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Tese Neila

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE CIÊNCIAS BÁSICAS DA SAÚDE


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS: QUÍMICA DA
VIDA E SAÚDE – IES Associadas (UFRGS – UFSM – FURG)

N E I L A S E LI AN E P E R E I R A W I T T

DAS VERDADES NA MÍDIA JORNALÍSTICA SOBRE O


ABORTO E A VIDA VINCULADAS À
CLANDESTINIDADE, VIOLÊNCIA SEXUAL,
DROGADIÇÃO, ANENCEFALIA E BIOTECNOLOGIAS:
O GOVERNO DO VIVER/MORRER

Porto Alegre
2012
Neila Seliane Pereira Witt

DAS VERDADES NA MÍDIA JORNALÍSTICA SOBRE O ABORTO E A VIDA


VINCULADAS À CLANDESTINIDADE, VIOLÊNCIA SEXUAL, DROGADIÇÃO,
ANENCEFALIA E BIOTECNOLOGIAS: O GOVERNO DO VIVER/MORRER

Tese de Doutorado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Educação
em Ciências: Química da Vida e Saúde do
Instituto de Ciências Básicas da Saúde da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
para a obtenção do título de Doutor em
Educação em Ciências.

Orientadora: Profa. Dra. Nádia Geisa Silveira


de Souza

Linha de Pesquisa: Educação Científica:


Implicações das Práticas Científicas na
Constituição dos Sujeitos.

Porto Alegre
2012
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
Reitor: Prof. Dr. Carlos Alexandre Netto
Vice-Reitor: Prof. Dr. Rui Vicente Oppermann

INSTITUTO DE CIÊNCIAS BÁSICAS DA SAÚDE


Diretora: Profª. Maria Cristina Faccioni Heuser
Vice-diretora: Profª. Gertrudes Corção

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIENCIAS: QUIMICA DA VIDA


E SAÚDE
Coordenador: Prof. Dr. Diogo Onofre Gomes de Souza - UFRGS

CIP - Catalogação na Publicação

Witt, Neila Seliane Pereira


DAS VERDADES NA MÍDIA JORNALÍSTICA SOBRE O ABORTO E A VIDA
VINCULADAS À CLANDESTINIDADE, VIOLÊNCIA SEXUAL, DROGADIÇÃO,
ANENCEFALIA E BIOTECNOLOGIAS: O GOVERNO DO VIVER/MORRER / Neila
Seliane Pereira Witt. -- 2012.
280 f.

Orientadora: Nádia Geisa Silveira de Souza.

Tese (Doutorado) -- Universidade Federal do Rio Grande do


Sul, Instituto de Ciências Básicas da Saúde, Programa de Pós-
Graduação em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde,
Porto Alegre, BR-RS, 2012.

1. Aborto. 2. Saúde. 3. Governamento. 4. Mídia jornalística.


5. Educação. I. Souza, Nádia Geisa Silveira de, orient. II.
Título.

Elaborada pelo Sistema de Geração Automática de Ficha Catalográfica da UFRGS com os


dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Departamento de Bioquímica
Av. Ramiro Barcelos, 2600 - anexo
Campus Saúde
Bairro Santa Cecília
Porto Alegre – RS
CEP 90035-000
Telefone: 3308 5538
3
Neila Seliane Pereira Witt

DAS VERDADES NA MÍDIA JORNALÍSTICA SOBRE O ABORTO E A VIDA


VINCULADAS À CLANDESTINIDADE, VIOLÊNCIA SEXUAL, DROGADIÇÃO,
ANENCEFALIA E BIOTECNOLOGIAS: O GOVERNO DO VIVER/MORRER

Tese de Doutorado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Educação
em Ciências: Química da Vida e Saúde do
Instituto de Ciências Básicas da Saúde da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
para a obtenção do título de Doutor em
Educação em Ciências.

Profa. Dra. Nádia Geisa Silveira de Souza – UFRGS – Orientadora

Banca examinadora:

Prof. Dr. Luís Henrique Sacchi dos Santos – UFRGS – Relator.

Profa. Dra Maria Lúcia Castagna Wortmann – UFRGS.

Profa. Dra Maria Simone Vione Schwengber – UNIJUÍ.

Prof. Dr. Luis David Castiel – FIOCRUZ.

Profa. Dra Paula Regina Costa Ribeiro – FURG.


4
Dedico

A meus pais pela coragem de enfrentar os desafios da vida e pelo


exercício incansável de práticas de acolhimento, zelo, carinho e perdão.

5
AGRADECIMENTOS
Devo a escrita desta tese a muitas pessoas com quem mantenho
relações singulares, especiais e indispensáveis. Mesmo que essas pessoas já
tenham lido as mais sinceras e particulares palavras no “silêncio” de um
olhar ou gesto meus, acredito que repetir algumas delas neste momento e
espaço possibilite algo diferente. Assim, arrisquei a escolha de algumas
poucas palavras na esperança de que elas, de uma forma ou de outra, deem
conta de me fazer entender... Agradeço:

Aos meus amados – pai, mãe, irmãs e sobrinhos –, de participação


fundamental em todos os momentos. Especialmente ao Fábio, meu marido,
agradeço pelo carinho, amparo, presença e incentivo que sempre me doou.
Vocês justificam meu viver.

À Profa. Dra. Nádia G. S. Souza, uma intelectual de marcante atuação


na minha vida. Agradeço pelas instigantes reflexões, pela liberdade de
criação e pelas tantas oportunidades que apontou desde minha iniciação
científica. Espero um dia fazer por alguém tanto quanto ela fez por mim.

Aos colegas, professores e amigos do PPGEDU e PPGQVS, pela


amizade e saberes compartilhados que muito contribuíram em meus
aprendizados.

Aos professores que participaram da Banca Examinadora – Luís


Henrique Sacchi dos Santos, Maria Lúcia Castagna Wortmann, Maria
Simone Vione Schwengber, Paula Regina Costa Ribeiro, e Luis David Castiel
–, agradeço por aceitarem o convite e se fazerem presentes na qualificação
desta pesquisa, pelo carinho e pelos preciosos comentários e sugestões que
foram fundamentais para orientar este estudo e escrita.

À Lene Belon Ribeiro, que acompanhou a pesquisa e me ajudou com a


revisão da escrita.

Às pessoas que acreditam no ensino de qualidade e gratuito de escolas


e de universidades públicas e que trabalham por isso – sem elas, eu não
teria chegado aqui.

6
À CAPES, pela viabilização financeira da pesquisa, indispensável para
a realização deste estudo e experiência.

A você, pelo interesse por esta leitura. Que ela lhe possibilite outras
leituras de mundo e o instigue a pensar sobre o que acontece e nos
acontece.

A Deus, por ter sido luz nas circunstâncias difíceis.

7
E se a Realidade não é a Realidade, mas a Questão;

Se a Verdade não é a Verdade, mas o Problema;

Se Perdemos já o Sentido da Realidade e

Se Desconfiamos da Verdade,

Teremos, Talvez, que Aprender

A Viver de Outro Modo,

A Pensar de Outro Modo,

A Falar de Outro Modo,

A Ensinar de Outro Modo.

