História Do Direito - 2º Semestre
História Do Direito - 2º Semestre
História Do Direito - 2º Semestre
Porto
História do Direito
Doutor Paulo Adragão e Brígida Malheiro
2º Semestre
2021/2022
7.1.4. Código Visigótico
O Código Visigótico é o resultado de um processo de incremento
legislativo iniciado por Chindasvindo e concluído no tempo do seu filho e
sucessor Recesvindo (649/672).
Promulgado por Recesvindo em 654, depois de ter sido revisto pelo VII
Consílio de Toledo, o Código Visigótico tomou as designações de Lex
Visigothorum Recesvinda, Liber Iudiciorum, Liber Iudicum e Forum
Iudicum.
O Código conheceu três versões:
i. A forma recesvindiana (654), a primeira;
ii. A forma ervigiana (681), uma reforma oficial do rei Ervígio;
iii. A forma vulgata, que constitui um conjunto manuscrito de
diferentes épocas e é o resultado de reformas sucessivas da autoria de
juristas e práticos do direito desconhecidos, que, tomado por base a
forma ervigiana, a transformaram e ampliaram.
Do ponto de vista do conteúdo das suas disposições, o Código Visigótico
resulta do cruzamento dos elementos romano, germânico e canónico. A
maior influência terá sido a romana, segundo Almeida Costa (justifica a
romanização foi implementada no Código de Eurico que se acentua nas
restantes fontes), ou a canónica, segundo Marcello Caetano (perspetiva
do papel dos consílios nestes códigos, influência no estilo de latim utilizado
pela Igreja).
Não obstante as incertezas que dividem a doutrina, parece ser de aceitar
que o Direito Romano que influiu o Código Visigótico foi o romano
vulgar ou ante-justinianeu (anterior ao Corpus Iuris Civilis), já que os
juristas e legisladores visigodos não teriam tido contacto com as fontes
justinianeias.
Sistematicamente organizado em 12 livros (à semelhança do Código de
Justiniano), subdivididos por capítulos, integrados por leis, o Código
Visigótico toma como epígrafes, em três partes, as palavras antiqua e
antiqua emendata. As restantes partes são encabeçadas pelo nome do rei
que estabeleceu ou alterou as respetivas leis. Não é consensual a origem
de todas as leis antiquae ou antiquae emendatae no Código de
Leovigildo, estando aqui em causa, em parte, uma aplicação do método das
sobrevivências.
Segundo Marcello Caetano, o Código Visigótico é um dos mais notáveis
monumentos jurídicos da Idade Média. Vigente desde meados do século
VIII até ao século XIII, no território português, ele é, de longe, a fonte
normativa visigótica com maior longevidade.
7.2. O problema da personalidade ou territorialidade da legislação
visigótica
O princípio da personalidade (nos termos do qual a cada pessoa se
aplica o direito do seu povo, coexistindo, no mesmo território,
ordenamentos jurídicos diversos) contrapõe-se o princípio da
territorialidade (que permite apenas a existência de um único
ordenamento jurídico, aplicável a todos, dentro de um território
delimitado).
Após o Código de Leovigildo (580), não restam grandes dúvidas de que a
legislação visigótica foi de aplicação territorial, até porque este Código
continha já algumas normas territoriais, como, por exemplo, a que
autorizava os casamentos mistos entre Visigodos e Hispano-Romanos.
Mas, qual foi o sistema adotado pelos Visigodos no período até ao Código
de Leovigildo, inclusive?
7.2.1. Tese da personalidade
Até ao século XIX acreditava-se que a legislação visigótica tivesse sido de
aplicação territorial.
Todavia, em 1843, o historiador alemão Eichhorn rompe o pensamento
anterior, defendendo, pela primeira vez, a tese da personalidade. Para
tanto, referiu-se à existência de dois tipos de juízes entre os Visigodos: se
o thiuphadus só julgava causas que dissessem respeito a Visigodos, o
iudex só julgava pleitos relativos a Romanos.
Mais tarde, a ideia precursora de Eichhorn foi desenvolvida e
cientificamente alicerçada por Zeumer, tendo-se enraizado como
orientação clássica, intocada durante mais de trinta anos.
De acordo com esta tese, o Código de Eurico e o Código de Leovigildo
aplicavam-se apenas aos Visigodos, ao contrário do que se sucedia com
o Breviário de Alarico que vigorava somente entre os Romanos. Tendo
aderido à tese da personalidade, o historiador espanhol Ureña aventa que o
Código Revisto de Leovigildo tinha já vigência territorial.
Mas o problema que mais divide os investigadores reside nas questões
mistas, ou seja, aquelas que intervinham Visigodos e Romanos.
Para Dahn, os litigantes tinham a possibilidade de escolher um dos
ordenamentos, o romano ou o visigótico. Contudo, esta tese não vingou
por falta de sustentação, para além de que não resolve as hipóteses em que
não existisse acordo das partes.
Por sua vez, Bethman-Hollweg entendia que prevalecia o fórum rei, pelo
que aplicava a lei do tribunal do lugar da coisa em litígio.
Finalmente, Brunner e Zeummer pugnavam pela supremacia da lei
visigótica, partindo da analogia com o sucedido com a Lex
Burgundionum. Esta lei estipulava que, nas hipóteses de conflitos mistos,
prevalecia a lei burgúndia sobre a lei romana. Contudo, também esta
proposta não convenceu.
Aliás, o fracasso das teses personalistas deve-se essencialmente ao facto
de não conseguirem dar resposta cabal ao problema das questões
mistas.
7.2.2. Tese da territorialidade
A velha doutrina da territorialidade foi revitalizada por García-Gallo, em
1941. Para o historiador espanhol, as leis teodoricianas, as restantes leis
avulsas e as codificações visigóticas forma já de aplicação conjunta (e,
portanto, de aplicação territorial) às populações romana e visigótica. Por
conseguinte, ter-se-ia verificado a seguinte sucessão legislativa: o Código
de Eurico (475) foi substituído pelo Breviário de Alarico (506), que, por
sua vez, foi substituído pelo Código de Leovigildo (580) e este pelo Código
de Recesvindo (654).
Os argumentos aduzidos por García-Gallo são os seguintes:
i. não existe nenhuma fonte normativa ou legal que, de forma direta
ou indireta, suporte o princípio da personalidade;
ii. no Código de Eurico existem quer leis territoriais, quer leis que
revogam preceitos romanos;
iii. o Código de Eurico foi revogado por uma espécie de circular
(Commonitorium) que acompanhou a promulgação do Breviário
de Alarico;
iv. inclusão, no Breviário de Alarico, da Lei de Teudis, a que se
confere carácter territorial.
Contudo, a posição desenvolvida por García-Gallo deu lugar a uma ampla
polémica.
7.2.3. Posição atual do problema
A posição atual do problema veio pela mão de Paulo Merêa, que, propondo
uma solução conciliadora, chama a atenção para a necessidade de
distinguir, por um lado, a territorialidade das codificações e leis avulsas
visigóticas e, por outro, as sucessivas revogações de Códigos e leis, tal
como são apresentadas por García-Gallo.
Apesar de a tese da personalidade se encontrar algo abalada, Paulo Merêa
não acredita que o Código de Eurico tenha sido revogado pelo
Breviário de Alarico e este pelo Código de Leovigildo.
A originalidade da contribuição do historiador português reside em três
conclusões essenciais.
Em primeiro lugar, o Breviário de Alarico é considerado fora da
sequência da legislação visigótica, como uma compilação subsidiária de
Direito Romano, isto é, aplicável na falta de norma disponível; assim, não
revoga o Código de Eurico, nem é revogado pelo Código de Leovigildo.
Em segundo lugar, o Código de Eurico foi uma lei geral, de vigência
continuada, na qual Eurico manifestou a preocupação de assegurar à
população goda uma posição especial dentro do Estado.
Em terceiro lugar, o Breviário de Alarico teve apenas o objetivo de limitar
os iura e leges que podiam invocar-se em juízo, deixando, em princípio,
aos Visigodos o uso do direito gótico.
A esta luz, a sucessão legislativa ter-se-ia desencadeado da seguinte forma:
Código de Eurico (475), Código de Leovigildo 8580) e Código de
Recesvindo (654). Ora, o Código de Recesvindo revogou simultaneamente
o Código de Leovigildo e o Breviário de Alarico (506).
A tese de Paulo Merêa mostrou-se convincente e obteve, inclusive, a
adesão de Álvaro d´Ors, um grande romanista e historiador do direito
espanhol.
A discussão mantém-se em torno das duas teses apresentadas. Contudo, a
doutrina parece cansada do problema: é a falta de fontes documentais
indiscutíveis que prejudica a solução do enigma.
7.3. Direito consuetudinário visigótico
O raciocínio que sustenta a possível subsistência de um direito
consuetudinário visigótico assenta em dois fatores:
o sistema jurídico peninsular era, apesar de tudo, dotado de uma
relativa uniformidade;
este sistema jurídico seria significativamente diferente do
postulado no Código Visigótico e bem mais próximo do direito
germânico, sobretudo noruego-islandês.
Destas premissas foram extraídas as seguintes conclusões:
se, no período da Reconquista, existia uma certa similitude de
instituições, mesmo nas regiões mais isoladas, tal similitude terá a
sua origem no período histórico anterior, ou seja, período
visigótico;
se essa similitude e persistência de instituições pretéritas não
resultam do direito escrito- Código Visigótico-, resultarão, por
certo, do direito consuetudinário visigótico, o que justifica a
proximidade do direito da Reconquista com o direito noruego-
islandês.
Com efeito, a eventual persistência do direito consuetudinário visigótico
contou com a adesão de Sánchez-Albornoz. Pelo contrário, Paulo Merêa,
Álvaro D´Ors e García-Gallo bateram-se no sentido de refutar as
conclusões supra explanadas.
Não deve ter havido uma discrepância total entre o direito oficial e a
prática jurídica. Todavia, parece ser de aceitar a possível sobrevivência de
alguns costumes do antigo direito germânico, sobretudo, nas regiões
periféricas. Como é natural, aliás, o direito consuetudinário nunca se
desvanece completamente.
De qualquer das formas, no Estado Visigótico sempre terá prevalecido
tendencialmente o direto escrito, graças à conhecida atividade legislativa
que o marcou.
7.4. Direito Canónico. Os concílios de Toledo.
No Reino Visigótico, é inegável a importância do Direito Canónico
(conjunto de normas jurídicas próprias da Igreja Católica, numa
noção preliminar).
O seu âmbito compreendia:
i. a estrutura da Igreja Católica;
ii. os assuntos espirituais;
iii. certos aspetos da vida secular dos fiéis, como, por exemplo, o
regime dos bens das instituições religiosos e os atos temporais com
elas relacionados (doações, testamentos, contratos agrários), as
sanções canónicas e o direito processual aplicado nos tribunais
eclesiásticos.
Ora, a conversão ao Catolicismo da generalidade da população hispânica,
com Recardo, alargou substancialmente o âmbito de aplicação do Direito
Canónico.
No Reino Visigótico, eram aplicáveis não só as normas jurídico-
canónicas comuns, mas também o direito canónico particular, isto é, de
origem peninsular. Á época, este último desempenhava um papel muito
importante, atendendo às maiores dificuldades de comunicação e à
menor centralização da Igreja Católica (refira-se, a título de exemplo, a
Collectio Hispana (século VII), erradamente atribuída a Santo Isidoro de
Sevilha).
Neste contexto, destacam-se os concílios nacionais que, na Monarquia
Visigótica, eram os Concílios de Toledo. A importância destes concílios
cifra-se na criação de preceitos jurídico-canónicos e, mais tarde, na
elevação a instituição auxiliar da realeza, para assuntos políticos e
legislativos.
Á época, os princípios canónicos em muito influenciavam os institutos
jurídicos seculares, quer de direito público, quer de direito privado.
Registava-se também uma receção recíproca entre a legislação civil e os
cânones conciliares.
Especialmente valiosa, neste contexto, foi a legislação secular emanada
dos Concílios: normas relativas à eleição e proteção do monarca, à
condição dos juízes e aos direitos das pessoas em face do rei. Registe-se,
aliás, a colaboração dos Concílios na elaboração e revisão do Código
Visigótico.
Quanto às questões de Direito Constitucional da comunidade política de
então, a importância do Direito Canónico explica-se pelo ambiente geral
de promiscuidade e confusão entre o poder religioso e o poder político,
próprio da Alta Idade Média. Confusão essa compatível com a não
identificação fundamental política-religião.
8. Ciência do direito e prática jurídica na época visigótica
8.1. Ciência do direito. A personalidade e a obra de Santo Isidoro,
bispo de Sevilha
Depois das invasões bárbaras, as escolas de Direito Romano da época pós-
clássica encontravam-se em franca decadência. Contudo, o período
visigótico conhece eminentes juristas como Santo Isidoro.
Bispo de Sevilha, presidiu ao Concílio de Sevilha e ao IV Concílio de
Toledo. Escreveu as Etimologias – primeira enciclopédia cristã. O seu
contributo essencial deve-se às suas qualidades de jurista e de
conhecimento e domínio expressivo do Direito Romano. Foi também autor
dos Libri Sententiarum, onde se alarga em reflexões acerca de
problemas políticos. Sustentava que a organização política se integrava na
ordem divina da criação, isto é, os reis existiam a bem da Igreja, já que esta
carecia de força temporal para impor a fé cristã. O príncipe não
representava senão uma dádiva divina, era de Deus que os povos recebiam
os bons reis.
