Viagem Ao Fim Do Milenio - A. B. Yehoshua
Viagem Ao Fim Do Milenio - A. B. Yehoshua
Viagem Ao Fim Do Milenio - A. B. Yehoshua
YEHOSHUA
Haverá alguém que se lembre de nós daqui a mil anos? Será que
aquela velha alma ainda estará conservada, e em seu próprio útero
úmido ainda se preservará o bruxulear
da sombra passageira dos nossos atos e sonhos? Será que,
desprovida dos seus órgãos internos, imersa em líquidos
programados, miniaturizada em sabedoria e felicidade, ela, seja lá
qual for o seu nome, ainda terá a intenção, ou sentirá o desejo de
retroceder mil anos no tempo e procurar por nós, assim como você
agora procura pelos seus heróis? Mas quem poderá dizer se será
possível encontrar alguma coisa? Pois o peso dos mil anos que a
separarão de nós será como o peso de milhares de anos, hoje. Pois
quem poderá saber se daqui a mil anos a razão clara e consolidada
não terá se desobrigado da responsabilidade pela nossa história
bruta e confusa, assim como já nos livramos da "história" dos
homens da caverna? E ainda assim não seremos simplesmente
esquecidos? Pois é impossível supor que não se encontre uma única
molécula de memória da nossa existência, tal como um manuscrito
amarelado no fundo de uma gaveta esquecida, cujo simples fato de
se catalogá-lo já garantirá sua eternidade, ainda que nem um único
leitor jamais o descubra. Mas será que o próprio catálogo continuará
existindo? Ou quem sabe alguma matriz totalmente diferente irá
fundir e embaralhar tudo o que se passou, e a nossa imagem nunca
mais poderá ser recuperada conforme nós próprios a concebemos?
Mas agora, ao dissipar da neblina da manhã sobre a baía de
Rouen, quando através das lentes dos mil anos passados você
começa a acompanhar o navio bojudo e enegrecido que penetra
vagarosamente na embocadura do rio Sena, você, apesar da
distância, sente simpatia pelos heróis de quem tira o pó do passado.
Na verdade são mais baixos do que imaginava; o cabelo e a barba
mais compridos e emaranhados, e apesar de serem jovens, já lhes
faltam alguns dentes na boca — talvez para lembrar-lhe que a morte
assim chamada "natural" está mais próxima deles do que você
supunha. E suas roupas, especialmente as das mulheres, lhe são
incompreensíveis, e você não consegue entender de que modo as
vestem e como as atam. Mas apesar de tudo isso você não apenas
acredita como tem absoluta certeza de que em suas consciências
opacas esses homens, com seus pesadelos confusos e suas negras
amplidões, seus parcos conhecimentos e suas múltiplas cintilações,
são como um relógio antigo que apesar do mecanismo simples e
primitivo e do pesado pêndulo é capaz de indicar o tempo com
precisão, exatamente como um sofisticado relógio eletrônico.
Será a empreitada bem-sucedida? Será você capaz não só de
descrever, mas também de penetrar a alma de alguém que oitocentos
anos separam da música de Mozart? E para quem até mesmo a
serena monotonia do canto gregoriano soa demasiado complexa aos
ouvidos? Será você capaz de aquecer a imaginação nos sentimentos
daqueles para quem a figura humana é tão rígida e esquemática em
seus desenhos desbotados? Pois ainda haverão de transcorrer
quinhentos longos anos de guerras e pestes até que a luz da
Renascença os ilumine. E verdade que, ao contrário de nós, eles não
julgam que algo de seu mundo um dia será diferente, e estão
absolutamente convictos de que, passados mais mil anos, você e seus
amigos serão exatamente iguais a eles. Mas será que essa certeza
ingênua é suficiente para que você, de tão longe, deixe
de lhes estender a mão?
Advertência ao leitor
Assim, foram todos até o poço tirar água para a lavagem ritual
das mãos, reunindo-se depois para a oração da tarde. Logo os fiéis se
dão conta de quanto o rito comove Abuláfia, que arde de desejo de
conduzi-lo com sua voz melodiosa. Desde o início do serviço o
proprietário da vinícola e o senhor Lavinas tentaram impedir o seu
intento, cantando mais rápido ou mais devagar, mas por fim
desistiram. Não porque a voz de Abuláfia soasse mais alto do que a
deles, mas porque no seu canto havia uma melodia deliciosa e única,
que encantava os fiéis de Ville-les-Juifs e os incitava a acompanhá-lo.
A senhora Esther-Míriam, embora ainda desconcertada com a
facilidade com que o júri se enchera de mulheres, faz um sinal
discreto ao irmão para que desista daquela espécie de competição e
permita que Abuláfia se entregue por inteiro aos seus ornatos e
floreios, que a seduziram, embora não consiga lhes identificar a
origem. Ben-Atar, porém, que pela primeira vez na vida estava tão
próximo de suas esposas nas orações, sentindo de perto a alma de
ambas, identificou de imediato a origem dos floreios do sobrinho
com o chamado do muezim vindo do minarete da mesquita de
Tânger. Espantoso, pensou Ben-Atar, que depois de todos esses anos
ele conserve no seu canto a forma do fraseado muçulmano daquelas
praias, ainda que o entremeie com outras melodias, que a julgar pelo
ritmo eram inspiradas em canções dos camponeses locais.