Jorge Larrosa, 2003a, p.165- Pedagogia Profana

8
RESUMO

Numa sociedade voltada ao fazer viver, em que se busca a longevidade e a


saúde, a crescente prevenção de riscos à saúde e ao viver coloca em ação
estratégias de governo para “vitalidade”. Tais estratégias propõem-se a
estimular e intensificar a “vontade” de saúde/vida/felicidade; a observação,
o acompanhamento, a medicalização e o controle do corpo/saúde da mulher
grávida; a promoção da saúde e da vida/morte dos não-nascidos; e o uso das
tecnologias biomédicas, por exemplo. Essas questões, articuladas à temática
do aborto, moveram-me a investigar as “verdades” direcionadas ao “governo"
dos corpos e da vida da mulher grávida e de seu “filho”. Considerar as
maneiras pelas quais a subjetividade vem se tornando objeto de certas
estratégias e procedimentos de governo e também o lugar de destaque da
mídia enquanto instância que integra os processos constitutivos de nossas
subjetividades ao veicular “verdades” torna relevante a análise das
reportagens que tratam sobre o aborto. Tomei como corpus de análise as
reportagens dos jornais Zero Hora (ZH), de Porto Alegre/RS, e Folha de São
Paulo, de São Paulo/SP, publicadas ao longo dos anos de 2007, 2008, 2009,
2010, 2011 e 2012. A partir das vertentes pós-estruturalistas dos Estudos
Culturais, da noção de governamento para Michel Foucault e de vitalidade
para Nikolas Rose, busquei conhecer as estratégias biopolíticas voltadas ao
governo das condutas e investigar como elas operavam, a fim de
compreender e dar visibilidade aos diversos níveis de atuação do biopoder.
Para isso, problematizei: algumas transformações que vêm ocorrendo nas
formas como se lida e fala de práticas ligadas ao aborto e à vida/morte; as
implicações dessas noções no governo dos corpos para a vitalidade e na
produção e determinação de “verdades” que constituem as subjetividades e
éticas em relação ao aborto e ao viver/morrer; por fim, a possibilidade de
relacionar essas formas de governo à eugenia. As análises levaram-me a
pensar, entre outras coisas, que, nessa relação de governo entrecruzada por
discursos de mercado, consumo, prevenção de riscos e promoção de
vida/saúde, se ajustam e afirmam as construções, limitações e

9
transformações de sujeito, julgamentos morais, estigmas e desigualdades
sociais. Além disso, tratar do aborto significa lidar com uma “arena de
significações” na qual estão em luta diversas instâncias – religiosas,
políticas, médicas, legislativas, morais, mercadológicas e midiáticas.

Palavras-chave: aborto; saúde; governamento; mídia impressa; educação.

10
ABSTRACT

In a society concerned with making live, which seeks for longevity and
health, the growing prevention of risks to health and living triggers
government strategies for ‘vitality’. Such strategies aim at stimulating and
intensifying, for instance, a ‘desire’ for health/life/happiness; the
observation, follow-up, medicalization and control of pregnant women’s
body/health; the promotion of health and life/death of the unborn; and the
use of biomedical technologies. Such issues, articulated with abortion, have
caused me to investigate the ‘truths’ directed to the ‘government’ of pregnant
women’s body and life as well as their ‘children’s’. The analysis of reports
dealing with abortion are important if we consider the ways through which
subjectivity has become an object of certain government strategies and
procedures, besides having a remarkable place in the media, which
integrates processes that constitute our subjectivities by spreading ‘truths’.
The corpus of analysis of this study consists of reports taken from two
newspapers: Zero Hora, from Porto Alegre/RS, and Folha de São Paulo, from
São Paulo/SP. The reports analyzed were published in the years of 2007,
2008, 2009, 2010, 2011 and 2012. From post-structuralist lines of the
Cultural Studies, Michel Foucault’s notion of government, and Nikolas
Rose’s conception of vitality, I have both attempted to know the bio-political
strategies intended to govern conducts, and investigated how they operated,
in order to understand and bring visibility to the several levels of the bio-
power action. I have problematized some changes that have occurred in the
ways one deals with and talk about practices associated with abortion and
life/death; the implications of such notions for both the government of
bodies seeking for vitality and the production and determination of ‘truths’
that constitute subjectivities and ethics related to abortion and living/dying;
finally, the possibility of relating such forms of government to eugenics.
Among other things, the analyses have enabled me to think that subject
constructions, limitations and transformations, moral judgments, stigmas
and social inequalities have been adjusted and affirmed in this government

11
relationship, intertwined with discourses of market, consumption, risk
prevention and life/health promotion. Besides, addressing abortion means
dealing with an ‘arena of significations’ in which several spaces are
competing – religion, politics, medicine, law, moral, market and media.

Keywords: abortion; health; government; print media; education.

12
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Imagens da capa do primeiro capítulo .................................................................. 17


Cartografia. Disponível em: < http://www.fernandoquadro.com.br/html/wpcon-
tent/uploads/2007/09/image002.jpg > Acesso em: 01 jan. 2010.

Silêncio. Disponível em: < http://2.bp.blogspot.com/_fCG13oMcpH8/SUAIk-


yWEntI/AAAAAAAAAxU/cBWVQPJ7LnU/s400/silencio.jpg > Acesso em: 01
jan. 2010.

Figura 2 - Imagem da capa do segundo capítulo.................................................................... 47


Tecnologias reprodutivas. Disponível em: < http://www.notapositiva.com/tra-
b_estudantes/trab_estudantes/biologia/biologia_trabalhos/infertilidadehumanab.h
tm > Acesso em: 01 jan. 2010.

Figura 3 – Imagem da capa do terceiro capítulo..................................................................... 76


Corpos pintados (grávida). Disponíveis em: < http://2.bp.blogspot.com/_6G2SX-
3BhQd4/RmiLvzWknEI/AAAAAAAAACM/THf6XGjy8e4/s400/corpos%2Bgr
%C3%A1vida.jpg >. Acesso em: 01 jan. 2010.

Figura 4 – Imagem da capa do quarto capítulo....................................................................... 96


Grávida no Espelho de Marília Chartune Teixeira. Disponível em: < http://mch-
artune.blogspot.com.br/2008/09/grvida-no-espelho.html#!/2008/09/gr-vida-no-
espelho.html >. Acesso em: 01 jan. 2010.

Figura 5 – Imagem da capa do quinto capítulo..................................................................... 143


Código genético (DNA). Disponíveis em: < http://elproyectomatriz.wordpress.-
com/2008/12/03/transgenicos-que-matan-de-hambre/>. Acesso em: 01 jan. 2010.

Tecnologias. Disponíveis em: < http://www.esmas.com/salud/home/avances/33-


4483.html> Acesso em: 01 jan. 2010.

13
Figura 6 – Imagem da capa do sexto capítulo....................................................................... 248
Embriões de Leonardo da Vinci (1452-1519). Disponíveis em: < http://genteart-
e.com/obras/Leonardo-da-Vinci/leonardo%20da%20vinci%20codice%20leonar-
desco%20studio%20sul%20feto%20in.jpg/ >. Acesso em: 01 jul. 2011.