8.2. Prática jurídica
8.2.1. Falta de documentos desta época. Os formulários.
Os formulários são coletâneas de minutas que os notários utilizavam para
redigir os vários atos jurídicos, são de destacar as Fórmulas Visigóticas e as
Fórmulas de Holkham. Estas últimas são compostas por duas:
juramento das testemunhas com vista a provar a inocência do réu
prova caldária, juízo de Deus ou ordálio, o acusado era considerado
inocente ou culpado consoante a sua mão, mergulhada em água a
ferver, apresentasse ou não visíveis melhoras, no final de alguns dias
8.2.2. Fórmulas visigóticas
Conjunto de fórmulas relativas, na sua maioria, a atos privados
(manumissões, vendas, doações, testamentos, permutas). Baseiam-se no
sistema documental romano e reflete um ambiente romano e cristão.
Capítulo 4
Período do Domínio Muçulmano e da
Reconquista Cristã
1. A invasão muçulmana e o seu significado
O surgimento do Islão dá-se no século VII, na Arábia, com
Maomé (570-632). Sucede-se a conversão dos Árabes ao
islamismo e uma guerra de expansão que os levou a conquistar o
extremo ocidental do Norte de África, a sul da Península Ibérica,
e a converterem os Berberes, seus habitantes.
A chegada dos invasores muçulmanos à Península, que se sucedeu,
quebrou a unidade estadual até aí conseguida, a pulso, pelos
Visigodos. Nos próximos séculos, cristãos e islâmicos coexistiram,
no território peninsular, assumindo-se como dois blocos
diferenciados, separados por voláteis fronteiras.
A dualidade política foi acompanhada de uma dualidade jurídica. Por
um lado, os invasores trazem consigo o direito muçulmano, pelo
qual se continuam a reger; por outro, o caos trazido pelas invasões,
implicou, para o universo cristão da Península, que o
ordenamento jurídico tradicional, baseado no Liber Iudiciorum,
ficasse agora entregue a si próprio; dá-se assim a quebra do
elemento romanístico comum, existente até então.
Aquando da Reconquista Cristã da Península, esta dividir-se-á em
vários Estados aos quais passou a corresponder o respetivo
sistema jurídico, mais ou menos individualizado.
1.1. Nota sobre a história política dos muçulmanos na Península
Os Árabes e os Berberes muçulmanos assomaram à Península Ibérica na
qualidade de aliados do partido rebelde dos filos de Vitiza contra o Rei
Rodrigo, que virá a ser derrotado e assassinado, na batalha de
Guadalete, em 711. No entanto, deram início a uma campanha de
conquista, servindo-se da decadência da monarquia visigótica.
Apenas alguns pequenos núcleos (inacessíveis) dos Pirenéus e da
Cordilheira Cantábrica sobreviveram ao derrube do Estado
Visigótico. São, ainda, de destacar os pactos ou tratados de
reconhecimento da soberania muçulmana, que permitiram a que
determinados territórios ou condados conservassem a sua organização.
Constituiu-se, assim, o país de al-Andalus que é, agora, uma província
muçulmana. O governador da Península Ibérica era um emir
subordinado ao emir do Norte de África que, por sua vez, era
subordinado ao califa de Damasco. Esta situação permanece até
meados do século VIII (713/755)
Parte III
Elementos de História do Direito Português
Capítulo 1
Considerações introdutórias à História do Direito Português
1. A ciência de comparação de direitos- o sistema romano-
germânico
A disciplina jurídica comummente apelidada de Direito de Comparação
não constitui um ramo do direito, ao contrário do que acontece com o
Direito Civil que, por sua vez, se desdobra em vários ramos como o Direito
das Obrigações e os Direitos Reais. Assim sendo, acompanhamos Mário
Júlio de Almeida Costa que prefere a designação de ciência de comparação
de direitos.
A ciência da comparação de Direitos consiste no estudo comparístico das
várias ordens jurídicas existentes, procurando agrupá-las em famílias ou
sistemas. É, assim, um método de estudo jurídico de confronto das várias
ordens jurídicas positivas. Esta ciência conclui pela existência de um
conjunto de elementos estruturais comuns a diferentes ordens jurídicas, que
tipificam a família ou sistema de Direitos e permitem distingui-la das
demais. São quatro os grandes sistemas de Direitos:
Família romano-germânica;
Família do direito comum;
Família dos direitos socialistas;
Família dos direitos religiosos e tradicionais.
O Direito português integra-se na família romano-germânica que partilha
os elementos romano, cristão e germânico. O Direito romano ocupa o lugar
de elemento central e o elemento cristão proveu a ciência jurídica europeia
de importantes valores fundamentais. O contributo do elemento germânico
reside na fusão das conceções e instituições romanas com o Direito popular
germânico representa “o tronco vital bravio em que se enxertaram os
germes do pensamento jurídico antigo e cristão primitivo”, que
proporcionou o “encontro de vida jovem com espiritualidade
amadurecida”.
Deve acrescentar-se, mais amplamente, que o único dos três elementos que
define os limites geográficos da civilização europeia é o cristianismo: com
efeito, nem o elemento romano nem o elemento germânico chegaram a
toda a Europa.
2. Plano de exposição
É importante perceber qual a génese da ciência da história do direito
português, bem como a sua evolução e desenvolvimentos
posteriores.
3. Formação e evolução da ciência da História do Direito Português
A ciência da história do direito português é mais facilmente
compreendida se estudada à luz de quatro ciclos básicos aos quais
são associados quatro grandes nomes da historiografia jurídica
nacional.
Este quadro-síntese elenca as diferentes fases históricas da evolução
da ciência da história do direito português, bem como indica o
período temporal a que cada uma se refere e o historiador que a
protagonizou, fundamentalmente.
Mello Freire é quem publica o primeiro manual de direito português
(1788).
3.1. Os estudos histórico-jurídicos anteriores à segunda metade
do século XVIII
A segunda metade do século XVIII constitui o marco histórico
do surgimento da ciência da história do direito português. O
arranque tardio de tão importante disciplina deve-se a um
conjunto de fatores que justificam a falta de interesse pelo
legado jurídico anterior.
Por um lado, o ensino universitário e a literatura jurídica
foram, durante muito tempo, absorvidos pelo Direito Romano
e pelo Direito Canónico, o que, simplesmente, tem a ver com
as características do sistema jurídico português até ao século
XVIII. A isto somam-se as carências da historiografia em
geral ao nível da metodologia, do modo de trabalhar.
No entanto, arranque tardio não significa total inexistência:
deve evitar-se a tendência, comum nas ciências jurídico-
políticas, para ignorar tudo o que é anterior aos movimentos de
ideias que determinaram a Revolução Francesa, o que, não
raras vezes, está na base de análises económicas míopes.
Assim, registam-se manifestações, mais ou menos pontuais, da
historiografia nacional antes da segunda metade do século
XVIII. No século XVI, André de Resende escreveu sobre a
organização da Hispânia nas suas obras intituladas História da
Antiguidade da Cidade de Évora (1576) e De antiquitatibus
Lusitanae (1593). Nos séculos XVI e XVII, João Pinto Ribeiro
dedicou-se ao estudo da crise dinástica e da perda da
independência (1580), com destaque para as regras de
sucessão da Coroa e o papel das Cortes. Já no início do século
XVIII e no âmbito da Academia Real da História, entretanto
fundada, António Caetano de Sousa procedeu à recolha de
inúmeras fontes de interesse histórico jurídico que nos
chegaram através das suas Provas de História Genealógica da
Casa REAL Português (1735). Também no mesmo período,
Diogo Barbosa Machado publica Biblioteca Lusitana (1741),
um interessantíssimo trabalho bibliográfico de grande relevo,
isto é, uma história da vida dos antigos jurisconsultos.
3.2. Criação da ciência da História do Direito Português
Podemos afirmar que a ciência da história do direito português
surge num contexto/altura em que se assistiu:
à concretização de um conceito filosófico da história;
à assunção de preocupações metodológicas;
à superação de simples crónicas de factos e das
biografias;
e ao crescente interesse pela evolução da cultura e das
instituições dos povos.
Estes fatores são acompanhados, no âmbito do direito, por duas tendências
ideológicas que marcaram o período em análise: o racionalismo e o
iluminismo. Ambas postulam a rejeição dos conhecimentos não julgados
criticamente pelo sujeito, assentando, assim, no princípio da razão
independente como única fonte de conhecimento, com exclusão de todas as
outras. Daí a importância dada aos aspetos metodológicos ou formais e o
realce da adaptação do Direito às circunstâncias históricas da época.
ILUMINISMO
O iluminismo português, à semelhança do espanhol, conheceu grande
influência italiana, tendo penetrado em território português através dos
estrangeiros, entre os quais se conta Luís António Verney, autor do
Verdadeiro Método de Estudar (1746, esta obra é um autêntico manifesto
da ideologia iluminista através do qual Verney preconiza a urgência da
reforma do ensino jurídico em Portugal e denuncia o desprezo pelos
estudos históricos na Universidade; censura as orientações das Faculdades
de Leis e de Cânones que adotavam o método dialético de exposição,
aconselhando, em que sua substituição, o método demonstrativo-sintético-
compendiário; e propõe o estudo do direito nacional e da sua história, bem
como do direito comparado, da economia e da ciência política, por serem
as disciplinas mais próximas da realidade social).
Inspirada nas considerações de Verney, a reforma pombalina da
universidade me muito contribui para a alteração de paradigmas ao nível da
legislação, da prática jurídico-científica e do ensino do Direito.
Em 1770, o Marquês de Pombal nomeia uma Junta de Providencia Literária
à qual confiou a missão de analisar os fatores responsáveis pela decadência
e ruína da Universidade, que se pressupunham à partida, e,
consequentemente elencar quais as melhores soluções para obviar àquela
situação.
Tal missão deu origem ao Compêndio Histórico do Estado da Universidade
de Coimbra (1771), a que se seguira, no ano seguinte (1772), os Estatutos
Novos da Universidade.
Os Estatutos Novos procederam a uma reforma estrutural do ensino
universitário em Portugal, sobretudo no que tange ao ensino do Direito.
Nesse sentido:
foi criada uma cadeira de “Direito Natural e das Gentes” de cunho
racionalista;
foi introduzido, pela primeira vez, o ensino do Direito pátrio e da sua
história;
o Direito Romano passou a ser lecionando segundo o “uso
moderno”, nova doutrina jurídica;
foi substituído o método analítico pelo já citado método
demonstrativo-sintético-compendiário, salvo em duas disciplinas do
fim do curso, de índole prática.
Mas os Estatutos Novos foram mais longe, fixando, inclusive, o programa
da disciplina de História do Direito Pátrio que deveria ser lecionado pela
seguinte ordem: 1. História das Leis, Usos e Costumes legítimos da Nação
Portuguesa; 2. História da Jurisprudência Theoretica; 3. História da
Jurisprudência Prática.
Por outro lado, foi imposto ao professor da disciplina que elaborasse um
compêndio elementar. Tal imposição foi seguida por Mello Freire que, em
1778, publica Historiae Iuris Civilis Lusitani Liber Singularis, por
iniciativa da Academia Real das Ciências. Mais tarde oficialmente
aprovada para o ensino (1805), a edição daquele compêndio gerou uma
séria polémica intelectual com António Pereira de Figueiredo. Não se trata
aliás, em bom rigor, da primeira obra da história do direito português: De
Lusitanorum Legibus (1703), da autoria de Gerardo Ernesto de
Frankenau, embora sucinta e sem rigor científico, é anterior à de Mello
Freire.
De todo o modo, Mello Freire é reconhecido como “fundador da história do
direito português”.
Segue-se um período muito fértil para a história do direito português que
passa a desenvolver-se em torno da atividade científica dimanada da
Academia Real das Ciências (fundada em 1779) e da Universidade de
Coimbra.
No âmbito da Academia Real das Ciências, foram publicadas inúmeras
obras de interesse pelos seus colaboradores diretos:
i. Memórias para a História da Legislação, e Costumes de
Portugal, da autoria de António Caetano do Amaral, constitui a
primeira tentativa de estudo sistemático das instituições, segundo
métodos científicos;
ii. Elucidário das Palavras, Termos e Frases, etc., da autoria de
Frei Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, uma espécie de
dicionário geral, é um bom auxiliar para o estudo das
antiguidades do Direito Português;
iii. Synopsis Chronologica, da autoria de José Anastásio de
Figueiredo, contém uma lista de leis portuguesas anteriores às
Ordenações Filipinas (1603) e trata de problemas como a origem
dos juízes de fora, o verdadeiro sentido da palavra “façanhas” e
qual a época de introdução do Direito Justinianeu em Portugal;
iv. Memorias sobre as Fontes do Codigo Philippino e Qual seja a
Epoca da introdução do Direito das Decretaes em Portugal, e o
influxo que o mesmo teve na Legislação Portuguesa da autoria
de João Pedro Ribeiro, são duas monografias que tratam,
respetivamente, das fontes do Código Filipino e da época da
introdução das Decretais em Portugal.
v. Memórias para a História e Teoria das Cortes Gerais que em
Portugal se celebrarão pelos Três Estados do Reino, da autoria
do Segundo Visconde de Santarém, é uma obra dedicada ao
estudo das Cortes.
