em sua obra novum organum ele escreve:

mesmo os resultados até agora alcançados devem-se muito mais ao acaso e a


tentativas que à ciência. Com efeito, as ciências que ora possuímos nada mais são
que combinações de descobertas anteriores. Não constituem novos métodos de
descoberta nem esquemas para novas operações. (BACON, 2015, p. 07).

Sua crítica ao modelo tradicional de ciência (ou não ciência em termos baconiano)
revela o profundo descontentamento vigente aos caminhos condicionados pela religião. Em
outro aforismo ele continua,

a verdadeira causa e raiz de todos os males que afetam as ciências é uma única:
enquanto admiramos e exaltamos de modo falso os poderes da mente humana, não
lhe buscamos auxílios adequados. A natureza supera em muito, em complexidade,
os sentidos e o intelecto. Todas aquelas belas meditações e especulações humanas,
todas as controvérsias são coisas malsãs. E ninguém disso se apercebe. (BACON,
2015, p. 07).

A ideia clara de que a razão humana é arma essencial na busca pelo conhecimento se
mantém, porém, com uma ressalva. Ela – a razão – já não é tida como único agente de busca
pelo conhecimento, é preciso estabelecer outras ferramentas que auxiliem na compreensão da
natureza em toda sua complexidade. Bacon acreditava que seu método científico de
34

verificação seria capaz de instaurar um novo homem, o homem capaz de chegar ao


conhecimento seguro8. A revolução científica que pôs fim a Era Medieval trouxe à luz as
fragilidades do saber humano, o desejo por uma base sólida que guiasse nosso conhecimento
era mais do que uma vontade, era, antes, uma necessidade. Sobre seu método, Bacon explica:

por isso, de vez que não ignoramos, nem nos esquecemos da magnitude da obra que
empreender (qual seja, a de colocar o intelecto humano ao nível da natureza e das
coisas), de nenhum modo nos podemos contentar com o que até agora preceituamos;
ao contrário, intentamos oferecer e subministrar ao intelecto os mais poderosos
auxílios, que é o que passaremos a indicar. E, certamente, na interpretação da
natureza deve-se formar e preparar o ânimo na interpretação da natureza, de modo
que, de um lado, detenha-se devidamente nos vários graus de certeza e, de outro,
pense também, especialmente no início, que o que lhe é permitido examinar depende
sobremaneira do que ainda está para ser examinado. (BACON, 2015, p. 123).

O próprio filósofo afirma, na passagem citada, que não ignora o conhecimento


construído até então. Porém, cita a necessidade de implantar auxílios ao intelecto humano. A
relação com a natureza, neste aspecto, deixa de ser como fora outrora, já não é contemplativa.
Agora a natureza passa a ser objeto de dominação e de experiência prática. Da natureza se
deve extrair aquilo que for de benefício humano para o saber e para livrar-se das amarras do
desconhecido e do imprevisível. A meta era audaciosa e previa uma nova sociedade, previa o
progresso. Mais tarde esta meta seria absorvida pelo movimento que ficou conhecido como
Aufklärung.

O Iluminismo foi um movimento europeu, político/intelectual, do século XVIII. Este


distanciamento de tempo entre o ―nascimento‖ da ciência experimental e o movimento que
promoveu tais ideias a âmbito social nos garante a afirmação do início deste trabalho: não faz
parte de uma boa leitura história considerar rupturas datadas, enquadrar a história em ―caixas‖
muito bem definidas. A saída da Idade Média nos interessa, nesta pesquisa, enquanto
fenômeno social que determinou boa parte do que somos no presente e, em especial, nosso
objetivo educacional. Nesse sentido o movimento iluminista é de grande interesse, uma vez
que pode ser tido como grande agregador de ideias difundidas da época e, também, influente
movimento de ideais sociais.

8
Termo utilizado no sentido dado pelo filósofo Francis Bacon. Trata-se de uma expressão que visa capitar um
novo, tido como melhor, modelo de busca pelo conhecimento. Neste sentido o conhecimento seguro apenas
poderia ser atribuído ao método científico, enquanto que as outras formas de conhecimento eram tidas como
metafísicas e míticas – portanto, sem relevância prática.
35

Em consonância ao seu próprio tempo este movimento tinha como bandeira a meta de
elevar a razão humana, tornando o sujeito centro dos questionamentos científicos. O homem
passa a ser a medida de todas as coisas enquanto criatura de razão e de insubordinação ao
meio. Bacon afirmava que o indivíduo deveria se valer da natureza, controlá-la. Os filósofos
do Iluminismo acompanhavam tal ideia e defendiam que por meio da razão científica e do
controle da natureza nos livraríamos dos mitos, chegando ao conhecimento seguro prometido
por Bacon. Dada esta pretensão tal movimento também é conhecido por outros termos como,
movimento das luzes, século das luzes, esclarecimento. Todos estes nomes fazem referência
ao ato de clarear, dar luz, dar razão, tirar das sombras. Esta era a meta, tirar o homem das
sombras da mitologia, das explicações religiosas e incertas; emancipar, tornar o homem
sujeito livre das amarras do medo e da falta de conhecimento. Conforme Pagni (2007, p. 166),

o século XVIII ficou conhecido como o Século das Luzes. Com essa metáfora que
denota claridade, os iluministas se opõem à Idade Média, considerada, por eles, o
período das trevas. Época em que a autoridade e a obediência tornaram-se regra
contra a liberdade humana e contra, sobretudo, o uso da razão e do entendimento.
Por isso, palavras como Lumières, Iluminismo, Enlighlenment, Ilustracion e
Aufklärung foram usadas pelo pensamento europeu do século XVIII para designar
sua auto-imagem.

Uma autoimagem que dava conta de expressar não somente as perspectivas e anseios
do movimento em si, como, ainda mais expressivamente, todo um contexto social de
dissociação entre ciência e religião. O início da modernidade é marcado por esta dicotomia.
Conhecimento passa a ter outro significado e atrela-se à ciência, distanciando-se de saberes
tido como menores ou até não considerados, como, por exemplo, os religiosos.

Muitos filósofos integraram este modo de pensar a capacidade humana e o papel do


homem no mundo; muitos pensadores fizeram parte deste movimento. O filósofo Immanuel
Kant (1724-1804), por exemplo, foi grande responsável por teorizar acerca do ideal moderno,
na medida em que tratou o esclarecimento em vistas de um processo educacional, com fins
transcendentais de uma ética do individual ao coletivo. Kant ao tratar de uma possível paz
perpétua se mostra envolto na crença de uma emancipação humana capaz de uma moral
absoluta. Sua teorização acerca de um imperativo categórico universal leva em consideração
tal emancipação; afinal, só é capaz de chegar a tal formulação ética aquele que primeiro for
capaz de pensar por si mesmo e tomar as rédeas de suas escolhas. Em uma de suas
publicações Kant escreve de maneira simples alguns apontamentos aos questionamentos
36

vigentes acerca do esclarecimento da época das luzes. Já no primeiro parágrafo o filósofo


explica que,

o Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado.


A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de
outrem. Tal menoridade é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de
entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a
orientação de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio
entendimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo. A preguiça e a cobardia são as
causas por que os homens em tão grande parte, após a natureza os ter há muito
libertado do controlo alheio (naturaliter maiorennes), / continuem, no entanto, de
boa vontade menores durante toda a vida; e também porque a outros se torna tão
fácil assumirem-se como seus tutores. Não me é forçoso pensar, quando posso
simplesmente pagar; outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida. Porque a
imensa maioria dos homens (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à
maioridade difícil e também muito perigosa é que os tutores de boa vontade
tomaram a seu cargo a superintendência deles. (KANT, 2009, p. 09-10)

Percebe-se a grande influencia da ciência experimental nas ideias difundidas no


período. Afinal, Kant afirma que a menoridade é culpa do homem sempre que este escolhe,
por medo e preguiça, continuar nesta condição. Segundo a citação nos revela, esta opção só
passa a ser escolha quando a natureza, já dominada, deixa de exercer sobre os homens aquele
controle da sujeição. Sem o devido conhecimento dos eventos climáticos, por exemplo, o
homem se entrega as explicações sobrenaturais; agora, segundo Kant, já não é mais uma
imposição natural nossa submissão, esta passa a ser uma escolha de cunho moral.
Escolhemos, por conforto, a posição de menores. A razão científica empodera o sujeito para a
libertação. Segundo o filósofo, nossa racionalidade seria capaz de chegar a determinados
imperativos, leis morais, intrínsecas ao homem. Seria por meio do exercício racional e de
autonomia que se alcançaria uma forma de razão capaz de elevar o espírito humano. Assim,

na medida em que a aplicação dessas regras universais e necessárias da razão pura é


objeto do pensamento filosófico, ela pode se tornar um fundamento aos costumes e
orientar a formação da moral e do gosto do homem, propiciando o desenvolvimento
mais seguro e belo do gênero humano. Fundamentação e orientação estas que, por
assim dizer, seriam imperativas também para sua Pedagogia. (PAGNI, 2007, p. 168)

Kant não difere este exercício filosófico, a própria filosofia, da educação,


especialmente quando se trata da Aufklärung. É por meio da educação que se torna possível
ao homem tal condição; ou seja, é tarefa educacional corroborar para tal finalidade. Em sua
pedagogia Kant defende a figura do tutor como agente moral de autoridade e de modelo. Essa
seria a primeira condição para o alcance de uma formação humana integral (Bildung), a
37

internalização das regras. Somente após essa formalização é que seria possível o
desprendimento e, assim, a autonomia do sujeito. Logo, as regras seriam absorvidas, num
primeiro momento, de maneira mecânica e pouco refletida, para, ―em seguida, representarem
um constrangimento moral, interior, definido autonomamente pelo próprio sujeito, graças a
sua capacidade de fazer livre uso da razão e do entendimento‖ (PAGNI, 2007, p. 180). Tal
internalização é de suma importância ao problema colocado pelo autor. Afinal, uma
emancipação pensada somente em critérios individuais, egoístas, não seria capaz de sustentar-
se, uma vez que, sucumbir-se-ia ao Estado e a ordem social. Este problema - da liberdade
individual e coletiva - está no centro da preocupação kantiana quanto a sua formulação do
objetivo emancipatório.

Eis que Kant resume em seu texto a meta de toda uma era, a meta da emancipação.
Quando tratamos de projeto da modernidade é a isso que nos referimos. A uma sociedade da
razão científica, do conhecimento seguro, da pacificação; e, logo, de uma sociedade
emancipada, capaz de fazer uso de seu entendimento. Vale ressaltar que, segundo Klein
(2009, p. 222), ―para Kant, o esclarecimento sempre se constitui muito mais como uma tarefa
do que propriamente um resultado. Isso também precisa estar presente quando se quer
compreender o real valor e o significado do Esclarecimento como uma época histórica‖. É
assim que o próprio Kant responde a pergunta (2009, p. 16) ―vivemos nós agora numa época
esclarecida? – a resposta é: não. Mas vivemos numa época do Iluminismo‖. A meta, neste
caso, é uma busca para além de seu próprio tempo; é um projeto.

Razão científica e meta moral se misturam nesta perspectiva. De um lado a ideia de


emancipação e de uma nova sociedade; de outro, um ideal de progresso e de civilização
tecnológica. Kant defendeu que uma sociedade evoluída só seria possível com liberdade para
os cidadãos e uma política amadurecida. A educação não foge a esta meta, toda a cultura
precisa estar envolta nesta áurea.

2.2 A META EM CONTRADIÇÃO: UMA CRÍTICA AO CONCEITO DO ILUMINISMO

A razão emancipatória dá conta deste projeto que nasce juntamente com a


modernidade. É a contraposição em relação a uma fundamentação racional que, de acordo
com o Iluminismo, engessava o conhecimento e limitava o progresso humano. Os anseios de
38

um conhecimento concreto sobre o mundo, para além da observação e das explicações


religiosas, motivaram uma guinada em nosso modo de produzir verdades. O que Kant
compila em sua teorização acerca do objetivo de sua época, uma razão emancipatória,
interage com este processo. O novo homem de conhecimento é aquele capaz de se valer, em
sua própria racionalidade, da lógica científica que se instaurava. Era aquele capaz de negar as
verdades prontas e revolucionar sua condição. O homem emancipado era livre enquanto capaz
de pensar e agir conforme sua própria razão.

Certa vez Foucault elogiou Kant por sua obra Resposta à pergunta: que é o
Iluminismo? e afirmou que apesar de ter sido uma obra considerada de pouca importância na
época, revelava muito sobre a preocupação filosófica que ocorreria dali para diante. Para o
filósofo, Kant se preocupou com entender seu tempo e o sujeito daquele período. Segundo
Foucault (1995, p. 239),

quando, em. 1784, Kant perguntou: Was heisst Aufklärung?, ele queria dizer: o que
está acontecendo neste momento? O que está acontecendo conosco? O que é este
mundo, esta época, este momento preciso em que vivemos? Em outras palavras: o
que somos, enquanto Aufklärer, enquanto parte do Iluminismo? Façamos uma
comparação com a questão cartesiana: quem sou eu? Eu, enquanto sujeito único,
mas universal e a-histórico - eu para Descartes é todo mundo, em todo lugar e a todo
momento? Kant, porém, pergunta algo mais: o que somos nós? num momento muito
preciso da história. A questão de Kant aparece como uma análise de quem somos
nós e do nosso presente. Creio que este aspecto da filosofia adquiriu cada vez maior
importância.

Seguindo essa afirmação, entendemos melhor a importância política e social do


movimento da Aufklärung. As principais metas deste movimento eram a libertação do homem
em relação aos dogmas religiosos, a supremacia da ciência e da razão humana e a liberdade
econômica. A época nos diz muito sobre tais objetivos. Desde o século V a humanidade
vivera sob um regime religioso, todo pensamento filosófico, bom como as relações sociais e
de trabalho, eram marcadas pela vigilância da igreja – que nesse momento era a própria figura
do Estado soberano. Muitos foram os motivos que levaram a um novo modelo econômico,
mas, como já vimos, no campo social/intelectual o que rompeu com o paradigma religioso
fora a ciência e o novo modelo de compreensão que se instaurava. Foram as descobertas da
recém-nascida ciência experimental que desestabilizaram todo um sistema de crenças que
organizavam a sociedade. Foi este – e outros tantos fatores de ordem política, econômica e
social – que contribuíram para o fim da Idade Média.
39

No texto kantiano citado por Foucault, Was heisst Aufklärung? (2009), o filósofo, de
maneira bastante didática, procurou descrever o que era afinal ser um sujeito esclarecido,
emancipado. Para Kant, o Iluminismo seria a expressão máxima da razão humana. Segundo
essa afirmação, esclarecer-se seria o mesmo que tornar-se dono e único responsável por suas
escolhas. Devemos lembrar que Kant apostou na razão como instrumento moral; logo, não
devemos entender apressadamente que o filósofo defenda um tipo de sociedade desordenada
onde cada um pode fazer o que lhe vem à mente. Para Kant, a razão humana é capaz de
chegar, quando bem utilizada pelo sujeito, a um axioma moral. Esse axioma é universal;
assim, a organização e a paz estariam asseguradas, segundo sua teoria. A educação, para o
filósofo, deveria debruçar-se neste projeto. Segundo Kant (1996, p. 80),

a cultura moral deve-se fundar sobre máximas, não sobre disciplina. Esta impede os
defeitos; aquelas formam a maneira de pensar. É preciso proceder de tal modo que a
criança se acostume a agir segundo máximas e não segundo certos motivos. A
disciplina não gera senão um hábito, que desaparece com os anos. É necessário que
a criança aprenda a agir segundo certas máximas, cuja eqüidade ela própria distinga.

A autonomia, neste sentido, é um processo educacional para a elevação humana. Já no


início de seu texto Kant exalta o lema máximo desta nova ideologia: sapere aude9! Segundo
essa perspectiva o conhecimento seria a consequência da libertação humana das amarras da
menoridade intelectual, da preguiça e da covardia. Emancipar-se é a meta do sujeito livre.
Assim, se apresenta como uma necessidade humana. Kant não anunciou um novo tempo, mas
descreveu os anseios de sua época. Era preciso se livrar das amarras das explicações míticas e
superar a metafísica. A ciência era a expressão máxima da nossa razão, da capacidade humana
de dominar a natureza, de entendê-la e de prevê-la. Kant (2009, p. 09) considera que ―o
Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado‖. Tal
menoridade seria a incapacidade de cada um servir-se de seu próprio entendimento e,
portanto, livrar-se da compreensão fácil por intermédio de outros.

Alcançar a maioridade, nos termos kantiano, seria o mesmo que tornar-se emancipado.
Kant defendeu que essa era a meta de seu tempo e a meta da própria educação. A tradução do
próprio termo empregado por Kant nos garante essa afirmação; Aufklärung é emancipação.
Como dito anteriormente, a teoria do filósofo embasa tal pretensão como possibilidade da
nossa racionalidade. Assim, todos nós seríamos capazes de nos tornarmos emancipados,

9
Tradução do autor: tenha coragem de saber.
40

iluminados e autônomos. O esclarecimento, nesta perspectiva, é centrado no próprio sujeito e


guarda em sua lógica a própria organização de uma racionalidade científica. A ambição
moderna de esclarecimento prevê um sujeito totalmente liberto de sua relação com a
metafísica. A ciência é a oposição direta à fé. Mito e conhecimento passam a compreender
duas categorias diferentes, distintas e opostas. Essa dicotomia entre conhecimento seguro e
mito está pautada no novo paradigma instaurado na passagem entre Idade Medieval e
Modernidade; entre filosofia especulativa e ciência experimental.

Até aqui resgatamos as bases teóricas de nossa estrutura social e, assim, também
educacional. Compreendemos que a modernidade nasce juntamente com uma nova sociedade
e uma nova forma de compreendermo-nos em relação ao meio. Obviamente, como
defendemos desde o início desta pesquisa, este processo não se tratou de uma ruptura drástica
e nem mesmo rápida. Podemos concordar que as mudanças que motivaram o início de uma
nova era foram significativas para a constituição da contemporaneidade. Se justamente somos
o que somos em virtude de todas as questões elencadas – e infinitas outras que deixamos de
lado dado o ponto de interesse deste trabalho -, então uma análise do presente não pode
esquivar-se desta contextualização. Seguindo a perspectiva teórica que dá suporte a esta
pesquisa, destacamos que o conceito de emancipação pretendido pelo Iluminismo não pode
ser concretizado, uma vez que guarda em sua constituição uma contradição capaz de podar
sua efetivação. Segundo a teoria crítica de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, a
principal desconfiança que gera tal suspeita se deve ao fato de não ser possível, na atualidade,
encontrar traços dessa paz pretendida por Kant, ou mesmo de uma emancipação em sentido
menos abrangente. O que se nota, em total contraposição ao projeto moderno, é uma
sociedade cada vez mais envolta na mentalidade da reprodução cega e, assim, acrítica.

Lembremos que a máxima emancipatória do Iluminismo previa que o homem de


ciência, ou seja o homem guiado pelas diretrizes de uma razão científica, seria capaz de tornar
real uma sociedade pautada em certezas e sempre em rumo de melhorias de sua própria
condição. Nesta sociedade idealizada o conhecimento humano estaria estritamente pautado na
razão científica o que levaria a perfeita moralidade, na medida em que cada um seria capaz de
ser juiz de suas próprias ações e conduzir-se àquele axioma elencado por Kant. Bem
entendido o papel do mestre e dos demais nesta relação, a autonomia seria aqui uma pretensão
41

alcançável por meio da incontestável capacidade humana em se valer de sua racionalidade.


Segundo Kant (1996, p. 15),

o homem não pode tornar-se um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é
aquilo que a educação dele faz. Note-se que ele só pode receber esta educação de
outros homens, os quais a receberam igualmente de outros. Portanto, a falta de
disciplina e de instrução em certos homens os torna mestres muito ruins de seus
educandos.

A noção kantiana empregada na afirmação de que o homem tem capacidade de tornar-


se ―um verdadeiro homem‖ nos confirma sua confiança na trajetória humana para a
emancipação e também sua profunda certeza de que tal condição só pode ser alcançada por
meio da educação. Assim, o compromisso individual se mostra como irrefutável. Todavia, o
que experimentamos na atualidade não é a efetivação do projeto moderno, mas, pelo
contrário, seu crescente distanciamento. Poderíamos atribuir a este fenômeno um desvio do
método ou mesmo das pretensões deste projeto. Porém, sabemos não ser este o caso. Nossa
sociedade vem se organizando aos passos encaminhados pelo século das luzes, se constituindo
com bases fixadas na razão científica e em constante progresso tecnológico. Tal progresso nos
garantiria, conforme confiava Bacon, uma libertação das amarras da subordinação para com a
natureza, nos tornando sempre mais capazes de usufruir de nossa razão e conhecimento.
Segundo Pucci (1994, p. 20),

o Iluminismo desde sempre perseguiu o objetivo de livrar os homens do medo e de


fazer deles senhores. A Razão, a Ciência, a Tecnologia desenvolvidas por Galileu,
Bacon, Descartes nos inícios da era moderna tinham como finalidade precípua servir
para a libertação e a emancipação do homem. Libertar o indivíduo das algemas que
o agrilhoavam, do tradicionalismo ignorante da Idade Média, que ainda lançava sua
sombra pelo mundo, da irracionalidade que dividia os homens em nobre e não-
nobres pelo nascimento e pela religiosidade.

Assim, na medida em que vamos avançando em nossa capacidade tecnológica,


deveríamos, na mesma velocidade, melhorar nossas relações e seguir o rumo da emancipação.
Mas não é o que experimentamos. Justamente, segundo Adorno e Horkheimer, este
pressuposto para a capacidade de autonomia é o que nos conduz para o contrário desta.
Assim, ressaltamos o duplo efeito que teve, na posteridade, a proposta Iluminista: foi, ao
mesmo tempo, condição de possibilidade para uma operação racional que permitiu avanços
científicos e tecnológicos e colabora para um constante enfraquecimento reflexivo.
42

A filosofia anterior a este período, também conhecida como ciência especulativa,


tratava de uma relação com o mundo bastante diferente do que estamos acostumados em
nosso século. A filosofia natural dava conta de ―revelar‖ o conhecimento e procurar as
indagações pertinentes. Quando Platão descreveu sua teoria sobre o mundo das ideias ele
estava fazendo ciência; e a estava fazendo na medida em que pretendia explicar o mundo,
conhecer. Todavia, a premissa fundamental, de dominação da natureza, da ciência
experimental ainda não se fazia presente com força a necessária.

Francis Bacon, como já vimos, tinha como proposta audaciosa a meta de utilizar da
natureza o máximo em benefício do homem. Não se tratava de uma tomada gananciosa ou
sem limites dos recursos naturais, essa discussão não estava em jogo na época. Seu vislumbre
estava entrelaçado na lógica do empoderamento humano. Quanto mais o homem pudesse
controlar a natureza, mais livre ele estaria dos medos que o aprisionavam. Em suma, Bacon
defendia uma concepção de método científico que valoriza a experiência e a experimentação.
Sua grande preocupação foi definir um método em que o erro fosse ao máximo evitado, para,
segundo ele, levar o homem ao caminho do conhecimento seguro. Conforme Oliveira (2002,
p. 29),

no projeto de Bacon, a tarefa da ciência é a progressiva resolução das nossas


necessidades. Uma vez que a liberdade não é mais localizada na relação cognitiva
com as verdades eternas e imutáveis, o conhecimento que se procura avançar deve
liberar o homem do jugo da necessidade, enfrentando-a no seu próprio terreno. Para
tanto, o tempo livre deve ser empregado, e o tempo liberado com o desenvolvimento
dos instrumentos deve ser reinvestido no progresso das técnicas e das teorias, pois a
teorização passa a ser atravessada pela mesma lógica que permeia o avanço
tecnológico.

Como se percebe, as demandas sociais em voga no período que compreende a saída da


Idade Média formam o aparato racional necessário para o desenvolvimento científico nos
termos de um avanço tecnológico. Tanto o Iluminismo quanto as teorias científicas da época -
e mesmo as relações econômicas – são partes de um acontecimento processual de mudança
histórica/social. A proposta do movimento da ilustração possibilitou o advento científico,
43

assim como o próprio discurso científico reforça as premissas do movimento. A essa faceta de
nossa racionalidade Adorno e, também, Horkheimer chamaram de razão subjetiva10.

A racionalidade subjetiva pode ser conceituada como sendo a faculdade de


coordenação entre meios e fins. Ou seja, mostra-se como o funcionamento abstrato do
mecanismo do pensamento. O perfil subjetivo de nossa racionalidade está intimamente ligado
ao lado calculista de tomada de decisões, é prático e quase mecânico. Entende-se, portanto,
que uma razão subjetiva leva pouco em consideração o conteúdo específico das ações,
considerando mais fortemente a finalidade imediata; obedecendo ao critério de utilidade. Não
é difícil perceber exemplos diários deste modelo de racionalidade. Como esse tipo de razão se
relaciona de forma parcial com os fins, acaba por estabelecer que eles são válidos por
servirem, ou não, ao interesse do sujeito; ao interesse da autopreservação. Em suma, podemos
dizer que a sociedade de nosso tempo, desde a modernidade, tem estabelecido uma relação
interpessoal totalmente imersa na mesma racionalidade empregada pela ciência. Essa
afirmação não é nova. A revolução científica do século XV e XVI é tanto fruto de uma
demanda social quanto produtora de uma nova sociedade. Nesses moldes, parece ser uma
consequência lógica inegável que tenhamos nos reorganizado socialmente conforme essas
novas premissas de verdades. O conhecimento científico tem um procedimento específico, se
relaciona com seu objeto na medida em que pode usá-lo. Assim, em nossas relações diárias
não seria diferente, nos relacionamos com o mesmo critério de utilidade empregado pela
ciência. Para Adorno/Horkheimer (1985, p. 24),

o esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os


homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los. O homem de
ciência conhece as coisas na medida em que pode fazê-las. É assim que seu em-si
torna para-ele. Nessa metamorfose, a essência das coisas revela-se como sempre a
mesma, como substrato da dominação.

