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TCC - Alvin Aran

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Alvim Aran Santos Silva

A LIBERDADE HUMANA NA OBRA “ÉTICA” DE ESPINOSA

Seminário Provincial Sagrado Coração de Jesus


Faculdade de Filosofia
Diamantina
2022
Alvim Aran Santos Silva

A LIBERDADE HUMANA NA OBRA “ÉTICA” DE ESPINOSA

Monografia apresentada ao Seminário


Provincial Sagrado Coração de Jesus como pré-
requisito para conclusão do curso de Filosofia.

Orientador: Prof. Ms. Pe. José William

Seminário Provincial Sagrado Coração de Jesus


Faculdade de Filosofia
Diamantina
2022

1
Alvim Aran Santos Silva, A liberdade humana na obra “Ética” de Espinosa,
monografia do curso de Filosofia. Seminário Provincial Sagrado Coração de Jesus,
Faculdade de Filosofia. Diamantina, 2022.

__________________________________________________
Prof. Ms. Pe. José William

__________________________________________________
Alvim Aran Santos Silva

Diamantina
2022

2
A todos aqueles que foram chamados de hereges por expressarem seus
pensamentos

3
AGRADECIMENTO

Primeiramente, agradeço a Deus que me guiou até o dia de hoje em busca do


conhecimento, e por colocar em minha vida pessoas que foram importantíssimas para
a construção do meu ser. Agradecimento mais que especial à minha mãe, Rosa de
Fátima, que sempre esteve ao meu lado nos momentos bons e ruins da existência
humana; aos meus amigos que eu admiro muito, em especial: Stael Damas,
Wanderlei Rodrigues, Valéria Cardoso.
Meus agradecimentos ao Padre Salomão G. Neto, a Dom Otacílio Lacerda,
Geová Nepomuceno, ao meu orientador Padre José William, à professora Dircilene
que fez a correção gramatical, e a Evanilton pela formatação.
Meus amigos que fiz nessa caminhada de filosofia: Darlan, Yuri, Silvio, Marcelo,
A. Gurgel, Valdei, Thúlio, e tantos outros que levarei dessa vida para outra, minha
gratidão.

4
“Nenhum filósofo foi mais digno que Espinosa, mas também
nenhum outro foi mais injuriado e odiado”
Gilles Deleuze, 2002, p.23

5
RESUMO

O presente artigo é dividido em três capítulos, sendo o primeiro para falar da Ética e
Liberdade, tendo em vista que a obra magna do autor traz esse nome, será
apresentada a concepção de ética demosntrada por Espinosa. No segundo capítulo,
o conceito de Deus será aprofundado, pois esse , na concepção espinosana, é o
Agente Ativo de tudo, e partindo dele todas outras coisas existem, e é por Ele e n’Ele,
que homens e mulheres entram no conceito de liberdade humana. No terceiro, e
último capítulo, serão apresentados alguns conceitos, como afetos e os gêneros de
conhecimento, e no último tópico, será refletido a concepção de liberdade humana
proposto por Espinosa.

Palavras-Chave: Ética. Deus. Conatus. Liberdade.

6
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8

CAPÍTULO I – O CONCEITO DE ÉTICA .................................................................... 9

1 Ética e liberdade.............................................................................................. 11

2 Uma ética segundo Espinosa ........................................................................ 12

CAPÍTULO II – DEUS SIVE NATURA – O CONCEITO DE DEUS EM ESPINOSA. 18

1 Da natureza naturante (substância) a natureza naturada (modos da


substância) ......................................................................................................... 21

2 O conatus e a busca pela vida feliz ............................................................... 23

CAPÍTULO 3 – OS AFETOS – A FORMA POSITIVA E NEGATIVA DE


PERSEVERAR NO SER ........................................................................................... 25

1 Ideais inadequadas e ideias adequadas ....................................................... 27

2 A construção da liberdade humana pelas vias racionais ............................ 30

CONCLUSÃO ........................................................................................................... 34

REFERÊNCIA ........................................................................................................... 35

7
INTRODUÇÃO

O conceito de liberdade sempre despertou reflexão nos seres humanos, e nos


filósofos, aqueles que refletem sobre a vida e buscam soluções para os problemas
encontrados, refletiram sobre liberdade humana. No presente trabalho, busca, dentre
tantos filósofos, um em especial que vai na contramão do que a maioria acreditou e
defendeu, seu nome é Baruch de Espinosa. E será analisado conceito de liberdade
em sua obra “Ética”.
Acredita-se que após essa reflexão, partindo da Ética, entraremos em Deus,
pois tudo existe n’Ele e por Ele. Mas não é o Deus trancendente dos cristãos, Espinosa
coloca para nós um Deus que é imanente ao homem e dotado de vários atributos.
Esse Deus único é causa de si mesmo, e existindo segundo as suas próprias
necessidades sem ser coagido por ninguém, sendo assim, causa outras coisas as
quais são chamadas de modos da substância.
Após essa reflexão, será apresentada algumas definições importantes para
Espinosa, como as noções de conatus, afetos, ideias adequadas e inadequadas, pois
servirão para chegar ao conceito de liberdade apresentada pelo holandês.
Ao final do trabalho, será apresentado o conceito de liberdade de acordo com
Espinosa, e como ele o concebe pelas vias racionais, esse termo tão especial para
alguns, ainda mais na atualidade em que as pessoas vivem em prisões sem muro.

8
CAPÍTULO I – O CONCEITO DE ÉTICA

Ao falar de ética, é preciso voltar ao berço da filosofia, a Grécia antiga, para


fazer uma reflexão etimológica sobre o termo de origem grega (ethos) e o termo de
origem latina (mores)1. Embora sejam de origem diferente, seus significados são
parecidos. Ainda existe um outro termo grego que precisa ser apresentado, a phisis,
pois é nela que ocorre a vida e tudo que acontece no universo, ou cosmos, como
diriam os gregos.
Physis e ethos estão ligados, estas “são duas formas primeiras da
manifestação do ser, ou da sua presença, não sendo o ethos a transcrição da phisis
na peculiaridade da práxis ou da ação humana e das estruturas históricos sociais que
dela resultam”2. Mas então, o que é a phisis? Entende-se que a phisis é o absoluto
de tudo, ou seja, é o cosmos em sua totalidade. A partir dos gregos, temos um olhar
crítico da realidade passando a compreender que todos os seres estão contidos no
cosmos, ou, segundo os estoicos, contemplação do divino3. Os filósofos naturalistas,
ou pré-socraticos, observaram essa realidade e buscaram uma arché primeira, um
princípio originário para mostrar a base de tudo. Como exemplo, citamos Tales de
Mileto que buscou esse princípio originário na água. Segundo o “pai” da filosofia, esse
elemento seria a base de tudo que existe, ou seja, sem ele nada poderia existir e se
manter, era um princípio único para todas as coisas.
A palavra ethos pode ser designada a partir de dois termos, um com eta no
início e o outro com épsilon:

A primeira acepção de ethos (com eta inicial) designa a morada do homem


(e do animal em geral). O ethos é a casa do homem. O homem habita sobre
a Terra acolhendo-se ao recesso seguro do ethos. Este sentido de um lugar
de estada permanente e habitual, de um abrigo protetor, constitui a raiz
semântica que dá origem à significação do ethos como costume, esquema
praxeológico durável, estilo de vida e ação4

1RUSS, Jacqueline. Pensamento ético contemporâneo. São Paulo: Paulus, 1999. (coleção filosofia em
questão).
2VAZ, Henrique. Escritos de filosofia II: Ética e cultura. São Paulo: Edições Loyola, 1993.
3FERRY, Luc. Aprender a viver: filosofia para os novos tempos. tradução Véra Lucia dos Reis. - Rio de

Janeiro: Objetiva, 2012. (Recurso digital).


4LIMA VAZ, 1993, p.12.