Deve ter sido por esse motivo que os três cristãos que tinham se
misturado aos judeus a fim de desfrutar da vista das duas mulheres
bonitas, mesmo que cobertas de véus, e que pertenciam legal e
naturalmente a um único homem, não tinham saído no início das
orações dos judeus, deixando-se ficar deliciados com aquela melodia
que lhes é vagamente familiar, vibrando com uma modulação
desconhecida ao se fundir ao latim dos judeus. Quando Lavinas
percebeu que os três insistiam em permanecer, abreviou o intervalo
entre as orações da tarde e da noite, e antes mesmo que aparecesse a
primeira estrela no céu, sinalizou para que se desse início à oração
da noite, na esperança de que quando alcançassem o "Escuta, ó
Israel", e a escuridão e o silêncio se enchessem com os vultos dos
judeus de olhos cerrados, imóveis, as mãos cobrindo o rosto,
parecendo misteriosos adivinhos, algum secreto temor pudesse
fazer, afinal, com que os convidados indesejáveis partissem. De fato,
quando duas ou três tochas foram acesas ao final do serviço, e os
cachos de uvas suspensas em ganchos ao redor do salão voltaram a
desenhar sombras fantásticas nas paredes, nem mais um único
estranho restava no salão da vinícola a procurar diversão entre os
judeus.
Talvez tenha sido essa seriedade solene que desceu sobre a
comunidade judaica de Ville-les-Juifs depois das duas belas orações,
que encerraram o dia com o duplo selo de exaltação e santidade, a
inspirar temor nas quatro mulheres sorteadas. Assim, ao convidarem
a mulher alta, a dona do vinhedo, a subir ao pequeno palanque de
madeira, seguida pelo mercador oriental de rosto agradável, e logo
após o escriba, magro em sua empoeirada capa negra, mas também
sério e sinceramente decidido a representar seus dois colegas
rejeitados, surgiu a dificuldade de juntar a eles as quatro "juízas",
pois ficou claro que elas não haviam entendido bem quais seriam as
consequências do tão almejado toque do menino moreno. Agora elas
se amontoam num canto, agarradas umas às outras, assustadas
demais para subir à pequena plataforma. Neste ponto intervém a
senhora Esther-Míriam, que, apesar de acreditar na justiça de um
veredicto decidido por três juízes, exige a presença de mais mulheres
no júri, de modo a que sua fúria e sua feminilidade ferida pudessem
ecoar no coração de Abuláfia até o fim dos seus dias, afastando dele
qualquer sombra de pesar por um eventual matrimônio duplo que
poderia ter contraído se não tivesse deixado o Sul. Então, numa voz
doce que encobre não pouca severidade, ela induz as três jovens e a
velha colhedora de uvas a desgrudarem umas das outras e irem ter
com os três que já estavam acomodados, com ar importante, sobre
barriletes de vinho cobertos por velhas peles de raposa, iluminados
pela luz bruxuleante de uma tocha.
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Está tudo pronto. Se não são "os sete homens justos da cidade",
como exigem as Escrituras, e sim apenas sete pessoas comuns que
foram escolhidas ao acaso, os que se acomodam sobre o palco, é
simplesmente porque há quase mil anos não se encontra nenhuma
cidade inteiramente judaica, mas tão-somente pequenas e dispersas
comunidades de hebreus que adversidades e ameaças obrigam a
vagar constantemente de um lugar para outro e a se misturar entre
si. Portanto, não há mais nada que impeça Ben-Atar de levantar-se e
proferir seu discurso de acusação, que o trouxe até aqui, percorrendo
uma grande distância que, agora, depois da dupla oração ao
anoitecer, parece-lhe bem pouca coisa. Talvez por isso ele ainda
pareça hesitar, imerso em seus pensamentos, até que o rabino Elbaz
é obrigado a lhe fazer um sinal de incentivo. De fato, desde que o
mercador e seu grupo entraram naquela tarde no pátio interno de
Ville-les-Juífs, e foram dali para o salão da vinícola, o ânimo de Ben-
Atar pareceu esmorecer. Era como se não tivesse imaginado que
aquele repúdio, que da África lhe parecera uma reação apavorada
dos judeus temerosos sobretudo do julgamento dos cristãos, pudesse
materializar-se diante dele, revelando-se em sua inteira realidade. E
não é que, há apenas dois dias do desembarque, Ben-Atar já se
encontra diante de um estranho tribunal convocado às pressas em
um salão sombrio de um vinhedo distante, e, pela primeira vez
desde que concebera a ideia da viagem, experimenta uma vaga
ameaça de derrota.
Mas, para sua surpresa, não sente piedade de si próprio, nem de
suas duas esposas, que haviam sido obrigadas a deixar seus filhos e
suas casas, mas sim de seu parceiro ísmaelita, Abu Lutfi, que
permanece sentado, assim o imagina agora Ben-Atar, no escuro
porão do navio, ao lado do camelo solitário, orando a Alá pelo
sucesso de seu parceiro judeu, embora jamais, jamais consiga
compreender, por mais vezes que lhe expliquem, por que um
mercador judeu, que vive com suas esposas e desfruta do respeito de
todos, judeus e ísmaelitas, deva se preocupar com o repúdio de
judeus longínquos, que vivem em florestas sombrias às margens de
rios selvagens no coração de um continente remoto.
Ao sentimento de culpa e à compaixão que Ben-Atar
experimenta em relação ao árabe, que investira, e que continuaria a
investir sua força e seu dinheiro em uma viagem da qual não
alcançava compreender o motivo, vêm se juntar intensos sentimentos
de revolta e pesar. Com severidade, perscruta o rosto de Abuláfia,
que lhe sorri com uma estranha expressão de perplexidade, uma vez
que se encontra diante do tio não só na condição de acusado, mas
ainda na de intérprete, convocado que fora para traduzir fielmente
as palavras de seu adversário. De súbito Ben-Atar se sente invadir
por uma cólera seca contra o sobrinho, que ele criara com tanto
amor, por não saber contestar o sentimento de desaprovação de sua
Nova Mulher, obrigando-o a uma viagem extenuante e àquele
confronto humilhante e injusto. Sua cólera arde tão intensa que ele
dispensa os préstimos do sobrinho como intérprete, e numa voz
profunda que de imediato impõe completo silêncio sobre o público
ali presente, diz algumas palavras hesitantes na antiga língua dos
judeus, na esperança de que aqueles da comunidade que a
compreendem comuniquem seu sentido aos demais. Porém, depois
de algumas sentenças percebe que seria melhor para ele abandonar
seu hebraico rudimentar em favor do árabe fluente e colorido, que
agora brota espontâneo, para descrever, antes de mais nada, a
angústia do sócio ismaelita.