É assim que o Iluminismo acaba por colaborar para que se alcance justamente o
contrário do que se pretendia. Se a promessa era que por meio da razão e da ciência como
detentora da verdade o homem se tornaria emancipado, o que se conseguiu foi o oposto. Cada
vez mais o homem delega a outros o seu direito de refletir e de tomada de decisões. Para

10
Segundo a compreensão de Adorno e Horkheimer (1985) a razão subjetiva é aquela capacidade racional que
torna possível nossas ações de classificação, dedução e inferência. Ou seja, trata-se da capacidade abstrata de
nosso mecanismo de pensamento. Por outro lado, a razão objetiva se configura como sendo o próprio logos
filosófico ligado à filosofia da Grécia Antiga se manifestando naquela capacidade contemplativa de especulação
do mundo e de uma ética universal.
44

Adorno/Horkheimer (1985) a racionalidade subjetiva impossibilita uma emancipação nos


termos kantianos, uma vez que ela mesma se converte em mitologia e impossibilita o
exercício básico da autonomia: a reflexão. Kant defendia o compromisso de seu tempo,
conforme Pucci (1994, p. 22-23):

o direito ao esclarecimento faz parte da natureza humana, está na direção da história


e diz respeito a toda a humanidade. É responsabilidade de qualquer época, ao Estado
(112-114), da sociedade civil e do indivíduo em particular. Uma época tem o dever
de permitir a educação de seus descendentes para o Esclarecimento, para a
maioridade. (...) Neste sentido se entende sua afirmação: vivemos em uma época de
esclarecimento, de emancipação, de libertação. A humanidade começa a sair de sua
menoridade. Esse legado de Kant permanecerá forte e fértil na reflexão dos
frankfurtianos.

Tal legado motiva a reflexão dos filósofos da Escola de Frankfurt, aqui, em especial,
Adorno e Horkheimer, justamente por entenderem que jamais se alcançou a meta pretendida.
O Iluminismo ao privilegiar o conhecimento científico e desconsiderar outras formas de busca
pelo conhecimento acabou por valorizar especialmente nossa capacidade técnica, mecânica e
de cálculo. O tipo de racionalidade empregado pelo fazer científico acabou por transpassar as
fronteiras de sua própria atividade, influenciando nossas práticas de interação social. Pensar
uma educação para a emancipação desde estes critérios acaba se efetivando como o mesmo
que reproduzir as decadentes relações sociais experimentadas na atualidade.

Adorno caracteriza como barbárie todo o comportamento violento que é fruto de uma
incapacidade reflexiva. Em outras palavras, as erupções de violência primitiva. O holocausto,
por exemplo, é, para o autor, o exemplo máximo de barbárie humana e reflexo incontestável
da falha do objetivo emancipatório. Uma nação inteira entregou-se aos delírios de uma
finalidade deturpada para a qual se estava disposto qualquer meio. A razão subjetiva não se
relaciona com as ―finalidades‖ naquele sentido metafísico de uma filosofia natural. No tipo de
racionalidade subjetiva o cálculo de justificação é prático e pode ser modificado, sem riscos
de tornar-se contraditório, de acordo com cada situação. Segundo Tomazetti (1991, p. 127),

a relação Homem-Natureza determinada pela razão instrumental funda-se, segundo


Horkheimer, em uma irracionalidade, em uma não eticidade entre meios e fins.
Estabelece-se então, apenas uma situação de domínio e manipulação, conduzindo os
homens à barbárie. A característica fundamental desta relação como TRABALHO é
deixada de lado, sob o peso da crítica a sua instrumentalidade. É preciso pois,
repensarmos esta característica e então, recuperarmos a crítica de Horkheimer em
outra dimensão.
45

Conforme Tomazetti elucida, a relação estabelecida entre homem e natureza se torna


irracional na medida em que desconsidera o próprio caráter de formação do trabalho,
entendido enquanto mediador entre sujeito e natureza. A individuação e nossa própria
constituição humana, dada por meio do trabalho, se perde, confundindo-se como fruto de uma
não cientificidade. Este é o caráter alienador11 da razão subjetiva. A perda de áurea e de
significado é a marca registrada deste fazer prático. Adorno, logo no início de sua obra
Dialética do Esclarecimento, denuncia o desencantamento do mundo promovido pelo
Iluminismo. Para o autor (1985, p. 19),

no sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem


perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na
posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de
uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do
mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber. Bacon,
‗o pai da filosofia experimental‘, já reunia seus diferentes temas. Ele desprezava os
adeptos da tradição, que ‗primeiro acreditavam que os outros sabem o que eles não
sabem; e depois que eles próprios sabem o que não sabem. Contudo, a credulidade, a
aversão à dúvida, a temeridade no responder, o vangloriar-se com o saber, a timidez
no contradizer, o agir por interesse, a preguiça, nas investigações pessoais, o
fetichismo verbal, o deter-se em conhecimentos parciais: isto e coisas semelhantes
impediram um casamento feliz do entendimento humano com a natureza das coisas
e o acasalaram, em vez disso, a conceitos vãos e experimentos erráticos: o fruto e a
posteridade de tão gloriosa união pode-se facilmente imaginar.

A calamidade, apontada por Adorno, resume o tempo presente, enquanto traduz um


mundo em que nossas relações já não se pautam em uma reflexão moral, mas, antes, guiadas
por critérios de utilidade. O ―desencantamento do mundo‖ é a morte do mito, que aqui
representa a minimização da própria capacidade objetiva de nossa racionalidade. O fazer
técnico é a marca registrada de uma sociedade que, justamente por isto, só poderia ter
dificuldades em refletir acerca de sua própria humanidade. A libertação proferida pelo
Iluminismo em virtude de um fazer tecnológico, de uma mentalidade rígida, acabou por
conduzir, em última instância, aos campos de concentração. Somente uma sociedade
totalmente incapaz de refletir para além das máximas de praticidade e utilidade seria capaz de
tamanha barbárie. O contexto citado por Adorno, como expressão máxima da faceta negativa
da racionalidade subjetiva, denuncia uma educação falha, que reproduz tal negatividade. Nem
a meta do programa do esclarecimento era ruim, nem nossa capacidade subjetiva em si. O
ponto negativo é a violência cometida, neste processo, contra tudo aquilo que se opunha a esta

11
O conceito de alienação dá conta de expressar a não concretização da relação de formação implicada entre
sujeito/trabalho. Quando tratou de trabalho alienado, por exemplo, Marx descreveu a não identificação do sujeito
com o fruto de seu trabalho (enquanto transformação da natureza). Numa relação alienada a formação não se
concretiza e a relação sujeito e trabalho é sempre assimétrica.
46

metodologia. A renúncia de qualquer forma de interação com o mundo e de busca de


conhecimento que não seguisse os critérios da razão máxima da operação foram condenados
como menores, na pretensão de sua total abolição. Como elucida Pagni e Silva (2007, p. 246),

para Adorno e Horkheimer (1986, p. 19), O Iluminismo teria perseguido a meta de


‗livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores‘. Todavia, no
processo de tornar os homens senhores e extirpar o medo diante do desconhecido,
saber e poder se aliariam, desde o início, a fim de conhecer a natureza e se utilizar
desse saber, cuja essência é a técnica – o método -, para dominá-la e para dominar os
homens. Ao assim se constituir, o programa do Iluminismo teria eliminado com o
seu cautério o ‗último resto de autoconsciência‘ (Id); mais do que isso, ele teria
exigido que o pensamento cometesse uma ‗violência contra si mesmo‘ (Id), a fim de
se tornar suficientemente duro para enfrentar e destruir os mitos. Isso quer dizer que
o pensamento teve de se furtar ao prazer que antes proporcionava a busca da verdade
para se restringir à mera operation, mero procedimento eficaz, realizado em nome
do desencantamento do mundo, da destruição do animismo. O fim desse processo,
que coincide com a ciência moderna e com o positivismo, seria a transformação do
pensamento em cálculo, em suas palavras, ‗a renúncia ao sentido e a substituição do
conceito pela fórmula, a causa pela regra e pela probabilidade‘ (Id.), proscrevendo
tudo que não se enquadrasse nesse registro, em especial os elementos considerados
míticos. Desse modo, O Iluminismo acreditou ter eliminado tudo que lembrasse os
elementos míticos e sua diversidade, por intermédio da calculabilidade na qual se
assenta o conhecimento e da utilidade deste para os homens que o dominam.

Segundo Adorno e Horkheimer, o Iluminismo nada mais fez do que eleger um novo
modelo mítico. Se antes a preocupação humana se voltava ao modelo metafísico ou teológico,
agora a ciência se ergue como um novo Deus na contemporaneidade, servindo de justificativa
para, inclusive, diversas atrocidades. A crítica dos filósofos frankfurtianos é radicalizada na
medida em que pretende servir de lupa aos problemas sociais de uma época supostamente
esclarecida, deturpada conceitualmente. É válido esclarecer, que não se tratava de considerar a
―morte‖ plena de nossa capacidade objetiva de reflexão, nem mesmo dividir nossa
racionalidade como duas partes distintas e opostas. O entender humano possui estas duas
facetas e ambas as competências permanecem, obviamente. São características de nossa
razão. Todavia, a crítica ao Iluminismo evidencia um privilégio dado, uma maior importância,
a apenas uma dessas características. Nossa capacidade subjetiva foi elevada ao nível de única
capaz de alcançar verdades e certezas, enquanto que nossa faceta objetiva foi desmerecida
enquanto mítica e errônea, incapaz de produzir verdades. É assim que a relação com a
natureza passa a ser tratada, descaracterizando nossa própria formação de identidade. Nesse
sentido, a instrumentalização compreende uma expressão desta tomada de posição. Conforme
Tomazetti (1991, p. 140),
47

Horkheimer compreende a atividade instrumental como um grau máximo de


manipulação, capaz de gerar a própria destruição da vida humana. Devemos
salientar no entanto, que nosso autor se insere numa história onde a apropriação da
natureza significa lucro e poder. O desenvolvimento da sociedade industrial foi
redigido pelo desejo feroz de dominação, culminando numa organização social onde
o próprio homem tornou-se um meio, um utensílio a ser utilizado para a consecução
de fins. A natureza, por sua vez, tratada como um simples meio, desprovida de
qualquer valor inerente, é submetida a uma manipulação que, contraditoriamente ao
pensamento de Hegel, interfere nas suas próprias leis, alterando-lhe o seu
desenvolvimento.

O que o filósofo defende, conforme elucida a autora, é a necessidade de escapar a esta


lógica paralisante de uma racionalidade instrumental. A reprodução generalizante da
sociedade tecnológica encerra o próprio pensamento na máxima da massificação. Os
elementos imutáveis de nossa consciência social, enquanto uma definição ética de
humanidade, se perdem por não entrarem na lógica científica de experimento e verdade. A
interação com o objeto passa a valer como critério para nossa própria interação entre sujeitos.
O preço que se pagou por isso foi o rebaixamento de nossa própria condição individual. O
valor máximo de cada um não é mais a vida e a dignidade, é antes seu valor social enquanto
útil, ou não, a determinada finalidade. O que Marx denunciou como coisificação12 do homem
é a própria minimização do valor humano em detrimento do capital. A consequência desta
prática é a própria perda da capacidade objetiva do pensamento. Não uma perda total, como já
dissemos, mas uma diminuição considerável de nosso interesse nesta capacidade. E assim,
uma dificuldade em operar conforme estes critérios. Conforme disserta Tomazetti, existe aí
uma incapacidade de agir conforme a máxima da ―finalidade comum‖. Para a autora (1991, p.
185),

diferentemente do que a sociedade tecnológica afirma, o homem não é um mero ser


adaptativo e mimético. Seu potencial de humanidade se salienta na ultrapassagem
dos mecanismos instintivos e mecânicos, próprios à natureza. No universo de suas
relações com os outros homens, na capacidade de agir solidariamente em função de
‗fins comuns‘ e não apenas egoisticamente, o homem cria o seu próprio mundo, sua
práxis. No entanto, a ameaça do descontrole da razão técnica recai diretamente sobre
este seu universo da práxis. A ameaça de destruição total, a crise ecológica, a
crescente automação desenfreada devem ser observadas com espanto.

Um valor moral da humanidade se assegura, assim, na efetiva capacidade de


ultrapassarmos os instintos mecânicos de nossa própria natureza. A civilização opera como
seguridade desta relação dinâmica entre sujeitos que não poderia entregar-se ao mero
reprodutivismo das relações estabelecidas pelo capital. Poderíamos pensar que em virtude da

12
Conceito marxista que expressa o fato do homem ―tornar-se objeto‖ no sistema capitalista de produção.
48

crítica ao encaminhamento dado pelo Iluminismo em seu ideal de emancipação, a filosofia da


teoria crítica finalizaria sua argumentação com um profundo pessimismo em relação aos
rumos da humanidade. Assim, na atividade educacional não haveria sentido pensar em uma
educação para a autonomia, uma vez que tal conceito, como vimos, circunda sua própria
contradição. Todavia, não é este o caso. A crítica esmagadora apontada não é pessimista em
relação aos caminhos da educação. Pelo contrário, aposta nesta como ferramenta possível para
um freio aos processos de desumanização, conforme abordaremos adiante.

Agora nos debruçaremos na apreensão das correntes pedagógicas brasileiras que se


valeram do conceito de emancipação, como forma de elucidarmos as influências deste
conceito em nossa própria prática educativa. Logo, analisaremos, em especial, as pedagogias
que compõe o leque teórico que marcou a educação contemporânea entre a década de 1980 e
1990. Por meio da análise de três obras percorreremos os sentidos dados ao conceito de
emancipação pelas pedagogias críticas, para, em seguida, estabelecer diálogo entre estas e as
críticas apontadas desde uma perspectiva adorniana. Como já indicado, nosso intuito é
fomentar a reflexão crítica acerca deste conceito, promovendo tal diálogo para cumprir esta
finalidade.
49

CAPÍTULO 3 - AS PEDAGOGIAS CRÍTICAS: AUTONOMIA PARA A


CONSCIENTIZAÇÃO

Como destacamos, a expressão utilizada neste trabalho, pedagogias críticas, refere-se


à nomenclatura dada pela autora Manuela Garcia (2002), que agrupa nesta expressão distintas
pedagogias que, segundo descreve, tem como ponto de convergência as categorias de análise
e transformação do real e o objetivo de esclarecimento e autonomia do aluno. Antes de
adentramos nestas pedagogias faremos uma rápida imersão em uma contextualização
histórica, para apreendermos as heranças que movimentam tais análises e darmos melhor
suporte para a discussão que segue.

3.1 GRAMSCI, MARXISMO E EDUCAÇÃO

O pensamento de Karl Marx (1818 – 1883), no século XIX, adentra as teorias


educacionais do século XX e chega com força no contexto brasileiro ainda na década de 1960.
Porém, a expressão mais forte dessas pedagogias, com inspiração dialética, se manifesta nas
décadas de 1980 e 90 com autores como Dermeval Saviani e José Carlos Libâneo. O
pensamento de Marx não estava necessariamente voltado para a educação, se referia, antes, a
uma crítica de cunho econômico acerca da relação de dominação presente na sociedade
capitalista, baseada em seu modo de produção. Para Marx (1996) a história da humanidade
estaria centrada na produção material de cada contexto histórico, sendo que a organização
social estaria diretamente relacionada a este fenômeno. Segundo analisou Marx, a organização
capitalista seguiu o ciclo histórico das mudanças sociais servindo ao papel revolucionário em
sua consolidação, em contraposição ao regime econômico anterior. A economia ocidental pré-
capitalista pautava-se numa outra forma de relação material/social. A produção feudal
baseava-se na relação serviu e na extrema discrepância entre o trabalho do servo e a
apropriação do fruto deste trabalho pelo senhor feudal. A relação servo/senhor pautava a
organização social e produtiva deste momento da história. As relações comerciais se
modificaram neste período dando força para uma nova forma de interação mercantil, servindo
de importante ferramenta para um novo regime econômico. O capitalismo representou, neste
contexto, uma saída revolucionária que visava à expansão das relações de comércio, criando
um novo nicho social.

A nova classe oriunda do capitalismo foi capaz de enriquecer com o fruto desta relação e
transformou para sempre a velha cadeia das relações laborais. Se outrora o senhor feudal era
50

sempre aquele que por nobreza herdava sua condição, sendo o servo o fruto desta
desigualdade, agora o homem de comércio é capaz de inventar seu próprio meio de
subsistência e abandonar a condição de dependente. É assim que, para Marx, a burguesia
nasce representando uma classe subversiva que fora capaz de superar o velho regime feudal e
estipular o novo. Na engrenagem das revoluções históricas a burguesia representou um
importante papel que transformou para sempre as relações econômicas de nossa sociedade.
Todavia, novas mazelas sociais se constituíram gerando um novo ciclo de desigualdades. A
apropriação burguesa dos meios de produção estimulou uma nova dualidade. A relação
econômica deste novo regime constituiu-se marcada por duas polaridades: de um lado, os
donos dos meios de produção, os burgueses; de outro, aqueles que sem os meios materiais
necessários restavam-lhes sua força de trabalhado como moeda de troca comercial, a classe
proletária.

A crítica marxista destaca esta dualidade extrema experimentada na fase mais radical
do capitalismo. Enquanto o trabalhador labutava para transformar a matéria prima em
mercadoria, recebendo sempre a menor parte do lucro total do produto, o empregador
enriquecia à custa desta dominação formal. Conforme elucida o autor em sua obra
denominada O capital,

o produto — a propriedade do capitalista — é um valor de uso, fio, botas etc. Mas,


embora as botas, por exemplo, constituam de certo modo a base do progresso social
e nosso capitalista seja um decidido progressista, não fabrica as botas por causa
delas mesmas. O valor de uso não é, de modo algum, a coisa qu’on aime pour lui-
même. Produzem-se aqui valores de uso somente porque e na medida em que sejam
substrato material, portadores do valor de troca. E para nosso capitalista, trata-se de
duas coisas. Primeiro, ele quer produzir um valor de uso que tenha um valor de
troca, um artigo destinado à venda, uma mercadoria: Segundo, ele quer produzir
uma mercadoria cujo valor seja mais alto que a soma dos valores das mercadorias
exigidas para produzi-la, os meios de produção e a força de trabalho, para as quais
adiantou seu bom dinheiro no mercado. Quer produzir não só um valor de uso, mas
uma mercadoria, não só valor de uso, mas valor e não só valor, mas também mais-
valia. (MARX, 1996, p. 305)

O valor de uso somado ao valor de troca da mercadoria, subtraindo-se os custos de


fabricação e a mão de obra assalariada representa o lucro total do capitalista. A mais-valia é a
expressão deste lucro que se efetiva, nos moldes do sistema analisado, com a máxima
valorização comercial e a mínima valorização humana. A relação de trabalho entre homem e
natureza se modifica, configurando-se enquanto um processo falho para uma identificação
plena entre homem e objetivo fabricado. No sistema de produção capitalista o trabalhador
jamais chega a reconhecer-se e identificar-se com o produto final de seu trabalho, uma vez
51

que sua tarefa é sempre fracionada e destituída de significado simbólico. Marx aponta no
próprio ciclo histórico a possibilidade real da superação aos excessos da burguesia e, assim,
do próprio capitalismo. Para o filósofo, assim como outrora a revolução burguesa representou
o início de uma nova relação econômica e social, agora seria preciso outra revolução, da nova
classe dominada, a saber, o proletariado. É assim que o comunismo se apresenta na teoria
marxista como uma solução possível ao problema da discrepância social oriunda da má
distribuição de renda. Seria, assim, possível dentro da engrenagem dos acontecimentos
históricos a construção de um novo modelo econômico, que se pretende mais justo e ético em
relação às questões sociais.

Se Marx estipulou uma análise econômica que repercutiu fortemente nas questões
sociais, Gramsci (1891 – 1937) pode ser exaltado como a figura intelectual que colocou os
apontamentos marxistas no centro da questão educacional. Suas indicações acerca de uma
educação revolucionária, que fosse capaz de produzir uma contra hegemonia, ganhou força
entre uma parcela da elite intelectual de esquerda. No Brasil, suas ideias deram sustentação ao
projeto de uma pedagogia que visava em seu ideal a transformação social e a superação da
relação de dominação do sistema capitalista. De maneira mais ou menos incisiva, podemos
estabelecer que de modo geral os autores das pedagogias críticas estão envoltos nesta
proposta de uma educação pautada na missão de superar a condição de marginalidade da
parcela menos favorecida da população.

Gramsci apresenta, desde categorias marxistas de análise, uma dimensão educacional


necessária à meta de uma reorganização social. Sua faceta ―educador‖ coloca no jogo das
relações materiais a educação como ferramenta das massas em prol de uma efetiva
transformação. Sua crítica acerca do caráter diretivo da elite orgânica13 da sociedade
capitalista aponta para uma condução social que pauta-se não mais em métodos de coação
policial ou jurídica, mas antes em uma condução em nível intelectual. A divisão escolar

13
Conforme apresentaremos, Gramsci considera que somos todos intelectuais, sendo a divisão entre
trabalhadores intelectuais e braçais um equívoco. Porém, esclarece uma divisão entre a classe de intelectuais,
apresentando o que seria este novo intelectual do capitalismo. Para elucidar este conceito utilizaremos uma
passagem da autora Ramos que esclarece muito bem a diferença entre intelectuais e intelectuais orgânicos.
Segundo a autora, ―Gramsci faz uma distinção importante entre todos os homens (intelectuais) e aqueles que
desempenham na sociedade a função de intelectual. Dentre estes últimos destacam-se dois tipos de intelectuais:
os tradicionais - eclesiáticos, aristocratas togados, administradores, cientistas, teóricos, filósofos etc-, os quais
fazem parte de um continuam histórico e cujo meio de ser consiste na eloquência, e o novo tipo de intelectual, o
orgânico; cuja formação será baseada na ‗educação técnica estreitamente ligada ao trabalho intelectual, mesmo
ao mais primitivo e desqualificado‘. Este novo intelectual não mais se caracterizará pela eloquência e pelo
distanciamento do mundo do trabalho físico, devendo ‗imiscuir-se ativamente na vida prática como construtor,
organizador, pensador permanente (...), especialista mais político". (1996, p. 18)
52

voltada para as camadas sociais e seu suposto papel no mercado de trabalho revela a direção
apontada por estes intelectuais orgânicos de nossa sociedade. Segundo Monasta,

é necessário denunciar o caráter ideológico da dualidade entre o ensino clássico e o


ensino técnico que reflete a divisão social entre o trabalho intelectual e o trabalho
manual; essa separação oculta a divisão real que existe entre as funções ―diretivas‖ e
―subalternas‖ da sociedade, independentemente do fato de que o trabalho realizado
por um grupo de pessoas, e que o caracteriza, se chame intelectual ou manual. Com
referência à educação no sentido estrito da palavra, Gramsci considera que ―no
mundo moderno a educação técnica, intimamente ligada ao trabalho industrial,
mesmo ao mais primitivo e menos qualificado, deve constituir a base do novo tipo
de intelectual‖. Isso significa, portanto, uma educação para todos e um vínculo
estreito entre a escola e o trabalho, assim como entre a educação técnica e a
educação humanista. (2010, p. 22)

Assim, para Gramsci, a educação deve estabelecer vínculo entre ambas as


necessidades sociais. A divisão entre trabalho braçal e intelectual, contida na organização
escolar a que volta sua crítica, é suprimida na teoria gramsciana. Para o autor, é preciso
reivindicar o direito do proletariado à cultura e sua autonomia cultural em relação à burguesia.
Uma filosofia da práxis, nesse sentido, teria o papel de destruir esse distanciamento entre os
intelectuais e os simples. O que Gramsci defende em relação à escola é uma postura
―desinteressada e humanista‖. Para o filósofo é preciso defender, também para a classe
trabalhadora, uma escola de formação clássica, com o intuito de formar para a disciplina
intelectual, a formação cívica e a consciência histórica. Assim a escola ―desinteressada‖ se
efetiva enquanto aquela que não possui um objetivo imediato, como o de formar para o
trabalho profissional, por exemplo. Em sua obra Os intelectuais e a cultura Gramsci defende
sua posição de que somos todos intelectuais. Portanto, a divisão social não estaria pautada em
uma inclinação natural de cada indivíduo, mas sim em uma divisão classista. Conforme o
autor,

todos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer então: mas nem todos os homens
desempenham na sociedade a função de intelectuais. Quando se distingue entre
intelectuais e não-intelectuais, faz-se referência, na realidade, tão-somente á
imediata função social da categoria profissional dos intelectuais, isto é, leva-se em
conta a direção sobre a qual incide o peso maior da atividade profissional específica,
se na elaboração intelectual ou se no esforço muscular-nervoso. (...) Em suma, todo
homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou
seja, é um "filósofo", um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção
do mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para
manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para promover novas
maneiras de pensar. (GRAMSCI, 1982, p. 07).

