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Dissertação DEPOSITADA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CAMPUS SOROCABA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM
EDUCAÇÃO - MESTRADO ACADÊMICO

LUIZ RENATO ASSUNÇÃO VIEIRA

A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DOCENTE EM EDUCAÇÃO


FÍSICA NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR: LIMITES E
POSSIBILIDADES À LUZ DA PEDAGOGIA FREIREANA

SOROCABA – SP
2020
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CAMPUS SOROCABA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM
EDUCAÇÃO - MESTRADO ACADÊMICO

LUIZ RENATO ASSUNÇÃO VIEIRA

A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE DOCENTE EM EDUCAÇÃO


FÍSICA NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR: LIMITES E
POSSIBILIDADES À LUZ DA PEDAGOGIA FREIREANA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação stricto sensu – Mestrado em
Educação, da Universidade Federal de São
Carlos campus Sorocaba, para a obtenção do
título de Mestre em Educação.

Orientação: Prof.ª Dr.ª Juliana Rezende Torres

SOROCABA – SP
2020
AGRADECIMENTOS

Não se chega a lugar algum sozinho. Cada um de nós somos uma produção histórica,
social, cultural e política e, sendo assim, eu também não cheguei aqui sozinho. É por isso que
neste momento expresso minha gratidão:

Aos meus pais e toda minha família que sempre proporcionaram as condições
necessárias para que eu estudasse.
À minha esposa, Laura, por me incentivar e por compartilhar comigo essa e outras
empreitadas da vida.
À minha orientadora, Professora Drª Juliana Rezende Torres, por ter acreditado em
mim e, principalmente, por sua orientação na forma de parceria.
Aos professores e professoras do programa que contribuíram nesta empreitada,
especialmente ao Professor Dr. Marcos Francisco Martins pelo acolhimento dado quando
ingressamos no mestrado.
À Secretária do PPGEd, Fernanda Mara Battaglini de Campos, por sempre estar à
disposição dos discentes.
Ao Professor Me. Ribamar Nogueira da Silva por sua dedicação ao curso de extensão
“Teoria e Prática na Elaboração de Projetos de Pesquisa” vinculado ao GPTeFE.
Ao Professor Dr. Rubens Antonio Gurgel Vieira pela prontidão em colaborar com os
colegas da área da Educação Física.
À FEFISO que mais uma vez esteve de portas abertas para contribuir com minha
formação acadêmica.
Ao Professor Me. Welington Santana Silva Júnior pelo incentivo e por compartilhar
momentos de estudos sobre a Educação Física.
À Prefeitura de Sorocaba por incentivar os docentes à participação dos cursos de longa
duração (mestrado e doutorado), especialmente à Supervisora de Ensino Parê Gutierrez por
sempre estar à disposição para esclarecer as dúvidas que surgiam em relação à documentação.
À comunidade escolar da E. M. Prof. Benedicto Cleto pela compreensão de minhas
ausências em decorrência dos estudos.
Aos Professores Dr. Antonio Fernando Gouvêa da Silva e Dr. Daniel Teixeira
Maldonado que me tiraram da zona de conforto com suas reflexões e, assim, contribuíram
imensamente para a versão final desta pesquisa.
Dedico este trabalho à minha família,
em especial, à minha esposa, Laura, e
a recém chegada, Ísis, minha filha.
“[...] formar é muito mais do que puramente
treinar o educando no desempenho de destrezas
[...]. Daí a crítica permanentemente presente em
mim à malvadez neoliberal, ao cinismo de sua
ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao
sonho e à utopia”.
(Paulo Freire)
RESUMO

VIEIRA, Luiz Renato Assunção. A constituição da identidade docente em Educação


Física na Base Nacional Comum Curricular: limites e possibilidades à luz da pedagogia
freireana, 2020 (Dissertação de Mestrado) - Universidade Federal de São Carlos – UFSCar.
158 p.

Esta pesquisa tem como seu principal objetivo analisar a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) de Educação Física na etapa do ensino fundamental à luz da pedagogia freireana,
buscando explicitar em qual perspectiva curricular este documento constitui uma identidade
docente ou profissional em Educação Física e, a partir desta análise, averiguar quais são as
possibilidades de um currículo crítico-freireano da Educação Física que constitua uma
identidade docente de educador crítico-libertador. Essa investigação é relevante, pois a
identidade docente em Educação Física por diversas vezes se confunde com outras
identidades profissionais da área a depender das diferentes propostas curriculares do
componente. Para tanto, através da abordagem qualitativa, este estudo recorre à pesquisa
bibliográfica e à análise documental visando compreender como a história da Educação Física
nas escolas brasileiras e as diferentes teorias curriculares constituem diferentes identidades
docentes. Para melhor compreendermos as diferentes propostas curriculares da Educação
Física e as respectivas identidades docentes constituídas por cada uma delas, nos apoiamos
em algumas bases teóricas que nos permitem estabelecer parâmetros para analisarmos a
constituição da identidade docente em Educação Física na BNCC, dentre as principais delas
podemos destacar: Antonio Flavio Barbosa Moreira, Thomaz Tadeu da Silva, Selma Garrido
Pimenta, Paulo Ghiraldelli Júnior, Valter Bracht, Mário Luiz Ferrari Nunes, Marcos Garcia
Neira, entre outros. Concomitantemente, recorremos à Educação Libertadora de Paulo Freire
estabelecendo como categorias analíticas freireanas diálogo e práxis para a análise da BNCC.
Os principais resultados da pesquisa evidenciam que a BNCC de Educação Física na etapa do
ensino fundamental contém poucos aspectos de um currículo crítico ou pós-crítico, mas
apresenta diversos aspectos de uma proposta curricular tradicional que conferem à Educação
Física características da “educação bancária” denunciada por Paulo Freire e, nesse sentido, a
identidade docente constituída corresponde ao docente alienado e alienante. É a partir desta
constatação que esta pesquisa recorre mais uma vez à pedagogia freireana buscando
possibilidades para pensarmos um currículo crítico-freireano de Educação Física entendido a
partir do diálogo e que, a partir da práxis curricular, contribua para a constituição de uma
identidade docente ao professor de Educação Física como educador crítico-libertador.

Palavras-chave: Educação Física; Identidade docente; Teoria Curricular Crítica; BNCC;


Paulo Freire.
ABSTRACT

VIEIRA, Luiz Renato Assunção. The constitution of the Physical Education teacher
identity in the National Common Curricular Base: limits and possibilities based on
Freire's pedagogy, 2020 (Dissertação de Mestrado) - Universidade Federal de São Carlos –
UFSCar. 158 p.

The aim of this study is to analyze the BNCC in Physical Education for the elementary school
from the perspective of the pedagogy proposed by Paulo Freire, explaining in which
curricular perspective this document contributes to the constitution of the teacher/
professional identity in Physical Education and, based on this analysis, to investigate what are
the possibilities for a critical-Freirean curriculum in Physical Education that constitutes a
teacher identity as a critical-liberating educator. This investigation is relevant because the
teacher identity in Physical Education is confused with other professional identities according
to the different curricular proposals. This qualitative research uses bibliographic research and
documentary analysis to understand how the history of Physical Education in Brazilian
schools and the different curricular theories constitute different teachers identities. For this we
are based on some theoretical bases that allow us to establish parameters to analyze the
constitution of the teacher identity in Physical Education in BNCC, some of the main ones
are: Antonio Flavio Barbosa Moreira, Thomaz Tadeu da Silva, Selma Garrido Pimenta, Paulo
Ghiraldelli Júnior, Valter Bracht, Mário Luiz Ferrari Nunes and Marcos Garcia Neira.
Concomitantly, we are based on Paulo Freire's Liberating education, establishing the Freirean
categories of dialogue and praxis as analytical categories for thinking about the limits of the
curriculum proposal contained in the BNCC. The results of this research show that BNCC
presents several aspects of a traditional curriculum proposal that give Physical Education
characteristics of the “banking education” denounced by Paulo Freire and constitute an
alienated and alienating teacher identity. It is from these results that we think about the
possibilities of a critical Physical Education curriculum based on Freire's Liberating education
understood from the dialogue and that, based on curricular praxis, contribute to the
constitution of a teacher identity in Physical Education as a critical-liberating educator.

Keywords: Physical Education; Teacher identity; Critical Curricular Theory; BNCC; Paulo
Freire.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Percurso metodológico da pesquisa ......................................................................... 21


Figura 2 - Cronologia da construção da BNCC ...................................................................... 110
Figura 3 - Esquema de organização da BNCC ....................................................................... 132
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Aspectos de um currículo tradicional ..................................................................... 43


Quadro 2 - Aspectos de um currículo tradicional contemplados nos currículos tradicionais de
Educação Física ........................................................................................................................ 50
Quadro 3 - A identidade docente constituída pelos currículos tradicionais de Educação Física
.................................................................................................................................................. 54
Quadro 4 - Síntese das propostas curriculares tradicionais da Educação Física ...................... 55
Quadro 5 - Aspectos de um currículo crítico ............................................................................ 61
Quadro 6 - Aspectos de um currículo crítico contemplados nos currículos críticos de
Educação Física ........................................................................................................................ 70
Quadro 7 - A identidade docente constituída pelos currículos críticos de Educação Física .... 73
Quadro 8 - Síntese das propostas curriculares críticas da Educação Física ............................. 74
Quadro 9 - Aspectos de um currículo pós-crítico ..................................................................... 78
Quadro 10 - Aspectos de um currículo pós-crítico contemplados no currículo pós-crítico de
Educação Física ........................................................................................................................ 84
Quadro 11 - A identidade docente constituída pelo currículo pós-crítico de Educação Física 87
Quadro 12 - Síntese da proposta curricular pós-crítica de Educação Física ............................ 87
Quadro 13 - Síntese das propostas curriculares tradicionais, críticas e pós-crítica da Educação
Física......................................................................................................................................... 88
Quadro 14 - Aspectos de um currículo pensado à luz da pedagogia freireana ......................... 96
Quadro 15 - Aspectos da identidade docente de educador constituídos pela pedagogia
freireana .................................................................................................................................. 100
Quadro 16 - A identidade docente de educador constituída pelo currículo crítico-libertador 101
Quadro 17 - Aspectos dos currículos tradicionais, crítico e pós-críticos ............................... 116
Quadro 18 - Base teórica das dimensões do conhecimento na BNCC ................................... 126
Quadro 19 - Objetos de conhecimento da Educação Física para os anos iniciais do ensino
fundamental ............................................................................................................................ 131
Quadro 20 - Objetos de conhecimento da Educação Física para os anos finais do ensino
fundamental ............................................................................................................................ 131
Quadro 21 - Exemplo da organização da BNCC .................................................................... 133
Quadro 22 - Identidades docentes (ou profissionais) em Educação Física constituídas por
diferentes propostas curriculares ............................................................................................ 135
Quadro 23 - Quantificação dos aspectos das diferentes teorias curriculares identificados na
BNCC ..................................................................................................................................... 136
Quadro 24 - Proposições para se pensar um currículo crítico-freireano de Educação Física 141
Quadro 25 - Aspectos de um currículo crítico contemplados no currículo crítico-freireano da
Educação Física ...................................................................................................................... 142
Quadro 26 - A identidade docente constituída pelo currículo crítico-freireano da Educação
Física....................................................................................................................................... 143
LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS

ACM - Associação Cristã de Moços


BNCC - Base Nacional Comum Curricular
CNE - Conselho Nacional de Educação
CONSED - Conselho Nacional de Secretários de Educação
EF - Educação Física
FEFISO - Faculdade de Educação Física de Sorocaba
FEUSP - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
GPEF - Grupo de Pesquisas em Educação Física Escolar
LDBEN - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
MEC - Ministério da Educação
PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais
PNE - Plano Nacional de Educação
PUC-RJ - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
SEB - Secretaria de Educação Básica
UnB - Universidade de Brasília
UNDIME - União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação
UNICAMP - Universidade de Campinas
USP - Universidade de São Paulo
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 15

CAPÍTULO 1 - A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA NAS ESCOLAS


BRASILEIRAS ....................................................................................................................... 23

1.1. Primeiro momento: A Educação Física alienada e alienante ........................................ 24


1.2. Segundo momento: A Educação Física em busca da autocrítica .................................. 31

CAPÍTULO 2 - TEORIAS DO CURRÍCULO E A IDENTIDADE DOCENTE EM


EDUCAÇÃO FÍSICA À LUZ DA PEDAGOGIA FREIREANA ...................................... 36

2.1. Currículo, identidade e a identidade docente em Educação Física................................ 36


2.2. Currículo tradicional ...................................................................................................... 40
2.2.1. Os currículos tradicionais de Educação Física .................................................... 44
2.2.1.1. A identidade docente, segundo os currículos tradicionais de Educação Física 52
2.3. Currículo crítico ............................................................................................................. 56
2.3.1. Os currículos críticos de Educação Física ........................................................... 62
2.3.1.1. A identidade docente, segundo os currículos críticos de Educação Física ...... 72
2.4. Currículo pós-crítico ...................................................................................................... 75
2.4.1. O currículo pós-crítico de Educação Física......................................................... 79
2.4.1.1. A identidade docente, segundo o currículo pós-crítico de Educação Física .... 85
2.5. O currículo e a identidade docente à luz da pedagogia freireana .................................. 88

CAPÍTULO 3 - PERCURSO METODOLÓGICO ........................................................... 103

3.1. A pesquisa qualitativa em Educação ........................................................................... 103


3.2. A pesquisa bibliográfica e a análise documental ......................................................... 106

CAPÍTULO 4 - A BNCC E A IDENTIDADE DOCENTE EM EDUCAÇÃO FÍSICA:


ANÁLISE A PARTIR DAS TEORIAS DO CURRÍCULO E DA PEDAGOGIA
FREIREANA ........................................................................................................................ 109

4.1. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de Educação Física na etapa do ensino
fundamental: contextualizando o objeto de estudo............................................................. 109
4.1.1. A primeira e a segunda versões da BNCC ........................................................ 110
4.1.2. A terceira versão da BNCC ............................................................................... 113
4.2. Análise da BNCC à luz das teorias curriculares e da pedagogia freireana.................. 115
4.3. A constituição da identidade docente em Educação Física na BNCC ........................ 134
4.4. Proposições iniciais para um currículo de Educação Física crítico-freireano ............. 138

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 145

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 150

ANEXOS ............................................................................................................................... 158


15

INTRODUÇÃO

A motivação principal desta pesquisa nasceu do meu interesse pela Educação Física1
desde quando eu era um aluno frequentando a escola. Com o passar dos anos, conforme eu
amadurecia, esse meu interesse também se consolidava, porém não mais por conta do apelo
lúdico inerente às práticas das aulas, mas sim, por considerar intrigante que esse componente
curricular raramente apresentava de forma clara qual era a sua função pedagógica, ou seja, o
que a Educação Física se propõe a ensinar, por quê e para quê?
Em 2004, ingressei na Faculdade de Educação Física da Associação Cristã de Moços
(ACM) de Sorocaba - FEFISO - onde me graduei, no ano de 2008. Iniciei minha experiência
profissional como professor na educação básica em 2010, ao ser aprovado em concurso
público para atuar na rede pública de ensino do município de Porto Feliz - SP e, em 2014,
ingressei via aprovação em concurso público na rede pública de ensino do município de
Sorocaba - SP, onde leciono atualmente.
Ao me tornar professor de Educação Física da rede pública de ensino atuando no
ensino fundamental pude observar que os meus alunos e alunas também faziam os mesmos
questionamentos que eu fazia como aluno do ensino fundamental. Para eles, a Educação
Física se limitava a ensinar esportes e exercícios físicos como forma de lazer e cuidado à
saúde e, sendo assim, não conseguiam identificar o significado das atividades realizadas
associadas à vida escolar, profissional e social.
Os pais de alunos também carregavam uma visão destas aulas descontextualizadas,
conforme aquilo que eles mesmos tinham vivenciado na sua época de escola. Também pude
observar que os professores de outras disciplinas e até os gestores escolares tão pouco
reconheciam significado pedagógico na disciplina. E, finalmente, o mais alarmante: os
próprios professores de Educação Física não possuíam plena convicção de sua função no
processo de ensino-aprendizagem dentro da escola.
Por este cenário, é possível perceber que a Educação Física escolar carrega consigo
muitas incertezas e contradições em seus objetivos pedagógicos, e que os professores acabam
por não assumir preponderantemente uma identidade docente, mas sim, diferentes identidades

1
O termo Educação Física será grafado com letras maiúsculas toda vez que fizer referência ao componente
curricular ou a sua área de estudo. Em alguns momentos o termo será grafado com letras minúsculas quando
fizer referência ao processo de educação do corpo/organismo biológico, ou seja, educação do físico.
16

profissionais, como treinador, técnico, preparador físico, personal training2, recreador, entre
outros, a depender do currículo escolar proposto.
A identidade docente ao qual nos referimos está relacionada a uma identidade
sociocultural, isto é, uma identidade que se constitui a partir da prática social e cultural do
sujeito. Para Pimenta (1996, p. 75) “a identidade não é um dado imutável. Nem externo, que
possa ser adquirido. Mas é um processo de construção do sujeito historicamente situado”.
Nesse sentido, as diferentes propostas de Educação Física pensadas para o ambiente
escolar geraram diferentes práticas sociais e culturais por parte dos professores e professoras
e, por consequência, constituíram identidades docentes/profissionais variadas. Em outras
palavras, podemos dizer que a identidade docente se constitui na medida em que determinado
currículo é posto em prática, isto é, a identidade docente se constitui na práxis curricular.
A relação existente entre propostas curriculares distintas e a constituição de diferentes
identidades está apoiada no pensamento de Silva (2005, p. 15-16) ao entender que “além de
uma questão de conhecimento, o currículo é também uma questão de identidade. É sobre essa
questão, pois, que se concentram também as teorias do currículo”. Segundo o autor, o
currículo pode estar fundamentado na teoria tradicional, na teoria crítica ou na teoria pós-
crítica (SILVA, 2005).
A partir do olhar dado por Silva (2005) passei a observar que, mais recentemente nas
redes de ensino, as propostas curriculares da Educação Física vêm sendo fortemente
influenciada pela Base Nacional Comum Curricular - BNCC - (BRASIL, 2017), pois esse
documento visa ser para os estados e municípios “uma referência nacional obrigatória para a
elaboração ou adequação de seus currículos e propostas pedagógicas (BRASIL, 2017, p. 5)”.
Atuando como professor de Educação Física na rede pública de ensino pude perceber a
grande cobrança que passou a existir sobre os professores e professoras para que esses se
familiarizem, compreendam e correspondam com aquilo que é proposto na BNCC, como se
todo o cenário educacional brasileiro pudesse certamente encontrar neste documento o melhor
caminho a ser seguido.
Consideramos que as normas para uma proposta curricular contidas na BNCC se
aproximem, em alguma medida, de alguns dos principais currículos da Educação Física e, por
consequência, que a identidade docente a ser constituída pela BNCC siga nesta mesma
direção.

2
Para este estudo, o termo personal training é entendido como uma identidade profissional similar a do
preparador físico, ou seja, uma identidade profissional preocupada com o desenvolvimento da aptidão física e
saúde.
17

Foi por esta imposição da BNCC como documento normativo e pela minha inquietação
sobre a relação entre as diferentes propostas curriculares da Educação Física e as diferentes
identidades docentes/profissionais constituídas por estes currículos, que a BNCC de Educação
Física para a etapa do ensino fundamental acabou por despertar meu interesse por pesquisá-la
me motivando a buscar ingressar no programa de mestrado em Educação da Universidade
Federal de São Carlos - UFSCar - campus Sorocaba.
Nesse trajeto estabeleci meu primeiro contato com a Educação Libertadora de Paulo
Freire e tomei consciência que a pedagogia freireana poderia colaborar com minha pesquisa
estabelecendo parâmetros para pensarmos a relação entre currículo e identidade docente na
BNCC de Educação Física.
Nesse contexto, foi sendo construída a ideia de adotarmos a pedagogia freireana como
referencial analítico para pensarmos um currículo de Educação Física crítico-freireano que,
por sua vez, balize a constituição de uma identidade docente de educador crítico-libertador
ao professor de Educação Física, posto que, para a pedagogia freireana, a identidade de
educador crítico-libertador supera os limites de outras identidades docentes/profissionais,
inclusive a de professor.
Assim, essa minha trajetória formativa culminou no problema desta pesquisa: “Qual(is)
identidade(s) docente(s)/profissional(is) está(ão) presente(s) na BNCC de Educação Física
na etapa do ensino fundamental e qual(is) perspectiva(s) curricular(es) a(s) fundamenta(m)?
E, em que medida, essa(s) identidade(s) se aproxima(m) ou se distancia(m) da pedagogia
freireana?
A partir das reflexões oriundas da Educação Libertadora de Paulo Freire também
surgem mais duas questões orientadoras deste estudo: “Qual é a relação entre as diferentes
propostas curriculares existentes de Educação Física e as diferentes identidades
docentes/profissionais historicamente constituídas em Educação Física?” e “Quais são as
possibilidades para pensarmos uma proposta curricular crítico-freireana que constitua uma
identidade docente de educador crítico-libertador para o professor de Educação Física?”
Em relação a aproximação da Educação Física escolar e a pedagogia freireana é
necessário destacar a necessidade de ampliar a quantidade de pesquisas que realizem esse
movimento, assim como já iniciado nos estudos realizados por KUNZ (1991), FRANÇOSO;
NEIRA (2014), SANTOS (2016), NOGUEIRA et al. (2018), BOSSLE (2018; 2019),
NOGUEIRA et al. (2019), NEIRA; SANTOS (2019) e SOUSA; NOGUEIRA;
MALDONADO (2019).
18

Embora as obras de Paulo Freire não discutam especificamente sobre os currículos


escolares e sobre a identidade docente, encontramos nelas premissas e compromissos que
orientam o percurso educacional, nos possibilitando recorrer à pedagogia freireana como
referencial analítico para analisar a BNCC de Educação Física, principalmente utilizando a
categoria freireana diálogo como parâmetro para uma proposta curricular (entendendo que o
diálogo é a tensão entre diferentes visões de mundo) e a categoria freireana práxis, como
expressão da identidade docente (resultante da ação-reflexão-ação, ou seja, da relação
indissociável entre a teoria e a prática curricular).
Para Freire (1982) é preciso direcionar um olhar crítico para a educação com o intuito
de nos conscientizarmos sobre suas intencionalidades, pois considera-se que nenhuma ação na
área da educação é aleatória e despropositada, neutra. Pelo contrário, segundo o patrono da
educação brasileira, as ações relacionadas à educação ocorrem num contexto concreto,
histórico, social, cultural, econômico e político próprio.
Sendo assim, é necessário entendermos a Educação Física e seus protagonistas
(docentes e educandos) como processos e produtos históricos, partes de uma totalização da
realidade que se relacionam de forma dialética com outros contextos.
Portanto, a Educação Física não pode ser entendida como um componente curricular
que se restringe aos cuidados do corpo físico dos educandos sem considerar que esses corpos
estabelecem uma relação indissociável entre objetividade e subjetividade, isto é, a realidade
dos sujeitos, pois quando se ignora a totalização da realidade, o processo educativo passa a ser
alienado e alienante.
É nesta perspectiva que consideramos importante olhar para a BNCC buscando analisar
se esse documento contempla uma proposta curricular para a Educação Física escolar apoiada
na teoria curricular tradicional, crítica e/ou pós-crítica, e, por consequência, contribui para a
constituição de uma identidade docente que não seja alienada e alienante, mas, pelo contrário,
que seja crítica.
Assim, o estudo sobre currículo ganha atenção, pois visa definir um curso a ser seguido
(GOODSON, 2012), ou seja, o currículo dita as coordenadas para situar de onde estamos
partindo e para onde estamos indo, assim como tudo aquilo que se encontra durante o
percurso do processo de ensino-aprendizagem na escola, influenciando, assim, não somente a
identidade do educando que está sendo formada, mas também a identidade a ser assumida
pelo docente, ao buscar corresponder às expectativas do curso, determinadas pelo currículo.
É nesse contexto que se configura o objetivo geral desta pesquisa: “Analisar a BNCC
de Educação Física na etapa do ensino fundamental a partir da pedagogia freireana, visando
19

explicitar, segundo as teorias curriculares, qual(is) são as identidade(s)


docente(s)/profissional(is) em Educação Física constituídas no documento e, a partir desta
análise, averiguar quais são as possibilidades de um currículo crítico-freireano da Educação
Física que constitua uma identidade docente de educador crítico-libertador”.
Visando alcançar o objetivo geral, estabelecemos, também, os objetivos específicos
desta pesquisa: 1) Contextualizar o processo histórico da Educação Física escolar no Brasil;
2) Construir o entendimento de identidade docente em Educação Física; 3) Construir o
entendimento de currículo; 4) Elencar as principais caraterísticas das teorias do currículo
tradicional, crítico e pós-crítico; 5) Analisar os principais currículos de Educação Física
segundo as teorias curriculares e sua respectiva influência na constituição de uma identidade
docente; 6) Estabelecer parâmetros freireanos para a compreensão de identidade docente e
currículo; 7) Analisar se a BNCC de Educação Física na etapa do ensino fundamental
contempla elementos para a constituição de uma identidade docente em Educação Física e
em qual(is) perspectivas teóricas curriculares, a partir dos parâmetros estabelecidos e, 8)
Refletir e apontar possibilidades para uma proposta curricular crítico-freireana para a
Educação Física.
Alcançar esses objetivos é de suma importância para a explicitação do viés teórico
utilizado no documento pesquisado, partindo do pressuposto que um currículo tradicional,
crítico, pós-crítico exercerá influência na constituição da identidade docente/profissional.
Desta forma, esta pesquisa se justifica ao buscar desvelar as pretensões da BNCC
(explícitas ou ocultas) e pressupor a constituição de uma identidade docente em Educação
Física no documento, partindo do princípio que uma proposta curricular traz consigo mais do
que simples conteúdos, pois o currículo é também um campo de disputas que produz a
identidade de quem educa e de quem é educado.
É válido ressaltar, também, que a BNCC é um acontecimento recente na história da
educação brasileira e, por sua contemporaneidade e intencionalidade de parametrizar todas as
áreas do conhecimento com conteúdos a priori, competências e habilidades, faz jus ao
interesse da comunidade científico-acadêmica em pesquisá-la.
Visando atingir os objetivos deste estudo, optou-se como percurso metodológico para
a coleta de dados, a pesquisa bibliográfica e a análise documental, em busca de uma
interpretação qualitativa. Consideramos pesquisa qualitativa aquela onde é necessário
encontrar fundamento para uma análise e para a interpretação dos fatos que revele o
significado atribuído à esses fatos ou às pessoas que partilham dele (CHIZZOTTI, 2006).
20

A escolha sobre o método de coleta de dados está fundamentada na ideia de que a


pesquisa bibliográfica, como atividade de localização e consulta de fontes diversas de
informação escrita para coletar dados gerais ou específicos a respeito de determinado tema, é
praticamente “obrigatória” nas pesquisas em Educação e possibilitará estabelecer parâmetros
para a análise documental, onde o documento, objeto deste estudo, poderá ser melhor
compreendido (GROPPO; MARTINS, 2007).
Para tanto esta pesquisa está organizada em quatro capítulos, além desta introdução e
das considerações finais do trabalho. O primeiro capítulo apresentará o processo histórico
percorrido pela Educação Física escolar no Brasil, passando por momentos distintos, cada um
deles priorizando um projeto de cidadão diferente visando atender as intencionalidades das
políticas públicas de educação de cada época. O referencial que nos ajudará nesse processo
dispõe de autores que são referência na história da Educação Física no Brasil, como Paulo
Ghiraldelli Júnior (1991), Valter Bracht (1999), João Paulo Medina (2007), Lino Castellani
Filho (2010), entre outros.
No Capítulo 2, desenvolveremos o conceito de currículo, identidade e identidade
docente em Educação Física recorrendo às obras de Antônio Flávio Moreira e Tomaz Tadeu
da Silva (2008), Alice Casimiro Lopes e Elisabeth Macedo (2011); Selma Garrido Pimenta
(1996); e Valter Bracht (1997), respectivamente. Ainda no segundo capítulo, nos
aprofundaremos sobre as teorias curriculares fundamentadas principalmente pela obra
Documentos de Identidade de Tomaz Tadeu da Silva (2005) e contando também com as
contribuições de Antônio Flávio Moreira (2008), Dermeval Saviani (2008), Henry Giroux
(1986) e Alice Casimiro Lopes (2013). Esse capítulo é de suma importância, pois
proporcionará condições de compreendermos as diferentes propostas curriculares da
Educação Física, baseadas em autores como Go Tani et al. (1988), João Batista Freire (1989),
Coletivo de Autores (1992), Elenor Kunz (1991; 1994), Marcos Garcia Neira e Mário Luiz
Ferrari Nunes (2006; 2009) dialogando diretamente com a Educação Libertadora proposta por
Paulo Freire (1983; 1987; 1996), além de relacionarmos como cada um desses currículos,
potencialmente, constituirá diferentes identidades docentes/profissionais em Educação Física.
Além das identidades docentes/profissionais constituídas a partir das diferentes
propostas curriculares da Educação Física, ao fim do Capítulo 2, compreenderemos a
identidade docente de educador crítico-libertador constituída a partir dos aspectos que
caracterizam uma proposta curricular crítico-libertadora.
O terceiro capítulo será dedicado a detalhar o percurso metodológico desta pesquisa
possibilitando compreendermos o propósito de uma pesquisa em educação, apoiados em
21

Menga Lüdke e Marli André (1986) e como a pesquisa bibliográfica e a análise documental
contribuirão para contextualizarmos a BNCC de Educação Física, a partir de Augusto
Triviños (1987) e Antônio Chizzotti (2000).
No quarto e último capítulo buscaremos contextualizar o objeto do estudo (BNCC)
como uma produção humana histórica. Buscaremos, também, apresentar e discutir os dados
empíricos identificados no objeto utilizando as categorias analíticas freireanas e os parâmetros
construídos ao longo do Capítulo 2, para análise destes dados.
Assim, analisaremos os dados coletados, à luz da pedagogia freireana, buscando
compreender em qual perspectiva curricular o documento contempla uma identidade
docente/profissional em Educação Física. Também evidenciaremos em que medida essa
perspectiva curricular e essa identidade oriundas da BNCC se aproximam ou se distanciam da
identidade do educador crítico-libertador constituída a partir da pedagogia freireana e como a
Educação Libertadora de Paulo Freire pode nos ajudar a pensar um currículo crítico-freireano
para a Educação Física.
Sintetizando o percurso metodológico desta pesquisa, buscamos organizar uma figura
que representa a forma de utilização da pesquisa bibliográfica e da análise documental como
meios para análise qualitativa da Base Nacional Comum Curricular de Educação Física na
etapa do ensino fundamental.

Figura 1 - Percurso metodológico da pesquisa


constituição da identidade docente
Currículos da Educação Física e a
Identidade docente, currículo e as
Contexto histórico da Educação
Física escolar no Brasil

teorias curriculares

BNCC de Educação
Física na etapa do
ensino fundamental

Pedagogia freireana
Legenda:
Pesquisa bibliográfica

Análise documental

Fonte: Organizado pelo pesquisador.


22

Ao final da pesquisa, serão realizadas as considerações finais sobre este estudo como
forma de evidenciar as denúncias realizadas durante o trabalho e os dados coletados
empiricamente, assim como as proposições possíveis para a superação das respectivas
denúncias. Neste sentido, sabendo que esta dissertação não encerra a necessidade de estudo
sobre o tema, buscamos concluir o processo de pesquisa, em torno de uma tese inicial,
passando pela antítese e chegando a uma síntese.
23

CAPÍTULO 1

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO FÍSICA NAS ESCOLAS BRASILEIRAS

Quando pretendemos compreender o presente, se faz necessário primeiro, a


compreensão do passado. Ainda mais quando o assunto é a Educação Física nas escolas
brasileiras, pois sua história é carregada de intencionalidades políticas, econômicas, assim
como, influenciada pelos costumes culturais, sociais e morais como já citado anteriormente na
apresentação deste estudo. Portanto, o objetivo deste capítulo é nos trazer elementos que
colaborem no entendimento do processo de devir da Educação Física escolar brasileira.
Contudo, ressaltamos que a história da Educação Física não é algo estático e bem
comportado, pois, sendo uma produção humana, carrega consigo intencionalidades e
contradições e, portanto, a iniciativa deste capítulo de apresentar a história deste componente
curricular nas escolas brasileiras deve ser entendida como uma interpretação específica da
história da Educação Física, a partir do ponto de vista da autoria desta pesquisa.
Inicialmente vale ressaltar que a expressão “educação física” surge no século XVIII
com a preocupação de filósofos na formação integral da criança e do jovem. Para eles, era
necessário o desenvolvimento pleno da personalidade da pessoa, ou seja, corpo, mente e
espírito. Esse cenário aponta para uma visão fragmentada do homem naquela época (BETTI;
ZULIANI, 2002).
Na educação brasileira, a ideia de cuidado com o corpo aparece pela primeira vez em
1828, quando Joaquim Jerônimo Serpa3 publica o Tratado de Educação Física: Moral dos
Meninos (MOREIRA; NISTA-PICCOLO, 2016). Esse tratado se referia a uma educação
física meramente médica e clínica sem se preocupar com propósitos pedagógicos.
Posteriormente, essa ideia ganhou maior robustez com a criação da disciplina “Ginástica” na
“Reforma do ensino primário e Reforma do ensino secundário e superior” promovida pelo
advogado baiano Ruy Barbosa4 e apresentada pelo mesmo, na Câmara dos Deputados em
1882, na condição de relator da Comissão de Instrução Pública, em referência ao Decreto nº
7.247, de 19 de abril de 1879 (BRASIL, 1879).

3
Joaquim Jerônimo Serpa (1773-1842) foi um médico pernambucano e professor de Botânica (MOREIRA;
NISTA-PICCOLO, 2016).
4
O parecer e projeto do ensino primário deram a Ruy Barbosa o título de precursor da educação física
(FUNDAÇÃO CASA DE RUY BARBOSA, 2019).
24

Esse recorte é justificado por este ser um documento pioneiro na sistematização e


organização das escolas brasileiras contemplando um componente curricular voltado à
educação do corpo.
A partir da proposta de Ruy Barbosa, organizamos a história da Educação Física nas
escolas brasileiras em dois momentos distintos que se baseiam em sua intencionalidade e em
sua forma de entender o corpo como algo além de um mero organismo fisiológico. São eles:
Primeiro momento: A Educação Física alienada e alienante e, Segundo momento: A Educação
Física em busca da autocrítica.

1.1. Primeiro momento: A Educação Física alienada e alienante

A Educação Física surge nas escolas brasileiras na forma de uma disciplina intitulada
“Ginástica” de caráter obrigatório a todos os segmentos de séries objetivando a educação
física, isto é, o adestramento do corpo como um organismo biológico.
Para Ruy Barbosa, a escola da época não respeitava a condição de criança de seus
alunos e alunas, ao anular a existência de seus corpos. Ele também não concordava com a
valorização do ensino meramente intelectual, pois acreditava na premissa helênica de que para
ter um espírito são é necessário ter um corpo são.
A inspiração helênica torna evidente o entendimento de Ruy Barbosa em relação à
dicotomização entre o corpo, como organismo biológico que se manifesta no mundo objetivo,
e o espírito, como uma essência humana subjetiva.
Ainda assim, o pensamento de Ruy Barbosa era inovador para uma época onde o
esforço físico era relacionado com os ofícios mais marginalizados da sociedade cumpridos
geralmente pelos escravos e, por isso, a proposta da prática da ginástica nas escolas foi motivo
de muita polêmica. Para justificar seus ideais, Ruy Barbosa utilizou o sucesso de outras
nações ditas como mais avançadas como argumento:

As nações modernas, ensinadas pela observação da realidade, vão de dia em dia


ligando mais alto apreço a este elemento educador. As raças enérgicas do Norte e
Centro da Europa, a Escandinávia, a Alemanha, a Suíça celebram esplendidamente
as suas festas paléstricas, onde a força, a inteligência e a graça se ostentam nesse
harmonioso conjunto, cujo o privilégio foi a honra da civilização helênica. [...] As
nações viris, de feito, não se conseguem formar senão pela cultura paralela e
recíproca do corpo e do espírito, que não se podem desquitar, senão para gerar
anomalias e monstros (BARBOSA, 1946, p. 68-69).
25

A educação do corpo almejada pela disciplina Ginástica nas escolas estava fortemente
fundamentada em conhecimentos médicos marcados pelos princípios higienistas5 e visava
“desenvolver na criança o quantum de vigor físico essencial ao equilíbrio da vida humana, à
felicidade da alma, à preservação da pátria e a dignidade da espécie” (BARBOSA, 1946, p.
97) objetivando um processo de eugenização6 da raça brasileira, guiado com forte
participação dos militares altamente influenciados pelos princípios positivistas
(CASTELLANI FILHO, 2010).
Para Penteado et al. (2005), a higiene é uma preocupação da sociedade desde a Grécia
Antiga onde a elite econômica e política era o único segmento social que tinha condições de
manter hábitos de higiene aceitáveis à época.
Na Idade Média, as elites sociais e a Igreja criaram mecanismos para ajudar a
população com hospitais e serviços médicos, mas com um caráter voltado à separação do
campo, da cidade. Esse processo histórico favoreceu a rotulação dos pobres e camponeses
como pessoas sujas e doentes que ofereciam algum risco à elite dominante. No século XVII, a
ideia de um sujeito limpo já estava relacionada à sua moralidade e status na sociedade, pois
remetia a uma pessoa distinta, elegante e disciplinada.
No Brasil, “o inchaço das cidades, a formação de “bairros operários” insalubres, a
proliferação de doenças infecciosas provindas das precárias condições de vida forjadas por
um capitalismo atabalhoado colocaram as elites atônitas” (GHIRALDELLI JÚNIOR, 1991, p.
36).
Neste contexto, as instituições educacionais passam a cumprir com a função de
disciplinar os sujeitos para a forma correta de agir na vida cotidiana visando o “ser humano
ideal” capaz de corresponder às expectativas da sociedade, ou seja, os princípios higienistas
extrapolam sua intenção explícita de saúde pública e sanitarismo e passam a agir como
manobra de regulação e opressão dos sujeitos.
Portanto, esse higienismo é fruto de uma “visão liberal de educação e ensino
(compromissada com as classes dominantes), a prática escolar (e também a educação familiar,

5
Movimento que considerava que a higiene social deveria assumir a tarefa de proteger higienicamente a
coletividade, em nome da ordem, e contra a anarquia do liberalismo, dos ideais igualitários, da promiscuidade e
decadência urbanas. Era praticamente uma Ciência Social com fundamentos na Medicina e na eugenia
(MANSANERA; SILVA, 2000).

6
A eugenia tratava dos fatores capazes de aprimorar as qualidades hereditárias da raça humana, ou seja, métodos
para “purificar” a raça humana (MANSANERA; SILVA, 2000).
26

a educação profissional, a educação física e desportiva etc.) é entendida como ajustamento do


indivíduo à forma de organização social existente” (GHIRALDELLI JÚNIOR, 1991, p. 10).
É essa concepção higienista que fundamentou a Educação Física na primeira fase da
sua história, onde sua função nas escolas brasileiras era de um “agente de saneamento
público, na busca de uma sociedade livre das doenças infecciosas e dos vícios deteriorados da
saúde e do caráter do homem do povo” (GHIRALDELLI JÚNIOR, 1991, p. 17).
Para tanto, se fundamentava em um “currículo ginástico” (NEIRA; NUNES, 2009) e
utilizava como conteúdo de suas aulas os exercícios calistênicos7 (principalmente para as
meninas) e exercícios militares (para os meninos). Assim, o papel do docente estava associado
à autoridade de um militar e o conhecimento de um agente de saúde, cuja função era educar o
físico dos alunos e alunas.
Embora Ruy Barbosa tivesse percebido a importância do corpo no processo de
educação humana, sua proposta colaborou para a visão de um ser humano fragmentado e
desassociado da realidade.
Neste contexto, pode-se dizer que a Educação Física escolar brasileira já nasce
favorecendo uma visão fragmentada do ser humano e da realidade concreta8. Ainda que Ruy
Barbosa considerasse que corpo e espírito não se desquitam um do outro, ele não considerava
a relação dialética entre eles. Segundo Freire (1987, p. 24), “não se pode pensar em
objetividade sem subjetividade. Não há uma sem a outra, que não podem ser dicotomizadas”.
Por consequência, o corpo ganha um caráter instrumental e os cuidados prestados a ele
através da Ginástica assumem a finalidade de atender aos interesses da elite dominante
responsável pela elaboração das políticas públicas de saúde e educação.
É nesse sentido que, em 1937, o então presidente Getúlio Vargas instaura o que chama
de Estado Novo e, neste contexto, a Educação Física escolar ganha novas atribuições junto ao
Estado brasileiro, como notamos no trecho da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de
1937:

Artigo 131 - A Educação Física, o ensino cívico e os trabalhos manuais serão


obrigatórios em todas as escolas primárias, normais e secundárias, não podendo

7 Calistenia é uma palavra de origem grega (Kalllstenés - kallos (beleza) e sthenos (força)), que para os helenos
significaria "força harmoniosa” (CORREA, 2002). No Brasil, segundo Inezil Penna Marinho, a Calistenia é um
sistema ginástico que encontra suas origens na ginástica sueca e que apresenta como características a
predominância de formas analíticas, a associação de música ao ritmo do movimento e a predominância de
movimentos sobre as posições e exercícios à mão livre e com pequenos aparelhos (MARINHO, 1952).

8 Para Freire (1990, p. 35), “[...] a realidade concreta é algo mais que fatos ou dados tomados mais ou menos em
si mesmos. Ela é todos esses fatos e todos esses dados e mais a percepção que deles esteja tendo a população
envolvida. Assim, a realidade concreta se dá a mim na relação dialética entre objetividade e subjetividade”.
27

nenhuma escola de qualquer desses graus ser autorizada ou reconhecida sem que
satisfaça àquela exigência.
Artigo 132 - O Estado fundará instituições ou dará o seu auxílio e proteção às
fundadas por associações civis, tendo umas e outras por fim organizar, para a
juventude, períodos de trabalho anual nos campos e oficinas, assim como promover-
lhes a disciplina moral e o adestramento físico, de maneira a prepará-la ao
cumprimento dos seus deveres para com a economia e a defesa da nação (BRASIL,
1937, p. 87-88).