Por sua vez, a Universidade de Coimbra também desempenhou um papel
assinalável, nomeadamente, através da publicação de uma compilação de
fontes jurídicas, a Collecção da Legislação Antiga e Moderna do Reino de
Portugal que reúne uma edição inédita das Ordenações Afonsinas, as
Ordenações Manuelinas, as Ordenações Filipinas, a Coleção das Leis
Extravagantes de Duarte Nunes do Lião e uma compilação cronológica de
assentos de tribunais superiores 8Casa da Suplicação e Casa do Cível).
À referida obra acresce o esforço de diferentes mestres universitários da
época por favorecerem os estudos histórico-jurídicos: é o caso de Luís
Joaquim Correia da Silva, Ricardo Raimundo Nogueira, António Ribeiro
dos Santos e Coelho da Rocha.
3.3. Consolidação da História do Direito Português como
disciplina científica
Alexandre Herculano (1810-1877) é a personalidade que
marca a fase da consolidação da história do direito português
como disciplina científica, não só através da sua obra, mas
sobretudo pela disseminação do seu pensamento inovador.
Historiador, político e romancista, o polifacético Alexandre
Herculano não foi um hisotiaodr do direito propriamente dito,
mas a ele se devem importantes progressos introduzidos na
ciência geral da história, a par do estudo de temas histórico-
jurídicos de grande pertinência.
Na primeira metade do século XIX, a historiografia conheceu
a transição dos cânones do romantismo para os do
positivismo.
Por um lado, a historiografia romântica assentava na história
narrativa e privilegiava o vínculo ao presente e à literatura.
Por sua vez, a historiografia positivista correspondia a uma
visão mais genética da história, limitando a realidade ao
empiricamente verificável, o que se concretizava na
elaboração de leis gerais a partir da auscultação das fontes.
Neste contexto, Alexandre Herculano “foi simultaneamente,
ainda um ponto de chegada e já um ponto de partida dos novos
rumos”. Enquanto novelista, na reconstituição do passado,
Herculano nega o anacronismo e, enquanto historiador,
combina elementos românticos e positivistas.
Perspetiva a História por épocas histórico-culturais, através da
imposição do seu espírito científico, realçando os factos
significativos da Nação, ao invés do anterior paradigma que
encarava a história a partir dos reinados. Por conseguinte,
surge, em substituição da “crónica dos reis”, a “história da
Nação”. Acresce que Herculano procurava apoiar-se em fontes
documentadas para sustentar as suas construções.
Presidiu e chefiou a comissão da Academia Real das Ciências,
onde explorou grande parte dos arquivos nacionais, públicos,
eclesiásticos e particulares.
Na tarefa hercúlea a que se propôs, Herculano ultrapassou os
obstáculos colocados pela dispersão de fontes e a má
conservação de muitos documentos, votados ao esquecimento
em arquivos espalhados por todo o país. Não obstante tais
dificuldades, foi levada à estampa Portugaliae Monumenta
Historica (1856), uma edição crítica de fontes- ou seja, uma
edição de fontes confrontadas com os respetivos originais- que
anda ficou a dever-se às coletâneas estrangeiras da época
como os Monumenta Germaniae Historica e os Documents
Inédits concernant l´Histoire de France.
Dedicou-se ao estudo de matérias estritamente jurídicas, tanto
Direito Público (Direito Político e Administrativo, Fiscal e
Financeiro, Penal e Processual) como Direito Privado (Direito
Matrimonial).
A esta luz, a sua obra assinala a emancipação da História
enquanto disciplina científica com métodos e conceções
próprias, deixando para trás a conceção da história ao serviço
da literatura.
3.4. Individualização da Historiografia Jurídica Portuguesa
Sem desprimor para o impulso dado por Alexandre Herculano,
a ciência da história do direito era ainda parca em conceitos
próprios, esquemas, formas mentais, métodos de investigação
suscetíveis de dar forma a uma verdadeira teoria da
historiografia específica do direito.
Com efeito, até aos finais do século XIX, nem sempre os
estudiosos da história do direito possuíam formação jurídica e
daí que os temas predominantes fossem a história das fontes e
a bibliografia de antigos jurisconsultos. Deste modo, a história
das instituições e do pensamento eram temas muito raramente
abordados.
É neste contexto que Gama Barros (1833-1925) revoluciona
com a publicação da sua História da Administração Pública
em Portugal nos Séculos XII a XV, na qual o autor provede ao
estudo cuidado de múltiplas instituições públicas e privadas,
desde o período visigótico, documentando abundantemente as
suas conclusões. Nesta obra, que vai além do que o seu título
anuncia, é evidente a formação jurídica do autor pelo rigor
dado ao tratamento dos problemas explorados.
Embora não tivesse assumido a docência universitária, as
perspetivas de Gama Barros refletem uma particular
combinação da Escola Histórica do Direito, de Savigny, e do
positivismo jurídico.
3.5. Renovação moderna da ciência da História do Direito
Português
A fase de renovação moderna da ciência da história do direito
português é protagonizada por vários especialistas
intimamente ligados ao ensino universitário.
O precursor desta fase foi Paulo Merêa (1889-1977), professor
da Universidade de Coimbra, deu um novo impulso aos
estudos da história jurídica e da história política.
Neste contexto, Paulo Merêa centrou o objeto da sua
investigação no campo da história das instituições e das ideias,
que percorreu desde os tempos medievais aos tempos
modernos, incidindo em temas históricos de direito privado e
direito público; também tratou temas do pensamento político
nacional e europeu.
Colaborou em diversas edições críticas de fontes histórico-
jurídicas, nas quais deixou o seu cunho científico marcado
pela exaustiva investigação, reflexão crítica baseada nos
documentos, abertura interdisciplinar, precisão e elegância da
linguagem e pureza de estilo. A título de exemplo, refira-se a
coletânea de Documentos Medievais Portugueses (Lisboa,
Academia Portuguesa de História, 1941).
A sua obra teve influências do institucionalismo, bem como
uma forte reação contra o positivismo jurídico e o
sociologismo.
Por outro lado, a produção científica do autor desenvolveu-se
em duas etapas:
1. Dedicou-se à história geral através da produção de obras
que, embora manifestassem já a compreensão crítica e a
exposição metódica do autor, não eram muito originais;
2. Publicou estudos monográficos originais, sobretudo os que
dizem respeito ao Direito Visigótico.
Edificou uma verdadeira escola de história do direito
português graças ao seu rigor científico. Todavia, o excesso de
escrúpulos do autor fê-lo retardar a publicação dos seus
escritos, dificultando, assim, o seu conhecimento pela restante
comunidade científica e universitária.
Colaboradores de Paulo Merêa, Luís Cabral de Moncada
(1888-1974) e Guilherme Braga da Cruz (1916-1977)
seguiram os trilhos da história do direito português.
Luís Cabral de Moncada: desenvolveu investigação histórica
ao nível da História das ideias e dos sistemas filosófico-
jurídicos e filosófico-políticos, compreendendo a História
através da Filosofia.
Guilherme Braga da Cruz: abordou vários temas da história
jurídica, desde o direito antigo e medieval aos precedentes
históricos imediatos do moderno sistema jurídico. Publicou
várias obras de grande relevância, de que são exemplos:
Origem e Evolução da Universidade (de 1954, conferência
reduzida), História do Direito Português- O problema da
personalidade ou territorialidade da legislação visigótica,
anteriormente a Recesvindo (de 1958) e O direito subsidiário
na História do Direito Português (de 1975).
É, ainda, necessário destacar o contributo de Marcello
Caetano (1906-1980), cultor da Ciência Política, do Direito
Constitucional, do Direito Administrativo e da História do
Direito. Este focaliza os seus estudos históricos no âmbito das
instituições de Direito Público, deixa um manual de História
do Direito Português que se encontra inacabado.
Finalmente, cumpre referir o importante papel de Ruy de
Albuquerque e Martim de Albuquerque na consolidação da
escola de História de Direito da mesma faculdade, formando
novos mestres, que lhe sucederam.
Capítulo 2
Periodização da História do Direito Português
1. Preliminares
A compreensão da História do Direito através de uma periodização
apresenta-se, segundo já se sabe, como uma necessidade pedagógica.
Todavia, como se sabe, são vários os critérios pelos quais é possível
congregar os referidos elementos e daí também a diversidade de
propostas da doutrina, nesta matéria.
Consideramos quatro critérios:
1. Critério político- privilegia a história política, olhando o Direito
como parte da evolução social;
2. Critério jurídico-externo- atende à evolução das fontes de
Direito;
3. Critério jurídico-interno- cuida das instituições jurídicas
predominantes em cada período histórico;
4. Critério do pensamento jurídico dominante;
Os critérios podem ser combinados entre si.
A diversidade de propostas de periodização da História do Direito
Português resulta precisamente da diversidade dos critérios
aplicáveis e das suas combinações, bem como dos diferentes
métodos de exposição da História já estudados. Acresce ainda a
preponderância dada ora ao Direito Público, ora ao Direito Privado.
2. A periodização da História do Direito Português: as diferentes
abordagens da doutrina
2.1. Marcello Caetano
1.1.4. Costume
Finalmente, também é o costume uma fonte de direito, cuja
vigência é conservada após a fundação da nacionalidade,
sobretudo no que diz respeito ao Direito Privado, de fonte
quase exclusivamente consuetudinária.
Nesta época, os desígnios próprios da fundação da
nacionalidade absorviam quase por completo a atenção dos
primeiros reis e daí que a população, “entregue a si mesma”, se
veja forçada a criar as suas próprias normas.
Assiste-se, assim, ao florescimento do direito
consuetudinário, em prejuízo da lei escrita.
Note-se que a amplitude do conceito de costume da Idade
Média não coincide com a do Direito Romano. Para os
romanos, o costume correspondia a uma fonte manifestandi,
traduzia numa prática geral e constante, acompanhada da
convicção da obrigatoriedade da respetiva norma. Trata-se,
portanto, de um conceito restrito de costume.
Já na Idade Média, o costume assume uma dimensão ampla,
compreendendo todas as fontes de direito tradicional de
cariz não legislativo. Por conseguinte, incluíam-se também no
costume as sentenças da Cúria Régia (mais tarde, apelidadas
de costumes da Corte), de juízes municipais e de juízes
arbitrais, que se tornavam precedentes vinculativos, e os
pareceres de jurisconsultos.
1.2. Fontes de direito posteriores à fundação da nacionalidade
1.2.1. Leis gerais dos primeiros monarcas
Como já se referiu, a fraca produção legislativa deste
período deve-se às preocupações próprias da independência
do reino, que consumiam os primeiros monarcas.
Ainda assim, regista-se a promulgação de uma lei de D.
Afonso Henriques (1139-1185), cuja dará e desconhece e
de uma provisão de D. Sancho I (1185-1211), datada de
1210, ambas com as características de diploma geral. A
estas somam-se várias leis emanadas da Cúria de Coimbra,
convocada por D. Afonso II (1211-1223), em 1211. Já no
reinado de D. Sancho II, não há quaisquer indícios do
exercício do poder legislativo originário.
Estas leis deixam transparecer alguma influência das
compilações justinianeias, graças à ligação e sistematização
que apresentam. Não eram um corpo legislativo unitário;
nelas foi incorporada uma norma que, alegadamente daria
prevalência ao Direito Canónico em caso de conflito entre
este e as leis do reino, que melhor se examinará infra.
No geral, referiam-se a assuntos relativos à proteção da
fazenda da coroa e ao combate aos abusos dos funcionários
régios, mas também à garantia das liberdades individuais, à
condenação expressa da vingança privada e à defesa das
classes populares ante a prepotência dos poderosos. São
exemplos destes preceitos a proibição de aquisição, pelos
grandes, de géneros abaixo do valor justo e a permissão de
todo o homem livre servir a quem deseja e não se submeter
a casamentos forçados.
A par dos forais (de aplicação local ou a um grupo de
pessoas), as leis gerais desta época são exemplos de
preceitos, de aplicação geral, destonados à garantia de
direitos individuais e concretos, que remontam a um
período bem anterior às Revoluções Liberais. Estes
preceitos têm um alcance equiparável, no contexto
britânico, à Magna Carta Libertatum, de 1215, pelo que
temos de constatar que os direitos humanos, materialmente,
não nasceram no século XVIII.
A partir do reinado de D. Afonso II, os monarcas são
propensos a sobrepor a lei às normas consuetudinárias
inconvenientes. No entanto, esta legislação ainda não era
produto da vontade exclusiva do rei, como acontecerá mais
tarde, dado que a promulgação das leis dependia da
consulta prévia da Cúria.
1.2.2. Forais
Os forais constituem uma fonte de direito local e uma das
mais importantes fontes de Direito, até ao reinado de D.
Afonso III (1248/1279).
A abundância de forais e cartas de povoação deve-se, mais
uma vez, à necessidade de estabilizar a independência do
reino através da conquista e povoamento de terras.
Até ao século XIII, em Portugal ainda não se pode falar dos
costumes ou foros, compilações de direito local, já
referidas, características do Direito da Reconquista.