A conquista de uma educação democrática de verdadeira igualdade é fundamental ao


objetivo revolucionário. Apesar da democratização do ensino básico ter sido bandeira
53

burguesa durante a Revolução Francesa e, principalmente, na Revolução Industrial, o


princípio da escola para todos não era necessariamente igualitário. A proposta de Gramsci de
uma educação geral tinha como objetivo estabelecer uma igualdade da classe trabalhadora,
para dar conta de uma, futura, aniquilação das hierarquias e discrepâncias entre as classes
sociais. A escola para todos da Revolução Industrial tinha como foco a formação em massa da
classe trabalhadora, para suprir as demandas de mercado. Enquanto a elite privilegiava em sua
própria formação a máxima humanista da Bildung - ou aquela formação humana integral e da
cultura erudita-, restava à classe proletária apenas a formação técnica. O marxismo
gramsciano eleva a máxima de Marx, de unir o proletariado para a revolução, e fortalece a
escola como ferramenta na busca pela conscientização e ruptura das desigualdades sociais.
Conforme Ramos (1996), o ensino politécnico defendido por esta perspectiva visava o
objetivo apontado. Como elucida em sua obra, não se tratava de

um ensino qualquer, igual ao difundido na escola tradicional, e sim um ensino


politécnico, destinado a anular as diferenças de classe, as quais transformam a escola
em agência dos interesses burgueses; uma educação baseada no princípio da escola
unitária para todos, independentemente de sua classe social de origem, ou seja,
verdadeiramente fiel ao princípio da escola democrática. (1996, p. 08)

Gramsci defendeu uma postura de ideal marxista visando a educação como arma a
serviço do proletariado. Uma educação nos moldes de uma verdadeira democracia teria como
consequência uma harmonia social, se cumprida a meta de dissolução das classes e das
desigualdades oriundas desta divisão. A formação proposta pelo filósofo estava pautada na
ideia de uma educação para além do espontaneísmo. A criança da classe trabalhadora,
segundo Gramsci, não poderia ficar entregue a própria sorte de experiências e apropriações de
mundo. Era preciso educá-la para desenvolver certas habilidades que tanto permitiriam sua
formação técnica quando intelectual. Assim,

Gramsci acredita que o desenvolvimento global e integral da personalidade só


poderá ser atingido mediante a exposição do jovem a múltiplas experiências. Recusa
fortemente o espontaneísmo da pedagogia rousseauniana e a atitude ingênua dos
escolanovistas na sua tentativa de reduzir a relação pedagógica ao âmbito das
técnicas didáticas, como no Plano Dalton. Para ele, a educação é uma luta contra a
natureza, travada no âmbito da escola unitária, com o intuito de preparar o jovem
"tanto para os estudos posteriores como para a profissão", já que nenhuma profissão
"está privada de conteúdos e exigências intelectuais e culturais" (Manacorda, 1990,
p. 106,108,137 e 163). Para ele é dever do Estado assumir certos encargos familiares
de forma a permitir aos jovens de todas as classes sociais frequentar essa escola
desinteressada de cultura geral. O objetivo pretendido é coibir o seu ingresso
prematuro no mercado de trabalho, o qual se dá sempre em condições desvantajosas,
além de impedir o prosseguimento de seus estudos até os patamares mais elevados.
(RAMOS, 1996, p. 27)
54

Percebe-se que Gramsci extrapola sua herança marxista ao considerar na educação o


veículo para democratização de fato da sociedade. Sua meta foi a de romper com a máxima de
uma educação dualista, discriminatória e viciosa. O que o autor propõe é uma escola capaz de
diluir as diferenças de classes, estabelecendo um currículo baseado em valores humanistas e,
também, nas necessidades técnicas requeridas pelo mundo da produção industrial. Como
ressalta Ramos (1996), é dessa escola que surgirá aquele cidadão completo e participante,
consciente e capaz de compreender sua função no âmbito da sociedade. Em outras palavras,
aquele sujeito autônomo, de plena consciência de sua posição e de sua ação no mundo. Uma
revolução social seria possível com uma educação para o fim das desigualdades, uma vez que
a igualdade de condições e possibilidades privilegia a formação integral e coloca a todos os
homens uma mesma importância social, de esclarecimento e competência para as necessárias
transformações.

A crítica econômica e social de Marx foi um importante divisor de águas do século


XIX. Muitas foram as críticas dirigidas a pontos específicos de sua obra, mas que, porém, em
nada mancham sua segura e incontestável influência nas categorias de análise social até o
presente. A apropriação de Gramsci de tais análises e incorporação das mesmas para sua
formulação teórica acerca da escola e da educação universal revela um importante
direcionamento das ideias marxistas em âmbitos variados da sociedade. Neste trabalho
apresentamos estes autores com intuito de expor, mesmo que brevemente, alguns pontos de
influência para as teorizações acerca da educação no século XX, no Brasil. Não se trata de
apontar os autores das pedagogias críticas como gramscianos ou marxistas ortodoxos, mas
sim estabelecer a linha histórica que possibilita nossas reflexões e direciona tais teorias.

No Brasil, a proposição de uma educação voltada para a classe trabalhadora e sua


libertação social foi feita por Paulo Freire, com sua pedagogia libertadora. Paulo Freire viveu
o período pós-Segunda Guerra Mundial, vivenciando a emergência do Terceiro Mundo e o
fenômeno da migração rural. Seu contexto histórico o voltou para uma teoria educacional que
girou em torno do pobre e do oprimido. Sua forte inspiração em Dewey (1859-1952)
acentuaram aspectos tanto psicológicos quanto sociais em sua pedagogia, reforçando a
importância em reconhecer os conhecimentos já instituídos pelos educandos, suas visões de
mundo e interesses pessoais. Conforme destaca Ghiraldelli,
55

os aspectos psicológicos acentuados por Herbart e os aspectos sociais e psicológicos


sublinhados por Dewey foram subsumidos em Paulo Freire, como aspectos da
necessidade de mudanças políticas. A pedagogia de Dewey era uma pedagogia na
democracia, para a democracia. A pedagogia de Freire era uma pedagogia para a
democracia e para o Welfare State, mas voltada para aqueles que não viviam nem na
democracia nem tinham conhecido os benefícios do Welfare State. Mas, assim como
Dewey, Paulo Freire não acreditava que o principal fosse simplesmente aprender,
mas ―aprender a aprender‖ – entender os processos contínuos de mudanças do
mundo moderno e poder influir diretamente neles. Entre 1960 e 1990 Paulo Freire,
talvez tanto quanto Dewey em sua época, acabou ficando conhecido no mundo todo.
Seu ―método‖ ganhou a mentalidade de vários professores e adentrou a escola básica
e a universidade em vários lugares, transformando-se, como nos escritos de Herbart
e Dewey, em uma verdadeira teoria educacional. (2000, p. 22)

Percebe-se que a proposta de Freire se direcionava não só para uma escola


democrática, verdadeiramente democrática, mas para aqueles que, totalmente excluídos, não
viviam uma democracia e que jamais usufruíram de uma sociedade de bem estar. Eis que a
influência de Freire adentra as teorias educacionais em nível nacional e internacional. Mais
tarde, Saviani apontou algumas críticas ao modelo educativo de inspiração freireana,
estabelecendo os critérios de uma educação, denominada por Libâneo crítico-social dos
conteúdos, ou conforme sua própria nomenclatura, histórico-crítica. Segundo aponta
Ghiraldelli,

entendendo a escola como um campo de batalhas políticas e político-pedagógicas,


Saviani requalificou o trabalho do magistério. Ele via tal trabalho como um
saber/fazer político-pedagógico inserido na ―luta pela socialização da cultura sob
hegemonia burguesa versus hegemonia operária‖. Caberia, segundo ele, portanto,
pender a balança para o pólo proletário, em favor da hegemonia operária. Daí a
preocupação em sistematizar um fio condutor para o processo pedagógico-didático
em cinco passos, no intuito de poder competir com as vertentes adversárias. A
proposta de Saviani, que inicialmente ele chamou de ―pedagogia revolucioária‖ e,
logo depois, de ―pedagogia histórico-crítica‖, foi apresentada no livro Escola e
democracia em forma de cinco passos: ―prática social‖, ―problematização‖,
―instrumentalização‖, ―catarse‖, ―prática social‖. (2003, p. 180)

A profunda esperança de Saviani no projeto da revolução social traçou sua pedagogia,


mantendo a herança marxista viva e atualizada. Seus passos didático-pedagógicos tinham
como meta colaborar para o objetivo de fomentar a conscientização e a práxis social,
estabelecendo caminhos para sobrepujar a marginalidade das classes menos favorecidas e a
discrepância social. Nesta mesma tendência Libâneo articulou sua classificação acerca das
posturas pedagógicas. Em sua obra Democratização da escola pública de 1984, o autor
agrupou, numa classificação bastante divulgada, as correntes pedagógicas em dois grupos,
conforme destaca Ghiraldelli (2003, p. 181): ―as ‗liberais‘ (‗tradicional‘, ‗renovada
56

progressista‘, ‗renovada não diretiva‘, ‗tecnicista‘ – esta última tendência batizada pelo
próprio Saviani, para dar nome à pedagogia oficial da ditadura militar) e as ‗progressistas‘
(‗libertadora‘, ‗libertária‘ e ‗crítico-social dos conteúdos‘)‖. Libâneo encontra-se situado,
conforme sua própria descrição, dentro daquilo que denominou por ―pedagogia crítico-social
dos conteúdos‖, que por sua vez expressaria, segundo o autor, ―uma práxis político-
pedagógica articulada com outros movimentos sociais, na sociedade capitalista, no sentido de
construção de uma outra forma de vida: a sociedade socialista‖ (GHIRALDELLI, 2003, p.
181).

A ativa contribuição destes autores no âmbito de uma pedagogia preocupada em


romper com as mazelas do capitalismo e estimular a libertação das massas, provoca no
cenário brasileiro um número incontável de produções intelectuais e experiências isoladas em
sala de aula que tomam tais referenciais enquanto suporte. Vejamos como o conceito de
emancipação se movimenta em tais perspectivas para que possamos estabelecer o diálogo,
proposto no início deste trabalho, fomentando a reflexão de nosso próprio cenário educativo.

3.2 CONSCIENTIZAÇÃO: A EMANCIPAÇÃO NO FOCO DAS PEDAGOGIAS


CRÍTICAS

No contexto de tais pedagogias liberdade e autonomia se entrelaçam na medida em


que uma se efetiva enquanto condição de possibilidade da outra. Ou seja, não há entre os
conceitos uma posição de hierarquia, ambos necessitam um do outro. Só é livre aquele que
pode se valer de sua capacidade de decisão; em contrapartida, só pode deliberar aquele que
for capaz de decidir por si próprio de maneira autônoma. Autonomia e emancipação
equivalem, no sentido kantiano, na medida em que se referem àquele sujeito maior em sua
capacidade de pensar por sua própria razão. Para a pedagogia de Paulo Freire, por exemplo, a
liberdade era a primeira demanda de uma educação comprometida com o ideal emancipatório.
Como nos esclarece Weffort, na introdução da obra de Freire Educação como prática de
liberdade,

a visão da liberdade tem nesta pedagogia uma posição de relêvo. É a matriz que
atribui sentido a uma prática educativa que só pode alcançar efetividade e eficácia
na medida da participação livre e crítica dos educandos. É um dos princípios
essenciais para a estruturação do círculo de cultura, unidade de ensino que substitui
a escola , autoritária por estrutura e tradição. (1983, p.05) (...) Aqui a idéia da
liberdade não aparece apenas como conceito ou como aspiração humana, mas
também interessa, e fundamentalmente, em seu modo de instauração histórica. Paulo
Freire diz com clareza: educação como prática de liberdade. Trata-se, como
57

veremos, menos de um axioma pedagógico que de um desafio da história presente.


Quando alguém diz que a educação é a afirmação da liberdade e toma as palavras
a sério –isto é, quando as toma por sua significação real –se obriga, neste
mesmo momento, a reconhecer o fato da opressão, do mesmo modo que a luta pela
liberdade. (1983, p.07)

Aqui Weffort revela uma clara inclinação dialética para a análise da realidade. Para
uma educação voltada para a superação das condições de exploração, de opressão e de
marginalização social. A noção de emancipação encontrada nesta afirmação está conectada e
estruturada em torno da ideia de liberdade enquanto mudança, escolha. Em outras palavras,
uma liberdade que se opõe à decisão irrefletida e ao comando arbitrário. Emancipação parece
respeitar a máxima de um sujeito de escolha, livre e esclarecido.

A noção de luta de classes parece ter sido a porta de entrada do conceito de


emancipação no cenário educacional brasileiro. A liberdade prevista por Marx era, também,
uma maneira de prescrever ao homem que se livrasse do comando cego e se efetivasse
enquanto sujeito de escolha e de livre razão. Em consonância a isto Weffort indica que ―a
grande preocupação de Paulo Freire é a mesma de tôda a pedagogia moderna: ‗uma educação
para a decisão, para a responsabilidade social e política‖ (1983, p. 12). A educação, como já
vimos, foi a grande promessa deste novo tempo de homens emancipados.

Numa análise dialética da realidade, as polaridades, em constante choque, revelam a


estrutura social constituída desde uma noção humana de dominação. O outro, de acordo com a
ideologia marxista, deixa de ser tido como humano e passa, dentro da lógica do capitalismo, a
ser encarado enquanto objeto. Alienação é o termo utilizado por Marx (2010) para descrever
este processo, onde o sujeito deixa de se efetivar no mundo enquanto tal. Para o autor, o
trabalho é a forma de interação entre sujeito e mundo; esta interação garante nossa
constituição enquanto humanos, na forma de reconhecimento pessoal por meio da
transformação da natureza. Em outras palavras, na medida em que transformamos a natureza,
construímos objetos e nos fazemos humanos. É neste processo que nos reconhecemos
enquanto outro neste ambiente e nos apercebemos de nossa condição.

No modo de produção capitalista a relação entre homem e natureza se transforma na


medida em que o próprio perfil do trabalho se modifica. Já não é possível o reconhecimento
trabalhador-objeto uma vez que cada trabalhador fabrica uma fração de cada objeto de
58

consumo e não mais o todo deste bem. Não há relação com a natureza já que ela já não mais
permeia nossa relação com o mundo. O mundo dos homens é a segunda natureza (ARENDT,
2007) - aquela que construímos -, para além desses processos primários de trabalho. O
homem moderno não se identifica com aquilo que produz, não o faz com o objetivo de
permanecer neste mundo ou deixar um legado. Não se relaciona de maneira a identificar-se e,
posteriormente, separar-se – naquele processo de constituir-se humano. A relação é outra, é
quebrada, foi rompida. Conforme Marx, está alienada. Nessa dialética se encontra a chave
para a compreensão do mundo e para sua efetiva transformação. Segundo Mandel,

da sociedade primitiva sem classes, a humanidade passa à sociedade dividida


em classes; esta por sua vez dá lugar à sociedade socialista sem classes, de
amanhã. Os modos de produção sucedem-se; mesmo antes de desaparecerem,
passam por constantes alterações. A classe dominante de hoje é muito diferente da
classe dos proprietários de escravos que dominava o Império romano. O proletariado
contemporâneo é completamente diferente do servo medieval. Entre um capitalista-
pequeno fabricante, do início do século XIX, e o Sr. Rockefeller ou o chefe do truste
Rhône-Poulenc de hoje, há um mundo de diferença. Tudo muda, tudo está em
perpétuo movimento‖. (1978, p. 115)

A esperança de Marx, de uma sociedade com relações igualitárias, é fruto de sua


compreensão do movimento dialético da história. Freire também buscou, em certa medida,
contribuir para construção de uma sociedade mais justa. A forma social do trabalho, em nossa
sociedade de consumo, se mostra prejudicial no âmbito das relações humanas. Se nos antigos
sistemas de produção tivemos a figura do escravo e, posteriormente, do servo; agora a
dominação formalizada pelo capitalismo se efetiva como falsa liberdade. Uma liberdade que é
sempre mediada pela figura daquele que detém os meios e daquele que, sem escolha real,
detém apenas sua força de trabalho. A verdadeira liberdade prevista pelas pedagogias críticas
leva em consideração esta questão: a disparidade gerada pela ilusão democrática de nosso
tempo. Autonomia parece relacionar-se a este fato, conforme Freire:

a educação das massas se faz, assim, algo de absolutamente fundamental entre nós.
Educação que, desvestida da roupagem alienada e alienante seja uma força de
mudança e de libertação. A opção, por isso, teria de ser também, entre uma educação
para a domesticação, para a alienação, e uma educação para a liberdade. Educação
para o homem-objeto ou educação para o homem-sujeito. (1983, p.36)

O que quer Freire de uma ―educação para o homem-sujeito‖? Está clara sua intensão
de uma educação comprometida com o objetivo de formar cidadãos capazes de refletir e de
mudar sua realidade. O homem emancipado jamais poderia escolher a passividade, se assim o
59

fosse este não haveria de estar de fato emancipado. Decidir! Esta é a palavra fundamental.
Autonomia é decisão, liberdade é poder de escolha. O sujeito, objeto desta nova educação,
precisa ser capaz de decidir e, mais do que isso, garantir seu direito à. Para Freire,

umas das grandes, se não a maior, tragédia do homem moderno, está em que
é hoje dominado pela fôrça dos mitos e comandado pela publicidade organizada,
ideológica ou não, e por isso vem renunciando cada vez, sem o saber,
à sua capacidade de decidir. Vem sendo expulso da órbita das decisões.
As tarefas de seu tempo não são captadas pelo homem simples, mas a êle
apresentadas por uma elite que as interpreta e lhas entrega em forma de
receita, de prescrições, afoga-se no anonimato nivelador da massificação, sem
esperança e sem fé, domestificado e acomodado: já não é sujeito. Rebaixa-se a
puro objeto. Coisifica-se. (1983, p.43)

A renúncia da decisão, auto culpável, marca a coisificação do sujeito, antagonismo de


uma autonomia. A grande tragédia denunciada por Freire é o que nos leva ao estado de
submissão e a esta organização social desprovida de legítima humanidade, na qual nos
relacionamos sempre de maneira massificada e coisificada, encarando o outro como menos
humano e sempre mais objeto. Kant (2009) acreditou na possibilidade de uma elevação
humana capaz de uma moralização coletiva. Uma sociedade de paz. Em nosso tempo as
pedagogias críticas ressaltam a esperança de uma sociedade de verdadeira liberdade; ou seja,
uma sociedade justa.

Saviani (1999), apesar de sua crítica à Escola Nova14, não parece duvidar desta
máxima. A educação cumpre tal objetivo e tem em seu horizonte a igualdade. Igualdade que
só pode ser alcançada com sujeitos devidamente esclarecidos. Para o autor, conforme
esclarece em sua obra Escola e Democracia, a educação tem papel claro:

sua função coincide, pois, no limite, com a superação do fenômeno da


marginalidade. Enquanto esta ainda existe, devem se intensificar os esforços
educativos; quando for superada, cumpre manter os serviços educativos num
nível pelo menos suficiente para impedir o reaparecimento do problema da
marginalidade. (1999, p.16)

Percebe-se, pois, que autonomia tem sempre esta relação direta com uma tomada de
consciência deste sujeito, antes alienado e conformado, agora crítico e reflexivo. Tem também
relação com a superação da marginalidade, fenômeno que é sintoma desta sociedade de

14
A Escola Nova foi um movimento renovador do ensino que surgiu no século XIX, ganhando força no Brasil
na primeira metade do século XX.
60

dominação. Trata-se, então, de uma emancipação sempre positiva, enquanto agente de efetiva
transformação. A educação não é tida por acaso como importante ferramenta para esta tomada
de consciência. É com a educação, formal e informal, que nos comprometemos com o antigo
e afirmamos o novo. Ou seja, a educação é nossa mais potente e legítima ferramenta de
repasse cultural. Por meio deste sistema somos capazes de apreender o conhecimento das
gerações passadas e de criar as novidades de nosso próprio tempo. A educação é uma
importante mantenedora do social. A escola, enquanto instituição formal de ensino se
relaciona com este fim. Precisa ser capaz de estabelecer a medida entre o velho e o novo.
Saviani (1999) e Libâneo (1990), em especial, dão em sua teoria forte respaldo aos
conhecimentos construídos ao longo dos séculos pela humanidade. O novo não pode ser
instituído sem a apreensão do antigo, seu entendimento e, até, se for o caso, desaprovação.
Autonomia, neste sentido, não pode estar desvinculada do rigor e autoridade. Segundo
Saviani,

uma pedagogia articulada com os interesses populares valorizará, pois, a escola;


não será indiferente ao que ocorre em seu interior; estará empenhada em que
a escola funcione bem; portanto, estará interessada em métodos de ensino eficazes.
Tais métodos se situarão para além dos métodos tradicionais e novos, superando por
incorporação as contribuições de uns e de outros. Portanto, serão métodos que
estimularão a atividade e iniciativa dos alunos sem abrir mão, porém, da iniciativa
do professor; favorecerão o diálogo dos alunos entre si e com o professor mas sem
deixar de valorizar o diálogo com a cultura acumulada historicamente; levarão em
conta os interesses dos alunos, os ritmos de aprendizagem e o desenvolvimento
psicológico mas sem perder de vista a sistematização lógica dos conhecimentos,
sua ordenação e gradação para efeitos do processo de transmissão-assimilação
dos conteúdos cognitivos. (1999, p. 79)

Percebe-se que, nesta perspectiva, conteúdo e conhecimento não se equivalem, assim


como erudição e autonomia não são a mesma coisa. A educação precisa ser capaz de conduzir
para a autonomia, esta é a meta principal. Porém, o conteúdo educacional precisa, também,
estar em consonância com as aspirações sociais. Este papel escolar é fundamental, não como
mero reprodutor do sistema, mas como ferramenta de análise do presente. É difícil pensar que
a educação seja capaz de dar conta de ambos os objetivos, mas esta é a meta ideal. Libâneo,
em sua obra Democratização da Escola Pública (1990), defende uma pedagogia crítico-social
dos conteúdos e afirma:

trata-se de uma pedagogia que leva em conta os determinantes sociais e que propicia
a crítica dos mecanismos e imposições resultantes da organização da sociedade em
classes sociais antagônicas; ao mesmo tempo, é uma pedagogia que vai buscar, no
interior da escola, respostas pedagógico-didáticas que permitam o exercício dessa
61

crítica, a partir das próprias determinações sociais das situações pedagógicas


concretas. (LIBÂNIO1990, p.12)

Autonomia, neste sentido, se efetiva desde uma educação preocupada com a crítica
construída em bases sólidas. Base que parte, primeiro, da apreensão social e da interação com
o meio. É preciso, pois, uma pedagogia possível e não meramente representativa. As bases
pedagógicas precisam dar conta deste objetivo, precisam promover a capacidade deste sujeito
para uma práxis. Para Marx (2004), teoria e prática se articulam e não podem ser tidas em
separado. O movimento teórico já é prática e, ao mesmo tempo, toda prática se apresenta
como teoria. Aceitar que ambas ocorrem em separado é negar a capacidade do conhecimento
humano, que opera sempre com ambas as categorias. O conceito de práxis “refere-se, em
geral, a ação, a atividade, e, no sentido que lhe atribui Marx, à atividade livre, universal,
criativa e auto criativa, por meio da qual o homem cria (faz, produz), e transforma (conforma)
seu mundo humano e histórico e a si mesmo‖ (BOTTOMORE, 2001, p. 292). Para as
pedagogias críticas, a práxis é fator determinante nesta caminhada para uma emancipação.
Tal objetivo é cumprido quando o sujeito é capaz de refletir sobre sua realidade e operá-la,
transformá-la. Ou seja, é capaz de unir teoria e prática, de efetivar uma práxis social. Como
destaca Libâneo (1990, p.12), ―para tanto, é imperioso buscar uma pedagogia e uma didática
que, partindo da compreensão da educação na prática social histórica e concreta, ajudem os
professores no trabalho docente com as camadas populares‖. A didática, a prática pedagógica,
está a serviço deste objetivo e deve servir ao uso do professor para a finalidade da autonomia.
Assim, uma boa pedagogia é aquela capaz de desenvolver métodos, maneiras adequadas, para
este fim determinado.

Paulo Freire (1983) elaborou seu método para alfabetização de jovens e adultos a
serviço deste duplo objetivo: alfabetizar e promover a consciência crítica. Para o autor, a
tomada de consciência era parte fundamental da educação. Alfabetizar era uma forma de
apreender o mundo e se colocar nele, ao mesmo tempo em que se efetivava com um ato de
resistência e de luta política. Conforme Weffort,

a alfabetização e a conscientização jamais se separam. Princípio que, de nenhum


modo, necessita limitar-se à alfabetização, pois tem vigência para todo e qualquer
tipo de aprendizado. A alfabetização merece destaque por ser o campo inicial
do trabalho do autor, onde se encontra a maior parte das experiências, além de que
é um tema da maior relevância social e política no Brasil, como em muitos
outros países do Terceiro Mundo. (1983, p.06)
62

Dada a realidade de nosso país, a alfabetização se mostrou, para Freire, como o campo
mais urgente de sua pedagogia. Prática esta que revela a aspiração por emancipar como
imprescindível para a parcela explorada da sociedade. Sua dimensão dialética da história do
trabalho humano considera a exploração entre as classes sociais uma condição de possível
superação, na medida em que pode ser transformada. Talvez esta seja a principal característica
das pedagogias críticas, a profunda crença na transformação social. Uma sociedade justa
pode ser alcançada, temos a garantia desta trajetória dada por nossa capacidade. É possível!

Esta vontade que move nossa capacidade para a justiça e equidade não se efetivará
antes que sejamos capazes de refletir criticamente e chegarmos a uma mesma conclusão: uma
sociedade justa é possível. É claro que, em termos marxistas, a conscientização de ―todos‖
não é possível, dado que a parcela privilegiada da sociedade – detentora dos meios de
produção – não se mostraria favorável a uma possível perda de privilégios. Assim, a tomada
de consciência é para todos, mas a luta é para a parte interessada. Proletários do mundo, uni-
vos (MARX, 2010), eis a bandeira marxista. Poderíamos ainda complementar: uni-vos e
tomem as rédeas de suas vidas, sejam maiores e pensem por si. Emancipem-se e mudem esta
sociedade e sua própria condição.

Como vimos, para Gramsci a educação cumpre papel fundamental na revolução. O


que se anunciava era uma educação das massas. Uma educação adequada a estes objetivos
prevê em sua metodologia a capacitação para uma postura crítica em relação ao dado. Nada
está fixo em nossa estrutura social, tudo pode ser transformado. Em contrapartida ao que
convencionamos chamar de educação tradicional, nos foi apresentada uma nova maneira de
nos relacionarmos com o mundo. Os conteúdos não são o único foco da educação escolar e o
professor já não é autoritário. A relação dialética como ferramenta teórica inaugura, também,
no contexto educacional, uma nova maneira de compreender a relação professor/aluno.