A Constituição de 1937 delega à Educação Física mais duas atribuições, além de sua
responsabilidade sobre a eugenização do povo brasileiro: o cumprimento dos seus deveres
para com a economia, garantindo mão de obra fisicamente adestrada e capacitada para
colaborar no processo de industrialização implantado no país e a colaboração na segurança
nacional, preparando o cidadão brasileiro para cumprir seu dever para com a defesa da nação
frente aos perigos internos comunistas e aos perigos externos devido à eminência de um
conflito bélico a nível mundial (CASTELLANI FILHO, 2010).
Para o governo Vargas era necessário um pacote completo que ensinaria a criança
sobre os ideais nacionalistas desde a escola. Surgem, portanto, como instrumentos do Estado
a “Educação Física e a Educação Moral e Cívica como elos de uma mesma corrente,
articuladas no sentido de darem à prática educacional a conotação almejada e ditada pelos
responsáveis pela definição da política de governo” (CASTELLANI FILHO, 2010, p. 66).
A filosofia de militarização da Educação Física visando a soberania da nação (no
sentido econômico e político) ganhava cada vez mais força e reforçava a submissão do povo
brasileiro ao Estado alimentado o sentimento de que o “cidadão-soldado” seria a solução para
o progresso da país, conforme podemos observar nos pensamentos de Ruy Barbosa:

Ninguém nutre menos a tendência de militarização e de guerra do que nós. Mas a


precisão, a decisão e a energia dos movimentos militares constituem, a par de um
excelente meio de cultivo das forças corpóreas, um dos mais eficazes fatores na
educação do caráter viril (BARBOSA, 1946, p. 91).

Com esse pensamento, o Brasil recorre às escolas de ginásticas europeias, importando


o método francês que visava implantar uma cultura militar na população desde cedo, ou seja,
desde a escola.
É importante destacar que a influência militar na Educação Física não se trata
simplesmente de um componente curricular pautado em exercícios militares com o propósito
de preparo físico. Trata-se de algo além, um projeto que objetiva impor à sociedade um
padrão de comportamento alinhado ao regime militar (GHIRALDELLI JÚNIOR, 1991).
28

Nessa perspectiva, o docente torna-se uma figura mais autoritária e compete a ele
determinar quem é “útil” à nação ou não. “A ginástica, o desporto, os jogos recreativos etc. só
têm utilidade se visam à eliminação dos incapacitados físicos” (GHIRALDELLI JÚNIOR,
1991, p. 18).

Essa forma de instrução física militar, destinada às massas, embora disseminasse, do


ponto de vista ideológico, a moral e o patriotismo, apresentava um forte conteúdo
higiênico e tinha por finalidade primeira tornar os corpos ágeis, fortes e robustos.
Em momento algum, a saúde física deixou de pontuar aquelas propostas, e o corpo
anátomo-fisiológico sempre foi seu objeto de atenção. O viés médico-higiênico
emprestava o caráter científico que, juntamente com a moral burguesa, completava o
caráter ideológico (SOARES, 1994, p. 67-68).

Em 1945, com o fim da Era Vargas, a democracia populista envolveu a educação


brasileira com um novo arcabouço ideológico e a sociedade passou a cobrar da elite dirigente,
melhores condições de vida o que proporcionou um crescimento no número de escolas.
Com o crescimento da rede pública de ensino, a Educação Física passou a estar mais
presente e acessível aos brasileiros e, consequentemente, passaram a surgir novas demandas
ao componente escolar provocando um redirecionamento da teoria da Educação Física
brasileira. “A Educação Física, como disciplina de Escola Pública, deveria voltar-se, então,
para a sua maior clientela: o aluno das camadas assalariadas urbanas que chegavam, a cada
ano em maior quantidade, aos bancos escolares” (GHIRALDELLI JÚNIOR, 1991, p. 40).
Esse cenário de mudança na educação brasileira também tem grande influência do
“Manifesto dos Pioneiros” de 1932, um documento onde alguns representantes da educação
nacional, dentre eles Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e Lourenço Filho, reivindicam
direitos que consideravam essenciais à educação como a laicidade, gratuidade,
obrigatoriedade e coeducação.
Esses direitos são contemplados pela nova Carta Magna de 1946, que veio a
“substituir aquela de 1937, canalizou as atenções dos diversos segmentos sociais em geral e
dos políticos em particular, com vistas a dar a ela contornos liberais-democráticos que a
distinguissem marcadamente dos traços autoritários de sua antecessora” (CASTELLANI
FILHO, 2010, p. 79).
Neste contexto da década de 1930, nasce uma proposta educacional chamada de
“Escola Nova” ou “Escolanovismo” que valorizava a experiência dos alunos como parte
fundamental do processo de ensino-aprendizagem. Nesta direção, a Educação Física inicia
sua busca por “pedagogizar” as aulas, isto é, adaptar o currículo ginástico às experiências
motoras dos alunos.
29

Nesta proposta, passam a incorporar a prática da Educação Física nas escolas do país,
além da ginástica, as danças e os esportes como meios de educação capazes de ensinar os
alunos a “aceitar as regras de convívio democrático e de preparar as novas gerações para o
altruísmo, o culto, as riquezas nacionais, etc.” (GHIRALDELLI JÚNIOR, 1991, p. 19).
Essa Educação Física estava preocupada com a juventude do país e proporcionava aos
jovens nas escolas melhorar sua saúde, adquirir hábitos fundamentais, preparo vocacional e
racionalização do uso das horas de lazer, objetivos esses fundamentados no modelo de
educação norte-americano. As fanfarras de escola, os jogos escolares, os desfiles cívicos, as
apresentações diversas, tudo isso passa a ser incumbência do professor de Educação Física no
intuito de cumprir o velho anseio da educação liberal: formar o seu modelo capitalista de
cidadão (GHIRALDELLI JÚNIOR, 1991).
O docente ainda mantém uma identidade de militar e de agente de saúde, mas passa a
assumir também um papel de professor recreador, pois o exercício dessa docência está
associado a um projeto de cidadão que será alcançado através de atividades lúdicas alienadas
à realidade social dos educandos.
Embora este período busque assumir um caráter educativo utilizando manifestações da
cultura corporal, como a dança e os desportos, ainda assim, permanece visível a herança das
filosofias higienistas e militaristas ao objetivar a educação física do homem brasileiro, ou seja,
os padrões fisicamente e moralmente estabelecidos como corretos pela classe dominante, sem
qualquer crítica política e/ou social.
Assim, o capitalismo continuou se consolidando cada vez mais, influenciando a
Educação Física nas escolas brasileiras por meio da rivalidade, da concorrência e da
competitividade nas atividades excludentes e alienantes presentes nas aulas.
Em 1964, os militares tomam o poder do país naquilo que ficou conhecido como
“Golpe de 64”. Nesse período, as políticas públicas de educação viam na Educação Física
uma oportunidade de desenvolver os desportos nas escolas com a finalidade de formar atletas
para que esses pudessem futuramente representar a nação em competições esportivas
demonstrando o poder do Estado brasileiro.
As aulas passam a estar fundamentadas em uma proposta curricular “esportivista”, ou
seja, um percurso escolar que visava o desenvolvimento de habilidades esportivas. Esse
cenário favorece o incentivo ao condicionamento físico através de treinamentos
sistematizados para melhor performance e sucesso desportivo, além de servir também como
um aparelho alienante capaz de entreter a população, tirando a atenção sobre o golpe.
30

Essa fase “competitivista” da Educação Física seguia a lógica capitalista da


competição, estimulando a superação dos obstáculos e dos oponentes, “valores fundamentais
e desejados para uma sociedade moderna” (GHIRALDELLI JÚNIOR, 1991, p. 20) e, nesse
sentido, os desportos passam a ser uma ferramenta governamental para construir o sentimento
de unidade na nação brasileira, uma estratégia ideológica para se esquivar de críticas e
transmitir a impressão de progresso do país.
O sucesso no esporte, seja profissional ou amador, deveria ser uma representação
social do sucesso do país na economia e na política de forma que o brasileiro ficasse
convencido de que tudo estava bem ao vivenciar um clima de satisfação e prosperidade. O
professor Lino Castellani Filho lembra a campanha da seleção brasileira de futebol, tricampeã
na Copa do Mundo de 1970, e exemplifica aquele sentimento com o cenário político
brasileiro:

[...] pois, foi na esteira desses hinos ufanistas - apologistas de uma postura cívica
exacerbadamente alienada, patológica - que vieram os odientos crimes políticos
cometidos, voluptuosamente, pelos aparelhos repressivos - estatais e paraestatais -
num ritmo e forma poucas vezes presenciados na história política da sociedade
brasileira (CASTELLANI FILHO, 2010, p. 91).

Tanto nas escolas quanto no mercado de trabalho, a política da meritocracia começa a


ganhar força e passa a privilegiar e selecionar aqueles indivíduos que podem ser considerados
“ativos e atuantes, dinâmicos e versáteis, respeitadores de regras e princípios morais
universais, prontos para resolver problemas de todo o tipo e donos de uma enorme capacidade
física e psíquica para enfrentar os desafios movidos pelo melhor espírito competitivo”
(NEIRA; NUNES, 2009, p. 75).
Nesse ambiente, as aulas de Educação Física passam a ser treinamentos esportivos
fundamentadas nos conhecimentos da biologia, biomecânica, fisiologia e anatomia visando
“garimpar” os melhores atletas que pudessem representar o país em competições.
Essa prática favoreceu a exclusão dos alunos que fisicamente não correspondiam com
as expectativas de performance esportiva e também excluiu conteúdos da cultura brasileira,
pois privilegiava um rol de atividades de origens europeias e norte-americanas, como vemos
até hoje nas escolas a hegemonia do futebol, voleibol, basquete e handebol.

[...] a Educação Física Competitivista é um aríete das classes dirigentes na tarefa de


desmobilização da organização popular. Tanto o “desporto de alto nível”, que é o
“desporto-espetáculo”, é oferecido em doses exageradas pelos meios de
comunicação à população, como, explicitamente, é introduzido no meio popular
através de ação governamental. O objetivo de “dirigir e canalizar energias” nem
31

sempre é dissimulado. A Educação Física Competitivista faz parte, como as outras


concepções que precederam esta exposição, daquilo que podemos chamar de
arcabouço da ideologia dominante (GHIRALDELLI JÚNIOR, 1991, p. 20).

Mais uma vez, o docente cumpre com um papel acrítico e atua como um treinador
desportivo. Sua missão não possui um caráter pedagógico, pois os alunos e alunas que não
possuem potencial atlético em alguma modalidade desportiva são excluídos das aulas.
Compete ao professor “treinador” lecionar para aqueles educandos que, de alguma forma,
conquistarão resultados em competições esportivas.
Até esse momento, o papel da Educação Física escolar esteve amparado por uma
proposta curricular baseada nas ginásticas e nos desportos de forma dissociada da realidade
social dos alunos e alunos, conferindo à Educação Física um aspecto alienado e alienante.
Durante a década de 1980, ao final da ditadura militar e diante da “reabertura” política
e científica do país, o “Movimento Renovador da Educação Física9” passou a questionar o
papel pedagógico e social da Educação Física brasileira e considerou a necessidade de entrar
em “crise”.
A “crise de identidade da Educação Física” (MEDINA, 2007) não foi um evento
pontual na história do componente, uma vez que as políticas públicas de educação por
diversas vezes reelaboraram os caminhos e os objetivos da Educação Física escolar fazendo
com que ela enfrentasse períodos de crise. No entanto, a crise declarada na década de 1980
representou para a Educação Física um momento em busca da autocrítica, onde seu papel
alienado e alienante passou a ser questionado.

1.2. Segundo momento: A Educação Física em busca da autocrítica

Os anos 1980 foram cruciais para mudanças na sociedade brasileira, principalmente


com o final da ditadura militar, em 1985. Na área da Educação não poderia ser diferente, e
“recrudescia, também no âmbito da Educação Física, o interesse pelo debate a respeito do
destino do papel da Educação Física numa sociedade que, assim como ela, estava em crise”
(CASTELLANI FILHO, 2010, p. 152).
A palavra crise, neste contexto, é utilizada com os seguintes significados: “uma
perturbação que altera o curso ordinário das coisas”; “uma situação social decorrente da

9
O Movimento Renovador da Educação Física foi um movimento de estudiosos da área nos anos 1980
realizando denúncias e anúncios para uma nova Educação Física mais comprometida pedagogicamente,
socialmente e politicamente (MACHADO; BRACHT, 2016).
32

mudança de padrões culturais, e que se supera na elaboração de novos hábitos por parte do
grupo” e “uma mutação de valores, do conceito filosófico do mundo ou da atitude perante a
vida, mas também a eleição ou a mudança na profissão, uma orientação no modo de viver”
(MEDINA, 2007, p. 35-36).
A Educação Física tinha uma oportunidade de deixar de ser um aparelho do Estado
(ALTHUSSER, 1987) e, finalmente, poderia legitimar sua função dentro da escola. Portanto,
a crise era algo necessário à Educação Física.

A Educação Física precisa entrar em crise urgentemente. Precisa questionar


criticamente seus valores. Precisa ser capaz de justificar-se a si mesma. Precisa
procurar a sua identidade. É preciso que seus profissionais distinguam o educativo
do alienante, o fundamental do supérfluo de suas tarefas. É preciso, sobretudo,
discordar mais, dentro, é claro, das regras construtivas do diálogo (MEDINA, 2007,
p. 35).

Nessa perspectiva surge uma série de conjuntos de produções acadêmicas e debates


que ficaram conhecidos como Movimento Renovador da Educação Física. Para Bracht,
podemos identificar dois momentos distintos nesse movimento:

Um primeiro momento dessa crítica tinha um viés cientificista. Por esse viés,
entendia-se que faltava à Educação Física ciência. Era preciso orientar a prática
pedagógica com base no conhecimento científico, este, por sua vez, entendido como
aquele produzido pelas ciências naturais ou com base em seu modelo de
cientificidade. O desconhecimento da história da Educação Física fez com que não
se percebesse que esse movimento apenas atualizava o percurso e a origem histórica
da Educação Física e, portanto, que ele não rompia com o próprio paradigma da
aptidão física. Nesse período vamos assistir à entrada em cena também de outra
perspectiva que é aquela que se baseia nos estudos do desenvolvimento humano
(desenvolvimento motor e aprendizagem motora). O segundo momento vai permitir,
então, uma crítica radical à Educação Física [...] (BRACHT, 1999, p. 77).

O primeiro movimento, com viés cientificista, segundo Bracht (1986), fundamentava-


se de dois modos: o “Biológico” que visava à melhoria da aptidão física dos indivíduos e,
deste modo, consequentemente, contribuindo para o desenvolvimento social, uma vez que os
indivíduos estariam mais aptos a cumprir seu papel na sociedade; e o “Bio-psicológico” que
objetivava a melhoria da aptidão física também, porém de forma integrada com o
desenvolvimento intelectual e a manutenção do equilíbrio afetivo ou emocional por meio das
aulas de Educação Física.
É desse movimento “biopsicologizante” que se origina duas novas propostas
curriculares da Educação Física: a “psicomotora” e a “desenvolvimentista”, as quais serão
mais bem contextualizadas no próximo capítulo da pesquisa.
33

No entanto, Bracht (1986) destaca que as vertentes biológicas e bio-psicológicas não


contemplavam a realidade social e histórica dos indivíduos, o que as enquadravam como
manifestações de uma Educação Física “acrítica”, pois abordavam a cultura corporal de forma
fragmentada e dissociada da realidade dos educandos.
Em resposta a esse cenário, no segundo momento referido por Bracht (1986), surgem
outras propostas consideradas “críticas” para tirar a Educação Física de sua crise e, desta vez,
a busca se concentrou no campo da Sociologia e da Antropologia, pois acreditava-se que,
desta forma, seria possível realizar proposições mais radicais, livres das amarras da Biologia e
da Psicologia, permitindo considerar os sujeitos da Educação Física como indivíduos
históricos e sociais.
A Educação Física passou a ser entendida também como uma prática social que
emergia dos movimentos populares que deveriam chegar às escolas, onde o trabalho com o
corpo e o movimento contribuiria no desvelamento da ideologia dominante (GHIRALDELLI
JÚNIOR, 1991).
Dentre as alternativas curriculares consideradas críticas, podemos destacar a proposta
crítico-superadora e crítico-emancipatória da Educação Física, que serão mais bem
contextualizadas no capítulo seguinte.
Mais recentemente, vêm ganhando destaque um movimento de pesquisadores da
Educação Física que passaram a procurar respostas (ainda na tentativa de superar a crise) na
liquidez da Pós-modernidade, buscando caminhos alternativos à “Educação Física biológica e
biopsicologizante” e à “Educação Física crítica”.
O currículo culturalmente orientado da Educação Física, como alternativa curricular
Pós-moderna para a Educação Física, é influenciado por campos de estudo que buscam ir
além do pensamento científico racional Moderno. Como principais representantes destes
campos de estudo podemos citar o Pós-estruturalismo, Pós-colonialismo, Estudos Feministas
e, principalmente, os Estudos Culturais e Multiculturalismo Crítico.
Assim, as relações de poder oriundas das questões de gênero, sexualidade e etnia são
esferas que se interseccionam com a cultura corporal, juntamente com questões políticas,
econômicas e sociais e que, portanto, devem ser tematizadas dentro das aulas de Educação
Física (nos aprofundaremos mais sobre essa proposta no Capítulo 2).
Nesta direção, “[...] à ação docente caberia destacar como os sentidos daquele grupo
cultural foram produzidos, questionando os códigos e os artifícios pelos quais aquela(s)
manifestação(ões) se apresenta(m) e/ou é(são) representada(s). (NEIRA; NUNES, 2009, p.
237).
34

Para os propositores de uma proposta curricular da Educação Física fundamentada no


referencial Pós-moderno, “[...] o currículo Moderno é um processo que tem por meta
transmitir dada cultura (conhecimento acumulado pela humanidade) para um aluno receptor
de conteúdos [...]” (NEIRA; NUNES, 2009, p. 228).
Procurando superar a visão Moderna, a Educação Física apoiada na Pós-modernidade
entende que o percurso escolar não pode ser algo rígido e pré-estabelecido. Ao contrário, “[...]
atribui-se à “escrita-currículo”10 um caráter aberto, não determinista, não linear e não
sequencial, limitado e estabelecido apenas em termos amplos, que tecem a todo o momento
uma rede de significados, com base na ação e interação dos seus participantes” (NEIRA;
NUNES, 2009, p. 229).
Percebemos, então, que tal proposição da Educação Física se apoia em lacunas
supostamente não preenchidas pelas primeiras tentativas de resposta à crise de identidade da
Educação Física.
Assim, a crise, sem sombra de dúvidas, tirou a Educação Física escolar brasileira de
sua zona de conforto e possibilitou seu momento de autocrítica. Porém, embora seja possível
visualizar os progressos, ainda é possível notar que a inquietação permanece.
Concordamos com Gonzáles e Fensterseifer (2009) que entendem que a Educação
Física se encontra “entre o não mais e o ainda não”, isto é, a autocrítica realizada possibilitou
à Educação Física escolar perceber que a prática das propostas ginásticas e esportivistas
dissociadas da realidade social dos alunos não são mais suficientes para justificar a presença
deste componente nas escolas. No entanto, a Educação Física ainda se encontra no
movimento de busca de novas propostas que a consolidem como um componente curricular
com uma função pedagógica e social significativa.
É por isso que, quando homologada em 2017, a BNCC foi recebida com alguma
desconfiança, pois entendemos que a Educação Física ainda está amadurecendo as propostas
curriculares que surgiram como alternativas à crise e, assim sendo, uma proposta curricular
oficial nacional elaborada sem considerar essa historicidade da área, poderia significar um
retrocesso à área. Logo, é necessário aos protagonistas da Educação Física permanecer em
estado de vigília, ou seja, seguir com sua autocrítica na busca de sua identidade.
De acordo com o texto introdutório da Base Nacional Comum Curricular, ela e os
“currículos têm papéis complementares para assegurar as aprendizagens essenciais definidas
para cada etapa da Educação Básica, uma vez que tais aprendizagens só se materializam

10
O entendimento de escrita-currículo é pensar a educação como um fluxo constante, onde não há distinção
entre teoria e prática. O processo educativo é um permanente devir (NEIRA; NUNES, 2009).
35

mediante o conjunto de decisões que caracterizam o currículo em ação” (BRASIL, 2017, p.


16).
Neste sentido, a BNCC direciona a educação de todo o país e, aos currículos de cada
rede de ensino, compete simplesmente encontrar os caminhos para executar aquilo que nela já
está determinado.
Como a BNCC se apresenta com um documento normativo, consideramos pertinente
analisá-la de modo a compreender em qual perspectiva curricular em Educação Física ela se
apoia e qual é a identidade docente constituída a partir dela.
Assim, o próximo capítulo desta dissertação se propõe a estabelecer categorias e
parâmetros que nos permitam analisar, a partir das teorias do currículo, como a identidade
docente em Educação Física está condicionada às diferentes propostas curriculares do
componente.
Concomitantemente, buscaremos evidenciar que eventuais lacunas apontadas por
pesquisadores em diferentes propostas curriculares da Educação Física podem ser preenchidas
recorrendo à pedagogia freireana e, particularmente, à uma proposta curricular crítico-
freireana.
Assim, os parâmetros estabelecidos a partir das teorias do currículo nos possibilitarão
relacionar as diferentes propostas curriculares da Educação Física com as diferentes
identidades docentes/profissionais constituídas na área. Estabelecer essa relação dialogando
concomitantemente com a pedagogia freireana nos permitirá analisar a BNCC de Educação
Física para o ensino fundamental de forma a compreender em qual perspectiva esse
documento constitui uma identidade docente ao professor de Educação Física e também nos
permitirá pensar quais são as possibilidades da pedagogia freireana para preencher eventuais
lacunas existentes, no campo curricular da Educação Física.
36

CAPÍTULO 2

TEORIAS DO CURRÍCULO E A IDENTIDADE DOCENTE EM


EDUCAÇÃO FÍSICA À LUZ DA PEDAGOGIA FREIREANA

O capítulo anterior evidenciou o processo histórico da Educação Física escolar no


Brasil ressaltando seus distintos momentos, cada um deles com diferentes intencionalidades
políticas, econômicas, sociais, culturais e pedagógicas. Diante deste cenário, percebe-se ainda
hoje que as propostas curriculares da Educação Física e suas respectivas identidades
docentes/profissionais constituídas carregam resquícios destes diferentes momentos.
Neste capítulo, construiremos o nosso entendimento a respeito da concepção de
currículo e de identidade docente em Educação Física, pois isso nos dará condições de
aprofundar-nos nas teorias que fundamentam os currículos escolares, como a teoria curricular
tradicional, crítica e pós-crítica, procurando responder as seguintes questões: O que deve ser
ensinado na escola? Como deve ser ensinado? Para quê deve ser ensinado?
Buscaremos, também, estabelecer como essas teorias se manifestam na forma de um
currículo de Educação Física, assim como influenciam a identidade docente em Educação
Física e, ao final deste capítulo, estabeleceremos categorias e parâmetros a partir da pedagogia
freireana para pensarmos o currículo e a identidade docente.

2.1. Currículo, identidade e a identidade docente em Educação Física

Embora não seja a pretensão desta pesquisa se debruçar sobre discussões


epistemológicas do campo de estudos do currículo, é fato a necessidade de partir de um
conceito que permita compreender o que se entende por currículo nesta pesquisa.
Esse conceito se faz necessário, pois o campo de estudo do currículo tem ganhado
mais atenção e as pesquisas realizadas nesta área têm produzido novos entendimentos sobre a
escola, a formação dos sujeitos e as políticas públicas de educação. Todos esses aspectos
estão presentes (ou ocultos) no currículo.
Portanto, não podemos nos limitar a um entendimento mais simples e objetivo que
considera o currículo escolar como sendo apenas um documento contendo um grande rol de
conteúdos que devem ser trabalhados em sala de aula em determinado momento do percurso
escolar.
O campo de estudo do currículo se mostra muito mais complexo e elaborado do que
um mero documento orientador. Ainda assim, todos esses entendimentos sobre o currículo
37

possuem algo em comum: a ideia de organização do processo educativo (LOPES; MACEDO,


2011).
A palavra currículo tem origem latina (currere/scurrere) e significa “correr, e refere-se
a curso (ou carro de corrida)” (GOODSON, 2012, p. 31). Podemos entender isso como o
caminho a ser percorrido, ou seja, o percurso.
O ponto chave da discussão proposta neste capítulo gira em torno de que se o currículo
não é simplesmente um documento, mas sim o percurso a ser percorrido, logo pode-se
perceber que não há um único caminho, uma única rota que leve todos ao mesmo lugar.
Não se nega que a escola deve possuir uma organização que oriente todos os
envolvidos no processo educativo, mas é nítido que existem divergências no entendimento de
como esse processo deve ser organizado e qual deve ser o seu produto final, ou seja, que tipo
de pessoas a escola pretende formar. É por isso que o campo de estudos do currículo é visto
como um campo de disputas.

Nesta perspectiva, o currículo é considerado um artefato social e cultural. Isso


significa que ele é colocado na moldura mais ampla de suas determinações sociais,
de sua história, de sua produção contextual. O currículo não é um elemento inocente
e neutro de transmissão desinteressada do conhecimento social. O currículo está
implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares e
interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares. O
currículo não é um elemento transcendente e atemporal - ele tem uma história,
vinculada a formas específicas e contingentes de organização da sociedade e da
educação (MOREIRA; SILVA, 2008, p. 7-8).

Ao considerar que o currículo escolar presume relações de poder, logo concluímos que
deve haver ao menos duas forças opostas nesta relação. Nas discussões sobre o currículo
podemos identificar três forças principais que disputam esse campo. Essas forças são
respostas àquilo que deve ser o percurso escolar. Respostas às perguntas: o que ensinar, como
ensinar e para quê ensinar? Por se tratar de respostas sistematizadas para o currículo escolar,
podemos considerá-las como teorias do currículo (SILVA, 2005).
As três teorias do currículo a que nos referimos são: a teoria curricular tradicional, a
teoria curricular crítica e a teoria curricular pós-crítica, as quais serão explicitadas com
vistas a traçar um paralelo destas com suas respectivas propostas curriculares para a Educação
Física e a respectiva identidade docente constituída a partir dessas propostas.
Para Pimenta (1996, p. 75) “a identidade não é um dado imutável. Nem externo, que
possa ser adquirido. Mas é um processo de construção do sujeito historicamente situado”. Isso
significa que a identidade não é algo rígido e engessado, mas sim, um processo de devir, onde
suas características vão se transformando constantemente acompanhando outras
38

transformações, como por exemplo, transformações culturais, sociais, políticas, econômicas,


científicas, entre outras.
Entendemos, então, a identidade como uma representação sociocultural, ou seja, os
aspectos culturais associados aos aspectos da vida social compõem a identidade dos sujeitos.
Nesta direção, entendemos também que a identidade docente/profissional se dá na prática
social da docência/profissão.
Se considerarmos o contexto cultural e social como determinantes para a relevância das
profissões, podemos dizer que:

Uma identidade profissional se constrói, pois, a partir da significação social da


profissão; da revisão constante dos significados sociais da profissão; da revisão das
tradições. Mas também da reafirmação de práticas consagradas culturalmente e que
permanecem significativas (PIMENTA, 1996, p. 76).

Como visto mais acima, há um dinamismo constante que rege o valor das profissões
conforme diferentes contextos, em diferentes momentos históricos e, nesta lógica, a profissão
do professor é regida pelas novas demandas sociais.
Neste sentido, conforme as demandas das classes dominantes, a identidade do professor
de Educação Física se confundiu ao longo de sua história com a identidade de outros
profissionais da Educação Física, como o agente de saúde, o militar, o treinador, o preparador
físico, o recreador, entre outras. Pode-se dizer que os sujeitos que estavam à frente da
Educação Física nas escolas possuíam uma identidade, mas não ligada à docência.

A Educação Física, no Brasil, vai desenvolver sua identidade (?), seus códigos, a
partir da relação que estabeleceu/estabelece com o meio ambiente que compreende,
fundamentalmente, a instituição escola, instituição militar e a instituição esporte
(BRACHT, 1997, p. 17).

Para Pimenta (1996), o profissional docente também é um sujeito, uma parte da


demanda social. Ele está inserido nela e também constitui a mesma sociedade para a qual
presta seu trabalho. Assim sendo, uma identidade docente [...]:

[...] Constrói-se, também, pelo significado que cada professor, enquanto ator e autor,
confere à atividade docente no seu cotidiano a partir de seus valores, de seu modo de
situar-se no mundo, de sua história de vida, de suas representações, de seus saberes,
de suas angústias e anseios, do sentido que tem em sua vida o ser professor. Assim
como a partir de sua rede de relações com outros professores, nas escolas, nos
sindicatos e em outros agrupamentos (PIMENTA, 1996, p. 76).
39

Tratando especificamente da constituição identitária do professor (ou do profissional) de


Educação Física podemos entender que:

[...] o que historicamente deu identidade à Educação Física e a seus profissionais foi
sua relação com o ensino, com a docência. [...] Tanto no âmbito da educação escolar
como fora, nos clubes, centros esportivos, centros comunitários, todos os lugares
onde a prática corporal e esportiva se fazia presente [...] (CASTELLANI FILHO,
2013, p. 14-15).

Percebemos, então, que o professor de Educação Física vivenciou um dinamismo muito


grande dentro das demandas sociais instituídas pelas políticas públicas de educação desde
quando ganhou espaço oficialmente dentro das escolas brasileiras com a disciplina
“Ginástica”.
Essa referência do profissional que atuava em ambiente escolar, porém dissociado às
questões pedagógicas se confundiu com a atuação do “educador físico” em outros ambientes
não escolares.
Esse cenário, por fim, favoreceu a constituição de identidades docentes multifacetadas,
pautadas no vasto campo de atuação da Educação Física fora da escola, distanciando o
profissional que ministrava aulas de Educação Física na escola, da figura de professor.
Para Valter Bracht, além da história da Educação Física ser marcada por mudanças de
direções conforme as jogadas políticas e econômicas, parte desta identidade multifacetada
também está relacionada com o fato de a Educação Física não possuir um único e exclusivo
objeto de estudo, o que, para muitos, não a torna uma ciência.

[...] um pouco da crise de identidade da Educação Física vem daí, do desejo de


tornar-se ciência, e da constatação da dependência de outras disciplinas científicas (a
Educação Física é “colonizada” epistemologicamente por outras disciplinas)
(BRACHT, 2007, p. 30-31).

Como visto, a Educação Física escolar no Brasil vive uma situação de angústia desde
que o Movimento Renovador considerou que era necessário ela passar por uma “crise” em
relação à sua constituição identitária.
Além desta história conturbada e da falta de um objeto e um objetivo de estudo mais
claro e evidente, o período atual da Educação Física recebe muita influência do paradigma
Pós-moderno que entende que a constituição de uma identidade ao sujeito se deve à
linguagem e ao poder do discurso.
40

Apoiados nesse referencial teórico, alguns estudos mais recentes da Educação Física
apresentam uma tendência em criticar a Ciência Moderna apontando limites que esta não seria
capaz de superar, como o entendimento de identidade.

O sujeito não é algo dado, uma propriedade da condição humana que preexiste ao
mundo social, como pensaram, guardadas as devidas epistemes, autores modernos,
como Descartes, Kant, Marx, Piaget, entre outros. Ele é constantemente subjetivado,
ou seja, o que importa é a relação estabelecida com os regimes de verdade que
insistem em fixar sua identidade (NEIRA; NUNES, 2009, p. 139).

No entanto, como vimos a pouco, Pimenta (1996) já se posicionava em relação à


identidade não ser um dado imutável. Já para o Materialismo Histórico-dialético, segundo
Karl Marx11, a concepção de sujeito é aquele em constante devir a partir de suas necessidades
existenciais. Seguindo esse mesmo paradigma, para Freire (1987), o ser humano é um ser
inconcluso.
Nesta direção, seguiremos a estudar as teorias do currículo com o olhar voltado ao
professor de Educação Física na tentativa de identificar se diferentes teorias curriculares, em
alguma medida, poderiam constituir diferentes identidades docentes, pois acreditamos que
“[...] no fundo das teorias do currículo está, pois, uma questão de „identidade‟ [...]” (SILVA,
2005, p. 15).

2.2. Currículo tradicional

O final do século XIX e início do século XX foi marcado pela consolidação de


diversas mudanças no mundo todo. Países colonizados passaram a se declarar independentes,
a escravidão passa a ser abolida em diversas localidades, a revolução industrial modifica
radicalmente o padrão de vida das pessoas fornecendo mais comodidades no dia-a-dia e
estimulando a migração da população rural para os grandes centros urbanos, visando fomentar
a mão de obra do setor e, o capitalismo passa a organizar a sociedade.
Para conseguir atender a demanda desse novo contexto de sociedade que se formava,
os meios de produção também precisaram se adaptar aumentando a quantidade de
trabalhadores e o tamanho das indústrias. Esse cenário gerou a necessidade de organizar os

11
Karl Marx (1818-1883), filósofo e sociólogo alemão preocupado com as adversas condições sociais dos
trabalhadores no auge do capitalismo industrial, integrou-se às lutas político-sindicais do proletariado, tendo
evoluído do liberalismo para posições socialistas, passando a criticar a filosofia idealista de Hegel e a defender o
materialismo filosófico. Além de sua militância política, contribuindo para a organização do proletariado, Marx
produziu uma significativa obra teórica nos campos da filosofia, da sociologia e da economia política
(SEVERINO, 2007).
41

trabalhadores para atuarem de forma sistematizada visando um propósito: o sucesso da


empresa.

Uma nova concepção de sociedade baseada em novas práticas e valores derivados


do mundo industrial começou a ser aceita e difundida. Cooperação e especialização,
ao invés de competição, configuraram os núcleos de uma nova ideologia. O sucesso
na vida profissional passou a requerer evidências de mérito na trajetória escolar. Ou
seja, novas credenciais, além do esforço e da ambição, tornaram-se necessárias para
se “chegar ao topo”.
A industrialização e a urbanização da sociedade, então em processo,
impossibilitaram a preservação do tipo de vida e da homogeneidade da comunidade
rural. Além disso, a presença dos imigrantes nas grandes metrópoles, com seus
diferentes costumes e condutas, acabou por ameaçar a cultura e os valores da classe
média americana, protestante, branca, habitante da cidade pequena. Como
consequência, fez-se necessário e urgente consolidar e promover um projeto
nacional comum, assim como restaurar a homogeneidade em desaparecimento e
ensinar às crianças dos imigrantes as crenças e os comportamentos dignos de serem
adotados (MOREIRA; SILVA, 2008, p. 10).

Esse cenário de mudanças e tensões em um curto espaço de tempo preocupavam as


elites econômicas e os governantes. Foi neste contexto que a escola passou a carregar a
responsabilidade de formar essa nova sociedade adaptada às mudanças do mundo.
Neste sentido, nas décadas de 1910 e 1920 os debates e os estudos sobre o currículo
procuram apontar qual seria o melhor percurso escolar visando formar esta nova pessoa para
esta nova sociedade.

Na escola, considerou-se o currículo como o instrumento por excelência do controle


social que se pretendia estabelecer. Coube, assim, à escola inculcar os valores, as
condutas e os hábitos “adequados”. Nesse mesmo momento, a preocupação com a
educação vocacional fez-se notar, evidenciando o propósito de ajustar a escola às
novas necessidades da economia. Viu-se como indispensável, em síntese, organizar
o currículo e conferir-lhe características de ordem, racionalidade e eficiência. Daí os
esforços de tantos educadores e teóricos e o surgimento de um novo campo de
estudos (MOREIRA; SILVA, 2008, p. 10-11).

Neste período, nos Estados Unidos, o livro The Curriculum (1918) de Bobbitt12, foi a
expressão máxima das ideias resultantes destas discussões:

[...] o currículo é visto como um processo de racionalização de resultados


educacionais, cuidadosa e rigorosamente especificados e medidos. O modelo
institucional dessa concepção de currículo é a fábrica. Sua inspiração “teórica” é a
“administração científica”, de Taylor. No modelo de currículo de Bobbitt, os
estudantes devem ser processados como um produto fabril. No discurso curricular de
Bobbitt, pois, o currículo é supostamente isso: a especificação precisa de objetivos,

12
John Franklin Bobbitt (1876-1956) foi professor de Administração da Educação na Universidade de Chicago.
É considerado um dos precursores dos estudos curriculares (LOPES; MACEDO, 2011).
42

procedimentos e métodos para a obtenção de resultados que possam ser


precisamente mensurados (SILVA, 2005, p. 12).

Também é pertinente mencionar a proposta curricular no livro The child and the
curriculum (1902) de Dewey13 “voltada para elaboração de um currículo que valorizasse os
interesses do aluno” (MOREIRA; SILVA, 2008, p. 11).

Dewey estava muito mais preocupado com a construção da democracia que com o
funcionamento da economia. Também em contraste com Bobbitt, ele achava
importante levar em consideração, no planejamento curricular, os interesses, as
experiências das crianças e jovens. Para Dewey, a educação não era tanto uma
preparação para a vida ocupacional adulta, como um local de vivência e prática
direta de princípios democráticos (SILVA, 2005, p. 23).

Nos Estados Unidos, embora houvesse diferentes propostas para o caminho a ser
percorrido na vida escolar, todas tinham “a preocupação com os processos de racionalização,
sistematização e controle da escola e do currículo” (MOREIRA; SILVA, 2008, p. 9).
Isso reflete que a escola deveria ser organizada conforme padrões já pré-determinados,
e que tudo o que deveria ser ensinado e como deveria ser ensinado, deveria seguir os
pressupostos estabelecidos pelos teóricos como uma ciência exata, aplicável e reproduzível
em qualquer contexto. No Brasil, a proposta de Bobbitt culminou naquilo que chamamos de
educação tecnicista ou tecnicismo e a proposta de Dewey embasou a escola nova ou
escolanovismo (MOREIRA; SILVA, 2008).
Para Saviani (2008), as teorias educacionais poderiam estar divididas em dois grupos
conforme o entendimento desses grupos em relação à equalização social ou a discriminação
social gerada pela própria escola. O primeiro grupo é denominado como teorias não-críticas.
O segundo grupo é denominado como teorias críticas, que poderiam ser críticas
reprodutivistas ou críticas não-reprodutivistas.
O currículo tradicional, que estamos abordando, se enquadra nas teorias não-críticas,
pois suas propostas de percurso escolar visam padronizar a sociedade, equalizar as diferenças
sociais através de uma educação autônoma, dita como igual a todos, como a pedagogia
tradicional, a escola nova e a pedagogia tecnicista (SAVIANI, 2008).
Ao se apoiar no discurso da “igualdade” e determinar que todos devem aprender os
mesmos conteúdos de uma mesma forma, a escola passa a não respeitar o contexto em que o
educando está inserido, caracterizando o que Freire (1987) chama de “invasão cultural”.

13
John Dewey (1859-1952), filósofo e pedagogo norte americano, criou o Laboratory School, um laboratório de
experimentações pedagógicas. Dewey é considerado um dos principais nomes do pragmatismo (LOPES;
MACEDO, 2011).
43

Desrespeitando as potencialidades do ser a que condiciona, a invasão cultural é a


penetração que fazem os invasores no contexto cultural dos invadidos, impondo a
estes sua visão do mundo, enquanto lhes freiam a criatividade, ao inibirem sua
expansão.
Neste sentido, a invasão cultural, indiscutivelmente alienante, realizada maciamente
ou não, é sempre uma violência ao ser da cultura invadida, que perde sua
originalidade ou se vê ameaçado de perdê-la.
Por isto é que, na invasão cultural, como de resto em todas as modalidades da ação
antidialógica, os invasores são os autores e os atores do processo, seu sujeito; os
invadidos, seus objetos. Os invasores modelam; os invadidos são modelados. Os
invasores optam; os invadidos seguem sua opção. Pelo menos é esta a expectativa
daqueles. Os invasores atuam; os invadidos têm a ilusão de que atuam, na atuação
dos invasores (FREIRE, 1987, p. 93-94).

Assim, a teoria curricular tradicional nega o educando como sujeito histórico e o


mundo como uma produção humana e, ao manter o foco no ato educativo e não no sujeito a
ser educado, acaba por se tornar desumanizante.
Para identificar de forma mais clara e sintetizada a base de um currículo tradicional,
Silva (2005) elencou uma série de palavras que, segundo o autor, caracterizam os princípios
deste currículo. As palavras “ensino, aprendizagem, avaliação, metodologia, didática,
organização, planejamento, eficiência e objetivos” (SILVA, 2005, p. 17) seriam aspectos
determinantes desta teoria.
Abaixo, apresentamos aspectos que consideramos caracterizar um currículo
tradicional:

Quadro 1 - Aspectos de um currículo tradicional


 A organização da escola é fragmentada e seriada como a organização fabril;
 A escola é fomentadora de mão de obra qualificada à economia;
 A escola é responsável pela adaptação dos sujeitos à sociedade;
 O cidadão formado pela escola deve seguir os padrões idealizados pela elite dominante;
 A meritocracia é o sistema que organiza o progresso da vida escolar do aluno;
 O currículo é a ferramenta para administrar a escola garantindo eficiência nos
resultados;
 O professor é a figura central do processo de ensino-aprendizagem;
 O percurso escolar deve ser padronizado, assim pode ser avaliado e mensurado;
 A ciência moderna na forma de conteúdos sistematizados é o único conhecimento
válido na escola, ignorando a realidade do educando e caracterizando a “invasão
cultural”.
Fonte: Organizado pelo pesquisador.
44

Esse modelo de escola, por assim dizer, preconiza a simples transferência de


conhecimentos visando à adaptação do sujeito ao mundo e, por isso, se configura como uma
“educação bancária”, a qual Paulo Freire denunciou e a qual nos aprofundaremos ao final
deste capítulo.
A Educação Física, como parte integrante da escola, também foi influenciada por esses
aspectos, o que culminou em propostas curriculares tradicionais da Educação Física, entre as
quais podemos citar o Currículo Ginástico, o Currículo Esportivista, o Currículo Psicomotor,
o Currículo Desenvolvimentista e o Currículo Saudável, conforme nos aprofundaremos na
sequência deste capítulo.