14
SUMÁRIO

1. DAS ESCOLHAS: ITINERÁRIOS E PROPOSTAS


1.1. Apresentação: panoramas e perspectivas de um ensaio ............................... 17
1.2. Sobre a organização estrutural da Pesquisa .................................................... 22
1.3. Das cartografias: multiplicando caminhos ...................................................... 24
1.4. Fragmentos do pensar: condições de emergência da pesquisa ...................... 34

2. ESTRATÉGIAS DE GOVERNAMENTALIDADE E O PODER SOBRE O VIVER/MORRER... ONDE


NOS LEVA O EXERCÍCIO DAS “VERDADES”?

2.1. Do forasteiro desengajado: itinerários ............................................................. 47


2.2. Sobre as estratégias metodológicas e os objetos de análise .......................... 56
2.3. Das ressignificações do poder pastoral: o governo dos indivíduos ............ 65
2.4. Vida como objeto e finalidade para a potencialização e manutenção dos
governos ............................................................................................................. 70
2.5. Formas de gerenciamento do capital humano: disciplinamento e as
“verdades” sobre o corpo, a vida/morte e os “desvios” ............................. 73

3. BREVE HISTÓRIA DO ABORTO: DEIXAR VIVER OU FAZER MORRER?


3.1. Da busca pelo controle da vida reprodutiva: contracepção e aborto como
problemas políticos ........................................................................................... 77
3.2. Profilaxia social ou prevenção moral do aborto terapêutico: crime contra a
vida do feto, futuro cidadão ............................................................................ 89

4. EM BUSCA DA CONQUISTA DO CORPO A VIOLÊNCIA SEXUAL, A CLANDESTINIDADE DO


ABORTO, A CONDIÇÃO SOCIOECONÔMICA E A DROGADIÇÃO APONTAM DECISÕES
SOBRE O VIVER/MORRER?

4.1. Ciência, servidão e sujeição: o governo de uns sobre os outros .................. 97

4.2. No plano da invisibilidade: mortos simbólicos ........................................... 111

4.3. O silêncio, o corpo “habitado”, as vidas clandestinas ................................ 127

15
5. TECNOLOGIAS REPRODUTIVAS E ANENCEFALIA: POSSIBILIDADES DE VIDA/MORTE
5.1. Da noção de vitalidade às “verdades” sobre a maternidade e as utilidades do
viver/morrer. .................................................................................................... 144

5.1.1. Estratégias biopolíticas de gerenciamento dos riscos para a vitalidade ou


nova eugenia – aborto eugênico? ........................................................ 171

5.2. Anencefalia: paradigmas da existência e seus riscos ................................. 184

5.2.1. Da vida do anencéfalo: valores para a “reciclagem” de “materiais”


biológicos? .............................................................................................. 192

5.2.2. Julgamentos e inquisições públicas: corpo e vida/morte sob as vozes do


saber/poder ............................................................................................ 206

5.3. Da promoção da vitalidade e gerenciamento do capital humano: definições e


percepções de saúde, vida, morte e aborto ................................................... 214

5.3.1. Das minhas hesitações e ensaios: quais as relações entre o governo


contemporâneo dos corpos e da vida e as noções eugênicas? .......... 231

6. FINALIZANDO O PERCURSO PELAS “VERDADES” DO VIVER/MORRER: AONDE LEVAM OS


(DES) CAMINHOS DO FORASTEIRO? ...................................................................... 250

REFERÊNCIAS

1. Referências bibliográficas .................................................................................. 263


2. Referências de sites de organizações ................................................................ 276
3. Referências de vídeos sobre o aborto no Brasil .............................................. 278

APÊNDICE ......................................................................................................................... 279

ANEXOS - CD

1. Reportagens ............................................................................................................ 1
2. Matérias sobre votos no STF e Resolução do CFM ........................................ 116

16
CAPÍTULO 1

DAS ESCOLHAS: ITINERÁRIOS E


PROPOSTAS1

A E SC R I T A D E SD O BR A - S E C O M O UM J O GO QU E V AI I N F A LI VE LM E N TE P AR A
A LÉ M D A S S U A S R E G R A S (FOUCAULT, 2002 C , P .35).

EI S O Q U E E U E S C U T O , A C AD A V EZ Q UE S E P E R G UN T A : “D E Q U E TE OR I A VO CÊ
S E UTI LI Z A ? O Q UE O A BR I G A ? O Q U E O J U S TI F I C A ?”

O UÇ O Q UE S T ÕE S P O L I C I A I S E AM E AÇ A D OR A S :
“A O S O LH O S D E QU EM V OC Ê
S ER Á I N OC EN TE M E S M O Q U E D EV A S ER C ON D EN A DO ?” O U : ” DE V E H AV ER UM
GR UP O D E P E S SO A S , UM A S OCI ED A D E , UM A F OR M A D E P EN S AM E N TO Q U E O
A B SO LV ER Ã O , E DO S QU AI S V OC Ê P OD ER Á OB T ER S U A SO L T UR A .

E, SE E S S E S O A B S OL V EM , É P O R Q U E N Ó S DE V EM O S CON D EN Á - LO !" (POL-


DROIT, 2006, P .83).

1A imagem do silêncio perante o mundo foi escolhida em razão da leitura do texto Imagens do estudar
de Jorge Larrosa. No qual o autor fala das tensões e do voltar para si mesmo como gesto que convém
ao estudante, do “silêncio como o som peculiar do estudo” e do estudo como “aquilo que o coloca em
perigo” em relação às “verdades” do mundo (LARROSA, 2003a, p.200-201).
17
CAPÍTULO 1

DAS ESCOLHAS: ITINERÁRIOS E PROPOSTAS

Neste capítulo, apresento a organização da pesquisa, alguns apontamentos


sobre a emergência do tema e as motivações que despertaram meu interesse pela
temática do morrer/viver e do governo dos corpos e pelo desenvolvimento de um
estudo com base na mídia impressa. Trago, ainda, algumas das ferramentas teórico-
metodológicas de que tentei aproximar-me nas análises.

1.1 Apresentação: panoramas e perspectivas de um ensaio

Práticas, debates e questões relacionadas à interdição ou interrupção


da vida que têm sido veiculadas e apresentadas em nossa sociedade,
especialmente através da mídia, levaram-me à realização deste estudo.
Numa sociedade voltada ao fazer viver, onde determinadas mortes não
têm sido consideradas problemáticas ou representam uma “limpeza”,
interrogo como a rede de discursos relacionados à vida, à morte e ao aborto
(dos nascidos e dos ainda não-nascidos) aparece na mídia impressa. A
proposta foi fazer um estudo dos discursos implicados na subjetivação dos
indivíduos que os movem em suas práticas cotidianas. Analisei edições dos
jornais Zero Hora (ZH), de Porto Alegre/RS, e Folha de São Paulo, de São
Paulo, publicadas ao longo dos anos de 2007, 2008 e 2009, ampliando-se
posteriormente a qualificação da tese, até o ano de 2012 visto que a mídia
trouxe importantes acontecimentos e discussões nos anos seguintes. Esse
recorte foi estabelecido levando em consideração a frequência das
reportagens que tratavam de casos e circunstâncias relacionadas ao aborto
na atualidade.
Dialoguei com leituras do campo dos Estudos Culturais, nas suas
versões pós-estruturalistas, dos Estudos da Ciência e dos estudos de Michel
Foucault, na perspectiva da governamentalidade. Desses estudos, lancei

18
mão do entendimento de estratégia proposto por Foucault. Para o autor,
estratégia designa:

[...] a escolha dos meios empregados para se chegar a um fim;


trata-se da racionalidade empregada para atingirmos um
objetivo [...]; a maneira pela qual tentamos ter uma vantagem
sobre o outro. [Enfim, designa o] conjunto dos procedimentos
utilizados num confronto para privar o adversário dos seus
meios de combate e reduzi-lo a renunciar à luta; trata-se,
então, dos meios destinados a obter a vitória (1995a, p.247).