Se pensarmos em autonomia como sendo a capacidade de amadurecimento do sujeito


para valer-se de seu juízo e decidir por si nas questões que lhe perpassam, a relação que se
estabelece entre educador e educando é de extrema importância para o sucesso, ou não, do
objetivo educacional. Afinal, um professor autoritário, com atitudes em desconformidade com
a meta definida, não seria capaz de conduzir para a emancipação. Faria justamente o
63

contrário, educaria para a obediência cega e para irreflexão. A educação que se pretende
crítica inaugura uma postura de crença na capacidade humana. Como esclarece Freire,

a democracia e a educação democrática se fundam ambas, precisamente, na crença


no homem. Na crença em que êle não só pode mas deve discutir os seus problemas.
Os problemas do seu País. Do seu Continente. Do mundo. Os problemas do seu
trabalho. Os problemas da própria democracia. (1983, p.96)

Esta crença marca uma relação menos autoritária em sala de aula, porque, justamente,
coloca o aluno – educando, em termos freireano – como agente de conhecimento e não mero
receptáculo. Em outras palavras, uma relação em que o aluno é reconhecido enquanto sujeito
de interesses e conhecimento. Nesse sentido não se pode, de fato, ensinar autonomia, já que é
no movimento do próprio aluno que este objetivo se concretiza. O que é possível, e necessário
para a transformação social, é fornecer as ferramentas para que o sujeito seja capaz de
conduzir-se para esta finalidade. A emancipação não pode ser, em sua essência – com risco de
tornar-se contraditória –, uma imposição. Emancipar-se, nesta perspectiva, é justamente ser
capaz de reflexão e de ação: concretizar uma práxis. Garcia sintetiza o papel do
esclarecimento, da emancipação, nas pedagogias críticas. Para a autora,

o conhecimento e o esclarecimento instrumentalizam a ―boa‖ consciência e a ―boa‖


agência. Produzem o sujeito virtuoso e a classe social virtuosa, ou seja, um sujeito
de nobres princípios e ideias, engajado e comprometido com utopias de libertação e
justas causas. O conhecimento e o esclarecimento são pressupostos da ação
individual e coletiva e a via de acesso a formas superiores de pensamento e
existência. O conhecimento e o esclarecimento instrumentalizam a consciência e a
ação humana na mudança social rumo ao progresso e à liberdade. (2002, p. 90)

Portanto, estaria na emancipação resguardada a possibilidade de um progresso social.


Para os autores desta perspectiva, o esclarecimento seria a chave para uma ação libertadora
que se efetiva como sendo o próprio ato do sujeito emancipado. A meta de liberdade e de
autonomia se volta para uma classe social marginalizada, em busca da superação desta
condição. A escola de outrora reforçava esta segregação. Se pensarmos na pedagogia
tradicional e no tipo de relação estabelecida – professor/aluno – a autoridade do professor se
apresentava na forma de autoritarismo. Cabia ao professor introduzir no aluno, sujeito sem
conhecimento, conteúdos adequados para desenvolver sua erudição. Num primeiro momento
a escola, com o objetivo de formar para a manutenção da cultura elevada, se consolidava
como, por natureza, segregadora e limitada em seu público. Já para as pedagogias críticas o
papel escolar propicia a participação ativa nas questões de interesse do coletivo. É primordial
64

ao sujeito tomar consciência de seu papel no mundo e ocupar seu espaço. A educação pensada
nesses critérios tem como finalidade um sujeito capaz de uma verdadeira liberdade. Logo, tem
como esperança uma sociedade melhor, mais justa e não opressora. Para Gadotti,

uma verdadeira caminhada, necessária, para a educação brasileira está sendo feita:
refiro-me ao trabalho de sindicalização e de associação dos professores e
estudantes. Contra a ideologia da educação, de uma educação feita de cima para
baixo, é preciso criar uma contra-ideologia: reinventarmos a educação de baixo para
cima. A partir dos próprios educadores, unindo-se uns aos outros, caminhar de
forma coesa e organizada. A análise crítica da educação brasileira contemporânea
nos deve despertar para isso. Caso contrário, toda a crítica, será inútil. É preciso
preparar propostas alternativas. Não propostas criadas por um ou dois educadores,
mas por todos os educadores, a partir das bases. É essa a tarefa que nos cabe hoje. É
uma tarefa gigantesca e estimulante: construir uma nova educação, passo a passo
com a construção de uma nova sociedade. (1983, p.130)

É possível notar o entusiasmo por esta educação, pensada como alternativa para a
sociedade capitalista. De uma educação que promove a injustiça e a relação de dominação
entre os homens para uma educação de participação e construção coletiva que visa um futuro
diferente. Poderíamos pensar, assim, que educação e política são, neste caso, idênticas.
Educar é sempre promover e atuar politicamente. Todavia, Saviani nos ressalta,

de uns tempos para cá se tornou lugar comum a afirmação de que a educação é


sempre um ato político. Mas o que significa essa afirmação? Obviamente, trata-se de
um "slogan" que tinha por objetivo combater a idéia anteriormente dominante
segundo a qual a educação era entendida como um fenômeno estritamente técnico-
pedagógico, portanto, inteiramente-autônomo e independente da questão política.
Nesse sentido o "slogan" cumpriu uma função cuja validade se-inscreve nos limites
da "teoria da curvatura da vara". Com efeito, se a vara havia sido curvada para o
lado técnico-pedagógico, o referido "slogan" forçou-a em direção ao pólo político.
Com isto, entretanto, corre-se o risco de se identificar educação com política, a
prática pedagógica com a prática política, dissolvendo-se, em conseqüência. a
especificidade do fenômeno educativo. (1999, p.91)

A ressalva do autor visa a preocupação com a própria essência, por assim dizer, de
uma educação crítica. Para ele,

uma análise, ainda que superficial, do fenômeno educativo nos revela que,
diferentemente da prática Política, a educação configura uma relação que se trava
entre não-antagônicos. É pressuposto de toda e qualquer relação educativa que o
educador está a serviço dos interesses do educando. Nenhuma prática educativa
pode se instaurar sem este suposto. Em se tratando da política ocorre o inverso. A
mais superficial das análises põe em evidência que a relação política se trava,
fundamentalmente, entre antagônicos. No jogo político se defrontam interesses e
perspectivas mutuamente excludentes. Por isso em política o objetivo é vencer e não
convencer. Inversamente, em educação o objetivo é convencer e não vencer. (1999,
p. 92)
65

Uma educação que tenha como objetivo o puro ato de convencimento é ideológica e se
torna contraditória. Para as pedagogias críticas o convencimento não pode ser o objetivo
último da educação, se assim o fosse estaria, o professor, privilegiando a passividade
intelectual daqueles alunos que apenas recebem, sem crítica ou reflexão, a informação e o
conteúdo dado. Autonomia pressupõe liberdade, já o convencimento arbitrário elimina
qualquer escolha. Se educação e política não são idênticas também não podem ser tidas como
totalmente isoladas e sem relação. Uma se relaciona com a outra na medida em que tratam da
realidade social e das questões práticas da comunidade. Todavia, o que Saviani nos aponta é a
necessidade de considerar na educação uma postura para além do construído e efetivado.
Assim, parece ser papel da educação este ―pensar para o futuro‖, para ―o novo‖. Pensar ―além
do dado e consolidado‖ é papel desta formação para a emancipação, pois assim é que se
garante o fluxo das transformações históricas. Não seria possível manter tal fluxo se apenas
fosse privilegiado a reprodução cega do instaurado.

O ato de resistência das pedagogias críticas está pautado nessa necessidade da escola
em se contrapor à mera reprodução do consolidado. Para Saviani, a postura burguesa tem
como objetivo justamente frear a transformação, o novo, como forma de manter-se enquanto
classe dominante. Na revolução burguesa a educação teve papel de destaque, enquanto
formadora para uma nova postura social. Saviani nos narra essa passagem histórica,

se nós voltarmos à antigüidade grega, vamos verificar que, em verdade, a filosofia


da essência não implicava maiores problemas lá, e a pedagogia que decorria dessa
filosofia, por sua vez, não implicava problemas políticos muito sérios, na medida em
que o homem, o ser humano, era identificado como homem livre; o escravo não era
ser humano, conseqüentemente a essência humana só era realizada nos homens
livres. Então, o problema do escravismo, sobre o qual se assentava a produção da
sociedade grega, fica descartado e nem era um problema do ponto de vista
filosófico-pedagógico. Durante a Idade Média, essa concepção essencialista recebe
uma inovação, que diz respeito justamente à articulação da essência humana com a
criação divina; portanto, ao serem criados os homens segundo uma essência
predeterminada, também já seus destinos eram definidos previamente;
conseqüentemente, a diferenciação da sociedade entre senhores e servos já estava
marcada pela própria concepção que se tinha da essência humana. Então, a essência
humana justificava as diferenças. Ora, coisa diversa vem a ocorrer na época
moderna, com a ruptura do modo de produção feudal e a gestação do modo de
produção capitalista. Nesse momento a burguesia, classe em ascensão, vai se
manifestar como uma classe revolucionária, e, enquanto classe revolucionária, vai
advogar a filosofia da essência como um suporte para a defesa da igualdade dos
homens como um todo e é justamente a partir daí que ela aciona as críticas à nobreza
e ao clero. Em outros termos: a dominação da nobreza e do clero era uma dominação
não-natural, não-essencial, mas, social e acidental, portanto, histórica. Vejam que
toda postura revolucionária é uma postura essencialmente histórica, é uma postura
que se coloca na direção do desenvolvimento da história. (1999, p. 49)
66

Saviani destaca aqui o papel revolucionário que a burguesia ocupou em determinado


momento da história. Sua narrativa nos mostra os passos dados pela educação a serviço da
revolução burguesa, de onde nascia um ideal de liberdade que se direcionava desde uma
classe oprimida em direção àquela classe dominante que imperava em tal contexto. Para o
autor, neste momento a burguesia estava a serviço do novo. Saviani completa,

ora, naquele momento, a burguesia se colocava na direção do desenvolvimento da


história e seus interesses coincidiam com os interesses do novo, com os interesses da
transformação; e é nesse sentido que a filosofia da essência, que vai ter depois como
conseqüência a pedagogia da essência, vai fazer uma defesa intransigente da
igualdade essencial dos homens. Sobre essa base da igualdade dos homens, de todos
os homens, é que se funda então a liberdade, e é sobre, justamente, a liberdade, que
se vai postular a reforma da sociedade. Lembrem-se, de passagem, de Rousseau. O
que defendia Rousseau? Que tudo é bom enquanto sai do autor das coisas. Tudo
degenera quando passa às mãos dos homens. Em outros termos, a natureza é justa, é
boa, e no âmbito natural a igualdade está preservada. As desigualdades (vejam o
Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens) são geradas pela
sociedade. Ora, esse raciocínio não significa outra coisa senão colocar diante da
nobreza e do clero a idéia de que as diferenças, os privilégios de que eles usufruíam,
não eram naturais e muito menos divinos, mas eram sociais. E enquanto diferenças
sociais, configuravam injustiça; enquanto injustiça, não poderiam continuar
existindo. Logo, aquela sociedade fundada em senhores e servos não poderia
persistir. Ela teria que ser substituída por uma sociedade igualitária. É nesse sentido,
então, que a burguesia vai reformar a sociedade, substituindo uma sociedade com
base num suposto direito natural por uma sociedade contratual. (Ibid)

Assim, o fundamento jurídico, como afirma Saviani, da sociedade burguesa está


pautado na ideia de que os homens são essencialmente livres, e que essa liberdade é natural e
direito máximo humano. E que justamente por serem livres os homens podem fazer
concessões ao contrato social e decidir pelo emprego de sua força de trabalho. Em outras
palavras, é com base nesta sociedade contratual que as relações de trabalho se justificam. O
trabalhador é livre para aceitar ou não a oferta daquele que dispõe dos meios. Da mesma
maneira, o dono da propriedade é livre para aceitar ou não a mão-de-obra do trabalhador. As
relações de trabalho inauguram uma postura histórica que se tensiona com a antiga relação
essencialista que justificava as classes econômicas por meio da vontade divina. Logo, o papel
de destaque da educação, citado anteriormente, se efetivou enquanto ferramenta desta nova e
revolucionária ideologia. Conforme Saviani,

escolarizar todos homens era condição de converter os servos em cidadãos, era


condição de que esses cidadãos participassem do processo político, e, participando
do processo político, eles consolidariam a ordem democrática, democracia burguesa,
é óbvio, mas o papel político da escola estava aí muito claro. A escola era proposta
como condição para a consolidação da ordem democrática. (1999, p.51)
67

Para o autor, justamente vivemos em um novo momento crucial. A burguesia se


efetivou enquanto classe dominante e tenta barrar o processo histórico para desacelerar sua
ruptura. Assim, a educação, atenta para este processo, precisa se posicionar de forma a servir
de ferramenta para uma nova revolução. As pedagogias críticas claramente se colocam a
serviço das transformações dos acontecimentos históricos, uma vez que acreditam nesta
sociedade pós-capitalismo que nos descreve Marx. Este é um ponto em comum das
pedagogias críticas e se efetiva no compromisso de cada uma com o objetivo de
emancipação. Emancipar para garantir o novo, como alternativa para a sociedade desigual de
agora.

É claro que muitas diferenças podem ser marcadas entre os autores que estamos
utilizando. Para Libâneo, as pedagogias, que neste trabalho tratamos por pedagogias críticas,
desdobram-se em três tendências pedagógicas distintas dentro da categoria maior chamada de
―pedagogia progressista‖. Segundo o autor classifica em sua obra,

o termo "progressista", emprestado de Snyders, é usado aqui para designar as


tendências que, partindo de uma análise crítica das realidades sociais, sustentam
implicitamente as finalidades sociopolíticas da educação. Evidentemente a
pedagogia progressista, não tem como institucionalizar-se numa sociedade
capitalista; daí ser ela um instrumento de luta dos professores ao lado de outras
práticas sociais. A pedagogia progressista tem-se manifestado em três tendências: a
libertadora, mais conhecida como pedagogia de Paulo Freire, a libertária, que reúne
os defensores da autogestão pedagógica; a crítico-social dos conteúdos que,
diferentemente das anteriores, acentua a primazia dos conteúdos no seu confronto
com as realidades sociais. (1990, p.32)

Independente da classificação adotada, podemos defender que numa categoria geral


chamamos de pedagogias críticas essas pedagogias que se consolidam com a finalidade
―sociopolítica‖ da educação, como descreve Libâneo. Em outras palavras, as pedagogias que
se posicionam em relação ao modelo tradicional de ensino, com vistas a uma construção
diferente do sujeito da educação, visando uma postura de autonomia e de confiança na
capacidade humana para a mudança social e participação política. A mudança social parece
ser o principal fator comum entre ambas as pedagogias. Afinal, tanto Paulo Freire quanto
Saviani e Libâneo demonstram sua preocupação maior com este fator. Assim, as diferenças de
método entre os autores se direciona a um mesmo objetivo de autonomia. Um sujeito
crítico/reflexivo é um sujeito emancipado, nestes termos. Dentro do método de alfabetização
freireano, por exemplo, este objetivo estava resguardado. Para o autor,
68

o que fundamentalmente importa é que êstes homens particulares e concretos se


reconheçam a si próprios, no transcurso da discussão, como criadores da cultura. (...)
Êste debate, prévio à alfabetização, abre os trabalhos do círculo de cultura e é
também o início da conscientização. Seria, porém, um equívoco imaginar que a
conscientização não passaria de uma ‗preliminar‘ do aprendizado. Não se trata
propriamente de que a alfabetização suceda à conscientização ou de que esta se
apresente como condição daquela. Segundo esta pedagogia o aprendizado já é um
modo de tomar consciência do real e como tal só pode dar-se dentro desta tomada de
consciência. (1983, p.08)

Assim, a tomada de consciência não pode se dar de maneira desconectada da


educação. Aprender é o mesmo que tomar consciência, uma vez que é a ferramenta que
garante a postura crítica e oposta à conformidade paralisante. O mesmo objetivo pode ser
observado em Saviani. Ao dar os passos de uma pedagogia crítica dos conteúdos, ou
histórico-crítica, o autor descreve:

o quarto passo não será a generalização (pedagogia tradicional) nem a hipótese


(pedagogia nova). Adquiridos os instrumentos básicos, ainda que parcialmente, é
chegado o momento da expressão elaborada da nova forma de entendimento da
prática social a que se ascendeu. Chamemos este quarto passo de catarse, entendida
na acepção gramsciana de "elaboração superior da estrutura em superestrutura na
consciência dos homens" (Gramsci, 1978: 53). Trata-se da efetiva incorporação dos
instrumentos culturais, transformados agora em elementos ativos de transformação
social. (1999, p.81)

Nota-se que o objetivo maior de tais pedagogias se efetiva como a própria tomada de
consciência. A preocupação com as disparidades sociais provenientes do capitalismo se
consolida como uma meta humana nestas pedagogias. Trata-se, pois, de uma pedagogia
focada na mudança social por meio da conscientização. A ação política seria, neste caso, uma
consequência da conscientização, não sendo, porém, meta da educação propriamente dita.
Paulo Freire destaca essa diferença entre política e educação na seguinte passagem:

conscientização não significa, de nenhum modo, ideologizar ou propor palavras de


ordem. Se a conscientização abre caminho à expressão das insatisfações sociais é
porque estas são componentes reais de uma situação de opressão; se muitos dos
trabalhadores recém-alfabetizados aderiram ao movimento de organização dos
sindicatos é porque êles próprios perceberam um caminho legítimo para a defesa de
seus interêsses e de seus companheiros de trabalho. (1983, p.12)

A educação para autonomia, no contexto das pedagogias críticas, se efetiva como uma
atividade de cunho social e transformador. A noção de liberdade empregada tem ligação
política na medida em que se apresenta enquanto prática do sujeito esclarecido, dentro de sua
própria sociedade, com fins de mudança em sua realidade. A ação política, aqui entendida,
69

tem seus limites, respeitando certo distanciamento entre ambas, justamente para não cair em
contradição. A prática social é a ferramenta desta pedagogia, para sua meta de autonomia.
Libâneo escreve:

a tendência da pedagogia critico social de conteúdos propõe uma síntese superadora


das pedagogias tradicional e renovada, valorizando a ação pedagógica enquanto
inserida na prática social concreta. Entende a escola como mediação entre o
individual e o social, exercendo aí a articulação entre a transmissão dos conteúdos e
a assimilação ativa por parte de um aluno concreto (inserido num contexto de
relações sociais); dessa articulação resulta o saber criticamente reelaborado. (1990,
p.32)

É preciso, pois, estar atento ao fato de que conteúdo não é garantia de conhecimento.
Para as pedagogias críticas o conhecimento enciclopédico não é sinônimo de autonomia.
Uma educação que tenha em seu objetivo a emancipação, a conscientização do educando,
precisa estar atenta a este fato. É preciso encontrar uma sintonia entre o social e o individual,
como sugere Libâneo (1990), e articular conteúdo e realidade individual de forma a
privilegiar o saber crítico como finalidade.

A difícil tarefa da educação, nas pedagogias críticas, é dar conta deste objetivo
máximo de fomentar a consciência crítica, que também chamamos de autonomia ou
emancipação, e de promover essa capacidade individual de reflexão. É preciso observar que o
caráter desta educação é ativo dentro da sociedade, pois busca melhoria e mudança. Assim, a
proposta educacional é otimista em sua meta. Conforme nos afirma Garcia, trata-se da meta
educativa destas pedagogias:

despertar os homens para o conhecimento de si mesmos e do mundo em que vivem.


Desbravar suas subjetividade para que conquistem a autoconsciência. Desvelar os
estéreis enganos de suas vidas e formas de pensamento. Despojá-los de suas
pseudoverdade pelo diálogo e pelos saberes escolares. Purificá-los pela expulsão dos
preconceitos, dos equívocos e das ilusões que os afastam de sua verdadeira realidade
e destino histórico. Levá-los progressivamente à autonomia da consciência e ao
reino das verdades acerca de si mesmos e de sua história: essa é a tarefa de uma
tecnologia pedagógico-crítica. (2002, p. 94)

Conforme nos afirma a autora, a tomada positiva destas pedagogias se apresenta como
meta otimista em relação ao sujeito, tanto individual quanto se tratando de sociedade. Para os
autores das pedagogias críticas, conduzir para a autonomia é a máxima expressão de uma
educação comprometida com a sociedade e com aqueles ideais de erradicação da
marginalidade e, assim, de produção de equidade social. É preciso destacar que Paulo Freire
70

se encontra em posição diferenciada em relação aos outros dois autores analisados, Saviani e
Libâneo. Sua preocupação estava descentralizada da demanda acadêmica. Assim, respeitando
as diferenças de contexto e enfoque não nos preocupamos em fazer nenhum tipo de crítica ou
demarcar tais diferenças de maneira incisiva. Todavia, para fins didáticos, suas distinções
serão brevemente apresentadas no subcapítulo que segue, ao destacarmos o fazer pedagógico
presente em cada autor.

3.3 O PAPEL DO PROFESSOR E SUA PRÁTICA NAS PEDAGOGIAS CRÍTICAS

Muitas diferenças podem ser destacadas entre os autores analisados. Distanciando-nos


um pouco da categoria de pedagogias críticas, na qual esta pesquisa se apoia, podemos situar
os autores em dois grupos distintos. No primeiro grupo está Paulo Freire com sua pedagogia
libertadora. No segundo, Saviani e Libâneo, caracterizados, por Libâneo, como autores de
uma pedagogia crítico-social dos conteúdos. Essas diferenças dizem respeito ao método de
aplicação de suas pedagogias. No caso de Libâneo e Saviani, a marca desta diferença se
encontra cunhada, sobretudo, por uma crítica da Escola nova e seus reais ganhos. Ambos os
autores concordariam com o objetivo de uma educação crítica, alterando, todavia, algumas
práticas educativas para o alcance de tal finalidade. A principal diferença entre estes dois
grupos se concentra, entre outras, na relação professor x aluno. Apesar do objetivo desta
pesquisa ser a análise de um conceito específico - o de emancipação -, consideramos que as
práticas adotadas pela educação para o cumprimento de sua finalidade de autonomia são de
profundo interesse para que, de maneira mais completa, possamos abarcar a amplitude do
conceito, seu desenvolvimento e sua projeção nas pedagogias críticas. Tendo essas
diferenças em mente, podemos tentar, brevemente, traçar alguns dos caminhos apontados e as
práticas adotadas em tais pedagogias.

Já no início da obra de Freire, Educação como Prática de Liberdade (1983), o autor


deixa clara a missão de sua proposta pedagógica. É preciso, segundo ele, elevar a capacidade
de autorreflexão das massas. ―Auto-reflexão que as levará ao aprofundamento conseqüente de
sua tomada de consciência e de que resultará sua inserção na História, não mais como
espectadoras, mas como figurantes e autoras.‖ (1983, p.36). É papel da educação, pois,
promover a liberdade dos sujeitos enquanto agentes históricos de transformação. Paulo Freire
demonstra continuamente esse compromisso e ressalta o papel escolar enquanto ferramenta
71

contra a opressão. Para ele, o ajuste social promovido pela pedagogia tradicional é o principal
fator de fortalecimento das relações assimétricas na sociedade. Segundo o autor,

a integração ao seu contexto, resultante de estar não apenas nêle, mas com êle, e não
a simples adaptação, acomodação ou ajustamento, comportamento próprio da esfera
dos contatos, ou sintoma de sua desumanização, implica em que, tanto a visão de si
mesmo, como a do mundo, não podem absolutizar-se, fazendo-o sentir-se um ser
desgarrado e suspenso ou levando-o a julgar o seu mundo algo sôbre que apenas se
acha. A sua integração o enraíza. Faz dêle, na feliz expressão de Marcel, um ser
‗situado e datado‘. Daí que a massificação implique no desenraizamento do homem.
No seu ajustamento. (1983, p.42)

O ajustamento a que se refere Freire comporta, em sua análise, uma aceitação


formalizada – logo pacífica e naturalizada – das relações de poder da burguesia em relação à
classe trabalhadora. Se pensarmos sobre a ótica freireana podemos concluir que as relações de
poder, fomentadas pelo capitalismo, se concentram na relação patrão x empregado. De um
lado está aqueles que detêm os recursos e meios de produção, o capital. De outro, aqueles que,
desprovidos do capital, têm somente como recurso sua força de trabalho, posta à venda por
subsistência. Seguindo a teoria marxista, a classe dominante se vale de sua posição para
explorar o proletariado (classe trabalhadora). O fenômeno da mais valia15, é um dos exemplos
desta assimetria. Segundo Marx, o lucro obtido pelo patrão é sempre inversamente
proporcional ao salário recebido pelo funcionário, tendo em vista o tempo e a força de
trabalho empregado na fabricação de x produto. O fato de o dono dos meios de produção, sem
qualquer emprego de sua força de trabalho, receber, à custa do trabalhador, muito mais que
este pela produção e venda da mercadoria, efetiva uma forte relação de dominação.
Principalmente se considerarmos que esta relação desigual é a única alternativa do
trabalhador, que não dispõe de outra maneira para garantir seu sustento.