2.2.1. Os currículos tradicionais de Educação Física

Quando pensamos em um currículo tradicional na Educação Física escolar, devemos


considerar o contexto histórico deste componente, conforme já exposto no primeiro capítulo
desta pesquisa.
Os primeiros momentos da história da Educação Física escolar brasileira são marcados
pela forte influência dos conhecimentos oriundos da medicina e seu conteúdo eram as
ginásticas, cujo objetivo era formar um cidadão saudável, dócil, acrítico e pronto para
defender o país e ajudá-lo em seu desenvolvimento econômico, caracterizando o que
chamamos de Currículo Ginástico (NEIRA; NUNES, 2009).
Podemos identificar nestas fases que havia uma proposta de caminho a ser percorrido,
ou seja, havia um currículo. E como já citado anteriormente, este currículo não era neutro e
inocente (MOREIRA; SILVA, 2008), pelo contrário. Enquanto trabalhava os conteúdos
gímnicos de forma descontextualizada com a realidade social dos educandos, esse currículo
assumia o papel de aparelho ideológico do Estado brasileiro atuando como mecanismo
ideológico (ALTHUSSER, 1987).

A concepção curricular dominante nesses primórdios baseava-se na perspectiva


higienista. Nela, a preocupação central abrangia hábitos de higiene e saúde,
valorizando a disciplina, o desenvolvimento físico e moral, tomando como base
fundamental a prática de exercícios físicos. A fim de concretizar seus objetivos
formativos, a ginástica escolar deveria ser simples, de fácil execução, sem grandes
despesas e, por conta disso, dispensava a presença de um mestre com habilitação
especial. O governo fornecia manuais para que os professores aplicassem as
atividades nas aulas, visando garantir a educação dos corpos como forma de controle
social e afirmação de um modelo societário (NEIRA; NUNES, 2009, p. 65).
45

Conforme a população brasileira, no início do século XX, foi deixando o campo e o


modelo econômico agrário e passou, aos poucos, a ocupar os centros urbanos e o trabalho
fabril, a escola necessitou adequar seus objetivos e o caminho a ser percorrido para alcançá-
los, segundo o pensamento da elite dominante preocupada com a manutenção do status quo.
Neste sentido, mais pessoas passam a ter acesso à escola e, por consequência, à
Educação Física. O desenvolvimento do Brasil dependia de formar esses novos cidadãos para
que fossem capazes de cumprir com seu dever perante a economia do país.

Como decorrência, o ensino foi entendido como um conjunto de ações e métodos,


privilegiando a dimensão técnica do processo, fundamentada nos pressupostos
psicológicos, psicopedagógicos e experimentais, cientificamente validados na
experiência e constituídos por teorias que ignoravam o contexto sociopolítico e
histórico (NEIRA; NUNES, 2009, p. 69).

A partir da década de 1960, ao somar as ginásticas e as novas tendências pedagógicas


psicologizantes, considerando o novo cenário político (polarização entre o comunismo da
União Soviética e o capitalismo dos Estados Unidos) e a economia mundial neoliberal, que
exigiam pessoas fortes, criativas e competitivas, as políticas públicas de educação passam a
descobrir nos esportes um conteúdo capaz de formar esse novo cidadão competitivo e cabe à
Educação Física formá-lo. Essa fase ficou conhecida como Competitivista e sua proposta
curricular caracteriza o Currículo Esportivista (NEIRA; NUNES, 2009).

O ensino dos esportes, pautado por uma metodologia da divisão e repetição de


fundamentos, prevaleceu no Brasil por um longo tempo. A política educacional dos
anos da ditadura militar contribuiu para tamanha presença por causa de
preocupações com a ocupação útil do tempo livre, com a educação integral dos
alunos e com os valores morais de um mundo em crise. Em razão disso, fez-se a
apologia da técnica e da ciência em nome de um desenvolvimento aceito como
legítimo e desejado ao espírito nacional.
Dada a “essência” do regime autoritário daquele contexto, o currículo esportivo da
Educação Física foi concebido na perspectiva do controle social, confundindo-se
novamente com formação moral. Com base em prerrogativas oficiais (Decreto
69.450/71), o ensino esportivo desfrutou de exclusividade na Educação Física
escolar, por traduzir toda a simbologia de perseverança, luta e vitória. O programa,
então, potencializaria o desenvolvimento de homens e mulheres ativos e atuantes,
dinâmicos e versáteis, respeitadores de regras e princípios morais universais, prontos
para resolver problemas de todo o tipo e donos de uma enorme capacidade física e
psíquica para enfrentar desafios movidos pelo melhor espírito competitivo (NEIRA;
NUNES, 2009, p. 75).

Ao fim da ditadura militar no Brasil, em 1985, o currículo fundamentado nas


ginásticas e nos esportes deveria ser superado, pois isso representaria a possibilidade de
formar um novo cidadão, desvinculando dos legados negativos da história não democrática do
país até então.
46

Para os estudiosos da Educação Física na época, era necessária a mudança, um


recomeço. Mas como? Por onde? Diante da incerteza e da insegurança, a Educação Física
entrou em crise (MEDINA, 2007).
Porém, algumas respostas passaram a surgir e logo deram novas direções ao caminho a
ser percorrido. Podemos dividir as respostas encontradas em duas vertentes. A primeira
vertente encontrou respostas à crise apoiada num viés cientificista recorrendo às teorias
“biopsicologizantes”. Já a segunda vertente encontrou respostas à crise na área das ciências
humanas apoiada por teorias sociológicas.
Neste momento, trataremos somente da primeira vertente, pois essa corresponde à
proposta de um currículo tradicional como veremos a seguir. Já a segunda vertente será
abordada na próxima seção deste trabalho, pois consideramos que se trata de um currículo
crítico.
Dentre a vertente biopsicologizante podemos destacar duas propostas de currículo que
foram de grande influência para a Educação Física: o Currículo Psicomotor e o Currículo
Desenvolvimentista (NEIRA; NUNES, 2009).
O Currículo Psicomotor tem como seu maior representante o professor João Batista
Freire14 com sua obra Educação de corpo inteiro (1989). Esta proposta está fundamentada nas
obras a respeito da psicocinética e psicomotricidade do francês Jean LeBoulch15 e na teoria do
desenvolvimento cognitivo do suíço Jean Piaget16.
Para este currículo, a Educação Física objetiva o desenvolvimento cognitivo, social,
afetivo e motor dos educandos, ou seja, o desenvolvimento global e integral dos indivíduos,
através das experiências vividas nos jogos e em outras atividades lúdicas.

Os professores devem estar permanentemente preocupados com as habilidades


motoras. Devem certificar-se de que seus alunos são capazes de correr, saltar, girar,
rolar, trepar, lutar, lançar e pegar objetos, equilibrar-se etc. Porém, não devem
esquecer-se de que essas habilidades são a expressão de um ser humano, de um
organismo integrado (FREIRE, J. B; 1989, p. 76).

14
João Batista Freire é professor aposentado pela Unicamp e uma das principais referências do Currículo
psicomotor da Educação Física.
15
Jean LeBoulch (1924-2001), médico e psicólogo francês, criou o método da psicocinética que propõe uma
ciência do movimento humano aplicada ao desenvolvimento humano (SILVA, 2015).
16
Jean Piaget (1896-1980) biólogo, psicólogo e epistemólogo suíço que pesquisou o desenvolvimento cognitivo
de crianças (LOPES; MACEDO, 2011).
47

Acredita-se, sob esta ótica, que o ser humano possui estágios de desenvolvimento
padronizados, comuns a todos os indivíduos, permitindo o planejamento de atividades
também padronizadas dentro desta lógica, isto é, independentemente da realidade a qual o
educando está inserido. Desta forma, a realidade social do aluno só interfere no tempo
necessário para que esse atinja determinado estágio de desenvolvimento. É então necessário
“equalizar” o desenvolvimento dos indivíduos através das vivências para que todos possam se
adaptar à sociedade. “A escola, entre outras instituições, cumpre o papel de formar crianças
para exercerem funções na sociedade” (FREIRE, J. B; 1989, p. 12).
Fica claro o objetivo da escola e da Educação Física: “formar crianças para exercerem
funções na sociedade”. Neste sentido, a função da escola é fomentar a demanda da sociedade
e não transformar a sociedade. A Educação Física colabora com a missão da escola ao
fomentar o desenvolvimento integral do educando para que ele esteja apto para cumprir com
sua função social, inclusive dentro da própria escola.

Com a intenção de desatrelar a Educação Física da perspectiva esportiva


intimamente ligada ao período ditatorial, o currículo da disciplina no seu enfoque
globalizante mostrava-se atento à interdependência dos domínios do comportamento
(psicomotor, afetivo-social e cognitivo). Assim, a psicomotricidade propunha um
currículo formador de estruturas cognitivas para as tarefas educacionais (e da vida),
isto é, prometia a construção de uma personalidade equilibrada e favorecedora do
sucesso escolar. Nos seus primórdios, o currículo globalizante pautava-se por uma
concepção de aprendizagem empirista, apoiada na execução de exercícios e tarefas
motoras propostas com base em avaliações diagnósticas. Já nos anos 1980, sob as
influências da psicologia cognitivista, o currículo globalizante substituiu
gradativamente a proposição de exercícios que originalmente o caracterizavam pela
adoção de jogos e situações-problema como estratégias de ensino, que passaram a
predominar, com especial destaque, nas propostas do componente para a Educação
Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental. Entre seus objetivos, sobressaía a
capacitação dos estudantes para atuar no mundo de forma eficaz, por meio de um
instrumental baseado no desenvolvimento das funções psicomotoras de base,
sinteticamente, o esquema corporal e a orientação espaço-temporal (NEIRA;
NUNES, 2009, p. 77-78).

O Currículo Psicomotor possibilita que a Educação Física assuma uma proposta


pedagógica juntamente com outras disciplinas escolares. Porém, é justamente desta forma de
integrar pedagogicamente a Educação Física que surgem às críticas à proposta.

O texto defende que na escola deva predominar o jogo educativo, adotado como
recurso pedagógico para o desenvolvimento de comportamentos padronizados:
habilidades motoras e cognitivas, noções de tempo e espaço, manipulação fina de
objetos e o desenvolvimento de lógicas de seriação, conservação, classificação,
cooperação e respeito às regras.
[...] As aulas de Educação Física voltam-se ao aprimoramento da cognição,
motricidade, socialização e afetividade, contribuindo para a aprendizagem de
conteúdos e valores prezados por outras disciplinas (BONETTO et al., 2017, p. 03).
48

A crítica ao Currículo Psicomotor está fundamentada na possibilidade de tornar a


Educação Física um mero instrumento para outras disciplinas escolares sem um valor
pedagógico em si própria.
Em um cenário próximo, encontramos o Currículo Desenvolvimentista representado
principalmente pela obra do professor Go Tani17 com a obra Educação Física escolar:
fundamentos de uma abordagem desenvolvimentista (1988).
Esta proposta curricular busca o desenvolvimento motor da criança, não por um ideal
de performance, mas sim por acreditar que há um processo de maturação motora que deve ser
estimulado nos alunos.
Os alunos, então, realizam sequências de movimentos que vão progredindo
gradualmente dos movimentos mais simples para os mais complexos e cabe ao professor
proporcionar uma gama dos mais variados movimentos através das atividades propostas
visando o desenvolvimento global dos alunos.
O Currículo Desenvolvimentista está também fundamentado, assim como o Currículo
Psicomotor, na teoria do desenvolvimento cognitivo de Jean Piaget, porém atrelado à teoria
de desenvolvimento motor do norte-americano David Gallahue18.
Esse referencial colabora para que esta proposta enfatize o refinamento dos
movimentos como seu principal objetivo. Parte do princípio que todos os indivíduos passam
por estágios pré-estabelecidos de maturação motora e que o movimento humano vai sendo
aperfeiçoado e melhor aplicado no dia-a-dia, conforme o estágio de desenvolvimento do
indivíduo.

A Educação Física [...] deve proporcionar às crianças oportunidades que


possibilitem o desenvolvimento hierárquico do seu comportamento motor. Este
desenvolvimento hierárquico deve, através da interação entre o aumento da
diversificação e complexidade, possibilitar a formação de estruturas cada vez mais
organizadas e complexas (TANI et al., 1988, p. 89).

17
Go Tani é professor titular da Escola de Educação Física e Esporte da USP e é considerado uma das principais
referências na proposta curricular desenvolvimentista da Educação Física.
18
David Gallahue, norte-americano, Professor Emérito na Universidade de Indiana, é reconhecido por sua teoria
do desenvolvimento motor em estágios, onde todo individuo segue um padrão de amadurecimento motor
(GALLAHUE; OZMUN, 2001).
49

O desenvolvimento humano, então, é entendido como um processo que se inicia


obrigatoriamente pelo movimento. Assim, os aspectos cognitivos, afetivos e sociais estariam a
depender das vivências motoras do indivíduo.

Essa perspectiva biopsicológica alentava para uma organização dos conteúdos de


ensino com base nas fases do desenvolvimento humano e nas características do
comportamento motor. Defendia a ideia de que o movimento é o principal meio e
fim da Educação Física. O currículo desenvolvimentista do componente visava à
conquista de habilidades motoras do nível mais alto, isto é, especializado, apoiando-
se nas aprendizagens dos âmbitos cognitivo e afetivo-social. Em razão disso, como
sustentação para as atividades de ensino, foi amplamente adotada como fundamento
uma taxonomia para o desenvolvimento motor, ou seja, o currículo escolar seria
elaborado tomando como referência principal a classificação hierárquica dos
movimentos dos seres humanos durante seu ciclo de vida, desde a fase pré-natal até
a fase motora especializada. Esse currículo pretendia, então, possibilitar a todos os
cidadãos o desenvolvimento de habilidades motoras de alto nível; acreditava-se que
o desenvolvimento motor agregaria também benefícios aos demais domínios do
comportamento (NEIRA; NUNES, 2009, p. 78).

As críticas à proposta curricular desenvolvimentista se concentram, então, no fato


desta proposta considerar o desenvolvimento humano como sendo um processo padronizado
que se dá por meio das diferentes vivências motoras e, desta forma, ignorando a totalidade das
vivências dos sujeitos, como sua história, sua cultura e sua situação social, política e
econômica.
Recentemente, retomando os princípios do Currículo Ginástico em relação à formação
de um sujeito saudável, há uma proposta curricular que mantém a Educação Física em sua
matriz biológica ao buscar na Fisiologia e Anatomia o conteúdo de ensino objetivando
abordar questões relacionadas à saúde, saúde pública e qualidade de vida através das
atividades físicas, chamada de Currículo Saudável da Educação Física (NEIRA; NUNES,
2009).
O Currículo Saudável traduz os interesses de uma sociedade neoliberal que conduz os
sujeitos a consumirem o “cuidado individual com a saúde” e reforçam o “individualismo e o
discurso do acúmulo de benefícios como resultado do esforço pessoal” (NEIRA; NUNES,
2009, p. 86).
É possível, então, analisarmos se as propostas curriculares tradicionais de Educação
Física aqui apresentadas se enquadram nos aspectos que caracterizam uma proposta curricular
tradicional, conforme exposto anteriormente.
Abaixo, no Quadro 2, apresentamos aspectos de um currículo tradicional
contemplados nos currículos tradicionais de Educação Física:
50

Quadro 2 - Aspectos de um currículo tradicional contemplados nos currículos tradicionais de


Educação Física

Currículo

Esportivista

Psicomotor

vimentista
Desenvol-
Ginástico

Saudável
Aspectos de um currículo tradicional
A organização da escola é fragmentada e seriada como a
X X X X X
organização fabril
A escola é fomentadora de mão de obra qualificada à
X X X X X
economia
A escola é responsável pela adaptação dos sujeitos à
X X X X X
sociedade
O cidadão formado pela escola deve seguir os padrões
X X X X X
idealizados pela elite dominante
A meritocracia é o sistema que organiza o progresso da
X X X X X
vida escolar do aluno
O currículo é a ferramenta para administrar a escola
X X X X X
garantindo eficiência nos resultados
O professor é a figura central do processo de ensino-
X X --- --- X
aprendizagem
O percurso escolar deve ser padronizado, assim pode ser
X X X X X
avaliado e mensurado
A ciência moderna [ou o esporte moderno] na forma de
conteúdos sistematizados é o único conhecimento válido
X X --- --- X
na escola, ignorando a realidade do educando e
caracterizando a “invasão cultural”
LEGENDA: X = aspecto contemplado / --- = aspecto não contemplado
Fonte: Organizado pelo pesquisador.

No quadro acima, podemos entender que todas as propostas curriculares tradicionais


de Educação Física organizam, em alguma medida, a escola de forma fragmentada e seriada
como a organização fabril, pois propõe que os conteúdos sejam igualmente organizados de
forma fragmentada e seriada, impossibilitando que educador e educando tenha uma visão de
totalização da realidade.
51

Da mesma maneira, todas as propostas apresentadas se preocupam em formar os


alunos para ocuparem um papel na sociedade e colaborar no desenvolvimento econômico do
país.
Desta forma, cabe às crianças e adolescentes, por meio do processo educativo, se
adaptarem a um mundo já estabelecido, cujos padrões a serem alcançados foram determinados
por uma minoria detentora do poder político e econômico que se utiliza do discurso da
meritocracia para justificar as contradições sociais presentes na realidade concreta. Essa
padronização está presente em todo o percurso escolar possibilitando que o ensino seja
avaliado e mensurado dentro da lógica meritocrática.
Assim, o currículo assume a função de organizar a escola garantindo eficiência nos
resultados dentro e fora dela, pois está implícita no currículo a manutenção do status quo, isto
é, em alguma medida, o currículo tradicional também organiza a sociedade fora da escola.
Por fim, os aspectos que entendem que o professor é a figura central do processo de
ensino-aprendizagem e que a ciência moderna na forma de conteúdos sistematizados é o único
conhecimento válido na escola se manifestam somente nos Currículos Ginástico, Esportivista
e Saudável da Educação Física.
Essas propostas valorizam os métodos ginásticos europeus, os esportes modernos
europeus e norte-americanos, assim como o padrão de saúde, beleza e estética impostos pelas
ciências que fundamentam o universo fitness, como a Medicina, a Fisiologia, a Cinesiologia, a
Nutrologia, entre outros. Desta forma, ao valorizar esses conteúdos, o professor passa a ser o
único detentor do conhecimento e, portanto, figura central no processo educativo, uma vez
que o conhecimento trazido pelo aluno não possui “rigor científico”.
Já os Currículos Psicomotor e Desenvolvimentista apresentam uma centralidade maior
nos alunos, pois o desenvolvimento global (cognitivo, socioafetivo e motor) dos mesmos é
determinante para o planejamento das ações do professor. Essas duas propostas também se
distanciam dos conteúdos tradicionais clássicos da Educação Física permitindo que outros
saberes componham o conteúdo escolar, como jogos e brincadeiras.
Ainda assim, em comum, todas essas propostas curriculares para a Educação Física
(Currículo Ginástico, Currículo Esportivista, Currículo Psicomotor, Currículo
Desenvolvimentista e Currículo Saudável) se enquadram, segundo Paulo Freire, como uma
“educação bancária”, pois visam transferir um conhecimento já acabado para os alunos,
ignorando sua realidade como ponto relevante ao processo de ensino-aprendizagem e
consideram a educação como um elemento neutro, sem relação direta com aspectos sociais,
52

culturais, econômicos e políticos, impondo ao educando uma única possibilidade: se adaptar


ao mundo que já estava dado e não suscetível à transformações.

2.2.1.1. A identidade docente, segundo os currículos tradicionais de Educação Física

Dentro das propostas curriculares tradicionais da Educação Física citadas


anteriormente (Currículo Ginástico, Currículo Esportivista, Currículo Psicomotor e
Currículo Desenvolvimentista e Currículo Saudável), a identidade do professor sofre
pequenas mudanças, mas sempre o mantém como detentor do saber e preocupado com
fundamentos científicos alienando-o da vida social.

[...] a Educação Física estava aprisionada, primeiro por uma cadeia médica, tal
forma que o professor não se percebia como professor e sim, como agente de saúde.
[...] Uma segunda cadeia que aprisionava a Educação Física era a cadeia militar. O
professor não se percebia professor, ele se percebia um sargento, um militar [...] E
uma terceira cadeia que se aproxima dessas duas é a cadeia esportiva. O professor
não se vê como professor, ele se vê como um técnico esportivo. [...] Digamos que a
dimensão cultural não era tratada, e isso prevalece dessa maneira até a década de 80
na sociedade brasileira (CASTELLANI FILHO, 2013).

Todas as mudanças nestes currículos tradicionais da Educação Física culminaram na


constituição de diversas identidades ao professor, de tal maneira que, como já visto
anteriormente nesta pesquisa, ele acabou assumindo diferentes identidades profissionais
ligadas à Educação Física escolar, mas não necessariamente uma identidade docente.
Podemos dizer, então, que a identidade docente estava vinculada à identidade de
profissionais de saúde e aos militares, uma vez que competia ao professor de Educação Física
garantir um corpo forte, saudável e disciplinado por meio dos exercícios físicos
sistematizados, pois o primeiro momento da Educação Física, de caráter alienado e alienante,
fundamentado no Currículo Ginástico, buscava estabelecer sua base teórica nos
conhecimentos médicos impostos através do autoritarismo militar, o que, segundo Crisório
(2003), apoiado em Michel Foucault19, ressignificava a identidade docente em Educação
Física.

Esta intervenção da ciência, representada pela fisiologia, não ficou sem efeito sobre
a identidade da educação física, seus fundamentos, seus fins, seus conteúdos e,

19
Michel Foucault (1926-1984) foi um filósofo francês, professor da cátedra de História dos Sistemas de
Pensamento no College de France. Seu trabalho se desenvolveu em torno de uma arqueologia do saber
filosófico, da experiência literária e da análise do discurso, mas também se concentrou nas relações entre poder e
governamentalidade e nas práticas de subjetivação (LOPES; MACEDO, 2011).
53

também, seus professores. Esse processo, primeiro de normalização e mais tarde, de


medicalização “indefinida” (Foucault, 1996, p. 75), ressignificou a identidade da
disciplina, incluindo-a indefinidamente na ordem médica (CRISÓRIO, 2003, p. 36).

Mais tarde, ainda apoiada no Currículo Ginástico, a Educação Física buscou adaptar
um novo modelo de aula visando normatizar o tempo ocioso dos brasileiros, além de objetivar
sua saúde e seu condicionamento físico. Assim, elementos da cultura corporal, como as
danças, os jogos e os esportes se tornam parte da Educação Física escolar.
É a partir desse contexto que o esporte passa a ganhar destaque como conteúdo da
Educação Física escolar, caracterizando, mais tarde, um período de incentivo à competição
marcado pelo Currículo Esportivista, que deu à Educação Física um caráter técnico, dentro do
contexto dos desportos. Assim, o professor assume a identidade de um treinador de atletas,
mesmo dentro das escolas, utilizando sua experiência em equipes esportivas, academias,
clubes, entre outros, visando conseguir melhor desempenho esportivo de seus alunos.
Por fim, os Currículos Psicomotor e Desenvolvimentista, que, como visto
anteriormente, foram uma tentativa de resposta “biopsicologizante” à crise da Educação
Física, deram ao docente uma identidade de professor, porém sem um objeto de ensino
próprio, ou seja, segundo Nunes e Rúbio (2008), a Educação Física, nesta concepção, somente
visava à prevenção das dificuldades escolares em outras disciplinas.
No entanto, este cenário representou um avanço na constituição identitária para o
docente em Educação Física, pois pode-se dizer que é o primeiro momento em que surge uma
identidade de professor.

O discurso e prática da Educação Física sob a influência da Psicomotricidade,


coloca de modo nunca antes visto a necessidade do professor de Educação Física
sentir-se um professor com responsabilidades escolares, pedagógicas. Busca
desatrelar sua atuação escolar dos cânones da instituição desportiva, valorizando o
processo de aprendizagem e não mais a execução de um gesto técnico isolado.
Muito bem, se de um lado isto foi extremamente benéfico, de um outro foi o início
de um abandono do que era específico da Educação Física, como se o que ela
ensinasse de específico fosse, em si, maléfico ao desenvolvimento dos alunos e a sua
inserção na sociedade (SOARES, 1996, p. 10).

Neste entendimento, a Educação Física não possui um objeto de ensino próprio e,


tampouco, possui relação com a vida social. Ela simplesmente deve fomentar as necessidades
padronizadas de desenvolvimento global dos alunos através de jogos e brincadeiras para que
esses possam estar aptos a aprender os conteúdos das demais disciplinas curriculares
presentes no percurso escolar. É como se a Educação Física estivesse a serviço das demais
disciplinas.
54

O uso de jogos e brincadeiras sem vínculo a um objeto de ensino próprio da educação


Física colaborou também para a constituição da identidade do professor recreador, onde a
Educação Física parece ser somente um momento de lazer para os alunos, uma espécie de
extensão do horário de recreio e o professor fomenta essa ideia ao objetivar em suas aulas
somente a diversão das crianças
Por fim, o Currículo Saudável retoma alguns princípios dos primórdios da Educação
Física escolar, como a preocupação com a saúde e o condicionamento físico, porém, agora
assumindo uma identidade profissional de personal training ou preparador físico, ou seja,
uma identidade profissional oriunda das academias de ginásticas e clubes, orientando os
alunos sobre a anatomia e fisiologia humana através de exercícios orientados e, desta forma,
enxergando os sujeitos como corpos em busca de saúde, alienados às contradições presentes
na realidade social.
Diante deste contexto, a identidade docente (ou em alguns casos, a identidade
profissional), segundo os currículos tradicionais de Educação Física pode ser sintetizada desta
forma:

Quadro 3 - A identidade docente constituída pelos currículos tradicionais de Educação Física

Principais Identidade docente


características dadas (ou profissional)
pelo currículo constituída

Condicionamento
Currículo Ginástico Agente de saúde / Militar
físico e disciplina

Currículo Esportivista Performance esportiva Treinador / Técnico

Desenvolvimento
Currículo Psicomotor global através de Professor / Recreador
atividade lúdicas
Desenvolvimento
Currículo Desenvolvimentista global através de Professor / Recreador
atividade lúdicas

Preparador físico /
Currículo Saudável Cuidado com a saúde
Personal training
Fonte: Organizado pelo pesquisador.
55

A partir das constatações em relação às diferentes propostas curriculares tradicionais


da Educação Física e às suas respectivas identidades docentes constituídas, consideramos
pertinente sintetizar estas informações em um único quadro, conforme apresentado abaixo:

Quadro 4 - Síntese das propostas curriculares tradicionais da Educação Física

MOMENTO DA IDENTIDADE
TEORIA TENDÊNCIA PRINCIPAIS BASE FILOSÓFICA/ PRINCIPAIS
EDUCAÇÃO CURRÍCULO DOCENTE
CURRICULAR PEDAGÓGICA REFERÊNCIAS EPISTEMOLÓGICA CARACTERÍSTICAS
FÍSICA CONSTITUÍDA

Condicionamento físico e
Ginástico Tradicional Tecnicista ---* Medicina, Biologia
disciplina

Condicionamento físico e
Ginástico Tradicional Tecnicista ---* Medicina, Biologia
Primeiro disciplina Agente de
momento: saúde / Militar
A Educação Condicionamento físico e
Física alienada e disciplina (olhar voltado
alienante Ginástico Tradicional Escolanovista ---* Medicina, Biologia
para o aluno e para a
normatização do lazer)

Medicina, Biologia, Treinador /


Esportivista Tradicional Tecnicista ---* Performance esportiva
Fisiologia Técnico

Desenvolvimento global
João Batista Professor /
Psicomotor Tradicional Tecnicista Psicologia através de atividades
Freire (1989) Recreador
lúdicas
Segundo
momento: Desenvolvimento global
Desenvolvi- Professor /
A Educação Tradicional Tecnicista Go Tani (1988) Psicologia através de atividades
mentista Recreador
Física em busca lúdicas
da autocrítica
Preparador
Medicina, Biologia, físico /
Saudável Tradicional Tecnicista ---* Cuidado com a saúde
Fisiologia Personal
training
**Currículos que não possuem um único autor como seu principal propositor.
Fonte: Organizado pelo pesquisador.

Como visto, foi a crítica à grande predominância de currículos tradicionais não-


críticos e à figura do professor reprodutor, transferidor de conhecimento e alienado,
assumindo outros papéis profissionais dentro da escola, que estimularam os estudiosos da
Educação Física a partir da década de 1980 a buscarem respostas à crise, fundamentados nas
ciências humanas e sociais, caracterizando, segundo Bratch (1999), o segundo momento de
tentativa de superação da crise de identidade da Educação Física.
Diante deste cenário, nasce, então, a busca por propostas curriculares para a Educação
Física que permitissem a superação dos currículos tradicionais e é neste movimento que a
Educação Física se aproxima das teorias curriculares críticas.
56

2.3. Currículo crítico

A teoria curricular crítica surge das contradições e limites que podem ser identificadas
na teoria curricular tradicional. Então, pode-se dizer que, num primeiro momento, a crítica é
direcionada, sobretudo, ao currículo tradicional.
Considerando que as teorias não existem separadas da realidade, fatores históricos vão
colaborar com o surgimento do currículo crítico e, desta forma, é pertinente compreender
mais uma vez o cenário de mudança pelo qual passava o mundo, para nos dar a noção de
totalização imprescindível à compreensão do nosso objeto.
Segundo Nobre (2011) o termo “Teoria Crítica” surge pela primeira vez em 1937
como um conceito de Max Horkheimer20 num de seus estudos de base marxista no Instituto
de Pesquisas Sociais21 contrapondo a “Teoria Tradicional” que, segundo Horkheimer era uma
concepção moderna de ciência que produzia conhecimento num contexto social capitalista e
que almejava explicar fenômenos por uma teoria neutra que estabelecesse um padrão de
previsão dos fenômenos, inclusive dos sociais (positivismo).
É importante entendermos que, além da oposição à Teoria Tradicional, a gênese da
concepção crítica de teoria se encontra num contexto específico, onde a “Teoria Crítica está
ligada a um Instituto, a uma revista, a um pensador que estava no centro de ambos
(Horkheimer) e a um período histórico marcado pelo nazismo (1933-45), pelo stalinismo
(1924-53) e pela Segunda Guerra Mundial (1939-45)” (NOBRE, 2011, p. 13).
A proposta de Horkheimer de ampliar as pesquisas marxistas sob uma perspectiva
menos ortodoxa colaborou para estabelecer uma linha teórico-filosófica atualmente
denominada neomarxismo.
Além de Horkheimer, a contribuição de outros estudiosos como Theodoro Adorno22,
Herbert Marcuse23, entre outros, deram destaque ao Instituto de Pesquisas Sociais que,
posteriormente, seria mais conhecido como Escola de Frankfurt.

20
Max Horkheimer (1895-1973) foi um filósofo e sociólogo alemão, professor emérito da Universidade de
Frankfurt (LOPES; MACEDO, 2011). Horkheimer, além de trazer pela primeira vez o conceito de Teoria
Crítica, também presidiu o Instituto de Pesquisa Social de 1930 a 1958 (NOBRE, 2011).
21
O Instituto de Pesquisas Sociais oficialmente criado em Frankfurt, na Alemanha em fevereiro de 1923, foi o
local inicial da Escola de Frankfurt (GIROUX, 1983).
22
Theodoro Adorno (1903-1969) é considerado um dos principais representantes da Escola de Frankfurt, o
filósofo e sociólogo alemão fundamentou sua filosofia na perspectiva da dialética. De sua vasta obra, destaca-se
a Dialética do esclarecimento, escrita com Horkheimer, uma crítica da razão instrumental, fundada em uma
interpretação negativa do Iluminismo, da civilização técnica e da lógica cultural do sistema capitalista (LOPES;
MACEDO, 2011).
57

A leitura que Horkheimer faz da obra de Marx acaba nos revelando dois princípios
considerados fundamentais para a Teoria Crítica: a orientação para emancipação e o
comportamento crítico (NOBRE, 2011).
Para Nobre (2011) o comportamento crítico é o ato cognoscente reflexivo e que, por
isso, se sabe histórico e se sabe inserido em uma totalidade. Esse comportamento crítico tem
sua origem na orientação para emancipação da dominação vigente, entendendo que o
desvelamento da realidade concreta permitirá compreender a sociedade possibilitando superar
as contradições nela encontradas.
É evidente a preocupação dos estudos da Escola de Frankfurt para que a Teoria Crítica
não fosse uma abstração dicotomizada da realidade concreta. Para os teóricos críticos, a
produção de conhecimento é um dos elementos que contribuem na produção da realidade ao
mesmo tempo em que por ela é produzida. Logo, seus princípios de inspiração marxista
chegam às discussões sobre o currículo escolar.

É central do trabalho da Escola de Frankfurt o exame do grau em que a lógica da


dominação tem se estabelecido à esfera da vida cotidiana, da esfera pública e do
próprio modo de produção. O que a teoria crítica fornece aos teóricos educacionais é
um modo de crítica e uma linguagem de oposição que estende o conceito de político
não apenas às relações sociais mundanas, mas às próprias sensibilidades e
necessidades que formam a personalidade e a “psyche”. As contribuições dos
teóricos críticos são a sua recusa de abandonar a dialética da ação e da estrutura (isto
é, a natureza aberta da história) e o desenvolvimento de perspectivas teóricas que
tratam com seriedade o argumento de que a história pode ser mudada, que o
potencial para uma transformação radical existe (GIROUX, 1986, p. 19).

A Teoria Crítica também influenciou e sofreu forte influência dos diversos


movimentos populares que explodiram a partir da década de 1960, como:

[...] os movimentos de independência das antigas colônias europeias; os protestos


estudantis na França e em vários outros países; a continuação do movimento dos
direitos civis nos Estados Unidos; os protestos contra a guerra do Vietnã; os
movimentos de contracultura; o movimento feminista; liberação sexual; as lutas
contra a ditadura militar no Brasil [...] (SILVA, 2005, p. 29).

Diante das novas transformações do mundo motivadas pela repressão provocada pela
sociedade industrial, urbana e capitalista, é natural que mais uma vez a escola assumisse um

23
Herbert Marcuse (1898-1979) foi um renomado sociólogo e filósofo alemão. Em 1933, Marcuse entrou para o
Instituto de Pesquisas Sociais. Suas obras contribuíram para difundir seu pensamento revolucionário e
questionador, de comprometimento político, das questões que envolvem o "racionalismo da sociedade moderna"
(LOPES; MACEDO, 2011).
58

papel de responsabilidade perante a perspectiva de mudança e, nesse caso, seria necessário


começar a mudança da escola revendo o conceito de currículo.
Para a Teoria Crítica, o currículo tradicional não dava conta das contradições que
ressaltavam aos olhos da sociedade, pois essa teoria recusava “a reconhecer como
problemática as relações entre as escolas, a sociedade mais ampla e as questões de poder,
dominação e liberação” (GIROUX, 1986, p. 17-18).
A escola não poderia ser neutra, meramente científica, onde as pessoas que fazem
coisas iguais conseguem resultados iguais e onde toda influência positivista que poderíamos
encontrar na escola não dialogava com a realidade, ou seja, ficava cada vez mais evidente que
a escola fazia parte da realidade e, logo, era influenciada por ela, na mesma medida, que a
influenciava.
Autores como Paulo Freire, Louis Althusser24, Pierre Bourdieu25, Jean-Claude
Passeron26, Christian Baudelot27, Roger Establet28, Michael Young29, Michael Apple30 e
William Pinar31, entre outros, foram de extrema importância nas denúncias a respeito dos
limites do currículo tradicional e esses mesmos autores tiveram grande influência nas
discussões sobre um currículo crítico (SILVA, 2005; SAVIANI, 2008; 2011; LOPES;
MACEDO, 2011).
Vale ressaltar que alguns pesquisadores importantes como Althusser, Bourdieu,
Passeron, Baudelot, e Establet não ultrapassam o limite das denúncias no percurso escolar
24
Louis Althusser (1918-1990) foi um estudioso francês do marxismo. É reconhecido, principalmente, pela sua
obra Aparelhos ideológicos de Estado (1970) (LOPES; MACEDO, 2011).
25
Pierre Bourdieu (1930-2002), sociólogo francês que desenvolveu a teoria da reprodução social, onde defendeu
a existência de uma relação entre classe social e a carreira escolar e chamou a atenção sobre o que chamou de
violência simbólica (LOPES; MACEDO, 2011).
26
Jean-Claude Passeron foi um professor de sociologia francês conhecido por sua parceria com Pierre Bourdieu
na obra La reproduction, publicada em 1970 (LOPES; MACEDO, 2011).
27
Christian Baudelot é professor e sociólogo francês que ficou conhecido através de seu livro, considerado um
clássico, intitulado A escola capitalista na França, escrito em coautoria com Roger Establet (LOPES;
MACEDO, 2011).
28
Roger Establet é um especialista em educação e sociólogo francês. Foi aluno de Louis Althusser. Desde 1970,
publica frequentemente em colaboração com seu colega Christian Baudelot (LOPES; MACEDO, 2011).
29
Michael Young é um sociólogo da educação britânico fundador da Nova Sociologia da Educação (LOPES;
MACEDO, 2011).
30
Michael Apple, americano, é professor permanente da Universidade de Wisconsin e autor de algumas das
obras mais importantes sobre currículo nas últimas décadas (LOPES; MACEDO, 2011).
31
William Pinar é considerado um dos grandes autores do processo de reconceptualização do currículo nos
Estados Unidos (LOPES; MACEDO, 2011).
59

tradicional, isto é, suas críticas compreendem a escola como uma instituição que não é neutra
à sociedade servindo como aparelho de manipulação. Na teoria propostas por estes autores a
escola não pode ser transformada, ou seja, não há anúncios e, “como na análise que
desenvolvem chegam invariavelmente à conclusão de que a função própria da educação
consiste na reprodução da sociedade em que ela se insere, bem merecem a denominação de
“teorias crítico-reprodutivistas”” (SAVIANI, 2008, p. 13).
Assim, é necessário entender que a crítica à teoria tradicional não pode estar limitada
em desvelar as contradições de tal teoria, pois se faz necessário buscar proposições de
superação destas contradições, resgatando os princípios evidenciados por Horkheimer - a
orientação para emancipação e o comportamento crítico.
Portanto, uma teoria curricular que seja crítica32 não pode entender a escola como
mera reprodutora da sociedade. Isto seria incoerente para uma teoria inspirada nas obras de
Marx, uma vez que, para o Materialismo Histórico-dialético, o ser humano e o mundo são
produções históricas oriundos da relação dialética que existem entre eles, ou seja, o ser
humano e o mundo estão em constante processo de transformação influenciados um pelo
outro.
Nesse ponto, não podemos deixar de relacionar a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt
com a Educação Libertadora de Paulo Freire, pois ambas entendem que a formação do ser
humano (humanização) deve se dar em uma perspectiva crítica com vistas à emancipação.

A conscientização, como atitude crítica dos homens na história, não terminará


jamais. [...] a visão crítica e dinâmica do mundo, permite “desvelar” a realidade,
desmascarar sua mitificação e chegar à plena realização do trabalho humano: a
transformação permanente da realidade para a libertação dos homens (FREIRE,
1979, p. 16-17).

Segundo Moreira e Silva (2008), para debater o currículo escolar numa perspectiva
crítica é necessário abordar temas e questões que continuam centrais para a Teoria Crítica.
Esses temas centrais foram organizados em três eixos pelos autores: ideologia, cultura e
poder. Ao mesmo tempo devemos considerar um pano de fundo comum aos três eixos: a
construção histórica na qual a sociedade está inserida.
A relação entre ideologia e currículo foi denunciada por Louis Althusser em seu
ensaio A ideologia e os aparelhos ideológicos de Estado (1970). Na obra, o autor
“argumentava que a educação constituiria um dos principais dispositivos através do qual a
32
É válido ressaltar que a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt encontra sua base teórica no marxismo, porém,
depois de Horkheimer, muitos autores críticos “terão por referência fundamental não a obra de Marx
diretamente, mas os escritos de Horkheimer” (NOBRE, 2011, p. 25).
60

classe dominante transmitiria suas ideias sobre o mundo social, garantindo assim a reprodução
da estrutura social existente” (MOREIRA; SILVA, 2008, p. 21). Vale ressaltar que a palavra
ideologia aqui é utilizada no sentido marxista, ou seja, representa a ideia de manipulação da
realidade.
Já a cultura é um eixo central para um currículo, pois o próprio processo educativo
denota, em alguma medida, a transmissão da cultura, porém, na perspectiva crítica, o
currículo entende que essa transmissão transforma e ressignifica a cultura. Para um currículo
crítico:

[...] a cultura não é vista como um conjunto inerte e estático de valores e


conhecimentos a serem transmitidos de forma não-problemática a uma nova
geração, nem ela existe de forma unitária e homogênea. Em vez disso, o currículo e
a educação estão profundamente envolvidos em uma política cultural, o que
significa que são tanto campos de produção ativa de cultura quanto campos
contestados (MOREIRA; SILVA, 2008, p. 26).