Abuláfia se queda surpreso e perturbado com a abertura do
discurso de acusação do tio, que decide falar de Abu Lutfi, e não de
si próprio. Porém Ben-Atar se mantém firme em seu rumo. Sim, ele
deseja começar sua declaração exatamente pela dor e a angústia de
uma terceira pessoa, um gentio, que há dez anos, no início do
outono, conduz seus camelos até as encostas setentrionais dos
montes Atlas, para peregrinar por entre pequeninas aldeias e tribos
remotas, procurando descobrir tudo o que houvesse de melhor, de
mais valioso e de mais belo para poder agradar aos olhos refinados
dos clientes de seu parceiro do Norte.
Lentamente, diante do público atento, revela-se o prodigioso
quadro daquela tríplice sociedade que se estendia dos contrafortes
dos montes Atlas às praias do Magreb, para depois se insinuar
através das cidades e jardins da Andaluzia, onde aportava
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docemente na baía de Barcelona, no encantador local de encontro
sobre a Marca da Espanha. Dali, depois de ultrapassar as vertentes
orientais dos Pirineus, espraiava-se como um leque colorido pelas
terras da Provença e da Aquitânia, para prosseguir pelas veredas da
Bretanha até chegar à Ile-de-France. Nessa descrição, Ben-Atar não
economiza detalhes. Pelo contrário, com rara precisão, expõe a rica e
elaborada estrutura concebida pelos três parceiros, unidos não só
por sentimentos de compreensão e de confiança mas também por
vínculos de solidariedade e amizade, com o intuito de ganhar o seu
sustento e obter lucro com as delícias cultivadas pelos maometanos
do Sul, para que a canela, o gengibre e o coentro não viessem a faltar
nos caldeirões fumegantes das cozinhas cristãs de Narbonne e
Perpignant.
É essa a maneira de falar de Ben-Atar: três ou quatro sentenças.
Depois se cala, crava os olhos em Abuláfia e em silêncio conta as
sentenças proferidas na língua franca, por medo de que falte alguma
coisa. Contudo, seu temor é infundado, visto que não só esse
intérprete não deseja omitir nada, como ainda, na qualidade de um
dos membros do lendário trio, também contribui, por sua conta, com
detalhes que reforçam a consistência do relato, e de tal modo se
deixa envolver pelas suas próprias palavras que se esquece de que
logo mais precisará se defender contra aquela mesma acusação que
ele traduz com tanto brilho.
Entretanto, eis que o rosto do juiz barbudo, do corpulento
mercador radanita, que compreende as palavras pronunciadas em
árabe, vai se anuviando à medida que Ben-Atar descreve os
primeiros sinais do logro de Abuláfia: os disfarces estranhos, as
insinuações do repúdio, os atrasos que se tornavam cada vez mais
longos, enchendo de angústia a alma dos que o aguardavam, até que
no último verão se abateu sobre eles aquela ausência terrível, final e
definitiva, que deixou os dois sócios do Sul sozinhos entre os cavalos
e burros no estábulo de Benveniste, espantados com a enorme
quantidade de mercadorias que os rodeava. É surpreendente como
Ben-Atar ainda consegue se manter vigilante para não apontar o
dedo acusador para a Nova Mulher que subira da terra do Reno,
tendo mesmo o cuidado de não mencionar seu nome. É como se
Abuláfia estivesse sozinho no mundo, e toda a culpa recaísse apenas
sobre ele — como se aquele maldito repúdio tivesse nascido apenas
na mente do sobrinho, e fosse sua a iniciativa de fazê-lo atingir seus
amigos. Assim, não admira que agora seja difícil para o intérprete
continuar a tradução fiel, pois o discurso do tio descreve sua própria
culpa. Ele é obrigado a ouvir as palavras duras de Ben-Atar que, com
frieza, mas num árabe eloquente e preciso, levanta contra o sobrinho
a vil suspeita de simplesmente tentar dissolver a velha sociedade a
fim de substituí-la por uma nova, que talvez pudesse se revelar mais
promissora. É como, continua Ben-Atar em sua impiedosa denúncia,
não era fácil para o traidor se separar de seus sócios fiéis na medida
em que tudo entre eles havia sempre transcorrido com justiça e
honestidade, Abuláfia inventara uma espécie de estranho repúdio
em relação ao duplo casamento do tio e, não ousando expressá-lo
como seu, o atribuíra à sua Nova Mulher estrangeira.
De qualquer modo, como poderia Abuláfia se queixar agora do
tio e de seu duplo casamento se ele sabia há muitos anos que o tio
havia instalado uma Segunda Esposa na sua velha casa de Tânger
exatamente para tirá-la da tristeza e do abandono em que a havia
deixado a amada esposa desaparecida nas profundezas do mar? Não
só Abuláfia havia aceitado a presença da nova tia em sua casa, como
inclusive havia se mostrado feliz com a notícia, mesmo quando
soubera que ela era mais jovem do que ele. Assim, não podendo de
repente protestar contra algo que sempre entendera ser aceitável,
precisara atribuir aquele pretenso repúdio à nova família,
sustentando que eram eles os responsáveis por ele se ver obrigado
agora a rejeitar sua própria carne e sangue.