Nessa perspectiva, estratégias são os mecanismos utilizados nas


relações de poder. Porém, o ponto mais importante das relações de poder é
sua relação com as estratégias de confronto (FOUCAULT, 1995a). Trouxe
esses apontamentos porque foi a partir dessa noção de estratégia que
busquei olhar para as “verdades” divulgadas na mídia. Hoje, a mídia tem
ocupado destacado lugar na veiculação e produção de determinados
significados e “verdades” que operam como estratégias de regulação do corpo
e da vida. Os discursos por ela difundidos, que nos interpelam e nos
instrumentalizam cotidianamente, ao serem incorporados, conformam
modos de pensar e agir em relação ao corpo, à vida e aos demais. A
instituição dessas normas como “ideais” de conduta ou forma “adequada” de
promover um corpo – saudável, belo, produtivo e longevo – passa a interferir
nas possíveis escolhas dos sujeitos e nos modos de viver. Tais práticas vão
do estímulo à constituição da “boa saúde” até a instauração de um
constante “sentimento” ou compreensão de encontrar-se sempre na condição
de pré-doente (CASTIEL, 2007, PIRES, 2011). Nessa perspectiva, a
articulação de estratégias direcionadas à “autonomia” do sujeito e ao poder
sobre a vida tem atuado na mudança de hábitos, no disciplinamento dos
corpos e na regulação das vidas na direção do gerenciamento dos corpos
pelo autogoverno.
A partir das discussões e dos relatos presentes nas reportagens,
percebo a ocorrência de movimentos voltados a debater e a repensar as
formas como se tem exercido o poder sobre a vida dos indivíduos, como, por
exemplo, as mobilizações da sociedade em manifestações públicas de apoio
ou protesto às decisões sobre a vida/morte daqueles que ainda não

19
nasceram ou de indivíduos que atuam na fronteira da
normalidade/anormalidade e da legalidade/ilegalidade na condução do viver.
Compreendendo que os avanços da biotecnologia, da tecnociência e da
ampliação do poder de intervenção médica no “curso” da vida/morte têm
atuado, em sua maioria, como estratégias para promover e manter a vida, é
oportuno pensar também sobre suas atuações e estratégias para interrompê-
la. Faz-se necessário o questionamento sobre as condições do viver/morrer e
sobre as “verdades” que são assumidas como legítimas na atualidade. Neste
estudo, faço uso da noção de verdade conforme Foucault. Em sua definição,
o autor diz:

Por verdade não quero dizer ‘o conjunto das coisas verdadeiras


a descobrir ou a fazer aceitar’, mas o ‘conjunto das regras
segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se
atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder’; entendendo-
se também que não se trata de um combate ‘em favor’ da
verdade, mas em torno do estatuto da verdade e do papel
econômico-político que ela desempenha.
É preciso pensar os problemas políticos dos intelectuais em
termos de ‘verdade/poder’ para “saber se é possível constituir
uma nova política de verdade”, pois o problema é mudar o
regime político, econômico, institucional de produção de
verdade. A questão política é a própria verdade (FOUCAULT,
2002b, p.13-14).

Dessa noção de verdade, na pesquisa que realizei durante o mestrado,


percebi o caráter e a força política de discussões e manifestações
mobilizando desde representantes de organizações não-governamentais e
governamentais até a religião, a ciência e a medicina em divergentes
argumentações relacionadas aos limites do saber/poder2 sobre o corpo e a
vida/morte. Percebi, ainda, que esses embates podem contribuir para o
entendimento de como a rede discursiva se articula, configurando a
autorização e legitimação ou não da morte, mesmo que simbólica, de
determinados sujeitos na sociedade. Eles colocam sob suspeita os alicerces
em que as “verdades” se amparam para a regulamentação, controle,
normalização e governo do corpo e do viver/morrer.

2 Entendo, a partir de Foucault, que saber e poder estão diretamente implicados; o poder produz
saber, e “não há relações de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que
não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” (FOUCAULT, 2004, p.27).
20
Considerando essas questões, esta pesquisa visa a criar condições
para pensarmos e problematizarmos determinadas práticas diante da
possibilidade de “liberdade” de decisão e ação das pessoas em relação à
“autonomia” e ao gerenciamento de seu corpo e vida. Associado ao modo
como lidamos com a vida/morte, o principal propósito do estudo é examinar
como se tem lidado com situações relacionadas ao aborto. Além disso, esta
investigação propõe-se a chamar atenção para a posição que os discursos –
jurídico, religioso, biológico e médico-científico – adquirem no governo da
vida/morte, nas regulamentações relativas à prática do abortamento e na
possibilidade de deixar viver ou fazer morrer, bem como para a pertinência
da integração dessas discussões às diversas modalidades de ensino.

21
1.2 Sobre a organização estrutural da Pesquisa

Antes de trazer as primeiras discussões, é importante mostrar o mapa


da disposição e da composição dos capítulos que integram esta pesquisa. No
segundo capítulo, trago as ferramentas teórico-metodológicas, o material de
análise, indicações de alguns caminhos que pretendi seguir para o
desenvolvimento das análises e, a partir de proposições de Michel Foucault,
questões relativas ao governamento do corpo e da vida, com base na
ressignificação do poder pastoral e nas práticas do biopoder como
estratégias de governamentalidade.

No terceiro capítulo, trago brevemente a história do aborto, na


tentativa de mostrar algumas das modificações ocorridas nas experiências
com tal prática ao longo do tempo. A partir daí, busco discutir o governo dos
corpos femininos com fins econômicos da sociedade e mostrar que esta,
tomando a vida como um objeto de saber/poder, define o papel social e
político da reprodução. Abordo essas questões para retomar ou tornar mais
nítidos alguns dos argumentos/discursos normalizadores que têm conduzido
o viver e as estratégias que eles podem desencadear. Finalizo a discussão
deste capítulo apontando situações do abortamento relacionadas ao
panorama atual, em que a legalidade e a ilegalidade do aborto se
confrontam. Tais movimentos serão mais bem explorados ao longo dos
próximos capítulos.