1.2.3. Concórdias e concordatas
Designam os acordos, realizados entre o monarca e as
entidades eclesiásticas, através dos quais se comprometiam
mutuamente a reconhecer direitos e obrigações relativos ao
Estado e à Igreja.
Têm a sua origem em resposta aos agravamentos ou
queixas proferidas pelos representantes do Clero, nas
Cortes, ou em negociações do rei com as autoridades
eclesiásticas nacionais (concórdias) e com o papado
(concordatas).
As primeiras concórdias e concordatas remontam aos
reinados de D. Sancho I, D. Afonso II e D. Sancho II,
tendo-se incrementando posteriormente.
Ainda se utiliza a designação “concordatas”. A
Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa de
2004 é o exemplo mais recente, se bem que se contam
numerosas concórdias e concordatas celebradas ao longo
da História de Portugal. Até aos anos quarenta do século
XX, todas elas diziam respeito a acordos especiais,
circunscritos à resolução e concretas divergências que
opunham duas entidades. Data de 1940 a primeira
Concordata geral que foi substituída pela citada Concordata
de 2004.
2. Aspetos do sistema jurídico da época
2.1. Considerações gerais
Até meados do século XIII, o Direito português tem um
caráter predominantemente consuetudinário, potenciado pelo
esbatimento da aplicação do Código Visigótico.
Além disso, caracteriza-se pela sobreposição e concorrência de
elementos diversos, provenientes dos direitos autóctones, do
Direito Romano Vulgar, do Direito Canónico, dos costumes
germânicos e de algumas influências árabes e francas.
Esta amálgama, como lhe chama Almeida Costa, corresponde
ao grupo dos direitos de cultura, que se contrapõe aos direitos
de estirpe, que designam um sistema jurídico que apresenta
uma linha única de evolução.
A concreta configuração do Direito Português da época em
apreço deve-se às peculiares circunstâncias económicas,
políticas e sociais.
Dado o empirismo da criação jurídica, os tabeliães, os notários
da época, através dos contratos e atos que redigiam, supriam a
falta de preceitos gerais para o Direito Privado.
Os atos jurídicos privados dependiam assim inteiramente, na
sua realização, do critério dos notários.
2.2. Aspetos do tabelionado medieval português
A necessidade de preservar a ocorrência de atos passados
impulsionou grandemente o surgimento do tabelionado
português: a existência de notários em Portugal nos tempos
medievais.
O tabelionado público do país remonta ao reinado de D.
Afonso II, sendo que o controlo régio desta atividade se
intensifica a partir de D. Dinis.
2.3. Contratos de explotação agrícola e de crédito
Os contratos agrários desempenharam um importante papel no
panorama económico e social da Idade Média. A agricultura e
as indústrias conexas eram então, com efeito, as atividades
predominantes.
Refira-se desde já que, antes de as influências romanísticas se
fazerem sentir, com o renascimento do Direito Romano
justinianeu, a individualização e caracterização destes
contratos, inominados, ou seja, não previstos tipicamente em
lei anterior, e com contornos poucos definidos, só se pode
fazer por atenção à sua finalidade económica.
De entre os contratos de exploração destacam-se:
A enfiteuse também denominada de aforamento ou
emprazamento. Era o contrato através do qual se atribuía
ao senhorio o “domínio direto” sobre o prédio, ao passo
que ao foreiro ou enfiteuta cabia o “domínio útil”. Por
outro lado, o “domínio direto” traduz o direito do
senhorio a receber uma pensão anual (foro ou cânon),
em princípio, proporcional ao rendimento do prédio. Por
outro, o “domínio útil”, a exploração do prédio, conferia
ao enfiteuta, por exemplo, o direito anexo de alienar a
sua posição a terceiro, com ou sem a estipulação de um
direito de preferência a favor do senhorio. A enfiteuse
fazia-se por prazo longo ou perpétuo.
A complantação presidia a finalidade comum de permitir,
a quem explorava um terreno alheio (prédio), alcançar uma
posição mais segura frente ao proprietário, juridicamente,
dir-se-ia que está aqui em causa o princípio da conquista
da propriedade através do trabalho. A sua função social
pode ser descrita através desta descrição: “tu tens terras e
eu não tenho”. Estes contratos facilitam o acesso ao
domínio sobre a terra, forma de riqueza então
predominante. Este tipo de contrato de exploração
implicava a cedência de um prédio, pelo seu
proprietário, a um agricultor, investido da obrigação de
o fertilizar, nomeadamente, com a plantação de vinhas. No
final do prazo estabelecido (estipulado, em regra, entre os
quatro e oito anos), o prédio era dividido, em partes
iguais, entre o proprietário inicial e o agricultor.
Quanto aos contratos de crédito, destacam-se:
Compra e venda de rendas- implicava que o
proprietário de um prédio, carecido de capitais, cedia a
uma pessoa com capacidade financeira, em
compensação de uma determinada quantia, recebia
definitivamente, o direito a uma prestação monetária
anual imposta como encardo desse prédio. Constituía,
portanto, uma espécie de empréstimo com juros, então
proibido, dando, mais tarde, origem à renda perpétua e
à renda vitalícia, ainda hoje previstas no Código Civil
(artigo 1231º e 1238º).
Penhor imobiliário- implicava a transmissão de um
prédio pelo proprietário-devedor ao respetivo credor,
como garantia e compensação da cedência de capital ou
como modo de proporcionar o reembolso progressivo da
dívida, através do aproveitamento do prédio. O instituto
do penhor imobiliário deu lugar à hipoteca de
configuração romanística.
Por estes contratos se cumpria a função social descrita na
frase: “eu tenho terras e tu tens dinheiro”: facilita-se o acesso
ao capital por parte de quem não o tem.
Capítulo 4
Período do Direito Português de Inspiração
Romano-Canónica
Capítulo 4.1.
Época da Receção do Direito Romano Renascido e do Direito
Canónico Renovado (Direito Comum)
1. Preliminares
Segundo a periodização proposta por Almeida Costa, o segundo
período da História do Direito Português- que se segue ao período da
individualização do Direito Português (1140-1248) - é o período do
Direito Português de inspiração romano-canónica, o qual tem início,
justamente em 1248 e fim em meados do século XVIII.
O autor citado subdivide este segundo período da História do Direito
Português em duas grandes épocas: a época da receção do Direito
Romano renascido e do Direito Canónico renovado (1248-1446/47) e
a época das Ordenações (1446/1447-1769/1772).
2. O direito natural no pensamento jurídico medieval
Um dos temas perenes da história do pensamento jurídico prende-se
com a questão do fundamento do Direito vigente numa determinada
ordem jurídica.
Ora, os pensadores medievais já entendiam que esse fundamento do
Direito, sendo natural, ultrapassava os governantes temporais de
cada momento, procurando identificar uma ordem jurídica extensível
a todos.
Nesta buca e teorização, S. Tomás de Aquino (1225-1274), filósofo,
teólogo e professor na Universidade de Paris, provavelmente o
melhor pensador do seu tempo, logrou destrinçar noções que
visavam descrever a normatividade própria da vida humana;
distinguiu ele a lei eterna, a lei natural, o direito natural e a lei
humana.
Lei eterna: corresponderia à própria razão de Deus enquanto
ela governa e ordena todas as coisas (ao serem criados, todas
as coisas foram pensadas e queridas por Deus).
Lei natural: seria a participação da lei eterna, que é própria da
criatura racional, do ser humano, revelando-se na capacidade
de distinguir o bem do mal e na consciência da obrigação de
fazer o bem. Enquanto lei revelada por Deus aos homens, o
autor falava numa lei divina ou divino-positiva, de que
constituem expressão os 10 Mandamentos da lei de Deus
entregues a Maomé.
Direito Natural: conjunto de coisas que devem ser dadas a
quem tem um título sobre elas, segundo aquilo que é
determinado pela natureza humana (assim, do bem “vida”
nascia um direito à vida, tal como do bem “integridade física”
nascia um direito à integridade física).
Nota: verifica-se uma proximidade entre a aceção aquiniana de
Direito Natural e aquela que era defendida pelos juristas romanos
clássicos.
Lei humana: inferior à lei natural, para o Aquitanense, a lei
humana era uma certa determinação da razão, dirigida ao bem
comum, ditada por aquele que tem a seu cargo a comunidade.
A lei humana era derivada da lei natural, fosse por conclusão
(ex.: para um homicídio faz-se aplicar uma pena de prisão),
fosse por determinação (ex.: caso da necessária ordenação da
circulação, em Portugal feita pela direita).
Assim, como se vê, a lei humana, na formação de São Tomás de
Aquino, que se tornou clássica, define-se em sentido material,
sendo diferente da lei, entre os romanos (lex publica rogata),
definida em sentido formal, vista como uma declaração solene com
valor normativo, feita pelo populus romano que, reunido nos
comitia, aprovava a proposta que o magistrado (presidente)
apresentava e o Senado confirmava. O mesmo se diga da noção hoje
vigente de lei, também formal, baseada nos requisitos da
generalidade e da abstração.
Por conseguinte, desta mundividência jurídica aquiniana, que era, de
resto, comum entre os juristas medievais, resultava que uma norma
humana, positiva, que fosse contrária à lei natural não possuía
qualquer valor, independentemente de ser escrita ou costumeira;
estava legitimada a desobediência, dado essa norma não ser lei, mas
uma corrupção da lei.
3. O Direito Romano justinianeu desde o século VI ao século XI
Como se sabe, o Direito Romano, sofreu uma evolução diferente no
Ocidente (onde se vulgarizou, perdendo o equilíbrio e o
brilhantismo que o caracterizou, séculos antes) e no Oriente (onde
continuou a ser aplicado, através de paráfrases, traduções para grego
e resumos), nos séculos que se seguiram à queda de Roma, em 476.
No entanto, aquando da transição da Alta Idade Média (séculos V a
X) para a Baixa Idade Média (século XI a XV) surge, no Ocidente
Europeu, um novo interesse teórico e prático pelas coletâneas do
Corpus Iuris Civilis, o que levou a um “renascimento” do Direito
Romano.
Com efeito, as fontes do Direito e, por consequência, as instituições
e o pensamento jurídico dominante na Europa a partir de então
caracterizavam-se pelo renascimento do interesse evidenciado pelo
Direito Romano justinianeu, a par da renovação do Direito
Canónico.
Não se pode, contudo, em bom rigor, falar de um “renascimento” do
Direito Romano, por dois motivos:
por um lado, o Direito Romano vulgar estava presente, como
já se referiu;
por outro, o próprio Direito Romano justinianeu não deixou de
ser conhecido, estudado e aplicado até à transição da Alta
Idade Média para a Baixa Idade Média. Simplesmente e
sobretudo a partir do século XI, os juristas voltaram a estudá-
lo e a utilizá-lo com uma profundidade que não se verificou no
século anterior.
A vigência propriamente dita, do Corpus Iuris Civilis no Ocidente foi
algo efémera.
Itália: vigorou por força do domínio bizantino e de uma
constituição imperial (pragmática sanctio) data de 554, durante
cerca de catorze anos. No entanto, com a conquista parcial do
território itálico pelos Lombardos, em 568, o Direito
justinianeu foi circunscrito a cidades como Roma e Ravena.
Península Ibérica: a presença de tropas bizantinas no Sul foi
insuficiente para produzir influências jurídicas substanciais.
Por essa época (século VI), difundem-se no Ocidente as coletâneas
justinianeias, mas essa difusão foi bastante modesta, acabando
muitos dos textos por cair no esquecimento. Nada teve a ver esta
difusão indiferenciada do século VI com o fulgurante interesse que o
Direito Romano do Corpus Iuris Civilis despertou no século XII
(com precedentes já no século XI), que esteve na base da evolução
conducente à ciência jurídica moderna. Note-se que a já aludida
subsistência do Direito Romano vulgar é que torna possível este
renascimento, ao permitir o reencontro com as estruturas do Direito
Romano clássico.
4. Pré-Renascimento do Direito Romano
Reza a lenda que o Digesto foi descoberto casualmente, em 1135,
durante o saque bárbaro da cidade italiana de Amalfi, pelos
Lombardos, tendo sido levado para Pisa, onde o Imperador Lotário II
lhe restituiu força vinculativa.
No entanto, a moderna crítica histórica afasta a lenda, dado que, se
por um lado, o Digesto já era conhecido e citado, antes do século
XII, por outro, nunca um único e pontual episódio poderia
determinar todo um renascimento, o qual antes assenta em múltiplas
causas históricas e jurídicas.
Desde logo, as tentativas de restauração do Império Romano
do Ocidente (cujo expoente máximo foi o Sacro Império
Romano-Germânico) e, consequentemente, do seu
ordenamento jurídico. Isto porque, com a morte de Carlos
Magno, as relações entre o Papado e o poder temporal
agudizaram-se, originando uma querela que se prolongaria no
tempo: a relação de (in)dependência entre o poder espiritual e
o poder político. Deste modo, os defensores do poder imperial
procuram no Direito Romano justinianeu soluções que
robustecessem a sua posição.
Universalismo da fé cristã, que unificava os homens para além
da raça e da história e exaltava a romanidade (a primeira
experiência da consciência europeia foi a Respublica
Christiana).
Surgimento das Universidades e o progresso geral da cultura
na Baixa Idade Média.