Esta tomada de posição, para a análise social, faz crer, para Freire, que a educação
deva perseguir seu ideal, livrando-se, primeiramente, da reprodução desta condição desigual.
É preciso, assim, descentralizar o papel do professor em prol de um aluno que seja respeitado
como ser pensante e participativo. Assim, sua conclusão nos sugere que as relações de
autoridade devam ser minimizadas na relação professor/aluno. Somente assim uma educação
crítica poderia se concretizar. Interessava-lhe ―uma pedagogia que elimina pela raiz as

15
Segundo a concepção marxista, o fenômeno da mais valia está associado à exploração da mão de obra
assalariada. Para Marx, trata-se por mais valia o lucro obtido pelo capitalista ao recolher o excedente da
produção do trabalhador.
72

relações autoritárias, onde não há ‗escola‘ nem ‗professor‘, mas círculos de cultura e um
coordenador cuja tarefa essencial é o diálogo‖ (1983, p.26). Os círculos de cultura16, citados
por Freire, dão conta de sua metodologia de efetivação do aprendizado, neste caso, na
educação de jovens e adultos. Se a relação de autoridade, nos termos de um modelo de
autoritarismo efetivado na pedagogia tradicional, entre professor e aluno é suprimida já não
faz sentido falar em uma aula centrada na exposição de conteúdos. Assim, o círculo de cultura
se mostra como alternativa para uma troca de conhecimentos. Segundo Weffort, no método de
ensino freireano seria possível encontrar certa maiêutica socrática,

pois como em Sócrates a conquista do saber se realiza através do exercício livre das
consciências. Contudo será preciso reconhecer que a maiêutica tem aqui uma
significação particular. Os participantes do diálogo no círculo de cultura não são
uma minoria de aristocratas dedicada à especulação, mas homens do povo. Homens
para os quais as palavras têm vida porque dizem respeito ao seu trabalho, à sua dor,
à sua fome. Daí que esta maiêutica para as massas comprometa desde o início o
educando, e também o educador, como homens concretos, e que não possa limitar-se
jamais ao estrito aprendizado de técnicas ou de noções abstratas. (1983, p. 07)

Podemos perceber que o educador se apresenta como aquele que deve educar. Ou seja,
aquele que repassa ao educando certos conhecimentos. Poderíamos aí questionar a validade da
afirmação freireana acerca da ruptura do modelo de autoridade entre professor e aluno, afinal
o educador também se efetiva como autoridade, na medida em que educa. Todavia, a proposta
de Freire quebra esta relação justamente por descaracterizar a função de autoridade, no
sentido rígido e negativo do termo, deste novo professor, a quem ele chama de educador. Já
não é mais seu dever dar luz aquele, outrora considerado, sem luz. Despejar conhecimento ao
ignorante e conduzir ao conhecimento seguro. Esta relação de reprodução do modelo
capitalista conduz à desigualdade e fortalece a relação de dominação. Para Freire, a relação
educador/educando deve ser de respeito mútuo, considerando a carga cultural de cada
individuo enquanto conhecimento legítimo e valorável. Assim o professor adquire papel de
mediador de conhecimento, valendo-se do diálogo como instrumento de sua função. Segundo
Freire, o diálogo

é uma relação horizontal de A com B. Nasce de um matriz crítica e gera criticidade


(Jaspers). Nutre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por

16
Segundo Dickmann e Dickmann os círculos de cultura citados por Freire podem ser caracterizados como
sendo uma nova nomenclatura para o que seria o novo espaço de ensino-aprendizagem. Para os autores, o termo
escola já não daria conta de nomear a proposta educacional freireana. Assim, esta troca se fez necessária, uma
vez que existia uma ―carga de ‗passividade‘ que o termo escola trazia dentro do modelo ‗bancário‘ ao qual
estava subordinado e do qual havia se tornado instrumento de opressão‖ (2008, p 88).
73

isso, só o diálogo comunica. E quando os dois polos do diálogo se ligam assim, com
amor, com esperança, com fé um no outro, se fazem críticos na busca de algo.
Instala-se, então, uma relação de simpatia entre ambos Só aí há comunicação. (1983,
107)

É preciso, de acordo com esta noção, fugir da lógica dominante; assim a educação se
efetiva como saída possível. O diálogo é a ferramenta de troca de conhecimento que garante
uma relação mais simétrica, logo, mais justa. A sala de aula cumpre a função social, neste
sentido, de espaço para a conscientização, uma vez que possibilita o aprendizado, que por sua
vez, é agente de transformação social. Esta tomada de posição é uma potencialidade humana
que precisa ser fomentada pela educação. Assim, ―conscientização não é privilégio de alguns,
mas é um fenômeno humano. O que se opõe, portanto, não é o caso da possibilidade ou não
dos seres humanos conscientizarem-se, mas da viabilidade disso na educação atual e/ou na
que queremos construir‖ (DICKMANN e DICKMANN, 2008, p.31).

O projeto educacional em voga, nesta perspectiva, leva em consideração esta


sociedade futura, proveniente de uma educação para a igualdade. A relação educação e
política se estreitam, mas jamais chegam a confundir-se. Os autores das pedagogias críticas
concordariam com esta afirmação. Educação e política não são a mesma coisa, porém,
tampouco, são práticas opostas. Para Saviani, por exemplo,

se se trata de práticas distintas isso não significa que sejam inteiramente


independentes, dotada de autonomia absoluta. Ao contrário, elas são inseparáveis e
mantêm íntima relação. Como se configuram as relações entre educação e política?
Primeiramente é preciso considerar a existência de uma relação interna, isto é, toda
prática educativa, enquanto tal, possui uma dimensão política assim como toda
prática política possui, em si mesma, uma dimensão educativa. A dimensão política
da educação consiste em que, dirigindo-se aos não-antagônicos a educação os
fortalece (ou enfraquece) por referência aos antagônicos e desse modo potencializa
(ou despotencializa) a sua prática política. E a dimensão educativa da política
consiste em que, tendo como alvo os antagônicos, a prática política se fortalece (ou
enfraquece) na medida em que, pela sua capacidade de luta ela convence os não-
antagônicos de sua validade (ou não-validade) levando-os a se engajarem (ou não)
na mesma luta. (1999, p.92)

A dimensão política da educação é assegurada em sua capacidade de mobilização na


prática política, enquanto que a política resguarda em si uma dimensão educativa na medida
em que consegue colocar em prática (ou não) seu poder de convencimento. Paulo Freire
também se preocupa com esta questão entre educação e política. Segundo Weffort,
74

êste educador sabe que sua tarefa contém implicações políticas, e sabe ademais que
essas implicações interessam ao povo e não às elites. Mas sabe também que seu
campo é a pedagogia e não a política, e que não pode, como educador, substituir o
político revolucionário interessado no conhecimento e na transformação das
estruturas. Se recusa a idéia tradicional da educação como ‗alavanca do progresso‘,
teria sentido contrapor-lhe a tese, igualmente ingênua, da educação como a
‗alavanca da revolução‘? Uma pedagogia da liberdade pode ajudar uma política
popular, pois a conscientização significa uma abertura à compreensão das estruturas
sociais como modos da dominação e da violência. Mas cabe aos políticos, não ao
educador, a tarefa de orientar esta tomada de consciência numa direção
especificamente política. (1983, p.15)

É desde esta perspectiva que Paulo Freire (1983) sustenta que as práticas educacionais
sejam desenvolvidas desde a escola e não ―de cima para baixo‖. A política não pode se valer
da escola como mecanismo de massificação com intuito de alienação, pelo contrário, teria
como objetivo a libertação nos termos de uma emancipação, de uma conscientização. Esta é a
principal batalha de uma pedagogia crítica, frear o processo de massificação alienante
promovendo a capacidade de reflexão.

Como já citamos, o método freireano estava endereçado à alfabetização de jovens e


adultos. Porém, sua pedagogia também nos diz acerca de uma teoria educacional de maneira
mais ampla. Se sua atividade específica estava comprometida com a classe trabalhadora
analfabeta, esta prática nos releva, e fortifica, a tese de que a educação deveria atuar como
agente de transformação social e potencialização crítica. Como descreve Weffort,

esta mobilização através da alfabetização não se propõe objetivos políticos


determinados, mas sem nenhuma dúvida resulta em uma crise prática da tradicional
situação de marginalidade em que se encontram as massas. Os homens do povo que
tomaram parte nos círculos de cultura fazem-se cidadãos politicamente ativos ou,
pelo menos, politicamente disponíveis para a participação democrática. Esta
atualização política da cidadania social e econômica real dêstes homens excluídos
pelas elites tradicionais contém implicações de amplo alcance. (1983, p.18)

Os círculos de cultura garantiriam um aprendizado respeitoso, que levasse em


consideração a trajetória de vida e os conhecimentos do educando. Assim, as aulas partiriam
sempre dessas situações cotidianas, das palavras já conhecidas; enfim, das redes de
significados de cada indivíduo. As palavras simples, relacionadas ao dia-a-dia, seriam
utilizadas como geradoras, como palavras iniciais para o diálogo. Na obra de Freire, um
poema de Thiago de Mello (apud FREIRE, 1983, p.28) é transcrito, com a finalidade de dar
vida a este seu método. Vejamos suas palavras:
75

Canção para os fonemas da alegria


Peço licença para algumas coisas
Primeiramente para desfraldar
êste canto de amor pùblicamente.
Sucede que só sei dizer amor
quando reparto o ramo azul de estrêlas
que em meu peito floresce de menino.
Peço licença para soletrar,
no alfabeto do sol pernambucano,
a palavra ti-jo-lo, por exemplo,
e poder ver que dentro dela vivem
paredes, aconchegos e janelas
e descobrir que todos os fonemas
são mágicos sinais que vão se abrindo
constelação de girassóis gerando
em círculos de amor que de repente
estalam como flor no chão da casa.
Às vêzes nem há casa: é só chão.
Mas sôbre o chão quem reina agora é um homem
Diferente, que acaba de nascer:
Porque unindo pedaços de palavras
Aos poucos vai unindo argila e orvalho,
Tristeza e pão, cambão e beija-flor,
e acaba de unir a própria vida
no seu peito partida e repartida
quando afinal descobre um clarão
que o mundo é seu também, que o seu trabalho
não é a pena que paga por ser homem,
mas um modo de amar – e de ajudar
o mundo a ser melhor. Peço licença
para avisar que, ao gôsto de Jesus,
êste homem renascido é um homem nôvo:
êle atravessa os campos espalhando
a boa-nova, e chama os companheiros
a palejar no limpo, fronte a fronte,
contra o bicho de quatrocentos anos,
mas cujo o fel espêsso não resiste
a quarenta horas de total ternura.
Peço licença para terminar
Soletrando a canção de rebeldia
Que existe nos fonemas da alegria:
Canção de amor geral que eu vi crescer
Nos olhos do homem que aprendeu a ler.

A expressão máxima contida nas palavras do poema se efetiva na capacidade de


traduzir a esperança freireana depositada na educação. O poema traduz, de forma simples,
artística e verdadeira, a expansão de horizonte cultural proveniente da alfabetização; logo, da
educação. Da palavra ―tijolo‖ se constrói toda uma rede de significados que extrapolam os
76

objetos de alvenaria e narram de uma experiência de vida, da própria trajetória humana deste
sujeito embebecido pelo novo conhecimento. ―Porque unindo pedaços de palavras, aos poucos
vai unindo argila e orvalho, tristeza e pão, cambão e beija-flor, e acaba de unir a própria vida‖
(Ibid). A potência deste poema nos revela a potência da própria alfabetização, para Paulo
Freire. Seu ideal emancipatório sinalizava esta concretização da mudança de vida e de
condições deste sujeito real, corpóreo, cheio de anseios, necessidades, sonhos e vida. A
educação deixa de ser pensada em seu plano ideal, para o aluno dos sonhos, dotado de
competências culturais. Agora, a nova educação tem o compromisso com as massas e com
esse sujeito outrora excluído deste processo de humanização. É preciso dar voz a quem
sempre foi silenciado e escutar o que ele tem a dizer. O diálogo entre educador e educando é a
afirmação deste compromisso de escuta, de troca, de respeito e de conversa. Assim se constrói
o conhecimento.

A teoria da Escola nova foi o primeiro passo nesta nova concepção, que pretendia
mudar a noção de marginalidade que outrora havia sido atribuída àqueles que sem
competência e conhecimento não podiam participar da educação. Em suma, o que pretendia
esta nova pedagogia era a inclusão daqueles marginalizados e desmerecidos pelo sistema
educacional. Daquela parcela da sociedade que, na sua condição de pobreza, não tinha acesso
à escola, perpetuando as condições que favorecem a miséria e a dominação de classe. A
pedagogia tradicional operava segundo critérios que atribuíam à falta de habilidade e
predisposição (numa conduta essencialista) ao fenômeno da marginalidade17. Logo, estava
fora da escola toda aquela classe que, por essência, não seria capaz de acompanhar os
conteúdos escolares e, assim, aprofundar-se na cultura culta. O que advogava a Escola nova
era uma mudança deste ponto de vista inicial. O conhecimento é uma oferta que deve ser feita
com igualdade. Como elucida Saviani,

toma corpo, então, um amplo movimento de reforma cuja expressão mais típica
ficou conhecida sob o nome de ‗escolanovismo‘. Tal movimento tem como ponto de
partida a escola tradicional já implantada segundo as diretrizes consubstanciadas na
teoria da educação que ficou conhecida como pedagogia tradicional. A pedagogia
nova começa, pois, por efetuar a crítica da pedagogia tradicional, esboçando uma
nova maneira de interpretar a educação e ensaiando implantá-la, primeiro, através de
experiências restritas; depois, advogando sua generalização no âmbito dos sistemas

17
Segundo Saviani (1999) o fenômeno da marginalidade se apresenta como aquela segregação social que
distribui os indivíduos em duas polaridades: dominadores x dominados. Assim, a marginalidade seria a categoria
que engloba aqueles que não são detentores dos meios de produção; logo, dominados. No que tange as questões
referentes à educação, a marginalidade se apresenta naquelas pedagogias que não estão a serviço dos interesses
desta classe em específico, operando apenas de acordo com as necessidades da classe dominante.
77

escolares. (...) Segundo essa nova teoria, a marginalidade deixa de ser vista
predominantemente sob o ângulo da ignorância, isto é, o não domínio de
conhecimentos. O marginalizado já não é, propriamente, o ignorante mas o
rejeitado. Alguém está integrado não quando é ilustrado, mas quando se sente aceito
pelo grupo e, através dele, pela sociedade em seu conjunto. (1999, p.19)

Se todos somos sujeitos de conhecimento e de potência para a conscientização, então a


marginalidade passa a ser um fenômeno de exclusão social determinada e determinante. É a
afirmação de uma nítida pretensão burguesa de manter fora da escola e, assim da reflexão
crítica, uma classe em pleno potencial de transformação. Assim, a Escola nova se coloca,
enquanto proposta pedagógica, oposta e radicalmente diferente à pedagogia tradicional. O que
Saviani (1999) e Libâneo (1990) também concordam; porém, seu distanciamento temporal
permitiu a estes autores estabelecer uma crítica aos reais ganhos e mudanças promovidas por
esta nova concepção pedagógica. Todavia Saviani alerta,

se na polêmica avulta a questão da Escola Nova, isto não deve induzir a equívocos.
Este não é um livro contra a Escola Nova enquanto tal. É, antes, um livro contra a
pedagogia liberal burguesa. Por isso, enganam-se aqueles que imaginam que, por
efetuar a critica à Escola Nova, o autor desta obra estaria de algum modo
reabilitando a pedagogia burguesa. Ora, não se nega à Escola Nova o seu caráter
progressista em relação à Escola Tradicional. Aliás, isso está formalmente explícito
no terceiro texto. Entretanto, enquanto proposta burguesa, a Escola Nova articula em
torno dos interesses da burguesia os elementos progressistas que, obviamente, não
são intrinsecamente burgueses. É dessa forma que a burguesia trava a luta pela
hegemonia procurando subordinar aos seus interesses os interesses das demais
classes. (1999, p.08)

A centralidade de sua análise está justamente em expressar o ponto em que a Escola


nova não foi capaz de se consolidar enquanto alternativa e resistência ao modelo burguês de
ensino. Segundo Saviani, e a crítica de Libâneo nos aponta sua concordância, as diferenças
marcadas entre a pedagogia tradicional e aquela inaugurada pela Escola Nova se constituem
numa postura de mudança de eixo em relação a vários aspectos. Para Saviani,

compreende-se então que essa maneira de entender a educação, por referência à


pedagogia tradicional tenha deslocado o eixo da questão pedagógica do intelecto
para o sentimento; do aspecto lógico para o psicológico; dos conteúdos cognitivos
para os métodos ou processos pedagógicos; do professor para o aluno; do esforço
para o interesse; da disciplina para a espontaneidade; do diretivismo para o não-
diretivismo; da quantidade para a qualidade; de uma pedagogia de inspiração
filosófica centrada na ciência da lógica para uma pedagogia de inspiração
experimental baseada principalmente nas contribuições da biologia e da psicologia.
Em suma, trata-se de uma teoria pedagógica que considera que o importante não é
aprender, mas aprender a aprender. (1999, p.20)
78

Uma concepção educacional nestes critérios precisa sofrer uma alteração em sua
estrutura organizacional. É correto afirmarmos que se colocando enquanto oposição ao
―velho‖ modelo de ensino a Escola nova teria interesse em promover outras relações em sala
de aula, para além do velho regime hierárquico. Ao invés de alunos confinados a professores
conhecedores das grandes áreas do conhecimento, internalizando a reprodução mimética por
meio do conhecimento embrutecido e engessado, o que se almejava era uma aprendizagem
espontânea e interessante (SAVIANI, 1999). Assim, tanto a postura do professor quanto o
ambiente da aprendizagem se fazem aspectos importantes para que se efetive o estímulo e,
posteriormente, o conhecimento de forma espontânea, fugindo ao velho autoritarismo que
outrora privilegiava o conhecimento enciclopédico. Conforme análise de Saviani foi
justamente este aspecto que impossibilitou uma expansão do modelo pedagógico proposto
pela Escola Nova. A reformulação do espaço escolar, para se mostrar atrativo e estimulador,
para abarcar as necessidades de uma educação para a experiência e experimentação, não se
efetiva, uma vez que se torna um grande gasto para os cofres públicos. Logo, essas
experiências pedagógicas acabaram por se conformar à pequenos grupos . Assim, ―a ‗Escola
Nova‘ organizou-se basicamente na forma de escolas experimentais ou como núcleos raros,
muito bem equipados e circunscritos a pequenos grupos de elite‖ (SAVIANI, 1999, p.21).

Ao fim o trabalho para as massas se restringiu, mais uma vez, a pequenos grupos, se
tornando elitizado. O professor que adota esta perspectiva encontra dificuldade em sua
prática. Conforme Libâneo,

em artigo publicado em 1981, SAVIANI descreveu com muita propriedade certas


confusões que se emaranham na cabeça de professores. Após caracterizar a
pedagogia tradicional e a pedagogia nova, indica o aparecimento, mais recente, da
tendência tecnicista e das teorias critico-reprodutivistas, todas incidindo sobre o
professor. Ele escreve: "Os professores têm na cabeça o movimento e os princípios
da escola nova. A realidade, porém, não oferece aos professores condições para
instaurar a escola nova, porque a realidade em que atuam é tradicional. (...) Mas o
drama do professor não termina, aí. A essa contradição se acrescenta uma outra:
além de constatar que as condições concretas não correspondem à sua crença, o
professor se vê pressionado pela pedagogia oficial que prega a racionalidade e
produtividade do sistema e do seu trabalho, isto é, ênfase, nos meios
(tecnicismo).(...) Ai o quadro contraditório em que se encontra o professor: sua
cabeça é escolanovista a realidade é tradicional;"(...) rejeita o tecnicismo porque
sente-se violentado pela ideologia oficial; não aceita a linha crítica porque não quer
receber a denominação de agente repressor. (1990, p.20)

A prática do professor em sala de aula, orientada por sua doutrina, deixa de ser
correspondente a sua filiação conceitual, porque este se encontra perdido e desorientado. A
79

escola que querem os escolanovistas, não se efetiva na realidade. Concentrados neste


problema, da correspondência com a realidade, é que Saviani defende uma nova postura
educacional. Para tanto, é o professor quem deve optar por uma postura crítica em relação ao
dado, considerando a devida colocada em prática e sua correspondência dentro de um plano
do possível. Sua defesa é de uma pedagogia crítica que consiga chegar a uma medida justa
entre os métodos já experimentados. Conforme nos descreve,

uma pedagogia articulada com os interesses populares valorizará, pois, a escola; não
será indiferente ao que ocorre em seu interior; estará empenhada em que a escola
funcione bem; portanto, estará interessada em métodos de ensino eficazes. Tais
métodos se situarão para além dos métodos tradicionais e novos, superando por
incorporação as contribuições de uns e de outros. Portanto, serão métodos que
estimularão a atividade e iniciativa dos alunos sem abrir mão, porém, da iniciativa
do professor; favorecerão o diálogo dos alunos entre si e com o professor mas sem
deixar de valorizar o diálogo com a cultura acumulada historicamente; levarão em
conta os interesses dos alunos, os ritmos de aprendizagem e o desenvolvimento
psicológico mas sem perder de vista a sistematização lógica dos conhecimentos, sua
ordenação e gradação para efeitos do processo de transmissão-assimilação dos
conteúdos cognitivos. (SAVIANI, 1999, p.79)

É nítida aqui sua preocupação com os conteúdos e com aqueles saberes consolidados
pela sociedade. É neste ponto que se resguarda algo da pedagogia tradicional. Por outro lado,
entende a necessidade de incentivar a iniciativa dos alunos, o diálogo, os interesses, ritmos de
aprendizagem e etc. Aquele problema da marginalização, citado anteriormente, ganha
novamente o foco. A pedagogia da Escola Nova tinha um nobre ideal, mas foi incapaz de
colocá-lo em prática em sua totalidade. A educação crítica se mostra como alternativa viável,
tentando de fato sanar a questão da marginalidade. Um fator decisivo nesta questão se
concentra no fato da Escola Nova dar pouca importância aos conteúdos escolares. Segundo
Libâneo e Saviani, essa prática levou ao efeito referido anteriormente, uma educação incapaz
de cumprir seu objetivo de inclusão das massas.

Já método freireano é resumido por Libâneo da seguinte maneira:

Conteúdos de ensino - Denominados "temas geradores", são extraídos da


problematização da prática de vida dos educandos. Os conteúdos tradicionais são
recusados porque cada pessoa, cada grupo envolvidos na ação pedagógica dispõem
em si próprios, ainda que de forma rudimentar, dos conteúdos necessários dos quais
se parte. O importante não é a transmissão de conteúdos específicos, mas despertar
uma nova forma da relação com a experiência vivida. A transmissão de conteúdos
estruturados a partir de fora é considerada como "invasão cultural" ou "depósito de
informação", porque não emerge do saber popular. Se forem necessários textos de
80

leitura; estes deverão ser redigidos pelos próprios educandos com a orientação do
educador. (1990, p.33)

Para Libâneo, uma escola que não considera os conhecimentos historicamente


construídos não será capaz de formar sujeitos para a sociedade, no sentido de formação social.
De fato, a conformação social, aquelas regras de uma formação para a vivência em sociedade,
não era um objetivo de Freire. Todavia, a crítica a seu método justamente encara esta postura
como demasiada. Um sujeito sem as ferramentas para operar na sociedade jamais estará
incluído. É preciso, pois, pensar para além de uma inclusão técnica. É preciso considerar o
espaço individual para a autonomia. Um meio termo é necessário para que este sujeito
inserido em determinada sociedade também possa problematizá-la e, quem sabe, transformá-
la.

Para que não se crie equívocos gostaríamos de salientar que Paulo Freire não tinha
como preocupação inicial a educação escolar regular. Sua atividade concentrou-se na
alfabetização de jovens e adultos. A postura adotada por professores engajados em sua teoria
esteve, sempre, livre; uma vez que não se encontrava fixada mais do que em recomendações
de uma visão educacional. O próprio Libâneo nos alerta para este caráter ―não-formal‖ da
pedagogia freireana. Segundo o autor,

não é próprio da pedagogia libertadora falar em ensino escolar, já que sua marca é a
atuação "não-formal". Entretanto, professores e educadores engajados no ensino
escolar vêm adotando pressupostos dessa pedagogia. Assim, quando se fala na
educação em geral, diz-se que ela é uma atividade onde professores e alunos,
mediatizados pela realidade que apreendem e da qual extraem o conteúdo de
aprendizagem, atingem um nível de consciência dessa mesma realidade, a fim de
nela atuarem, num sentido de transformação social. Tanto a educação tradicional,
denominada "bancária" - que visa apenas depositar informações sobre o aluno -,
quanto a educação renovada – que pretenderia uma libertação psicológica individual
- são domesticadoras, pois em nada contribuem para desvelar a realidade social de
opressão. A educação libertadora, ao contrário, questiona concretamente a realidade
das relações do homem com a natureza e com os outros homens, visando a uma
transformação – daí ser uma educação crítica. (1990, p.33)

A postura crítica da educação libertadora previa esta radical oposição ao que se


chamou de educação bancária, pressuposto para um ―aprendizado‖ como mera reprodução de
conteúdos. Alguns professores se sentiram tocados pela proposta freireana e se colocaram
naquela postura de educador, visando contribuir para o papel social da escola. Todavia, o
modelo pedagógico de Freire se mostrou inviável em grande escala (SAVIANI, 1999); logo,
incapaz de cumprir seu objetivo mais elementar: desmarginalizar as massas. Saviani e
81

Libâneo apostam nesta educação preocupada com as massas, com a conscientização e com a
criatividade; porém, resguardam na figura do professor e nos conteúdos escolares as parcelas
importantes para este fim. O professor mediador de Freire exigia uma estrutura, quando
pretendida em nível escolar, para além das reais possibilidades da escola.

Entende-se, portanto, que a organização da escola e a tarefa do professor devem se


concentrar em atuar sobre essas duas tendências, encontrando uma medida entre ambas. De
um lado, a escola tradicional, com conteúdos rígidos e sem significado para os alunos. De
outro, a Escola nova privilegiando as relações não hierárquicas, denunciando os conteúdos
como sendo a própria fonte da desigualdade, dando ênfase ao conhecimento construído em
conjunto, sempre desde a própria realidade do educando. A postura adotada por essa educação
crítica revisitada é outra, conforme esclarece Libâneo,

a difusão de conteúdos é a tarefa primordial. Não conteúdos abstratos, mas vivos,


concretos e, portanto, indissociáveis das realidades sociais. A valorização da escola
como instrumento de apropriação do saber é o melhor serviço que se presta aos
interesses populares, já que a própria escola pode contribuir para eliminar a
seletividade social e torná-la democrática. Se a escola é parte integrante do todo
social, agir dentro dela é também agir no rumo da transformação da sociedade. Se o
que define uma pedagogia crítica é a consciência de seus condicionantes histórico-
sociais, a função da pedagogia "dos conteúdos" é dar um passo à frente no papel
transformador da escola, mas a partir das condições existentes. Assim, a condição
para que a escola sirva aos interesses populares é garantir a todos um bom ensino,
isto é, a apropriação dos conteúdos escolares básicos que tenham ressonância na
vida" dos átimos. Entendida nesse sentido, a educação é "uma atividade mediadora
no seio da prática social global", ou seja, uma das mediações pela qual o aluno, pela
intervenção do professor e por sua própria participação ativa, passa de uma
experiência inicialmente confusa e fragmentada (sincrética), a uma visão sintética,
mais organizada e unificada. Em síntese, a atuação da escola consiste na preparação
do aluno para o mundo adulto e suas contradições, fornecendo lhe um instrumental,
por meio da aquisição de conteúdos e da socialização, para uma participação
organizada e ativa na democratização da sociedade. (1990, p.38)

A medida se encontra nesta harmonia entre ―ajuste social‖ e ―individualidade e


criatividade‖. Logo, a crença na capacidade humana está mantida. A postura crítica revela
que todos são capazes de se empoderar através do conhecimento, de tomá-lo para si e se valer
deste para a análise do real. Uma escola democrática, como sugere o título da obra de
Libâneo, é uma escola para todos justamente porque parte da certeza de que a marginalidade,
a exclusão, é uma consequência histórica e não de essência. Sobre a defesa desta pedagogia
que ele denomina de crítico-social dos conteúdos, Libâneo conclui,
82

por fim, situar o ensino centrado no professor e o ensino centrado no aluno em


extremos opostos é quase negar pedagógica porque não há um aluno, ou grupo de
alunos, aprendendo sozinho, nem um professor ensinando para as paredes. Há um
confronto do aluno entre sua cultura e a herança cultural da humanidade, entre seu
modo de viver e os modelos sociais desejáveis para um projeto novo de sociedade. E
há um professor que intervém, não para se opor aos desejos e necessidades ou à
liberdade e autonomia do aluno, mas para ajudá-lo a ultrapassar suas necessidades e
criar outras, para ganhar autonomia, para ajudá-lo no seu esforço de distinguir a
verdade do erro, para ajudado a compreender as realidades sociais e sua própria
experiência. (1990, p.44)

A educação crítica, nesse sentido, opera sempre levando em consideração a liberdade e


a, já pressuposta, autonomia de seu aluno. Sem desconsiderar, todavia, o papel de formação
cultural da educação. Nem um professor autoritário, nem a completa falta de autoridade. Nem
conteúdos miméticos de reprodução desinteressante, nem a negação total destes
conhecimentos. Eis os caminhos educacionais desta proposta.