No quarto capítulo, apresento mais detidamente o panorama atual em


que se desenham e inserem as situações de abortamento legal e ilegal
relacionadas com clandestinidade, condição social, violência causada pelo
estupro e consumo de drogas. Trago essas questões para mostrar a rede em
que se insere a problemática do aborto hoje e para destacar a possibilidade
de morte no sistema de biopoder como parte de estratégias (bio)políticas que
se valem dos discursos de valorização ou desvalorização da vida de alguns
indivíduos em relação aos modos de vida de outros – tidos como referenciais
ou padrões das normas para definir os investimentos, ou a falta deles, no
viver/morrer. Finalizo a discussão deste capítulo apontando as

22
possibilidades de intervenções institucionais relativas às formas de olhar e
lidar com o que se considera normal/anormal.

O estudo se encerra com o capítulo cinco, nele dou continuidade à


intenção de conhecer como se desenha e insere a problemática do aborto e
de destacar a possibilidade de morte como parte das estratégias (bio)políticas
para a vitalidade, as quais se valem dos discursos de
valorização/desvalorização do viver. Parto das possibilidades de intervenção
biomédica, das determinações biológicas e de promoção e produção da
vida/morte na contemporaneidade para compreender e tensionar as
estratégias e as conformações dos governos do viver que definem: a
constituição biológica do novo indivíduo; o viver ou morrer do anencéfalo e
as utilidades da vitalidade contida nos corpos – órgãos, tecidos, células. Por
fim, busco problematizar as formas de olhar, tratar e justificar a valorização
e desvalorização do viver/morrer.

23
1.3 Das cartografias: multiplicando caminhos

Falar da emergência de uma pesquisa não é algo simples. Fiquei muito


tempo pensando quais seriam as experiências pertinentes para mencionar,
relacionando-as aos caminhos que levaram à constituição desta tese. Decidi
iniciar trazendo as que me despertaram a busca por conhecer os diversos
modos de aprendizagens, ou seja, os discursos e as práticas que integram o
cotidiano e a constituição de nosso corpo e vida. Afinal, a partir da história
das relações sociais que desde o nascimento estabelecemos com as pessoas,
os objetos e a rede de práticas vivenciadas cotidianamente nos diversos
espaços, são produzidos os conhecimentos que compõem nossas histórias,
os processos do viver, as motivações/subjetivações e os caminhos.

Penso que direcionei meu andar pela pesquisa em educação a partir


do momento em que passei a cursar as disciplinas de Prática de Ensino do
Curso de Licenciatura, atuando como professora/estagiária. Em aula, no
lugar de professora, percebi o poder que esse posicionamento pode exercer
na capacidade de intervir e fazer funcionar as estratégias disciplinares.
Percebi, ainda, a importância de integrar conhecimentos e práticas que
possibilitem relações com experiências de vida, as quais incluem as
circunstâncias socioculturais. Nessa perspectiva, as relações estabelecidas
na rede de práticas atuam de modo a promover as aprendizagens de cada
um, de forma a nos subjetivar. Isso implica pensar que cada indivíduo
passou/passa por diversas experiências – que produzem planos,
expectativas e histórias de vida singulares – e que cada um desempenha
papéis e ocupa posições ao estabelecer sua forma de relação com as
“verdades”.

Foi a partir dessas noções de constituição de conhecimentos que, no


transcorrer das minhas atividades como aluna, busquei conhecer e entender
como se dão os processos de aprendizagem e de inscrição no corpo – o corpo
como “superfície de inscrição dos acontecimentos” (FOUCAULT, 2002b,
p.22).

24
Ao tomar conhecimento da existência de um grupo que estudava
Educação em Ciências no Departamento de Bioquímica, entrei em contato
com professores que, além de explicar o que e como trabalhavam, me
ajudaram a pensar um projeto que relacionava a escola ao ensino de Biologia
a partir do questionamento: como acontecem as aprendizagens sobre a
alimentação no espaço escolar?

Na escola, o alimento pode ser obtido na merenda gratuita oferecida


pela escola pública, pode ser comprado no bar e/ou pode ser trazido de
casa. Durante a merenda, o lugar onde se adquire o alimento posiciona
diferentemente os indivíduos. Nesse momento, as práticas fazem aparecer
marcas que nos falam dos sujeitos, seus gostos, poder aquisitivo e relações,
o que os classifica como consumidores ou não, por exemplo. A partir dessas
noções, passei a entender que, “ao se alimentar, o homem cria práticas e
atribui significados àquilo que está incorporando a si mesmo, o que vai além
da utilização dos alimentos pelo organismo” como um combustível a ser
liberado como energia para sustentar o corpo (MACIEL, 2001, p.145;
CAMARGO, 2008). O homem nutre-se também de imaginário, partilhando
“verdades” e ideias coletivas que ensinam paladares, sentimentos de
prazer/desprazer, comportamentos e preocupações ou não com
determinados alimentos (CERTEAU, 1997; FISCHLER, 1995, 1998; SOUZA,
2001).

Então, sob orientação do professor Diogo Onofre e da professora Nádia


Souza, elaborei a pesquisa que compôs o trabalho de conclusão do
Bacharelado em Ciências Biológicas3, intitulada Como as escolas inscrevem
os hábitos alimentares?. Nela procurei conhecer como as práticas escolares
integram o processo de inscrição dos hábitos alimentares das crianças das
Séries Iniciais do Ensino Fundamental e, ainda, o papel da merenda escolar.
Realizei esse estudo utilizando algumas ferramentas metodológicas de cunho
etnográfico (CALDEIRA, 1988; GEERTZ, 1989), como observações dos
espaços escolares – bares, refeitórios, sala de aula, saguão – em quatro

3Projeto vinculado à Linha de Pesquisa Estudos em Educação em Ciências do Curso de Pós-


Graduação em Ciências Biológicas: Bioquímica do Instituto de Ciências Básicas da Saúde - UFRGS.
25
escolas da rede Estadual de Porto Alegre. Também realizei entrevistas e
conversas com professoras, alunos, merendeiras e atendentes dos bares,
dentre outras pessoas.

Busquei saber se o tema era discutido em sala de aula, olhando


especialmente para a maneira como os livros didáticos abordavam a questão
da alimentação e dos hábitos alimentares (WITT, 2004; ARNT, 2005). As
análises que procurei desenvolver não foram no sentido de dizer se os
“conteúdos” estavam certos ou errados, mas de problematizá-los como uma
instância de produção de saber implicada em relações de poder. Essas
relações de saber/poder podem ser percebidas, por exemplo, quando os
livros, através dos discursos por eles veiculados, não apenas fornecem
prescrições às professoras para suas programações e conteúdos de aula,
como também “estipulam o papel do corpo docente, suas tarefas, estímulos
que devem fornecer aos estudantes, a maneira de avaliar, as atividades de
reforço, etc.” (SANTOMÉ, 1998, p.181).

Finalizado esse percurso pelos saberes e pelos sabores, iniciei o Curso


de Mestrado na primeira turma do recém-formado Programa de Pós-
Graduação em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde, na UFRGS.
Nesse curso, ingressei na linha de pesquisa Estudos das Ciências e do Corpo
na perspectiva do campo dos Estudos Culturais4, sob a orientação da
professora Nádia Geisa Silveira de Souza.