Aumento da população, êxodo rural e surgimento de uma
economia citadina.
Assim, soçobra a lenda de Lotário II, porquanto, como se viu, foi uma
panóplia de fatores políticos, religiosos, culturais e económicos que
concorrem entre si para originar o referido renascimento do Direito
Romano. Ponto é que, desde o século XI, este intenso interesse,
redescoberto, pelo estudo do Direito justinianeu se fez sentir. E, mesmo
antes de a Escola de Bolonha despontar e atingir o seu apogeu, já na Itália
vários pólos existiam onde o Direito Romano era estudado e conhecido,
como Pavia ou Ravena.
Na literatura jurídica do século XI, denotava-se, de igual forma, o reflexo
do Corpus Iuris Civilis, nomeadamente em obras como Exceptiones legum
romanorum Petri (uma obra-síntese de outras que a antecederam) ou
Brachilogus Iuris Civilis (uma exposição de todo o Direito segundo o
modelo das Institutiones justinianeias), bem como em coleções canónicas
cujo autor foi Ivo, bispo de Chartres.
Pese embora haja quem sustente que, também na Península Ibérica, é
possível encontrar indícios deste pré-renascimento, não parece que, fora de
Itália, esse fenómeno tenha atingido proporções relevantes, cingindo-se a
literatura isolada.
Capítulo 4.2.
Época das Ordenações
1. Preliminares
O contexto que enquadra a épocas das Ordenações e que explica o
aparecimento da primeira codificação de Direito nacional
caracteriza-se por uma tendência positivista e legalista, traduzida
na pretensão de o Estado deter progressivamente todo o Direito.
Por conseguinte, regista-se, inicialmente, a pretensão estatal de
disciplinar o valor do costume, do Direito prudencial (doutrina) e do
Direito supre estatal (Direito Romano e Direito Canónico), aos quais
se seguem o Direito Natural e o Direito Internacional. Na verdade, o
Estado acabará por, mais tarde, reduzir o Direito aos atos por si
promulgados, conduzindo, assim, a uma identificação absoluta
entre Direito e lei.
2. Ordenações Afonsinas
2.1. Elaboração e início de vigência
Conforme resulta do proémio do Livro I das Ordenações
Afonsinas, a elaboração das mesmas foi impulsionada pelas
Cortes, descontentes perante a confusão legislativa instalada.
Na sequência dos pedidos formulados, D. João I incumbiu
João Mendes de elaborar esta coletânea. Após a morte de
ambos, D. Duarte confia a continuação dos trabalhos ao
Doutor Rui Fernandes.
A obra viria a ser concluída em 28 de julho de 1446. Foi
aprovada em 1446/7, em nome de D. Afonso V e passou a
aplicar-se generalizadamente a partir de 1450.
2.2. Fontes utilizadas. Técnica legislativa
As Ordenações Afonsinas assumem-se como a primeira
codificação nacional de aplicação extensível a todo o país,
tendo operado uma verdadeira sistematização e atualização do
Direito vigente.
Na sua elaboração, foram tidas em conta diferentes fontes de
Direito anterior, como as leis gerais, as resoluções régias, as
concórdias, concordatas e bulas, as inquirições, costumes
gerais e locais, os estilos da Corte e dos tribunais superiores. A
estes acrescem ainda algumas normas das Siete Partidas e
dos Direitos Romano e Canónico.
Na sua preparação, foram utlizados dois estilos:
estilo compilatória: transição dos preceitos anteriores,
cujos termos seriam confirmados, alterados ou afastados
posteriormente, através de uma indicação expressão.
estilo decretório ou legislativo: pelo contrário,
consistia na enunciação das normas, sem menção às
respetivas e eventuais fontes precedentes, como se de
novas normas se tratassem.
O estilo decretório é preponderante no Livro I.
2.3. Sistematização e conteúdo
Do ponto de vista da sua sistematização, as Ordenações
Afonsinas encontram-se divididas em 5 livros, cada um dos
quais precedido por um proémio e dividido em títulos com
rúbricas e, por vezes, parágrafos.
A sistemática desta compilação e respetivo conteúdo é a
seguinte:
Livro I – diz respeito ao estatuto dos cargos públicos,
régios e municipais;
Livro II – dedicasse a diversas temáticas, como a
disciplina dos bens e privilégios da Igreja, os direitos do
rei e sua cobrança, a jurisdição dos donatários e o
estatuto dos Judeus e dos Mouros. São normas
materialmente constitucionais;
Livro III – comporta o processo civil;
Livro IV – contém o direito civil substantivo, embora
de forma desorganizada;
Livro V – respeita ao Direito e processo criminais.
Destaca-se o Livro II, pois o seu conteúdo permite
transparecer a visão medieval dos direitos. Verifica-se uma
proteção estamental e concreta dos direitos dos súbditos: o
estatuto dos judeus e dos mouros e um caso particular- são
também reconhecidos direitos universais aos membros destas
minorias, mas sempre tendo em conta o facto de pertencerem a
uma minoria.
2.4. Importância da obra
As Ordenações Afonsinas são a base da posterior evolução
do Direito Português, tanto mais que as Ordenações que lhe
sucederam praticamente se limitaram a atualizá-las.
Acresce que esta coletânea é uma obra meritória que ombreou
com as homólogas estrangeiras da época. Revela, por outro
lado, o caráter precoce do movimento de centralização
política em Portugal.
2.5. Edição
As Ordenações Afonsinas não conheceram uma edição
impressa durante a sua vigência, o que só viria a suceder nos
finais do século XVIII, por iniciativa da Universidade de
Coimbra, com a edição de 1792.
3. Ordenações Manuelinas
3.1. Elaboração
As Ordenações Afonsinas tiveram um curto período de
vigência, já que, em 1505, se preparava a sua revisão. Para o
efeito, D. Manuel atribuiu a tarefa a Rui Boto, Rui da Grã e
João Cotrim.
Vários foram os motivos que presidiram à reforma das
primeiras Ordenações:
Por um lado, a introdução da imprensa, em 1487,
reclamou a reforma da coletânea jurídica vigente;
Por outro, D. Manuel gostaria de associar o seu reinado
a uma profunda reforma legislativa.
A reforma das Ordenações Afonsinas acabou por dar origem a
uma nova coletânea. Assim, em 1514 regista-se a primeira
edição completa conhecida das Ordenações Manuelinas.
Contudo, só em 1521 (ano da morte de D. Manuel) é que foi
editada a sua versão definitiva, dado que, até então,
prosseguiram os trabalhos legislativos, por se entender que o
projeto inicial era demasiado idêntico às Ordenações
Afonsinas. Para evitar confusões, foi ordenada, por Carta
Régia de 15 de março de 1521, a destruição dos exemplares
anteriores e a aquisição de exemplares novos pelos concelhos,
no prazo de três meses.
3.2. Sistematização e conteúdo
As Ordenações Manuelinas conservaram, no essencial, a
estrutura das suas antecessoras, incluindo a distribuição das
matérias.
No entanto, registaram-se importantes alterações em termos de
conteúdo, especialmente no que respeita às disposições
dedicadas aos Judeus e aos Mouros, que foram suprimidas
(uma lei de 1496 tinha imposto, entretanto, a sua conversão ao
Catolicismo, sob pena de terem que abandonar o país), e à
introdução da disciplina da interpretação vinculativa da
lei, através dos assentos da Casa da Suplicação.
Apesar disso, as novas Ordenações não operaram grandes
alterações no Direito português. De todo o modo, há que
assinalar um considerável progresso de técnica legislativa,
com predomínio do estilo decretório e consequente
menorização da reconstituição do Direito antecessor.
3.3. Edição
A primeira edição das Ordenações Manuelinas data de 11 de
março de 1521, mas a coletânea foi objeto de edições.
Depois de substituídas pelas Ordenações Filipinas, aquelas
foram novamente editadas, em 1797, com vista a facilitar a
investigação histórica. Esta última- edição universitária-
incluía o prefácio e uma tabela de correspondência com os
textos normativos anteriores e posteriores.
4. Coleção das Leis Extravagantes de Duarte Nunes do Lião
Num contexto de grande produção legislativa, surgiu a necessidade
de uma coletânea que complementasse, de forma sistematizada, as
Ordenações Manuelinas, permitindo, assim, uma maior certeza e
segurança jurídicas.
Com este intuito, o Cardeal D. Henrique, regente do reino durante a
menoridade de D. Sebastião, confiou a Duarte Nunes do Lião a tarefa
de organizar o Direito extravagante num único repositório.
Assim, a Coleção de Leis Extravagantes de Duarte Nunes do Lião
conheceu uma versão impressa e oficial em 1569.
5. Ordenações Filipinas
5.1. Elaboração
A reforma que se impunha das Ordenações Manuelinas
relegou as Leis Extravagantes de Duarte Nunes do Lião para
um papel secundário. Por conseguinte, Filipe I assumiu o
encargo de, no seu reinado, elaborar umas novas Ordenações e
proceder a variadas transformações no domínio jurídico.
É de notar que o contexto político da época foi muito
aproveitado pelo monarca espanhol que pretendeu manifestar
o seu respeito pelas instituições portuguesas e, ao mesmo
tempo, contribuir para a sua atualização.
Os trabalhos preparatórios das Ordenações Filipinas foram
iniciados entre 1583 e 1585 e concluídos em 1595. Destaca-se
a intervenção de Jorge de Cabedo, Afonso Vaz Teneiro e
Duarte Nunes de Lião.
As Ordenações Filipinas forma aprovadas por Lei de 5 de
junho de 1595, por Filipe I, tendo entrado em vigor somente
em 11 de janeiro de 1603, já no reinado de Filipe II.
De realçar que as Ordenações Filipinas constituem o
instrumento legislativo português com o maior período de
vigência: de 11 de janeiro de 1603 a 1 de julho de 1867
(data de promulgação do Código Civil de Seabra que os
revogou completamente) decorreram 264 anos, que
atravessaram 10 gerações. Sendo um exemplo extremo, a
estabilidade legislativa também é, no entanto, um valor a ter
em conta.
5.2. Sistematização e conteúdo. Legislação revogada
As Ordenações Filipinas seguiram o esquema tradicional no
que respeita à sistematização e conteúdo dos livros.
Na realidade, as Ordenações Filipinas limitaram-se, grosso
modo, a rever e atualizar as anteriores, reunindo preceitos
manuelinos e normativos que posteriormente entraram em
vigor.
Porém, assinalam-se algumas alterações importantes.
Do ponto de vista sistemático, o tópico relativo ao
preenchimento das lacunas é deslocado do Livro II para o
Livro III, relativo ao processo.
Do ponto de vista do conteúdo, as Ordenações Filipinas
introduziram a novidade das normas sobre o Direito da
nacionalidade: a naturalidade do Reino passou a depender da
conjugação dos critérios do ius sanguinis e do ius soli,
embora com predomínio deste último.
Por fim, com a aprovação das Ordenações Filipinas procedeu-
se à revogação de todas as normas legais avulsas, com
algumas exceções. Na prática, muitos daqueles preceitos
continuavam a aplicar-se.
5.3. Confirmação por D. João IV
Em 1640, foi restaurada a independência de Portugal e D.
João IV ratificou a maior parte da legislação promulgada
durante a ocupação filipina.
Em concreto, as Ordenações Filipinas foram confirmadas e
revalidadas por Lei de 29 de janeiro de 1643, na qual D. João
IV manifestou a sua intenção de as reformar, o que não veio a
acontecer.
5.4. Os “filipismos”
A preocupação fundamental dos autores das novas Ordenações
foi rever e coordenar o Direito vigente, reduzindo ao mínimo
as inovações. Em consequência:
Fez-se uma atualização por mero aditamento do novo
ao antigo (revogado ou caído em desuso), sem uma
reformulação adequada dos preceitos;
Deu-se o surgimento de contradições resultantes da
inclusão e disposições opostas a outras que não se
eliminaram.
Filipismos é o nome pelo qual ficou conhecida esta falta de
originalidade e as contradições operadas pelas reformas
legislativas do período filipino.
O respeito forçado pelo texto manuelino levou aos filipinos.
Os compiladores podiam ter feito melhor.
Esta nomenclatura surgiu em finais do século XVIII.
5.5. Edição
Em face da sua longa vigência, é natural que as Ordenações
Filipinas tenham sido objeto de várias edições. A primeira data
de 1603 e foi levada à estampa pela oficina de Pedro
Craesbeek, em Lisboa.
Entre outras, destaca-se a “Edição Vicentina”, de 1747,
associada a uma tentativa frustrada de promulgação de umas
novas ordenações.
As Ordenações Filipinas foram também editadas no Brasil, em
1870, por iniciativa de Cândido Mendes de Almeida, um
jurista brasileiro com largo conhecimento da doutrina jurídica
portuguesa. Esta é a décima quarta edição das Ordenações
Filipinas, embora, à data, já tivessem sido revogadas em
Portugal.
No Brasil, as Ordenações Filipinas estiveram em vigor até
1916.
6. Fontes de Direito na Época das Ordenações
6.1. Fontes imediatas
6.1.1. A Lei
A. As compilações (remissão)
As compilações de leis, nelas avultando as
Ordenações, foram já estudadas. Para esse estudo se
remete.