9
A segunda acepção de ethos (com épsilon inicial) diz respeito ao
comportamento que resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos5

Seguindo o primeiro termo, diríamos que é a casa do animal em geral. Esse a


recebe para fazer sua morada. De outro modo, é o cosmos em sua totalidade com
tudo que está contido nele. Podemos concluir que o ethos, em sua segunda acepção,
é como se fosse uma casa em construção, e essa casa estaria permanentemente
sendo construída pelos pedreiros que é o ser humano em geral. Sendo moldada de
forma que o homem consiga alcançar a felicidade dentro da cidade-estado, ou
atualmente, na vida social em geral. É a repetição de atos que foram julgados bons
para o ser humano se desenvolver de forma integral no conjunto social, o hábito que
leva o ser humano a viver harmoniosamente dentro da phisis convivendo com todos
os seres. E a ética? A ética entra como a reflexão sobre o conjunto de normas que
foram conservados pelo homem ao longo da história (ethos), para que esse consiga
refletir sobre os seus atos (metaética). O que nos leva a refletir sobre a moral, pois se
confunde muito esses dois termos em nosso meio social.
Como dissemos, ética e moral têm significados similares. No entanto, o
segundo se refere a costumes, ao conjunto de leis que uma sociedade tem e que são
colocadas diante do homem daquele lugar para que sejam seguidas. Diante de tais
leis é que são feitas as reflexões morais, pois a moral é a reflexão do homem sobre si
mesmo. Ora, imaginem um homem casado viajando para bem longe de sua cidade,
indo a um lugar que ninguém o conhece. Chegando nesse local o homem se depara
com outra moça que sente atração sexual por ele e vice-versa. O homem sabe que é
casado, e segundo as normas que aprendeu não deveria deixar esse desejo
transformar-se em um ato físico. Então, a moral entraria com uma pergunta do homem
para si mesmo: “eu posso fazer isso?”6.
Usando o exemplo do parágrafo anterior a ética entra para julgar a ação do
homem diante da sociedade, ou seja, essa é mais teórica do que prática. Se o homem
converter o desejo em ato, e isso for descoberto, a ética vai julgar se ele agiu
corretamente ou não diante da cultura que a ele pertence, no exemplo citado acima,
o homem agiu incorretamente, pois não é lícito, sua sociedade não permite a

5LIMA VAZ, 1993, p.14.


6SPONVILLE, André Comte. Apresentação da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

10
poligamia. Sendo assim, a ética tem caráter universal pelo fato de não julgar a ação
do homem enquanto individuo, mas de uma sociedade no campo moral, e assim ver
o que é certo e errado. Conservando sempre o certo para que o homem possa
encontrar a liberdade, ou seja, agir de acordo com as leis da “polis” para que tenha
harmonia entre todos cidadãos.

1 ÉTICA E LIBERDADE

A reflexão sobre a ética iniciou-se de acordo com alguns filósofos gregos e


medievos, como uma forma de buscar e encontrar a liberdade humana. A ética como
entendida pelos grandes nomes da filosofia grega, aqui falo especificamente de
Aristóteles, era finalista visando sempre o fim último do homem, a eudamonia, isto é,
a felicidade nesta vida, assim diz Aristóteles: “Verbalmente, quase todos estão de
acordo, pois tanto o vulgo como os homens de cultura superior dizem ser esse fim a
felicidade e identificam o bem viver e o bem agir como o ser feliz” 7. Cada ser no
mundo é guiado até esse fim, no entanto, cada coisa busca uma finalidade especifica,
um bem que se refere a cada coisa tornando-as singulares. A título de exemplo: a
finalidade da planta é diferente da finalidade do cachorro, que também é diferente da
finalidade do homem e se diferencia também da finalidade dos deuses.
É importante que se conheça essa ideia de finalidade, pois é por ela que chega
a eudamonia. O ser humano só será feliz quando alcançar o seu lugar no todo do
universo, achar sua finalidade, que seja dando aula, cortando cabelo ou consertando
veículos. Assim como a água serve para várias coisas no mundo, e em todas elas se
adequa perfeitamente, por isso cada ser humano também precisa achar o seu lugar
no mundo para se adequar ao universo como peças de um relógio que o faz funcionar
perfeitamente. Se esse relógio tiver uma peça ruim significa que alguma coisa está
fora de lugar, assim também se o mundo está mal significa que alguém não está
cumprindo sua função, não alcançou o sumo bem, a Eudaimonia:
Mas dizer que a felicidade é o sumo bem talvez pareça uma banalidade, e
falta ainda explicar mais claramente o que ela seja. Tal explicação não
ofereceria grande dificuldade se pudéssemos determinar primeiro a função
do homem. Pois, assim como para um flautista, um escultor ou um pintor, e

7ARISTOTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultura, 1991.(Recurso Digital).

11
em geral para todas as coisas que têm uma função ou atividade, considera-
se que o bem e o "bem feito" residem na função, o mesmo ocorreria com o
homem se ele tivesse uma função8
Portanto o homem tem sua função no mundo, mas precisa achá-la. O cosmos
dá ao homem potência, e o homem precisa converter essa potência em ato para se
chegar na felicidade, mas só será convertida em ato se estiver no seu lugar correto.
Por esse motivo dizem que o bem para cada coisa se difere. Pois, assim como no
relógio, cada peça tem sua função especifica para fazê-lo funcionar. E a ética? Sendo
a reflexão sobre a moral, ela deve olhar e mostrar ao homem o que é bom para
alcançar o bem e, consequentemente, sua finalidade, chegando a eudaimonia.
Em Aristóteles, encontra-se um estudo mais aprofundado da ética. O homem
deve sempre aspirar ao que é bom para alcançar a liberdade, e para isso deve agir
racionalmente seguindo as leis que se converteram em hábitos, em contra a partida
quando o homem deixa de usar a razão e começa a seguir os vícios deixa de ser livre.
De acordo com Manfredo Araújo: “A ética filosófica é então a ciência neutra que
pesquisa, logicamente, a linguagem moral; ela é ‘metaética’”9, o que isso significa?
Significa que a ética irá refletir sobre o agir moral do homem na sociedade em que
está inserido para construir a liberdade que terá o ápice na pólis, isto é, na vida em
comunidade aspirando sempre o que é bom a partir do Ethos.
Assim a ética tem a função de estudar o que é o bem e o mal para homem, e
seguindo essa linha ele encontrará a liberdade fundada no Ethos que se manifesta na
natureza. No próximo ponto, pretende-se refletir de maneira geral sobre o conceito de
ética e moral na construção da liberdade, e posteriormente será apresentado o
pensamento de Espinosa sobre ética e moral e como estes conceitos afetam o dia a
dia da humanidade.

2 UMA ÉTICA SEGUNDO ESPINOSA10

8ARISTOTELES, 1991, p.13.


9OLIVEIRA, Manfredo. Ética e Sociabilidade. São Paulo: Edições Loyola, 1993.
10Scribano, E. (2017). ESPINOSA E O CONHECIMENTO DO BEM E DO MAL. Cadernos Espinosanos,

(37), 33-72. https://doi.org/10.11606/issn.2447-9012.espinosa.2017.124045.

12
A Ética de Espinosa11, publicada em 1677, é dividida em cinco partes, a saber:
I) De Deus, II) Da mente, III) Dos afetos, IV) Da servidão humana, V) Da liberdade
humana. Esses capítulos de Espinosa revolucionam o modo de pensar, rompem com
a teologia medieval, até então potência na época, isto é, a ideia de um Deus
transcendente ao homem que criou o universo de fora e observa o andamento do
mesmo.
Esse Deus transcendente é colocado em xeque por Espinosa quando, na parte
I da ética traz a ideia de um Deus Imanente ao homem, que não cria de fora e observa,
mas que é o todo do universo e participa ativamente da vida do homem como potência
de tudo, já que é a própria natureza e o homem é parte desse todo, como veremos no
segundo capitulo.
Mas antes é preciso passar pela mente que, segundo Espinosa na parte II da
Ética, é uma modificação finita do atributo pensamento de Deus, enquanto o corpo é
uma extensão finita do mesmo. Sendo assim, ambas, partindo do mesmo lugar, se
completam tornando um só atributo da substância infinita, sendo afetada (afetos) por
uma infinidade de coisas, ou paixões, como na parte III da Ética, segundo ele, afeto é
aquilo que nos atinge de forma positiva ou negativa (paixões alegres ou tristes), que
coopera ou não para o ser humano se manter ativo no mundo (Conatus).