Dessa vez, a pesquisa tomou outros caminhos. Busquei estudar a vida


e a constituição dos corpos a partir de questionamentos sobre como lidamos
com os processos do viver/morrer. A dissertação intitulou-se Eutanásia, vida
e morte: problematizando enunciados presentes em jornais e revistas e foi
concluída no ano de 2007. Bem, mas o que me fez mudar o tema? Essa é
uma questão inevitável, e a resposta é difícil de determinar. Talvez pudesse

4A Linha de Pesquisa propõe-se a discutir a Ciência como um campo produzido na inter-relação de


múltiplas práticas sociais e o Corpo como inscrição processada nas experiências cotidianas, partindo
de estudos desenvolvidos no campo dos Estudos Culturais, nas suas versões pós-estruturalistas, e por
Michel Foucault. No âmbito dos Estudos Culturais, as pedagogias culturais são constituídas por
ensinamentos de práticas culturais e institucionais vinculadas não somente à escola e à universidade,
mas também a espaços educativos que compreendem a mídia impressa, a televisão, a publicidade, os
rótulos de alimentos, os livros, os filmes e os museus, por exemplo.
26
falar das diversas questões que me levaram a problematizar enunciados
presentes na mídia impressa que trouxessem a eutanásia, a vida e a morte
como temática. Entre elas, acho importante dizer que entendo que, mais do
que disponibilizar enunciados de várias formações discursivas, “a mídia
constrói, reforça e multiplica enunciados propriamente seus, em sintonia ou
não com outros discursos e outras instâncias de poder” (FISCHER, 1997,
p.65). Funciona, assim, como um importante espaço que veicula “verdades”
que atuam como estratégias de regulação na sociedade contemporânea.

Quando iniciei o Curso de Mestrado, no ano de 2005, estavam em


cartaz, no cinema, filmes que traziam a discussão sobre a morte e a
eutanásia, entre eles: Mar Adentro, Invasões Bárbaras e Menina de Ouro.
Outra discussão trazida pela mídia, com repercussão internacional, era a
situação da paciente Terri Schiavo. Ela morreu em 31 de março de 2005, nos
Estados Unidos, após o tubo de alimentação ser retirado por decisão
judicial. Nesse período, reportagens locais traziam a fala e os
posicionamentos de médicos gaúchos sobre a eutanásia.

A intensa discussão veiculada na mídia sobre formas de viver e


morrer, bem como sobre a legitimação e legalização de práticas médicas (por
propostas de resoluções), foi-me capturando, tornando visível a necessidade
de um espaço para discutir esses temas, examinando-se os modos como
lidamos com o viver/morrer na atualidade. Afinal, vivemos numa sociedade
regida pela vida, juventude e saúde, procurando escamotear a morte e
imaginar que vivemos com vistas à infinitude. Em relação a essa questão,
procurei, ao longo da dissertação, discutir as práticas e os modos de viver
hoje relacionados às dificuldades de nos vermos como mortais e falarmos
sobre assuntos ligados à morte. Também me propus a discutir a busca do
ultrapassamento da organicidade do corpo, o prolongamento da vida, o uso
de tecnologias biomédicas voltadas à imortalidade e suas relações com o
autocuidado.

Com a pesquisa de mestrado, não pretendi dizer “verdades”, nem


oferecer respostas definitivas sobre as questões que discuti, uma vez que
entendo a “verdade” como uma invenção humana, efeito das circunstâncias
27
a partir das quais olhamos e pensamos o mundo (FOUCAULT, 2002b). Dessa
perspectiva, aquilo que dizemos existir no mundo não passa de invenções
produzidas na rede sociocultural em que nos relacionamos e nos
constituímos cotidianamente.

Ao entender a realidade como invenção, interessei-me por investigar a


produção de “verdades” relacionadas às práticas médicas direcionadas à
manutenção da vida e ao prolongamento do processo de morte “através de
enunciados” (VEIGA-NETO, 1996, p.29). Assim, procurei colocar em
evidência as “verdades” veiculadas em reportagens da mídia impressa que
integram os processos constitutivos das nossas subjetividades. Percebendo
tais produções em funcionamento, não as questionei em tom de denúncia,
mas tentei pensá-las de outras maneiras – talvez abrindo “brechas” para
aquilo que é apresentado como fechado ou fixo. Nesse sentido, Foucault vai
nos dizer que:

O papel do intelectual é o de lutar contra as formas de poder


exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o
instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da
“consciência”, do discurso. É por isso que a teoria é uma
prática. É como uma caixa de ferramentas. É como óculos
dirigidos para fora [para ver o mundo] e se eles não lhes
servem, consigam outros, encontrem vocês mesmos seu
instrumento, que é forçosamente um instrumento de combate.
A teoria não totaliza; a teoria se multiplica e multiplica
(FOUCAULT, 2002b, p.71).

Conforme a citação, a teoria é uma prática que serve de instrumento


de combate, de ferramenta que multiplica e se multiplica. Nessa direção,
entendo que esta tese seja, de certa forma, uma multiplicação da
investigação iniciada na pesquisa de mestrado. Nesta, pesquisando questões
relativas à eutanásia e à vida/morte em reportagens da mídia impressa,
busquei conhecer e colocar em questão determinados enunciados, suas
“verdades” e “neutralidade”. A intenção foi conhecer como se vinha pensando
a morte e a eutanásia e problematizar como os discursos médicos, jurídicos
e religiosos se articulavam, regendo a vida das pessoas em situação de morte
iminente.

28
Enfim, nesse processo, foram constituídos vários questionamentos e
entendimentos, dentre eles, destaco o que mais me instigou a continuar a
pesquisar o tema: questões relativas ao viver/morrer. Trata-se, aí, de
compreender que vivemos numa sociedade que busca promover a vida, que
elimina a possibilidade de perceber a morte como um evento que faz parte da
vida; nessa perspectiva, evita-se, inclusive, falar sobre esse processo ou
sobre temas que remetam à finitude. Além disso, essa negação do morrer dá-
se também pela ausência de discussões no ensino – seja de ciências, de
biologia, de medicina ou de outros (AZEREDO, 2007).

Ao falar sobre o sujeito, Foucault diz que a palavra sujeito tem dois
significados: “sujeito a algum outro através de controle e de dependência, e
atado à sua própria identidade através de uma consciência ou
autoconhecimento” (FOUCAULT, 1995a, p.235; RABINOW, 2002, p.45).
“Ambos os sentidos sugerem uma forma de poder que subjuga e que faz
alguém sujeito a” (idem, ibidem). Trouxe essa noção de sujeito porque parto
dela para falar sobre algumas práticas soberanas relativas à possibilidade de
“autonomia”. Dessa noção, outra questão relaciona-se às práticas soberanas
e às decisões sobre os cuidados do corpo e sobre o morrer, em que a forte
oposição à eutanásia, em relação à “autonomia” dos sujeitos de decidirem
sobre sua vida e morte, poderia gerar, por exemplo, deslocamentos do poder
de decisão sobre tais eventos – da religião, da autoridade divina (Deus, o
Soberano), do Estado, dos representantes da justiça, da segurança, da saúde
e do Governo (outros Soberanos). Há, ainda, que se considerar a crença no
poder da tecnociência como soberana para prolongar a vida e alterar as
condições orgânicas do corpo.