Por fim, o eixo poder e currículo é relevante, pois considera-se que o poder se
manifesta nas relações de poder, isto é, nas relações sociais. Se o poder existe e ele se
manifesta nas relações sociais, então não é possível negar a existência do poder. Pelo
contrário, é necessário “um esforço contínuo de identificação e análise das relações de poder
envolvidas na educação e no currículo” (MOREIRA; SILVA, 2008, p. 30).
Foi a consciência desses três eixos centrais presentes no currículo dentro de um
processo histórico que permitiu à teoria crítica chegar ao conceito de currículo oculto: “esse
conceito, criado para se referir àqueles aspectos da experiência educacional não explicitados
no currículo oficial, formal [...]” (MOREIRA; SILVA, 2008, p. 34).
Pode-se perceber então que a teoria curricular crítica não considera suficiente
transmitir os conhecimentos através de uma sistematização educacional. Percebe-se também
que esse modelo de escola que vemos na teoria curricular tradicional possui limites e
intencionalidades ocultas. Sendo assim, compete à teoria crítica saber [...]

[...] a favor de quem o currículo trabalha e como fazê-lo trabalhar a favor dos grupos
e classes oprimidas. Para isso, discute-se o que contribui tanto no currículo formal
como no currículo em ação e no currículo oculto para a reprodução das
desigualdades sociais. Identificam-se e valorizam-se, por outro lado, as contradições
e as resistências presentes no processo, buscando-se formas de desenvolver seu
potencial libertador (MOREIRA; SILVA, 2008, p. 16).

O quadro abaixo sintetiza os principais aspectos da teoria curricular crítica, conforme


debatido até aqui:
61

Quadro 5 - Aspectos de um currículo crítico


 A escola não é neutra à sociedade - ela influencia e é influenciada por ela;
 A escola deve problematizar a realidade;
 A escola não deve ser reprodutora da sociedade, ao contrário, deve ser transformadora;
 O currículo deve enxergar o aluno como sujeito do processo de ensino-aprendizagem;
 O currículo deve direcionar à formação de sujeitos críticos com vistas à emancipação;
 O currículo deve entender a educação como meio de humanização;
 O currículo não pode ser aparelho ideológico;
 O currículo não pode somente transmitir cultura - os sujeitos também produzem
cultura;
 O currículo não pode velar as relações de poder;
 A ciência moderna não deve ser o único conhecimento válido na escola - o
conhecimento dos educandos também é uma produção humana, portanto, cultural.
Fonte: Organizado pelo pesquisador.

Segundo Silva (2005) os seguintes termos também nos ajudam a caracterizar um


currículo crítico: “ideologia, reprodução cultural e social, poder, classe social, capitalismo,
relações sociais de produção, conscientização, emancipação e libertação, currículo oculto e
resistência” (SILVA, 2013, p. 17).
No Brasil, a teoria curricular crítica encontra na Educação Libertadora de Paulo Freire
e na Pedagogia Histórico-Crítica de Dermeval Saviani33 seus principais expoentes. No
entanto, é válido destacar que, embora ambas as propostas estejam fundamentadas nas obras
de Marx, elas possuem diferentes entendimentos sobre uma educação crítica e seu processo de
ensino-aprendizagem. Para Saviani (2011), é papel da escola (e do professor) transmitir ao
aluno os conhecimentos historicamente produzidos e acumulados pela humanidade. Para
Freire (1987), educador e educando são responsáveis pelo processo educativo. Logo, a
simples transmissão de conhecimento se caracteriza como “educação bancária”.
É este arcabouço da teoria curricular crítica no Brasil que possibilitou também à
Educação Física escolar novas reflexões e novas ações, permitindo-a se libertar das amarras
do conhecimento da Medicina, Biologia, Anatomia e Psicologia, buscando respostas à sua
crise de identidade em outras áreas do conhecimento, como a Sociologia, Antropologia e
Pedagogia, na tentativa de superar os princípios alienantes da teoria curricular tradicional.

33
Dermeval Saviani, professor da Unicamp, é considerado um dos principais autores em educação no Brasil,
idealizador da chamada Pedagogia Histórico-Crítica (LOPES; MACEDO, 2011).
62

2.3.1. Os currículos críticos de Educação Física

Todas as propostas curriculares para a Educação Física que, até então, estavam
organizadas sob a lógica dos currículos tradicionais, os quais viam a escola como elemento
neutro à sociedade, foram questionadas, principalmente após a década de 1980, quando se deu
a reabertura política do Brasil, ao fim da ditadura militar.
Nesse movimento, muitos pesquisadores da área buscaram no Materialismo Histórico-
dialético de Marx, fundamentos para uma nova Educação Física que fosse crítica à realidade
social dos alunos. “O currículo da Educação Física nessa vertente assumiu para si uma nova
responsabilidade: formar o cidadão e a cidadã para usufruírem, participarem e reconstruírem
uma parcela da cultura mais ampla, a cultura corporal de movimento” (NEIRA; NUNES,
2009, p. 82).
Dentro destes princípios, surgem duas propostas curriculares críticas para a Educação
Física: o Currículo Crítico-superador pelo Coletivo de Autores34 (1992) e o Currículo
Crítico-emancipatório, por Elenor Kunz35 (1991; 1994).
O Currículo Crítico-superador é resultado do estudo de um grupo de seis
pesquisadores da Educação Física que ficaram conhecidos como Coletivo de Autores e seus
estudos culminaram na publicação do livro Metodologia do Ensino de Educação Física
(1992).
Na obra, fundamentados pelo Materialismo Histórico-dialético e pelas teorias
pedagógicas de Demerval Saviani e José Carlos Libâneo36, o Coletivo de Autores propõe a
“substituição” da aptidão física e performance esportiva pela reflexão sobre a cultura
corporal como objeto de ensino da Educação Física escolar.
Nesta proposta curricular baseada em princípios marxistas, o ser humano é entendido
como um sujeito histórico que produz sua própria existência a partir de suas ações (trabalho)
que, fundamentalmente, constituem nossa cultura.

34
O Coletivo de Autores é um grupo formado por seis pesquisadores da Educação Física, sendo cinco
brasileiros, Carmen Lúcia Soares, Celi Nelza Zülke Taffarel, Maria Elizabeth Medicis Pinto Varjal, Lino
Castellani Filho, Valter Bracht e a chilena Micheli Ortega Escobar (COLETIVO DE AUTORES, 1992).
35
Elenor Kunz, doutor pela Universidade de Hannover na Alemanha, é professor titular aposentado do
Departamento de Educação Física do Centro de Desportos da Universidade Federal de Santa Catarina ([s.n.],
2015).
36
José Carlos Libâneo é professor titular aposentado da Universidade Federal de Goiás e ficou conhecido por
elaborar a Pedagogia Crítico-social dos Conteúdos (LOPES; MACEDO, 2011).
63

Por isso se afirma que a materialidade corpórea foi historicamente construída e,


portanto, existe uma cultura corporal, resultado de conhecimentos socialmente
produzidos e historicamente acumulados pela humanidade que necessitam ser
retraçados e transmitidos para os alunos na escola (COLETIVO DE AUTORES,
1992, p. 26).

Para o Currículo Crítico-superador o processo educativo também tem uma dimensão


política, pois visa à conscientização do educando sobre a realidade, com o intuito de superar
as contradições que nelas se apresentam. Isto significa que, ao proporcionar o conhecimento
da cultura corporal, vinculado a um projeto político-pedagógico, a Educação Física passa a
assumir uma função social. Em outras palavras, sob a perspectiva das teorias do currículo, a
Educação Física passa a ser crítica.
Ainda na década de 1990, outra proposta para um currículo crítico de Educação Física
é elaborada: o Currículo Crítico-emancipatório proposto pelo professor Elenor Kunz.
As primeiras proposições de Kunz para um Currículo Crítico-emancipatório da
Educação Física aparecem em sua tese de doutorado realizada na Universidade de Hannover,
na Alemanha, que foi publicada no Brasil em seu livro Educação Física: ensino e mudança,
em 1991.
Nesta obra Kunz recorre a Paulo Freire para realizar a denúncia de “invasão cultural”
da Educação Física alemã e americana sobre à brasileira, ambas com objetivos esportivistas
ignorando a cultura regional de jogos e brincadeiras. Para Kunz (2001, p. 12), “[...] o que se
tentou foi simplesmente transferir (ou, talvez, vender) um modelo de Educação Física e
esportes sem a menor consideração com nosso desenvolvimento histórico e a respectiva
situação política, social e econômica”.
O autor, então, busca compreender por que os esportes trazidos pelos estrangeiros são
dados como conteúdos certos da Educação Física escolar e quais seriam as práticas que
realmente possuiriam implicações políticas e sociais.
Neste sentido, Kunz recorre mais uma vez à Freire ao denunciar a forma de ensino dos
esportes europeus e americanos no Brasil como uma “educação bancária” e busca na
Educação Libertadora novos caminhos para a Educação Física escolar brasileira.
Desta forma, seria possível considerar que o Currículo Crítico-emancipatório da
Educação Física tem sua base teórica apoiada sobre a Educação Libertadora de Paulo Freire.
No entanto, após realizar as denúncias sobre a “invasão cultural” e a “educação bancária” na
Educação Física brasileira a partir de uma perspectiva genuinamente freireana, consideramos
que o autor faz seus anúncios “hibridizando” aquilo que foi proposto por Freire.
64

Kunz entende que um currículo freireano deve ser “dialógico, crítico e


problematizador” (KUNZ, 2001, p. 136), porém, para o autor, o diálogo é um fenômeno que
se manifesta através de uma “Ação Comunicativa37”, entendida aqui, a partir da concepção do
pedagogo alemão Klaus Mollenhauer38, como ações “que estabelecem o Sentido implícito em
cada intencionalidade pedagógica, as quais não podem ser desenvolvidas somente pela
intencionalidade do Educador” (KUNZ, 2001, p. 138). Assim, o “Sentido” e a
“Intencionalidade” são como categorias centrais no desenvolvimento dessa perspectiva
pedagógica lhe conferindo aspectos fenomenológicos.
Kunz procura utilizar Mollenhauer para fundamentar teoricamente sua concepção de
educação e volta a recorrer a Freire procurando vincular o seu entendimento do exercício da
prática docente com a teoria pedagógica de Mollenhauer.

Após o Constructo teórico com base em MOLLENHAUER para o Conceito de


Educação, pretendo dar continuidade ao desenvolvimento desta concepção
Educacional na sua compreensão mais aproximada da prática. Quero me valer para
tanto, basicamente, da Concepção pedagógica de Paulo FREIRE, sem contudo
perder ou ferir a Unidade dialética entre Teoria e Prática, anteriormente anunciada
(KUNZ, 2001, p. 145).

Consideramos importante nos posicionar neste momento, pois entendemos que a


Educação Libertadora de Paulo Freire possui uma fundamentação teórica sólida para embasar
uma concepção pedagógica. As denúncias feitas por Freire estão acompanhadas de seus
respectivos anúncios o que, em nossa opinião, não haveria a necessidade de Kunz em recorrer
a outras teorias, tornando o Currículo Crítico-emancipatório da Educação Física, uma teoria
híbrida.
Em nossa compreensão, para completar o processo de hibridização teórica, Kunz
recorre também à Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos de Libâneo para dar um
direcionamento ao ensinamento dos esportes considerados modernos, porém, sem caracterizar
uma “invasão cultural” e de forma problematizadora (segundo Freire) e dialógica, entendendo
o diálogo como uma ação comunicativa (segundo Mollenhauer).
Kunz procura justificar o uso simultâneo da Educação Libertadora de Paulo Freire e da
Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos de José Carlos Libâneo:

37
Na obra Educação Física: ensino e mudança (1991), Elenor Kunz cita somente uma vez o autor Jürgen
Habermas. As referências à “Ação Comunicativa” estão fundamentadas nas citações de Klaus Mollenhauer.
38
Klaus Mollenhauer (1928 - 1998) foi um teórico-pedagogo alemão da geração pós-guerra. Seu trabalho se
concentrou em questões sobre a pedagogia crítica e a natureza cultural e histórica da educação.
65

Para a Educação Física ambas as propostas até aqui apresentadas podem tornar-se
relevantes. Isto porque, de um lado, o conteúdo tradicionalmente transmitido, o
“esporte moderno” - também mais difundido pelos meios de comunicação de massa
como esporte orientado pela competição e concorrência - não deveria, e nem
poderia, creio eu, ser totalmente negado e eliminado da Educação Física. Mas “o
que”, “como” e “com que finalidade” realmente ele for ensinado poderiam ser
interpretados no sentido da “pedagogia crítico-social dos conteúdos” e servir de base
para a estruturação de um novo conteúdo que consideraria, também, a prática social
do aluno, ou seja, o Mundo Vivido e respectivo Mundo do Movimento. Implica em
dizer que, muito antes que este esporte em questão seja praticado na escola, ele deve
ser tematizado no sentido da reflexão crítica do seu conteúdo e das suas relações.
Conforme pude observar na minha análise do Mundo Vivido de algumas crianças,
existem muitos movimentos e jogos informais, atividades tradicionais na vida de
crianças, fora do contexto escolar, que configuram uma prática significativa e
relevante para as mesmas em seus respectivos Mundos do Movimento. É o caso, por
exemplo, do “futebol-pelada” das crianças das classes mais pobres.
Por isto, não se pode negar também a relevância pedagógica de se partir do
“contexto social concreto” do aluno e tematizar em aula a sua “linguagem” no
sentido de P. FREIRE, linguagem que aqui pode ser entendida mais no sentido da
“linguagem corporal” e, através desta tematização, atingir de forma crítica o mundo
do “esporte moderno” (KUNZ, 2001, p. 153).

Embora o autor busque utilizar Freire para tematizar uma prática pedagógica com o
objetivo de alcançar um conteúdo a priori – o esporte moderno – considerado como
conhecimento sistematizado e universal, fica evidente que a proposta freireana é utilizada
somente para trazer as denúncias de uma concepção de educação tradicional. A partir disto, a
dialogicidade em Freire se transforma na “Ação comunicativa”, segundo Mollenhauer, e os
conteúdos a serem ensinados ganham forma segundo a “Pedagogia Crítico-Social dos
Conteúdos” de Libâneo, ignorando o processo de redução temática proposto por Freire, que
permite a elaboração de programas escolares a partir da temática investigada.
Por fim, a concepção de “corpo” utilizada por Kunz é determinante para sua proposta
de Educação Física. Ela provém de Gordijn39, Tamboer40 e Trebels41, autores que, na
Alemanha e na Holanda, buscaram soluções para a superação do currículo tradicional da
Educação Física. Esse referencial confere novamente ao Currículo Crítico-emancipatório da

39
Carl Christian Friedrich Gordijn (1909 - 1998), professor holandês especialista em Movimento Humano na
Universidade de Amsterdã. Colaborou para a construção do conceito de “Se-movimentar”.
40
Jan Willem Isaäc Tamboer (1944 -), professor holandês e pesquisador da dialógica do movimento humano.
Colaborou para a construção do conceito de “Se-movimentar”.
41
Andreas Heinrich Trebels (1937 -), pedagogo alemão, professor da Universidade de Hannover especialista em
pedagogia do esporte. Colaborou para a construção do conceito de “Se-movimentar”.
66

Educação Física uma visão fenomenológica, uma vez que esses autores se apoiam em
Merleau-Ponty42. É neste contexto que Kunz recorre ao conceito do “Se-movimentar”.

O Se-Movimentar do Homem é sempre um diálogo com o Mundo


(TAMBOER:1985), onde o Ser Humano que Se-movimenta deve ser analisado de
forma integral, como Ser Humano. “Não são corpos que correm, saltam e brincam,
mas sim Seres Humanos que se movimentam” (GORDJIN: 1970, In: TAMBOER,
1979:132). O Se-movimentar é, assim, interpretado como uma conduta humana,
onde a Pessoa do “se-movimentar” não pode simplesmente ser vista de forma
isolada e abstrata, mas inserida numa rede complexa de relações e significados para
com o Mundo, que configura aquele acontecimento relacional, onde se dá o diálogo
entre o Homem e o Mundo. O “Se-Movimentar” é, então, “uma conduta
significativa, um acontecimento mediado por uma relação significativa”
(TAMBOER, 1985:62).
O Se-movimentar, entendido como diálogo entre Homem e Mundo, envolve o
Sujeito deste acontecimento, sempre na sua Intencionalidade. E é através desta
intencionalidade que se constitui o Sentido/significado do Se-movimentar.
Sentido/significado e Intencionalidade têm assim uma relação muito estreita na
concepção dialógica do Movimento.
O Movimento Humano é fundado na Intencionalidade. O Ser Humano pode de
diferentes maneiras questionar o Mundo e suas relações com o mesmo, mas também
pode responder a ele. O Movimento Humano é apenas uma destas possibilidades.
Somente pela Intencionalidade do Se-Movimentar é possível superar um Mundo
confiável e conhecido e penetrar num mundo desconhecido (KUNZ, 2001, p. 174-
175).

A obra de Kunz, fruto de sua tese de doutorado na Alemanha, a partir do uso dos
referencias teóricos expostos, chega a uma proposta curricular que deve considerar a realidade
dos alunos e dialogar com os mesmos através de uma ação comunicativa com vistas à ensinar
os conteúdos clássicos da Educação Física, sem desconsiderar a relevância das manifestações
corporais da cultura dos alunos entendendo que o corpo em movimento representa o diálogo
do sujeito com o mundo.
Nesta direção, para o autor, o objetivo da Educação Física escolar é “desenvolver e
ampliar o mundo do movimento das crianças, respeitando-se o contexto de Mundo Vivido das
mesmas” (KUNZ, 2001, p. 182), dando sentido à prática pedagógica através de duas
categorias: “pensar” e “fazer”.
Para tanto, Kunz (2001) aponta a necessidade de mudanças na concepção de
conteúdos para a Educação Física escolar. Os conteúdos, então, devem considerar: o
movimento humano como categoria central do ensino (“Se-movimentar”); o mundo do
movimento de crianças na relação com a realidade extra-escolar; o esporte de rendimento e
suas chances para uma transformação didática; o movimento nas culturas tradicionais.

42
Merleau-Ponty (1908-1961) foi um filósofo francês propôs uma fenomenologia da percepção, uma
fenomenologia do corpo, e não uma fenomenologia da consciência constitutiva, o que o distingue da tradição
fenomenológica da consciência, baseada em Husserl (MOREIRA, 2011).
67

Além das mudanças na concepção de conteúdo, Kunz (2001) também entende ser
necessária à Educação Física mudanças na concepção de ensino, como adotar concepções de
ensino abertas onde o currículo não seja um rol rígido de conteúdos, por exemplo.
Podemos considerar, então, que a proposta curricular Crítico-emancipatória da
Educação Física, embora parta de uma perspectiva freireana de educação, acaba por se
distanciar da Educação Libertadora, ao propor inicialmente o trabalho com os conteúdos a
partir da Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos, e depois, ao propor a revisão dos mesmos
com base no Se-movimentar através das lentes da Fenomenologia, desvirtuando, assim, dos
princípios marxistas de base freireana.
Isso se torna mais evidente quando Kunz lança sua publicação de maior impacto, o
livro Transformação didático-pedagógica do esporte (1994), que consolida e se torna
referência para o Currículo Crítico-emancipatório da Educação Física.
Nesta nova obra todas as referências e citações oriundas da Educação Libertadora de
Paulo Freire desaparecem, ou seja, há uma aparente desistência por parte do autor em utilizar
fundamentos da pedagogia freireana.
Percebemos, então, uma tentativa de aproximação com teóricos da primeira geração da
Escola de Frankfurt, como Horkheimer, Adorno e Marcuse, principalmente para a realização
de denúncias, como a alienação da sociedade atual em decorrência da modernização
tecnológica e da indústria cultural.
Esse contexto é levado para o campo do esporte, onde as máquinas não substituem o
homem, mas ele próprio passa a ganhar características de uma máquina que precisa produzir
sempre mais e melhor. Para Kunz, essa não é uma evolução do esporte e sim uma influência
da própria sociedade que exige rendimento máximo em tudo que faz. “O corpo é entendido
unicamente como um instrumento que quando bem ajustado pode trazer bons rendimentos, e
o movimento é entendido apenas pela sua funcionalidade técnica” (KUNZ, 2004, p. 25).
Essa reflexão faz com que o autor questione sob quais condições o esporte deve estar
presente na escola e, então, propõe que uma pedagogia para o ensino do esporte nas escolas
deve estar apoiada em dois aspectos teóricos:

O aspecto da teoria crítica, em que pressupostos teóricos com base em critérios de


uma ciência humana e social, sem ser positivista ou tecnológica, formam os
alicerces do conhecimento para um agir racional-comunicativo; e o aspecto da teoria
instrumental, que deve fornecer os elementos específicos de uma pedagogia crítico-
emancipatória nas suas sequências e nos seus procedimentos regrados (KUNZ,
2004, p. 30).
68

Esses questionamentos partem das críticas realizadas por Kunz ao Currículo Crítico-
superador. Para o autor, existe uma visão dual de corpo na teoria do Coletivo de Autores
(1992), ou seja, para ele, se há uma cultura dita como corporal, deve haver uma outra cultura
que não é corporal. Além disso, para o autor, o Currículo Crítico-superador “não apresenta
elementos práticos para construir uma crítica aos esportes nas escolas” (KUNZ, 2004, p. 21).
Apesar destas críticas ao Coletivo de Autores, Kunz acaba por assumir uma posição de
defesa dos conteúdos tradicionais nas aulas de Educação Física, isto é, o esporte moderno
europeu e o norte-americano ganham centralidade novamente. O autor deixa isso claro ao
citar que o objetivo de sua obra A transformação didático-pedagógica do Esporte (1994) é
[...]

[...] apresentar uma proposta didático pedagógica para a Educação Física Escolar
centrada no ensino dos Esportes [tradicionais], sem contudo desmerecer outras
objetivações culturais que se expressam pelo movimento humano e que também são
e devem ser reutilizadas como conteúdos relevantes para a prática pedagógica da
Educação Física (KUNZ, 2004, p. 07).

Nesta segunda obra, o autor considera que sua proposta didático-pedagógica será
crítico-emancipatória se estiver acompanhada de uma didática comunicativa que se
encarregará do esclarecimento e da racionalidade no processo educacional. Para ele, todo
processo educativo deve estar acompanhado de uma ação comunicativa que não está pronta
no ser humano e, portanto, deve ser desenvolvida.
É nesse momento, ao fazer seus anúncios, que Kunz recorre à “Ação Comunicativa”
de Jürgen Habermas43 44
que passa a ganhar um forte destaque, juntamente com a visão
ontológica, a partir da Fenomenologia, de Merleau-Ponty e o conceito de “Se-movimentar” de
Gordijn, Tamboer e Trebels.
Neste contexto, a emancipação referida por Kunz é entendida como o “processo de
libertar os jovens das condições que limitam o uso da razão crítica e com isso todo o seu agir
social, cultural e esportivo, que se desenvolve pela educação” (KUNZ, 2004, p. 33).
O autor entende que, a partir de sua leitura de Habermas, esta emancipação somente
será alcançada quando os sujeitos forem capazes de fazer sua autorreflexão. “Habermas prevê

43
Jürgen Habermas é um filósofo e sociólogo alemão da segunda geração da Escola de Frankfurt e conhecido
por sua teoria que visa superar a razão instrumental pela ação (razão) comunicativa (GONÇALVES, 1999). Vale
ressaltar que a associação de Habermas à Escola de Frankfurt é motivo de questionamentos, pois há quem não o
considere como representante da Teoria Crítica.
44
Diferente do primeiro livro, Educação Física: ensino e mudanças (1991), onde a “Ação comunicativa” era
fundamentada por Mollenhauer, no segundo livro Transformação didático-pedagógica do esporte (1994),
Habermas é diversas vezes citado para fundamentar essa teoria.
69

que a emancipação só será possível quando os agentes sociais, pelo esclarecimento,


reconhecerem a origem e os determinantes da dominação e da alienação. Os agentes sociais
são levados assim, à auto-reflexão” (KUNZ, 2004, p. 35).
Ao se apoiar numa visão de mundo e de corpo fenomenológicas, buscando através da
ação comunicativa de Habermas instituir o diálogo de forma instrumental, como premissa do
processo educativo, visando atender às reflexões sobre as contradições da realidade oriundas
da Teoria Crítica frankfurtiana (acerca do ensino dos esportes tradicionais na escola), Kunz,
em nossa compreensão, retrocede os avanços de sua caminhada em seu primeiro livro rumo à
uma Educação Física crítico-emancipatória.
O autor deixa claro que procurou evitar a utilização de expressões que remetem ao
marxismo, “como dialética, projeto histórico, ou frases do tipo Educação Física enquanto
veículo de transmissão da ideologia do capitalismo dominante ou ensino da Educação Física
enquanto fator de alienação e opressão” (KUNZ, 2004, p. 09) se distanciando
propositadamente das obras de Karl Marx e, por consequência, da Teoria Crítica da Escola de
Frankfurt e da Educação Libertadora de Paulo Freire.
Diferentemente da pedagogia freireana, que busca a transformação do ser e do mundo
colaborando no desvelamento das contradições que se apresentam como situações-limites
presentes na realidade objetiva concreta, o Currículo Crítico-emancipatório da Educação
Física, limitando-se aos fenômenos relacionados ao “Se-movimentar”, em nossa compreensão,
passa a assumir um aspecto liberal, pois se constitui simplesmente como uma proposta de
ressignificar os esportes modernos tradicionais a partir de uma visão de corpo e de mundo
apoiadas na Fenomenologia através de uma ação comunicativa que entende o diálogo45 como
instrumento conciliador, onde as contradições e as tensões presentes na realidade social,
aparentemente, não precisam ser transformadas, mas sim, compreendidas, negociadas e
aceitas.
Desta forma, após abordarmos o Currículo Crítico-superador, proposto pelo Coletivo
de Autores (1992) e o Currículo Crítico-emancipatório, proposto por Elenor Kunz (1994),
buscamos evidenciar no quadro abaixo os principais aspectos que caracterizam essas duas
propostas como um currículo crítico.

45
É importante ressaltar que, diferentemente de Paulo Freire que entende o diálogo como a tensão existente entre
as visões de mundo dos sujeitos em torno das contradições presentes na realidade, a teoria da Ação
Comunicativa de Jürgen Habermas entende o diálogo como um instrumento conciliador dessas distintas visões.
Em nossa opinião esse entendimento confere um aspecto liberal à proposta de Habermas, e não crítica.
70

Quadro 6 - Aspectos de um currículo crítico contemplados nos currículos críticos de


Educação Física

Currículos

emancipatório
superador
Crítico-

Crítico-
Aspectos de um currículo crítico
A escola não é neutra à sociedade - ela influencia e é influenciada por ela; X X

A escola deve problematizar a realidade; X X

A escola não deve ser reprodutora da sociedade, ao contrário, deve ser


--- ---
transformadora;
O currículo deve enxergar o aluno como sujeito do processo de ensino-
X X
aprendizagem;
O currículo deve direcionar à formação de sujeitos críticos com vistas à
X X
emancipação;

O currículo deve entender a educação como meio de humanização; X X

O currículo não pode ser aparelho ideológico; X ---

O currículo não pode somente transmitir cultura - os sujeitos também


--- X
produzem cultura;

O currículo não pode velar as relações de poder; X ---


A ciência moderna não deve ser o único conhecimento válido na escola - o
conhecimento dos educandos também é uma produção humana, portanto, --- X
cultural.
LEGENDA: X = aspecto contemplado / --- = aspecto não contemplado
Fonte: Organizado pelo pesquisador.

É possível considerar, então, que há muitas concordâncias entre a teoria curricular


crítica e as propostas críticas de Educação Física, o que representa um avanço na superação
dos currículos tradicionais.
No entanto, há pontos que ainda não foram contemplados e que consideramos como
uma premissa elementar para um currículo crítico. Iniciamos pelo fato de que ambas as
propostas não apresentam aspectos de que “A escola não deve ser reprodutora da sociedade,
ao contrário, deve ser transformadora”.
71

Portanto, o Currículo Crítico-superador e o Currículo Crítico-emancipatório não se


enquadram como teorias crítico-reprodutivistas, conforme visto anteriormente, ou seja, não
entendem deliberadamente a escola como reprodutora da sociedade. Porém, ao se limitar às
manifestações da cultura corporal e/ou da cultura do movimento, consideramos que ambas as
propostas têm limitações críticas por não assumirem um compromisso transformador. Nesse
aspecto, ponderamos que falta aos dois currículos enxergarem a Educação Física escolar
como possibilidade de transformar a realidade.
Em relação ao aspecto “O currículo não pode ser aparelho ideológico”, entendemos
que o Currículo Crítico-emancipatório da Educação Física, ao se distanciar propositadamente
de conceitos marxistas (que se pauta pelas contradições sociais), acaba por se tornar
vulnerável à interesses ideológicos, ao adotar como referencial da prática educativa, os
conteúdos tradicionais em torno dos esportes eurocêntricos.
Outro aspecto que o Currículo Crítico-emancipatório não atende é “O currículo não
pode velar as relações de poder”, uma vez que, ao se apoiar na teoria da Ação Comunicativa
de Habermas, consideramos que existe uma tendência de conciliação com as relações de
poder, já que essas não representam contradições, sendo a inserção do trabalho pedagógico a
partir do Se-movimentar algo que pode ser entendido como um ponto de partida ilustrativo
para se chegar ao conteúdo em si: os esportes tradicionais eurocêntricos.
O Currículo Crítico-superador, fundamentado na Pedagogia Histórico-crítica e na
Pedagogia Crítico-social dos conteúdos, defende que a transmissão dos conhecimentos
historicamente acumulados pela humanidade é suficiente para a superação das contradições
presentes na realidade, divergindo dos aspectos que consideramos necessários para
caracterizar um currículo como crítico.
Por consequência, essa proposta curricular acredita que o conhecimento produzido
pela ciência moderna (no caso da Educação Física podemos pensar também no esporte
moderno) deve compor o conteúdo programático do percurso escolar, subjugando, assim,
outros saberes não oriundos do mundo acadêmico.
Sobre esse aspecto vale ressaltar que o Currículo crítico-emancipatório, embora
considere a importância dos saberes populares em torno do mundo vivido e do mundo do
movimento, acaba por dar extrema importância para os esportes tradicionais modernos como
conteúdo da Educação Física e referencial da prática Educativa Física escolar.
Na sequência deste estudo buscamos relacionar essas propostas curriculares com a
possibilidade de constituir uma nova identidade docente que supere as identidades
72

profissionais (agente de saúde, militar, treinador, recreador, preparador físico, entre outras)
constituídas pelos currículos tradicionais da Educação Física.

2.3.1.1. A identidade docente, segundo os currículos críticos de Educação Física

Embora as duas propostas curriculares críticas da Educação Física apresentem


diferenças significativas no referencial em que estão apoiadas, na sua visão de mundo e, por
consequência, na proposição de um caminho a ser percorrido durante a vida escolar do
educando, elas convergem para uma mesma direção se pensarmos no processo histórico da
constituição da identidade docente em Educação Física.
Tanto a proposta do Currículo Crítico-superador quanto a do Currículo Crítico-
emancipatório da Educação Física objetivam que o docente assuma o seu papel como
professor e não mais como outro profissional ligado ao vasto campo de atuação da Educação
Física fora do ambiente escolar.
Este deve ser um sujeito político, social e cultural e, portanto, os conteúdos não podem
ser ensinados de forma a reproduzir aquilo que já está dado na sociedade. É necessário ao
docente, nas duas propostas:

[...] procedimentos didático-pedagógicos que possibilitem, ao se tematizarem as


formas culturais do movimentar-se humano (os temas da cultura corporal ou de
movimento), propiciar um esclarecimento crítico a seu respeito, desvelando suas
vinculações com os elementos da ordem vigente, desenvolvendo,
concomitantemente, as competências para tal: a lógica dialética para a crítico-
superadora, e o agir comunicativo para a crítico-emancipatória. Assim, conscientes
ou dotados de consciência crítica, os sujeitos poderão agir autônoma e criticamente
na esfera da cultura corporal ou de movimento e também agir de forma
transformadora como cidadãos políticos (BRACHT, 1999, p. 81).

Podemos então considerar que a identidade docente em Educação Física para o


Currículo Crítico-superador e Currículo Crítico-emancipatório está centrada na intersecção
entre a cultura do educando, sua leitura da sociedade e o saber científico específico da área a
ser ensinado como conteúdo escolar.
Para o Currículo Crítico-superador:

Todo educador deve ter definido o seu projeto político-pedagógico. Essa definição
orienta a sua prática no nível de sala de aula: a relação que estabelece com os seus
alunos, o conteúdo que seleciona para ensinar e como o trata científica e
metodologicamente, bem como os valores e a lógica que desenvolve nos alunos.
É preciso que cada educador tenha bem claro: qual o projeto de sociedade e de
homem que persegue? Quais os interesses de classe que defende? Quais os valores, a
73

ética e a moral que elege para consolidar através de sua prática? Como articula suas
aulas com este projeto maior de homem e de sociedade? (COLETIVO DE
AUTORES, 1992, p. 26, grifo nosso).

Para o Currículo Crítico-emancipatório:

Para uma instituição repressiva como o esporte, a libertação de uma coerção auto-
imposta implica, para uma pedagogia crítico-emancipatória, uma nova forma de
coerção, desta vez imposta pelos próprios professores. Para que os alunos possam se
libertar desse “comodismo da menoridade voluntária”, o professor deverá exigir que
os alunos lutem contra "a falsa consciência e as ilusões objetivas” do esporte. Isso,
pelo menos no início, se apresenta como uma exigência muito severa [...] O ensino
deve fomentar, para tanto, a capacitação dos alunos para um agir solidário, nos
princípios da codeterminação e autodeterminação. Essas interações de alunos-
alunos, alunos professor e professor-alunos não podem acontecer sem a participação
da linguagem. Linguagem esta “mediação simbólica” referida por Habermas (1981)
nas “ações comunicativas” de pelo menos dois agentes em busca de entendimentos
racionais (KUNZ, 2004, p. 36-37, grifo nosso).

A identidade então constituída pelas propostas curriculares críticas da Educação


Física, conferem ao docente o papel de professor (não de militar, agente de saúde, personal
training, treinador, preparador físico ou recreador), o qual busca em suas aulas, em alguma
medida, conduzir os alunos à reflexão sobre a realidade social por meio das manifestações
corporais.

Quadro 7 - A identidade docente constituída pelos currículos críticos de Educação Física


Identidade docente
Principais características
(ou profissional)
dadas pelo currículo
constituída
Transmissão dos
conhecimentos científicos
Currículo Crítico-superador relacionados à cultura Professor
corporal visando à
superação do senso comum.
Ensino dos esportes
tradicionais (considerando
também sua prática popular)
Currículo Crítico-emancipatório como manifestação do “Se- Professor
movimentar” visando à
emancipação em relação à
opressão do esporte.
Fonte: Organizado pelo pesquisador.
74

Mais uma vez, consideramos relevante sintetizar todas as informações oriundas das
propostas curriculares críticas da Educação Física em um único quadro, conforme exposto no
Quadro 8:

Quadro 8 - Síntese das propostas curriculares críticas da Educação Física


MOMENTO
IDENTIDADE
DA TEORIA TENDÊNCIA PRINCIPAIS BASE FILOSÓFICA/ PRINCIPAIS
CURRÍCULO DOCENTE
EDUCAÇÃO CURRICULAR PEDAGÓGICA REFERÊNCIAS EPISTEMOLÓGICA CARACTERÍSTICAS
CONSTITUÍDA
FÍSICA

Transmissão dos
Progressista conhecimentos científicos
Crítico- Coletivo de Filosofia, Sociologia
Crítica (Histórico- relacionados à cultura Professor
superador Autores (1992) (à luz do Marxismo)
Crítica) corporal visando à superação
do senso comum.
Segundo
momento:
A Educação
Física em Ensino dos esportes
busca da tradicionais (considerando
autocrítica Filosofia, Sociologia também sua prática popular)
Crítico- Progressista Elenor Kunz
Crítica (à luz da como manifestação do Professor
emancipatório (Libertadora) (1991; 1994)
Fenomenologia) “Se-movimentar” visando à
emancipação em relação à
opressão do esporte.

Fonte: Organizado pelo pesquisador.

Porém, vale destacar que essa identidade docente manifestada na figura do professor
nessas duas propostas curriculares críticas da Educação Física (Crítico-superadora e Crítico-
emancipatória) se aproxima daquela denunciada por Freire dentro do contexto de uma
“educação bancária”, onde o docente é responsável por estabelecer e transmitir os
conhecimentos sistematizados universais, considerados relevantes ao processo educativo.
Os trechos que destacamos nos excertos acima, tanto na citação do Coletivo de
Autores (1992), quanto na citação de Elenor Kunz (2004) apresentam um modelo de docência
centrado no professor como protagonista do processo educativo, ao contrário da ideia de
docência na pedagogia freireana, onde “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo,
os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1987, p. 44)
Neste contexto, é possível considerarmos que ainda há lacunas para a constituição de
uma identidade docente em Educação Física que seja legitimamente crítica, se pensarmos a
partir da pedagogia freireana, a qual nos aprofundaremos ao final deste capítulo. Assim, a
crise de identidade da Educação Física se prolonga e, por isso, não demorou para que
surgissem críticas às teorias curriculares críticas, trazendo à tona uma nova proposta: as
teorias curriculares pós-críticas.
75

2.4. Currículo pós-crítico

Fundamentada nos movimentos considerados Pós-modernos, a teoria curricular pós-


crítica não nega as contribuições da teoria curricular crítica, mas considera que a
Modernidade falhou ao tentar sanar as contradições inerentes à humanidade simplesmente
colocando as suas fichas na razão.

O chamado pós-modernismo é um movimento intelectual que proclama que estamos


vivendo uma nova época histórica, a Pós-Modernidade, radicalmente diferente da
anterior, a Modernidade. O pós-modernismo não representa, entretanto, uma teoria
coerente e unificada, mas um conjunto variado de perspectivas, abrangendo uma
diversidade de campos intelectuais, políticos, estéticos, epistemológicos. Em termos
sociais e políticos, o pós-modernismo toma como referência uma oposição ou
transição entre, de um lado, a Modernidade, iniciada com a Renascença e
consolidada com o Iluminismo e, de outro, a Pós-Modernidade, iniciada em algum
ponto da metade do século XX. Em termos estéticos, a referência relativamente à
qual o pós-modernismo se define é o movimento modernista, iniciado em meados do
século XIX, de reação às regras e aos cânones do classicismo na literatura e nas artes
(SILVA, 2005, p. 111).

Para o Pós-modernismo, é justamente a ideia de razão, de ciência e de progresso que


são as raízes das contradições contemporâneas. Neste cenário, outras manifestações “pós”
devem ser lembradas, como o Pós-estruturalismo e Pós-colonialismo, assim como novos
estudos, como estudos feministas, étnicos, raciais e culturais, que dão voz a grupos antes
deslegitimados.
Consequentemente, essa efervescência de novas visões de mundo chegou até à escola
e, mais especificamente, ao currículo. Surge, então, o currículo pós-crítico.
Para a teoria curricular pós-crítica é central superar as discussões de classes
econômicas e avançar em pontos como “identidade, alteridade, diferença, subjetividade,
significação e discurso, saber/poder, representação, gênero, raça, etnia, sexualidade,
multiculturalismo” (SILVA, 2013, p. 17). Nesse sentido, o “pós” é ir além do ponto ao qual o
currículo crítico chegou.

[...] o termo “pós” expressa uma reflexão sobre o objeto em estudo que amplia o
modo de compreendê-lo. “Pós” é ir além. Além significa uma distância espacial que
ultrapassa qualquer imposição de limites. É posicionar-se depois, adiante. Neste
caso específico, trata-se de uma posição à frente dos limites impostos pelas
epistemologias atuais. Ir além, ser “pós” é pensar, refletir, analisar e viver, de algum
modo, além das fronteiras de nossos tempos. Ir além de si é impensável sem um
“retorno” ao presente. Ir além de si é a possibilidade de retornar com novos olhares,
revisando e reconstruindo as condições sociais e políticas do presente (NEIRA;
NUNES, 2009, p. 136).
76

Para Silva (2005), a escola é uma instituição essencialmente moderna, isso significa
dizer que ela está organizada em uma estrutura bem definida, científica e racional, aspectos
criticados pela Pós-modernidade.
Para o pós-modernismo, a tentativa moderna de universalização dos sujeitos, ou seja,
de formar o sujeito ideal através da educação, gerou os seus próprios limites. Na busca da
universalização da verdade, a modernidade apostou suas fichas naquilo que a Pós-
modernidade chama de metanarrativas, “grandes narrativas”, ou “narrativas mestras” (SILVA,
2005, p. 112).
As metanarrativas seriam como verdades absolutas que dariam aos sujeitos a condição
de construir fundações. “Em geral, esses princípios se baseiam nalguma noção humanista de
que o ser humano tem certas características essenciais, as quais devem servir de base para a
construção da sociedade. Eles constituem absolutos - axiomas inquestionáveis” (SILVA,
2005, p. 113).
Mais que isso, para os pós-modernos, as metanarrativas não passam de discursos
praticados pelos sujeitos, porém, esses discursos se transformaram em metanarrativas ou não
a depender das relações de poder entre quem produz o discurso e para quem ele é direcionado.
Desta forma, a Pós-modernidade toca num dos pontos centrais da Modernidade: o
sujeito racional, autônomo, centrado e identitário. Para os pós-modernos, o sujeito não é
guiado somente pela razão, logo, não é autônomo e, por sua vez, não pode estar no centro das
ações e sua identidade não coincide com o seu pensamento, ou seja, “o sujeito não pensa, fala
e produz: ele é pensado, falado e produzido” (SILVA, 2005, p. 113) pelos diferentes discursos
e pelas diferentes relações de poder.
Sendo assim, seria necessário, então, que o currículo, entendido como elemento
organizador de todo processo formativo do ser humano, superasse as amarras da Modernidade
e assumisse princípios “pós”.