Neste ponto a voz do intérprete torna-se tão estrangulada que
ninguém naquele salão escuro consegue entender nenhuma palavra
das últimas sentenças por ele pronunciadas, que o atingem como
penetrantes golpes de espada. Mas o mercador chegado da terra de
Israel, que havia entendido perfeitamente tudo o que Ben-Atar
dissera, julga oportuno intervir e, voltando-se para o juiz vizinho, o
escriba, que continua atônito e amedrontado, resume clara embora
lentamente no idioma sagrado tudo o que fora relatado até ali, para
que o pálido escriba, envolvido em suas negras vestes, levante-se e
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traduza no idioma local para os silenciosos colegas sentados no
palco e para o público. O conflito assim revelado aos olhos de todos
vai assumindo um tom mais e mais áspero, incentivando os
presentes, atraídos pela disputa acalorada que se desenrola diante
dos seus olhos, a se aproximar, passando por entre os tonéis de
vinho e se juntando não só ao redor dos dois litigantes mas também
da Nova Mulher, que logo percebe a esperta tática de Ben-Atar:
forçar seu magoado marido a declarar em público que continua fiel à
sociedade, expondo, à vista de todos, a ruptura que havia entre o tio
e ela.
É nessa mesma ruptura que o rabino Elbaz tenta agora inserir
como uma lança a peça de acusação concebida ao ritmo das ondas
do mar. Porém a senhora Esther-Míriam se apressa em atropelar seu
intento, pois fica de coração partido ao ver o marido ali postado
imóvel, olhando o tio com um estranho e perplexo sorriso, como se a
terrível suspeita que lhe fora imputada se disseminasse pelo seu
corpo como um veneno paralisante. Portanto, sem procurar saber se
tem ou não o direito à palavra, ela se dirige à corte na qualidade de
acusada que espera que a justiça seja feita e, falando no idioma
franco colorido e fluente, declara a intenção de dissipar antes de
mais nada, e com desprezo, qualquer suspeita de existência de uma
outra parceria secreta por parte de seu marido, e revelar por fim a
verdadeira origem do repúdio, que é mais importante para ela do
que os editos que vieram da terra do Reno, sua terra natal.
O senhor Lavinas, que desde aquela manhã vinha sentindo o
torvelinho que ia na alma de sua irmã mais velha, e conhecendo seu
desejo e mesmo sua capacidade de romper as regras, dá alguns
passos cautelosos em sua direção, para que sua presença tranquila e
sua índole serena, ainda que não expressas em palavras, pudessem
sinalizar a ela um limite, caso fosse tentada a cruzá-lo. Enquanto
Ben-Atar proferia suas duras palavras, o comerciante parisiense não
havia se detido nem por um momento sobre o rosto do acusador ou
do intérprete acusado; permanecera atento às expressões cambiantes
na face das quatro mulheres escolhidas para compor o júri. A julgar
pela expressão de comiseração que perpassou pelo semblante das
quatro ao ouvir o relato da perda da mercadoria que restou sem
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comprador, e pelo cintilar de suspeita em seus olhos ao ver o rosto
de Abuláfia empalidecer ao ouvir as acusações, já compreende esse
homem cauteloso e sagaz que de agora em diante convém se
resguardar de qualquer certeza acerca do desfecho que os espera.
Assim sendo, seria prudente refrear qualquer sinal excessivo de
autoconfiança ou de orgulho que a irmã pudesse demonstrar, aquela
mulher pequenina porém ereta, de língua afiada, e cujas belas
feições, afiladas como as de um cão de caça, resplandecem à luz das
tochas.
Contudo, seus temores são infundados. As palavras iniciais da
irmã não demonstram nenhuma soberba, talvez apenas uma leve
astúcia, tomada de empréstimo do seu oponente do Sul. Tal corno
Ben-Atar, que abrira sua acusação não com a sua própria dor, mas
com a de seu parceiro árabe, também ela inicia sua defesa não a
partir de si própria, ou da aversão que sente pela bigamia, mas sim
pela história da infeliz filha de Abuláfia, ainda atormentada pelo
enigma do seu abandono por sua jovem mãe, uma mulher bela e
amada. Aqui o senhor Lavinas toca de leve a irmã, não por contestar
sua linha de argumentação, mas para lembrá-la de que seria
necessário e apropriado dar aos seus adversários uma oportunidade
de compreender as palavras, que, com a ajuda de Deus, em breve os
derrotariam.
Mais uma vez foi preciso pedir a Abuláfia, o acusado, que
servisse de intérprete, desta vez no sentido oposto, da língua dos
francos para o árabe. Embora esteja postado entre o tio e a esposa, as
duas criaturas que lhe são mais próximas neste mundo, ele volta o
olhar para o rabino Elbaz à sua frente, que, envolto na túnica
característica dos rabinos, puída pelas muitas noites e dias a bordo
do navio, meneia de leve a cabeça como se estivesse imerso em
oração, e bebe cada palavra pronunciada como se fosse um néctar
prelibado. Se até há pouco a vida do jovem sócio fora sendo revelada
por meio do discurso de acusação proferido por Ben-Atar, prossegue
agora na lúcida exposição da Nova Mulher, que recorda com tal
precisão cada particular da história do marido, até aqueles dos quais
ele já havia se esquecido, que ele se vê forçado a deter aquela
torrente de palavras, de momento em momento, antes de traduzir,
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para se certificar de que as coisas de fato haviam se passado como
ela as estava contando.