A respeito do prolongamento da “vida” dos sujeitos hospitalizados que


já não têm perspectiva de cura ou melhora, considero importante apontar
algumas das propostas do novo Código de Ética Médica, em vigor desde 13
de abril de 2010 (CONSELHO, 2010). Mesmo não trazendo a expressão

29
“ortotanásia5”, o documento, no artigo 22 do Capítulo I (princípios
fundamentais), delibera que:

Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico


evitará a realização de procedimentos diagnósticos e
terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua
atenção todos os cuidados paliativos6 apropriados7.

Tal decisão cria condições para a ocorrência de “limites” e de recusa à


obstinação terapêutica pelo prolongamento da vida de um paciente em
processo de terminalidade. Contudo, o texto do Capítulo V (relação com
pacientes e familiares) torna-se ambivalente, visto que diz ser vedado ao
médico8

[...] desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante


legal de decidir livremente sobre a execução de práticas
diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco
de morte (art. 31). [vedado ao
médico] abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste
ou de seu representante legal (art. 41).

Diante da iminência de morte e das intervenções médicas, parece


ocorrer a concessão de certa “autonomia” do paciente às determinações
médicas. Todavia, ainda não cabe ao paciente, a seus familiares e aos
médicos abreviar aquela vida em morte iminente. Tal posição legal coloca em
questão a propalada “liberdade” de o paciente decidir sobre seu corpo e vida,
divulgada nos jornais impressos como grande conquista proporcionada por
esse documento. Por exemplo, na reportagem intitulada Novo código de ética
médica privilegia decisões do paciente (ZH, 2010), consta a seguinte

5A ortotanásia é entendida como “possibilidade de suspensão de meios artificiais para manutenção da


vida quando esta não é mais possível”; um exemplo lícito é o desligamento de aparelhos quando estes
não mais promovem recuperação e acabam causando sofrimento adicional – ou seja, a conduta de
desligar equipamentos será lícita se não significar encurtamento da vida (KOVÁCS, 2003).
6 “O cuidado paliativo é definido pela Organização Mundial da Saúde como o cuidado ativo total dos
pacientes cuja doença não responde mais ao tratamento curativo. O controle da dor e de outros
sintomas, o cuidado dos problemas de ordem psicológica, social e espiritual são o mais importante. O
objetivo do cuidado paliativo é conseguir a melhor qualidade de vida possível para os pacientes e suas
famílias” (PESSINI, 2001, p.209).
7 CONSELHO, 2010.
8 CONSELHO, 2010.
30
afirmação: “a determinação [do código de ética médica] dá autonomia ao
paciente e garante que ele decida sobre seu futuro9”.

Para o presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), a principal


contribuição da legislação refere-se ao reforço à autonomia do paciente, "não
para diminuir o poder dos médicos, mas para aumentar a possibilidade de
diálogo10”. Com a possibilidade de diálogo aumentada, os médicos,
amparando-se nas decisões tomadas juntamente com o paciente, seus
familiares ou responsáveis, estarão menos vulneráveis a implicações
punitivas, pois tais decisões estarão resguardadas pelas regulamentações do
novo código.

Segundo Pessini, para o novo código, o sujeito pode dispor de sua


“autonomia basicamente em tudo, salvo frente ‘a iminente risco de morte’,
em que o médico pode agir independentemente da vontade do paciente11”.
Essa colocação torna visível a fragilidade da noção de “autonomia” e
“liberdade” daquele que se encontra na condição de doente/paciente
submetido às “verdades” biomédicas. Estas tornam “natural” a ideia e o ato
de abrir mão das decisões sobre o próprio corpo, aceitando que passem para
os médicos quando em circunstâncias que ameacem o “viver”. Ao que tudo
indica, ainda, quando a pessoa ingressa na instituição hospitalar, tornando-
se paciente, as decisões em torno da sua vida passam a ser regidas pelo
campo médico. Ao serem regidas pela medicina, parece que as experiências
da pessoa e sua “autonomia” de decisões podem ser desconsideradas. Isso
mostra a articulação dos processos fisiológicos aos dispositivos de poder

9Reportagem: Novo código de ética médica privilegia decisões do paciente (ZH, 13/04/2010). Ver página 2
do anexo 1.
Para facilitar o acesso às reportagens referidas neste estudo, disponibilizei-as, na íntegra, no anexo 1 -
CD. Elas estão numeradas com o mesmo número da nota de rodapé, seguindo a ordem em que
aparecem no texto.
10Reportagem: Conselho diz que código de ética médica será revisto a cada 5 anos. (Folha SP, 13/04/2010).
Ver página 6 do anexo 1.
11Novo código de ética médica: 'a medicina brasileira entra no século XXI’. Entrevista especial com Léo Pessini
(membro da Diretoria da Associação Internacional de Bioética e superintendente da União Social
Camiliana, além de vice-reitor do Centro Universitário São Camilo, em São Paulo – publicação em
27/04/2010). Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=co-m_noticias&Ite-
mid=29&task=detalhe&id=31842>. Acesso em: 03.05. 2010.
31
ligados à medicalização e a tecnologias sobre o corpo para fazê-lo viver.
Utilizo o termo dispositivo partindo da proposição de Foucault. Para ele, um
dispositivo compreende a rede que se pode tecer entre o dito e o não-dito, ou
seja, são “as práticas elas mesmas, atuando como um aparelho, uma
ferramenta, constituindo sujeitos e os organizando”, atuando também na
organização da “realidade” social (DREYFUS e RABINOW, 1995, p.135), de
modo que “está sempre inscrito em um jogo de poder” e ligado ao saber que
dele nasce, mas que o condiciona, isto é, o dispositivo como estratégia de
relações dá sustentação e é sustentado pelos saberes (FOUCAULT, 2002b,
p.246). Por isso, articula discursos, instituições, leis, “organizações
arquitetônicas, decisões regulamentares, medidas administrativas,
enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas”
(FOUCAULT, 2002b, p.244).

Ao mesmo tempo, numa sociedade que não autoriza a decisão de


morte a um paciente sem chances de cura, a morte de determinados
indivíduos – o anormal, o incorrigível, o delinquente, o assassino, o
criminoso... – tem sido autorizada sem contestações aparentes. Essas
mortes, quase legítimas, têm sido silenciadas ou mesmo espetacularizadas
e/ou banalizadas. Vive-se (ou sempre vivemos) diante de mortes autorizadas
em nome da segurança, como a morte dos criminosos; ocasionadas pela
clandestinidade de práticas de aborto, como a morte do feto e, às vezes, da
mulher; ou, ainda, causadas pela condição de viver em situação precária e
insalubre, com a ocorrência da morte de crianças e adultos por
contaminação, epidemia, falta de assistência, saneamento...