Da perspectiva pós-moderna, o problema não é apenas o currículo existente; é à


própria teoria crítica do currículo que é colocada sob suspeita. A teorização crítica
da educação e do currículo segue, em linhas gerais, os princípios da grande narrativa
da Modernidade. A teorização crítica é ainda dependente do universalismo, do
essencialismo e do fundacionalismo do pensamento moderno. A teorização crítica
do currículo não existiria sem o pressuposto de um sujeito que, através de um
currículo crítico, se tornaria, finalmente, emancipado e libertado. O pós-modernismo
desconfia profundamente dos impulsos emancipadores e libertadores da pedagogia
crítica. Em última análise, na origem desses impulsos está a mesma vontade de
domínio e controle da epistemologia moderna. A pedagogia tradicional e a
pedagogia crítica acabam convergindo em uma genealogia moderna comum
(SILVA, 2005, p. 115).
77

É claramente perceptível, que no contexto acima apresentado, Silva (2005) coloca as


teorias curriculares tradicionais e as teorias curriculares críticas no mesmo patamar ao
classificar as duas como “filhas da modernidade”.
Sendo assim, fica a dúvida: mas o que seria uma proposta curricular pós-moderna?
Quais são as proposições que dizem ir “além” do currículo tradicional e do currículo crítico?
Para sanar esses questionamentos, devemos entender a proposta de um currículo dito como
pós-crítico.
“As teorias pós-críticas da educação constituem sistemas abertos [...] O currículo pós-
crítico jamais poderá ser predefinido como os demais. Ele não é linear, prescritivo. Ele é uma
escrita constante. O currículo pós-crítico é múltiplo, ele é múltiplos currículos” (NEIRA;
NUNES, 2009, p. 138).
É relevante ressaltar neste ponto que a Educação Libertadora proposta por Freire se
configura como um currículo aberto, ou seja, que não possui um percurso determinado a
priori. Dentro de uma concepção curricular crítica e moderna, a pedagogia freireana entende
que “[...] é na realidade mediatizadora, na consciência que dela tenhamos educadores e povo,
que iremos buscar o conteúdo programático da educação” (FREIRE, 1987, p. 56), ou seja, é a
partir do diálogo entre educadores e educandos em torno do mundo que será possível traçar
um percurso a ser percorrido no processo educativo, daí a necessidade da investigação e
redução temática.
Nesta perspectiva, podemos considerar que as críticas direcionadas ao currículo crítico
ignoram a contribuição marxista e moderna da pedagogia freireana ou desvirtuam suas
proposições, uma vez que essas já contemplavam respostas às denúncias pós-críticas.
Nitidamente também existem diferenças significativas do projeto de cidadão que a
teoria curricular tradicional e a teoria curricular crítica pretendem formar em relação ao
projeto curricular pós-crítico, principalmente pela rejeição, por parte dos pós-modernos, do
projeto Moderno de escola e de ser humano.

Na medida em que é questionado o sujeito centrado e com identidades fixas, são


desestabilizados os projetos curriculares que têm por propósito formar uma dada
identidade no aluno ou operar com uma identidade docente pré-estabelecida.
Também são desestabilizados os projetos de formação de um sujeito emancipado e
consciente, capaz de dirigir a transformação social (LOPES, 2013, p. 18).

Mais uma vez não podemos deixar de relacionar a pedagogia freireana com as
denúncias realizadas pelos pós-críticos em relação ao currículo crítico, pois Freire já entendia
o ser humano como um ser inconcluso vivendo em uma realidade que não é estática. Assim, a
78

emancipação, a conscientização e a transformação social não se configuram como metas


absolutas que, potencialmente, serão conquistadas um dia. Pelo contrário, ao não contemplar a
existência de um mundo e de um ser humano ideal e já acabado, a proposta crítica da
Educação Libertadora “[...] implica num constante ato de desvelamento da realidade [...]”
(FREIRE, 1987, p. 45).
Abaixo, sintetizamos os aspectos que configuram uma proposta curricular pós-crítica:

Quadro 9 - Aspectos de um currículo pós-crítico


 O currículo não pode ser universal;
 O currículo não pode ser teleológico;
 O currículo não pode estar pautado na razão científica moderna;
 O currículo entende que as teorias são discursos;
 O currículo não deve sustentar metanarrativas;
 O currículo entende que o saber possui uma relação com o poder;
 O currículo deve contemplar temas como gênero, raça, etnia e culturas subjugadas;
 O sujeito não possui autonomia - ele é pensado, falado e produzido pelos diferentes
discursos e relações de poder;
 A educação não pode emancipar ninguém - sempre estaremos subordinados a uma
relação de saber/poder.
Fonte: Organizado pelo pesquisador.

Apesar das diferenças entre os currículos críticos e pós-críticos, é comum que esse
último ressalte as contribuições dadas pelas propostas curriculares críticas. Nesta lógica, é
como se os pós-críticos superassem por incorporação as proposições preconizadas
anteriormente.

As concepções pós-críticas, portanto, reconhecem o pensamento crítico e nutrem-se


dele. [...] Em tom de síntese, seria adequado dizer que as perspectivas pós-críticas
apreendem o pensamento crítico e, encontrando seus limites, travam diálogos
promissores com outras explicações, arriscando-se a ultrapassar as fronteiras
anteriores (NEIRA; NUNES, 2009, p. 137).

Desta maneira, poderíamos prever de antemão que, dentro deste contexto, o Currículo
Crítico-superador e o Currículo Crítico-emancipatório da Educação Física, em certa medida,
podem nutrir a proposta curricular pós-crítica da Educação Física. Na próxima seção
buscaremos o entendimento desta proposta, assim como sua relação com os currículos sobre
os quais nos debruçamos anteriormente.
79

2.4.1. O currículo pós-crítico de Educação Física

Até o momento, a única proposta curricular da Educação Física considerada pós-


crítica que se destacou no âmbito acadêmico e escolar é o Currículo Cultural ou
culturalmente orientado (NEIRA, 2009).
O surgimento do Currículo Cultural acontece quando, a partir do ano de 2004, um
grupo de professores e pesquisadores compôs o Grupo de Pesquisas em Educação Física
Escolar da Faculdade de Educação da USP - GPEF/FEUSP - com o objetivo de estudar a
prática docente e tem como seu maior expoente os professores Marcos Garcia Neira46 e Mário
Luiz Ferrari Nunes47.
Como já exposto no Capítulo I, no ano de 2006, Neira e Nunes publicaram o livro
Pedagogia da cultura corporal: crítica e alternativas, considerado o marco inicial da
proposta curricular pós-crítica da Educação Física. Essa proposta viria ser mais tarde
“lapidada” por uma segunda publicação Educação Física, currículo e cultura (2009), onde os
autores reafirmam o Currículo Cultural como um currículo pós-crítico, fundamentados na
teoria dos Estudos Culturais, segundo o sociólogo jamaicano Stuart Hall48, e no
Multiculturalismo crítico, baseando-se no canadense Peter McLaren49, no estudo da
linguagem, a partir de Jacques Derrida50 e nas relações de poder, a partir do filósofo francês
Michel Foucault.
Esse referencial busca romper com os modelos curriculares tradicionais que visam à
adequação dos sujeitos à sociedade, assim como rompem, em partes, com os princípios dos
currículos críticos que buscam, por meio da educação (educação como meio para), a
emancipação dos sujeitos das contradições impostas pelo capitalismo.
46
Marcos Garcia Neira é professor pesquisador na Faculdade de Educação da USP e esteve à frente do grupo de
estudos que deu origem ao Currículo Cultural da Educação Física (NEIRA; NUNES, 2007).
47
Mário Luiz Ferrari Nunes é professor pesquisador da Faculdade de Educação Física da Unicamp e, juntamente
com Neira, esteve à frente do grupo de estudos que deu origem ao Currículo Cultural da Educação Física
(NEIRA; NUNES, 2007).
48
Stuart Hall nascido na Jamaica e residente em Oxford (Reino Unido) é um proeminente teórico cultural. Em
seus estudos, influenciados por pensadores como Gramsci, focaliza temas como hegemonia, estudos culturais,
linguagem, economia, consumo, preconceito, cidadania e política (LOPES; MACEDO, 2011).
49
Peter McLaren, canadense radicado nos Estados Unidos. Sua obra abarca temas que tratam da mídia, da
cultura popular e da educação como um ato revolucionário. Ao longo de sua trajetória sofreu forte influência de
Paulo Freire e do multiculturalismo (LOPES; MACEDO, 2011).
50
Jacques Derrida (1930-2004), um argelino radicado na França, conhecido pela sua visão a respeito da
diferença. Considerado um dos ícones da "atitude" pós-estruturalista (LOPES; MACEDO, 2011).
80

Por isso, é muito delicado entendermos o Currículo Cultural como continuidade


daquilo que foi construído no Currículo Crítico-superador e no Currículo Crítico-
emancipatório, pois a negação do pensamento Moderno é determinante para o Currículo
Cultural. Sendo assim, para seus idealizadores:

[...] um currículo pós-crítico de Educação Física, ao apoiar-se nos referenciais pós-


modernos, valoriza a produção, a criação do que ainda não foi pensado, contesta as
estéticas canônicas, não se amarra em métodos rígidos e verdadeiros, planos
previsíveis e tecnocráticos, descentraliza o poder do conhecimento do professor
oriundo da cultura acadêmica e abre as portas para os conhecimentos de outros
campos discursivos, do senso comum e para as práticas da cultura popular e da
cultura paralela à escola. Afirma a diferença por meio da valorização de múltiplas
identidades. Não se preocupa com o controle e a regulação. Com base nas
influências pós-modernistas, no currículo pós-crítico da Educação Física, a incerteza
abre portas para a fabulação, a invenção e a construção coletiva, para a análise do
efêmero e do passageiro. No pensamento pós-moderno, o saber não é um meio de
emancipação, mas uma possibilidade de compreender a complexidade da vida e de
torná-la mais complexa (NEIRA; NUNES, 2009, p. 167).

Percebe-se, então, que o Currículo Cultural, ao tentar inovar, acaba por reproduzir
aquilo que já encontrávamos na obra de Freire ao buscar descentralizar o professor no
processo educativo e ao considerar os saberes populares como conhecimento relevante à
escola, porém, há uma diferença significativa: Freire (2000, p. 31) entende que “[...] se a
educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda [...]”. Já
no entendimento do Currículo Cultural a transformação não é uma meta a ser alcançada pela
educação, pois cabe à educação oferecer subsídios para que os sujeitos consigam realizar sua
própria leitura do mundo. Nesse sentido, a educação do ser humano não assume um
compromisso transformador.
O Currículo Cultural da Educação Física parte, então, do mapeamento das ocorrências
sociais da cultura corporal buscando legitimar o patrimônio cultural corporal que é
marginalizado por outras propostas curriculares. Estas ocorrências passam a ser interpretadas
como textos, como discursos que precisam ser lidos e interpretados para que possam ser
aprofundados, ampliados e ressignificados pelos educandos (ETO; NEIRA, 2017).
Segundo Neira (2011), a tematização, o mapeamento, a ressignificação, o
aprofundamento, a ampliação, o registro e a avaliação são os encaminhamentos pedagógicos
que organizam o Currículo Cultural.
Já em outra publicação, em 2019, o autor reorganizou esses encaminhamentos que
passaram a ser chamados de “situações didáticas”. Nessa reorganização, as situações didáticas
81

são: “mapeamento, leitura, vivências, ressignificação, aprofundamento, ampliação, registro e


avaliação” (NEIRA, 2019, p. 59).
Essa proposta de Educação Física pós-crítica assume, então, como seu conteúdo de
ensino as diferentes manifestações da cultura corporal e como elas foram construídas, ou seja,
é necessário considerar o conteúdo juntamente com o seu contexto histórico, social, cultural,
político e econômico, sabendo que todos esses aspectos estabelecem uma relação de poder
entre todos os sujeitos envolvidos e que o discurso que prevalece (a manifestação da cultura
corporal como a conhecemos) nada mais é que o discurso hegemônico que pode ser
ressignificado a qualquer momento e por qualquer sujeito.
Para o Currículo Cultural da Educação Física, segundo Neira e Nunes (2009, p. 224) a
escola deve ocupar seu lugar na “construção de uma sociedade mais democrática e
equitativa”. Desta forma, os conteúdos devem atender princípios, como:

“Reconhecer nossas identidades culturais”; proporcionar a “justiça curricular”, tanto


na distribuição das temáticas de estudo tomando como referência os grupos culturais
onde se originaram quanto a possibilidade de se fazer justiça no transcorrer das
aulas; atentar ao processo de “descolonização do currículo”, para que outras práticas
culturais possam ocupar, mesmo que temporariamente, a condição hegemônica;
evitar o “daltonismo cultural”, tendo em vista o entendimento de que as diferenças
entre grupos e pessoas são culturalmente construídas e a “ancoragem social dos
conteúdos”, isto é, contextualizar as práticas corporais no seu espaço/tempo de
produção e reprodução, identificando os modos como são afirmadas ou silenciadas
(NEIRA; NUNES, 2009, p. 263).

É importante mais uma vez relacionarmos o Currículo Cultural com a Educação


Libertadora, pois, quando a primeira proposta considera o mapeamento das ocorrências
sociais no contexto dos alunos com a finalidade de legitimar culturas não hegemônicas, acaba
por se aproximar da proposta freireana.
Isso acontece porque algumas categorias elaboradas por Paulo Freire exerceram, em
alguma medida, influência sobre essa proposta pós-crítica. Segundo Neira51 e Santos (2019),
houve uma reterritorialização52 do pensamento freireano no Currículo Cultural da Educação
Física.

51
Relembrando que o professor Marcos Garcia Neira é um dos idealizadores do Currículo Cultural da Educação
Física.
52
Segundo Deleuze e Guattari (2000) apud Neira e Santos (2019, p. 55), “territorializar" significa codificar,
submetendo a regras e controles, setores ou elementos da vida social, como, por exemplo, a família, o trabalho, o
corpo, a educação. Sob análise deleuze-guattariana, algo pode ser desterritorializado, isto é, descodificado, tendo
suas regras e controles tradicionais afrouxados, o que abrirá espaço para um processo de reterritorialização, ou
seja, instituição de novos e renovados controles e regras.
82

Nos últimos anos, sob o efeito da teorização pós-crítica, muitos argumentos


freireanos foram desterritorializados do lugar em que se encontravam para serem
reterritorializados, o que deu curso à gênese e transformações do chamado Currículo
Cultural da Educação Física, uma construção coletiva resultante do diálogo entre a
prática pedagógica voltada para a constituição de identidades solidárias e a pesquisa
acadêmica (NEIRA; SANTOS, 2019, p. 52).

As concepções freireanas de realidade dos educandos, tema gerador, problematização


e conteúdo escolar são categorias freireana que passaram por esse processo de
reterritorialização no Currículo Cultural.

A discussão travada neste texto evidencia que a apropriação dos conceitos freireanos
pela teoria cultural da Educação Física não se deu de forma direta, sem mutações.
Sem sombra de dúvidas, a educação popular exerceu forte influência no currículo
pós-crítico, mas ao fazê-lo sofreu abalos na sua estrutura, modificando-se, em alguns
casos por completo. Enquanto a pedagogia de Paulo Freire extrai da realidade
concreta os temas geradores, divide-os em partes para estudá-los e desvelar a
verdade camuflada pela ideologia opressora, o currículo cultural da Educação Física
trabalha com temas culturais, ou seja, com a ocorrência social das práticas corporais,
aborda suas várias facetas e propicia uma visão aprofundada e ampliada da
brincadeira, dança, luta, esporte ou ginástica.
A educação problematizadora defendida por Freire também se distingue da
concepção de problematização adotada pela perspectiva cultural. Na primeira, o
professor apresenta questões que possam levar os estudantes a compreenderem as
implicações sociais, históricas e políticas do tema gerador. Na segunda, a
problematização se volta para os discursos acerca das práticas corporais e dos seus
representantes, levando os estudantes à análise das relações de poder que influem na
disseminação de determinadas representações em detrimento de outras.
Finalmente, para Freire, o conhecimento não possui um significado em si, mas é
contextualmente produzido nas lutas contra à opressão. Nessa lógica, o conteúdo
escolar opera, propositadamente, na conscientização do oprimido acerca da situação
em que se encontra, transitando da ingenuidade à criticidade. Como se viu, no
currículo cultural, o conhecimento é sempre discursivo e advém de inúmeras fontes,
incluindo os saberes das gentes. O conteúdo escolar resulta, portanto, do
acontecimento, do encontro entre discentes e docente sem qualquer pretensão de
busca da verdade ou da explicação salvadora (NEIRA; SANTOS, 2019, p. 62-63).

Nota-se, então, que a leitura pós-crítica da pedagogia freireana considera que Freire
fragmenta os temas geradores e busca desvelar uma verdade camuflada pela ideologia
opressora. No entanto, entendemos que essa leitura é controversa, pois consideramos que
Freire entende o ser humano como um ser inconcluso e o mundo como permanente devir e,
por isso, a noção de totalização da realidade, sendo a realidade um produto histórico, é
fundamental para a sua proposição curricular crítica.
Logo, é um equívoco pensar a Educação Libertadora como algo fragmentado que
busque encontrar uma verdade absoluta, pois, para Freire, assim como, para Marx, o que há
são totalizações históricas.
83

A respeito da problematização, o referencial pós-crítico compreende que na Educação


Libertadora, o professor apresenta questões aos educandos para que esses compreendam as
implicações sociais, históricas e políticas em torno do tema, o que não deixa de ser verdade,
em um segundo momento do processo educativo, porém, Freire, inicialmente, propõe que o
educador parta dos questionamentos do próprio educando ao se deparar com uma situação-
limite que necessite ser superada.
Por fim, a leitura pós-crítica que o Currículo Cultural realiza entende que o
conhecimento para Freire é produzido contextualmente nas lutas contra opressão e é nesta
lógica que o conteúdo escolar opera almejando a conscientização.
Mais uma vez, consideramos que há limites nesta leitura, pois Freire reconhece a
legitimidade dos conhecimentos que estão presentes na realidade dos educandos, ou seja,
aqueles conhecimentos que a razão científica moderna e a escola desconsideram. É por isso
que para a Educação Libertadora a horizontalidade entre educador e educando é tão
importante, pois é do encontro desses saberes distintos que se configura o processo de ensino-
aprendizagem.
Sendo assim, podemos considerar que o Currículo Cultural, ao defender que os
discursos contra hegemônicos sejam contemplados no percurso escolar, não assume como
principal compromisso do processo educativo a transformação dos sujeitos e a transformação
da realidade.
O referencial Pós-moderno, parece buscar um distanciamento das contribuições do
paradigma marxista, de modo que seu projeto de educação não consegue deixar claro quais
limites das propostas curriculares críticas foram superados pelo currículo pós-crítico ou onde
há uma continuidade entre essas propostas.
A recusa em assumir uma proposta teleológica também retira do Currículo Cultural da
Educação Física a clareza sobre o projeto de cidadão e de sociedade que se pretende formar.
Desta maneira, causa a impressão de que somente compete ao processo educativo legitimar
diferentes discursos contra hegemônicos, sem uma proposta do que se possa fazer com os
mesmos.
Mesmo sendo a única proposta curricular pós-crítica da Educação Física até o presente
momento, consideramos pertinente estabelecer um quadro comparativo entre o Currículo
Cultural da Educação Física e os aspectos que caracterizam uma proposta curricular pós-
crítica.
84

Quadro 10 - Aspectos de um currículo pós-crítico contemplados no currículo pós-crítico de


Educação Física

Currículo

Currículo
Cultural
Aspectos de um currículo pós-crítico
O currículo não pode ser universal; ---
O currículo não pode ser teleológico; ---
O currículo não pode estar pautado na razão científica moderna; X
O currículo entende que as teorias são discursos; X
O currículo não deve sustentar metanarrativas; X
O currículo entende que o saber possui uma relação com o poder; X
O currículo deve contemplar temas como gênero, raça, etnia e culturas
X
subjugadas;
O currículo entende que o sujeito nunca possuirá autonomia - ele é pensado,
X
falado e produzido pelos diferentes discursos;
A educação não pode emancipar ninguém - sempre estaremos subordinados a
X
uma relação de saber/poder.
LEGENDA: X = aspecto contemplado / --- = aspecto não contemplado
Fonte: Organizado pelo pesquisador.

O Currículo Cultural da Educação Física não atende o aspecto “O currículo não pode
ser universal” ao estabelecer quais são os encaminhamentos pedagógicos da proposta. Embora
os seus propositores deixem claro que esses encaminhamentos não são uma regra ou uma
sequência a ser seguida, a busca por organizar o currículo é uma tentativa de repetir esse
processo mais vezes, o que não seria um problema para a teoria curricular tradicional e para
teoria curricular crítica, mas acaba sendo uma contradição para a teoria curricular pós-crítica,
pois é uma forma de fazer com que o Currículo Cultural seja reproduzido por quem desejar,
em outras palavras, que ele seja universalizado.
Outro ponto que fragiliza o Currículo Cultural como currículo pós-crítico é sua
teleologia, pois há momentos que os seus propositores estabelecem direções a serem seguidas,
como a “construção de uma sociedade mais democrática e equitativa” (NEIRA; NUNES,
2009, p. 224) e a própria constituição identitária como teleologia ao enxergar a possibilidade
85

de transformação social pela “identidade solidária” (NUNES; RÚBIO, 2008), o que contradiz
ao mesmo tempo a recusa por uma teleologia e pela constituição de uma identidade no
currículo.
Mais uma vez ressaltamos que esses aspectos apontados se configuram como críticas
somente no âmbito dos contrapontos entre os princípios da teoria curricular pós-crítica e o
Currículo Cultural da Educação Física, pois acreditamos que uma proposta curricular dever
ter um direcionamento claro que conduzirá o percurso educacional.
Finalizando esta breve apresentação da proposta curricular pós-crítica da Educação
Física, podemos pontuar que ela representa uma grande ruptura com as propostas curriculares
críticas, principalmente por estar apoiada em um referencial teórico Pós-moderno que rejeita
muitos dos princípios e fundamentos adotados pela Modernidade.
Como é de se esperar, isso vai refletir, mais uma vez, na constituição da identidade
docente em Educação Física, conforme veremos a seguir.

2.4.1.1. A identidade docente, segundo o currículo pós-crítico de Educação Física

A identidade docente constituída pelo currículo pós-crítico da Educação Física sofre


mais influência filosófica de seu referencial teórico do que da própria proposta pedagógica
que preconiza.
Isso porque a visão de ser humano para a Pós-modernidade deve superar a visão
Moderna, isto é, o Homem não é provido de razão e isso gerou diversas contradições
presentes na contemporaneidade.
Fundamentados nas ideias de Derrida, o Currículo Cultural da Educação Física
entende que “o indivíduo não é dotado de uma identidade prévia, original; ele constrói sua
identidade com base nos aparatos discursivos e institucionais que o definem como tal, como a
escola e o currículo” (NEIRA; NUNES, 2009, p. 178).
Fica explícito também o entendimento de que os discursos institucionais, como um
currículo escolar, por exemplo, vão interferir na identidade dos sujeitos ao qual esse discurso
é direcionado. São justamente os discursos dados como metanarrativas que constituem a
identidade de cada sujeito. Por consequência, é esse mesmo discurso que estabelece aquilo
que é classificado como diferente, fora do padrão identitário que o discurso almejava
construir. “A identidade – aquilo que “nós” somos – é uma construção discursiva tanto quanto
a diferença – aquilo que “nós” não somos.” (NEIRA; NUNES, 2009, p. 179).
86

As relações de poder que legitimam os discursos hegemônicos, segundo o currículo


pós-crítico, estão presentes em todas as relações sociais. Isso significa dizer que o poder está
descentralizado e que, desta forma, não é possível a emancipação do sujeito como
preconizado pela teoria curricular crítica. Sendo assim, busca-se uma identidade solidária
através do contato com diferentes culturas, pois isso favoreceria a autocrítica em relação aos
discursos hegemônicos e, por consequência, seria uma possibilidade para a transformação
social (NUNES; RÚBIO, 2008).
Isso não significa dizer que o Currículo Cultural da Educação Física é teleológico,
pois, como currículo pós-crítico, rejeita a ideia de estabelecer metas fixas para a identidade a
ser formada pela escola. Sendo assim, a transformação social não constitui uma direção, mas
sim, uma possibilidade.
Com isso, temos mais uma ruptura: a do professor de Educação Física agente de
saúde, militar, técnico esportivo e recreador. Também está rompendo com o professor de
Educação Física à serviço das outras disciplinas escolares e com o professor crítico.
Desta forma, o docente em Educação Física para o Currículo Cultural não necessita de
uma identidade docente constituída. Entendemos que ele assume a figura de professor, porém
como sujeito em meio às relações de poder buscando um fazer/ser diferente em relação ao que
já está dado. Assim, cabe ao professor construir sua própria identidade, ou seja, construir o
próprio discurso.

Pode-se entender, com base nos argumentos expostos, que ser professor de
Educação Física não é algo natural, uma essência. Vestir certas roupas, possuir
certos corpos, realizar com eficiência certas práticas corporais, defender certas ideias
são decorrências de processos discursivos que afirmam, por meio de relações de
saber-poder, qual a identidade de professor de Educação Física é a norma.
Apresentar-se de forma contrária à afirmada pelos discursos e pelas relações de
saber-poder constitui a diferença (NEIRA; NUNES, 2009, p. 179).

“Sob a inspiração de uma pedagogia cultural, os educadores tornam-se menos


escolares e mais culturais. Menos parecidos com o professor e mais próximos ao artista,
trabalhando na linha da divergência e da reconceptualização daquilo que está posto” (NEIRA;
NUNES, 2009, p. 233).
Sintetizando, a identidade docente para o currículo pós-crítico da Educação Física está
relacionada com os discursos presentes na sociedade associados às relações de poder entre os
sujeitos que praticam esses discursos. Portanto, parece não ser a preocupação desta teoria
curricular, constituir uma identidade docente em Educação Física.
87

Ainda assim, foi possível compreender que a ideia de “identidade solidária” e de


docente “menos parecidos com o professor e mais próximos ao artista” colabora para que
possamos entender o professor como uma figura que busca ressignificar discursos ao mesmo
tempo em que é ressignificado por eles.
Desta maneira, a partir do nosso entendimento a respeito do Currículo Cultural da
Educação Física, procuramos estabelecer a identidade docente constituída:

Quadro 11 - A identidade docente constituída pelo currículo pós-crítico de Educação Física


Identidade docente
Principais características dadas pelo
(ou profissional)
currículo
constituída
Leitura da cultura corporal como discurso a
Currículo Cultural ser ressignificado e valorização das culturas Professor
marginalizadas no currículo escolar
Fonte: Organizado pelo pesquisador.

Seguindo o padrão estabelecido ao longo deste capítulo, abaixo segue o quadro


contendo as informações referentes à proposta curricular pós-crítica da Educação Física:

Quadro 12 - Síntese da proposta curricular pós-crítica de Educação Física


MOMENTO DA IDENTIDADE
TEORIA TENDÊNCIA PRINCIPAIS BASE FILOSÓFICA/ PRINCIPAIS
EDUCAÇÃO CURRÍCULO DOCENTE
CURRICULAR PEDAGÓGICA REFERÊNCIAS EPISTEMOLÓGICA CARACTERÍSTICAS
FÍSICA CONSTITUÍDA

Segundo Marcos Garcia Leitura da cultura corporal


momento: Neira e Mário como discurso a ser
Pós-estruturalismo,
A Educação Cultural Pós-crítica ---* Luiz Ferrari ressignificado e valorização Professor
Estudos Culturais
Física em busca Nunes (2006; das culturas marginalizadas
da autocrítica 2009) no currículo escolar

* Não consideramos que alguma tendência pedagógica específica fundamente essa proposta curricular.
Fonte: Organizado pelo pesquisador.

Embora o Currículo Cultural tenha representado um distanciamento de uma Educação


Física alienada e alienante, não podemos deixar de considerar a necessidade de permanecer
com a autocrítica, uma vez que a crise de identidade da Educação Física parece permanecer.
É por isso que consideramos pertinente entendermos a Educação Física como uma
construção histórica e, nesse sentido, o quadro abaixo nos traz uma noção de totalização ao
sintetizar as propostas Educação Física escolar, conforme apresentada até aqui:
88

Quadro 13 - Síntese das propostas curriculares tradicionais, críticas e pós-crítica da Educação


Física

MOMENTOS DA IDENTIDADE
TEORIA TENDÊNCIA PRINCIPAIS BASE FILOSÓFICA/ PRINCIPAIS
EDUCAÇÃO CURRÍCULO DOCENTE
CURRICULAR PEDAGÓGICA REFERÊNCIAS EPISTEMOLÓGICA CARACTERÍSTICAS
FÍSICA CONSTITUÍDA

Condicionamento físico e
Ginástico Tradicional Tecnicista ---* Medicina, Biologia
disciplina

Condicionamento físico e
Primeiro Ginástico Tradicional Tecnicista ---* Medicina, Biologia Agente de saúde
disciplina
momento: / Militar
A Educação
Condicionamento físico e
Física alienada e
disciplina (olhar voltado para
alienante Ginástico Tradicional Escolanovista ---* Medicina, Biologia
o aluno e para a normatização
do lazer)

Medicina, Biologia, Treinador /


Esportivista Tradicional Tecnicista ---* Performance esportiva
Fisiologia Técnico

João Batista Desenvolvimento global Professor /


Psicomotor Tradicional Tecnicista Psicologia
Freire (1989) através de atividades lúdicas Recreador

Desenvolvi- Desenvolvimento global Professor /


Tradicional Tecnicista Go Tani (1988) Psicologia
mentista através de atividades lúdicas Recreador

Preparador físico
Medicina, Biologia,
Saudável Tradicional Tecnicista ---* Cuidado com a saúde / Personal
Fisiologia
training

Transmissão dos
Progressista conhecimentos científicos
Crítico- Coletivo de Filosofia, Sociologia
Segundo Crítica (Histórico- relacionados à cultura Professor
superador Autores (1992) (à luz do Marxismo)
momento: Crítica) corporal visando à superação
A Educação do senso comum.
Física em busca
da autocrítica
Ensino dos esportes
tradicionais (considerando
Filosofia, Sociologia também sua prática popular)
Crítico- Progressista Elenor Kunz
Crítica (à luz da como manifestação do Professor
emancipatório (Libertadora) (1991; 1994)
Fenomenologia) “Se-movimentar” visando à
emancipação em relação à
opressão do esporte.

Marcos Garcia Leitura da cultura corporal


Neira e Mário como discurso a ser
Pós-estruturalismo,
Cultural Pós-crítica ---** Luiz Ferrari ressignificado e valorização Professor
Estudos Culturais
Nunes (2006; das culturas marginalizadas
2009) no currículo escolar

**Currículos que não possuem um único autor como seu principal propositor.
** Não consideramos que alguma tendência pedagógica específica fundamente essa proposta curricular.
Fonte: Organizado pelo pesquisador.

2.5. O currículo e a identidade docente à luz da pedagogia freireana

Para compreendermos o currículo escolar e a identidade docente a partir da pedagogia


freireana, devemos, primeiramente, compreender Paulo Freire como um sujeito histórico e
inconcluso. Por isso, consideramos necessário conhecermos, mesmo que brevemente, a
89

realidade em que Freire estava inserido, com quem dialogava e a quem era destinada suas
críticas.
Paulo Freire (1921-1997) era pernambucano e, em 1947, formou-se na Faculdade de
Direito do Recife já com vocação à área da Educação, pois era comum em Pernambuco, pela
falta de cursos destinados à formação de professores, a graduação em Direito (FREIRE,
2017).
Atuando como educador, levou à periferia do Recife sua proposta para alfabetização
de adultos e chegou a coordenar o Plano Nacional de Alfabetização. Porém, com a ditadura
militar de 1964, Paulo Freire foi preso e, posteriormente, exilado. Em seu exílio no Chile,
influenciado principalmente por um referencial marxista, escreveu Pedagogia do Oprimido,
obra publicada em 1970, que lhe daria repercussão internacional como educador (FREIRE,
2017).

Como Paulo Freire, muitos pensadores latino-americanos, comprometidos com as


transformações sociais de suas realidades, buscaram no referencial teórico deixado
por Marx, compreender a natureza do capitalismo em seus contextos. E, a partir
disso, ousaram propor ações concretas que, levando em conta suas especificidades,
ajudassem os povos a lutar por justiça e construir uma nova ordem social (SILVA,
2007, p. 29).

É com essa inspiração marxista que na referida obra, Freire (1987), denuncia aquilo
que chama de “educação bancária”, um formato de educação onde os professores são
detentores de determinados conhecimentos e através de narrações devem “transferir” esses
conteúdos aos alunos para que essa informação seja devidamente depositada, tornando o
processo educativo alienante.

A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização


mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em “vasilhas”,
em recipientes a serem “enchidos” pelo educador. Quanto mais vá “enchendo” os
recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor educador será. Quanto mais se
deixem docilmente “encher”, tanto melhores educandos serão.
Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os
depositários e o educador o depositante.
Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os
educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí
a concepção “bancária” da educação [...] (FREIRE, 1987, p. 37).

Para Freire, ao negar aos sujeitos a concretude dos conteúdos escolares, ao negar sua
produção como histórica e ao negar a possibilidade de transformação dessas narrativas, a
“educação bancária” torna desumanizante o processo educativo. Ela, a “educação bancária”,
reifica os sujeitos ao entender a realidade como algo já estabelecido, estático e rígido e, por
90

isso, algo a ser conservado. Neste sentido, há a manutenção da sociedade capitalista e


neoliberal fazendo com que os sujeitos se adaptem a ela, impossibilitando a percepção e
superação de contradições sociais.
Logo, entendemos que, para Freire, um dos principais papeis da educação está
relacionado com a superação das contradições sociais. Assim, para pensarmos um currículo
crítico-freireano, é de suma importância pensarmos um currículo baseado no Materialismo
Histórico-dialético e, embora Marx não tenha formulado propostas especificamente para a
educação, algumas proposições foram realizadas em debates sobre política, economia e
sociedade, de tal forma que é possível compreender o que seria uma educação marxista,
principalmente entendendo sua concepção de vocação e de natureza humana.
Para o marxismo, a existência do ser humano depende da transformação do ambiente
natural, isto é, depende que o sujeito produza seu ambiente e sua sobrevivência. Em outras
palavras: o ser humano produz sua própria humanidade. Desta forma, entendemos que o ser
humano não nasce humano. Ele forma-se humano através da educação com intuito de
transformar sua realidade garantindo, assim, sua existência e sua humanidade.
Logo, ao partir dos fundamentos marxistas, entendemos que uma proposta curricular
freireana deve considerar o processo educativo como um processo transformador e
humanizador, destacando seu caráter teleológico, uma vez que vê como finalidade do
processo educativo a liberdade para “ser mais”.
Por isso que, para Freire, a educação tradicional ou “educação bancária” é um
instrumento de opressão e desumanização, pois vê a realidade “como algo parado, estático,
compartimentado e bem comportado” (FREIRE, 1987, p. 37). Isso significa que não há
possibilidade do processo educativo ser transformador. Resta aos educandos, através das
transferências realizadas pelo professor, receber os conhecimentos já produzidos pela
humanidade de forma fragmentada e, com eles, se adaptar ao mundo já dado.
Após também considerar as denúncias de Freire à “educação bancária” de caráter
tradicional e liberal e compreender sua visão ontológica de ser, Nunes (2018) sintetizou as
categorias que explicitam a proposta de Educação Libertadora de Freire que, segundo a
autora, as qualificam como um currículo crítico. São elas: o diálogo; a práxis; a relação
educador-educando; o conhecimento como ato cognoscente; a problematização da realidade;
a conscientização; a investigação temática e o tema gerador.
Para Freire, a educação deve libertar os homens da opressão, das contradições, da
alienação, do conservadorismo da realidade e isso só é possível pelo diálogo. No entanto, o
91

diálogo não é meramente a reprodução de palavras sem sentido e sem vínculo com a realidade
(características da “educação bancária”).

Quando tentamos um adentramento no diálogo, como fenômeno humano, se nos


revela algo que já poderemos dizer ser ele mesmo: a palavra. Mas, ao encontrarmos
a palavra, na análise do diálogo, como algo mais que um meio para que ele se faça,
se nos impõe buscar, também, seus elementos constitutivos.
Esta busca nos leva a surpreender, nela, duas dimensões; ação e reflexão, de tal
forma solidárias, em uma interação tão radical que, sacrificada, ainda que em parte,
uma delas, se ressente, imediatamente, a outra. Não há palavra verdadeira que não
seja práxis. Daí, que dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo (FREIRE,
2017, p. 50).

A palavra deve carregar consigo intenção de ação e reflexão e essas duas dimensões
estabelecem uma relação dialética entre si. Não há uma sem a outra. Caso contrário, a palavra
não é práxis.
Fundamentado na filosofia marxista, Freire (1987, p. 26, grifo nosso) entende a práxis
de tal forma que, “[...] num pensar dialético, ação e mundo, mundo e ação, estão intimamente
solidários. Mas, a ação só é humana quando, mais que um puro fazer, é um que fazer, isto é,
quando também não se dicotomiza da reflexão”.

A palavra inautêntica, por outro lado, com que não se pode transformar a realidade,
resulta da dicotomia que se estabelece entre seus elementos constituintes. Assim é
que, esgotada a palavra de sua dimensão de ação, sacrificada, automaticamente, a
reflexão também, se transforma em palavreria, verbalismo, blablablá. Por tudo isto,
alienada e alienante. É uma palavra oca, da qual não se pode esperar a denúncia do
mundo, pois que não há denúncia verdadeira sem compromisso de transformação,
nem este sem ação (FREIRE, 1987, p. 50).

A práxis então é o “que fazer”, ou seja, ação-reflexão-ação dos sujeitos de forma


consciente e crítica, objetivando a superação das contradições com vistas à transformação da
realidade e à humanização dos homens para que esses se libertem. E todo esse processo se dá
por meio do diálogo.
É através do diálogo que os sujeitos se expressam mediatizados pela realidade
concreta. Em outras palavras, é por meio do diálogo que os homens transformam o mundo, e,
por consequência, se constituem humanos.

Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a pronúncia do
mundo e os que não a querem; entre os que negam aos demais o direito de dizer a
palavra e os que se acham negados deste direito. É preciso primeiro que, os que
assim se encontram negados no direito primordial de dizer a palavra, reconquistem
esse direito, proibindo que este assalto desumanizante continue.
92

Se é dizendo a palavra com que, “pronunciando” o mundo, os homens o


transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham
significação enquanto homens.
Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se
solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser
transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um
sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem
consumidas pelos permutantes (FREIRE, 1987, p. 51).

É por isso que uma proposta curricular sob à luz da pedagogia freireana deve
considerar o diálogo como uma condição para a construção de um currículo escolar, pois
somente por meio do diálogo é possível atribuir aos educados sua condição de sujeito
protagonista do processo educativo.
Nesta direção, a identidade docente ganha forma na práxis curricular, isto é, na ação e
reflexão associadas a um compromisso de transformação da realidade, onde educador e
educando, em uma relação de horizontalidade, assumem o papel de protagonismo no processo
educativo.
A pedagogia do oprimido, então, é aquela que parte da própria reflexão e necessidades
dos oprimidos com vistas à humanização. Não pode ser realizada para o oprimido, mas sim,
com o oprimido.
Sendo assim, a relação educador-educando se constitui como categoria importante da
proposta educacional freireana. Freire critica o modelo de educação bancária, onde o
professor é detentor do conhecimento e sujeito do processo educativo e o aluno é uma vasilha
onde esse conhecimento pode ser depositado, assumindo condição de objeto deste processo.
Neste modelo não há diálogo, pois “em lugar de comunicar-se, o educador faz
„comunicados‟ e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente,
memorizam e repetem” (FREIRE, 1987, p. 37). Assim, resta ao educando somente uma
possibilidade: se adaptar a um mundo já dado e sem possibilidades de transformação.
Para Freire (1987, p. 37), “[...] só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca
inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os
outros” e, por isso, a Educação Libertadora deve superar a relação verticalmente
hierarquizada entre educador e educando, pois ambos são sujeitos do processo educativo
humanizador, portanto, esta relação deve ocorrer na horizontalidade.
A relação educador-educando, para Freire, não concebe hierarquização entre esses
dois sujeitos, assim como não concebe que ambos os sujeitos se encontrem fora da realidade
mediatizadora. “[...] ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém educa a si mesmo: os
homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1987, p. 44).
93

O educador aprende com o educando e com o mundo, ou seja, na medida em que


educa, ele também é educado. Portanto, o educador deve estar permanentemente em
formação. Isso é condição da própria proposta humanizadora, uma vez que somos seres
inacabados. Por isso que, para Freire, conhecer é processo e o conhecimento é um ato
cognoscente.

[...] o objeto cognoscível, em lugar de ser o término do ato cognoscente de um


sujeito, é o mediatizador de sujeitos cognoscentes, educador, de um lado, educandos,
de outro, a educação problematizadora coloca, desde logo, a exigência da superação
da contradição educador-educandos. Sem esta, não é possível a relação dialógica,
indispensável à cognoscibilidade dos sujeitos cognoscentes, em torno do mesmo
objeto cognoscível (FREIRE, 1987, p. 75).

O educador e o educando devem assumir, então, papeis de investigadores,


questionadores, estabelecendo um pensar e um fazer crítico (práxis) no mundo. Para Freire,
isso só é possível se o processo educativo for problematizador da realidade.

Deste modo, o educador problematizador refaz, constantemente, seu ato


cognoscente, na cognoscibilidade dos educandos. Estes, em lugar de serem
recipientes dóceis de depósitos, são agora investigadores críticos, em diálogo com o
educador, investigador crítico, também.
[...] Pelo fato mesmo de esta prática educativa constituir-se em uma situação
gnosiológica, o papel do educador problematizador é proporcionar, com os
educandos, as condições em que se dê a superação do conhecimento no nível da
“doxa53” pelo verdadeiro conhecimento, o que se dá, no nível do “logos54”
(FREIRE, 1987, p. 45).

Da investigação crítica, que problematiza a realidade, surgirão as denúncias em


relação às contradições da realidade objetiva concreta (situações-limite) e, de onde,
potencialmente também, surgirão os anúncios para a transformação do mundo (atos-limite).
Para Freire (1987), consciência e mundo estabelecem uma relação dialética entre si.
Não há um sem o outro. No entanto, o sujeito oprimido dispõe de uma falsa consciência em
relação à realidade concreta, tornando-se alienado e, por consequência, alimentando o medo
da liberdade55.