11Spinosa (Baruch de Espinosa) nasceu em Amsterdão no ano de 1632 (o mesmo ano em que nasceu
Locke), de família abastada de judeus espanhóis (forçados a se converter, mas que secretamente se
mantiveram fiéis a sua antiga fé) que se haviam refugiado na Holanda para escapar às perseguições
da Inquisição em Portugal. (Recordemos que os judeus e os mouros obrigados a se converter, na
Espanha, eram chamados com o termo depreciativo de “marranos”)
Na escola da comunidade judaica de Amsterdão, Spinoza aprendeu o hebraico e estudou a fundo a
Bíblia e o Talmud.
Entre 1652 e 1656, frequentou a escola de Francisco van den Enden (que era douto de formação
católica, mas que havia tornado livre pensador), onde estudou latim e ciências. O conhecimento do
latim abriu para Spinoza o mundo dos clássicos (entre os quais Cícero e Sêneca) e deu-lhes acesso
aos autores renascentistas e aos filósofos modernos, Especialmente Descartes, Bacon e Hobbes.
Pouco a pouco, o pensamento de Spinoza delineava-se, revelando-se sempre mais clara a sua
inconciliabilidade com o credo da religião judaica. [...]
O ano de 1656 assinalou dramática e decisiva reviravolta: Spinoza foi excomungado e banido da
Sinagoga [...]
Como e de que vivia Spinoza? Ele aprendera a cortar vidros óticos. E o provento que ganhava com
esse trabalho cobriam grandes partes de suas necessidades [...] Amigos e admiradores ricos e
poderosos chegaram a oferecer-lhes grandes doações, mas ele as recusou, ou então, como no caso
de uma renda que lhe foi oferecida por S. de Vries, aceitou-a, mas reduziu drasticamente o seu valor,
com base no pouco que necessitava para sua vida frugal. CF. REALE. ANTISERE, 2003, p. 404-405.

13
A parte IV da Ética de Espinosa s inicia-se assim: “Por bem entenderei aquilo
que sabemos certamente nos ser útil”12. Ora, segundo nosso filósofo o bem se refere
ao que se considera útil e agradável para nossa vida, como está bem evidente nesse
aforismo em sua obra magna. Por muitos filósofos, Espinosa é considerado um
Imoralista13, pois seu pensamento acerca da moral não diz que existe uma moral
universal. O que é bom ou ruim depende de como somos afetados pelas coisas, e não
as coisas em si.
Mas é errôneo chamar Espinosa de Imoralista, a Ética de Espinosa não é uma
Bíblia, ou seja, não é um guia moral para o ser humano. O Deus de Espinosa
diferentemente do Deus dos cristãos não é um legislador da moral. Não existe pecado
que leva a morte, mas sim uma forma pela qual somos afetados por determinadas
coisas e que nos levam a perder potência de viver, ou conatus, como é denominado
por Espinosa.
O bem, mal ou pecado só existem nas mentes humanas, na natureza não existe
ideia de mal ou bem, e depois de criar tudo “Deus viu que era bom”14, em outras
palavras, a Natureza é boa em si mesma, pois, Deus, no conceito espinosano, é bom,
e segundo Chauí, “bem, mal, pecado são apenas modos de pensar e não realidade
ou algo que possua existência”15. O problema para Espinosa está na intepretação
transcendente que se fez dessa história ao longo de toda a história. Eis o herege
subversivo, Espinosa afirma que Deus não é transcendente, é imanente, eis a filosofia
da imanência apresentada por Espinosa.
Se é imanente, Deus não é legislador da moral, não é um Deus pessoa, é tudo
que existe, “Deus sive natura”, diz Espinosa. Muda-se a interpretação que se faz do
livro do Genesis, o que aconteceu com Adão e Eva não passou de um mau encontro
que ambos tiveram com determinada modo da substância encontrada no mundo. A
substância não é ruim por si só, porém se torna quando somos afetados por ela de

12ESPINOSA, Baruch. Ética; tradução Grupo de Estudos Espinosanos; coordenação Marilena


Chauí.São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2018, c. 1677.
13LAURO, Rafael. Espinosa, o imoralista. 2019. Disponível em: <
https://razaoinadequada.com/2019/01/16/espinosa-o-imoralista/ >. Acesso em: 25 mai. 2021.
14A BÍBLIA. A obra dos seis dias. Tradução de Gilberto da Silva Gorgulho. São Paulo: Paulus, 2002.

Velho Testamento e Novo Testamento.


15Chaui, Marilena. A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa. São Paulo: Companhia

das Letras, 2016.

14
uma maneira que nos prejudique. Ao tomarmos consciência desse afeto, a maneira
dos geômetras, não iremos julgá-la ruim, no entanto perguntaremos como isso
funciona e de onde vem.
Tomemos a ideia de um suposto fruto proibido, ele se tornou mal quando
impediu o desenvolvimento humano no Paraíso, o que a tradição cristã fez foi
interpretar o dito “pecado original” de forma errada. Deus não proibiu Adão de comer
o fruto proibido, mas mostrou a ele que seria um mal encontro, que a essência do fruto
não era a essência do primeiro homem, e isso o levaria a morte.
Ainda com a ideia de um fruto físico, ou veneno, pode ser considerado ruim
para uma pessoa que a afetada por ela de forma que isso impeça o desenvolvimento
da razão causando uma paixão triste. Ou ela pode ser boa quando alguém é afetado
por ela de forma que seja um remédio a curar uma enfermidade e assim causar uma
paixão alegre, em suma, a ética em Espinosa é a forma como os seres humanos são
afetados pelas paixões.
O que se pretende mostrar é que só chegamos a um conceito de mal e bem
quando duas coisas se relacionam entre si. Um exemplo mais objetivo: Pedro e Judas
não são maus, tendo em vista que esses conceitos não existem fora da nossa mente,
“falar na bondade de Pedro ou que Pedro é bom e na maldade de Judas ou que Judas
é mau, não é definir bem e mal, pois só existem como algo relacionado a essência de
Pedro e à de Judas quando comparado a outros homens”16. Se Pedro briga sozinho,
não é um ato mau, pois não afeta Judas, no entanto, se Pedro briga com Judas e o
impede de ter potência, causando então uma paixão triste, esse ato é considerado
ruim, do ponto de vista ético.
Chegamos, então, na parte V da Ética: Da liberdade humana. Para Espinosa,
só é livre o ser que age conforme sua própria natureza. Somente Deus é
completamente livre por ser causa de si mesmo, o ser humano é um modo da
substância eterna, e só é livre enquanto se esforça para perseverar em sua existência
condicionada pela Substância única que é causa sui.
E agora aparece para uma nova questão: Por que Espinosa nos apresenta tudo
isso a maneira dos geômetras? Ora, deixemo-nos ser guiados por Deus nessa more

16CHAUI, 2016, p.35.