Só agora, no amplo salão desta vinícola imerso em semi
escuridão, é que ele compreende quanto a amada esposa havia
registrado com exatidão cada detalhe que ele lhe narrara de sua vida
e de suas viagens, quase como um colecionador que recolhe
cuidadosamente conchinhas à beira-mar, acreditando que em cada
uma delas deverá encontrar uma pequena pérola. Ainda no seu
primeiro encontro em Orléans, diante da lareira acesa, quando a
recatada viúva se surpreendera com a disposição do jovem mercador
norte-africano, de pele morena e cabelos cacheados, de conversar
com ela, com recato mas com franqueza, sobre si mesmo, ela se
perguntara como era possível que aquele homem simpático,
sociável, cordato, viesse percorrendo havia sete anos as florestas e
aldeias de uma terra estranha sem ter procurado uma esposa e
constituído um lar. Já naquela primeira noite, conta a senhora
Esther-Míriam, ela compreendera que só agiria dessa maneira um
homem cuja fonte do amor por sua esposa, ainda que desaparecida,
continuasse a jorrar dentro de si como uma fonte que se alimenta do
próprio fluxo. Mas se de fato foi assim, ela continua a se perguntar,
como fora possível àquela mulher, que recebera do esposo um amor
tão grande, levantar-se um belo dia e renunciar tão facilmente a tudo
o que lhe fora dado com fartura e generosidade, abandonando o
homem que a amava, arrancar as fitas coloridas das roupas da
filhinha que tanto precisava dela, e com elas atar suas mãos e pés e
atirar-se às ondas do mar?
Foi por isso que, já naquela noite na estalagem em Orléans —
como a nova senhora Abuláfia não hesita em confessar diante do
tribunal —, ela experimentara um grande sentimento de compaixão
por essa criança, abandonada com uma ama ismaelita numa
pequena casa na rua dos judeus, próxima à Fortaleza de Toulouse. E
sentiu um poderoso impulso não só de compreender por si própria o
mistério da tragédia que sobreviera ao mercador do Sul, mas
também de compartilhar essa compreensão com ele, que, abatido e
incapaz de entender, continuava a perambular pelas estradas. Para
isso era preciso que um novo amor conquistasse o antigo, o amor
p q q g
mediterrâneo, não, Deus nos livre, para fazê-lo esquecer sua
Primeira Esposa, e sim para permitir que a senhora Esther-Míriam
desvendasse o segredo da vitalidade daquele antigo amor, e também
o segredo da sua fragilidade e ruína. Porém é apenas no seu
segundo ou terceiro encontro com o jovem mercador, transcorridos
já o inverno e a primavera, que ficou claro para ela o motivo oculto
daquela tragédia. Abuláfia lhe revelara candidamente a permissão
para os casamentos duplos vigente nas terras ismaelitas. E não havia
falado como que de algo abstrato, mas corno de fato um bem
conhecido, e até mesmo em sua própria família, pois o tema da
conversa era seu tio, o esteio daquela admirável sociedade.
Naquele momento ela sentira que ali se encontrava a semente do
mistério que causara aquele desastre. A princípio nada dissera,
esperando ter seu vínculo completamente consolidado, para poder
ter a prova de que não havia nenhuma lassidão na energia viril,
nenhum defeito na capacidade de amar daquele homem
inteiramente devotado a ela como havia sido à esposa anterior que,
segundo testemunho dele próprio, sempre soubera receber o seu
amor e acreditar na sua fidelidade. Só então, certa da sua dedicação,
ela havia começado a pensar que talvez o terrível ato de desespero
da Primeira Mulher tivesse nascido da ameaça de uma eventual
segunda união com outra mulher, união que, em princípio, não
exigia que o amor dedicado à primeira viesse a ser renegado ou se
visse diminuído. Sim, mas só em tese porque, quando uma segunda
mulher entra num lar, como uma inocente duplicação, tal como o
nascimento de outra criança, ela traz dentro de si um terrível poder
destruidor, em especial para uma Primeira Esposa que se acredita
portadora de uma maldição em seu ventre. Assim, será que a
senhora Esther-Míriam ainda precisa justificar para alguém o fato de
a ideia do repúdio ter brotado dentro dela? Essa ideia com o tempo
vicejou e floresceu, até se tornar afiada como um punhal, destinada
não só a defender seu novo companheiro da humilhação de
encontrar um belo dia no estábulo de Benveniste, entre os sacos de
especiarias e os utensílios de cobre, uma Nova Mulher, trazida no
navio para ele pelo seu tio, mas também... sim, sim, é isso, para
vingar um pouco as ofensas e os temores da esposa afogada, expulsa
desnuda das profundezas do mar.
Aqui o rosto da senhora Esther-Míriam enrubesce de repente, ela
baixa a cabeça e se cala. Não só para dar ao atônito intérprete tempo
para assimilar o segredo da sua vida antes de transmiti-lo na língua
dos árabes para os membros de sua família, mas igualmente para
fugir ao olhar intenso e ofendido de Ben-Atar e aos misteriosos
olhares velados das duas esposas, ainda sentadas em seus barriletes,
tranquilas, eretas e disciplinadas, no mesmo lugar que lhes fora
destinado. Ela não sabe se a tradução consegue penetrar em suas
mentes, ou se simplesmente lhes esvoaça ao redor qual uma
borboleta. Nesse momento a senhora Esther-Míriam sente o toque da
mão de seu irmão, leve como uma pluma, que busca lhe dar um
sinal de encorajamento. Embora no fundo do seu coração o senhor
Lavinas tivesse de bom grado dispensado todo esse discurso sutil e
rebuscado em favor de um curto aviso sobre a existência de um novo
edito rabínico, simples porém rigoroso que, apesar de nascido nos
pantanais e areias movediças das terras do Reno, estava destinado a
iluminar e reformar o mundo inteiro.
É exatamente esse edito escrito pelos estudiosos dos livros
sagrados que o rabino de Sevilha espera desde o início, por se referir
aos princípios e não aos detalhes. Inúmeras vezes durante a longa
jornada seus pensamentos se voltaram para esse edito, a ponto de já
começar a imaginá-lo como uma adaga árabe, pequena e curva, feita
de cobre amarelado, que, para não voar descontrolada, deve ser
firmemente cravada na terra. Agora, porém, com a brisa da noite, o
rabino sente uma ligeira tontura, eco daquela fome terrível que o
despertara à noite, e instintivamente leva as palmas das mãos ao
rosto para sentir se restou nelas algo do odor do peixe de água doce
que o escravo negro lhe preparara antes do raiar da aurora. Mas não
é mal, pensa ele, começar um discurso num leve estado de fome,
pois isso aguça ainda mais os sentidos e a inteligência, já
despertados pelas palavras vigorosas e singulares da senhora
Abuláfia.