53
Doxa é uma palavra grega utilizada para se referir ao conhecimento em nível de opinião, crença, senso
comum. Para Freire (1983, p. 20), é “a percepção mágica da realidade”.
54
Logos também é uma palavra grega utilizada para se referir ao conhecimento, porém um conhecimento
fundamentado na realidade, na razão. Para Freire (1983, p. 30), o “logos que é o verdadeiro saber”.
55
Freire fundamenta seu entendimento sobre o medo da liberdade em Erich Fromm, psicanalista alemão
integrante da Escola de Frankfurt, que considerava as manifestações “necrófilas” dos sujeitos, isto é, o medo de
liberdade manifestado em uma atitude sádica de tratar outro sujeito como sendo um objeto de sua posse. Para
Freire (1987, p. 117), “Este medo da liberdade também se instala nos opressores, mas, obviamente, de maneira
94

Cabe, então, à educação, colaborar no processo de conscientização dos sujeitos


contribuindo no desvelamento das situações-limite impostas pela realidade. Identificar a
situação-limite é o ponto de partida para a transformação do mundo. Nesta direção, segundo
Freire (1979, p. 46), a conscientização: “é mais que uma simples tomada de consciência.
Supõe, por sua vez, superar a falsa consciência, quer dizer, o estado de consciência semi-
intransitivo ou transitivo-ingênuo, e uma melhor inserção crítica da pessoa conscientizada
numa realidade desmitificada”.
A conscientização é um processo para além da tomada de consciência, pois ela se dá
na práxis, ou seja, não é um fenômeno limitado ao pensamento, ao campo das ideias. A
conscientização exige ação-reflexão-ação.

[...] a conscientização na perspectiva freireana não se constitui apenas em


conhecimento ou reconhecimento, mas opção, decisão, compromisso histórico.
Baseia-se na relação “consciência-mundo”, “homens-mundo” e por isto não existe
fora da práxis (reflexão-ação), o que implica em utopia, não no sentido idealista,
mas dialético entre os atos de denunciar a estrutura desumanizante em que vivem os
indivíduos e o de anunciar a estrutura humanizadora. Neste sentido, o trabalho
humanizador não poderá ser outro, senão o da desmitificação da realidade, o da
transcendência das situações-limite [...] (TORRES, 2010, p. 158).

De forma sintética, podemos afirmar, então, que a Educação Libertadora e


problematizadora deve ser dialógica, deve se voltar à práxis, considerando uma relação de
horizontalidade entre educador e educando que entendem o conhecimento como ato
cognoscente e processual, partindo da problematização da realidade e colaborando no
processo de conscientização dos sujeitos.
Na síntese acima, fica evidente a educação como formação humana (humanização)
considerando necessariamente a relação entre homens inconclusos e a realidade a ser
transformada. Mas desta afirmação, surge também um questionamento: como saber quem são
esses sujeitos inconclusos e o que deve ser transformado no mundo?
Para responder a esse questionamento, Freire (1987) recorre àquilo que chama de
investigação temática e temas geradores. “Na concepção educacional freireana, a realidade,
passa a ser um desafio a ser respondido, cuja revelação se dá mediante a investigação
temática e pode (a realidade) ser sintetizada nos temas geradores” (TORRES, 2010, p. 158).
A investigação temática não tem como sua finalidade o objeto cognoscível, pois uma
Educação Libertadora, como já dito, objetiva a humanização dos sujeitos que se relacionam

diferente. Nos oprimidos, o medo da liberdade é o medo de assumi-la. Nos opressores, é o medo de perder a
"liberdade” de oprimir”.
95

dialeticamente entre si e com o mundo a ser transformado. Sendo assim, Freire (1987, p. 64)
entende que a investigação temática “se dá no domínio do humano e não no das coisas”.
Portanto, a realidade do educando é o local desta investigação através da
problematização da realidade e sua temática está relacionada com as situações-limite que são
desveladas e se concretizam em contradições na realidade do sujeito à medida que ele se
conscientiza delas. Esse processo ocorre pelo diálogo entre educador-educando.

Esta investigação implica, necessariamente, numa metodologia que não pode


contradizer a dialogicidade da Educação Libertadora. Daí que seja igualmente
dialógica. Daí que, conscientizadora também, proporcione, ao mesmo tempo, a
apreensão dos “temas geradores” e a tomada de consciência dos indivíduos em torno
dos mesmos.
Esta é a razão pela qual, (em coerência ainda com a finalidade libertadora da
educação dialógica) não se trata de ter nos homens o objeto da investigação, de que
o investigador seria o sujeito.
O que se pretende investigar, realmente, não são os homens, como se fossem peças
anatômicas, mas o seu pensamento-linguagem referido à realidade, os níveis de sua
percepção desta realidade, a sua visão do mundo, em que se encontram envolvidos
seus “temas geradores” (FREIRE, 1987, p. 56).

O tema gerador exige que educador e educando sejam sujeitos do processo


investigativo, ambos incompletos e ambos sujeitos de práxis, superando a visão da “educação
bancária” que entende o aluno como objeto do processo de ensino-aprendizagem. “É na
realidade mediatizadora, na consciência que dela tenhamos educadores e povo, que iremos
buscar o conteúdo programático da educação” (FREIRE, 1987, p. 56).
O tema gerador se tornará balizador da escolha de conteúdos escolares pelo processo
que Freire (1987) denomina de redução temática que, em âmbito escolar, consiste na:

[...] elaboração das atividades didático-pedagógicas (redução temática) a serem


problematizadas em sala de aula, tendo em vista a superação do senso comum dos
educandos em torno destes temas mediante a apreensão de conhecimentos
sistematizados que melhor os expliquem (TORRES, 2010, p. 162-163).

A escolha dos temas geradores a partir da realidade concreta dos educandos,


desvelando as contradições nela presentes, permite ao processo educativo eleger conteúdos
que possibilitam uma maior compreensão da respectiva temática, contribuindo na superação
destas contradições e, por consequência, humanizando os sujeitos.
Segundo Nunes (2018), as categorias freireanas acima apresentadas são a base para
pensarmos um currículo crítico-freireano, conforme sintetizado no quadro abaixo:
96

Quadro 14 - Aspectos de um currículo pensado à luz da pedagogia freireana

 O diálogo - o currículo deve ser dialógico, isto é, contemplar a tensão entre diferentes
visões da realidade;
 A práxis - o currículo deve propor ação-reflexão-ação aos sujeitos do processo
educativo; portanto uma práxis transformadora;
 A relação educador-educando - o currículo deve colocar educador e educando em uma
relação de horizontalidade, onde ambos são sujeitos do processo educativo;
 O conhecimento como ato cognoscente - o currículo deve considerar que o
conhecimento não é o fim do processo educativo, mas sim, o meio;
 A problematização da realidade - o currículo deve propor que educador e educando
assumam o papel de investigadores e questionadores críticos;
 A conscientização - o currículo deve colaborar no processo de conscientização dos
sujeitos entendendo que esse processo transcende a mera tomada de consciência, pois
implica em assumir um compromisso histórico de transformação da realidade;
 A investigação temática - o currículo deve propor o desvelamento da percepção que os
sujeitos possuem sobre determinada realidade e suas respectivas contradições;
 O tema gerador - o currículo deve garantir que os obstáculos à humanização sejam
considerados para eleger os conteúdos programáticos do processo educativo.
Fonte: Freire (1987) - Adaptado e sistematizado a partir de Nunes (2018).

Para entendermos a relação entre currículo e identidade docente, as categorias


freireanas diálogo e práxis ganharão um maior destaque ao longo desta pesquisa, pois
entendemos que, sob à luz da pedagogia freireana, o currículo escolar possui uma relação
muito próxima com o diálogo e a identidade docente é produto da práxis curricular.
A visão sobre uma perspectiva curricular à luz da Educação Libertadora de Paulo
Freire também nos possibilita a pensar uma identidade docente a partir dessa mesma
perspectiva. Para tanto, consideramos necessário nos aprofundar em alguns pontos do
Materialismo Histórico-dialético, pois é a partir deste paradigma que será possível
compreender a constituição de uma identidade docente à luz da pedagogia freireana.
O Materialismo Histórico-dialético entende que o sujeito produz o mundo vivido por
ele, na mesma medida em que o mundo o produz. Para Marx, o ser humano estabelece uma
97

relação dialética56 com o mundo, que, para ele, é uma dialética material e histórica, contrária
à dialética idealista da filosofia alemã, mais especificamente, de Hegel57.

Ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui é da terra que se
sobe ao céu. Em outras palavras, não partimos do que os homens dizem, imaginam e
representam, tampouco do que eles são nas palavras, no pensamento, na imaginação
e na representação dos outros, para depois se chegar aos homens de carne e osso;
mas partimos dos homens em sua atividade real, é a partir de seu processo de vida
real que representamos também o desenvolvimento dos reflexos e das repercussões
ideológicas desse processo vital. E mesmo as fantasmagorias existentes no cérebro
humano são sublimações resultantes necessariamente do processo de sua vida
material, que podemos constatar empiricamente e que repousa em bases materiais.
Assim, a moral, a religião, a metafísica e todo o restante da ideologia, bem como as
formas de consciência a elas correspondentes, perdem logo toda a aparência de
autonomia. Não tem história, não têm desenvolvimento; ao contrário, são os homens
que, desenvolvendo sua produção material e suas relações materiais, transformam,
com a realidade que lhes é própria, seu pensamento e também os produtos do seu
pensamento [...].
[...] Essa forma de considerar as coisas não é isenta de pressupostos. Ela parte das
premissas reais e não as abandona por um instante sequer. Essas premissas são os
homens, não os homens isolados e definidos de algum modo imaginário, mas
envolvidos em seu processo de desenvolvimento real em determinadas condições,
desenvolvimento esse empiricamente visível. Desde que se represente esse processo
de atividade vital, a história deixa de ser uma coleção de fatos sem vida, tal como é
para os empiristas, que são eles próprios também abstratos, ou a ação imaginária de
sujeitos imaginários, tal como é para os idealistas. (MARX; ENGELS, 1998, p. 19-
20).

Então, analisando o excerto retirado da obra de Marx e Engels, podemos considerar que
para o marxismo não existe um sujeito determinado e definido a priori. Pelo contrário, o
sujeito está em constante transformação a depender do meio em que está inserido e das
relações que estabelece com outros sujeitos e com o próprio meio.
É simples encontrarmos nas obras de Paulo Freire esse mesmo entendimento que,
fundamentado no marxismo, considera que sujeito e realidade não são dados a priori:

[...] os homens se sabem inacabados. Têm a consciência de sua inconclusão. Aí se


encontram as raízes da educação mesma, como manifestação exclusivamente
humana. Isto é, na inconclusão dos homens e na consciência que dela têm. Daí que
seja a educação um que-fazer permanente. Permanente, na razão da inconclusão dos
homens e do devenir da realidade (FREIRE, 1987, p. 47).

56
Na acepção moderna, [...] dialética é o modo de pensarmos as contradições da realidade, o modo de
compreendermos a realidade como essencialmente contraditória e em permanente transformação (KONDER,
2008, p. 07-08).
57
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), filósofo alemão que elaborou um sistema filosófico
extremamente complexo, no âmbito do idealismo alemão. Hegel pensou a lei dialética, em função da qual, cada
ser só se constitui num tríplice movimento de afirmação, negação e superação (tese, antítese, síntese)
(SEVERINO, 2007).
98

Percebemos, então, que o sujeito não é uma entidade pré-definida, assim como a
realidade em que está inserido não é imutável. A identidade humana não é um conceito
abstrato, meramente uma essência. Ela é produzida historicamente pelo próprio ser humano,
na medida em que interage com o mundo para transformá-lo e é “trans-formado” por ele, ao
mesmo tempo. Por isso, o ser humano e o mundo não podem ser entendidos como algo já
acabado, pronto e pré-determinado. Pelo contrário, tudo é devir, isto é, a realidade está
acontecendo a todo instante.
Nesse sentido, entendemos que o ser humano não nasce humano. Ele se forma humano
através da transformação de seu ambiente (o que Marx entende como trabalho), pois sua
sobrevivência depende disto. Logo, podemos dizer que o meio natural do ser humano é o
meio cultural, ou seja, um ambiente produzido por ele.

Pode-se referir a consciência, a religião e tudo o que se quiser como distinção entre
os homens e os animais; porém, esta distinção só começa a existir quando os
homens iniciam a produção dos seus meios de vida, passo em frente que é
consequência da sua organização corporal. Ao produzirem os seus meios de
existência, os homens produzem indiretamente a sua própria vida material (MARX;
ENGELS, 1998, p. 10-11).

Se é necessário ao ser humano produzir meios para sua própria existência, pois esses
não são naturais, podemos considerar que também é necessário aprender a se humanizar.
Portanto, a origem da educação coincide com a origem do homem. Em outras palavras, é por
meio da educação que o homem se humaniza e passa a “ser” humano.

Se a existência humana não é garantida pela natureza, não é uma dádiva natural, mas
tem de ser produzida pelos próprios homens, sendo, pois, um produto do trabalho,
isso significa que o homem não nasce homem. Ele forma-se homem. Ele não nasce
sabendo produzir-se como homem. Ele necessita aprender a ser homem, precisa
aprender a produzir sua própria existência. Portanto, a produção do homem é, ao
mesmo tempo, a formação do homem, isto é, um processo educativo. A origem da
educação coincide, então, com a origem do homem mesmo. Diríamos, pois, que no
ponto de partida a relação entre trabalho e educação é uma relação de identidade. Os
homens aprendiam a produzir sua existência no próprio ato de produzi-la
(SAVIANI, 2007, p. 154).

Daí a importância de compreender a dimensão ontológica do Materialismo Histórico-


dialético, onde os sujeitos constituem a realidade concreta (aspecto material) ao mesmo tempo
em que por ela são constituídos, interagindo numa relação de reciprocidade (aspecto dialético)
ao longo da história (aspecto histórico). Esta visão ontológica do marxismo é possível ser
vista também no pensamento de Freire:
99

Na verdade, diferentemente dos outros animais, que são apenas inacabados, mas não
são históricos, os homens se sabem inacabados. Têm a consciência de sua
inconclusão. Aí se encontram as raízes da educação mesma, como manifestação
exclusivamente humana. Isto é, na inconclusão dos homens e na consciência que
dela têm. Daí que seja a educação um “que-fazer” permanente. Permanente, na razão
da inconclusão dos homens e do devenir da realidade. Desta maneira, a educação se
refaz constantemente na práxis (FREIRE, 1987, p. 47).

Para Freire, o ser humano possui uma vocação ontológica de “ser mais”. O “ser mais”
é uma expressão que Freire utiliza para fazer referência ao homem que é um ser inconcluso,
inacabado e, por esse motivo, necessita tomar consciência crítica da sua condição de “estar
sendo” para transformar sua realidade, superando as contradições desumanizantes que o
limitam e, desta forma, libertar-se.
Porém, a “educação bancária” caminha em sentido contrário ao “ser mais”, pois, ao
invés de seguir na direção da tomada de consciência crítica, constitui um modelo de educação
alienado e alienante, responsável por introjetar nos sujeitos o “medo da liberdade”.

Não são raras as vezes em que participantes destes cursos, numa atitude em que
manifestam o seu "medo da liberdade”, se referem ao que chamam de “perigo da
conscientização”. “A consciência crítica (... dizem...) é anárquica.” Ao que outros
acrescentam: “Não poderá a consciência crítica conduzir à desordem?” (FREIRE,
1987, p. 15).

É esta contradição que se constitui como denúncia para Freire que o leva a anunciar a
Educação Libertadora, cujo aspecto teleológico se destaca: a liberdade, isto é, a emancipação
dos homens.
Desta forma, podemos pensar que a identidade docente à luz da pedagogia freireana se
constitui na figura do educador crítico-libertador, isto é, uma identidade docente que se
constitui a partir de uma proposta curricular crítico-libertadora, contrária à “educação
bancária”. Nesta direção, entendemos que ser educador não se limita a ser mero transferidor
de conteúdos aos educandos, pois sabe que, tanto ele (educador), quanto os educandos, são
sujeitos históricos produtores da sua própria humanidade, e, portanto, de conhecimentos.
Segundo Freire (1987, p. 38) na “educação bancária”:

a) o educador é o que educa; os educandos, os que são educados;


b) o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem;
c) o educador é o que pensa; os educandos, os pensados;
d) o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam docilmente;
e) o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados;
f) o educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos os que seguem a
prescrição;
g) o educador é o que atua; os educandos, os que têm a ilusão de que atuam, na
atuação do educador;
100

h) o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais ouvidos nesta


escolha, se acomodam a ele;
i) o educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, que
opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às
determinações daquele;
j) o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros objetos.

Neste sentido, a identidade docente proposta pela Educação Libertadora é contrária ao


papel do professor tradicional da “educação bancária”. Para Freire, o papel do educador deve
ser de uma figura para além do professor, pois não se preocupa somente com a transmissão
dos conteúdos científicos na forma de conteúdos escolares. O educador assume um papel
ontológico (visão de mundo), antropológico (visão de humanidade), axiológico (visão de agir)
e epistemológico (visão de conhecer) no processo educativo.
Abaixo, a partir das denúncias à “educação bancária”, podemos considerar alguns
aspectos que constituem a identidade docente à luz da pedagogia freireana:

Quadro 15 - Aspectos da identidade docente de educador constituídos pela pedagogia


freireana
a) o educador é aquele que se educa permanentemente junto ao educando, pois entende essa
relação de forma dialética;
b) o educador é aquele que reconhece que o educando traz consigo conhecimentos
historicamente produzidos válidos ao processo educativo da mesma forma que o
conhecimento científico;
c) o educador é aquele que pensa no educando como sujeitos pensantes, isto é, não os
reifica;
d) o educador é aquele que se comunica com o educando sem recorrer à hierarquia, pois
entende que a tensão entre visões de mundo é parte do desenvolvimento do pensamento
crítico;
e) o educador é aquele que, pelo próprio exemplo e pelo respeito ao educando, institui a
disciplina;
f) o educador é aquele que entende que as escolhas realizadas ao longo do processo
educativo devem considerar as necessidades dos educandos;
g) o educador é aquele que enxerga o educando como sujeito ativo do processo de ensino-
aprendizagem, pois isso é uma condição para a humanização;
h) o educador é aquele que compreende que a escolha dos conteúdos programáticos deve
atender uma demanda dos educandos;
i) o educador é aquele que conquista uma posição de autoridade ao se unir aos educandos
pela busca de liberdade;
j) o educador é aquele que sabe que é sujeito do processo educativo na mesma medida que o
educando.
Fonte: Organizado pelo pesquisador.
101

Podemos perceber, então, que a proposta da “educação bancária” acaba por constituir
uma identidade docente diferente daquela proposta por Paulo Freire. Assim, a figura do
educador que se constitui a partir de um currículo crítico-libertador, torna-se parâmetro
analítico para pensarmos a identidade docente à luz da pedagogia freireana.

Quadro 16 - A identidade docente de educador constituída pelo currículo crítico-libertador

Identidade docente
Principais características dadas pelo
(ou profissional)
currículo
constituída
Pensado a partir do diálogo visando a
práxis transformadora. Portanto,
considera necessária a
problematização da realidade em torno
Currículo crítico- das relações Homens-Mundo para que Educador crítico-
libertador os conhecimentos trabalhados na libertador
escola colaborem no processo de
conscientização dos sujeitos na
direção da transformação da realidade
material, socioeconômica e cultural.
Fonte: Organizado pelo pesquisador.

Neste sentido, a partir das teorias do currículo e da pedagogia freireana apresentadas


neste capítulo, buscamos analisar a BNCC com o intuito de identificar em qual teoria
curricular este documento se apoia e em qual perspectiva constitui uma identidade docente em
Educação Física utilizando as categorias freireanas diálogo e práxis como principais
categorias analíticas, considerando que, para a Educação Libertadora, o currículo se constrói
pelo diálogo e a identidade docente se constitui na práxis curricular.
É válido ressaltar que a BNCC não se considera um currículo (BRASIL, 2018), mas
“um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de
aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e
modalidades da Educação Básica” (BRASIL, 2017, p. 7).
Sendo assim, o próximo capítulo apresentará o percurso metodológico desta pesquisa
visando uma investigação criteriosa do documento e buscando compreender sua influência na
identidade docente em Educação Física, pois presume-se que as normas para um currículo,
determinadas pela BNCC, se aproximem, em alguma medida, de alguns dos principais
102

currículos da Educação Física apresentados neste capítulo e, por consequência, que a


identidade docente a ser constituída pela BNCC siga nesta mesma direção.
103

CAPÍTULO 3

PERCURSO METODOLÓGICO

Após melhor compreendermos o processo histórico da Educação Física escolar


brasileira marcado por diferentes intencionalidades políticas, econômicas, sociais e culturais
que se apoiaram em diferentes concepções de teorias curriculares que influenciaram (e ainda
influenciam) a constituição da identidade docente em Educação Física, será pertinente melhor
conhecermos o objeto deste estudo, a BNCC de Educação Física para a etapa do ensino
fundamental, pois esse documento representa uma possibilidade de direcionamento para as
propostas curriculares de Educação Física no Brasil e, por consequência, para a constituição
de uma identidade docente em Educação Física.
Vale relembrar que a identidade docente em Educação Física se confundiu ao longo do
tempo com diversas identidades profissionais que representavam outros campos de atuação
profissional da área oriundas de fora do contexto escolar, levando a Educação Física à crise
de identidade denunciada nos anos 1980, a qual consideramos ainda não superada até os dias
atuais.
Sendo assim, buscaremos, além do conhecimento sobre o objeto de estudo desta
dissertação, estabelecer um percurso metodológico que nos permita compreendermos os
aspectos mais relevantes de uma pesquisa em educação, assim como efetivar os processos que
nos proporcionarão condições de coletarmos dados empíricos para análise, atendendo, então,
os objetivos desta pesquisa.

3.1. A pesquisa qualitativa em Educação

Para a obtenção das informações e dados necessários para a construção do referencial


teórico utilizaremos a pesquisa bibliográfica e como procedimento para a coleta de dados, a
análise documental com enfoque qualitativo.
Para Chizzotti (2006), as pesquisas designadas como qualitativas são aquelas em que é
necessário encontrar fundamentos para uma análise e para a interpretação dos fatos que revele
o significado atribuído à esses fatos ou às pessoas que partilham dele.
Essa forma de interpretação surge como oposição à busca da neutralidade do
pesquisador, da padronização de processos e da quantificação dos resultados oriunda do
paradigma positivista nas ciências humanas e sociais.
104

Os pesquisadores qualitativos contestam a neutralidade científica do discurso


positivista e afirmam a vinculação da investigação com os problemas ético-políticos
e sociais, declaram-se comprometidos com a prática, com a emancipação humana e
a transformação social, adensam-se as críticas aos postulados e exigências das
pesquisas unicamente mensurativas (CICOUREL, 1964 apud CHIZZOTTI, 2006, p.
53).

No entanto, para Triviños (1987), a questão não se trata de negar a pesquisa


quantitativa ou qualitativa, pois o enfoque que conduzirá a pesquisa corresponde à visão
ontológica e gnosiológica do pesquisador. Desta forma, uma pesquisa guiada à luz do
marxismo, por exemplo, pode até recorrer à quantificação, mas tende a ter um enfoque
qualitativo na interpretação dos dados em busca de conhecer a realidade social para
transformá-la.
A visão de mundo do pesquisador é determinante para a condução da pesquisa, pois
sendo o pesquisador um sujeito histórico, naturalmente traz consigo toda uma bagagem que
subsidiará sua interpretação de mundo, não sendo possível, então, a neutralidade desejada
pelos positivistas.

A abordagem qualitativa parte do fundamento de que há uma relação dinâmica entre


o mundo real e o sujeito, uma interdependência viva entre o sujeito e o objeto, um
vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito. O
conhecimento não se reduz a um rol de dados isolados, conectados por uma teoria
explicativa; o sujeito-observador é parte integrante do processo de conhecimento e
interpreta os fenômenos, atribuindo-lhes um significado. O objeto não é um dado
inerte e neutro; está possuído de significados e relações que sujeitos concretos criam
em suas ações (CHIZZOTTI, 2000, p. 79).

Desta forma, entendemos a necessidade de superar a simples quantificação dos dados


empíricos e buscar a interpretação daquelas informações que não se mostram
espontaneamente ao pesquisador, especialmente nas pesquisas em Educação que nos conduz
aos fenômenos sociais influenciados pela subjetividade humana.
Logo, a pesquisa em Educação não pode negar a relação dialética existente entre
objetividade e subjetividade, entre sujeito e mundo e entre o pensar e o fazer, o que nos
remete ao pensamento freireano considerando que a pesquisa também deve ser uma
manifestação da práxis transformadora.
Nesse sentido, concordamos com Lüdke e André quando as autoras defendem que [...]

[...] Para se realizar uma pesquisa é preciso promover o confronto entre os dados, as
evidências, as informações coletadas sobre determinado assunto e conhecimento
teórico acumulado a respeito dele. Em geral isso se faz a partir do estudo de um
105

problema, que ao mesmo tempo desperta o interesse do pesquisador e limita sua


atividade de pesquisa a uma determinada porção do saber, a qual ele se compromete
a construir naquele momento. Trata-se, assim, de uma ocasião privilegiada, reunindo
o pensamento e a ação de uma pessoa, ou de um grupo, no esforço de elaborar o
conhecimento de aspectos da realidade que deverão servir para a composição de
soluções propostas aos seus problemas. Esse conhecimento é, portanto, fruto da
curiosidade, da inquietação, da inteligência e da atividade investigativa dos
indivíduos, a partir e em continuação do que já foi elaborado e sistematizado pelos
que trabalharam o assunto anteriormente. Tanto pode ser confirmado como negado
pela pesquisa o que se acumulou a respeito desse assunto, mas o que não pode é ser
ignorado (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 1-2).

Desta forma, os estudos realizados no campo educacional devem investigar a realidade


onde as escolas estão inseridas, as comunidades que a compõe, os profissionais que nela
atuam e as políticas públicas que regem todo esse cenário, com o intuito de colaborar no
desvelamento das contradições que se apresentam como situações-limite (FREIRE, 1987) a
serem superadas.
Essa compreensão a respeito da abordagem qualitativa na pesquisa em Educação
conflui junto à fundamentação marxista presente na proposta da Pedagogia Crítico-
Libertadora de Paulo Freire ao defender que a práxis autêntica (transformadora) se dá no
diálogo entre a subjetividade do ser e a objetividade da realidade.

Não se pode pensar em objetividade sem subjetividade. Não há uma sem a outra,
que não podem ser dicotomizadas.
A objetividade dicotomizada da subjetividade, a negação desta na análise da
realidade ou na ação sobre ela, é objetivismo. Da mesma forma, a negação da
objetividade, na análise como na ação, conduzindo ao subjetivismo que se alonga
em posições solipsistas, nega a ação mesma, por negar a realidade objetiva, desde
que esta passa a ser criação da consciência. Nem objetivismo, nem subjetivismo ou
psicologismo, mas subjetividade e objetividade em permanente dialeticidade [...] Em
Marx, como em nenhum pensador crítico, realista, jamais se encontrará esta
dicotomia (FREIRE, 1987, p. 24).

Assim, ao compreender os pesquisadores como sujeitos e ao considerar a


complexidade das relações humanas, os estudos de abordagem qualitativa aproximam as
produções científico-acadêmicas da realidade social (LÜDKE; ANDRÉ, 1986).
É esse movimento que buscamos no presente estudo que, para tanto, recorre à pesquisa
bibliográfica como forma de compreender a Educação Física, suas respectivas propostas
curriculares e suas respectivas identidades constituídas como produtos históricos e à análise
documental como forma de investigar se a BNCC, como base para um currículo, em alguma
medida, favorece a constituição de uma identidade docente em Educação Física e em qual
perspectiva.
106

3.2. A pesquisa bibliográfica e a análise documental

A utilização da pesquisa bibliográfica como recurso de pesquisa é aqui entendida


como a análise sobre aquilo que já está determinado, mas que ainda deve ser melhor
compreendido, uma vez que consideramos o objeto deste estudo como uma produção humana
histórica e, assim sendo, representa uma parte inserida em uma totalização a ser considerada.

Dentro das ciências humanas, entre elas a educação, a pesquisa bibliográfica parece
ser a única técnica de pesquisa praticamente “obrigatória”. Quase sempre se espera
que uma pesquisa nesta área inicie com a revisão daquilo que de principal se
produziu sobre o tema em questão (GROPPO; MARTINS, 2007, p. 25).

No entanto, é importante ressaltarmos que, segundo Groppo e Martins (2007), a


pesquisa bibliográfica pode ir além da mera apresentação daquilo que já foi produzido em um
determinado assunto. Neste caso, como o desta dissertação, a pesquisa bibliográfica se torna
uma fonte ao fornecer dados fundamentais para balizar a análise do objeto de estudo.
É através da pesquisa bibliográfica que foi possível atingir alguns objetivos
específicos estabelecidos na Introdução deste trabalho, como “Contextualizar o processo
histórico da Educação Física escolar no Brasil”, onde Ghiraldelli Júnior (1991), Bracht
(1999), Medina (2007) e Castellani Filho (2010) nos possibilitaram entender a Educação
Física como produto histórico.
Para “Construir o entendimento de identidade docente em Educação Física”
recorremos ao conceito de identidade docente em Pimenta (1996) até chegarmos à identidade
docente em Educação Física através de Bracht (1997).
Na sequência, ao “Construir o entendimento de currículo” nos balizamos por Goodson
(2012), Moreira e Silva (2008) e Lopes e Macedo (2011) e nos aprofundamos nas diferentes
teorias curriculares recorrendo à bibliografia de Giroux (1986), Silva (2005), Moreira (2008),
Saviani (2008) e Lopes (2013) para “Elencar as principais caraterísticas das teorias do
currículo tradicional, crítico e pós-crítico”.
A pesquisa bibliográfica sobre as teorias curriculares nos possibilitou “Analisar os
principais currículos de Educação Física segundo as teorias curriculares e sua respectiva
influência na constituição de uma identidade docente” por meio da leitura realizada das obras
de Tani et al. (1988), Freire (1989), Coletivo de Autores (1992), Kunz (1991; 1994) e Neira e
Nunes (2009).
107

Todo o debate em relação às teorias curriculares e a constituição de uma identidade


docente em Educação Física foi permeado por um diálogo intenso com a pedagogia freireana,
referencial que baliza as discussões deste estudo, através da pesquisa bibliográfica das obras
Conscientização: teoria e prática da libertação (1979), Sobre Educação: diálogos (1982),
Extensão ou comunicação (1983), Pedagogia do oprimido (1987), Pedagogia da autonomia
(1996) e Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos (2000), entre obras
de outros autores freireanos, como Silva (2004; 2007), Torres (2010) e Saul e Silva (2011),
que nos possibilitaram “Estabelecer parâmetros freireanos para a compreensão da identidade
docente e do currículo”.
Todo esse processo investigativo através da pesquisa bibliográfica nos conduz à
análise do objeto da pesquisa, a Base Nacional Comum Curricular de Educação Física na
etapa do ensino fundamental.
Já a análise documental possibilita superarmos aquilo que está escrito de forma
explícita no documento. Sendo assim, nesta pesquisa recorremos à análise documental, pois
entendemos que um documento não é neutro à realidade, ao contrário, é entendido como uma
manifestação política, econômica, social e cultural daqueles que o produziram.

Pressupõe, portanto, que um texto contém sentidos e significados, patentes ou


ocultos, que podem ser apreendidos por um leitor que interpreta a mensagem contida
nele por meio de técnicas sistemáticas apropriadas. A mensagem pode ser
apreendida, decompondo-se o conteúdo do documento em fragmentos mais simples,
que revelam sutilezas contidas em um texto. Os fragmentos podem ser palavras,
termos ou frases significativas de uma mensagem. (CHIZZOTTI, 2006, p. 115)

Desta forma, a interpretação do que está escrito só será satisfatória quando


entendermos seu conteúdo inserido num contexto, ou seja, o documento é parte de uma
totalização que deve ser considerada para sua melhor compreensão.

Pressupõe que tal discurso não se restrinja à estrutura ordenada de palavras, nem a
uma descrição ou a um meio de comunicação, nem tampouco se reduz à mera
expressão verbal do mundo. O discurso é a expressão de um sujeito no mundo que
explicita sua identidade (quem sou, o que quero) e social (com quem estou) e expõe
a ação primordial pela qual constitui a realidade. (CHIZZOTTI, 2006, p. 121)

Para Lüdke e André (1986) são considerados documentos qualquer material escrito
que seja fonte de informação. No entanto, as autoras deixam claro que na análise documental
o documento carrega consigo mais do que seu conteúdo, pois está intrínseco a ele todo o
contexto no qual foi produzido.
108

A análise documental, então, se torna o recurso necessário para que possamos no


próximo capítulo “analisar se a BNCC de Educação Física na etapa do ensino fundamental
contempla elementos para a constituição de uma identidade ao professor de Educação Física e
em qual(is) perspectivas teóricas curriculares, a partir dos parâmetros estabelecidos pela
pedagogia freireana”.
109

CAPÍTULO 4

A BNCC E A IDENTIDADE DOCENTE EM EDUCAÇÃO FÍSICA:


ANÁLISE A PARTIR DAS TEORIAS DO CURRÍCULO E DA
PEDAGOGIA FREIREANA

4.1. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de Educação Física na etapa do ensino
fundamental: contextualizando o objeto de estudo

Para iniciar uma melhor compreensão da BNCC devemos, primeiramente, vê-la da


forma como o próprio documento se apresenta, isto é, partir daquilo que está exposto para
posteriormente o analisarmos. Neste sentido, começamos chamando a atenção para o fato que,
a BNCC não é um currículo (BRASIL, 2018).
Legalmente, a existência de uma base comum curricular para todo país está amparada
pelo artigo 210 da Constituição Federal ao definir que “Serão fixados conteúdos mínimos para
o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores
culturais e artísticos, nacionais e regionais (BRASIL, 1988)” e no artigo 9º, inciso V, da Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN - que determina ser incumbência da
União “[...] estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,
competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio,
que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica
comum (BRASIL, 1996)”.
Desta forma, a BNCC se configura como um documento orientador, ou seja, uma base
para que os conteúdos considerados essenciais sejam garantidos aos estudantes em cada
currículo existente em todo o país.
No entanto, a tentativa de padronização dos conteúdos se mostra como uma imposição
daquilo que deve ser aprendidos por todos, como se a condição da existência humana exigisse
exatamente os mesmos tipos de conhecimentos para quaisquer indivíduos e suas respectivas
realidades concretas, porém, buscando aparentemente driblar essa pretensão, o processo de
construção da BNCC buscou, ao menos no discurso, ser democrático e participativo gerando
diferentes versões do documento até sua homologação, conforme exposto na figura abaixo:
110

Figura 2 - Cronologia da construção da BNCC

Fonte: Adaptado de Brasil (2018, p. 04).

Como visto, houve um longo processo até a publicação final da BNCC. Portanto, para
melhor compreendê-la, consideramos relevante conhecer esse percurso que caracteriza o
documento como uma produção histórica que compõe parte de uma totalização da realidade
concreta.

4.1.1. A primeira e a segunda versões da BNCC

A elaboração da BNCC tem sua origem em documentos oficiais na Lei nº 13.005, de


25 de junho de 2014, que regulamenta o Plano Nacional de Educação - PNE (BRASIL, 2014).
Publicada durante o Governo Dilma Rousseff, neste plano são estabelecidas vinte metas para
a educação básica brasileira e, alcançar algumas destas metas pressupõe a necessidade de uma
base nacional comum curricular, conforme já constava no texto da Lei nº 9.394, de 20 de
dezembro de 1996 (LDBEN):

Art. 26. Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino


médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de
ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas
características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos
educandos (BRASIL, 1996, p. 27.833).

Neste contexto se iniciam os debates sobre o “documento norteador” das propostas


curriculares de todo país. Em junho de 2015 é publicada a Portaria 592 que institui a
Comissão de Especialistas para a Elaboração de Proposta da Base Nacional Comum
Curricular. Segundo a portaria:
111

Art. 1º Fica instituída a Comissão de Especialistas para a Elaboração da Proposta da


Base Nacional Comum Curricular.
§ 1º A Comissão de Especialistas será composta por 116 membros, indicados entre
professores pesquisadores de universidades com reconhecida contribuição para a
educação básica e formação de professores, professores em exercício nas redes
estaduais, do Distrito Federal e redes municipais, bem como especialistas que
tenham vínculo com as secretarias estaduais das unidades da Federação.
§ 2º Participarão dessa comissão profissionais de todas as unidades da federação
indicados pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação - CONSED e União
Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação - Undime.
§ 3º A composição da Comissão de Especialistas será determinada pelas Áreas de
Conhecimento e respectivos componentes curriculares de acordo com as etapas da
Educação Básica, estabelecidos nas Diretrizes Curriculares Nacionais.
Art. 2º É atribuição da Comissão produzir documento preliminar da Proposta da
Base Nacional Comum Curricular bem como produzir relatório consolidando os
resultados da discussão pública para entrega ao Conselho Nacional de Educação -
CNE até final de fevereiro de 2016.
Parágrafo único. A discussão pública a que se refere o caput desse artigo será
realizada nas unidades da federação sob a coordenação das secretarias de educação
dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, bem como com as associações
acadêmicas e científicas que atuam nas áreas de conhecimento da Educação Básica.
Art. 3º Compete à SEB:
I - nomear os membros da Comissão de Especialistas;
II - coordenar a Comissão;
II - coordenar o processo de construção da Proposta da Base Nacional Comum
Curricular;
III - convocar as reuniões necessárias para a elaboração do relatório final; e
IV - entregar ao Conselho Nacional de Educação o relatório final com as conclusões
da Comissão [...] (BRASIL, 2015, p.16).

A instituição desta Comissão buscou garantir que pesquisadores, professores e outros


especialistas que atuassem na área da educação de todo país fossem representantes de suas
regiões e de suas especialidades. Segundo os professores Marcos Garcia Neira e Marcílio de
Souza Júnior (2016, p. 193), integrantes desta Comissão, os 116 participantes se organizaram
em 2 coordenadoras, 14 assessores e 108 especialistas. Neira e Souza Júnior ainda
completam:

[...] O grupo foi composto por professores da Educação Básica indicados pelo
Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e pela União dos
Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), representando todos os estados da
Federação, e pesquisadores vinculados a 35 universidades. Constituíram a equipe da
Educação Física seis professores da Educação Básica e seis professores
universitários, sob a coordenação de um assessor, também professor do Ensino
Superior (NEIRA; SOUZA JÚNIOR, 2016, p. 189).

A Comissão, então, em sua primeira reunião estabelece como objetivo a construção de


um documento orientador às propostas curriculares das redes de ensino de todo país. Após o
estabelecimento desta meta, outros vários encontros aconteceram no intuito de discutir,
escrever e reescrever esse documento de forma conjunta e democrática resultando em uma
redação final consensual (NEIRA; SOUZA JÚNIOR, 2016).
112

Os profissionais que trabalharam na construção da BNCC organizaram-se em


segmentos, áreas e componentes, compondo duplas, quartetos ou coletivos maiores,
a depender da agenda: elaborar os textos de concepção de área ou do componente,
redigir objetivos de aprendizagem, alinhamento transversal (com as demais
disciplinas da mesma etapa da Educação Básica) ou longitudinal (com as demais
etapas de uma mesma disciplina) (NEIRA; SOUZA JÚNIOR, 2016, p. 193).

Em setembro de 2015, a primeira versão da BNCC estava pronta e foi disponibilizada


para consulta pública na intenção de tornar sua construção mais democrática. Neste sentido,
através de plataformas on-line, uma grande quantidade de pessoas da sociedade civil, assim
como instituições civis, como escolas, entidades, organizações e associações ligadas à área da
educação puderam fazer críticas e sugerir contribuições.
No entanto, é importante ressaltarmos que mesmo um processo aparentemente
democrático pode estar sendo utilizado como aparelho ideológico e, nesse sentido, devemos
ter um olhar crítico para a construção da BNCC, pois, como visto no Capítulo 2 deste estudo,
interesses políticos, econômicos, sociais e culturais permeiam o currículo escolar.
A partir da referida consulta pública, segundo Neira e Souza Júnior (2016), as críticas
e sugestões destinadas à BNCC foram organizadas e categorizadas pela Universidade de
Brasília (UnB) e pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ e, em
seguida, analisadas pelos assessores e especialistas de cada área, além de convidados, como
professores universitários, entidades científicas e outros órgãos ligados à educação.
Desde a primeira versão, a Educação Física na BNCC, atendendo às Diretrizes
Curriculares Nacionais, é vista como pertencente à área de Linguagens, pois entende que o
processo histórico do componente o levou a entender como seu objeto de estudo a cultura
corporal. Assim, a BNCC considera “as práticas corporais como referência central para a
configuração dos conhecimentos em Educação Física: brincadeiras e jogos, danças, esportes,
ginásticas (demonstração, condicionamento físico e conscientização corporal), lutas e práticas
corporais de aventura” (NEIRA; SOUZA JÚNIOR, 2016, p. 195).
Na área de Linguagens, juntamente com a Educação Física, também encontramos os
componentes Arte, Língua Portuguesa e Língua Estrangeira Moderna que, juntos, convergem
“[...] para o aprimoramento da interação crítica com a produção linguística no formato de
textos, imagens e práticas corporais, bem como para sua produção, entendida como meio de
comunicar ideias, valores e sentimentos” (NEIRA; SOUZA JÚNIOR, 2016, p. 196).
Esse movimento de análise da primeira versão da BNCC motivou debates em eventos
acadêmicos, em setores da administração pública, nos veículos de imprensa, nas redes de
113

ensino e na sociedade como um todo. Desta forma, após um intenso período de discussão,
muitas das críticas e sugestões foram consideradas gerando, em maio de 2016, uma segunda
versão da BNCC.
De junho a agosto de 2016, essa segunda versão foi levada à todos os estados
brasileiros através de seminários promovidos pelo Conselho Nacional de Secretários de
Educação (CONSED) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME)
e visavam aprofundar o debate junto aos professores, gestores e especialistas sobre a versão
atualizada do documento.
Nesse momento é importante pontuarmos que o país vivia o processo de impeachment
de Dilma Rousseff, até então Presidente da República. Tal processo culminou, em agosto de
2016, na troca do líder do Executivo brasileiro. A partir de setembro de 2016 estávamos sob a
gestão do Governo de Michel Temer.
Desta forma, é possível visualizar que todo o processo de elaboração democrática e
participativa da BNCC se deu em um determinado governo que acreditava em uma
determinada política pública para a educação. Logo, a mudança na presidência do país nos
levou a uma nova forma de enxergar essas políticas e isso repercutiu numa terceira versão da
BNCC.
Após a entrega da Base ao Conselho Nacional de Educação (CNE), em abril de 2017,
houve a promoção de audiências públicas para discutir o documento. Porém, essas audiências
foram menos acessíveis, sendo realizada em um único dia e uma única cidade por região do
país, a saber: 1. Região Norte - Data: 07 de julho de 2017 - Local: Manaus (AM); 2. Região
Nordeste - Data: 28 de julho de 2017 - Local: Recife (PE); 3. Região Sul - Data: 11 de agosto
de 2017 - Local: Florianópolis (SC); 4. Região Sudeste - Data: 25 de agosto de 2017 - Local:
São Paulo (SP); e 5. Região Centro-Oeste - Data: 11 de setembro de 2017 - Local: Brasília
(DF) (BRASIL, 2020).
Finalmente, em dezembro de 2017, o Ministério da Educação homologa a BNCC para
o ensino infantil e ensino fundamental de todo país. No entanto, a terceira versão do
documento não é mais aquela que foi construída democraticamente com a participação dos
cidadãos, escolas, professores, universidades e outras instituições.