B. Legislação extravagante. Publicação e início da
vigência da lei.
a. Considerações introdutórias
Não obstante a operação revogatória da legislação
extravagante levada a cabo pelas Ordenações
Filipinas, a verdade é que aquela acabou
inevitavelmente por se impor, ganhando uma
dimensão considerável.
Na época em causa, o conceito de lei
correspondia a toda uma manifestação da vontade
soberana, com vista a proceder a alterações na
ordem jurídica vigente. Por conseguinte, eram
incluídos preceitos que não gozavam de
generalidade e abstração.
As leis extravagantes cuidavam, no essencial, de
matérias relativas à manutenção da ordem
pública, à administração da justiça e à
cobrança dos impostos. Quanto ao Direito
Privado, imperava o recurso ao Direito
subsidiário.
b. Espécies de diplomas
O procedimento de criação do Direito
encontrava-se centralizado no monarca, sendo
diversas as suas formas de manifestação: cartas
de lei, alvarás, decretos, cartas régias, resoluções,
provisões, portarias e avisos.
Destes destacam-se as cartas de lei e os alvarás
pela sua importância.
As primeiras caracterizam-se por passarem pela
chancelaria régia, começarem pelo nome
próprio do rei e serem utilizadas para os
preceitos que devessem vigorar mais do que
um ano.
Os segundos também passavam pela chancelaria
régia, mas gozavam de uma menor solenidade
na forma e destinavam-se aos preceitos de
curta vigência.
Na realidade, as diferenças rapidamente se
esbateram, tendo surgido figuras híbridas como
os alvarás de lei.
c. Publicação e início da vigência da lei
As Ordenações Afonsinas não disciplinavam a
publicação e início de vigência da lei. Por sua
vez, as Ordenações Manuelinas fizeram-no,
incumbindo o Chanceler-Mor da publicação das
leis na chancelaria da Corte e do envio dos
respetivos translados para os corregedores das
comarcas.
Tradicionalmente, as câmaras e os tribunais
superiores promoviam a elaboração dos seus
próprios livros de registo das leis, cujo interesse
não foi dissipado pela introdução da imprensa.
Um alvará de 10 de dezembro de 1518
determinou que a eficácia das leis, em todo o
país, ocorreria após o decurso de 3 meses sobre
a sua publicação na chancelaria e, por isso,
independentemente da sua publicação nas
comarcas. As Ordenações Manuelinas
encurtaram o período de vacatio legis para 8
dias quanto à Corte, ao passo que os demais
diplomas, ou seja, os que não eram submetidos à
chancelaria, entravam em vigor na data da sua
publicação.
C. Interpretação da lei através de assentos
A questão da interpretação da lei através dos
assentos tem a sua origem no problema de
determinar qual a interpretação legislativa com
sentido universalmente válido para futuro,
quando se levantam dúvidas interpretativas.
Inicialmente, só era admitida a chamada
interpretação autêntica, emanada pelo próprio
monarca. Mais tarde, essa prerrogativa foi
transferida para a Casa da Suplicação, cujos
assentos passaram a constituir jurisprudência
obrigatória.
Para além desta, também outras instâncias se
arrogaram a faculdade de emitir assentos normativos,
como a Casa do Cível, segunda instância das causas
cíveis (que, mais tarde, deu origem ao Tribunal da
Relação do Porto), e com as restantes Relações.
Perante o incremento das confusões e contradições
normativas, a Lei da Boa Razão veio a determinar,
em 1769, que os assentos da Casa da Suplicação
seriam os únicos com eficácia interpretativa.
6.1.2. Os estilos da corte
As Ordenações conferem aos estilos da Corte o
estatuto de fonte de Direito, a par da lei e do
costume.
Os estilos da Corte e o costume comungam o facto de
serem fontes de natureza não escrita, baseadas,
portanto, no uso. No entanto, os primeiros
correspondiam à jurisprudência uniforme e constante
dos tribunais superiores. Por Carta Régia de 7 de
junho de 1605, determinou-se a obrigatoriedade dos
estilos antigos da Casa da Suplicação.
Não se deve confundir os estilos da Corte, em análise,
formados a partir das sentenças dos tribunais superiores
(da Corte) com as decisões das Cortes, enquanto
assembleias políticas.
Os estilos da Corte deveriam obedecer aos seguintes
requisitos:
Não contrariedade à lei;
Antiguidade igual ou superior a 10 anos;
Introdução, através de, pelo menos, 2 atos
conformes de tribunal superior.
6.1.3. O costume
Nos primórdios da fundação da nacionalidade, o
costume era a fonte de Direito por excelência, até
meados do século XIII. A partir daí, a atividade
legislativa assume-se como forma ordinária de
criação de Direito.
As Ordenações vieram regular expressamente a força
jurídica do costume, que era reconhecido, não só
quando era conforme à lei (secundum legem), como
para além daquela (praeter legem) ou mesmo contra
ela (contra legem). Com a Lei da Boa Razão, este
último perdeu relevância.
Em concreto, as Ordenações Afonsinas faziam uma
mera referência à vigência do costume. Já as
Ordenações Manuelinas introduziram algumas
especificidades, equiparando a validade dos costumes
locais e gerais e fazendo depender a sua observância das
situações em que a doutrina romanística e canonísticas
admitisse a sua vigência. As Ordenações Filipinas
mantiveram estas regras.
No que concerne ao segundo aspeto, a doutrina debatia
sobre a fundamentação e requisitos de validade do
costume que, na época, seriam o consenso coletivo
aliado à vontade tácita do monarca. Verifica-se,
assim, a uma verdadeira subversão legalista, dado que,
para sustentar a vontade do monarca como fonte de todo
o Direito, se reconhecia a aceitação tácita do costume
sempre que o rei não promulgasse leis em sentido
contrário.
Quanto aos pressupostos da sua força vinculativa, só
viriam a ser fixados pelo legislador nas reformas
pombalinas. Por influência canonísticas, a
generalidade da doutrina aceitava o costume contra
legem, à exceção dos preceitos de ordem pública.
No entanto, discutia-se também sobre a antiguidade e o
número de atos determinantes para a prova e
formação do costume. Alguma doutrina exigia ainda
um requisito de racionalidade do costume, ou seja, que
fosse um costume dirigido ao bem comum.
C. Resolução do monarca
Nas situações em que os elementos precedentes não
oferecessem resposta suscetível de colmatar a
lacuna, bem como nas situações em que, não se
tratando de matéria de pecado, na falta de
regulamentação por parte do Direito Romano,
houvesse opiniões contraditórias deste e do
Direito Canónico, o caso seria resolvido através
de consulta ao rei.
As resoluções emitidas pelo monarca tinham força
vinculativa no caso concreto e também nos casos
futuros.
6.2.3. Alterações introduzidas pelas Ordenações
Manuelinas e pelas Ordenações Filipinas
O quadro jurídico de fontes de Direito subsidiário
traçado pelas primeiras Ordenações transitou, embora
formalmente modificado, para as Ordenações
Manuelinas e Filipinas.
Das primeiras para as segundas destaca-se a
justificação da vigência subsidiária do Direito
Romano, cuja aplicação se devia à autoridade que lhe é
própria e não a qualquer subordinação política do Reino
de Portugal ao Império.
Por sua vez, Ordenações Filipinas, por confronto com as
Manuelinas, apresentam apenas pequenos retoques,
passando a matéria do Direito subsidiário a integrar
o livro dedicado ao Direito Processual e já não às
relações entre a Igreja e o Rei. Esta mudança traduz a
rutura definitiva entre o problema do Direito subsidiário
e o conflito das jurisdições do poder temporal e do
poder eclesiástico.
Quanto às diferenças essenciais entre as Ordenações
Afonsinas e as que lhe sucederam, elencam-se as
seguintes:
Direitos Romano e Canónico – elimina-se a
distinção entre problemas temporais e espirituais,
mantendo-se apenas o critério do pecado.
Glosa de Acúrsio e Opinião de Bártolo –
aplicam-se se não contrariarem a “opinião
comum dos doutores”. Esta não é uma fonte
subsidiária em si mesma, mas apenas um
requisito negativo de relevância das outras duas.
Porém, na prática, impôs-se a doutrina de que a
communis opinio era fonte subsidiária, antes da
Glosa de Acúrsio e da Opinião de Bártolo.
As fontes de Direito subsidiário aplicavam-se pela
ordem referida. Em suma, caso as fontes imediatas não
compreendessem a regulamentação da situação,
recorria-se ao Direito Romano-Canónico e, na falta
deste, à Glosa de Acúrsio e à Opinião de Bártolo. Em
última instância e depois de percorridas todas as
anteriores fontes, recorria-se às resoluções do rei.
6.2.4. Utilização das fontes subsidiárias
Não obstante a hierarquia das fontes de Direito
estabelecida pelas Ordenações, levantavam-se sempre
dúvidas sobre o Direito aplicável, gerando-se confusões
e desvios à letra e espírito do sistema.
Refiram-se, a título de exemplo, a frequente preterição
do direito nacional pelo Direito Romano, o recurso
excessivo à opinião comum e inclusivamente a
aplicação do Direito Castelhano, que nem sequer
constava do elenco das fontes mediatas.
O panorama jurídico português era, no geral,
dominado pelo romanismo escolástico, sobretudo nas
magistraturas ordinárias mais elevadas e em certas
magistraturas extraordinárias, exercidas por quem tinha
formação universitária.
Em contraste, o exercício da maioria das
magistraturas ordinárias menores não exigia
formação superior, sendo, por vezes, exercidas por
analfabetos. Assim, aplicavam um Direito de caráter
local, desprovido da eloquência da cultura jurídica da
época. Neste contexto, destacava-se o papel
desempenhado pelos juízes de fora e pelos
corregedores das comarcas, bem como do expediente
dos recursos que permitia eliminar deficiências das
decisões.
6.3. Ainda sobre fontes imediatas: a Reforma dos forais
O decurso do tempo e a azáfama legislativa contribuíram para
a progressiva desatualização dos forais, cuja maior parte das
disposições foi revogada pela legislação geral ou estava
absolutamente superada. Acresce que o próprio suporte físico
de muitos dos forais se estava a deteriorar.
O estado dos forais foi denunciado nas Cortes, tendo D. João
II impulsionado a sua reforma. Para tal, determinou a recolha
e envio de todos os forais à Corte.
Entretanto, já no reinado de D. Manuel I, o movimento de
reforma dos forais intensificou-se. Por um lado, o monarca
ordenou o envio à Corte de todos os forais que ainda não lhe
haviam chegado e, por outro, nomeou uma comissão revisora.
Em 1520 concluiu-se a reforma, da qual surgiram os
designados forais novos ou manuelinos. Estes já não
continham o estatuto jurídico-político dos concelhos, passando
a ser meras listas dos encargos e tributos devidos por eles à
Coroa e aos donatários das terras.
7. Evolução das instituições sociais: a importância das
Misericórdias
A prática da misericórdia, isto é, da compaixão, da solidariedade ou
da caridade, corresponde à virtude socialmente mais importante.
Considera-se oportuno abordar aqui as Misericórdias, uma vez que o
reiterado apelo da Igreja Católica à prática da misericórdia não se
limitou a um discurso teórico, antes se traduzindo na fundação e
funcionamento de instituições sociais de grande relevância, desde
finais do século XV, período que consideramos agora, na assistência
social, relevância essa que ainda hoje se mantém.
As Irmandades da Misericórdia, Santas Casas da Misericórdia
(SCM) ou, simplesmente, Misericórdias, foram fundadas em 15 de
agosto de 1498, aquando da criação, na Sé de Lisboa, da Santa Casa
da Misericórdia de Lisboa, por iniciativa da Rainha D. Leonor, viúva
de D. João II e regente na ausência de D. Manuel I, e de Frei Miguel
Contreiras.
Discute-se ainda hoje qual o verdadeiro papel – nomeadamente o
de ideólogo ou de inspirador doutrinário – que terá tido o confessor
da rainha, o frade trinitário espanhol Miguel Contreiras (1431-
1505). Este religioso, na altura muito popular em Lisboa, pertencia à
Ordem dos Trinitários. Por carta régia de 14 de março de 1499,
dirigida aos “Juízes, Vereadores, Procurador, fidalgos, cavaleiros e
homens bons”, D. Manuel I recomendou a criação de Misericórdias
“em todalas cidades, vilas e lugares primçipaees de nossos Regnos”,
à semelhança de Lisboa.
A designação das Irmandades da Misericórdia, Santas Casas da
Misericórdia ou simplesmente Misericórdias advém do facto de
serem instituições que se propunham a realizar obras de
misericórdia. De acordo com a tradição cristã, essas obras eram em
número catorze – sete corporais e sete espirituais, a saber, na sua
fórmula atualizada:
Sete Obras da Misericórdia espirituais:
A primeira é ensinar quem não sabe;
A segunda é dar bom conselho a quem o pede;
A terceira é corrigir com caridade os que erram;
A quarta é consolar os tristes desconsolados;
A quinta é perdoar a quem nos ofender;
A sexta é sofrer as injúrias com paciência;
A sétima é rogar a Deus pelos vivos e pelos mortos.
Sete Obras de Misericórdia espirituais corporais:
A primeira é redimir (libertar) ativos e visitar os presos;
A segunda é curar os enfermos
Exemplo: todas as profissões na “linha da frente” do combate
à pandemia: médicos, enfermeiros, pessoal auxiliar dos
hospitais, dos lares de idosos, etc.