Com fins de apresentar um apanhado das considerações a que chegamos, desde a


análise proposta, se faz necessário darmos aqui algumas conclusões daquilo que perseguimos
neste capítulo e do que acreditamos temos obtido como respostas. Assim, podemos concluir
que o conceito de emancipação presente nas pedagogias críticas se apresenta na forma
concreta de uma conscientização, de uma tomada de consciência crítica e de uma efetiva
participação política/social. Obviamente não se trata de uma tentativa de enquadramento
rígido destas pedagogias. Como já salientamos, existem diferenças importantes entre cada
teoria pedagógica que aqui tratamos. Todavia, é importante que possamos encontrar os pontos
em comum que motivam essa postura pedagógica que tanto influenciou – e influencia – a
nossa educação brasileira. O objetivo educacional desta educação crítica, que se opõe ao
modelo tradicional de ensino, se efetiva como aquela crença na capacidade humana em
conciliar-se, moralmente, com sua condição. Em outras palavras, a confiança de que podemos
nos organizar política e economicamente de maneira que possamos conviver de forma mais
justa e igualitária. Que possamos, enfim, obter uma sociedade com relações sociais mais
fraternas. A educação se apresenta como ferramenta de busca deste ideal. O conceito de
emancipação, nestes termos, se apresenta numa dupla condição, uma vez que se efetiva como
objetivo é, ao mesmo tempo, pressuposto. A conscientização é objetivo educacional, em
consonância a isto autonomia é pressuposto desta educação. Ou seja, um aluno podado em sua
liberdade, com um professor rígido em demasia, não tem suas potencialidades devidamente
83

estimuladas. Logo, entende-se que liberdade é o ponto de partida e o objetivo. Parece estranho
pensar esta relação, mas é perfeitamente cabível dentro do pressuposto pedagógico que
analisamos. A liberdade do aluno precisa ser reconhecida pelo professor para que não se
regresse àquela educação bancária denunciada por Freire. Ao mesmo tempo é preciso
reconhecer que esta autonomia não é plena, tendo a educação papel fundamental neste
processo.

Pudemos observar que autonomia, liberdade, emancipação e conscientização, foram


conceitos encontrados. Tais conceitos se apresentam, por vezes, como equivalentes, por outras
como distintos. Essa característica de maneira alguma pode ser encarada como uma
contradição ou descaso conceitual. Parece, antes, que este caráter indefinido encerra-se na
própria postura adotada pela perspectiva analisada. Autonomia é liberdade, que por sua vez é
meta e pressuposto. Se não fosse assim deveríamos concordar que somente por meio da
fixação de ideias e da brutalidade do aprendizado é que seríamos capazes de educar para a
liberdade. Um objetivo que é tido como último estágio a se alcançar pressupõe um tutor capaz
de modelar para tal finalidade. Ora, sabe-se que alguém que nunca aprendeu a pensar por si
mesmo ou refletir para além das imposições de seu tutor jamais poderá emancipar-se. A
atitude crítica não nasce ―da noite para o dia‖. É preciso um incentivo constante, um ensino
que permita momentos de atitude autônoma. É assim que a variação conceitual se mostra
como não contraditória. É preciso que assim o seja para dar conta de um movimento dialético
na educação que tem sua finalidade afixada, mas que não se relaciona de forma arbitrária com
o sujeito objeto da educação. Mesmo tal finalidade precisa ser fruto de uma concordância, de
um entendimento. Logo, a pretensão última destas pedagogias estaria em assegurar uma
práxis social capaz de estabelecer verdadeira mudança e superação da dualidade explorado
vrs explorador.

O caráter ―salvacionista‖ destas pedagogias - termo que por vezes escutamos na


academia - pode, talvez, ser revelado nessa postura otimista em relação ao homem e em suas
potencialidades. Logo, nessa crença de que por meio da educação um futuro de relações justas
será possível. Assim, podemos concluir que os autores analisados acreditam neste objetivo
educacional, creem que a condição de emancipado é perfeitamente possível. Creem em um
sujeito capaz de refletir e decidir sempre por si mesmo. Um sujeito capaz de se colocar
84

enquanto agente histórico, se posicionando no mundo para se fazer ouvir. Um sujeito de


liberdade democrática, em última instância. Segundo as considerações de Garcia,

para os discursos das pedagogias críticas o esclarecimento, através da conversão do


olhar e das consciências, é condição de redenção e salvação. Os indivíduos, pelo
esclarecimento, têm a oportunidade de redimir-se da ignorância e de suas mazelas;
de libertar-se de seus efeitos nas consciências e na vida individual e social; de
converter-se em sujeitos de razão e moral superiores; de salvar-se pela possibilidade
de acesso a formas superiores de pensamento e a uma existência moralizada, livre da
marginalidade e das injustiças sociais. Uma meta possível tanto para os indivíduos
em particular como para o conjunto da humanidade. (2002, p. 88)

Assim, a emancipação se apresenta, nestas pedagogias, como uma meta do individual


para o coletivo, numa nítida missão social. Atrela-se a esta perspectiva uma clara síntese do
processo dialético, onde o terceiro momento é tido como aquele de superação. Não obstante,
as múltiplas expressões do conceito se revelam como expressão máxima de uma pedagogia
comprometida com a liberdade. Não se pode ter plena certeza do que virá; apenas se sabe que
para ser considerada bem sucedida a educação haverá de ser para uma sociedade mais justa,
nos termos apontados anteriormente. Daí a importância da não reprodução irrefletida,
enquanto medida eficaz para assegurar a postura crítica e não a mera conformidade social. O
contexto histórico da ditadura militar no Brasil marca fortemente esta posição que não
somente se opõem de forma passiva e despretensiosa, mas se efetivam como agente de uma
mudança. O conceito de emancipação é o auge desta missão, a meta alcançável por meio de
uma educação que inaugura uma postura dialética em sua metodologia. Emancipar-se é
possível, uma sociedade justa é a consequência deste processo.
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CAPÍTULO 4 - REVISITANDO O CONCEITO: A POSTURA ADORNIANA DE UMA


EDUCAÇÃO PARA A REFLEXÃO HUMANA

A teoria educacional de Adorno e sua crítica à modernidade e ao conceito de


emancipação ofertado pelo Iluminismo, não tiveram uma repercussão radical na perspectiva
pedagógica de muitos educadores no contexto brasileiro. Adorno faz parte de uma corrente de
pensamento que se valeu das categorias marxistas em sua crítica do instituído. Porém, Adorno
deu um passo diferente em sua análise e se desprendeu do modelo instaurado por Marx.
Assim, a problematização conceitual com base teórica na crítica de Adorno se apresenta como
importante ferramenta, uma vez que serve de oposição ao modelo de emancipação encontrado
nas pedagogias críticas.

Lembremos que a crítica de Adorno ao movimento do esclarecimento se volta, em


especial, para as consequências desta estrutura racional, para as relações contemporâneas, em
nível social. Sua teoria acerca da contradição, existente no próprio conceito cunhado pelo
Iluminismo, traça uma crítica devastadora em relação a nossa própria racionalidade. Como já
evidenciamos anteriormente, o projeto da modernidade acaba por servir para o contrário de
sua meta. Em outras palavras, o projeto moderno não se concretiza, uma vez que contribui
para formar sujeitos incapazes de refletir – condição, esta, básica ao sujeito emancipado. Tal
incapacidade reflexiva se deve, segundo a crítica adorniana, ao empoderamento excessivo da
capacidade subjetiva de nossa racionalidade. Horkheimer definiu em sua obra estas duas
expressões racionais. Segundo nos apresenta Petry, para o autor,

em Eclipse da razão, Horkheimer diferencia dois sentidos do termo razão (Vernunft): um que designa ―a
faculdade de classificação, inferência e dedução, não importando qual o conteúdo específico dessas ações: ou
seja, o funcionamento abstrato do mecanismo de pensamento‖ (ER, p. 13), a qual ele nomeia como razão
subjetiva. Essa forma racional coordena os meios em relação aos fins, os quais correspondem ao interesse de
autopreservação do indivíduo ou da comunidade na qual ele se insere. Não se trata, portanto, de determinar os
fins das ações, nem de questionar sua racionalidade, mas de direcioná-las para a realização de objetivos em
benefício do sujeito. (...) A razão objetiva, por outro lado, é entendida por Horkheimer como a dimensão capaz
de definir os fins das ações. Historicamente, essa idéia esteve no centro de uma concepção segundo a qual à
razão objetiva caberia a determinação de fins intimamente relacionados com uma totalidade. Tal concepção, diz
Horkheimer, ―afirmava a existência da razão não só como força da mente individual, mas também do mundo
objetivo: nas relações entre os seres humanos e entre classes sociais, nas instituições sociais, e na natureza e suas
manifestações‖ (ER, p. 14). Foi a partir desse conceito que a própria filosofia foi possível enquanto um sistema
que procurou organizar e hierarquizar seres, coisas e ações de acordo com a noção de uma totalidade‖ (2011a, p.
86

79) Se por um lado a razão subjetiva se apresenta como aquela nossa faculdade de
classificação e cálculo, a razão objetiva é aquela dimensão moral, capaz de estabelecer as
finalidades por meio de uma relação não utilitária com o meio. A supervalorização de apenas
uma destas facetas racionais é o problema apontado por Adorno e Horkheimer no que diz
respeito à impossibilidade emancipatória. A subjetivação da razão, efeito do ideal Iluminista e
de suas premissas condutoras, produziu efeitos sociais que acabaram por distanciar a
humanidade de sua pretensão de alcançar a autonomia e a melhora de sua própria condição no
mundo. Como vimos, a meta máxima do Iluminismo em dissolver os mitos e conduzir o
homem ao conhecimento seguro de uma razão que não permite falhas, acabou por se efetivar
como substrato mitológico, na medida em que elencou, também, uma nova entidade de
adoração cega. O saber científico se eleva como único detentor da verdade e passa a fomentar
a postura social de passividade e acomodação intelectual. Além do mais, a postura inaugurada
por esta nova maneira de relacionar-se com mundo, a ciência experimental, acaba por
ultrapassar os limites de sua atividade técnica, transformando-se em parâmetro das próprias
relações humanas. O modelo de interação Homem-Natureza da ciência moderna se consolida
como padrão comportamental em todos os âmbitos sociais. A dominação velada, na forma de
coisificação, é exemplo desta afirmação. Assim, a racionalidade instrumental se conecta
intimamente com o fenômeno da barbárie e da violência das massas, enquanto causa concreta
de nossa acomodação reflexiva e, portanto, potencializadora da violência primitiva. Conforme
Petry,

a barbárie é um tema central nos escritos de Adorno sobre a educação, pois ela foi o
auge de uma racionalidade incapaz de prestar atenção em si mesma. Tal afirmativa
decorre de uma crítica que ele e Horkheimer fazem ao conceito de racionalidade, do
modo como se desenvolveu ao longo do processo que constituiu a civilização. A
crítica de Adorno e Horkheimer à racionalidade se coloca em contraposição ao ideal
iluminista de Kant, pois questiona a potencialidade da razão em possibilitar a
autonomia dos sujeitos. É no caráter duplo do conceito de razão que os
frankfurtianos irão detectar uma dialética que se apresenta na tensão entre oposições
como: esclarecimento e mito, progresso e regressão, cultura e natureza ou
civilização e barbárie. (2011b, p. 36)

Tais oposições são encaradas como aquelas tensões que movimentam ambos os
conceitos entre seus limites de encontro e de repulsão. O erro do movimento das luzes teria
sido, segundo Adorno e Horkheimer (1985), o de desconsiderar a importância destes
antagonismos na própria potencialidade conceitual. O esclarecimento que previa para sua
concretização a morte do saber mitológico, por exemplo, não considerou que com esta perda
87

mataria também uma parcela muito importante de sua própria identidade. A razão objetiva
deixada de lado em prol deste conhecimento seguro assegurava, outrora, as relações morais e
as reflexões filosóficas acerca do mundo. A nova forma de relacionar-se não está pautada em
uma ética universal, como acreditava ser possível Kant, mas antes, pauta-se em critérios de
utilidade regionalizados. Conforme sugere Tomazetti (2006, p. 06),

a sociedade industrial desobriga o indivíduo de usar a sua razão crítica e lhe


incentiva a pensar e a agir em termos meramente pragmáticos e utilitaristas. O
indivíduo está assim, fortalecendo cada vez mais esta sociedade que, ao fim, origina
o "caos" e a "barbárie". Essas expressões de Horkheimer enfatizam o desenrolar da
racionalidade subjetiva espelhada no quadro das duas guerras mundiais, do nazismo
e do fascismo. A instrumentalidade da razão se mantém num mundo que se
envaidece de ser filho do avanço da racionalidade. Apenas a razão já não é a mesma
para Horkheimer, ela perdeu-se dos seus fins mais caros. Isso não significa, segundo
ele, negar o desenvolvimento técnico-científico alcançado e desejado pelos homens.
Não significa se lançar na tentativa de recuperação de um estado "anterior" e então,
regredir no tempo. Não há a tentativa ingênua de negar a própria ciência, como se
ela fosse a responsável por todos os desequilíbrios entre homem e natureza. O que
está em jogo é o alerta para que se volte a fazer uso da reflexão e se descubra os
elementos constituintes e determinadores da situação alcançada na trajetória do
progresso.

A autora alerta para que não se tome erroneamente a ideia de que - com a crítica à
modernidade e à razão subjetiva - os autores da Dialética do Esclarecimento propunham a
volta para um momento anterior àquele propulsor do modelo científico, de busca pelo
conhecimento. Ambos os autores compreendem os benefícios oriundos do saber científico e
não pretendem um ―retrocesso‖. Sua crítica é direcionada para o lado negativo desta
racionalidade, que se revela em sua diluição em outros aspectos da vida cotidiana. Já sabemos
que o ideal do movimento da Ilustração se mostrou inviável dentro da lógica em que fora
operado, dado que a razão técnica18 se mostra incapaz de servir ao ideal de autonomia. No
âmbito educacional, as premissas conceituais da modernidade acabam por servir apenas para a
manutenção do próprio jogo racional. Assim, a educação, não somente é incapaz de resistir ao
enfraquecimento reflexivo, como serve, justamente, de reforço a esta incapacidade.

O problema educacional, segundo Adorno (1995), deve voltar-se à questão da


emancipação enquanto necessidade intrínseca de pensar as dimensões da crueldade humana –
cada vez mais institucionalizada. Sua vivência, como judeu em pleno regime nazista, dá

18
Segundo Horkheimer (2002), a razão técnica esta ligada com aquela faceta subjetiva de nossa racionalidade.
Em outras palavras, a razão técnica se apresenta como sendo uma expressão da racionalidade humana que
privilegia a operação e o cálculo em detrimento de outras competências, morais, por exemplo, que devem
auxiliar em nossa tomada de decisão.
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suporte a sua análise do presente. Assim, sua preocupação se volta ao fenômeno da barbárie,
enquanto faceta da falha do objetivo moderno. A brutalidade das relações humanas, para
Adorno, deveria ser uma preocupação urgente da educação contemporânea, para evitar que
Auschwitz se repita. Sua teoria educativa se volta a este problema, destacando os fatores
psicológicos que, de certa forma, motivam o comportamento bárbaro; ao mesmo tempo o
autor problematiza o modelo cultural no qual a formação dos sujeitos do século XX está
pautada. Veremos agora sua teorização acerca deste fenômeno, para, em seguida, nos
debruçarmos sobre o conceito de emancipação presente em sua teoria.

4.1 CULTURA E MASSIFICAÇÃO: O ENFRAQUECIMENTO CRÍTICO NO MUNDO


ADMINISTRADO

A crítica feita por Adorno e Horkheimer ao projeto da modernidade foi fruto do


interesse de ambos em entender a sociedade de seu tempo. Mais precisamente, podemos
destacar que era interesse de todos os estudiosos que compunham a Escola de Frankfurt a
pesquisa do capitalismo e seus efeitos sociais. As tensões e discussões de cunho marxista
marcam boa parte da trajetória dessas análises, mas estas não se encerram aí. Ambos os
autores superam as conclusões marxistas e estabelecem novos critérios de análise. ―Ora, na
medida em que a realidade social concreta mudava, do mesmo modo deveriam mudar as
construções teóricas elaboradas para compreendê-la. (...) O marxismo tradicional e mesmo o
ortodoxo russo eram insuficientes para tal‖ (PUCCI, 1994, p. 15). Segundo a formulação
marxista de um materialismo histórico dialético, por exemplo, as contradições sociais (de
classe) se devem sempre ao modelo de produção material dado em cada período histórico.
Assim, um modelo econômico justo e sem disparidades de distribuição de renda daria conta
de garantir uma igualdade. A análise social observada por Marx, sua teoria sobre as
contradições oriundas do capitalismo, é o ponto de aproximação entre este e Adorno. Todavia,
Adorno se distancia das conclusões e soluções marxistas atribuindo outros elementos em sua
análise social.

Como já indicado, a percepção inicial que sustenta a teoria dos filósofos frankfurtianos
está pauta na contradição latente entre o projeto da modernidade e a realidade contemporânea
do século XX. Essa afirmação é embasada pela própria experiência vivenciada. Segundo os
filósofos, vivemos em uma sociedade onde ainda se pratica a violência bárbara, a crueldade, e
89

que por isso não faz jus a seus avanços no que se refere ao campo científico e as novas
tecnologias. O próprio conceito de barbárie estabelecido por Adorno nos revela, no excerto
abaixo, sua preocupação com tal contradição. Segundo o filósofo,

entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que, estando na civilização do
mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um
modo particularmente disforme em relação a sua própria civilização – e não apenas
por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos
correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se encontrarem
tomadas por agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta,
um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que
toda essa civilização venha a explodir, aliás uma tendência imanente que a
caracteriza. (ADORNO, 1995, p.155)

A explicação dada pelo autor sobre o que chama por barbárie aponta diretamente para
a contradição observada na sua sociedade atual. A ideia de que somos uma comunidade
humana e que estamos em constante evolução não parece viável quando facilmente podemos
perceber que a violência irrefletida ainda faz parte do nosso cotidiano. Nesse sentido, não
somente seria possível afirmar que o ideal de emancipação do Iluminismo não se concretizou,
mas, também, que a pretensão de progresso não se realiza em todos os setores. Somos seres
sociais, nos unimos em grupos na busca pela sobrevivência e pela manutenção da vida; somos
capazes de aprimorar novas técnicas para que cada vez mais possamos usufruir de tempo livre
ou dedicá-lo para outras atividades. Cunhamos o conceito de progresso e nos convencemos de
que estamos andando em sua esteira, sempre avante. Afastamo-nos de nossa natureza mais
primitiva por acreditarmos que assim seguimos rumo ao desenvolvimento. Porém, não nos
demos conta das inúmeras consequências atreladas a estes ideais. A problematização da teoria
crítica ia além da perspectiva marxista, em especial, na medida em que elencou uma nova
base ao problema da dominação. A questão de Adorno e de Horkheimer ultrapassava a tese
que culpabiliza o sistema econômico pelas mazelas sociais e calcava aquela esperança
marxista numa sociedade socialista. Pucci nos elucida acerca da problemática que motivou a
pesquisa frankfurtiana. Segundo o autor (1999, p. 45),

é de estarrecer a constatação de que atualmente temos as condições objetivas de


simplesmente eliminar a fome da face da terra e, ao invés disso, o que observamos é
justamente a reprodução da miséria e da barbárie. Possuímos o aparato técnico que
nos capacita atingir finalmente a tão sonhada e prometida liberdade, porém nos
acostumamos cada vez mais com a perene reprodução das necessidades. Mas, será
que essa é uma contradição específica, e até mesmo exclusiva, da sociedade
capitalista? Ou ela acompanha a humanidade desde o seu início?
90

A razão emancipatória foi a base encontrada para sustentar a tese de uma sociedade
estruturalmente doente, cada vez mais voltada para a instrumentalização em suas próprias
relações pessoais. ―Se a formação cultural eleva o espírito humano para transcender as suas
limitações, a coisificação seria o movimento que o diminui, absorvendo-lhe a moeda de troca
da mercadoria, que acaba degradando as suas qualidades‖ (TREVISAN, 2011, p. 1190). É
assim, que o fenômeno da coisificação ―se impõe de fora para dentro e molda o indivíduo,
inclusive as suas faculdades psíquicas e sensoriais, limitando a sua compreensão do existente‖
(Ibid.). A dimensão psicológica da racionalidade instrumental interessa às análises de Adorno
e Horkheimer, influenciando as futuras contribuições de Adorno ao tema da educação. A
repressão social, a razão subjetiva alienadora e a massificação cultural são alguns dos
principais elementos que configuram a teoria adorniana e encaminham para sua análise do
conceito de emancipação. Aprofundando-se nestas questões, os filósofos se valem dos estudos
freudianos em sua busca pelos motivadores psicológicos da violência social que nos afasta do
projeto moderno para a humanidade. Mais especificamente, o que se apresenta na teoria
adorniana é a análise de Freud acerca da cultura. Esta visa destacar o sentimento comum
presente nos indivíduos em sociedade e como o fenômeno da cultura se relaciona a este.
Segundo Freud (1856-1939), uma espécie de mal estar parece acometer a humanidade. Tal
sentimento, para o autor, se relaciona com nossa base civilizatória e encontra sua expressão na
própria cultura. Para Freud (2010, p. 87),

a palavra ―cultura‖ designa a soma total de realizações e disposições pelas quais a


nossa vida se afasta de nossos antepassados animais, sendo que tais realizações e
disposições servem a dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulação
das relações dos homens entre si.

Assim, cultura e processo civilizatório são equivalentes. Se por cultura entendemos


nossas realizações e avanços de técnicas que nos afastam de nossa natureza primitiva, então
parece correto afirmar que se tornar civilizado será o mesmo que ser sempre menos natureza.
Ora, mas é justamente nesta relação de identificação e diferença com a natureza que homem
primitivo se constitui. Nesta contraposição de identidade é que o homem garante seu
reconhecimento enquanto grupo, enquanto parte formadora da cultura humana, e exige, assim,
que as novas gerações sejam ensinadas sobre as questões referentes à manutenção da ordem
social. Se antes a questão de sobreviver era crucial neste processo, agora garantir o bom
funcionamento da comunidade é o mesmo que garantir a nossa identidade construída. Cultura
é ensinar aquilo que nos consolida enquanto seres humanos civilizados, é afirmar nossa
91

condição como diferentes da natureza em geral. O projeto do Iluminismo era, antes de tudo,
um grande projeto civilizatório. A ideia de que estamos numa engrenagem natural de
progresso parece ser a grande certeza desde o século XVIII. A educação formal é uma
ferramenta cultural interligada a esta narrativa, que cumpre o duplo objetivo de formar para o
social e de conduzir ao progresso pessoal.

Levando em consideração a teoria contratualista de Hobbes (1983), por exemplo,


podemos teorizar, sem pretensão de verdade histórica, sobre a importância do fenômeno
humano em constituir-se em sociedade. Segundo o autor (1983), num estado de natureza19 os
homens viveriam sós e seriam sempre uma ameaça uns aos outros. Pensemos que num
possível estado natural todos os homens gozam de uma liberdade irrestrita. Essa ausência de
impedimentos tem como consequência o fato de que seríamos livres, inclusive, para tirar a
vida de outros. Numa situação como a descrita, segundo Hobbes, nosso instinto natural, no
intuito de garantir nossa própria integridade, seria o de atacar primeiro aqueles que
representassem qualquer ameaça. Assim, conforme o autor, organizar-se em grupos e eleger
um soberano (figura do garantidor da ordem) seria uma estratégia de sobrevivência. Se antes
todos representavam uma constante ameaça a todos e o direito a vida não estava assegurado,
agora é possível ter garantida a segurança em relação a sua própria integridade. Seguindo tal
raciocínio, conseguimos entender melhor um processo organizacional ao qual todos estamos
submetidos: leis e regras. Percebamos que o processo civilizatório a que se refere Freud tem
início a partir do momento em que precisamos, como indivíduos, fazer nossa primeira
concessão em prol do coletivo desta nossa nova identidade como grupo. É condição de
possibilidade para a criação do Estado, na afirmação hobbesiana, que cada sujeito ceda sua
liberdade irrestrita – o direito de matar. Ao perder esse direito o agora cidadão ganha em troca
o direito a vida e o conforto de poder utilizar-se de seu tempo para outras finalidades que não
somente a mera sobrevivência. Independente da validade histórica da afirmação hobbesiana, a
estrutura social mais elementar pode ser destacada desta sua narrativa. Viver em sociedade é
abrir mão de fazer sempre aquilo que se tem vontade em detrimento de não afetar os demais.
Cultura, ou civilização, é essa educação geral da repressão interna em prol do sujeito
civilizado.