4.1.2. A terceira versão da BNCC

Como dito anteriormente, o contexto político brasileiro, em 2016, acabou por


influenciar o desfecho da construção da BNCC. Tal movimento reafirma o pensamento de
114

Paulo Freire e das teorias curriculares críticas que entendem que nenhuma decisão relacionada
à educação pode ser neutra.

Surpreendida pelo golpe político-jurídico de maio do mesmo ano [2016], a


população brasileira tem assistido à retirada de seus direitos e o franco caminhar
para um regime antidemocrático estimulado por setores conservadores e
empresariais, bem representados nas políticas educacionais em curso. No bojo
dessas ações, em abril de 2017, foi divulgada a terceira versão da BNCC, doravante
BNCC-III. “Mais enxuta!”, como alardearam seus artífices na grande mídia, mas
com sérias consequências para o futuro da sociedade (NEIRA, 2017, p. 01).

Para Neira (2017), que fez parte da elaboração da primeira e segunda versões da
BNCC, na área de conhecimento da Educação Física para o ensino fundamental, a terceira
versão do documento deixou de lado os fundamentos do componente curricular tornando o
texto frágil e descontextualizado ao comprimir muitos dos objetivos de aprendizagem em uma
só habilidade e ao retirar trechos que justificavam objetivos da área.
Assim, a terceira versão da BNCC abandona o olhar para os direitos de aprendizagem
do aluno, passa a valorizar os conteúdos curriculares a serviço do desenvolvimento de
competências alinhando-se à lógica capitalista de manutenção da opressão e entende que essas
competências serão alcançadas de forma mecânica através do desenvolvimento de habilidades
que se manifestam em dimensões dicotomizadas (conceituais, procedimentais e atitudinais),
segundo a teoria de Coll58. O foco do documento, então, busca a aquisição de saberes
fragmentados, como o “saber-fazer‟, “saber-ser”, “saber-aprender” e “saber-conviver”,
apoiados nas teorias de Perrenoud59 (NEIRA, 2017).
Ainda assim, em 20 de dezembro de 2017, esta última versão da BNCC foi
homologada e os órgão oficiais iniciaram o movimento para sua implementação, já sem
nenhum diálogo a respeito da versão final.
Desta forma, a BNCC acabou por reprimir aquela tentativa de movimento democrático
iniciado em 2014 e se tornou uma arbitrariedade imposta ao final de 2017. Em consequência
disto, a proposta para a Educação Física contida no documento foi manipulada fazendo com
que o componente se tornasse dissociado da realidade e ganhasse um caráter alienado e
alienante favorecendo a manutenção do status quo e configurando-se como um aparelho
opressor.

58
Cézar Coll, professor da Faculdade de Psicologia na Universidade de Barcelona, Espanha e reconhecido pela
sua obra Psicologia e currículo. Foi consultor do Ministério da Educação (MEC) na elaboração dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN), publicados em 1997 (LOPES; MACEDO, 2011).
59
Phillipe Perrenoud é um sociólogo e pedagogo suíço. Dentre seus trabalhos mais importantes está a obra A
fabricação da excelência escolar: do currículo às práticas de avaliação (LOPES; MACEDO, 2011).
115

Dentro deste contexto, nos compete, então, concentrar nossos esforços para
investigarmos criticamente o respectivo documento. Nesta direção, essa pesquisa ressalta seu
compromisso de analisar, sob à luz da pedagogia freireana, em qual perspectiva a BNCC de
Educação Física para o ensino fundamental colabora para a constituição da identidade docente
em Educação Física.
Na BNCC, a parte destinada à Educação Física para o ensino fundamental possui 27
páginas e está dividida em quatro seções: “Educação Física”, que possui 10 páginas
dedicadas a apresentar a concepção de Educação Física na Base, as unidades temáticas do
componente e as dimensões de conhecimento que se espera desenvolver a partir das unidades
temáticas.
A segunda seção, “Competências específicas de Educação Física para o ensino
fundamental”, contendo 1 página, apresenta uma lista com dez competências que devem ser
desenvolvidas nos alunos pelo componente, ao longo do ensino fundamental.
A terceira e quarta seções “Educação Física no ensino fundamental – anos iniciais:
unidades temáticas, objetos de conhecimento e habilidades” e “Educação Física no ensino
fundamental – anos finais: unidades temáticas, objetos de conhecimento e habilidades”,
respectivamente, juntas totalizam 15 páginas que apresentam quadros onde estão organizadas
as unidades temáticas, os objetos de conhecimento e as habilidades a serem desenvolvidas ao
longo do ensino fundamental. Há, ainda, 1 página em branco dividindo a terceira seção da
quarta seção.
Sendo assim, optamos por analisar a BNCC de Educação Física para o ensino
fundamental integralmente, dividindo-a em excertos e quadros para um melhor entendimento
de suas partes, porém, contemplando a totalidade do documento, onde, potencialmente,
estarão explícitos (ou implícitos) aspectos que caracterizam a Base como uma proposta
curricular tradicional, crítica ou pós-crítica, segundo às teorias curriculares.

4.2. Análise da BNCC à luz das teorias curriculares e da pedagogia freireana

Seguindo o percurso metodológico proposto nesta pesquisa, evidenciaremos nesta


seção os parâmetros estabelecidos no Capítulo 2 que nos ajudam a identificar em qual
perspectiva a BNCC de Educação Física na etapa do ensino fundamental está amparada pelas
teorias curriculares tradicionais, críticas ou pós-críticas, conforme apresentado no Quadro 17:
116

Quadro 17 - Aspectos dos currículos tradicionais, crítico e pós-críticos

a) A organização da escola é fragmentada e seriada como a organização fabril;


CURRÍCULO TRADICIONAL

b) A escola é fomentadora de mão de obra qualificada à economia;


c) A escola é responsável pela adaptação dos sujeitos à sociedade;
d) O cidadão formado pela escola deve seguir os padrões idealizados pela elite dominante;
e) A meritocracia é o sistema que organiza o progresso da vida escolar do aluno;
f) O currículo é a ferramenta para administrar a escola garantindo eficiência nos resultados;
g) O professor é a figura central do processo de ensino-aprendizagem;
h) O percurso escolar deve ser padronizado, assim pode ser avaliado e mensurado;
i) A ciência moderna na forma de conteúdos sistematizados é o único conhecimento válido
na escola, ignorando a realidade do educando e caracterizando a “invasão cultural”.
a) A escola não é neutra à sociedade - ela influencia e é influenciada por ela;
b) A escola deve problematizar a realidade;
CURRÍCULO CRÍTICO

c) A escola não deve ser reprodutora da sociedade, ao contrário, deve ser transformadora;
d) O currículo deve enxergar o aluno como sujeito do processo de ensino-aprendizagem;
e) O currículo deve direcionar à formação de sujeitos críticos com vistas à emancipação;
f) O currículo deve entender a educação como meio de humanização;
g) O currículo não pode ser aparelho ideológico;
h) O currículo não pode somente transmitir cultura- os sujeitos também produzem cultura;
i) O currículo não pode velar as relações de poder;
j) A ciência moderna não deve ser o único conhecimento válido na escola - o conhecimento
dos educandos também é uma produção humana, portanto, cultural.
a) O currículo não pode ser universal;
CURRÍCULO PÓS-CRÍTICO

b) O currículo não pode ser teleológico;


c) O currículo não pode estar pautado na razão científica moderna;
d) O currículo entende que as teorias são discursos;
e) O currículo não deve sustentar metanarrativas;
f) O currículo entende que o saber possui uma relação com o poder;
g) O currículo deve contemplar temas como gênero, raça, etnia e culturas subjugadas;
h) O sujeito não possui autonomia - ele é pensado, falado e produzido pelos diferentes
discursos e relações de poder;
i) A educação não pode emancipar ninguém - sempre estaremos subordinados a uma relação
de saber/poder.
Fonte: Organizado pelo pesquisador.

Esse movimento de análise do documento a partir dos parâmetros estabelecidos pela


pesquisa bibliográfica nos capítulos anteriores nos proporcionará condições de dialogar
novamente com a pedagogia freireana no intuito de desvelarmos os limites e as contradições
da BNCC e, por consequência, pensarmos como a Educação Libertadora de Freire pode
contribuir para uma proposta curricular crítica para a Educação Física.
117

Nesse sentido, recorreremos mais uma vez às categorias freireanas destacadas por
Nunes (2018): diálogo, práxis, relação educador-educando, conhecimento como ato
cognoscente, problematização da realidade, conscientização, investigação temática e tema
gerador.
Dentre essas categorias freireanas, duas delas se destacam como categorias analíticas
(diálogo e práxis) para investigarmos se, a partir das teorias do currículo, a BNCC contribui
na constituição de uma identidade docente em Educação Física.
Consideramos que a categoria freireana diálogo é umas das mais relevantes para
pensarmos o currículo escolar a partir de Paulo Freire, pois entendemos que o diálogo para a
Educação Libertadora é a tensão entre diferentes visões de mundo que nos possibilitam
problematizar a realidade.

[...] a educação problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica num


constante ato de desvelamento da realidade. [...] Quanto mais se problematizam os
educandos, como seres no mundo e com o mundo, tanto mais se sentirão desafiados.
Tão mais desafiados, quanto mais obrigados a responder ao desafio. Desafiados,
compreendem o desafio na própria ação de captá-lo. Mas, precisamente porque
captam o desafio como um problema em suas conexões com outros, num plano de
totalidade e não como algo petrificado, a compreensão resultante tende a tornar-se
crescentemente crítica, por isto, cada vez mais desalienada (FREIRE, 1987, p. 45).

Já a respeito da categoria práxis, consideramos que ela nos ajuda a pensar a identidade
docente constituída a partir da “execução” de uma proposta curricular, uma vez que a
identidade, conforme o pensamento de Pimenta (1996) apresentado no Capítulo 2, se constitui
na prática social e uma vez que, para Freire, a práxis é “ação-reflexão-ação” dos sujeitos com
vistas a transformar a realidade. Logo, a constituição da identidade docente se dá na práxis
curricular, isto é, no exercício docente que entende que a teoria e a prática do currículo são
indissociáveis.

[...] se os homens são seres do que fazer é exatamente porque seu fazer é ação e
reflexão. É práxis. É transformação do mundo. E, na razão mesma em que o que
fazer é práxis, todo fazer do que fazer tem de ter uma teoria que necessariamente o
ilumine. O que fazer é teoria e prática. É reflexão e ação [...] (FREIRE, 1987, p. 77).

Então, a partir das análises realizadas através das teorias do currículo e do diálogo com
a pedagogia freireana, buscaremos relacionar a proposta curricular contida na Base Nacional
Comum Curricular com as diferentes identidades docentes em Educação Física geradas pelas
diferentes propostas curriculares do componente no intuito de identificar em qual perspectiva
a BNCC contribui para a constituição de uma identidade docente em Educação Física.
118

Iniciamos relembrando que a BNCC de Educação Física na etapa do ensino


fundamental está organizada no documento em quatro partes, como já apresentado
anteriormente: 1. Educação Física; 2. Competências específicas de Educação Física para o
Ensino Fundamental; 3. Educação Física no Ensino Fundamental – Anos Iniciais: unidades
temáticas, objetos de conhecimento e habilidades; e 4. Educação Física no Ensino
Fundamental – Anos Finais: unidades temáticas, objetos de conhecimento e habilidades.
A primeira parte, Educação Física, nos apresenta qual é o entendimento do documento
em relação à própria Educação Física escolar, isto é, a função pedagógica da Educação Física,
bem como seu objeto de estudo.

A Educação Física é o componente curricular que tematiza as práticas corporais


em suas diversas formas de codificação e significação social, entendidas como
manifestações das possibilidades expressivas dos sujeitos, produzidas por
diversos grupos sociais no decorrer da história. Nessa concepção, o movimento
humano está sempre inserido no âmbito da cultura e não se limita a um
deslocamento espaço-temporal de um segmento corporal ou de um corpo todo.
Nas aulas, as práticas corporais devem ser abordadas como fenômeno cultural
dinâmico, diversificado, pluridimensional, singular e contraditório. Desse modo,
é possível assegurar aos alunos a (re)construção de um conjunto de
conhecimentos que permitam ampliar sua consciência a respeito de seus
movimentos e dos recursos para o cuidado de si e dos outros e desenvolver
autonomia para apropriação e utilização da cultura corporal de movimento em
diversas finalidades humanas, favorecendo sua participação de forma confiante
e autoral na sociedade.
É fundamental frisar que a Educação Física oferece uma série de possibilidades para
enriquecer a experiência das crianças, jovens e adultos na Educação Básica,
permitindo o acesso a um vasto universo cultural. Esse universo compreende
saberes corporais, experiências estéticas, emotivas, lúdicas e agonistas, que se
inscrevem, mas não se restringem, à racionalidade típica dos saberes científicos
que, comumente, orienta as práticas pedagógicas na escola. Experimentar e
analisar as diferentes formas de expressão que não se alicerçam apenas nessa
racionalidade é uma das potencialidades desse componente na Educação Básica.
Para além da vivência, a experiência efetiva das práticas corporais oportuniza aos
alunos participar, de forma autônoma, em contextos de lazer e saúde. (BRASIL,
2017, p. 213, excerto 1, grifo nosso).

No excerto acima temos uma Educação Física entendida como o componente


curricular responsável por tematizar as diferentes práticas corporais historicamente produzidas
por diferentes grupos sociais e, nesta direção, a Educação Física objetiva apresentar as
práticas corporais como uma cultura em constante construção e, por isso, necessitando ser
reconstruída pelos sujeitos no intuito de conscientizá-los para que desenvolvam sua
autonomia e utilizem a cultura corporal para diversas finalidades humanas.
Segundo os aspectos elencados no Quadro 17, o excerto 1 parece desqualificar a
BNCC como base para uma proposta curricular tradicional, pois entendemos que nenhum dos
119

aspectos de um currículo tradicional apontados anteriormente podem ser explicitamente


identificados no respetivo excerto.
Há diversos aspectos no excerto 1 que o caracterizam como uma proposta curricular
crítica, como o olhar para o aluno que podemos entender como d) O currículo deve enxergar
o aluno como sujeito do processo de ensino-aprendizagem; também podemos considerar a
busca por um sujeito autônomo com participação autoral na sociedade, isto é e) O currículo
deve direcionar à formação de sujeitos críticos com vistas à emancipação; ao entender a
cultura como algo dinâmico e como um produto histórico, o que nos remete a h) O currículo
não pode somente transmitir cultura - os sujeitos também produzem cultura; e, por fim, ao
considerar outros saberes, além dos saberes científicos, ou seja, j) A ciência moderna não
deve ser o único conhecimento válido na escola - o conhecimento dos educandos também é
uma produção humana, portanto, cultural.
Ainda na análise do excerto 1, nota-se que existem alguns pontos que o qualificam
como uma proposta curricular pós-crítica, como c) O currículo não pode estar pautado na
razão científica moderna, pois o texto menciona que os saberes não se restringem à
racionalidade científica. No entanto, alguns pontos do excerto 1 desqualificam a BNCC como
um currículo pós-crítico, como b) O currículo não pode ser teleológico; e i) O sujeito não
possui autonomia - ele é pensado, falado e produzido pelos diferentes discursos; pois
percebemos que existem objetivos claros que direcionam a Educação Física na BNCC,
inclusive objetivando autonomia dos sujeitos.
Num primeiro momento, observando somente os dados empíricos contidos no excerto
1, podemos considerá-lo como um texto que, predominantemente, nos remete à uma proposta
curricular crítica. Também podemos notar que, à luz da pedagogia freireana, o excerto 1
parece se aproximar da categoria freireana diálogo, pois o trecho propõe a problematização
da realidade e a conscientização dos educandos ao considerar a realidade como uma
produção histórica e ao buscar ampliar a consciência dos sujeitos, por exemplo.
No entanto, não fica claro no respectivo excerto que esta proposta curricular considera
as contradições presentes na realidade dos educandos para eleger os conteúdos escolares e
tampouco transparece um compromisso transformador dessa realidade. Logo, não
encontramos elementos que remetam à práxis, pois a transformação dos sujeitos e da
realidade é uma condição para o legado freireano.
Assim, podemos ponderar que tais fatores conferem ao documento um caráter liberal e
conservador que não está explícito, caracterizando o que Apple (2006) chama de “currículo
120

60
oculto” e é por isso que na denúncia da “educação bancária”, Freire (1987) critica a falsa
visão de homens dicotomizados do mundo, pois aquilo que aparenta ser uma educação
humanizadora é, na verdade, uma forma de manutenção da opressão e do status quo.

A educação como prática da dominação, que vem sendo objeto desta crítica,
mantendo a ingenuidade dos educandos, o que pretende, em seu marco ideológico,
(nem sempre percebido por muitos dos que a realizam) é doutriná-los no sentido de
sua acomodação ao mundo da opressão (FREIRE, 1987, p. 43).

Nesse sentido, entendemos que o diálogo entre os Homens e o Mundo e a


transformação da realidade objetivando a humanização dos sujeitos devem ser compromissos
explícitos de qualquer proposta curricular crítica.
Desta forma, podemos considerar que o excerto 1 apresenta aspectos implícitos de um
currículo tradicional, pois, ao não contemplar a transformação da realidade, entende que c) A
escola é responsável pela adaptação dos sujeitos à sociedade; d) O cidadão formado pela
escola deve seguir os padrões idealizados pela elite dominante e que g) O professor é a
figura central do processo de ensino-aprendizagem; aspectos que impossibilitam que a
BNCC se configure como um currículo crítico e que nos permite deduzir que o texto de
aparência crítica, se configura como um aparelho ideológico.
Seguindo com a análise do documento, ainda na seção Educação Física, a BNCC
busca explicitar os critérios utilizados para eleger e organizar o percurso educacional em volta
da prática corporal.

Há três elementos fundamentais comuns às práticas corporais: movimento


corporal como elemento essencial; organização interna (de maior ou menor grau),
pautada por uma lógica específica; e produto cultural vinculado com o
lazer/entretenimento e/ ou o cuidado com o corpo e a saúde (BRASIL, 2017, p. 213,
excerto 2, grifo do autor).

Portanto, entende-se que essas práticas corporais são aquelas realizadas fora das
obrigações laborais, domésticas, higiênicas e religiosas, nas quais os sujeitos se
envolvem em função de propósitos específicos, sem caráter instrumental.
Cada prática corporal propicia ao sujeito o acesso a uma dimensão de
conhecimentos e de experiências aos quais ele não teria de outro modo. A vivência
da prática é uma forma de gerar um tipo de conhecimento muito particular e
insubstituível e, para que ela seja significativa, é preciso problematizar,
desnaturalizar e evidenciar a multiplicidade de sentidos e significados que os
grupos sociais conferem às diferentes manifestações da cultura corporal de
movimento. Logo, as práticas corporais são textos culturais passíveis de leitura e
produção (BRASIL, 2017, p. 213-214, excerto 3, grifo nosso).

60
O “currículo oculto”, para Apple (2006, p. 87), diz respeito à “variedade de preocupações sobre a
padronização dos ambientes educacionais, sobre o ensino - por meio de interação escolar cotidiana - de valores
morais, normativos e de inclinações diversas, e sobre o funcionalismo econômico”. Ou seja, é uma forma de
ideologia que, no sentido marxista da palavra, se refere à manipulação dos sujeitos por uma elite dominante.
121

Os excertos 2 e 3 nos apresentam as práticas corporais como um produto cultural,


porém, desarticulados da vida social, pois a proposta da BNCC se limita a abordar as práticas
corporais vinculadas ao lazer, ao entretenimento, ao cuidado com o corpo e à saúde. Está
explícito no documento que a cultura corporal oriunda de outros contextos sociais não possui
interesse educativo para essa proposta curricular, fato que confere à Educação Física um
aspecto alienado e alienante.
Outro ponto que novamente nos chama a atenção é que os excertos 2 e 3 não fazem
menção alguma à relação educador-educando, o que, segundo a pedagogia freireana,
impossibilita o diálogo que fomentará o currículo e a práxis transformadora que constituirá a
identidade docente.
Logo, a partir dos parâmetros estabelecidos no Quadro 17, podemos considerar que os
respectivos trechos do documento assumem aspectos de um currículo tradicional, pois, mais
uma vez, c) A escola é responsável pela adaptação dos sujeitos à sociedade; d) O cidadão
formado pela escola deve seguir os padrões idealizados pela elite dominante; e g) O
professor é a figura central do processo de ensino-aprendizagem.
Ainda no excerto 3, entendemos que compete à Educação Física proporcionar a
vivência de diferentes práticas corporais no âmbito do lazer e da saúde para que os sujeitos
possam problematizar os diversos sentidos e significados que diferentes grupos sociais
conferem à essas práticas, assim, as práticas corporais são entendidas como textos a serem
lidos.
É importante ressaltarmos que a palavra “problematizar” utilizada no respectivo trecho
não se trata da categoria freireana problematização da realidade, pois, ao não considerar a
realidade objetiva concreta em sua totalização, a BNCC se limita a evidenciar os diferentes
sentidos e significados dados às práticas corporais sem um sentido teleológico.
Essa característica confere aos excertos 2 e 3 aspectos de um currículo pós-crítico,
pois essa teoria curricular considera que b) O currículo não pode ser teleológico; e que d) O
currículo entende que as teorias são discursos; e, logo, i) A educação não pode emancipar
ninguém - sempre estaremos subordinados a uma relação de saber/poder.
Para Freire (1987), uma proposta educativa deve partir do diálogo problematizar a
realidade, isto é, deve considerar a realidade objetiva concreta dos educandos e a
subjetividade dos sujeitos, pois objetividade e subjetividade são indicotomizáveis e, por isso,
a necessidade de compreender a relação dialética existente entre Homens e Mundo.
122

Também podemos a partir dos pensamentos freireanos, fundamentados no


Materialismo Histórico-dialético, compreender que os discursos não são meros textos a serem
lidos, pois eles representam mais que isso, uma vez que toda manifestação de linguagem e
toda representação do conhecimento é uma ação humana, ou seja, práxis, e, logo, só pode ser
compreendida como o diálogo entre objetividade e subjetividade, entre teoria e prática.
“Por isto mesmo é que, muitas vezes, educadores e políticos falam e não são
entendidos. Sua linguagem não sintoniza com a situação concreta dos homens a quem falam.
E sua fala é um discurso a mais, alienado e alienante” (FREIRE, 1987, p. 55).
Assim, também não podemos deixar de considerar como ponto crítico a falta de uma
teleologia nos excertos 2 e 3. Ao contrário, se pensarmos um currículo crítico-freireano
veremos um objetivo explícito para o processo educativo: a humanização dos sujeitos pela
práxis que liberta e transforma.

O que nos parece indiscutível é que, se pretendemos a libertação dos homens, não
podemos começar por aliená-los ou mantê-los alienados. A libertação autêntica, que
é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é
uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica na ação e na reflexão dos
homens sobre o mundo para transformá-lo (FREIRE, 1987, p. 43).

Sob os contextos dados pelos excertos 1, 2 e 3, a BNCC organiza as práticas corporais


em seis unidades temáticas a serem abordadas ao longo do ensino fundamental: Brincadeiras e
jogos; Esportes; Ginásticas; Danças; Lutas; e Práticas corporais de aventura (BRASIL, 2017).
A BNCC entende que deve haver uma organização progressiva dos conhecimentos a
serem trabalhados junto aos alunos. Algumas unidades temáticas como Brincadeiras e jogos,
Danças e Lutas devem partir do contexto familiar até chegar ao contexto nacional e mundial
(brincadeiras regionais, jogos de outras localidades do mundo). Outras práticas corporais,
como as Ginásticas devem ser abordadas a partir de classificações que expressam suas
características (ginástica geral, ginásticas de condicionamento físico; e ginásticas de
conscientização corporal), assim como os Esportes (de marca, de precisão, de técnico-
combinação, de rede/quadra dividida ou parede de rebote, de campo e taco, de invasão ou
territorial e de combate). As Práticas corporais de aventura são divididas conforme o ambiente
em que são praticadas (meio urbano ou na natureza) (BRASIL, 2017).

Em princípio, todas as práticas corporais podem ser objeto do trabalho pedagógico


em qualquer etapa e modalidade de ensino. Ainda assim, alguns critérios de
progressão do conhecimento devem ser atendidos, tais como os elementos
específicos das diferentes práticas corporais, as características dos sujeitos e os
contextos de atuação, sinalizando tendências de organização dos conhecimentos. Na
123

BNCC, as unidades temáticas de Brincadeiras e jogos, Danças e Lutas estão


organizadas em objetos de conhecimento conforme a ocorrência social dessas
práticas corporais, das esferas sociais mais familiares (localidade e região) às menos
familiares (esferas nacional e mundial). Em Ginásticas, a organização dos objetos
de conhecimento se dá com base na diversidade dessas práticas e nas suas
características. Em Esportes, a abordagem recai sobre a sua tipologia (modelo de
classificação), enquanto Práticas corporais de aventura se estrutura nas vertentes
urbana e na natureza (BRASIL, 2017, p. 219, excerto 4, grifo do autor).

É perceptível no excerto 4 a fragmentação da cultura corporal na forma de unidades


temáticas caracterizando, mais uma vez, segundo o Quadro 17, a BNCC como uma proposta
curricular tradicional ao entender que a) A organização da escola é fragmentada e seriada
como a organização fabril. Também podemos notar que os critérios de progressão do
conhecimento de cada unidade temática nos levam a pensar que, para a BNCC, h) O percurso
escolar deve ser padronizado, assim pode ser avaliado e mensurado. Por fim, mais uma vez
não há menção sobre a relação entre educador-educando, caracterizando que o g) O
professor é a figura central do processo de ensino-aprendizagem.
Para Freire, o diálogo está intimamente ligado à problematização da realidade e à
investigação temática que consiste na busca do tema gerador. Isto significa que para
pensarmos um currículo crítico-freireano, os conteúdos escolares não podem ser estabelecidos
previamente, pois a educação deve partir das contradições que se apresentam como obstáculos
à humanização dos sujeitos e, sendo assim, educador e educando devem buscar desvelar a
percepção que os sujeitos têm sobre essas contradições e, por consequência, eleger os
conhecimentos necessários para tanto.

Daí que, para esta concepção como prática da liberdade, a sua dialogicidade comece,
não quando o educador-educando se encontra com os educandos-educadores em
uma situação pedagógica, mas antes, quando aquele se pergunta em torno do que vai
dialogar com estes. Esta inquietação em torno do conteúdo do diálogo é a
inquietação em torno do conteúdo programático da educação (FREIRE, 1987, p. 53).

Todo esse processo em busca do tema gerador também está vinculado à práxis
curricular, ou seja, à reflexão em torno de uma ação primeira com vistas à efetivação de uma
ação transformadora por parte de educadores-educandos em busca de exercer seu papel de
protagonismo no processo educativo, pois a educação problematizadora pressupõe a
dialogicidade entre os sujeitos.

Para o “educador-bancário”, na sua antidialogicidade, a pergunta, obviamente, não é


a propósito do conteúdo do diálogo, que para ele não existe, mas a respeito do
programa sobre o qual dissertará a seus alunos. E a esta pergunta responderá ele
mesmo, organizando seu programa.
124

Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da


educação não é uma doação ou uma imposição – um conjunto de informes a ser
depositado nos educandos, mas a revolução organizada, sistematizada e acrescentada
ao povo, daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada
(FREIRE, 1987, p. 53-54).

Embora a BNCC procure não impor a forma de trabalho destas unidades temáticas,
uma vez que “as mesmas podem ser transformadas no interior da escola” (BRASIL, 207, p.
219), não podemos deixar de considerar que essa fragmentação das unidades temáticas faz
com que a Educação Física escolar se torne um componente alienante, pois não contempla as
práticas corporais como parte de uma totalização da realidade.
Ao abordar a cultura corporal somente nas esferas do lazer/entretenimento e do
cuidado com o corpo/saúde, as práticas corporais não assumem um papel transformador, pois
estão dissociadas de outras esferas, como as esferas política, social, econômica e cultural
presentes em todas as produções humanas, inclusive nas produções que se manifestam pelo
corpo.
É sob esse contexto que a BNCC determina as oito dimensões do conhecimento que
devem ser contempladas ao longo do trabalho com as unidades temáticas. São elas:

• Experimentação: refere-se à dimensão do conhecimento que se origina pela


vivência das práticas corporais, pelo envolvimento corporal na realização das
mesmas. São conhecimentos que não podem ser acessados sem passar pela vivência
corporal, sem que sejam efetivamente experimentados. Trata-se de uma
possibilidade única de apreender as manifestações culturais tematizadas pela
Educação Física e do estudante se perceber como sujeito “de carne e osso”. Faz
parte dessa dimensão, além do imprescindível acesso à experiência, cuidar para que
as sensações geradas no momento da realização de uma determinada vivência sejam
positivas ou, pelo menos, não sejam desagradáveis a ponto de gerar rejeição à
prática em si.
• Uso e apropriação: refere-se ao conhecimento que possibilita ao estudante ter
condições de realizar de forma autônoma uma determinada prática corporal.
Trata-se do mesmo tipo de conhecimento gerado pela experimentação (saber fazer),
mas dele se diferencia por possibilitar ao estudante a competência61 necessária
para potencializar o seu envolvimento com práticas corporais no lazer ou para
a saúde. Diz respeito àquele rol de conhecimentos que viabilizam a prática efetiva
das manifestações da cultura corporal de movimento não só durante as aulas, como
também para além delas.
• Fruição: implica a apreciação estética das experiências sensíveis geradas pelas
vivências corporais, bem como das diferentes práticas corporais oriundas das mais
diversas épocas, lugares e grupos. Essa dimensão está vinculada com a apropriação
de um conjunto de conhecimentos que permita ao estudante desfrutar da
realização de uma determinada prática corporal e/ou apreciar essa e outras
tantas quando realizadas por outros.

61
Nota de rodapé da BNCC: “Ser competente em uma prática corporal é apresentado no texto no sentido de
poder dar conta das exigências colocadas no momento de sua realização no contexto do lazer. Trata-se de um
grau de domínio da prática que permite ao sujeito uma atuação que lhe produz satisfação” (BRASIL, 2017, p.
220).
125

• Reflexão sobre a ação: refere-se aos conhecimentos originados na observação e


na análise das próprias vivências corporais e daquelas realizadas por outros. Vai
além da reflexão espontânea, gerada em toda experiência corporal. Trata-se de um
ato intencional, orientado a formular e empregar estratégias de observação e
análise para: (a) resolver desafios peculiares à prática realizada; (b) apreender
novas modalidades; e (c) adequar as práticas aos interesses e às possibilidades
próprios e aos das pessoas com quem compartilha a sua realização.
• Construção de valores: vincula-se aos conhecimentos originados em discussões e
vivências no contexto da tematização das práticas corporais, que possibilitam a
aprendizagem de valores e normas voltadas ao exercício da cidadania em prol
de uma sociedade democrática. A produção e partilha de atitudes, normas e
valores (positivos e negativos) são inerentes a qualquer processo de socialização. No
entanto, essa dimensão está diretamente associada ao ato intencional de ensino e de
aprendizagem e, portanto, demanda intervenção pedagógica orientada para tal fim.
Por esse motivo, a BNCC se concentra mais especificamente na construção de
valores relativos ao respeito às diferenças e no combate aos preconceitos de
qualquer natureza. Ainda assim, não se pretende propor o tratamento apenas
desses valores, ou fazê-lo só em determinadas etapas do componente, mas
assegurar a superação de estereótipos e preconceitos expressos nas práticas
corporais.
• Análise: está associada aos conceitos necessários para entender as
características e o funcionamento das práticas corporais (saber sobre). Essa
dimensão reúne conhecimentos como a classificação dos esportes, os sistemas
táticos de uma modalidade, o efeito de determinado exercício físico no
desenvolvimento de uma capacidade física, entre outros.
• Compreensão: está também associada ao conhecimento conceitual, mas,
diferentemente da dimensão anterior, refere-se ao esclarecimento do processo de
inserção das práticas corporais no contexto sociocultural, reunindo saberes que
possibilitam compreender o lugar das práticas corporais no mundo. Em linhas
gerais, essa dimensão está relacionada a temas que permitem aos estudantes
interpretar as manifestações da cultura corporal de movimento em relação às
dimensões éticas e estéticas, à época e à sociedade que as gerou e as modificou, às
razões da sua produção e transformação e à vinculação local, nacional e global. Por
exemplo, pelo estudo das condições que permitem o surgimento de uma determinada
prática corporal em uma dada região e época ou os motivos pelos quais os esportes
praticados por homens têm uma visibilidade e um tratamento midiático diferente dos
esportes praticados por mulheres.
• Protagonismo comunitário: refere-se às atitudes/ações e conhecimentos
necessários para os estudantes participarem de forma confiante e autoral em
decisões e ações orientadas a democratizar o acesso das pessoas às práticas
corporais, tomando como referência valores favoráveis à convivência social.
Contempla a reflexão sobre as possibilidades que eles e a comunidade têm (ou não)
de acessar uma determinada prática no lugar em que moram, os recursos disponíveis
(públicos e privados) para tal, os agentes envolvidos nessa configuração, entre
outros, bem como as iniciativas que se dirigem para ambientes além da sala de aula,
orientadas a interferir no contexto em busca da materialização dos direitos sociais
vinculados a esse universo (BRASIL, 2017, p. 220-222, excerto 5, grifo nosso).

No excerto 5 estão especificadas as dimensões do conhecimento que a BNCC espera


que sejam contempladas ao serem abordadas as unidades temáticas e podemos perceber que,
direta ou indiretamente, essas dimensões do conhecimento estão apoiadas nos saberes de
Perrenoud (“saber-fazer”, “saber-aprender” e “saber-ser/conviver”) e nas dimensões dos
conteúdos de Coll (conceitual, procedimental e atitudinal), conforme já havíamos pontuado
anteriormente, na seção deste trabalho que abordou a terceira versão da BNCC. Desta forma,
126

foi possível estabelecermos uma relação da BNCC com estas teorias, conforme podemos ver
no quadro abaixo:

Quadro 18 - Base teórica das dimensões do conhecimento na BNCC


Dimensões do conhecimento, Dimensões dos conteúdos, Saberes, segundo
segundo a BNCC segundo Coll Perrenoud

- Reflexão sobre a ação


- Análise Conceitual Saber-aprender
-Compreensão

- Experimentação
- Uso e apropriação Procedimental Saber-fazer
- Fruição

- Construção de valores
Atitudinal Saber-ser/conviver
- Protagonismo comunitário

Fonte: Organizado pelo pesquisador.

Nas dimensões “Experimentação”, “Uso e apropriação” e “Fruição” encontramos


instruções para que as vivências durante as aulas de Educação Física sejam necessariamente
“positivas”, isto é, prazerosas, e que as práticas corporais desenvolvam “competências” para o
lazer e saúde e a apreciação estética, porém, dicotomizada da ética.
Assim, considerando as práticas corporais como um “saber-fazer” meramente
“procedimental”, a Educação Física não contempla as contradições presentes na realidade e,
logo, não pode ser um componente transformador.
Ainda no excerto 5, as dimensões do conhecimento “Reflexão para ação”, “Análise” e
“Compreensão” ganham um caráter instrumental, pois não estão relacionadas a uma tomada
de consciência que considera a objetividade e a subjetividade dos sujeitos e sua relação com o
mundo. No contexto dado pela BNCC, os “conceitos” devem ser “aprendidos” para serem
aplicados nas próprias práticas corporais, como se essas vivências só tivessem valor em si
mesmas e só pudessem estabelecer uma relação com o contexto da saúde e do lazer
dissociados da totalização da realidade concreta, impondo aos educandos somente uma opção:
aprender aquilo que é necessário para melhor se adaptar ao mundo já existente.
Da mesma forma, “Construção de valores” e “Protagonismo comunitário” são
dimensões do conhecimento que, para a BNCC, representam a normatização dos sujeitos
dentro de determinados valores (que não estão explícitos) para que esses tenham uma
“atitude” respeitosa e “saibam conviver” de forma democrática. No entanto, insistimos mais
127

uma vez que, ao tratar as unidades temáticas da Educação Física em suas partes sem
contemplar a totalização da realidade, as dimensões do conhecimento ficam limitadas à
adaptação dos educandos a um mundo que já existe e somente é “experimentado” na escola,
isto é, é vivenciado, mas não é devidamente problematizado para ser transformado.
Assim, as oito dimensões do conhecimento na BNCC confere a todo conteúdo do
excerto 5 aspectos de um currículo tradicional, segundo os parâmetros estabelecidos
apresentados no Quadro 17, pois, d) O cidadão formado pela escola deve seguir os padrões
idealizados pela elite dominante, uma vez que, c) A escola é responsável pela adaptação dos
sujeitos à sociedade. Neste contexto, entendemos que o aluno não participa do processo
educativo de forma participativa e, portanto, g) O professor é a figura central do processo de
ensino-aprendizagem.
Desta forma a educação ganha um caráter instrumental ao considerar os saberes
fragmentados e que não consideram a relação dialética entre Homens e Mundo, entre os
sujeitos e a realidade, entre a subjetividade e a objetividade, entre a teoria e a prática.
Para Freire (1987), o processo educativo/currículo presume diálogo entre os sujeitos e
a realidade, ou seja, não basta tratar os conteúdos como partes isoladas, pelo contrário, deve-
se considerá-lo como uma produção humana, onde os sujeitos e a realidade interferiram nessa
produção.
Uma vez que o conhecimento é considerado como uma produção humana histórica,
logo entendemos que essa produção é passível de transformação a qualquer momento, pois os
Homens são seres inconclusos e o Mundo é um constante devir. É por isso que, para Freire
(1987), a práxis também deve ser inerente ao processo educativo, pois ela se refere à ação e
reflexão dos sujeitos mediatizados pela realidade com o objetivo de transformar o mundo.
É na práxis curricular que educadores e educandos se identificam como protagonistas
do processo educativo:

Em verdade, não seria possível à educação problematizadora, que rompe com os


esquemas verticais característicos da educação bancária, realizar-se como prática da
liberdade, sem superar a contradição entre o educador e os educandos. Como
também não lhe seria possível fazê-lo fora do diálogo.
É através deste que se opera a superação de que resulta um termo novo: não mais
educador do educando, não mais educando do educador, mas educador-educando
com educando-educador.
Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa,
é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos,
assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os
“argumentos de autoridade” já, não valem. Em que, para ser-se, funcionalmente,
autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas (FREIRE,
1987, p. 44).
128

Após estabelecer as unidades temáticas da Educação Física e as dimensões do


conhecimento a serem desenvolvidas durante o estudo destas unidades temáticas,
abordaremos a segunda seção do documento, do total de três seções destinadas à Educação
Física para o ensino fundamental. Neste trecho do documento a BNCC estabelece dez
competências específicas a serem desenvolvidas nos alunos durante o ensino fundamental.
São elas:

1. Compreender a origem da cultura corporal de movimento e seus vínculos


com a organização da vida coletiva e individual.
2. Planejar e empregar estratégias para resolver desafios e aumentar as
possibilidades de aprendizagem das práticas corporais, além de se envolver no
processo de ampliação do acervo cultural nesse campo.
3. Refletir, criticamente, sobre as relações entre a realização das práticas
corporais e os processos de saúde/doença, inclusive no contexto das atividades
laborais.
4. Identificar a multiplicidade de padrões de desempenho, saúde, beleza e estética
corporal, analisando, criticamente, os modelos disseminados na mídia e discutir
posturas consumistas e preconceituosas.
5. Identificar as formas de produção dos preconceitos, compreender seus efeitos
e combater posicionamentos discriminatórios em relação às práticas corporais
e aos seus participantes.
6. Interpretar e recriar os valores, os sentidos e os significados atribuídos às
diferentes práticas corporais, bem como aos sujeitos que delas participam.
7. Reconhecer as práticas corporais como elementos constitutivos da identidade
cultural dos povos e grupos.
8. Usufruir das práticas corporais de forma autônoma para potencializar o
envolvimento em contextos de lazer, ampliar as redes de sociabilidade e a
promoção da saúde.
9. Reconhecer o acesso às práticas corporais como direito do cidadão, propondo
e produzindo alternativas para sua realização no contexto comunitário.
10. Experimentar, desfrutar, apreciar e criar diferentes brincadeiras, jogos,
danças, ginásticas, esportes, lutas e práticas corporais de aventura, valorizando o
trabalho coletivo e o protagonismo (BRASIL, 2017, p. 223, excerto 6, grifo
nosso).