15
geométrico, literalmente. Diferente de Descartes que inicia sua filosofia das coisas
simples para as complexas, e Deus funciona como um quebra galho, em Espinosa,
tudo se inicia em Deus e volta para Deus como numa espécie de círculo, numa figura
geométrica, é por Deus, com Deus e em Deus que tudo acontece, e dentro desse
círculo se encontra todas as coisas.
Pensemos num círculo, e esse círculo representa a Natureza, dentro desse
círculo se encontra alguns desenhos partindo de si mesmo, como numa espécie de
caracol, mas todo fechado. Ora, tudo que existe dentro desse círculo, só existe porque
o círculo existe, quando o círculo deixa de existir, tudo que existe nele cessa sua
existência também. Por esse motivo, Espinosa começa com Deus e termina com
Deus. Por isso a Ética é demonstrada a maneira dos geômetras, isto é, existe por si e
segue suas próprias leis, tal como um mais um são dois e círculo expressa a ideia de
círculo, assim Deus é causa de si mesmo e tudo está contido n’Ele, expressando que
não tem como postular os outros quatro capítulos da Ética sem pensar naquele que é
o princípio e fim de tudo.
De outro modo, o método geométrico em Espinosa não tem caráter professoral,
isto é, não quer ensinar algo que já existe, como, a título de exemplo, os ensinamentos
de Agostinho sobre Deus, ou então os ensinamentos de Lutero sobre a reforma, antes,
ele quer criar do novo, por isso começa do início e postula Deus como primícia, o
método geométrico, diz Deleuze, “não se trata mais uma exposição professoral, mas
de um método de invenção”17. Espinosa, então, inventa Deus, ou uma nova
concepção de Deus que forma uma nova forma de contemplar (teoria) o mundo.
Espinosa fixa uma nova forma de pensar o mundo, diferente do comum naquele
tempo, e, através de sua Ética, transmite novas concepções que servirão para
despertarmos de um sonho transcendente para uma realidade imanente que tem
como viés a vida, mas não qualquer vida, essa vida na terra, a única que importa.
Ainda existem aqueles que guiados pela santidade de Espinosa, caem de cabeça em
sua obra “Ética”, mas se frustram. Não é o que a maioria espera, “que ninguém entre
aqui se não for geômetra”, frase emblemática escrita na Academia de Platão18, e dito

17DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002. (Recurso Digital).
18Ferry,
Luc. Aprender a viver: filosofia para os novos tempos. Tradução Véra Lucia dos Reis. - Rio
de Janeiro: Objetiva, 2012. (Recurso digital).

16
mais explicativo não há para aqueles que pretendem pegar a obra de Espinosa para
ler.
Não é uma obra de fácil compreensão, diríamos que é uma viagem em busca
do Deus desconhecido procurando encontrá-lo, e se consegue, quando, viajando
pelas belas páginas escritas em latim, se deixa mergulhar no mar vasto e profundo
que é o pensamento espinosano. Ao começar a leitura, deparamos com definições,
axiomas, proposições, demonstrações, escólios e corolários que nos guiam nessa
emocionante viagem pela descoberta divina, que sempre nos leva a voltar as páginas
e avançar, entramos num círculo (Ao modo dos geômetras). Então, aqueles que
pretendem ler Espinosa devem ter cuidado, “caute”, diria o holandês, pois o que ele
entende por Deus, vai contra o que a maioria acredita piamente. Mas o filósofo precisa
sofrer para chegar ao conhecimento, depois vai ser recusado pelos seus
contemporâneos e pode morrer, mas ainda sim permanece firme na verdade.

17
CAPÍTULO II – DEUS SIVE NATURA – O CONCEITO DE DEUS EM
ESPINOSA

Na Ética de Espinosa, parte I, o filósofo tratará da substância, conceito


importante a ser definido para que haja um entendimento sobre a liberdade humana.
Como foi dito capítulo anterior, a Ética é more geométrico, isto é, escrita à maneira
dos geômetras, significa que Espinosa não abre espaço para um pensamento da
possível não existência de Deus como sendo a Natureza, então, poderíamos dizer
que o Deus de Espinosa é o que é, e com essa tautologia, conclui-se que ele existe
necessariamente, como na definição I da primeira parte da Ética: “Por causa de si
entendo aquilo cuja essência envolve existência, ou seja, aquilo cuja natureza não
pode ser concebida senão existente”19. Geovanni Reale ainda demonstra de forma
concisa que, em Espinosa: “Deus é aquilo de cuja existência nós estamos mais certos
do que da existência de qualquer outra coisa”20. Se existe, é agente ativo de tudo,
causa imanente, não transcendente, ou seja, tudo está contido nele e existe por Ele,
e por isso está fora de cogitação sua não existência.
Deus para Espinosa é uma única Substância, que é entendida como “aquilo
que é em si, isto é, aquilo cujo conceito não precisa de conceito de outra coisa a partir
do qual deva ser formado”21. Com isso, Espinosa quer mostrar que Ele é causa de si
mesmo e de todas as outras coisas. Assim a pensadora Marilena Chauí mostra: “a
afirmação Deus sive natura, isto é, que a substância absolutamente infinita é o
universo, o todo da natureza, e que, pela potência de seus atributos, é a causa
eficiente imanente absoluta de todas as coisas”22. Por isso é panteísta: “causa
eficiente imanente absoluta de todas as coisas”, tudo é uma única substância, e não
poderíamos citar um exemplo melhor para explicar o Deus de Espinosa que o de
Clovis de Barros Filho. Veja o exemplo dele aqui, não necessariamente como ele
disse, mas conservando a ideia central: O Deus de Espinosa é como se fosse o corpo
humano composto por uma quantidade exorbitante de células. E assim como no corpo

19ESPINOSA, 2018, p.45.


20REALE, ANTISERI. História da filosofia: Do humanismo a Kant. São Paulo: Paulus, 1990. –
(Coleção Filosofia).
21 ESPINOSA, 2018, p.45.
22 CHAUI, 2016, p.50.

18
humano essas células vão se destruindo, e depois se transforma em outras, o Deus
espinosano é como se fosse o corpo humano e tudo que existe na Terra é parte desse
Deus, ou seja, as células. Assim como no corpo humano, as células morrem, mas o
corpo continua, assim é o Deus que Espinosa apresenta à humanidade, morremos,
mas a Natureza continua viva, isto é, Deus continua sendo Deus com todos seus
infinitos atributos23.
Partindo disso, os homens são como que fantasmas evanescentes no mundo,
como no corolário da proposição XXV, Parte I, da Ética: “as coisas particulares nada
são, se não afecções dos atributos de Deus, ou seja, modos, pelos quais os atributos
de Deus se exprimem de maneira certa e determinada”24. A humanidade está apenas
de passagem nesta terra, morre e retorna a Deus, mas não conservando quem somos,
numa espécie de paraíso como no cristianismo; somos modos da substância e a ela
retornaremos quando cessar nossa breve potência de existir. Mas Espinosa não era
finalista, sabia que não existia um mundo transcendente ao homem. A vida para
Espinosa é o aqui e o agora, é o real como ele é, e mais uma vez citando Clovis,
“caótico, torto, injusto, asqueroso, feio, medonho”, e como complemento, citando uma
oração católica, é o vale de lágrimas na qual gememos e choramos, mas também é o
sorriso de uma criança, a alegria de um estudante ao passar numa prova, é o gol na
final de libertadores que dá a vitória a um time, é também o choro e a tristeza do time
que perdeu. O Deus de Espinosa é o todo, o mundo em suas relações.
Relações que causam as outras, mas que não as dirige para um telos, isto é,
uma causa final. Pois não existe uma finalidade para os modos da substância, esses
não irão alcançar a vida eterna quando cessar sua existência, não tem uma missão
nesta Terra na qual é chamado, o que existe é a potência de Deus que faz todos
agirem de modo determinado por modos relacionais e causais, como diz Espinosa:
“de uma causa determinada dada segue necessariamente um efeito; e, ao contrário,
se nenhuma causa determinada for dada é impossível que siga um efeito”25. Deus não
foi causado por ninguém, ele é o que é, e sua essência envolve uma existência, ele
existe por si, então Ele é livre e eterno.

2310, Documentários. Clovis de Barros Filho – Deus. YouTube, 2015. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=KlSil0LpfOc&t=22s. Acesso em: 17/10/2022.
24 ESPINOSA, 2018, p.91.
25 ESPINOSA, 2018, p.47.