19
Thomas Hobbes (1588-1679) formulou sua teoria sobre o contrato social como forma de legitimar o Estado e
o poder do soberano. Ao tratar de um estado de natureza – momento anterior da criação do Estado – Hobbes não
pretende uma explicação sobre a vida natural do homem em termos históricos, mas sim afirmar a necessidade
humana de organizar-se em grupos para a preservação da vida.
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Assim, o sentimento destacado por Freud faz parte de nosso cotidiano. Esse mal estar
está interligado com nossa cultura, ao próprio processo civilizatório e, de modo geral, a toda a
violência interna que este processo pressupõe. Segundo a leitura de Adorno dos textos
freudianos essa angústia coletiva se intensifica em nossa estrutura social atual - uma
sociedade de instrumentalização racional. Lembremos que nossa racionalidade é calcada –
fundante e reprodutora – na própria forma como interagimos com o mundo e como nele nos
estabelecemos. Quando tratamos de racionalidade não apenas expressamos uma forma de
organização mental de cada indivíduo em separado, mas, também, da própria constituição
humana. Assim, quando relacionamos racionalidade com formação do sujeito, estamos, antes,
estabelecendo relação entre operação racional e formação de identidade. Para entendermos
melhor esta relação nos valeremos da explicação que Hannah Arendt (1906-1975) propôs em
sua obra A condição humana (2007). Segundo a filósofa, por meio do trabalho o homem se
relaciona com a natureza e garante, assim, sua constituição individual. Nossa condição de
imortalidade seria a chave para o tipo de interação que estabelecemos com o meio. Segundo a
autora (2007, p. 27-28),

inserida num cosmo onde tudo era imortal, a mortalidade tornou-se o emblema da
existência humana. Os homens são <<os mortais>>, as únicas coisas mortais que
existem porque, ao contrário dos animais, não existem apenas como membros de
uma espécie cuja vida imortal é garantida pela procriação. A mortalidade dos
homens reside no fato de que a vida individual, com uma história vital identificável
desde o nascimento até a morte, advém da vida biológica. Essa vida individual
difere de todas as outras coisas pelo curso retilíneo do seu movimento que, por
assim dizer, intercepta o movimento circular da vida biológica. É isto a mortalidade:
mover-se ao longo de uma linha reta num universo em que tudo que se move o faz
num sentido cíclico. A tarefa e a grandeza potencial dos mortais têm a ver com sua
capacidade de produzir coisas – obras e feitos e palavras – que mereceriam pertencer
e, pelo menos até certo ponto, pertencem à eternidade, de sorte que, através delas, os
mortais possam encontrar o seu lugar num cosmo onde tudo é imortal exceto eles
próprios.

A condição de ser individual garante ao homem sua posição no cosmo, como ser
mortal. Logo, não nos relacionamos com o mundo natural de maneira coletiva, visando
apenas a posteridade enquanto grupo. Nossa interação com o meio se dá no âmbito da
singularidade, nos compreendemos como indivíduos e nossa finitude em critérios de vida e
morte. Neste ponto o que nos interessa é destacar de que forma esta condição humana – de ser
mortal – nos imprime identidade e nos movimenta no mundo. A leitura de Arendt (2007)
acerca da teoria marxista sobre o trabalho elucida a própria constituição do homem como ser
voltado, essencialmente, para o trabalho/labor. Estes dois termos não são sinônimos em sua
teoria, mas expressam nossa ligação mais elementar com o meio. O trabalho enquanto labor
93

representa o esforço que fazemos pela manutenção e garantia de nossa existência. Quando
colhemos um fruto ou pescamos um peixe, por exemplo, labutamos. Já o trabalho representa
a transformação que operamos na natureza, justamente movidos pelo sentimento de
mortalidade que tanto nos aflige. A transformação de recursos naturais em utensílios é o
melhor exemplo deste processo. Se é verdade que somos seres que nos constituímos e
formamos nossa identidade por meio de nossa relação com o mundo, então fica mais fácil
entender a crítica de Adorno e seu estudo das relações humanas.

A forma de interação suscitada pela racionalidade subjetiva é sempre – em termos


marxistas – alienada. A natureza tida enquanto objeto modifica nosso processo de formação e
transforma nossas relações sociais. As questões éticas envolvidas na razão objetiva estão
intrinsicamente ligadas com o sentimento de pertencimento dado por uma relação mais
simétrica com o mundo. Se no estudo marxista o filósofo encontra como fatores dessa relação
social desigual as questões de mercado e a própria forma de produção material ao longo da
história, Adorno pautará seu estudo num processo diferente. Para Adorno, mesmo a forma de
produção é consequência e não condição. Para o filósofo, nossa formação social tem como
projeto algo que desconsidera nossa natureza humana mais elementar e animal e, por isso, não
consegue cumprir as metas de uma sociedade civilizada.

O sentimento destacado por Freud se configura, como reflexo de um desamparo ético


– de significação da vida – oriundo daquele tipo de relação que estabelecemos com o mundo
desde, mais fortemente, a modernidade. O projeto moderno era o de edificar o sujeito
civilizado em bases de um conhecimento seguro, o de garantir um sujeito moral e deixar para
a posteridade o sonho de uma sociedade em progresso. Sabemos que não vivemos em tal
sociedade, a questão de Adorno/Horkheimer acerca da contradição contemporânea nos aponta
para tal afirmação. Vimos, ainda, às contradições do ideal moderno e sabemos que tal
promessa de emancipação não pode se efetivar nos termos propostos. A relação
homem/natureza se modifica nesse processo da razão subjetiva, promovendo a alienação do
sujeito. Assim, a própria formação cultural – constituinte do sujeito em sociedade – se
encontra prejudicada. Se nossa identidade, nos moldes daquela segunda natureza, é
constituída por intermédio da cultura, então as novas estruturas sociais formadas desde uma
racionalidade instrumental comprometem essa formação. A cultura também se entrega a
94

lógica da reprodução. O que acarreta estarmos sempre em contraposição a uma plena


formação. Segundo Petry,

Adorno mostra que no lugar de uma verdadeira formação cultural, ideal vivido pelos
iluministas, está a semiformação, estendida a várias camadas sociais com o intuito
de promover a ―cultura‖. Tal tendência é a negação de uma verdadeira formação
cultural, que se realmente vivenciada pelos indivíduos, poderia torná-los livres e
capazes de se autodeterminar. Isso porque a formação cultural, nas palavras de
Adorno, ―nada mais é que a cultura tomada pelo lado de sua apropriação subjetiva‖,
ela consiste no modo como a consciência apreende os bens culturais. A
semiformação se apresenta, à primeira vista, como uma quase-formação, ou seja,
como precedente daquela que seria uma formação cultural integral ou completa.
Entretanto, ela constitui justamente sua antítese, e não a ausência de cultura. Adorno
diz: ―no clima da semiformação, os conteúdos objetivos, coisificados e com caráter
de mercadoria da formação cultural perduram à custa de seu conteúdo de verdade e
de suas relações vivas com o sujeito vivo, o qual, de certo modo, corresponde à sua
definição‖. Ou seja, a semiformação, embora se relacione com os conteúdos que
fazem parte da formação cultural, trata-os de modo inadequado, impedindo sua
apropriação por parte dos indivíduos. (2011b, p. 43)

Adorno nomeou indústria cultural a comercialização e a massificação da cultura –


aqui entendida enquanto obra de arte. Para o autor, as consequências de tal industrialização se
efetivam na própria falha da formação individual. Trata-se, em outras palavras, de uma faceta
do mundo burguês que o filósofo definiu como mundo administrado, em alusão à
burocratização do mundo mercantil. A cultura transformada em indústria expressa aquele
sintoma de uma razão emancipatória, levada a cabo desde as premissas do Iluminismo de uma
racionalidade científica. A formação humana que antes era garantida por meio de uma relação
de experiência com o mundo e, assim, por intermédio da cultura, agora se efetiva girando na
mesma órbita daquela relação deturpada de uma razão nos moldes do esclarecimento. A
emancipação, nestes termos, se torna um objetivo impossível, dado que as próprias bases de
sua fomentação estão viciadas ao entorno daquela operação racional mecânica e tecnicista. A
cultura, engolida pela industrialização, serve como reprodutora e fortalecedora da ordem
vigente. Segundo o que nos aponta Freud (2010), vivemos em constante repressão de nossos
impulsos. Assim, para a manutenção social, é preciso encontrar maneiras de sublimação que
sejam efetivas e aceitas socialmente. A cultura deveria servir, segundo Adorno, para esta
finalidade, servindo tanto para uma formação humana e, também, como canalizadora, como
espaço de sublimação. Todavia, neste regime em que vivemos, a cultura se torna mais uma
mercadoria entregue à ganância burguesa. Logo, entra na mesma lógica da reprodução que os
demais bens de consumo. Acaba por perder seu potencial criador na medida em que se torna
sempre a mesma, sempre igual e repetida. Para Pagni e Silva (2007, p. 250),
95

como afirmam Adorno e Horkheimer: ―A Industria Cultural não sublima, mas


reprime‖ (Ibd., p. 131). Por esse motivo, ela age sobre a consciência fragilizada que
reprime os instintos e as paixões, fazendo com que os indivíduos lhes dêem vazão
somente nos momentos autorizados, quando o princípio de dominação da sociedade
em que vivem não é ameaçado por eles. A Indústria Cultural age também sobre o
objeto de repressão, os instintos e as paixões humanas, tentando reconciliá-los com a
racionalidade que preside a ordem vigente, dirigindo-os ao consumo, com
propagandas que prometem fazer com que os indivíduos encontrem a satisfação das
fantasias mais secretas. A convergência entre Indústria Cultural e propaganda deixou
os instintos e às paixões à mercê da manipulação.

A falha no mecanismo de sublimação, aliada a nossa crescente incapacidade crítica,


gera aquela angústia descrita desde a leitura adorniana do estudo de Freud. Esta acarreta,
ainda, uma violência desenfreada, uma vez que as energias mal canalizadas eclodem em
barbárie cega e irracional. Além disso, a formação humana, dissolvida pela industrialização
da cultura, rompe com o último resquício daquela razão objetiva que se efetivava pela
experiência estética20. Nestes termos, a formação cultural perde seu caráter universal e se
desloca ao indivíduo, em seu egocentrismo tão marcante na atualidade. Portanto, a formação é
rebaixada ao nível de uma semiformação. Semi na medida em que apenas reproduz, sem
espaço ao novo, ao interno, ao individuador. Não forma por inteiro, deixa de lado sua
dimensão humana. Segundo Adorno/Horkheimer (1985, p. 144–145),

na indústria, o indivíduo é ilusório não apenas por causa da padronização do modo


de produção. Ele só é tolerado na medida em que sua identidade incondicional com
o universal está fora de questão. Da improvisação padronizado no jazz até os tipos
originais do cinema, que têm de deixar a franja cair para serem reconhecidos como
tais, o que domina é a pseudo-individualidade. O individual reduz-se à capacidade
do universal de marcar tão integralmente o contingente que possa ser conservado
como o mesmo.

A massificação pretendida por esta indústria é a fórmula para a padronização dos


indivíduos. Tal padronização não é impositiva, mas sim fruto de nossa própria condução
social desde uma meta racional que previa, justamente, a máxima mecanização do processo de
pensamento e a morte das experiências sensíveis da alma, apontadas como fantasias míticas
que conduziam ao erro. A idiotização do sujeito é o reflexo desta maquinaria de produção
cultural que construímos. Nas palavras de Adorno e Horkheimer (1985, p. 118),

20
A experiência estética se configura para Adorno como sendo aquela formação por meio da cultura genuína,
não massificada, capaz de transportar o indivíduo para uma reflexão e experiência de mundo para além da
racionalidade instrumental. Trata-se de uma interação objetiva, não conceitual, com o mundo que permite uma
formação mais completa do indivíduo.
96

para o consumidor não há nada mais a classificar que não tenha sido antecipado no
esquematismo da produção. A arte sem sonho destinada ao povo realiza aquele
idealismo sonhador que ia longe demais para o idealismo crítico. Tudo vem da
consciência, em Malebranche e Berkeley da consciência de Deus; na arte para as
massas, da consciência terrena das equipes de produção. Não somente dos tipos das
canções de sucesso, os astros, as novelas ressurgem ciclicamente como invariantes
fixos, mas o conteúdo específico do espetáculo é ele próprio derivado deles e só
varia na aparência. Os detalhes tornam-se fungíveis. A breve sequência de
intervalos, fácil de memorizar, como mostrou a canção de sucesso; o fracasso
temporário do herói, que ele sabe suportar como good sport que é; a boa palmada
que a namorada recebe da mão forte do astro; sua rude reserva em face da herdeira
mimada são, como todos os detalhes, clichês prontos para serem empregados
arbitrariamente aqui e ali e completamente definidos pela finalidade que os cabe no
esquema. Confirmá-lo, compondo-o, eis aí sua razão de ser. Desde o começo do
filme já se sabe como ele termina, quem é recompensado, e, ao escutar a música
ligeira, o ouvido treinado é perfeitamente capaz, desde os primeiros compassos, de
adivinhar o desenvolvimento do tema e sentir-se feliz quando ele tem lugar como
previsto. O número médio de palavras da short story é algo que não se pode mexer.
Até mesmo as gags, efeitos e piadas são calculados, assim como o quadro em que se
inserem. Sua produção é administrada por especialistas, e sua pequena diversidade
permite reparti-las facilmente no escritório. A indústria cultural desenvolveu-se com
o predomínio que o efeito, a performance tangível e o detalhe técnico alcançaram
sobre a obra, que era outrora o veículo da Idéia e com essa foi liquidada.

A potência emancipatória da cultura é aniquilada nesta industrialização. Voltamos ao


conformismo descrito por Kant (2009). Gozamos satisfeitos da mesmice, pelo conforto do não
raciocínio, não pensamento, da não reflexão. Ainda nos deixamos guiar por tutores, de
maneira passiva somos entregues à padronização dos gostos e desejos. A própria noção de
felicidade se afunda nesta lógica do consumo; vendem-nos felicidade em diversos formatos,
seja no sonho da casa própria, na família feliz da propaganda de margarina ou numa simples
ida ao cinema. Felicidade virou mercadoria na medida em que o prazer se tornou questão de
sobrevivência nesta sociedade envolta em constante repressão mal canalizada. O problema é
que mesmo o lazer reproduz as mesmas condições sociais que provocam o mal estar, girando
num ciclo vicioso que impede a efetivação de uma emancipação. Conforme os filósofos
(1985, p. 144),

sob o poder do monopólio, toda cultura de massa é idêntica, e seu esqueleto, a


ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a se delinear. Os dirigentes não
estão mais sequer muito interessados em encobri-lo, seu poder se fortalece quanto
mais brutalmente ele se confessa de público. O cinema e o rádio não precisam mais
se apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a
utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente
produzem. Eles se definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos
rendimentos de seus setores gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade
social de seus produtos.
97

Ao utilizar-se da finalidade monetária como pretexto para uma reprodução vazia em


conteúdo, a indústria cultural deixa cair a máscara da boa intencionalidade e se revela como
totalmente imersa naquela lógica da utilidade, do cálculo e da ganância. Ainda mais
reveladora é nossa aceitação desta ―finalidade‖ como sendo de fato justa, mesmo que afete
nossa própria constituição. Que as novelas reproduzem e criam conceitos deturpados de
relacionamentos amorosos e definem uma padronização familiar todos sabemos, mesmo
assim penetramos, por vontade própria, na esteira deste ―lazer‖ e aceitamos, ingenuamente,
que este formato cultural seja acessado por crianças em plena fase de desenvolvimento moral.
A escolha que temos, em última instância, é simplesmente desligar nossas televisões e, assim,
negarmos, resistirmos, a esta alienação cultural. Mas ao contrário disso, nos entregamos a
este ―prazer‖ como se nada mais pudesse ser feito. Não nos valemos de nossa liberdade de
escolha, porque ela é, na verdade, ilusória. Quem não consome a indústria cultural se sente
fora do jogo das relações sociais e talvez tenha dificuldade em encontrar outras formas de
sublimação. Não pelo fato destas formas outras não existirem, mas antes porque fogem de
nossa zona de conforto interpretativo. No mundo da indústria cultural sempre sabemos o final
do filme desde o começo, reconhecemos a mocinha e o herói, o bom e o mau. Aquele sujeito
idealizado pelo Iluminismo encontra aqui uma barreira para seu cumprimento. Neste jogo de
formação se torna impossível ao sujeito aquele reconhecimento com o mundo, implicado no
movimento de exteriorização e volta para si. Agora, já no espaço da exteriorização o sujeito se
perde na massificação padronizadora. Segundo Trevisan (2002, p. 77-78)

o diagnóstico da modernidade estética de Adorno detecta uma interrupção na


dialética idealizada, uma paralisação no momento da exteriorização, dado que o
sujeito se perdeu e não mais se tornou capaz de recuperar a si mesmo. A indústria
cultural, a ciência, o positivismo e os demais produtos do esclarecimento se
encarregaram de promover essa dispersão do espírito. Ao voltar a si próprio, ele não
se reconhece mais, porque encontra-se como que intoxicado pelas alienações
culturais. Como resultado, ―O que poderia ser outro é feito igual. Tal é o veredito
que estabelece criticamente os confins da experiência possível. A identidade de tudo
com tudo é paga com o não haver nada podendo ser ao mesmo tempo idêntico a si
mesmo‖ (Adorno, 2000, p. 28). O sujeito não se reencontra mais no objeto, há um
estranhamento com o mundo. O conhecimento que surge do giro fenomenológico,
no sentido da volta do espírito a si mesmo, resulta como não verdadeiro pois não
consegue capturar o outro, o não idêntico a si mesmo ou as diferenças.

Se já não é possível esta volta a si, no sentido de formação individual, então a


preocupação de Adorno em relação ao caráter engessador da indústria cultural se revela
importante ao tema educacional. Ora, se a formação humana quebra-se nesta operação então
faz sentido pensar que é a própria educação culpada pela ―fabricação‖ de sujeitos
98

endurecidos, sentimentalmente e reflexivamente. Sujeitos estes que foram capazes do projeto


nazista. Todos nós fazemos parte desta racionalidade, na medida em que estamos imersos
exatamente na mesma lógica do mundo administrado que Adorno denunciou. Estamos sempre
a um passo da barbárie, por mais aterrorizador que seja pensar nisso. Nossas repressões
diárias podem eclodir, a qualquer momento em violência. Peço licença ao leitor para fugir um
pouco do academicismo e trazer aqui um exemplo desta violência por meio de uma história –
que bem poderia ser verídica – ao qual sempre recorro para explicar a questão.

Pensemos que todos os dias precisamos nos descolocar de casa para o trabalho. Para
este deslocamento entregamos quatro horas diárias, duas de ida e duas de volta. São ao final
do dia duas conduções que precisamos tomar para chegar ao trabalho e retornar ao conforto
de nosso lar. A história bem poderia ser real, pois neste meu exemplo o ônibus é sempre
lotado. Nossa protagonista, que aqui chamaremos de Joana, precisa ficar de pé, igual a
várias outras pessoas que também necessitam deste transporte. A passagem é cara e dona
Joana não sente que o valor faz jus ao serviço oferecido. Joana se sente desrespeitada
sempre que precisa se submeter a esta degradante forma de chegar a seu trabalho. Todos os
dias o motorista corre muito, pois precisa cumprir seu horário que, por sinal, está sempre
atrasado. A cada freada brusca, frequente já que o trânsito de um grande centro é bastante
intenso, dona Joana é esmagada por pessoas desavisadas. Joana mesmo já caiu algumas
vezes. O ônibus é velho, o motorista estressado, a passagem é cara. Mas Joana precisa
chegar ao trabalho e por isso se cala e se reprime. Até que um dia o ônibus quebra, deixando
todos no meio de uma via movimentada. O ônibus para, todos irão se atrasar para o
trabalho. O sentimento que aflora em dona Joana é de uma raiva quase descontrolada. Ela
sabia que isso um dia iria acontecer, pois a manutenção do veículo claramente deixava a
desejar. Mas ela se cala. Eis que uma voz ao fundo começa a reclamar com o motorista.
Outras vozes se somam a esta e aos poucos todos os passageiros estão gritando e expondo
seu descontentamento. Dona Joana vai se enchendo desse sentimento e resolve colocar para
fora sua indignação. Mas o motorista não está preocupado com nenhum daqueles
passageiros. Ele desce sem dar explicações a ninguém e mantém as portas fechadas. A
revolta gerada entre os passageiros é tão grande que um deles, em certo momento, tomado
pela raiva, quebra um vidro, com o intuito de sair do ônibus. Imediatamente, um a um, os
passageiros sentem a necessitada de externar sua revolta. Dona Joana não é diferente. Ela se
sente desrespeitada todos os dias naquele espaço, por aquele motorista. Assim, ela também
passa a depredar o ônibus, como forma de concentrar sua raiva, a tanto reprimida.
99

Neste exemplo, percebamos que não estamos tratando de vândalos profissionais ou


mesmo de pessoas de caráter duvidoso. Pelo contrário, são figuras cotidianas que bem
poderiam representar qualquer um de nós. Uma repressão mal canalizada eclode em violência,
como última instância de sublimação. O que dona Joana experimentou foi exatamente este
processo. Sua válvula de escape se efetivou como selvageria. Os mecanismos subjetivos de
nossa razão se reforçam nesse cotidiano, onde o ato de não pensar acaba por ser ferramenta
para que não se desestabilize o efetivado. Segundo Pagni e Silva (2007, p. 250),

para os frankfurtianos, tais mecanismos subjetivos se encontrariam nos modos


como, ainda hoje, os indivíduos aderem cegamente ao estabelecido. Modos esses
que trazem a marca da indiferença ao sofrimento alheio, bem como uma reação
violenta contra os aspectos que recordam a natureza recalcada. É na sua
explicitação, por meio do pensamento crítico, que Adorno e Horkheimer (1986)
denunciam o caráter corrosivo da Industria Cultural para a própria cultura, bem
como a acentuação da repressão exigida pela civilização, contribuindo para a
realização do oposto: uma tendência à barbárie.

A preocupação de Adorno e Horkheimer com os motivadores psicológicos da barbárie


revela a preocupação de que Auschwitz jamais volte a se repetir. Afinal, as condições que
geram a eclosão de violência bárbara ainda se encontram no núcleo de nossa pseudo
formação. Pensar que nenhum de nós seria capaz de cometer as atrocidades da segunda guerra
mundial é ingênuo. O ―mostro‖ nazista não era mais do que um cidadão comum, envolto na
mesma racionalidade da atualidade. O egocentrismo contemporâneo aliado ao objetivismo
social modelador são resultados claros da ruptura formadora ofertada por uma cultura
industrializada. Para Adorno (1992, p. 119)

a debilidade intelectual, estabelecida como princípio universal, aparece como força


de viver. A maneira administrativa e formalista de resolver problemas, a separação
em compartimentos de tudo o que, por seu sentido, é inseparável, a insistência
teimosa numa opinião contingente na ausência de qualquer fundamento, em suma, a
prática de reificar todo traço de uma formação malsucedida do Eu, retirando-o do
processo da experiência e afirmando-o como último: ―É assim que eu sou‖, é
suficiente para conquistar posições inexpugnáveis. Pode-se ter tanta certeza do
assentimentos dos outros, igualmente deformados, quanto da vantagem própria. Na
cínica reinvindicação do defeito próprio está vivo o pressentimento de que, no
estágio atual, o espírito objetivo liqüida o subjetivo.

O outro, nesta relação, não é um outro de mim mesmo. Passa a ser um outro
dissociado e, portanto, encarado como menos humano. Aquele a ser dominado, mesmo numa
relação formalizada do neoliberalismo, já que é sempre mais natureza e deve ser medido
conforme se faz útil nesta relação. Os fundamentos deste comportamento não são racionais,
100

como se poderia esperar. Justamente recaem sobre nossa própria animalidade desde nossa
segunda natureza, revelando, mais uma vez, aquele ciclo vicioso do qual o Iluminismo não
conseguiu escapar. A contínua reprodução e cópia do igual, do mesmo, repete este processo
falho. Na indústria cultural o espaço para o novo é suprimido em prol da boa e velha
manutenção do status quo. Para os filósofos da Dialética do Esclarecimento (1985, p. 126),

essa mesmice regula também as relações com o que passou. O que é novo na fase da
cultura de massas em comparação com a fase do liberalismo avançado é a exclusão
do novo. A máquina gira sem sair do lugar. Ao mesmo tempo que já determina o
consumo, ela descarta o que ainda não foi experimentado porque é um risco. É com
desconfiança que os cineastas consideram todo manuscrito que não se baseie, para
tranquilidade sua, em um best-seller.

Vendemos e consumimos, ao final, nossa própria acomodação. Não somos


persuadidos àquela menoridade denunciada por Kant. Pelo contrário, somos a própria energia
vital que alimenta esta maquinaria. Adorno, ao realizar este diagnóstico volta-se para pensar
as possibilidades de quebra deste processo tão maligno às nossas relações sociais. A
massificação e a homogeneidade do pensamento, na indústria cultural, não só inibem o espaço
criativo do novo, como travam a própria possibilidade de uma formação voltada para além
daqueles parâmetros de uma razão subjetiva, cientificista, instrumentalizada. Para Tomazetti
(2006, p. 07),

a cultura transformada num grande negócio a serviço dos poderosos transformou-se


numa notável forma de legitimação e afirmação do existente. A arte recebeu o status
de uma mercadoria a ser consumida por milhares de pessoas, incapazes de
reconhecerem seu verdadeiro significado. A indústria cultural tem o objetivo de
determinar, de antemão, tudo aquilo que os indivíduos devem fazer, ler, consumir e,
até mesmo, sentir.

A regulação social, nestes termos, é a deturpação do anseio pelo coletivo, aniquilando


as individualidades em prol de um falso sentimento de pertencimento. A consequência desta
auto subordinação é a crescente incapacidade de nos rebelarmos contra aquilo que nos
aprisiona, como naquela narrativa iluminista acerca dos conhecimentos denunciados como
míticos e religiosos. A barbárie que se efetiva nestas condições é a expressão da dominação
contemporânea, onde a formalização das relações desiguais ganha justificativa torpe e
irrefletida. A cultura disseminada educa não para as finalidades universais de uma, longínqua,
filosofia especulativa, mas sim para os meios de se atingir finalidades egoístas e sem
valoração ética. Mesmo os anseios mascarados como coletivos não fogem a esta regra. O que
101

está em jogo é sempre a satisfação pessoal. A regulação da vida humana perdeu seu valor
moral, retornando ao estágio violento que deveria ter sido freado pelo processo civilizatório.