A terceira é vestir os nus, isto é, dar roupa aos que não têm;
A quarta é dar de comer aos famintos;
A quinta é dar de beber aos que têm sede
Exemplo: voluntários que ajudam na distribuição de
alimentação a idosos¸
A sexta é dar pousada aos peregrinos e pobres: hoje em dia,
diz-se: ‘dar um teto a quem não tem’, e relaciona-se com o
modo de acolher os refugiados, que se acumulam nas
fronteiras externas da Europa;
A sétima é sepultar os mortos.
Em 1500 já existiam 23 Misericórdias. Hoje, são cerca de 400.
As Misericórdias portuguesas constituem uma organização social
da iniciativa religiosa e desempenham um papel importante na
assistência social, ao reunirem os homens bons da terra numa
organização que pugnava pela prática de atos de misericórdia para
com os pobres: a Misericórdia.
Até muito tarde o Estado não se importou nada com a assistência
social, sendo que as misericórdias estiveram no eixo deste setor.
Estabelecia-se assim uma relação entre a propriedade e o capital,
por um lado, e a equidade e a justiça social, por outro, o que está nas
origens do chamado setor social, que se distingue do setor público e
do setor privado da economia.
Natureza jurídica das Misericórdias: as Misericórdias eram
organizações comunitárias dos leigos católicos, muito diversificadas,
inspiradas pela Igreja, e apoiadas pelo rei, sem serem iniciativas
públicas.
Quanto às causas da sua existência, entende Isabel dos Guimarães Sá
que na génese das Misericórdias terão estado:
Novas exigências de uma fé renovada;
Vontade de se abrigar sob o manto protetor da Virgem Maria;
Uma preocupação acrescida de praticar as obras de devoção e
de misericórdia, na sua universalidade (não só algumas, como
noutros países católicos, mas todas);
Uma forte relação entre a administração dos bens terrenos e o
culto (oferecimento de Missas e orações pelas almas dos
defuntos);
Um ambiente de fundação de conventos de ordens
mendicantes, grandes impulsionadoras das Misericórdias
(Franciscanos, etc.);
Uma coroa desejosa de afirmar a sua superioridade (portanto,
não é estranho que o rei suporte a criação das misericórdias;
assumindo o papel de apoio ativo e mostra a sua
superioridade);
Uma época de crise que viu aumentar o número de pobres de
forma assustadora (no século XV grassa a peste negra; hoje,
poderia ser o número de infetados pelo COVID).
Com a expansão marítima dos descobrimentos portugueses, as
Misericórdias espalharam-se por todo o mundo. Encontram-se hoje
em quase todos os concelhos de Portugal, no Brasil, na Índia, em
Macau e nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa
(PALOP).
Existem hoje 400 Misericórdias, todas constituídas na ordem jurídica
canónica, que se encontram reunidas na União das Misericórdias
Portuguesas, criada em 1974 e associadas à Confederação
Internacional das Misericórdias, desde 1979.
As IPSS, em que se inserem as Misericórdias, asseguram a maior
parte das respostas sociais do país: creches, jardins-de-infância,
acolhimento temporário de crianças e jovens em risco, lares
residenciais para pessoas com deficiências, lares de idosos, centros
de dia, etc. Papel especialmente importante quanto aos cuidados
continuados.
Misericórdias, IPSS e Estado, hoje: Falta de apoio do Estado.
Exemplo: em plena pandemia do COVID 19: a divulgação dos
dados de óbitos, não inflacionar os óbitos ocorridos em lares,
comparando-os com os números totais nacionais de defuntos, em vez
de confrontá-los com o número total de utentes das instituições;
assim, até 23/04/2020, os falecidos em lares eram quase 40%, se
comparados com o total nacional de mortes, mas eram apenas 0,18%
do total dos utentes de lares e unidades de cuidados continuados
geridos pelas Misericórdias – a má informação da DGS alarmou
infundadamente os idosos.
A Misericórdia do Porto, por exemplo, é a segunda mais antiga e
também uma das mais importantes, pelo número de estabelecimentos
e de utentes, pelo seu vasto património e pela sua história. É parte
essencial da vida da cidade, desde a sua origem.
A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa não pertence hoje ao
universo das Misericórdias. A primeira a ser fundada, como
irmandade, como as outras, passou em 1919 para a tutela do Estado.
É hoje uma Fundação, sendo o Estado o principal instituidor.
8. Humanismo jurídico
O Renascimento constitui uma época histórica da cultura
europeia dos séculos XV e XVI caracterizado por profundas
mudanças políticas, sociais e técnicas, associadas a uma
interpretação renovada da Antiguidade.
A ciência do Direito também foi profundamente marcada pela
Época da Renascença. Assim, a Escola dos juristas humanistas
surge num contexto em que o Direito Romano começa a ser
encarado como uma das manifestações da cultura clássica.
A causa do seu aparecimento:
contestação ao direito prudencial ⇒ crítica da tradição jurídica
trabalho dos comentadores e glosadores leva a uma
incerteza quanto à distinção entre o texto original e os
comentários;
impreparação e menosprezo dos Comentadores quanto aos
aspetos históricos que rodearam a criação da norma romana ⇒
levou à aplicação de conceitos incorrentes e a falsas
interpretações.
Características:
humanismo quinhentista surge, e começa-se a encarar o
direito romano como uma das várias manifestações da
cultura clássica;
juristas humanistas iniciam estudo crítico das fontes
romanas;
humanismo contrapõe-se às escolas prudenciais,
nomeadamente ao bartolismo;
razão como única fonte de direito;
oposição à communis opinio doctorum → afasta-se a
autoridade, é a razão aparada ao método que alcançará a
verdade.
No seio da Escola Humanistas desenvolveram-se duas correntes:
corrente historicista- valorizava o estudo crítico das fontes
romanas, optando pela reconstituição dos textos genuínos e
consequentemente depurando-os das interpolações entretanto
introduzidas;
corrente racionalista- que reivindicava, por sua vez, uma
maior liberdade na interpretação dos textos, no sentido de
filtrar racionalmente o Direito Romano, substituindo-o pela
razão.
A Escola dos Humanistas foi protagonizada por nomes como Alciato
(reconhecido como seu fundador), Budé, Zasio, o português António
de Gouveia e Cujácio.
Comparativamente às Escolas Medievais, ambas partilham o
Direito justinianeu como objeto de estudo, em prejuízo do estudo
do Direito pátrio, quer em contexto universitário, quer fora dele.
Do ponto de vista geográfico, a Escola dos Comentadores surge
em França e triunfa em Itália, ao passo que a Escola dos
Humanistas surge em Itália (como a dos Glosadores), mas
desenvolve-se em França. Ora no século XVI, os sucessores da
perspetiva medieval do Direito Romano tomaram a designação de
mos italicus e os juristas humanistas de mos gallicus.
A principal diferença entre as duas escolas reside no facto de que as
Medievais assumem uma orientação prudencial, virada para o
Direito prático e para as soluções concretas. Já as dos
Humanistas limitavam-se à pura especulação, mantendo-se ao
nível do Direito teórico associado a uma forte tendência erudita.
Do confronto operado, resulta que o método do humanismo
jurídico não conseguiu sobrepor-se ao das escolas jurídicas
medievais. Todavia, as sementes do individualismo e do
racionalismo, lançadas na Renascença, refloresceriam com o
setencismo iluminista.
10.O ensino do direito
O panorama da cultura jurídica portuguesa do século XVI a
meados do século XVIII não ficaria completo sem uma referência
ao ensino do direito na Universidade.
10.1. Antes de D. João III
O ensino do Direito, em Portugal, remonta à fundação
da Universidade, sendo os estudos de Direito Romano e
Direito Canónico os mais antigos. Porém, desde então
(finais do século XIII) até ao reinado de D. João III poucas
notícias nos chegaram. Na prática, sabe-se que apenas
funcionava uma cadeira de Cânones e uma de Leis e
não duas de cada, conforme determinação de D. Dinis.
A posição privilegiada que o ensino das mencionadas
cadeiras tinha, à época, no contexto da Universidade, era
percetível através da remuneração dos professores, muito
mais elevada que a dos demais, bem como pelos reitores.
Isto é, o reitorado duplo deveria ser composto por um aluno
da Faculdade de Cânones e um da de Leis.
A este propósito, refiram-se os esforços de D. João II e de
D. Manuel para melhorar o nível da Universidade
portuguesa, nomeadamente através da contratação de bons
professores estrangeiros e da concessão de subsídios aos
estudantes. No início do século XVI, D. Manuel procede
à alteração dos Estatutos da Universidade, passando,
então, a existir 3 cátedras remuneradas de Cânones e outras
tantas de Leis. Isto justifica-se pelo facto de que as
Universidades eram espaços reduzidos e daí o pequeno
corpo docente.
Data de 1431 a referência documental aos graus de
bacharel (correspondente a 3 anos de estudo), licenciado
(grau que dependia da conclusão do bacharelato
completada por mais 4 anos de formação) e de doutor
(tratava-se de um grau essencialmente solene em que as
provas assumiam pouca importância).
No que confere aos textos e aos métodos implementados,
eram os mesmos adotados nas demais Universidades
medievais. Mesmo assim, muitos estudantes portugueses
continuavam a acorrer a universidades estrangeiras.
10.2. Instalação da Universidade em Coimbra
Desde a sua criação até ao reinado de D. João III, a sede da
Universidade oscilou entre Lisboa e Coimbra. Em 1537, foi
definitivamente fixada em Coimbra com o intuito de
proceder a uma reforma profunda do ensino universitário,
na senda dos dois monarcas precedentes.
Uma das principais medidas adotadas consistiu na
renovação do corpo docente, através da exoneração de
muitos professores e da contratação de professores
estrangeiros- como foi o caso do célebre canonista Martin
d´Azpilcueta- e de portugueses que se tinham
notabilizado além-fronteiras.
10.3. Organização dos estudos jurídicos segundo os
“Estatutos Velhos”
Os Estatutos Manuelinos do início do século XVI
constituem o primeiro regulamento universitário
completo, sucessivamente alterado por D. João III, D.
Sebastião e Filipe I. Na verdade, até à reforma pombalina
permaneceram em vigor os Estatutos Filipinos de 1598,
revistos e confirmados por Filipe II e novamente
confirmados por D. João IV. Por este motivo, foram
denominados de Estatutos Velhos, ao passo que os
Estatutos de 1772 tomaram a designação de Estatutos
Novos.
À luz dos Estatutos Velhos, existiam duas Faculdades
jurídicas:
Na Faculdade de Leis ensinava-se o Corpus
Iuris Civilis, sendo que os estudos
compreendiam oito cadeiras relativas às várias
partes em que os Glosadores sistematizaram
aquela obra.
Na Faculdade de Cânones estudava-se o
Corpus Iuris Canonici, estando o curso
estruturado em sete cadeiras, com particular
relevo para o ensino das Decretais de Gregório
IX.
O esquema de ensino consistia, em ambas as faculdades, na
leitura, pelo professor, de um passo da compilação, seguida de
comentários sobre os argumentos falsos e verdadeiros,
procurado refutar aqueles. O professor confrontava os
argumentos esgrimidos com outros textos e, por fim,
concluía pela interpretação mais razoável. Em suma,
continuavam a dominar os métodos próprios das escolas
medievais (método escolástico), baseados no debate
sistemático, mas abusando-se também das suas limitações.
O ensino era obrigatoriamente ministrado em latim e o ao
letivo iniciava-se em outubro e terminava em julho com aulas
diárias.
O grau de bacharel corrente obtinha-se após 3 anos de
instrução preparatória, acrescidos de mais 3 anos de estudos
jurídicos. Os bacharéis formados, para além dos três anos de
instrução preparatória, tinham que completar 5 anos de estudos
jurídicos.
Nos termos dos Estatutos Velhos, o exercício da profissão
dependia do ato de formatura.
11. A Segunda Escolástica. Seus contributos jurídicos e políticos.
No contexto do pensamento jurídico da época, a Segunda
Escolástica, herdeira da Escolástica medieval, sucedeu ao
humanismo jurídico. A sua relevância reporta-se essencialmente
aos domínios do Direito e do Estado.
Só nos finais do século XVIII será autonomizada a disciplina
sobre a especulação jurídica sobre o Estado e o Direito: até
então será lecionada no âmbito da Filosofia geral, da Teologia e
do Direito Canónico. A disciplina referida está na origem do
desenvolvimento do Direito Público como ciência e não deve ser
desprezada.
Com efeito, nos séculos XVI e XVII, a influência da Segunda
Escolástica foi determinante no repensar crítico da
compreensão cristã do homem e da sociedade. Naquele tempo
surgiram novos problemas associados aos descobrimentos e à
expansão marítima, desde a discussão sobre as zonas de
influência das potências europeias em expansão, e que levou à
assinatura do Tratado de Tordesilhas entre Portugal e Espanha, à
definição do modo de entender o encontro com os povos dos
novos continentes ao regime jurídico do mar, passando pela
questão da liberdade de navegação que contrapunha o mare
clausum ao mare liberum e que despoletou uma polémica entre
o português Frei Serafim de Freitas e Hugo Grócio.