19
Essa liberdade e eternidade é definida em Deus, ainda nas páginas iniciais da
Ética, sendo a primeira entendida como livre aquilo que é causa de si e que segue a
necessidade de sua própria natureza. Já a segunda é entendida como a própria
existência que causa a si mesma (definições VI e VII da parte I da Ética) seguindo as
leis de sua própria natureza sem ser coagido por nenhum outro. Sobre isso, achamos
justo deixar o próprio Espinosa, pelas suas ricas e sábias palavras nos explicar melhor
o que é seu Deus, pois se Ele (Deus) tivesse falado, teria dito assim:

Minha casa está nas montanhas, nos bosques, nos rios, nos lagos, nas praias
e no coração das pessoas. Ali é onde eu, de fato, vivo e ali expresso meu
amor por ti. Para de me culpar da tua vida miserável: eu nunca te disse que
há algo mau em ti ou que eras um pecador, ou que tua sexualidade fosse
algo mau. O sexo é um presente que eu te dei e com o qual podes expressar
teu amor, teu êxtase, tua alegria. Assim, não me culpes por tudo o que te
fizeram crer. [...] Para que precisas de mais milagres? Para que tantas
explicações? Não me procures fora! Não me acharás. Procura-me dentro
de ti, nos outros, nas coisas e, sobretudo, nas relações que vives. Aí é
que estou, sempre estarei abraçado contigo.26

Por esse fragmento de uma carta de Espinosa observa-se o que ele entende
por Deus, então, por que chamar de Deus um ser que não é Deus como conhecemos,
como nos ensina a fé cristã, provinda do judaísmo? Deixamos, novamente, o prof.
Clovis de Barros explicar:

Espinosa responde: ‘porque o meu Deus tem as mesmas características, tem


os mesmos atributos do seu Deus [...] O Deus cristão não é onipotente? O
meu também é, ele é toda a potência. O Deus cristão não é onisciente? O
meu também é, ele é toda a ciência. O Deus cristão não é onipresente? O
meu também é, ele é tudo o que é27

Onipotência, onisciência e onipresença são características indispensáveis ao


Deus de Espinosa. A primeira, pois, ele precisa ser suma potência para dar potência
aos outros, para ser causador de tudo e ser tudo, e para ser tudo, precisa estar
presente em tudo, por esse motivo é onisciente, isto é, suma ciência, e também
onipresente, é suma presença. Bem, Espinosa define dois termos, o primeiro é a
natureza naturante, essa é a substância infinita, constituída por infinitos atributos, ou
seja, Deus. E depois define uma que ele chama de natureza naturada, essa, por sua

26 Núcleo. 2016. Disponível em: < https://nucleo.org.br/deus-de-spinoza/>. Acesso em: 17/10/2022.


grifo nosso.
27 BARROS, 2015, www.youtube.com/watch?v=KlSil0LpfOc&t=22s.

20
vez, é os modos, ou as afecções da substância. Veja, no próximo tópico, como se dá
essa passagem para Espinosa, de forma mais concisa.

1 DA NATUREZA NATURANTE (SUBSTÂNCIA) A NATUREZA NATURADA


(MODOS DA SUBSTÂNCIA)

Existem alguns conceitos em Espinosa que precisam ser tratados para melhor
compreensão do filósofo, dois desses são: Natureza Naturante e natureza naturada.
Definir essas ideias é de suma importância. Olhemos atentos, pois, de certo modo,
estamos percorrendo um caminho pela Ética para podermos entender o que é a
liberdade humana para Espinosa e como essa age no homem. Com isso, esses
conceitos são importantes. A primeira é a substancia eterna e infinita, causa sui. A
segunda são as modificações que essa substância sofre ao decorrer da história.
Ambos são modos de Deus que:

São designados como res natureles, coisas naturais, mas os modos finitos
também são designados como res particulares, coisas particulares,
designação que não se aplica aos modos infinitos porque, embora sejam
naturais e com maneiras determinadas de existir e operar, não são
particularidades infinitas28

Se Deus é tudo, e nós somos modos desse Deus, como explicar a finitude
humana? Como se dará essa passagem de Deus para nós, pela lógica, se Deus é
eterno, nós também deveríamos ser, mas como dito parágrafos acima, somos como
que espectros passageiros. Para entender isso, a humanidade precisa forcar em um
conceito: “modo”, pois é partindo dele que há uma compreensão dessa passagem das
naturezas. Poderia entender os modos como criaturas, no entanto, segundo Deleuze,
os modos são “as maneiras de ser desta substância. Então, uma só substância que
tem todos os atributos e cujos produtos são os modos, as maneiras de ser”29. Mas,
ainda sim, veja um último e definitivo exemplo. Pense em uma árvore com todos seus
atributos, isto é, tronco, raiz, galhos e frutos. Os frutos seriam os modos de ser dessa
árvore, que podem ou não se desenvolverem e se tornarem comestíveis, dependendo
das condições que estão. Eles são frutos da árvore, mas não é árvore, ou seja, tem

28 CHAUI, 2016, p.75.


29 DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza. Fortaleza: Ed UECE, 2019.

21
em si algumas características da árvore, mas não são ela por completo. Assim
também nós, a árvore seria a substância eterna e infinita, e todos nós somos os frutos,
ou modificações da substância. Deus e o homem são uno, assim como árvore é una
com tudo que a compõe.
Mas em Espinosa, apesar de Deus também ser Uno, inicia o mundo, mas
também é o mundo (Causa Sui), “o Ser unívoco, é precisamente o que Spinoza define
como sendo a substância tendo todos os atributos iguais, tendo todas as coisas como
modos. O ente são os modos da substância”30. Com isso definimos os modos,
mostramos que a passagem se dá por uma modificação da substância eterna, mas
isso não nos torna o Ser e sim os entes. Lembre-se que Espinosa diz que a essência
de Deus envolve existência, assim também o homem, mas sua essência não envolve
existência, necessariamente. Então Deleuze ainda nos explica: “É muito curioso: você
não se define por uma essência, ou melhor, sua essência é idêntica ao que você pode,
isto é, você é um grau sobre uma escala de potências”31. Partindo disso pode fazer
uma pergunta: eu posso ser causa de mim mesmo? A resposta é não, o homem é
causado por Deus, por isso a essência da humanidade não envolve existência.
Sendo modo, Deleuze diz que existem dois tipos: “Você existe de tal maneira
que ora você existe sobre tal modo, ora sobre tal outro modo, e a Ética vai ser a
exposição destes modos de existência. Ali não é mais a escala quantitativa da
potência, é a polaridade de modos de existência distintos”32. Quais são esses modos?
Esses dois polos [modos] são chamados de o homem forte e o homem fraco, não no
sentido de força física, de outra maneira, homens potentes e impotentes. O homem
potente é o modo da substância que tem força para ser feliz e encontra o seu lugar no
cosmos, em Espinosa, persevera no Ser (conatus). E o homem impotente? Esse, ao
contrário, tem sua passagem por essa Terra mais passageira ainda, pois se trata
daquele que entristece a vida, tornando-a um fardo. Eticamente falando, são aqueles
que impedem o homem de ser homem criando suas leis baseadas em deuses
transcendentes.

30 IDEM, p. 81.
31 IDEM, p.109.
32 IDEM, p.110.

22
2 O CONATUS E A BUSCA PELA VIDA FELIZ

Todos os seres humanos buscam a felicidade de formas variadas durante a


vida, e vários filósofos ao longo da história tentaram alcançar a felicidade. Espinosa
não é diferente, e mais uma vez nos deparamos com um conceito importante para o
filósofo holandês, conatus. De forma simples Espinosa diz que conatus é a
capacidade do homem “perseverar em seu ser”33, isto é, manter-se vivo e feliz nesta
vida, não qualquer vida, esta vida. E na vida, diante de tantas relações, os modos da
substância irá buscar se manter no Ser o máximo que conseguir.
E nessas relações, de forma racional, buscará sempre o que for bom, isto é, o
que é útil para fazer que os modos da substância, de forma singular, se mantenham
vivos. Quando Espinosa diz “modos da substância”, fala sobre cada ser no singular, é
o princípio individual, por exemplo, Paulo (modo da substância/coisa singular) é o que
é, e é único. Pedro (modo da substância/coisa singular) é o que ele é, e também é
único, o que Espinosa também chama de “coisas singulares” e continua dizendo que
essas são:

coisas que exprimem de maneira certa e determinada a potência de Deus,


pela qual Deus é e age; e nenhuma coisa tem algo em si pelo qual possa ser
destruída, ou seja, que lhe tire a existência (pela Prop. 4 desta parte); ao
contrário, opõe-se (pela Prop. preced.) a tudo que lhe pode tirar a existência,
e por isso, o quanto pode estar em suas forças, esforça-se para perseverar
em seu ser34

Se o conatus é se manter vivo e bem, cada coisa singular irá buscar por aquilo
que lhe apetece, o que é útil para Paulo perseverar no ser, talvez não seja para Pedro.
Supomos que Pedro está sentindo dor de barriga e vai ao médico, esse por sua vez
receitará um determinado remédio que ao afetar Pedro, tratará de seu problema.
Paulo também vai ao mesmo médico que o receita um outro remédio para tratar a dor
de cabeça, pois o doutor, e nós também, sabemos que um determinado remédio pode
servir para uma coisa e não para outra. Assim o que é útil a Paulo não será para
Pedro, por se tratar de problemas diferentes. Então, um deles irá melhorar,
perseverando no ser. Enquanto o outro perderá potência.