No excerto 6 podemos entender que a BNCC compreende ser possível (e desejável)


estabelecer previamente objetivos comuns a todos os sujeitos em todas as localidades de
nosso país ao determinar dez competências específicas para a Educação Física no ensino
fundamental. Nesse sentido, o documento assume um caráter normativo e padronizador.
Recorrendo mais uma vez ao Quadro 17, se pensarmos um currículo a partir de uma
perspectiva crítica, podemos até concordar que a compreensão da cultura corporal de
movimento e sua relação com a organização da sociedade atual (competência 1) é realmente
necessária, pois b) A escola deve problematizar a realidade; assim como reconhecer o direito
às práticas corporais propondo e produzindo alternativas para sua realização (competência 9),
129

uma vez que c) A escola não deve ser reprodutora da sociedade, ao contrário, deve ser
transformadora.
Porém, é importante ressaltar que, se pensarmos um currículo a partir da pedagogia
freireana, não podemos considerar que essas metas confiram à BNCC aspectos de um
currículo crítico, pois o percurso educativo não pode ser estabelecido a priori. Para Freire
(1987), os objetivos do processo educativo se originam da percepção que os educandos
possuem sobre as contradições presentes na realidade que limitam sua humanização. Nesse
sentido, mais uma vez a relação diálogo se destaca como um ponto relevante a ser
considerado no processo educativo. Mas, a BNCC, ao eleger conteúdos a priori, acaba por se
distanciar de uma proposta curricular crítico-freireana.
Ao estabelecer as competências como objetivos comuns à Educação Física no ensino
fundamental, o conteúdo do excerto 6 também não atende os requisitos para ser considerado
uma proposta curricular pós-crítica, uma vez que a BNCC assume uma teleologia evidente.
Desta maneira, a análise do excerto 6 nos apresenta aspectos que caracterizam a
BNCC como uma proposta curricular tradicional. A começar por estabelecer as dez
competências comuns a todos os sujeitos, pois, para um currículo tradicional, h) O percurso
escolar deve ser padronizado, assim pode ser avaliado e mensurado.
Ainda no excerto 6, entendemos que a BNCC propõe o planejamento de estratégias
para resolver desafios específicos (competência 2), identificar a multiplicidade de padrões
(competência 4), identificar formas de preconceitos (competência 5), interpretar e recriar
valores (competência 6), reconhecer a identidade cultural dos povos (competência 7), usufruir
da cultura corporal para o lazer e saúde (competência 8) e experimentar diferentes
manifestações da cultura corporal valorizando o trabalho coletivo e o protagonismo
(competência 10).
Todas as competências listadas acima se referem às práticas corporais dissociadas da
realidade objetiva concreta, com exceção do contexto do lazer e da saúde. Isso significa que
os objetivos estabelecidos para a Educação Física não entendem as práticas corporais como
parte de uma totalização da realidade, pois o diálogo com o mundo está limitado ao lazer e à
saúde. Essa condição torna a Educação Física alienada e alienante, pois ignora outras partes
que compõem a totalização da realidade, como a política, a economia, as desigualdades
sociais, as diferenças de classes, entre outros, e impossibilita os educandos de “serem mais”.
Assim, como elementos constituintes de um currículo tradicional, as competências
específicas para a Educação Física no ensino fundamental contidas na BNCC nos levam a
entender que c) A escola é responsável pela adaptação dos sujeitos à sociedade; d) O cidadão
130

formado pela escola deve seguir os padrões idealizados pela elite dominante e g) O professor
é a figura central do processo de ensino-aprendizagem.
Finalizando a análise do excerto 6, chamamos a atenção para o trecho que estabelece a
reflexão crítica sobre as práticas corporais e sua relação com a saúde e a doença, inclusive no
contexto laboral (competência 3).
Mais uma vez percebemos a tentativa da BNCC de relacionar as práticas corporais
limitadas ao contexto da saúde dos sujeitos, porém, desta vez, há uma preocupação explícita
com a saúde (ou doença) do trabalhador, mesmo se tratando de uma proposta curricular para o
ensino fundamental. Esse aspecto é compatível com as intencionalidades de um currículo
tradicional, pois o mesmo entende que b) A escola é fomentadora de mão de obra qualificada
à economia;
Para Freire, o processo educativo fragmentado e dissociado da realidade, característico
das propostas curriculares tradicionais, caracteriza também a “educação bancária” e são
antagonistas de sua proposta de educação problematizadora. Essa educação [bancária] ignora
o diálogo entre os Homens mediatizados pelo Mundo. Para a pedagogia freireana, a relação
Homens-Mundo não deve ser dicotomizada e transformada em “conteúdos escolares”, onde
cada componente curricular assume um caráter instrumental para determinada finalidade
ignorando sua relação com o restante da realidade.

Falar da realidade como algo parado, estático, compartimentado e bem comportado,


quando não falar ou dissertar sobre algo completamente alheio à experiência
existencial dos educandos vem sendo, realmente, a suprema inquietação desta
educação [bancária]. A sua irrefreada ânsia. Nela, o educador aparece como seu
indiscutível agente, como o seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é "encher” os
educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos que são retalhos da realidade
desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam
significação. A palavra, nestas dissertações, se esvazia da dimensão concreta que
devia ter ou se transforma em palavra oca, em verbosidade alienada e alienante
(FREIRE, 1987, p. 37).

A última seção da BNCC de Educação Física para a etapa do ensino fundamental


busca organizar as unidades temáticas, objetos de conhecimento e habilidades vistos
anteriormente e está dividida em duas partes, sendo uma dedicada aos conteúdos para os anos
iniciais do ensino fundamental e outra aos anos finais desta etapa.
É nesta seção que encontramos uma divisão daquilo que deve ser ensinado/aprendido
conforme cada etapa do ensino fundamental e, para tanto, essa divisão compreende
determinadas unidades temáticas a serem trabalhadas com diferentes objetos de
conhecimento.
131

Assim, esses objetos do conhecimento dos anos iniciais do ensino fundamental estão
organizados e divididos entre 1º e 2º anos e 3º ao 5º ano, como demonstrado abaixo:

Quadro 19 - Objetos de conhecimento da Educação Física para os anos iniciais do ensino


fundamental

Fonte: Brasil (2017, p. 225)

Da mesma forma, os objetos de conhecimento para os anos finais do ensino


fundamental estão divididos entre 6º e 7º anos e 8º e 9º anos, conforme o quadro seguinte:

Quadro 20 - Objetos de conhecimento da Educação Física para os anos finais do


ensino fundamental

Fonte: Brasil (2017, p. 231)


132

A partir destas divisões, a BNCC estabelece as habilidades a serem desenvolvidas


através de cada unidade temática e objeto de conhecimento visando o desenvolvimento das
competências específicas da Educação Física para cada aluno.
Essa forma de organizar a base curricular transformou a BNCC em um “manual de
procedimentos”, onde basta “executar” determinada unidade temática por meio de seus
objetos de conhecimento que o aluno “corresponderá” com o comando dado e desenvolverá as
habilidades previamente determinadas.
Para tanto, a BNCC utiliza uma série de códigos que representam as etapas da
educação básica, o ano cursado, a disciplina e a habilidade a ser trabalhada, conforme a figura
abaixo:

Figura 3 - Esquema de organização da BNCC

Fonte: Brasil (2017, p. 30).

A lógica de utilização destes códigos a partir de conteúdos pré-definidos e a


expectativa de aprendizagem na forma de habilidades e competências implicam em uma
proposta curricular “engessada”, conforme consta nas diversas tabelas, onde a BNCC
determina o que deve ser ensinado, quando deve ser ensinado e para que deve ser ensinado e
como podemos ver no Anexo A e Anexo B, assim como no exemplo abaixo:
133

Quadro 21 - Exemplo da organização da BNCC

Fonte: Adaptado de Brasil (2017, p. 232-233)

A análise da Figura 3 e dos Quadros 19, 20 e 21 nos demonstram a preocupação da


BNCC em garantir que determinados conteúdos sejam trabalhados em determinado tempo
para assim, habilitar o aluno ao próximo conteúdo, porém, sem se preocupar se esses
conteúdos ou se esse tempo atendem uma necessidade dos educandos ou da comunidade
escolar.
Mais uma vez, tomando como referência os parâmetros estabelecidos no Quadro 17,
podemos considerar a BNCC como uma proposta curricular tradicional, pois nela a) A
organização da escola é fragmentada e seriada como a organização fabril; aspecto que fica
evidente na organização do currículo como uma “linha de produção de cidadãos”.
Também consideramos que para a BNCC f) O currículo é a ferramenta para
administrar a escola garantindo eficiência nos resultados; e) A meritocracia é o sistema que
organiza o progresso da vida escolar do aluno; e h) O percurso escolar deve ser
padronizado, assim pode ser avaliado e mensurado; pois, além da padronização do percurso
escolar para todo o país, o documento entende ser necessário que os alunos atinjam
determinada etapa do ensino fundamental para ter acesso a determinadas práticas da cultura
corporal do movimento.
Uma vez que os conteúdos da Educação Física são pré-determinados, também
entendemos que o aluno não influencia naquilo que será ensinado e, desta forma, g) O
professor é a figura central do processo de ensino-aprendizagem.
Reafirmamos, então, novamente a nossa oposição às propostas curriculares
tradicionais, pois entendemos que o processo educativo deve contribuir para a transformação
134

da realidade com vistas à humanização dos sujeitos. No entanto, o que a BNCC de Educação
Física para o ensino fundamental nos oferece é um percurso escolar preocupado em
sistematizar o ensino e em adaptar os sujeitos à realidade atual.
Desta forma, podemos comparar a BNCC como uma proposta curricular voltada à
“educação bancária” denunciada por Paulo Freire, uma vez que o referido documento carrega
consigo um discurso solidário, mas que, no entanto, caminha em direção à manutenção da
alienação dos sujeitos e se distancia do diálogo entre os Homens e o Mundo e da práxis
curricular como ação e reflexão assumida no papel entre educadores e educandos. Para
Freire:

A primeira [a educação bancária] “assistencializa”; a segunda [a educação


problematizadora], criticiza. A primeira, na medida em que, servindo à dominação,
inibe a criatividade e, ainda que não podendo matar a intencionalidade da
consciência como um desprender-se ao mundo, a “domestica”, nega os homens na
sua vocação ontológica e histórica de humanizar-se. A segunda, na medida em que,
servindo à libertação, se funda na criatividade e estimula a reflexão e a ação
verdadeiras dos homens sobre a realidade, responde à sua vocação, como seres que
não podem autenticar-se fora da busca e da transformação criadora (FREIRE, 1987,
p. 47, grifo do autor).

Na próxima seção desta pesquisa, a análise documental realizada, a partir dos


parâmetros estabelecidos sobre os aspectos das diferentes teorias curriculares, nos permitirá
compreender em que medida a BNCC de Educação Física para a etapa do ensino fundamental
contribui para a constituição de uma identidade docente em Educação Física.

4.3. A constituição da identidade docente em Educação Física na BNCC

Uma vez realizada a análise da BNCC com base nos parâmetros estabelecidos pelas
teorias curriculares no Quadro 17, é possível considerarmos uma identidade docente em
Educação Física, pois, segundo Silva (2005, p. 15), “[...] No fundo das teorias do currículo
está, pois, uma questão de „identidade‟ [...]”.
Assim, primeiramente, consideramos pertinente sintetizar as diferentes identidades
profissionais e docentes constituídas pelas diferentes propostas curriculares da Educação
Física apresentadas no Capítulo 2 deste estudo, conforme o quadro abaixo:
135

Quadro 22 - Identidades docentes (ou profissionais) em Educação Física constituídas por


diferentes propostas curriculares

Identidade docente
Principais características
(ou profissional)
dadas pelo currículo
constituída
CURRÍCULOS TRADICIONAIS

Currículo Ginástico Condicionamento físico e disciplina Agente de saúde / Militar


DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Currículo Esportivista Performance esportiva Treinador / Técnico

Desenvolvimento global através de


Currículo Psicomotor Professor / Recreador
atividades lúdicas

Currículo Desenvolvimento global através de


Professor / Recreador
Desenvolvimentista atividades lúdicas

Preparador físico /
Currículo Saudável Cuidado com a saúde
Personal training

Transmissão dos conhecimentos


CURRÍCULOS CRÍTICOS DA

Currículo científicos relacionados à cultura


Professor
EDUCAÇÃO FÍSICA

Crítico-superador corporal visando à superação do


senso comum

Ensino dos esportes tradicionais


(considerando também sua prática
Currículo
popular) como manifestação do “Se- Professor
Crítico-emancipatório
movimentar” visando à emancipação
em relação à opressão do esporte
CURRÍCULO PÓS-CRÍTICO
DA EDUCAÇÃO FÍSICA

Leitura da cultura corporal como


discurso a ser ressignificado e
Currículo Cultural Professor
valorização das culturas
marginalizadas no currículo escolar

Fonte: Organizado pelo pesquisador.

Para relacionarmos a análise da BNCC a partir das teorias do currículo com a


constituição da identidade docente, quantificamos a incidência de aspectos relacionados às
136

diferentes teorias curriculares identificados nas análises dos excertos 1, 2, 3, 4, 5 e 6, assim


como dos Quadros 19, 20, 21 e da Figura 3, conforme apresentado abaixo:

Quadro 23 - Quantificação dos aspectos das diferentes teorias curriculares identificados na


BNCC

Aspectos identificados que qualificam a BNCC como um...


CURRÍCULO CURRÍCULO CURRÍCULO
TRADICIONAL CRÍTICO PÓS-CRÍTICO
Excerto 1 c), d), g) d), e), h), j) c)
Excerto 2 e 3 c), d), g) --- b), d), i)
Excerto 4 a), g), h) --- ---
Excerto 5 c), d), g) --- ---
Excerto 6 b), c), d), g), h) b), c) ---
Quadros 18, 19,20 e Figura 3 a), e), f), g), h) --- ---
Fonte: Organizado pelo pesquisador.

Como visto, enquanto os aspectos da teoria curricular crítica apresentaram 6


ocorrências e os aspectos da teoria curricular pós-críticas apresentaram 4 ocorrências, os
aspectos que qualificam a BNCC como uma proposta curricular tradicional obtiveram 22
ocorrências.
A incidência dos aspectos das teorias curriculares crítica e pós-crítica prioritariamente
na primeira parte do documento pode ser explicada pela tentativa de manipular os aspectos
tradicionais do documento. Para Moreira (2000, p. 111), “[...] palavras associadas às lutas
progressistas têm sido assimiladas e recontextualizadas por setores mais conservadores, o que
exige cuidado [...]”.
Porém, o Quadro 23, como síntese da análise documental realizada, nos possibilita
considerar a BNCC como uma proposta curricular tradicional e, portanto, podemos considerar
que a identidade docente (ou profissional) em Educação Física constituída na BNCC está
relacionada às identidades oriundas das propostas curriculares tradicionais do componente,
isto é, Agente de saúde/Militar, Treinador/Técnico, Professor/Recreador ou Preparador
físico/Personal training.
A partir da análise do Quadro 23 e retomando as duas categorias analíticas freireanas
que destacamos como principais referências para a respectiva análise dos excertos - diálogo e
práxis - podemos considerar que os aspectos de uma proposta curricular tradicional contidos
na BNCC a impedem de ser dialógica, caracterizando-a como uma “educação bancária”.
137

Da mesma forma, ao não propor o diálogo, a BNCC impossibilita a práxis


transformadora, tornando educadores e educandos em meros expectadores das normas
estabelecidas pelo currículo. Entendemos que tal posicionamento configura uma identidade
docente similar à do “educador bancário”, impossibilitando que os educadores compartilhem
com os educandos o protagonismo do processo educativo.
Nesta direção, concordamos com a crítica de Bossle que entende que os marcos legais
da educação, como a BNCC:

[...] privilegiam a gestão em que os professores são meros executores e fazem coro e
eco aos projetos de sociedade em que são necessários um pensamento acrítico e o
fim das culturas e práticas corporais locais em detrimento do que se quer tornar
“comum”, reforçando a educação “bancária” (BOSSLE, 2018, p. 26).

A análise dos excertos da BNCC realizadas nesta pesquisa ainda nos possibilita
identificarmos de forma mais específica qual é a identidade constituída pelo documento entre
as diferentes identidades docentes e profissionais constituídas pelas propostas curriculares
tradicionais da Educação Física.
Os excertos 1, 2, 5 e 6 da BNCC enfatizam que a Educação Física trabalhe as unidades
temáticas e seus objetos de conhecimento abordando as práticas corporais sob o contexto do
lazer e da saúde.
Neste sentido, limitando a cultura corporal do movimento ao contexto do lazer e da
saúde e ignorando a totalização da realidade que envolve as práticas corporais, podemos dizer
que a BNCC contribui para a constituição de duas identidades docentes/profissionais
possíveis: a do Professor/Recreador e a do Preparador físico/Personal training.
É importante ressaltar que a BNCC não se aproxima do Currículo Psicomotor e do
Currículo Desenvolvimentista da Educação Física, pois não apresenta uma preocupação
específica com o desenvolvimento global dos alunos, mas, ao enfatizar o lazer
descontextualizado da realidade objetiva concreta, entendemos que há a possibilidade de que
a Educação Física escolar seja interpretada como um momento de recreação e o professor
como o recreador.
A outra identidade constituída pela BNCC - Preparador físico/Personal training - está
relacionada ao Currículo Saudável da Educação Física e carrega grande influência do
Currículo Ginástico.
Embora a BNCC não se aproxime da proposta curricular já existente, seu enfoque
sobre as práticas corporais sob o contexto da saúde conferem à Educação Física características
138

que fogem ao âmbito pedagógico por estarem sustentadas pelos conhecimentos médicos,
anatômicos, biológicos e fisiológicos, possibilitando que a identidade docente se confunda
com a identidade profissional do Preparador físico/Personal training.
Buscamos também na BNCC de Educação Física na etapa do ensino fundamental a
palavra-chave identidade no intuito de analisarmos se o documento aborda o respectivo
assunto. Foi encontrada uma ocorrência da palavra identidade, mas que, no entanto, se referia
à sétima competência específica de Educação Física para o ensino fundamental a ser
desenvolvida nos alunos: “Reconhecer as práticas corporais como elementos constitutivos da
identidade cultural dos povos e grupos” (BRASIL, 2017, p. 223).
Desta forma, entendemos que a constituição de uma identidade docente em Educação
Física na BNCC está implícita no documento, conforme exposto pela análise documental que
realizamos a partir das teorias curriculares que identificou duas identidades distintas na
BNCC (Professor/Recreador e Preparador físico/Personal training), ainda que o documento
não apresente estar fundamentado teoricamente nos currículos que constituem estas
identidades (Currículo Psicomotor, Currículo Desenvolvimentista e Currículo Saudável), pois
não há qualquer citação ou referência sobre tais propostas.
Podemos considerar, então, que a BNCC de Educação Física contribui mais para a
perpetuação da “crise de identidade” e manutenção da condição de “ainda não” na Educação
Física do que para a constituição de uma identidade docente bem definida.
Considerando ser necessária à Educação Física a sua busca por autocrítica e a
superação de sua crise de identidade, esta pesquisa não poderia se limitar às denúncias sem
trazer algumas possibilidades de anúncios. Nesta direção, na seção seguinte desta dissertação,
buscaremos na pedagogia freireana contribuições para pensarmos uma proposta curricular
crítico-freireana da Educação Física, bem como a respectiva identidade docente ao professor
de Educação Física.

4.4. Proposições iniciais para um currículo de Educação Física crítico-freireano

Complementando as categorias freireanas expostas no Capítulo 2 desta dissertação, a


partir dos estudos realizados por Nunes (2018), e visando uma maior aproximação da
pedagogia proposta por Paulo Freire com a Educação Física escolar, chamamos a atenção
para mais um conceito freireano como categoria: o corpo consciente.
139

Contudo, para evitar a ideia de dualidade entre corpo e mente presente na história da
Educação Física, trabalharemos com o termo ser humano consciente, a partir da categoria
freireana apresentada acima.
Podemos entender o ser humano consciente como a manifestação da consciência
humana na realidade objetiva concreta, isto é, objetividade e subjetividade de forma
indicotomizável. Vale lembrarmos que, para o Materialismo Histórico-dialético, o mundo das
ideias não existe fora da materialidade, assim como o contrário também é verdadeiro.

Para Marx, era preciso superar duas unilateralidades opostas (a do materialismo e a


do idealismo) e pensar simultaneamente a atividade e a corporeidade do sujeito,
recolhendo-lhe todo poder material de intervir no mundo. Nessa intervenção
consistia a práxis, a atividade „revolucionária‟, „subversiva‟, questionadora e
inovadora, ou ainda, numa expressão extremamente sugestiva, „crítico-prática‟
(KONDER, 1992, p.115 apud SILVA, 2004, p. 150).

Para Freire (1983, p. 44), o corpo consciente é a “consciência intencionada ao mundo,


à realidade” configurando no homem que interfere na realidade, atua sobre ela e,
diferentemente dos animais, tem consciência disto. Portanto, a ideia de Freire de corpo
consciente está alinhada com o nosso entendimento de ser humano consciente.

O homem [ser humano] é um corpo consciente. Sua consciência, “intencionada” ao


mundo, é sempre consciência de em permanente despêgo até a realidade. Daí que
seja próprio do homem estar em constantes relações com o mundo. Relações em que
a subjetividade, que toma corpo na objetividade, constitui, com esta, uma unidade
dialética, onde se gera um conhecer solidário com o agir e vice-versa. Por isto
mesmo é que as explicações unilateralmente subjetivista e objetivista, que rompem
esta dialetização, dicotomizando o indicotomizável, não são capazes de compreendê-
lo. Ambas carecem de sentido teleológico (FREIRE, 1983, p. 51, grifo do autor).

Freire estabelece mais uma vez a comparação entre os Homens e outros animais e
entende que a humanidade se deu à medida que o corpo (organismo) e a mente (consciência
de si, do outro e do mundo) se tornaram solidários. O ambiente natural passa a ser mundo para
o homem à medida que “o corpo humano vira corpo consciente, captador, apreendedor,
transformador, criador de beleza e não „espaço‟ vazio a ser enchido por conteúdos” (FREIRE,
1996, p. 27).
Seguindo a mesma direção da crítica à “educação bancária”, podemos denunciar
também uma “educação física bancária”, onde o corpo não é uma produção histórica, política,
social e cultural, mas sim, um mero instrumento biológico, como se houvesse uma dicotomia
entre corpo e mente negando a humanização dos sujeitos.
140

Essa concepção de Educação Física (“bancária”) está limitada a depositar conteúdos


pré-estabelecidos relacionados à performance esportiva, o refinamento de movimentos, o
lazer com finalidade em si mesmo, o condicionamento físico, a padronização estética, a busca
da beleza e da saúde como produtos de consumo e enxergam os educandos como recipientes
vazios que necessitam dos “depósitos” do professor. É neste contexto que podemos incluir as
propostas curriculares tradicionais de Educação Física, como os currículos Ginástico,
Esportivista, Psicomotor, Desenvolvimentista e Saudável e, agora, a BNCC como proposta
curricular para a área de Educação Física no ensino fundamental.
Em contrapartida, pensar um currículo crítico de Educação Física, a partir da
pedagogia freireana, significa considerar os sujeitos não somente como um organismo
biológico, mas sim, como um ser humano consciente que é histórico, cultural, social, político,
inconcluso, em permanente formação e, desta forma, produz sua própria humanidade, isto é,
produz as condições necessárias para a sua existência. Em outras palavras, o ser humano
consciente, em sua relação com os outros e com o mundo, produz cultura e vive imerso nesta
cultura.
Assim, podemos estabelecer que um currículo crítico de Educação Física, a partir da
pedagogia freireana, possui como seu objeto específico de estudo a cultura corporal, ou seja,
as produções humanas historicamente acumuladas e que se manifestam na realidade concreta
como manifestações corporais associadas ao conceito de ser humano consciente.
A cultura corporal a qual nos referimos é àquela referida por outros currículos de
Educação Física que, em suas proposições, também a entendem como objeto específico da
Educação Física escolar, como o Currículo Crítico-superador (COLETIVO DE AUTORES,
1992) e o Currículo Cultural (NEIRA; NUNES, 2006). O diferencial que propomos aqui é a
relação dialética entre o ser humano consciente e a cultura corporal.
Neste sentido, podemos estabelecer como objetivo desta proposta curricular crítica de
Educação Física a formação do ser humano consciente que, por sua vez, deixa de ser somente
um corpo (biológico) e passa a se conscientizar e a se humanizar à medida que conhece,
produz e transforma a cultura corporal.
Considerando os aspectos de um currículo pensado à luz da pedagogia freireana
estabelecidos no Quadro 1 do segundo capítulo desta dissertação, podemos pensar que um
currículo crítico-freireano de Educação Física deve pressupor suas premissas, seus
fundamentos e seus compromissos, conforme exposto abaixo:
141

Quadro 24 - Proposições para se pensar um currículo crítico-freireano de Educação Física


Currículo Crítico-freireano de Educação Física

Premissas:

- O ser humano não é somente um organismo biológico, mas sim um sujeito da práxis, inconcluso,
que necessita permanentemente formar-se humano (educação/humanização) para produzir sua
existência através da transformação da realidade (social, cultural, política e econômica);

- O objeto da Educação Física crítico-freireana é a cultura corporal, isto é, a produção humana


historicamente acumulada que se manifesta na realidade objetiva concreta através do corpo;

- Educador e educando são sujeitos históricos, sociais, culturais e políticos que se relacionam com
outros sujeitos ao mesmo tempo em que se relacionam com o mundo e no mundo;

- A realidade objetiva concreta é produzida historicamente pelos sujeitos, portanto, não é estática e
harmônica, mas sim, um constante devir resultante das tensões oriundas da relação dialética entre
Homens-Homens e Homens-Mundo (diálogo).

Fundamentos:

- O diálogo entre os sujeitos e a realidade buscando desvelar as contradições sociais que limitam a
humanização;

- A práxis transformadora da realidade através da ação-reflexão-ação transformadora;

- A horizontalidade entre educador-educando, pois uma relação autoritária impossibilita o diálogo


e, por consequência, a práxis transformadora;

- O conhecimento como ato cognoscente, isto é, os conteúdos escolares não são o fim do processo
educativo, mas sim, o meio;

- A problematização da realidade que entende educador e educandos como investigadores críticos;

- A investigação temática para obtenção do tema gerador como metodologia para eleger os
conteúdos escolares (redução temática) a serem trabalhados no processo educativo.

Compromissos:

- A formação de seres humanos conscientes, o que implica em:

- Colaborar no processo de conscientização dos sujeitos desmitificando a realidade e


evidenciando que a mesma é uma produção humana;

- Colaborar no processo de emancipação dos sujeitos superando as situações-limite


através da conscientização e da transformação da realidade;

- Colaborar no processo de humanização dos sujeitos como responsáveis políticos pelas


tomadas de decisões que constituirão sua própria história, sociedade e cultura.

Fonte: Organizado pelo pesquisador.


142

As premissas, fundamentos e compromissos aqui propostos para um currículo crítico-


freireano da Educação Física devem se articular com uma identidade docente que nos
possibilite aliar a análise do [...]

“[...] contexto histórico da escola pública, dos professores e professoras de Educação


Física e dos conhecimentos científicos e saberes populares acumulados, com uma
práxis problematizadora, militante e que favoreça a participação popular, a
democracia participativa e o combate as desigualdades sociais [...] (BOSSLE, 2018,
p. 29).”

É desta maneira que entendemos que a Educação Libertadora proposta por Freire pode
contribuir para preenchermos algumas lacunas ao pensarmos uma proposta curricular de
Educação Física que colabore seja transformadora e, de fato, emancipatória, atendendo todos
os aspectos que consideramos compor uma proposta de um currículo crítico, conforme
apresentado no quadro abaixo:

Quadro 25 - Aspectos de um currículo crítico contemplados no currículo crítico-freireano da


Educação Física
Currículo

Crítico-freireano

Educação Física
da
Aspectos de um currículo crítico
a) A escola não é neutra à sociedade - ela influencia e é influenciada por ela; X
b) A escola deve problematizar a realidade; X
c) A escola não deve ser reprodutora da sociedade, ao contrário, deve ser
X
transformadora;
d) O currículo deve enxergar o aluno como sujeito do processo de ensino-
X
aprendizagem;
e) O currículo deve direcionar à formação de sujeitos críticos com vistas à
X
emancipação;
f) O currículo deve entender a educação como meio de humanização; X
g) O currículo não pode ser aparelho ideológico; X
h) O currículo não pode somente transmitir cultura - os sujeitos também
X
produzem cultura;
i) O currículo não pode velar as relações de poder; X
j) A ciência moderna não deve ser o único conhecimento válido na escola - o
conhecimento dos educandos também é uma produção humana, portanto, X
cultural.
Fonte: Organizado pelo pesquisador.
143

Pensando a partir da pedagogia freireana, poderíamos acrescentar mais três aspectos


para pensarmos um currículo crítico-libertador: “Os conteúdos devem emergir da
problematização da realidade em torno das relações Homens-Mundo”; “O currículo deve
considerar que os conteúdos escolares não são o fim do processo educativo, mas sim, o meio.
O ponto de chegada do processo educativo se dá na práxis transformadora” e “O currículo
deve presumir a permanente formação do educador a partir da própria práxis curricular”.
Assim, a Educação Física escolar passa a se enxergar como parte de uma totalização
da realidade, onde as partes estabelecem relações dialéticas entre si e, desta forma, permitindo
que não se torne um aparelho ideológico alienado e alienante, como o que constatamos no
primeiro momento da história da Educação Física e que, ainda hoje, parece perpetuar na
proposta da BNCC de Educação Física para a etapa do ensino fundamental. Neste sentido,
pensamos na identidade docente a ser constituída pelo currículo crítico-freireano da Educação
Física como a do educador crítico-libertador.

Quadro 26 - A identidade docente constituída pelo currículo crítico-freireano da Educação


Física
Identidade docente
Principais características
(ou profissional)
dadas pelo currículo
constituída
Problematização da realidade em torno
das relações Homens-Mundo visando a
emersão dos temas da cultura corporal a
Currículo
serem articulados aos conteúdos Educador crítico-
crítico-freireano da
escolares, para que esses colaborem no libertador
Educação Física
processo de conscientização dos sujeitos
na direção da transformação da realidade
material, socioeconômica e cultural.
Fonte: Organizado pelo pesquisador.

Consideramos que a identidade de “educador crítico-libertador” para o professor de


Educação Física pode contribuir para a superação da “crise de identidade da Educação Física”
(MEDINA, 2007) e a superação da condição de “não mais” e de “ainda não” (GONZÁLES;
FENSTERSEIFER, 2009).
Entendemos então, que, se pensarmos um currículo crítico-freireano da Educação
Física, logo, a identidade docente se constitui na figura do educador crítico-libertador, que
nesta perspectiva, supera a figura do professor ao assumir um compromisso ontológico,
144

antropológico, axiológico e epistemológico no processo educativo em direção à humanização


e à emancipação dos sujeitos histórico-sociais.
145

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como apresentado na Introdução desta dissertação, esta pesquisa iniciou com minha
inquietação sobre as distintas identidades docentes/profissionais constituídas em Educação
Física no âmbito escolar e, ao longo do meu percurso como professor desta área, me chamou
atenção a relação que parecia existir entre as diferentes propostas curriculares da Educação
Física e as diferentes identidades que os professores e professoras assumiam dentro das
escolas.
Mais recentemente, também me incomodou a pressão exercida sobre os docentes para
que esses “seguissem” a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017) como uma
proposta curricular que garantisse preencher todas as lacunas da educação brasileira e, ao
entender a BNCC como uma proposta padronizada para currículos escolares em todo país,
considerei que nela poderia também haver uma proposta de identidade docente a ser
constituída em Educação Física.
Assim, ingressei no programa de mestrado em Educação e me aproximei da pedagogia
freireana percebendo que nela havia possibilidades para pensarmos o currículo escolar e a
identidade docente como educador crítico-libertador. Esse movimento me fez chegar aos
seguintes questionamentos: “Qual(is) identidade(s) docente(s)/profissional(is) está(ão)
presente(s) na BNCC de Educação Física na etapa do ensino fundamental e qual(is)
perspectiva(s) curricular(es) a(s) fundamenta(m)? E, em que medida, essa(s) identidade(s) se
aproxima(m) ou se distancia(m) da pedagogia freireana?”; “Qual é a relação entre as
diferentes propostas curriculares existentes de Educação Física e as diferentes identidades
docentes/profissionais historicamente constituídas em Educação Física?” e “Quais são as
possibilidades para pensarmos uma proposta curricular crítico-freireana que constitua uma
identidade docente de educador para o professor de Educação Física?”.
Apoiado nestes três questionamentos, a pesquisa objetivou “Analisar a BNCC de
Educação Física na etapa do ensino fundamental a partir da pedagogia freireana, visando
explicitar, segundo as teorias curriculares, qual(is) são as identidade(s)
docente(s)/profissional(is) em Educação Física constituídas no documento e, a partir desta
análise, averiguar quais são as possibilidades de um currículo crítico-freireano da Educação
Física que constitua uma identidade docente de educador”. Para tanto, este estudo foi
desenvolvido através de um percurso metodológico de cunho qualitativo valendo-se da
pesquisa bibliográfica e da análise documental.
146

Assim, partimos de uma contextualização histórica que nos apresentou a Educação


Física como uma produção humana e histórica que pode ser dividida em dois momentos. Um
primeiro momento onde a Educação Física se constituía num aspecto alienado e alienante
correspondendo a um projeto de cidadão saudável, acrítico e pronto para cumprir com sua
função perante a nação, função esta que sempre esteve vinculada aos interesses políticos e
econômicos da elite dominante. Já no segundo momento, com a “reabertura” política do
Brasil, a Educação Física passa a refletir sobre si mesma e inicia uma busca pela autocrítica
visando compreender o sentido de seu papel pedagógico e social.
A partir de Silva (2005) consideramos que uma proposta curricular corresponde a
aspectos que a configuram como sendo um currículo tradicional, crítico ou pós-crítico
gerando diferentes identidades, o que foi evidenciado ao analisarmos diferentes propostas
curriculares da Educação Física e constatarmos que esses currículos constituíam diferentes
identidades docentes/profissionais.
Nesse sentido, destacamos cinco propostas curriculares tradicionais da Educação Física
e sua relação com as respectivas identidades docentes/profissionais constituídas: o Currículo
Ginástico e a identidade docente/profissional de um agente de saúde/militar, o Currículo
Esportivista e a identidade docente/profissional de treinador/técnico esportivo, o Currículo
Psicomotor (FREIRE, J. B; 1989) e o Currículo Desenvolvimentista (GO TANI et al., 1988) e
a identidade docente/profissional de professor recreador e, por último, o Currículo Saudável e
a identidade docente/profissional de preparador físico/personal training.
Os currículos tradicionais da Educação Física se aproximam das denúncias da
“educação bancária” realizadas por Freire (1987), o que nos permite entender que os
currículos tradicionais contemplam uma perspectiva de “Educação Física bancária”, onde o os
conteúdos escolares do componente curricular se apresentam de forma fragmentada e
dissociada da realidade dos educandos que, nesse contexto, são meros “recipientes” esperando
pelos “depósitos” do professor.
Uma proposta curricular nos moldes “bancários” reifica os sujeitos ao negar seu
protagonismo no mundo. Essa educação tradicional desumanizante está a favor das classes
dominantes e, por isso, busca transmitir a ideia de que a realidade é estática e bem
comportada restando aos sujeitos se conformar com as contradições da vida e se adaptar ao
mundo já dado.
Como alternativa aos currículos tradicionais de Educação Física surgem duas propostas
que contemplam aspectos de um currículo crítico: o Currículo Crítico-superador
147

(COLETIVO DE AUTORES, 1992) e o Currículo Crítico-emancipatório da Educação Física


(KUNZ, 1991; 1994).
Uma terceira perspectiva fundamentada na teoria curricular pós-crítica também busca a
superação das contradições impostas pelos currículos tradicionais, porém, buscando caminhos
alternativos às propostas curriculares críticas: o Currículo Cultural da Educação Física
(NEIRA; NUNES, 2006; 2009).
Em comum, essas três propostas curriculares (Crítico-superadora, Crítico-
emancipatório e o Currículo Cultural), embora fundamentadas em diferentes referenciais
teóricos e amparadas por diferentes visões de mundo, constituem uma identidade docente que
se aproxima da figura do professor e se distancia das outras identidades profissionais da
Educação Física constituídas pelos currículos tradicionais, como o agente de saúde/militar,
treinador/técnico esportivo, recreador e preparador físico/personal training.
Apoiada principalmente nas categorias freireana diálogo e práxis (FREIRE, 1987), a
análise da BNCC de Educação Física para a etapa do ensino fundamental desvelou seu caráter
liberal ao evidenciar que o documento apresenta 22 ocorrências em seus excertos que as
qualificam como sendo uma proposta curricular tradicional, contra 6 ocorrências que
correspondem a aspectos de uma proposta curricular crítica e 4 ocorrências de aspectos de um
currículo pós-crítico, sendo que essas poucas ocorrências de aspectos de um currículo crítico e
pós-críticos podem ser entendidas como possibilidades ideológicas.
Sendo assim, a identidade docente em Educação Física constituída pela BNCC está
vinculada às identidades constituídas pelas propostas curriculares tradicionais da Educação
Física e, por isso, se distancia da identidade do educador crítico-libertador pensado a partir
da pedagogia freireana.
Nesta direção, por tratar de forma enfática que compete ao componente curricular
trabalhar as atividades corporais no contexto da saúde e do lazer, não se preocupando com os
demais contextos que compõem a realidade social dos educandos, logo, a BNCC constitui
uma identidade docente de “recreador” e/ou de preparador físico/personal training.
Desta forma, concordamos com Bossle (2018) que compara a BNCC à “educação
bancária” denunciada por Freire (1987), uma vez que fica evidente no documento o projeto de
uma sociedade acrítica a partir de uma proposta de Educação Física alienada e alienante.
É por isso que, visando não se limitar as denúncias, pensamos nas possibilidades de
uma Educação Física que seja fundamentada na pedagogia freireana e supere a Educação
Física tradicional e ideologizante, contribuindo para um projeto de sociedade que favoreça a
tomada de consciências dos sujeitos contra a opressão.
148

Em nossas proposições iniciais para um currículo de Educação Física crítico-freireano


chamamos a atenção para o ser humano consciente a partir da categoria freireana corpo
consciente. Neste estudo entendemos o ser humano consciente como a representação material
da relação dialética entre Homens e Mundo, entre objetividade e subjetividade, entre teoria e
prática. Nesta lógica, a Educação Física entende que há uma relação dialética entre o ser
humano consciente e a cultura corporal.
Uma proposta de Educação Física crítico-freireana deve entender o processo educativo
como o processo de formação do ser humano, isto é, uma educação humanizadora que neste
sentido deve entender educadores e educandos como sujeitos históricos, sociais, culturais e
políticos que se relacionam entre si mediatizados pelo mundo. Portanto, essa Educação Física
de fundamentação freireana também deve assumir alguns compromissos éticos, como a
conscientização, emancipação e humanização dos sujeitos.
A identidade docente constituída por uma proposta de Educação Física crítico-
freireana é a figura do educador crítico-libertador, entendendo que esse supera a ideia do
professor oriundo dos modelos de “educação bancária”, ou seja, ao invés de mero expositor
de conteúdos e executor dos currículos tradicionais, esse educador problematiza a realidade,
investiga os temas da cultura corporal a serem trabalhados em articulação com os conteúdos
escolares e assume um compromisso ontológico, antropológico, axiológico e epistemológico
no processo educativo viabilizando à humanização e emancipação dos sujeitos.
É importante ressaltar que os resultados obtidos e as reflexões realizadas até aqui estão
distantes de esgotar o tema, pois quando nos referimos ao currículo escolar, à identidade
docente e à Educação Física, todo esse cenário parece ser nebuloso e, portanto, carece de mais
pesquisas.
Com relação as possibilidades de um currículo de Educação Física crítico-freireano
também devemos considerar as dificuldades que envolvem essa proposta, uma vez que a
pedagogia freireana possui caráter contra hegemônico que parece, segundo Bossle (2019, p.
20), “[...] ameaçar o avanço do projeto de Educação de mercado defendido por neoliberais e
neoconservadores [...]”, projetos como a própria BNCC, objeto desta pesquisa.
Neste sentido duas questões ainda me soam como uma inquietação e como limites a
serem superados: “De que maneira um currículo crítico-freireano de Educação Física
poderia ser posto em prática sem ganhar formas de uma proposta curricular formal
estabelecida a priori?” e “Quais seriam as possibilidades e os limites de transformação da
realidade dos educandos, se os educadores-educandos assumissem os compromissos
propostos pela Educação Física crítico-freireana?”
149

Todas essas considerações contribuíram para que eu pudesse refletir sobre a minha
própria prática como professor de Educação Física e sobre a identidade docente que considero
assumir no exercício dessa docência. Para além disso, o percurso desta pesquisa me
possibilitou refletir sobre minha vocação ontológica de “ser mais” e, embora as contradições
sociais se tornem mais evidentes dentro de uma realidade neoliberal, capitalista e opressora,
minha inspiração se encontra na constatação de que esta mesma realidade é um constante
devenir e que a inconclusão da humanidade, mais que um limite, é uma gota de esperança
rumo à transformação do mundo.
150

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ANEXOS

ANEXO A - BNCC de Educação Física: Organização das unidades temáticas, objetos de


conhecimento e habilidades a serem desenvolvidas nos anos iniciais do ensino fundamental
(BRASIL, 2017, p. 226-229).
159

ANEXO B - BNCC de Educação Física: Organização das unidades temáticas, objetos de


conhecimento e habilidades a serem desenvolvidas nos anos iniciais do ensino fundamental
(BRASIL, 2017, p. 232-239).
160

Continuação do ANEXO B

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