Neste contexto, destaca-se a obra dos teólogos espanhóis,
pensadores, pastores da Igreja e conselheiros do rei, a cujo
movimento de ideias se associaram vários pensadores
portugueses. De acordo com este movimento, existe uma ordem
jurídica natural, pela qual se afere a validade da ordem
jurídica positiva.
A Segunda Escolástica, para além dos importantes contributos
para a teoria do Estado, é responsável também pela criação do
Direito Internacional Público moderno.
Os seus nomes mais representativos são Francisco de Vitória (+ -
1486-1546), fundador do Direito Internacional moderno,
Domingo de Boto, Francisco Suarez, o português D. Jerónimo
Osório, entre outros.
Capítulo 5
Período de Formação do Direito Português Moderno
Capítulo 5.1.
Época do Jusracionalismo
1. Correntes do pensamento jurídico europeu
As sucessivas reformas pombalinas inspiraram-se nas orientações
ideológicas, filosóficas e jurídicas da Europa do seu tempo.
1.1. Escola Racionalista do Direito Natural
Com influência, mas em oposição às ideias da Escola
espanhola de Direito Natural, a Escola racionalista do Direito
natural toma o Direito natural como um código minucioso
de normas formuladas através de uma dedução racional.
Faz-se assim uma construção do Direito natural como um
sistema positivo exaustivo e não como meras exigências
fundamentais induzidas do conhecimento da natureza da
pessoa humana, como se fazia anteriormente. Daí o nome de
jusracionalista e não jusnaturalista.
Ao separar o Direito natural do Direito positivo, como um
corpo autónomo, a Escola racionalista do Direito natural
facilita a rejeição daquele que está nas origens do
positivismo.
Os nomes fundamentais desta corrente de pensamento são
Hugo Grócio (Holanda), Puffendorf, Thomasius e Wolff
(Alemanha), Hobbes e Locke (Inglaterra) e Rousseau
(França).
1.2. Usus Modernus Pandectarum
Entretanto, surge a corrente do Usus Modernus Pandectarum,
uma nova metodologia do estudo e aplicação do Direito
Romano que, no fundo, estabelece a ligação entre a Escola
dos Comentadores e a Escola Histórica do Direito. O seu
objetivo é distinguir, dentro do Corpus Iuris Civilis, o que é
vivo do que é obsoleto. Assim, esta corrente representa o
momento mais prático do jusracionalismo.
Contempla duas fases:
Uma primeira fase mais prática;
Uma segunda fase mais influenciada pelo
jusracionalismo, tendo-se também em conta o
próprio Direito nacional.
Os nomes mais importantes da escola são Samuel Stryk, cuja
obra lhe deu o nome, e Pufendorf, na transição da primeira
para a segunda fase.
Em Portugal, esta escola teve pouca influência e surge
misturada com a influência do jusracionalismo.
1.3. Jurisprudência elegante
Uma terceira corrente surgida neste período foi a da
Jurisprudência elegante, que se revelou uma continuação da
Escola do Humanismo Jurídico na Holanda nos séculos
XVII e XVIII. Também esta obteve pouca influência em
Portugal.
1.4. Iluminismo
O Iluminismo consistiu num movimento de ideias que teve
grande êxito entre as classes dirigentes e tem como tese
fundamental a consideração da razão como única fonte de
conhecimento, o que levava a rejeitar toda a autoridade
(política ou religiosa) que não se pudesse justificar perante
o senso comum do pensador individual.
O seu cenário é o de uma corrente cultural que exalta a razão
e a natureza e, simultaneamente, critica
indiscriminadamente a tradição. É um fenómeno muito
complexo, que apresenta:
Fortes tendências materialistas;
Uma ingénua exaltação das ciências;
A recusa da religião;
Um irreal otimismo no que respeita à bondade
natural do homem;
Um excessivo antropocentrismo; • Uma confiança
utópica no progresso da Humanidade;
Uma difundida hostilidade contra a Igreja
Católica;
Uma atitude de suficiência e desprezo pelo
passado;
Uma arreigada tendência para realizar
reducionismos simplistas na busca de modelos
explicativos da realidade.
Os ideais iluministas exerceram muita influência em Portugal,
através do pombalismo: a ratio exclui a auctoritas no trabalho
científico, desprezando-a como fonte de conhecimento.
Entretanto, do ponto de vista político, o século XVIII
desenvolve-se sob a égide das monarquias absolutas,
surgidas a partir do século XVI. Deram origem ao chamado
despotismo iluminado, tão característico do reinado de Luís
XIV, em França, Frederico II, na Prússia, de José II, na Áustria
e do Marquês de Pombal, ministro de D. José I, em Portugal.
O Iluminismo torna-se, assim, o fundamento desta nova
forma de governo.
O movimento iluminista conheceu diferentes manifestações:
Em França: levou ao enciclopedismo, que esteve na
origem da Revolução Francesa;
Na Alemanha: deu lugar à corrente do classicismo, à
fundação de Universidades e à influência do
jusracionalismo;
Nos países católicos: as ideias tiveram impacto, mas
não chegaram a adquirir um caráter revolucionário.
1.5. Humanitarismo
As correntes humanitaristas consistiram numa mistura de
Iluminismo, de Cristianismo e de Utilitarismo.
Manifestaram-se no âmbito do Direito Penal e do tratamento
penitenciário. A sua influência em Portugal foi levada a cabo
por Mello Freire.
Capítulo 5.2.
Época do individualismo
1. Aspetos gerais do individualismo político e do liberalismo
económico
A passagem do século XVIII para o século XIX foi marcada por
uma série de momentos distintos.
Num primeiro momento, assiste-se à difusão das ideias do
Iluminismo e à sucessão das revoluções liberais (a primeira, norte-
americana, em 1776, a segunda, francesa, em 1789, e, em especial, a
portuguesa, em 1820).
Num segundo momento, advém uma atitude crítica face ao
Iluminismo e consequentemente emergem os movimentos da
Contrarrevolução, do Romantismo e do Idealismo Alemão.
Num terceiro momento, são retomados os princípios do
Iluminismo e do Liberalismo, proporcionados pelo contexto
histórico-político, marcado pelos progressos económico e científico e
pelo triunfo da burguesia.
A conceção racionalista do Iluminismo está na base do
liberalismo, que se assume como uma atitude fundamental de
rejeição da autoridade ou de conhecimentos não julgados
criticamente pelo sujeito. O liberalismo filosófico privilegia o
princípio da razão independente e, por conseguinte, a oposição ao
ensino de verdades consideradas absolutas.
Note-se que, desta raiz racionalista do pensamento liberal e da
ligação excessiva das instituições da Igreja Católica à ordem social
do absolutismo derivou a luta dos Estados liberais europeus do
século XIX contra ela: a chamada “questão religiosa”.
No que concerne ao liberalismo político, é no princípio da
soberania popular e nacional que assenta a origem do poder e é
num hipotético pacto social que o Estado encontra o seu
fundamento. Estado esse que não tem fins próprios, devendo
proteger os direitos individuais e originários do Homem.
Estes postulados conduzem à ideia de governo representativo, de
monarquia constitucional e parlamentar, de separação de
poderes e de constituições escritas.
Porém, estes princípios não foram completamente inovadores. Isto
porque já remontam à obra de S. Tomás de Aquino e à Segunda
Escolástica. Com efeito, a garantia dos direitos e a tradição medieval
de limitação do poder político são bem anteriores. Na realidade,
podemos afirmar que o que há de original é apenas o caráter
universalista que estas ideias assumiram.
Quanto à vertente económica do liberalismo, assinala-se o
retrocesso das ideias do mercantilismo do Estado polícia da segunda
metade do século XVII. O ponto de viragem é protagonizado pelos
adeptos da Escola Fisiocrática francesa, fundada por Quesnay, os
quais defendiam a existência de uma ordem económica natural.
Entretanto, com o alargamento da visão do mundo económico,
Adam Smith e os seus discípulos superaram as traves-mestras deste
pensamento, que limitava a produção à agricultura, e impuseram a
ideia de livre-câmbio internacional.
2. Correntes do pensamento jurídico europeu
Desde logo, importa destacar o facto de que todas as correntes
mencionadas de seguida apresentam a semelhança de serem uma
reação ao jusnaturalismo, associado à ideia de que existe um
fundamento prévio, na natureza humana, de todo o Direito positivo.
2.1. Positivismo jurídico. Escola da Exegese.
O positivismo jurídico sucede ao jusracionalismo moderno e
determinou a grande separação entre o Direito Natural e o
Direito positivo, passando a configurar corpos jurídicos
distintos.
Assim, o positivismo do século XIX preconiza o abandono
pela busca das causas últimas dos fenómenos sensíveis, por
forma a revelar somente as leis que definem as relações
constantes e invariáveis daqueles fenómenos. Isto sustenta a
base empirista do positivismo que, no Direito, se traduz nas
normas positivas: as leis, escritas para uns, ou costume,
para outros.
Deste modo, nasce o positivismo jurídico legalista. Os seus
postulados são: por um lado, o Direito identifica-se com a lei;
por outro, a ordem jurídica constitui um todo acabado. Por
conseguinte, o auge da plenitude lógica do ordenamento
jurídico é conseguido através das codificações modernas,
sistemáticas e completas quanto a um certo âmbito jurídico.
Esta construção jurídica foi responsável pela subalternização
do costume enquanto fonte de Direito, mesmo no plano do
Direito supletivo, onde se passou a recorrer à analogia. A ele
juntou-se ainda a jurisprudência e a doutrina.
A Escola da Exegese (francesa) representa o expoente
máximo das ideias inicialmente preconizadas pelo
positivismo jurídico. Alguns dos seus nomes mais
característicos são Proudhon, Toullier, Duranton, Troplong e
Aubry.
As principais ideias por ela defendidas são:
A lei enquanto manifestação da vontade soberana;
A interpretação da lei de acordo com o método lógico-
gramatical;
Conceção estatista das fontes do Direito;
A lei como critério jurídico exclusivo.
Os seus postulados foram muito refutados, nomeadamente por
Gény, que defendia a “livre investigação científica”,
afirmando que a doutrina da Escola da Exegese conduzia à
estagnação da ciência jurídica.
2.2. Escola Histórica do Direito
A Escola Histórica do Direito, com a sua máxima “tudo é
história, tudo muda, nada permanece”, protagonizou
também a oposição ao Direito Natural clássico e
racionalista, impondo-se a partir do século XIX.
Ela está associada a uma polémica entre Thibaut e Savigny
no que respeita à codificação do Direito Civil.
Thibaut defendia o movimento codificador e a necessidade de
promulgação de um Código Civil para a Alemanha, ao passo
que Savigny, embora não se opusesse completamente à
elaboração do Código Civil, entendia que a ciência jurídica
não se encontrava preparada para tal.
Contrariamente aos racionalistas, os partidários da Escola
Histórica do Direito defendem que o Direito tem uma
dimensão histórica como pressuposto, uma vez que brota do
espírito do povo.
A conjuntura em que esta escola nasceu foi determinante para
se dividir em duas fações:
Romanismo: preocupavam-se em despir o Direito
Romano da sua génese, transformando-se num sistema
acabado (Savigny e Hugo).
Germanismo: estudavam áreas não tratadas pelos
romanistas, como o Direito Comercial, a fim de
construir um sistema assente na investigação histórica
(Eichhorn e Grimm).
No seu conjunto, esta escola assenta nas seguintes ideias:
A dimensão histórico-cultural na origem de todo o
Direito;
A rejeição da existência de normas jurídicas universais e
imutáveis;
A supremacia do costume, como modo de exteriorização
do Direito;
A oposição face ao movimento codificador e à
estagnação a que conduz.
Tudo isto conduziu, portanto, à formação de um positivismo
sociológico nesta escola.
2.3. Pandectística. Jurisprudência dos conceitos
A Pandectística é uma corrente do pensamento jurídico,
surgida na 2ª metade do século XIX e derivada da Escola
Histórica do Direito, sobretudo na sua vertente romanista. Na
verdade, a doutrina da Escola Histórica acabou por se revelar
incongruente, pois, tomando por pressuposto a génese
histórica do Direito, transformou o Direito Romano num
sistema acabado.
Assim, os Pandectistas preconizaram a elaboração de um
sistema jurídico sistemático e abstrato. Entre eles,
destacam-se Puchta, Winscheid e Jhiering.
Paradoxalmente, a Pandectística retoma um novo
positivismo formalista, procurando erguer um sistema
dogmático completo e fechado. As suas referências
dogmáticas foram genericamente aceites, sobretudo no que
concerne à sistematização germânica das relações jurídicas
civis e à consolidação da parte geral do Direito Civil.
Quanto ao método, esta corrente desembocou na
jurisprudência dos conceitos, que assenta na teoria das
instituições e estas a um sistema. Neste sentido, seria possível
analisar e interpretar o Direito, aplicá-lo e ainda preencher as
lacunas da lei.
Esta perspetiva foi refutada por outras correntes. Por um lado,
a denominada Jurisprudência dos Interesses, fundada por
Philip Heck, e, por outro, a Escola do Direito Livre, de
origem alemã e fundada por Ehrliche.
Mais tarde, o positivismo legalista da Pandectística foi
retomado por Kelsen e pelo seu positivismo normativista.