33 ESPINOSA, 2018, p.251.


34 ESPINOSA, 2018, p.251.

23
Então, o conatus é capacidade dos modos da Substância de se manterem vivos
e bem, buscando sempre a vida feliz. O capítulo três tratará dos afetos, pois esse
conceito ajudará as coisas singulares a perseverarem no ser.

24
CAPÍTULO 3 – OS AFETOS – A FORMA POSITIVA E NEGATIVA DE
PERSEVERAR NO SER

Foi mostrado que conatus é o esforço que cada ser singular faz para perseverar
em seu ser, de outro modo, preservar a sua existência o máximo que conseguir. Já
neste terceiro capítulo, primeiro tópico, propõe-se a desenvolver a ideia dos afetos na
filosofia de Espinosa. Para Cícero, como demonstra Marilena Chaui, os afetos:

são perturbações que roubam a saúde do ânimo. O vocabulário de Cícero é


sugestivo. Pertubatio é agitação violenta e desordenada, vinda de turbo,
agitar desordenadamente, mover com violência; affeccio, derivando-se de
afficio e de facio, remete a factio, facção, sediação, guerra interna entre
partidos opostos. As paixões, perturbações e afecções do ânimo, escreve
Cícero, são sediciosas e tornam o ânimo inimigo de si mesmo35

A definição de afetos que se tem por esse fragmento é que são vicio e doença,
uma guerra travada dentro do ser humano, uma perturbação, uma paixão.
Pensamento esse que continua com os filósofos cristãos, a essa paixão “Agostinho
chama de libido”36, de coisas que são, por assim dizer, metafisicas, provenientes do
próprio homem e não da natureza, que o homem mais perturba a natureza do que
seguem as leis da mesma. Mas chegou à filosofia da imanência proposta por
Espinosa. E ele nos explica melhor essa questão quando fala o que os antigos (os
que vieram antes dele) entenderam por afetos, no prefácio da parte III da Ética, diz o
seguinte:

Quase todos que escreveram sobre os Afetos e a maneira de viver dos


homens parecem tratar não de coisas naturais, que seguem leis comuns da
natureza, mas de coisas que estão fora da natureza. Parecem, antes,
conceber o homem na natureza qual um império num império. Pois creem
que o homem mais perturba que segue as leis da natureza, que possui
potência absoluta sobre suas ações, e que não é determinado por nenhum
outro que ele próprio37(grifo nosso)

Assim, Espinosa demonstra como os antigos consideraram o homem, separado


da natureza, e habitando um império, isto é, o mundo. Sendo também, o homem, um
outro império (um império num império, com outras palavras, o homem no mundo).
Esse outro império é o homem que age por si e não é determinado por nenhum outro

35 CHAUI, 2016, p.284.


36 CHAUI, 2016, p.284.
37 ESPINOSA, 2018, p.233.

25
que não seja ele próprio, pelo menos é o que a filosofia defendeu até Espinosa. Eis
que surgiu o apóstolo da razão para mudar essa concepção de afeto.
Espinosa não coloca esse conceito, afeto, da forma que Cícero e Agostinho
colocou, pois ele diz: “Por Afeto entendo as afecções do Corpo pelas quais a potência
de agir do próprio corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou coibida, e
simultaneamente as ideias dessas afecções”38. Com isso, tudo que atinge os modos
da substância é tido como afeto, dividido em dois primários (alegria e tristeza) que
causam os outros39. Se, como exemplo, o primeiro homem, Adão, comesse o suposto
fruto proibido e esse fosse de sua natureza não morreria, ao contrário, teria um bom
encontro resultando num afeto alegre que aumentaria sua força de potência, ou
conatus. Por outro lado, se comesse o suposto fruto e esse não fosse da mesma
natureza que Adão resultaria num mau encontro, ou seja, um afeto triste que
rebaixaria o seu conatus até o levar a morte. E assim nos explica Deleuze:

Quando faço um encontro tal que a relação do corpo que me modifica, que
atua sobre mim, se combina com minha própria relação, com a relação
característica de meu próprio corpo, o que acontece? Eu diria que minha
potência de agir está aumentada; ao menos aumenta sob esta relação.
Quando, ao contrário, eu faço um encontro tal que a relação característica do
corpo que me modifica compromete ou destrói uma de minhas relações, ou
minha relação característica, eu diria que minha potência de agir é diminuída
ou mesmo destruída40

Parece que continuou sendo um método relacional, como no primeiro capítulo,


terceiro tópico, quando diz que a ética para Espinosa é como os modos da substância
se relacionam, e continua Deleuze: “em um caso minha potência de agir é aumentada
e experimento um affectus de alegria; no outro caso a minha potência de agir é
diminuída e experimento um affectus de tristeza”41. Ainda Espinosa apresenta os
afetos como coisas singulares e naturais, diz Chaui:

Espinosa os apresenta ontologicamente como efeitos necessários de causas


naturais determinadas e eles próprios como causas de efeitos determinados
e os insere na rede de ordem necessária de conexões causais da natureza.

38 ESPINOSA, 2018, p.237.


39TRINDADE, Rafael. Espinosa – origem e natureza dos afetos. 2014. Disponível em: <
https://razaoinadequada.com/2014/07/15/espinosa-origem-e-natureza-dos-
afetos/#:~:text=Dos%20afetos%20prim%C3%A1rios%2C%20alegria%20e,acompanhada%20de%20u
ma%20causa%20exterior >. Acesso em: 03 nov. 2022.
40 DELEUZE, 2019, p.51.
41 DELEUZE, 2019, p.51.

26
Dessa forma os afetos negativamente valorados não são vícios, nem
positivamente valorados são virtudes; não são modelos universais de má ou
boa conduta: são coisas singulares necessárias e eles próprios causas
determinadas de efeitos determinados42

Isso nos mostra que cada afeto é o que só poderia ser e afeta os modos da
substância somente como poderia afetar. Os afetos não são vícios ou virtudes, eles
são necessários na Natureza. E com isso pode se dizer que cada afeto, afetando só
como poderia afetar, traz em si uma causa determinada que podemos observar. Um
exemplo simples, como Adão arremessar sobre Eva uma maçã, e a mulher desmaiar.
O desmaio de Eva foi causado por um ato de Adão que resultou num afeto triste, ou
seja, o desmaio de Eva aconteceu somente como deveria acontecer. Assim como a
galinha faz somente aquilo que poderia ser feito, que é ser galinha, pela causalidade
da evolução das espécies.
Mas existe, ou deve existir, um certo grau de razão para entender o que está
acontecendo ao nosso redor. Então Espinosa mostra ainda duas concepções para se
analisar as causas que levam a um efeito, isto é, saber como foi afetado. E isso é feito
através do conhecimento das ideias adequadas e inadequadas que veremos no
próximo tópico.