Essa percepção nos é propícia para pensarmos no conceito que guia esta pesquisa. A
problematização do conceito de emancipação destacou, até aqui, sua impossibilidade nos
termos em que fora cunhado pelo Iluminismo. Vimos também que as pedagogias críticas se
voltam a um objetivo educacional pautado na esperança de uma efetiva transformação social.
Nesse sentido, o conceito de emancipação se constituiu, nas pedagogias críticas, como uma
dupla potencialidade. É, primeiro, uma necessária suposição no processo educacional e,
segundo, uma meta a ser atingida. Emancipar é o mesmo que conscientizar para a práxis
transformadora. Todavia, essa práxis social está viciada, segundo Adorno, perdida em sua
própria contradição. A mudança não tem espaço nesta sociedade marcada pela mentalidade
industrial e pela cultura massificada. Logo, poderíamos nos indagar sobre os rumos que a
educação deve seguir neste cenário onde as condições objetivas da sociedade estão
engessadas pela semiformação promovida pela indústria cultural e sua mentalidade
instrumental. Afinal, para que se volta o objetivo educacional na contemporaneidade?

4.2 EDUCAÇÃO PARA A REFLEXÃO

A educação não escapa a esta racionalidade subjetiva à qual a crítica de Adorno e de


Horkheimer se voltam. O aparente exagero dos autores parece apontar para um profundo
pessimismo em relação à humanidade. Porém, apesar de marcada por essa trágica conclusão a
que chegam os autores, a crítica à modernidade não se encerra numa postura conformista.
Para Adorno, a educação, enquanto espaço de reprodução cultural, ainda possui aparatos
suficientes para frear as consequências danosas da instrumentalização da razão, enquanto
promovedora de consciência crítica. Não exatamente a mesma conscientização que norteia os
rumos da educação nas pedagogias críticas. Seria impossível, para Adorno, nos deslocarmos
para fora da razão subjetiva. Porém, é possível comprometer-se com a reflexão para além das
imposições do mundo administrado. Percorreremos agora o desafio da educação
contemporânea, desde a perspectiva adorniana, para dar suporte a esta problematização
conceitual à qual nos debruçamos.
102

Se vivemos em uma conjuntura social que abertamente entrega sua capacidade


reflexiva em prol da uniformização, que nega sua relação humana em detrimento da
coisificação de si e do outro e que se encerra naquela falha formativa apontada por Adorno;
então, a violência experimentada na atualidade parece ainda mais assustadora, na medida em
que se formaliza, legitimando-se por qualquer razão que minimamente lhe pareça aceitável.
Os campos de concentração e extermínio da segunda guerra mundial são exemplos extremos
dessa banalização da violência. Para Trevisan (2002, p. 78),

a estrutura da sociedade não apenas permitiu silenciosamente o surgimentos de tais


patologias político-sociais, mas colaborou e lhes serviu de alicerce. Tais situações
encontraram raízes no próprio conceito de formação cultural e, por isso, a dialética
do esclarecimento aponta para a sobrevivência de conteúdos mitológicos no
funcionamento do coração da racionalidade. Depois de Auschwitz, não é mais
possível falar no conceito de Bildung a não ser pela via negativa, ou seja a partir da
noção de semiformação socializada. Afinal, aqueles que deveriam justamente
contrariar, decodificar e resistir ao fenômeno do autoritarismo são testemunhas
passivas de seu sucesso.

A expressão bárbara de Auschwitz é a representação máxima do caminho que a


educação deve ajudar a desviar. E para isso, o sujeito precisa, primeiro, tomar consciência dos
motivos de sua falha. A crítica ao esclarecimento, assim, é a primeira ferramenta educacional
na luta pela formação humana. Adorno entende a impossibilidade de efetivação da
emancipação nos moldes do Iluminismo mas não abandona esta meta. Assim, como destaca
Pucci (1994), a educação ganha um caráter utópico, na medida em que se apresenta como
horizonte não possível em sua plenitude. Mesmo assim, emancipar deve manter-se enquanto
meta, salvando o otimismo de uma melhora nas relações humanas. Em outras palavras, é
preciso que a educação produza resistência frente aos problemas de uma sociedade da
semiformação. Afinal, como descreveu Maar (1995, p.21),

a indústria cultural reflete a irracionalidade objetiva da sociedade capitalista tardia,


como racionalidade da manipulação das massas. A indústria cultural obscurece por
razões objetivas, aparecendo como uma função pública da apropriação privada do
trabalho social. Na continuidade de seu próprio desenvolvimento, o esclarecimento
se inverte em obscurantismo e ocultamento. Para Adorno, a indústria cultural
corresponde à continuidade histórica de condições sociais objetivas que formam a
antecâmara de Auschwitz, a racionalização da linha de produção industrial – seja
fordista, seja flexível – do terror e da morte.

É preciso posicionar-se frente a esta continuidade que permite que as condições da


loucura coletiva se efetivem novamente. Por isso Adorno é enfático em sua afirmação de que
―a exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação‖ (1995, p.
103

119). Sua crítica à massificação instrumental resulta em uma saída estética como caminho de
uma educação voltada para valores éticos. Afinal, ―o princípio fundante da racionalidade
instrumental, a saber, da autoconservação (sese conservare) é abandonado pela arte, pois ela
não se insere de forma direta no plano das necessidades humanas‖ (PETRY, 2014, p. 400).
Enquanto resguarda sua relação mitológica com o mundo a arte preserva aquela relação de
contemplação que não entra na lógica rígida da cientificidade. Conforme Petry (2014, p. 399),

na Teoria Estética, Adorno procura mostrar como a arte, ao mesmo tempo em que se
origina do mundo empírico, dele se separa no momento mesmo em que se constitui,
negando sua própria origem. Assim, a arte se mostra superior à realidade quanto
maior for a negatividade com que a apresenta. Como afirma Adorno, ―as obras de
arte destacam-se do mundo empírico e suscitam um outro com uma essência própria,
oposto ao primeiro como se ele fosse igualmente uma realidade‖ (ADORNO, 2008b,
p. 12). As obras de arte, portanto, são capazes de negar a realidade objetiva, mas não
de forma integral, pois tal recusa em participar do mundo empírico se manifestará
em sua forma. Quanto mais separada da sociedade, mais esta se fará presente na
obra por meio de sua estrutura.

Essa possibilidade, sempre parcial, estética de uma dialética negativa visa resguardar e
aflorar aqueles traços da razão objetiva que foram escrachados pela modernidade. Se é
impossível sair da lógica da razão subjetiva para apontar caminhos seguros de uma melhoria
real e totalizante da sociedade, pelo menos é possível trazer à tona algumas reflexões dessa
nossa tendência comportamental. Assim, segundo Adorno, estaríamos resistindo, mesmo que
em pequena medida, ao modelo vigente. O primeiro passo para uma educação preocupada
com o objetivo de que jamais Auschwitz volte a se repetir, precisa tornar, para si, consciente,
em termos freudianos, os motivadores internos que permitiram tal violência. Segundo Adorno
(1995, p. 121),

é preciso reconhecer os mecanismos que tornam pessoas capazes de cometer tais


atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se
tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma
consciência geral acerca desses mecanismos. Os culpados não são os assassinos,
nem mesmo naquele sentido caricato e sofista que ainda hoje seria do agrado de
alguns. Culpados são unicamente os que, desprovidos de consciência, voltaram
contra aqueles seu ódio e sua fúria agressiva. É necessário contrapor-se a uma tal
ausência de consciência, é preciso evitar que as pessoas golpeiem para os lados sem
refletir a respeito de si próprias.

É preciso, pois, que a educação se comprometa com esta atividade. A única saída
possível para evitar a contínua degradação humana, em nível de sua sociabilidade, é a tomada
de consciência desta própria degradação. Primeiramente, antes de tudo, é necessário que se
104

reconheça a contradição nos mesmos moldes que para a psicanálise o paciente precisa
reconhecer sua condição; é preciso que a sociedade seja capaz de elaborar seu próprio
diagnóstico. Somente a partir daí é que, talvez, possamos frear as drásticas consequências da
super valorização da razão instrumental. A educação que resgata sua dimensão estética está a
serviço desta finalidade. Ela visa fugir da lógica operante como forma de dar subsídios a uma
formação cultural diferente, com outros elementos, daquela ofertada pela indústria cultural.
Conforme Pagni e Silva (2007, p. 263-264),

o pensamento de Adorno fornece elementos, assim, para pensarmos a arte de educar


e nos problemas que a afrontam, no presente, tais como os da inaptidão da
experiência, do indeterminismo da aprendizagem significativa e da submissão da
Educação aos jogos do poder vigentes. Diante desses problemas, restaria ao labor
artístico, assim como à Filosofia, tentar elaborar o terror e o medo suscitados pela
incidência do passado sobre o presente a partir das experiências com o mundo e
consigo mesmo, às quais pesquisadores e professores deveriam estar atentos,
tornando-as objetos de reflexão nessas atividades. Eles poderiam aprender com a
Filosofia, conforme postula Adorno (1995a, p. 128-129), que o medo não deveria ser
reprimido, mas assumido e expresso no e pelo processo de pensar. Isso significaria
que o educador deveria tentar compreender a experiência trágica que ele e o aluno
travam com o mundo (interno e externo) e pensar a experiência educativa de que a
relação pedagógica é portadora. Nessa relação, também o educando aprenderia um
pensamento diferente do seu, capaz de engendrar outra atitude reflexiva e um
pensamento autônomo sobre o mundo existente, assumindo as conseqüências do
pensar e agir. A experiência educativa do aluno, assim, processar-se-ia por meio não
da identificação dos conceitos produzidos pelo já pensado pelo educador e na
sociedade, e sim do reconhecimento da complexidade e a dinâmica que envolvem o
pensar autônoma e criticamente o mundo e a si mesmo, visando gerar, pela
comunicação do diferenciado, uma tensão relativa ao habitual e ao instituído.

Observa-se que existe um papel social e formativo atribuído à arte, desde a análise de
Adorno. Uma educação estética não deve ser confundida com uma educação artística,
necessariamente. A educação estética defendida por Adorno é aquela que resgata a experiência
livre e subjetiva fornecida pela obra de arte como modelo de formação. Trata-se de uma
educação que não se permite engolir pela lógica da cientificidade, onde tudo precisa ser
catalogado e enquadrado em categorias muito bem definidas. A estética, neste caso, se efetiva
como o espaço do novo e da experimentação, justamente podados na indústria cultural. Assim
o conceito de emancipação em Adorno ganha uma nova roupagem, na medida em que se
reconcilia com dimensões objetivas abandonadas pelo movimento do esclarecimento. Se
configura como uma emancipação em seu devir, enquanto potencialidade. Não importa,
necessariamente, se está ou não passível de uma concretude plena. O que importa é o processo
de sua busca, enquanto resulta em pequenas fugas da mentalidade mecanicista. O que Adorno
105

entende enquanto pretensão educativa não é outra coisa se não a humanização de nossas
relações pessoais.

com a educação contra a barbárie no fundo não pretendo nada além de que o último
adolescente do campo se envergonhe quando, por exemplo, agride um colega com
rudeza ou se comporta de um modo brutal com uma moça; quero que por meio do
sistema educacional as pessoas comecem a ser inteiramente tomadas pela aversão à
violência física. (ADORNO, 1995, p.165)

Assim se configura a postura realista, por assim dizer, de uma teoria educacional nos
moldes de Adorno. Emancipar é o mesmo que ser capaz de refletir e de tensionar as verdades
prontas. Todavia, é válido lembrar que o simples ato de reflexão não garante a educação
humana perseguida pelo filósofo.

a reflexão pode servir tanto para à dominação cega como ao seu oposto. As reflexões
precisam portanto, ser transparentes em sua finalidade humana. [...] De resto,
acredito também que um ensino que se realiza em formas humanas de maneira
alguma ultima o fortalecimento do instinto de competição. Quando muito é possível
educar desta maneira esportistas, mas não pessoas desbarbarizadas. (idem, p.161)

Percebe-se, então, que existe, para Adorno, uma clara valorização da vida e da
dignidade humana como fim último. É por isso que não basta exercer qualquer reflexão de
maneira descuidada. A educação, em seu papel de formação, deve voltar-se para a reflexão
desde esta finalidade, a saber: a de considerar o outro em sua humanidade. A rígida educação
competitiva foge a esta meta. Assim, a dimensão estética da educação assegura que ―a
experiência com a obra de arte autêntica é capaz de modificar a percepção que o indivíduo
tem da realidade. Essa seria, incontestavelmente, uma qualidade essencial do processo
formativo voltado para a emancipação dos sujeitos em uma sociedade marcada pela
reificação‖ (PETRY, 2014, p. 398).

Não obstante é preciso destacar que a educação precisa resguardar seu papel
civilizatório, de ser um mecanismo social que modela os sujeitos para que se encaixem na
sociedade. Se parece uma brutalidade considerar tal finalidade à educação, devemos lembrar
que sem a internalização das regras sociais a vivência em grupo se faria insustentável. Logo, a
educação precisa encontrar a medida entre sua dupla missão. De um lado, precisa adaptar os
indivíduos. De outro, precisa ser capaz de permitir a constituição de suas individualidades.
Para Adorno (1995, p. 143),
106

a educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo de adaptação e não


preparasse os homens para se orientarem no mundo. Porém ela seria igualmente
questionável se ficasse nisto, produzindo nada além de well adjusted people, pessoas
bem ajustadas, em conseqüência do que a situação existente se impõe precisamente no
que tem de pior. Nestes termos, desde o início existe no conceito de educação para a
consciência e para a racionalidade uma ambigüidade. Talvez não seja possível superá-
la no existente, mas certamente não podemos nos desviar dela.

A difícil tarefa educacional é a de vencer a ambiguidade entre suas duas propostas


constituintes. Como salienta Adorno, talvez tal superação não seja possível. Assim como,
talvez, não possamos gozar jamais de uma plena emancipação. As pedagogias críticas não
concordariam com este caráter negativo da reformulação conceitual operada por Adorno, nem
mesmo com sua tese de que, dada a impossibilidade de reverter as condições objetivas da
cultura vigente, seria necessário uma volta a si mesmo; ou seja, a crítica da própria
subjetividade. A resistência proposta pelo filósofo frankfurtiano não tem a positividade da
síntese marxista. Diferente dos filósofos das pedagogias críticas, Adorno não considera
naquele terceiro momento da dialética. A síntese de uma sociedade de paz e de boas relações
sociais não encontra possibilidade de efetivação, pelos mesmos motivos que a emancipação
Iluminista não é possível. A abordagem dada ao conceito desde as pedagogias críticas não se
envolve na mesma problemática apontada por Adorno. Segundo estas pedagogias, a
contradição social precisa ser superada. Adorno justamente negaria tal superação, uma vez
que a contradição faz parte daquele movimento dialético que gera identidade. Todavia, é
obviamente preciso controlar os malefícios desta dupla relação entre as polaridades positiva e
negativa. Porém, lutar contra essa tensão nos termos de uma superação seria o mesmo que
empregar contra a violência uma mesma dose de barbárie. Evitar a contradição é entregar-se
a fantasia iluminista de que seria possível desfazer-se do conhecimento mítico. Ao contrário
de negar nossa própria condição humana, cheia de qualidades e defeitos, precisamos
justamente nos esclarecermos sobre ela. É preciso, segundo Adorno (1995), tornar consciente
nossa frieza e nossa barbárie, bem como os mecanismos de canalizar estes impulsos. É assim
que para Adorno a dialética é negativa, sem a síntese, parando na potencialidade da crítica
para uma ruptura que jamais será plena ou salvacionista. Para Trevisan (2002, p.79-80),

Adorno radicaliza a dimensão negativa do pensamento, dado que seu diagnóstico


revela que Hegel não havia levado esse aspecto da dialética às últimas
conseqüências. Por isso a contra-imagem que melhor traduz, em sua obra, a
preocupação com o papel desempenhado pela formação cultural é a dos campos de
concentração de Auschwitz. ―A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira
de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não
ser possível nem necessário justificá-la‖ (Adorno, 1995, p. 119). Esta negação de
uma imagem idealizada da formação é bem a expressão estética do pensamento que
107

opera pela via negativa, no sentido de crítica e resistência ao instituído. Ela


representa a humanidade aprisionada ao fundo da caverna, por obra do pensamento
tecnocrático, e sem possibilidades de sair das sombras deste universo. Auschwitz
causa um impacto desconstrutivo muito forte nas mentalidades, porque usa um
efeito estético de choque – a utopia negativa –, colocando a nu a hipocrisia burguesa
recoberta pelo manto do ser moderno de hábitos cultivados.

A via escapatória apresentada por Adorno, portanto, não é mais do que uma tomada de
posição de resistência e de crítica ao instituído, com a diferença, em relação às pedagogias
críticas, de não pautar o objetivo máximo da educação naquela síntese de uma nova
sociedade. A proposta de Adorno tem sua limitação marcada em sua postura negativa. Sua
convicção de que nossa estrutura racional propiciou o comportamento nazista motivou sua
teoria educacional. Trata-se de uma postura teórica que visa uma prática concreta na
realidade, uma resistência pontual para um problema específico. Era preciso frear os
mecanismos que permitiram tal comportamento bárbaro contra outros seres humanos. Assim,
a emancipação se apresenta como a própria caminhada humana nesta finalidade, para uma
autonomia possível frente ao jogo da contradição a que estamos submersos. A diferença entre
Adorno e os autores das pedagogias críticas não se encerra na dicotomia positivo e negativo,
otimista e pessimista. A função da educação guarda uma sútil diferenciação que não deve
escapar à nossa análise. O conceito de emancipação, a meta da conscientização, passa antes
por uma crítica e renasce revisitada e autoconsciente. Como intentamos demonstrar, a
proposta educacional adorniana leva em consideração o conceito de emancipação, formulando
uma crítica de sua estrutura e denunciando sua própria contradição latente. Assim, não é
menor e nem deve ser despercebida uma importante questão apresentada. A frieza humana, e
todos aqueles nossos traços negativos, não pode negada pela educação e nem mesmo ser tida
em critérios de superação e erradicação. Pelo contrário, ela precisa ser evidenciada e
humanizada. Precisa ser compreendida e elaborada para que não se encerre em violência e
repressão. É assim que na volta para si, em uma autorreflexão crítica, o sujeito da educação
será capaz de uma postura emancipada e esclarecida. Adorno não teorizou acerca de
metodologias específicas do fazer pedagógico. Sua postura negativa não pretende tais
diretrizes. A crítica de Adorno visava atacar algo mais enraizado que a própria educação,
buscou atingir nossa estrutura social mais elementar: nossa racionalidade.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como mostramos no início deste trabalho nossa pesquisa intentou oferecer elementos
para uma problematização que tomou como protagonistas duas correntes teóricas que muito
contribuem ao tema, a saber: as pedagogias críticas e a teoria crítica. De um lado, o conceito
de emancipação tido desde as pedagogias que exerceram sua crítica ao modelo tradicional de
ensino no contexto da educação brasileira, fornecendo ferramentas para uma nova
interpretação do fazer pedagógico, da relação professor/aluno e dos próprios rumos de uma
educação comprometida com as massas. De outro, uma perspectiva sustentada em uma dura
crítica ao conceito educacional em voga desde a modernidade, a saber, de um projeto de uma
razão emancipatória. Perspectiva esta apresentada na teoria crítica de Adorno e de
Horkheimer. Portanto, neste diálogo problematizador esteve presente, primeiro, um
reconhecimento teórico das premissas e conclusões em relação ao conceito desde as
pedagogias críticas. Segundo, uma postura de problematização conceitual desde uma crítica
já estabelecida.

Vimos que o conceito de emancipação é oriundo de uma postura histórica e de


motivações sociais. A saída da Idade Média resultou numa mudança de paradigma, numa
transformação das relações sociais e, sobretudo, numa nova postura humana em relação a si e
a seu meio. Tal postura resultou no que conhecemos por projeto da modernidade, uma
pretensão humana de elevação racional, moral e tecnológica. O Iluminismo concentrou estes
anseios, autodenominando-se como a saída das trevas e da escuridão. O mundo acreditou estar
caminhando para o progresso, em todas as instâncias, sociais e pessoais. Assim, o projeto de
uma razão emancipatória seria capaz de colocar a humanidade nos trilhos da elevação humana
e da plena dominação da natureza. Seríamos livres da subordinação ao meio e autônomos em
nossas escolhas. Seríamos, principalmente, felizes, enquanto sujeitos morais e de razão.

O conceito de emancipação que dá corpo às pedagogias críticas no Brasil se revela


como um tipo de emancipação que se relaciona com categorias dualistas de uma análise
social. Logo, tensiona as relações sociais em categorias como dominação, classes sociais,
burgueses e proletariados. A emancipação presente nesta análise de mundo se efetiva
enquanto expressão daquela síntese dialética da ruptura com o dado e da criação do novo. É
assim que a máxima da conscientização aparece nestas pedagogias, numa nítida confiança na
110

capacidade humana de exercer novas e melhores relações sociais e, assim, criar uma
sociedade mais justa. Nestes termos, a educação comprometida com este ideal é aquela capaz
de colocar-se aos passos de tal compromisso, auxiliando na tarefa de uma práxis social e de
um efetivo compromisso com a classe revolucionária.

A teoria de Adorno, apesar de muito semelhante em vários aspectos, inclusive em uma


aproximação, também, com o marxismo, não mantém o mesmo otimismo e esperança. Sua
crítica ao esclarecimento pretendido nos moldes do Iluminismo revela as falhas inerentes ao
projeto moderno. Segundo o autor, as premissas e caminhos apontados não se efetivaram, e
nem o poderiam, porque justamente alimentavam nossa faceta racional mais técnica e menos
humana. A razão sustentada pelo esclarecimento pretendia um progresso completo do espírito
humano, mas não considerou a dualidade dialética, aproximação e contradição, em seu fazer
filosófico. O resultado, na atualidade, do projeto moderno é uma sociedade em pleno
desenvolvimento tecnológico, mas ainda bruta em suas relações sociais e cruel em sua
mentalidade. A emancipação, nestes termos, se evidencia como um objetivo falho, fadado ao
ciclo contraditório de suas próprias pretensões. Segundo vimos, a crítica de Adorno ao caráter
subjetivo de nossa racionalidade demonstra que as relações sociais giram na mesma órbita do
fazer científico, operando, assim, conforme critérios de utilidade e de dominação, mesmo em
nossas relações cotidianas.

Se Adorno parece pessimista em sua postura de problematização ao conceito de


emancipação da modernidade, tal pessimismo não se mantém quando o assunto é educação.
Longe de cair num atitude de conformismo, Adorno é enfático em afirmar que o maior
compromisso da educação contemporânea deve ser a de evitar, com todas as forças, que
barbáries e atrocidades, como as cometidas em Auschwitz, se repitam. Mesmo reconhecendo
a contradição conceitual e os malefícios causados Adorno também entende as grandes
contribuições e benefícios da razão subjetiva - que foi sendo reforçada desde muito. Logo, a
educação precisa se concentrar em frear a faceta negativa de nossa racionalidade, que tanto
nos prejudica socialmente. Para o filósofo ainda é preciso pensar naquela meta emancipatória,
almejá-la. Porém, é preciso tomar cuidado para não cair vítima das mesmas armadilhas
conceituais que aponta em sua crítica. Adorno defende que só será possível construir uma
educação humana a partir de um ideal de emancipação que seja devidamente reelaborado. É
assim que Adorno define a meta emancipatória, enquanto um devir que encaminhe para a
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erradicação da barbárie e da cegueira coletiva. Este passo não será capaz de construir um
novo mundo, com uma nova sociedade. Para o autor não é possível a elevação a este terceiro
passo. Todavia, uma postura de resistência ao movimento uniformizador das massas e da
razão já se encontra no seio daquela postura emancipatória. O caminho da educação é
audacioso, mas realista, já que não acredita numa revolução das massas.

Chegamos, então, a algumas considerações oriundas desta pesquisa. Dado que o


objetivo de autonomia está presente na educação brasileira, inclusive em documentos oficiais,
numa clara influência de algumas das premissas e apontamentos das pedagogias críticas, o
caráter problematizador desta pesquisa direcionou-se a este conceito em especial. A
emancipação apresentada como meta das pedagogias críticas tem caráter positivo. Pertence a
uma ideia otimista de uma dialética marxista, que prevê como síntese da problemática
capitalista uma práxis deste sujeito esclarecido em relação a seu próprio meio. Assim, a
atitude destas perspectivas aponta para uma emancipação possível, desde uma atitude crítica.

Diferente das conclusões das pedagogias críticas Adorno nos dá elementos para uma
tomada negativa do conceito analisado. Logo, a superação das contradições sociais não
somente não parece possível, como, ainda, não deve ser a pauta máxima de um conceito
revisitado em suas limitações. Uma postura de superação apenas privilegia a mesma violência
empregada por aquela razão subjetiva, que restringiu a conceitos rígidos toda a nossa
experiência com o mundo. Nestes termos, a sociedade de justiça e igualdade pretendida por
aquelas pedagogias críticas estaria pautada numa negação e pretensa erradicação daquelas
características humanas que tomamos por defeitos. A frieza humana, por exemplo, é um alvo
a ser abatido nesta missão de uma sociedade melhor. Se tomarmos a problematização do
conceito de emancipação desde a proposta teórica desta pesquisa, concluiremos que a
principal diferença entre as duas teorias analisadas se efetiva nesta característica apontada.
Assim, o objetivo desta pesquisa se concretiza, uma vez que foi possível estabelecer uma
linha de argumentação que nos deu suporte para um tensionamento entre nosso entendimento
local acerca do objetivo de emancipar e uma crítica potencializadora deste conceito e sua
efetivação.

Para além de uma diferenciação entre as pedagogias críticas e a teoria crítica de


Adorno, nossa pesquisa teve como interesse apresentar a crítica adorniana como uma
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ferramenta de análise e de problematização das pedagogias que, no contexto brasileiro, fazem


uso do conceito de emancipação, transformando-o na finalidade de suas propostas
educacionais. Logo, uma leitura que propiciasse uma reflexão e que movimentasse nosso
fazer pedagógico.
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