Agora faz-se um silêncio absoluto, Ben-Atar fita o rabino de
Sevilha com um olhar sombrio e desconfiado, como se depois do
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arrazoado virulento da senhora Esther-Míriam tivesse perdido a
confiança no que receberia do rabino em troca do pagamento que lhe
fora prometido. O senhor Lavinas toca de leve o ombro de Elbaz,
para indicar que chegara o seu momento. O rabino já havia notado
que era justamente esse homem, frio e reservado, a tratá-lo sempre
com grande consideração, como se qualquer estudioso das Escrituras
— mesmo que tivesse vindo do distante Sul com a óbvia intenção de
derrotá-lo — fosse, por princípio, uma pessoa respeitável. Mas será
que aqueles judeus estranhos e selvagens seriam de fato capazes de
acompanhar as intrincadas sinuosidades de seu pensamento
andaluz? Como era possível que não tivesse sido encontrado, em
toda aquela vastidão sombria ao redor, nenhum verdadeiro
estudioso das doutrinas para sentar-se com ele frente a frente e
debater a questão? Na verdade, o que poderiam compreender
aqueles colhedores de uva e fermentadores de vinho, ou aquelas
pisadoras de uvas, cujos pequenos pés descalços, expostos à vista de
todos sobre a plataforma de madeira, eram tão manchados de suco
que ele sentia um forte impulso de lavá-los com água limpa antes de
iniciar sua fala? E eis que seus olhos dão casualmente com seu filho,
sentado sem sandálias, arrancando lentamente as uvas de um
grande cacho, a observar a fina corrente de suco que escorre da
prensa de vinho para o tanque interno. Já fazia seis semanas que o
menino fora tirado de casa, e certamente já tinha aprendido durante
a viagem mais do que poderia aprender até o fim de seus dias.
É então que inesperadamente a Segunda Esposa de Ben-Atar,
incapaz de se conter, levanta-se, como se quisesse ver e ouvir melhor
o rabino, que disse a si mesmo, comovido: se ela está tão interessada
em ouvir suas palavras, a ponto de dispor-se a romper as regras e se
expor muito além do permitido pela sua própria modéstia e pela
modéstia da Primeira Esposa, melhor seria se ele não abrisse o seu
discurso na antiga língua sagrada, como pretendera fazer, para atrair
a atenção do irmão e da irmã, mas sim no idioma árabe, para que as
palavras nuas e não traduzidas atingissem em cheio o coração
daquela jovem esposa, que ocultara entre as vestes de seda o baú de
marfim que ele acariciara a noite passada. Ele decide empregar o
árabe não só para fortalecer e animar a Segunda Esposa, mas
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também em consideração à Primeira, que ergue a cabeça, surpresa
pelo movimento repentino de sua companheira. Talvez a intenção do
rabino seja a de apagar, com seu árabe claro e inteligível, algo do
soturno desânimo que se apoderara de Ben-Atar, que se comporta
como se acreditasse piamente na acusação que inventara contra o
sobrinho. Quem sabe, pensa o rabino, talvez suas palavras
convençam até o seu cético filho, se estiver disposto a ouvir o pai.
Assim, mais uma vez o acusado é chamado a desempenhar o
papel de intérprete. Ao que parece, esta noite Abuláfia não vai
conseguir pronunciar uma única palavra dele próprio em sua defesa,
irá apenas transferir de uma língua para a outra aquilo que outros
dizem a seu favor ou contra ele — se é que o que foi dito por sua
esposa fora de fato em seu favor, e não em favor da esposa anterior,
a antiga, que nunca haveria de supor que a Nova Mulher se ocuparia
a tal ponto com o enigma de seu afogamento, como se esse enigma a
ameaçasse também, mesmo em uma cidade onde não há mar,
somente um rio. Embora Abuláfia soubesse que o rabino trazido de
Sevilha estava prestes a censurá-lo, a atacar o repúdio de sua esposa
e a reprovar o seu súbito desaparecimento, mesmo assim sente por
ele certa afeição Não só pela simpatia despertada pela figura do
rabino, esbelto e infantil, pouco mais alto do que o próprio filho, mas
também pela esperança de que as reprimendas de um rabino,
certamente impregnadas de sensatez, teriam a capacidade de serenar
o ânimo de todos Assim, Abuláfia se dispõe, com todas as suas
forças, a reportar as palavras do rabino do modo mais fiel e rigoroso
possível, procurando ao mesmo tempo manter-lhes o espírito.
De início, porém, não há nenhum espírito nas palavras do
rabino, pois a sede pelo vinho, cuja fragrância perfuma o ar da noite,
retém as palavras em sua boca. Como o proprietário do vinhedo se
mostra indeciso entre servir apenas uma taça ao rabino, ou abrir um
barril para todos, o senhor Lavinas decide por ele, com a
generosidade de visitante que é também um pouco anfitrião. Barril.
Pequeno, mas barril. E o vinho mais apropriado para as
circunstâncias, esta é a conclusão a que chegaram os entendidos, se
encontra exatamente no pequeno barril sobre o qual se senta o
garoto, que com certeza não por mero acaso fora atraído para ele. De
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imediato levantam dali o jovem Elbaz, rolam o barril para o centro
do salão e o colocam de tal maneira que será possível verter o
líquido para toda a sagrada congregação sem que uma única gota
sequer seja desperdiçada. Primeiro enchem a taça do rabino, que
entoa em voz alta a bênção do fruto da parreira, e é seguido pelos
juízes e pelos litigantes. Enquanto a Primeira Esposa bebe
discretamente encoberta pelo véu, a Segunda o retira como se tivesse
decidido a prescindir inteiramente dele e, com um novo sorriso que
lhe ilumina todo o rosto finamente esculpido, esvazia sua taça e
espera por mais uma.