1 IDEAIS INADEQUADAS E IDEIAS ADEQUADAS

Os modos da substância podem ser afetados de diversas formas, causando


inúmeras mudanças. Um exemplo claro necessário para desenvolver este texto é o
do evolucionista Charles Darwin, ele propôs a evolução das espécies43, e durante
milhares de anos todas as espécies sofreram mutações até chegar o que é hoje.
Podemos mudar esse termo “mutação” para “afetação” e concluir que inúmeras
espécies foram afetadas de diferentes modos até se tornarem o que são.
As espécies não deliberaram sobre suas afetações, nem sabiam que estavam
sendo afetadas e, consequentemente, sofrendo mudanças. Não tiveram a
oportunidade de refletir sobre as ideias adequadas e inadequadas. Se falamos em
ideias, falamos da mente. E Espinosa vem com uma definição diferente do conceito

42 CHAUI, 2016, p.294.


43MAGALHÃES, Lana. Teoria da Evolução. Toda Matéria, 2022. Disponível em: <
https://www.todamateria.com.br/teoria-da-evolucao/>. Acesso em: 03 nov. 2022.

27
platônico em que mente (alma) e corpo são realidades separadas. Espinosa
desenvolve o que se chama de paralelismo, isto é, mente (res congitans) e corpo (res
extensa) são uma só coisa:

A mente consciente corresponde à manifestação do atributo pensamento,


que está correlacionada à manifestação de um corpo existindo em ato. Mente
e corpo como modos de manifestação da natureza. Um é a manifestação do
outro, um espelha o outro.
Pois bem, isso é paralelismo! Se os processos mentais são um mapeamento
do corpo, então um é o reflexo do outro. Um é o modo em sua versão corporal
e o outro é o modo em sua versão mental. Um é o corpo mapeado em
pensamentos e sensações e o outro é o corpo na versão extensiva. A mente
‘reflete’ necessariamente o corpo, uma relação íntima, o que acontece em um
acontecendo também no outro44

Com isso, quando o cérebro envia uma sensação de dor, essa vem
acompanhada da parte do corpo que foi atingido, caso contrário o cérebro não emitiria
nada. Da mesma forma o cérebro precisa do coração para funcionar bem, já que o
oxigênio, junto ao sangue, é bombeado por ele. Igualmente precisa das veias por onde
o sangue circula. Precisa da boca para mastigar os alimentos e do estômago para
digeri-los e pegar os nutrientes necessários. Precisa de água, enfim, nessa cadeia
nada é individual, para a mente existir, precisa da matéria e de uma infinidade de
afetações.
Ainda com o conceito de afetação usado por Espinosa, iremos falar das ideias
inadequadas, ou conhecimento de primeiro gênero, da qual a maioria dos seres
humanos se encontram, pois “é necessário ao menos um pouco de filosofia”45 para
sair desse estado. Assim diz Deleuze:

As moléculas de água pertencem já a um corpo, o corpo aquático, o corpo do


oceano, etc., ou o corpo do lago, o corpo de tal lago. E qual é o conhecimento
do primeiro gênero? É: “Ir! Lanço-me, eu vou.” Estou no primeiro gênero de
conhecimento; eu me lanço, eu patinho, como se diz. O que isto quer dizer,
patinhar? Patinhar é muito simples. Patinhar, a palavra o indica bem, vemos
bem que são relações extrínsecas: ora a onda me golpeia, ora a onda me
arrasta; são os efeitos do choque. São os efeitos de choque, a saber: não
conheço nada da relação que se compõe ou que se decompõe, recebo os
efeitos de partes extrínsecas. As partes que me pertencem são sacudidas,
elas recebem o efeito do choque das partes que pertencem à onda. Então,

44TRINDADE, Rafael. Espinosa – paralelismo mente e corpo. 2022. Disponível em: <
https://razaoinadequada.com/2022/07/07/espinosa-paralelismo-mente-e-corpo/>. Acesso em: 01 nov.
2022.
45DELEUZE, 2019, p.265.

28
ora eu rio e ora eu choramingo, conforme a onda me faça rir ou me golpeie,
estou nos afetos-paixão46

Com esse exemplo de Deleuze, percebe-se que as ideias inadequadas são


aquelas que chegam até nós, e não temos controle sobre elas, como um barco à
deriva, sem bússola e capitão, sujeito a tudo que vem de fora, ora forte, ora fraco, mas
sempre sem controle. Humanamente falando, o ser humano não sabe por onde anda
e nem consegue forças para perseverar no ser, os encontros que fazem no dia a dia
não têm caráter exponencial ou o contrário, é avulso, segue o acaso. Sendo assim,
tanto faz ser atingido por um furacão ou brisa leve, pois ele não se dá conta disso, e
por isso “críamos que estávamos condenados ao inadequado, ao primeiro gênero” 47,
pois acreditava que a natureza fosse separada do homem. Mas Espinosa demonstra
o contrário, então, entramos no segundo gênero do conhecimento ou ideias
adequadas.
Deleuze diz: “A arte da composição das relações”48, para exprimir esse
conhecimento de segundo gênero, isto é, o modo relacional com que a res extensa se
relaciona com outra res extensa: o corpo e a onda do mar, o barco e o oceano, enfim,
os modos da substância entre si. Se nas ideias inadequadas o ser humano era um
barco sem bússola no mar, sujeito a todas as ações do tempo sem fazer nada. Agora,
ele tem adequação a essa situação, pois não se trata mais das res extensas, assim
diz Deleuze:

Não se passa mais entre a onda e eu, isto é, não se passa mais entre as
partes extensivas, as partes molhadas da onda e as partes do meu corpo;
isto se passa entre as relações. As relações que compõem a onda, as
relações que compõem meu corpo e minha habilidade quando sei nadar,
apresentar o meu corpo sob as relações que se compõem diretamente com
a relação da onda. Eu mergulho no momento certo, eu saio no momento
certo. Eu evito a onda que se aproxima, ou, ao contrário, eu me sirvo dela49

E como exemplo definitivo, o barco à deriva no mar levantaria suas velas e


usaria o vento para ir aonde é o destino de chegada. Como na canção do Zeca
Pagodinho, onde o mesmo diz: “Deixa vida me levar”, seria uma ideia inadequada. E
ao contrário, na ideia adequada, seria: “eu levo a vida”, sendo capaz de decidir aonde

46DELEUZE, 2019, p.254.


47DELEUZE, 2019, p.252.
48DELEUZE, 2019, p.256.
49DELEUZE, 2019, p.256.

29
vai. Então, ideia adequada é o ser humano ser capaz de perceber as relações que
estão ao seu redor e usá-las ao seu favor para aumentar a potência. E ideia
inadequada é quando não consegue perceber as afetações, se tornando um barco à
deriva em alto mar sendo levado pelas ondas.
Ser levado pelas ondas ou agir em cima delas? No próximo tópico, e último,
falaremos da questão da liberdade humana, após percorrer boa parte da Ética de
Espinosa e definir alguns conceitos, e se o homem pode ser livre, e como se dá essa
liberdade na filosofia espinosana.

2 A CONSTRUÇÃO DA LIBERDADE HUMANA PELAS VIAS RACIONAIS

Ao tratarmos de Deus em Espinosa dissemos, pela leitura da Parte I da Ética,


que o Ser verdadeiramente livre é aquele que a “ação segue da necessidade de sua
natureza”.50 Com isso Espinosa, pelas palavras de Chaui, quer mostrar que Deus não
é coagido por nada, e tudo que Ele faz é por sua própria potência. Sua única
necessidade é seguir as suas próprias leis. Sendo único e causa sui, não existe
nenhuma outra substância que seja mais forte que Ele, então ele dá impulso de
existência a todas as outras, seus modos arranjados de determinada forma.
Essa forma é o ser humano e tudo que existe na Natureza. Para ilustrar melhor
o que vamos desenvolver, pensemos numa pedra (um ser singular/modo da
substância) arremessada ao vácuo, e que move, então:

Concebe agora, se quiseres, que a pedra enquanto continua a mover-se,


saiba e pensa que se esforça tanto quando pode para continuar a mover-se.
Seguramente, essa pedra, visto não ser consciente senão de seu esforço, e
não ser indiferente, acreditará ser livre e perseverar no movimento apenas
porque quer. É esta a tal liberdade humana que todos se jactam de possuir e
que consiste apenas em que os homens são cônscios de seus apetites, mas
ignorantes das causas que os determinam. É assim que uma criança crer
apetecer livremente do leite, um rapazinho, se irritado, querer vingar-se, mas
fugir, se intimidado51

Espinosa mostra que o ser humano ignora as causas que os determinam, como
a pedra, adquirindo consciência acha-se livre para percorrer tal trajeto, não sabendo
que aquele é o único trajeto que ela poderia percorrer. Ou então o bebê que vai em

50CHAUI, 2016, p.486.


51CHAUI, 2016, p.508.

30
busca do leite seguindo as suas necessidades naturais. A pedra foi coagida, o bebê
não: “A pedra, em decorrência de sua finitude, de sua natureza extensa e do princípio
de inércia que rege todos os corpos, entra em movimento e nele permanece apenas
se houver uma causa exterior que a constranja a mover-se”52. A pedra foi
impulsionada por uma causa externa a ela que não fazia parte de sua essência, por
ser um objeto inanimado.
Dito isso, é bom dizer que a liberdade é a “afirmação de uma causa necessária
interna que exprime a essência do agente”.53 Dissemos que não é possível ler a Ética
sem voltar em suas partes anteriores, pois estão intimamente ligadas, voltemos, pois,
na definição de Deus dada por Espinosa na Parte I: “Por causa de si entendo aquilo
cuja a essência envolve existência, ou seja, aquilo cujo a natureza não poder ser
concebida senão existente.”54 Com isso, compreende-se qual é a essência do Agente:
é existir necessariamente, mas os modos não são capazes disso.
Então a liberdade do ser humano se dará pela capacidade que esse tem de
perseverar no ser, através dos afetos. Isso ocorrerá com a capacidade do homem
decidir o que é bom e mau para si, se pertence ou não a sua natureza. Existem duas
concepções para Espinosa: as ideias inadequadas e adequadas, como já pontuamos.
Ainda existe mais uma: o conhecimento de terceiro grau. Esse por sua vez é
adequadamente adequada a Substância, pois diz Deleuze: “o terceiro gênero de
conhecimento são perfeitamente adequados”55. É com essa adequação que o homem
chegará a sua sensação de liberdade, buscando aquilo que lhe é útil para manter sua
existência.
O que é da Natureza, não é possível evitar, é determinado, por isso dissemos
“uma sensação de liberdade”, mas é possível usar dessa determinação para
conseguir viver, como no exemplo do barco em mar aberto sofrendo ações do tempo.
Para esse permanecer livre dada as condições, precisa se adequar naquele local.
Quando Adão comeu o suposto fruto, não houve uma proibição de Deus, mas é que
Adão não se adequaria aquela essência, chegando à morte. Por isso esse
conhecimento das coisas singulares vem acompanhado de uma determinada

52CHAUI,2016, p.507.
53CHAUI,2016, p.508.
54ESPINOSA, 2018, p.45.
55DELEUZE, 2019, p.257.

31
decomposição, isto é, saber do que é feito tal coisa. Tal como um padeiro sabe quais
as misturas certas para fazer um pão, assim também o ser humano deve saber quais
seres singulares o afetará para que consiga perseverar no ser e manter a existência
o máximo que conseguir, determinado e livre.
E é partindo disso que Espinosa coloca o terceiro grau de conhecimento, que
Espinosa denomina “amor intelectuallis Dei”, esse é uma adequação mais perfeita,
pois assim diz Espinosa: “O sumo bem da Mente é o conhecimento de Deus e a suma
virtude da Mente é conhecer Deus”56. Quanto mais conhecemos a Deus e as situações
causais que nos afetam, nos aproximamos da Substância única, e da sensação de
liberdade, diz Espinosa:

Do terceiro gênero do conhecimento origina-se necessariamente o Amor


intelectual a Deus. Pois deste gênero de conhecimento origina-se (pela Prop.
preced.) a Alegria conjuntamente à ideia de Deus como causa, isto é, (pela
6. Def. dos afetos), o Amor de Deus, não enquanto o imaginamos como
presente (pela Prop. 29 desta parte), mas enquanto entendemos que Deus é
eterno, e é isto que chamo de amor intelectual a Deus57

Então quando os modos da substância entendem, pela razão, que Deus é


eterno, e por eternidade se entende que Ele é causa de si mesmo, e nós não. Mas
somos causados por Ele, de forma determinada. E ainda entender e compreender as
coisas singulares, pois quanto mais se compreende as coisas singulares se entende
Deus, assim diz Rochelle:

É racional se antecipar quanto aos erros, é racional não querer cometer os


mesmos erros. Mas é mais racional tentar compreender porque determinados
erros se repetem, e se mostram em situações similares, ainda que singulares.
Por isso, se estando no mundo, ajo sempre de maneira a responder aos
afetos que me são dados, ao desenvolver a minha intuição, eu passo a
experimentar de corpo e mente os elementos a priori de determinadas
situações singulares. Algo nos invade, nos une ao infinito.58

É importante conhecer aquilo que nos cerca e afeta, pois é com isso que vamos
chegar a Deus e o homem é como se fosse um NPC (personagens não jogáveis de
vídeo games) e vivesse no mundo. E ao adquirir consciência de sua
natureza/essência, e percebesse que existe uma causa externa que o impulsiona e o

56ESPINOSA, 2018, p.417.


57ESPINOSA, 2018, p.563.
58D’ABREU, Rochelle. Amor Intelectual a Deus em Espinosa. Revista Conatus, 2007. Recurso

Digital. grifo nosso.

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faz mover através de afetos passivos ou ativos, pelas vias da razão escolheria aqueles
afetos que o proporcionará mais vida, mais jogo, mas sem sair do determinismo,
perseverando n’Aquele que é o agente ativo de tudo, isto é, entendendo a Deus como
sendo causa primeira e se compreendo como modos da Substância, e assim voltamos
ao exemplo da pedra que lançada ao vácuo. Ao cair, e se tomando consciência que
não caiu porque quis, mas algo a determinou a aquilo, seria livre e se esforçaria para
continuar caindo. O ser humano da mesma forma, quando compreende que não é
causa sui, mas foi causado por um Ser eterno, algo o invade e o une ao infinito, o une
a Deus/Natureza. É quase igual ao cristianismo, no entanto, de forma imanente e não
transcendente, de outra forma, saímos de Deus (parte I da Ética) e chegamos em
Deus (parte V da Ética).

33
CONCLUSÃO

Após viajar por esse caminho em busca da liberdade que sai de Deus e volta
para Deus, ao modo dos geômetras, observa-se que Espinosa busca a liberdade por
vias racionais. Sua ética não é uma ética condenatória, tudo é bom, o ser humano é
bom, pois é parte da Natureza, essa Substância única. Mas é uma questão de
relações, dos modos da substância consigo mesmo e, posteriormente, com Deus.
Esse Deus que é causa de si mesmo e causa as outras coisas, que não é
trancendente ao homem e muito menos ególatra, como diz Espinosa em sua carta “Se
Deus tivesse falado teria dito assim”, e aqui existe uma crítica ao Deus trancendente
dos judeus, pois Espinosa deixa explícito que esse não existe, mas sim o imanente
ao homem. E é n’Ele, esse Deus imanente, que se constrói nossa liberdade, pois sem
Ele nós não somos.
É por esse verbo “ser” que irá chegar a sensação de liberdade, e isso nos
choca, pois conclui-se que não é uma liberdade igual o cristianismo ensina, mas uma
sensação, pois o único ser livre é Deus, e os modos da substância são determinados.
E os seres humanos têm uma sensação de liberdade a medida em que se adequa a
esse Deus pelas vias racionais. “Amor intellectualis Dei”, o amor a Deus sobre
aspecto eterno.
É isso, quando ao observar a Natureza e seu funcionamento, o ser humano
consegue olhar a Deus, como numa oração contemplativa. Pode optar por aquilo que
dará potência ao homem para agir e continuar existindo, chegando a experimentar
sub specie aeternatis, isto é, um pedaço da eternidade e ter uma sensação de
liberdade.

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REFERÊNCIA

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