É então, e somente então, sem mais preâmbulos, e ainda
segurando sua taça, que o rabino começa a falar, na esperança de
que o vinho rosado que lhes desliza pela garganta suavize os
pensamentos dos judeus de Ville-les-Juifs — que logo se
aproximaram em silêncio para compartilhar do pequeno brinde e até
mesmo ampliá-los para horizontes novos e desconhecidos. Pois se o
rabino fosse falar tão-somente em termos simples, usando conceitos
conhecidos e aceitos, talvez nem houvesse necessidade de se
estender, mas apenas dizer diretamente: Judeus francos, distantes e
estranhos, por que o espanto? E por que a aversão? Abram e leiam os
rolos das Escrituras, cuja santidade se estende sobre todos nós, e
encontrarão os grandes patriarcas, Abraão, Isaac e Jacó, casados com
duas, três e até mesmo quatro esposas. Continuem e irão deparar
com Elcaná e suas duas esposas, e isso antes de chegarmos aos reis e
suas inúmeras esposas, sendo que o maior de todos é o próprio
Salomão? Mas se quiserem objetar que esses são nossos
antepassados, seres humanos distantes, grandes e poderosos, que ao
serem instados souberam discernir entre o bem e o mal, vejam então
o que está escrito no livro do Deuteronômio: que para um homem
haverá duas esposas. Qualquer homem. Todo homem. Não um
patriarca, não um herói, não um rei, e não um antepassado.
Enquanto Abuláfia se esforça para traduzir a última sentença, o
rabino toma todo o vinho de um gole só. Mas não pousa a taça sobre
a mesa, enchendo-a de novo com o líquido rosado. Depois prossegue
sem demora, para que não haja nenhuma suspeita de que ele se
esquivara da continuação do versículo, uma amada e outra odiada,
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com toda confusão e ameaça que essas palavras pareçam conter, e
diante das quais ele não pretende recuar. Para o momento, porém,
irá se limitar a exprimir sua cólera contra aqueles que ousaram, e
ainda mais numa cidade longínqua como Paris, pronunciar contra
seus próprios irmãos, filhos de Israel, um veredicto de repúdio e
afastamento, demonstrando assim antes ignorância do que soberba,
e profanando a honra dos antepassados, homens e mulheres.
Agora o rabino Elbaz já pode observar pelo canto do olho como
se atenua a expressão de ansiedade no rosto do dono do navio, e
uma pequena fileira de dentes brancos reluz em seu sorriso de
mercador, que começa afinal a sentir o retorno do investimento. Mas
será que Ben-Atar é, na verdade, apenas um mercador? O rabino
coloca de repente essa nova pergunta para si mesmo, e no impulso
do momento a repete em voz alta para o público, que se encontra
agora arrebatado pelo fascínio das palavras do acusador. Não,
responde ele com convicção à própria pergunta, Ben-Atar não viria
de tão longe somente para exigir reparação pela mercadoria perdida.
Também não passaria pela cabeça do rabino Elbaz empreender uma
viagem tão longa apenas pela disputa de um mercador. Se este
homem fosse motivado unicamente pelo apego ao dinheiro e à
parceria rompida, será que lhe teria ocorrido realizar uma viagem
tão difícil e perigosa em perseguição a um sócio desaparecido? Pois
poderia tê-lo substituído com toda facilidade, e pelo mesmo custo,
por três sócios novos e viçosos, prontos a espalhar a notícia das
mercadorias norte-africanas não só entre francos e borgonheses, mas
também entre flamengos e saxões. Não, o rabino de Sevilha não vê
Ben-Atar como um mercador, e sim como um homem disfarçado de
mercador. Durante os longos dias da jornada, e as noites sobre as
pranchas do convés, nunca deixou de considerar a natureza especial
deste homem extraordinário, que só agora, em Ville-les-Juif, revela-
se em toda a sua essência. Porque este é um homem que ama, um
sábio e um filósofo do amor, que vem de muito longe para anunciar
aos quatro ventos que tem duas esposas bem-amadas. E as ama por
igual.
Quando Abuláfia traduz a última sentença, seus olhos pousam
em suas duas tias — e não só os seus. Todos se voltam na direção
daquelas duas mulheres, das quais uma permanece ainda de pé.
Ben-Atar, bastante confuso com as últimas palavras do rabino, toca
no braço da Segunda Esposa, sugerindo discretamente que volte a
sentar-se. Mas ela insiste em continuar de pé e, apesar de todos os
olhares que se fixam por um momento em sua recusa obstinada,
parece não estar disposta a desistir da visão privilegiada do corpo
miúdo e musculoso do rabino que, embalado pelo próprio discurso,
vai e volta em passos pequenos diante da grande tocha. Ela não
pretende se contentar apenas em ouvir sua voz grave, que agora
começa a refutar as últimas palavras da senhora Esther-Míriam.
Pois a Segunda Esposa, acrescenta o rabino com segurança,
sempre existe. Se não existe na realidade, existe na imaginação.
Portanto, nenhum edito rabínico a fará desaparecer. Porém, quando
existe apenas na imaginação do homem, ela é boa, bonita, submissa,
sábia e agradável, de acordo com suas fantasias e seus desejos. Por
mais que sua esposa tente, nunca chegará aos pés dessa mulher
imaginária; logo, sempre haverá, pairando sobre a esposa real, a
sombra do ressentimento e da decepção. Entretanto, quando a
Segunda Esposa não é um sonho, mas a realidade em carne e osso, a
Primeira Esposa poderá sempre se comparar a ela e mesmo superá-
la; por vezes também se unir a ela e, se assim quiser, amá-la.
Um sorriso de desdém ganha o rosto da senhora Abuláfia, que
com seus olhos profundamente azuis não cessa de perscrutar
detidamente a face do tradutor, seu jovem marido, tentando captar
se ele está sendo um tradutor fiel, ou um cúmplice secreto das ideias
criminosas. Mas o rabino não se altera com o sorriso daquela mulher
esperta; pelo contrário, dá um passo em sua direção e dedica um
sorriso direto à sua face enrubescida, a que a mecha dourada
escapulida do prendedor de cabelo confere de repente um ar infantil.
E volta a insistir nas últimas palavras. Sim, até mesmo amá-la, pois
só a Segunda Esposa poderá suavizar o infinito e doloroso desejo do
homem, para que se transforme de ato de afirmação em ato de
prazer.
Agora, porém, o fiel intérprete, subitamente apavorado, estende
os dois braços, impotente, na direção do acusador, que se deixou
arrastar pelas suas tortuosas considerações levantinas. O rabino
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Elbaz se detém e fita a senhora Esther-Míriam, a quem o tumulto de
emoções que lhe agita a alma assoma ao belo rosto, tornando-a assim
mais e mais atraente. Com o canto do olho, percebe o filho
espremido entre a multidão que se empurra na direção do rabino,
com o ouvido atento para não perder uma só palavra do que diz o
pai. De repente Elbaz fica consternado por seu filho estar ouvindo e
compreendendo suas palavras. Desejoso de cumprir a promessa feita
naquela mesma manhã no convés do navio, de defender com todas
suas forças aquela dúplice união familiar que havia se revelado em
toda a sua delicadeza nos mais de quarenta dias de viagem
decorridos, considera a necessidade de realizar uma mudança de
idioma, valendo-se para tanto de mais dois tradutores. Pede então
aos escribas, os rejeitados copistas de textos sacros,
momentaneamente sem função, que venham substituir o
desesperado intérprete e passem a traduzir da língua santa, de que
se servirá de agora em diante, diretamente para o idioma local. O
rabino tem a impressão de que, prosseguindo seu discurso na antiga
língua, amada e esquecida, não só reafirmará sua autoridade aos
olhos da pequena e inculta plateia, como poderá revelar, assim como
fez a senhora Esther-Míriam, certos fatos particulares sem que seu
filho o entenda.
Enquanto a congregação vinícola de Ville-les-Juifs se comprime
interessada em torno dos contendores, o rabino de Sevilha começa a
revelar fatos acerca de si próprio e de sua falecida esposa, como se
sua vida particular tivesse um valor metafórico exemplar, que
permitisse extrair conclusões válidas para a vida de todas as outras
pessoas. Sob o encanto do luar que o envolve, confessa aos que o
ouvem que se porventura um dia sua querida esposa andaluza
ressuscitar do túmulo em Sevilha será certamente para proferir
apenas uma única frase: o quanto ela lamenta o marido nunca ter
tomado uma Segunda Esposa. Não só porque assim, depois de sua
morte, haveria uma mãe para cuidar de seu filho órfão, mas também
porque uma outra mulher poderia aliviar o fardo que a insistência
do marido em procurá-la, ansioso por cumprir seus deveres
conjugais e, Deus o guarde, para não frustrar seus próprios desejos,
lhe impunha, num anseio tão intenso de se fundir a ela que a esposa
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temia que ele acabasse por se transformar em mulher. Quando a
mulher não está sozinha diante dos desejos do esposo, e ele é instado
a ir constantemente de uma à outra, não há alternativa senão renovar
sempre a sua natureza original, masculina, visto não haver mulher
que se pareça com outra.
Elbaz interrompe o fluxo das palavras em hebraico, que jorraram
impetuosas de sua boca num discurso vertiginoso, como se a própria
antiguidade da língua o dispensasse de responder pelo seu
conteúdo. Os dois tradutores, os copistas de textos sacros, discutem
entre si para saber se o que foi ouvido foi o que foi dito, se o que foi
dito foi o que foi entendido, e se o que foi entendido pode ser
traduzido. Enquanto travam um combate particular sobre como
contornar, na sua dupla responsabilidade, os obstáculos da tradução,
discutindo ora uma palavra, ora uma frase, ora um exemplo, ou,
ainda, uma metáfora, o rabino de Sevilha, surpreendendo um brilho
caloroso nos olhos do mercador da Terra de Israel, vislumbra a
possibilidade de vir a conseguir uma sentença favorável para a
sociedade de Ben-Atar. O rabino ainda não sabe como irá conseguir,
mas se enche de repente de esperança e entusiasmo, e o idioma
querido soa dentro dele como se quisesse transformar o discurso em
um novo poema. Depois que os escribas lhe sinalizam que haviam
terminado a tradução, ele se dirige, com uma linguagem simples e
direta, ao irmão e à irmã, que entendem cada palavra.
Não cruzamos o grande oceano para encolerizar-vos. Nem
acalentamos nenhuma intenção de convencer-vos a duplicar ou
triplicar vossas esposas. Se pudermos julgar pelo que vemos aqui, a
terra onde viveis é tão deserta, vossas casas, tão pequenas, vossas
colheitas, tão escassas, e de tal modo os cristãos que vos rodeiam vos
aterrorizam sem que tenteis reagir, que não admira que a vós falte a
virtude da energia que floresce em mil rosas nas terras do Sul,
iluminadas pela sábia luz do sol. Mas do mesmo modo que
cuidamos de não vos julgar a partir da nossa força, assim também
não admitimos que nos julgueis a partir da vossa fraqueza. E,
portanto, que cada um continue fiel a si próprio e honre a sua
própria natureza: que seja restaurada a antiga sociedade, e que ela
nunca mais seja rompida por vós.
Capítulo 3
Haifa, 1994-6
Fim