Na tentativa de situar a emergência do tema aborto e de discutir os


entendimentos sobre o morrer hoje, com base em recortes de análises feitas
na minha dissertação, na próxima seção, revisito algumas discussões sobre
as dificuldades de nos vermos como mortais e falarmos sobre assuntos
ligados à morte. Trago também questões sobre o ultrapassamento da
organicidade do corpo e suas relações com regulamentações e autocuidado,
com o governamento do corpo e com o fazer viver. Nessa direção, aponto
algumas discussões contemporâneas sobre as tecnologias reprodutivas

32
implicadas na determinação da desigualdade e do pertencimento ou não,
mesmo antes do nascer.

33
1.4 Fragmentos do pensar: condições de emergência da
pesquisa

O trabalho teórico não consiste em estabelecer e fixar um conjunto


de posições sobre as quais eu me manteria e cuja ligação entre essas
diferentes posições, na sua suposta ligação coerente, formaria um
sistema. Meu problema, ou a única possibilidade teórica que sinto,
seria a de deixar somente o desenho o mais inteligível possível, o
traço do movimento pelo qual eu não estou mais no lugar onde eu
estava agora [há] pouco. Daí, se vocês quiserem, essa perpétua
necessidade de realçar, de algum modo, o ponto de passagem que
cada deslocamento arrisca modificar se não o conjunto, pelo menos a
maneira pela qual se lê ou pela qual se apreende o que pode ter de
inteligível. [...] traçar um deslocamento, quer dizer, traçar não
edifícios teóricos, mas deslocamentos pelos quais as posições
teóricas não cessam de se transformar. Então, uma nova curva, um
novo traço, e uma vez mais um retorno sobre ela mesma, sobre o
mesmo tema (FOUCAULT, 2010, p.59).

Antes de iniciar a discussão, achei pertinente trazer a explicação sobre


o que consiste o trabalho teórico para Foucault, porque nela ele fala desse
retorno sobre o mesmo tema para realçar o ponto de passagem no qual os
deslocamentos modificam a maneira de compreender as “verdades” ou o que
pode haver de inteligível, ou seja, tenta-se mostrar as modificações ou a
diferença estabelecida pela pretensa “repetição”. Dessa noção, retorno a
algumas discussões sobre o morrer produzidas na pesquisa de mestrado,
para realçar os pontos de passagem implicados na emergência do tema
aborto.

Numa sociedade regida pela vida e pelo fazer viver, que se move
gradativamente na busca pela infinitude, emergem dificuldades de lidar com
os sentimentos despertados pela vulnerabilidade da vida (relacionados à
doença, ao envelhecer e à morte), pois essa circunstância remete-nos a
pensamentos relacionados à nossa finitude e à dos que nos são caros. Tais
sentimentos e valores, muitas vezes, geram decisões e atitudes direcionadas
à separação e ao isolamento dos doentes e dos idosos do mundo dos vivos.
Em outras palavras, “a morte do outro torna-se dramática e insuportável e
se inicia um processo de afastamento social da morte” (MENEZES, 2004,
p.27).

34
Mesmo numa época com enormes avanços na arte de repelir e impedir
as causas de morte, esta não foi abolida, mas esse “inimigo invisível”
desapareceu de vista e do discurso (BAUMAN, 1998). Ao mesmo tempo,
nossa vida passou a ser policiada do início ao fim, tornando-nos, pelo menos
temporariamente, “inválidos acompanhando a vida das janelas do hospital”
(idem, p.195). Para chegar a essas condições, nossa cultura desenvolveu
estratégias, como, por exemplo, esconder

[...] a morte daqueles próximos à própria pessoa; colocar os


doentes terminais aos cuidados de profissionais; confinar os
velhos em guetos geriátricos muito antes de eles serem
confiados ao cemitério [...]; transferir funerais para longe de
locais públicos; moderar a demonstração pública de luto e
pesar; explicar psicologicamente os sofrimentos da perda como
casos de terapia e problemas de personalidade (BAUMAN,
1998, p.198).

Essas estratégias fazem parte do que Foucault chamou de biopoder,


que se ocupa dos processos que são próprios da vida, dos fenômenos
coletivos de uma população (como natalidade, mortalidade, longevidade,
doenças, etc.). Esse poder lida com o corpo múltiplo, com estatísticas de
uma população, com a população “como problema político, como problema a
um só tempo científico e político, como problema biológico e como problema
de poder” (FOUCAULT, 2002a, p.292-293). Os mecanismos de ação da
biopolítica têm como finalidade a regulamentação da população, buscando
prever seus eventos, “controlar (eventualmente modificar) a probabilidade
desses eventos, em todo caso, compensar seus efeitos” (idem, p.297). Nessa
relação, a medicina, ao ocupar-se dos problemas de saúde, tem atuado na
busca pela regulamentação da vida das pessoas a partir de saberes e de
estratégias que têm por finalidade fazer viver. Da lógica de cura e de
manutenção do viver, o poder médico vai intervir “para aumentar a vida,
para controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas deficiências”
(FOUCAULT, 2002a, p.295).

Ao falar do corpo e suas relações com a tecnociência, Sibilia (2003,


p.41) comenta que “mistos de poder-saber conformam os contextos nos
quais vivemos e falamos, eles nos constituem e nós os constituímos

35
permanentemente”. Diz ainda que essa relação entre poderes e saberes é
capaz de criar incessantemente as tecnologias de poder. Ao discutir o
funcionamento da tecnociência moderna e contemporânea, a autora aponta
que, na atual sociedade tecnológica, os avanços mais recentes nas áreas da
biotecnologia e da informática, a serviço do “deciframento da vida”, fazem
vigorar o caráter essencialmente tecnológico do conhecimento científico
(idem). Nessa direção, os procedimentos científicos não visam à “verdade” ou
ao conhecimento da natureza íntima das coisas, mas à compreensão dos
fenômenos para exercer a previsão e o controle total sobre a vida. Tais
procedimentos não pretendem apenas a melhora das condições de vida, mas
a busca insaciável pela infinitude, desconhecendo os limites, buscando o
domínio e a apropriação total da natureza e superando suas limitações
biológicas, inclusive, a mortalidade (idem). Assim, vinculam-se à noção cada
vez mais presente de superação dos limites do corpo, o que tem sido tema de
discussões contemporâneas. Um exemplo é a medicina reprodutiva, que se
tornou uma das áreas com grande investimento e desenvolvimento nos
últimos anos, atendendo, talvez, à lógica de fazer viver por meio da
fertilização in vitro, uma forma de superação das limitações biológicas em
busca da manutenção da utilidade e produtividade do corpo pela criação da
possibilidade de mulheres com problemas de fertilidade gerarem filhos.

Num processo de medicalização crescente, novos entendimentos e


tecnologias de vida e trabalho articulados a empresas e instituições estão
surgindo nos domínios do trabalho, da vida e da linguagem, “entre estas, a
principal é a indústria de biotecnologia” (RABINOW, 2002, p.137). A
utilização e comercialização de óvulos e espermatozoides, por exemplo, faz
com que os avanços biotecnológicos, como a fertilização in vitro e a
inseminação artificial, diminuam a interferência da determinação genética
da mulher sobre o embrião que ela gesta. Além disso, a possibilidade de
melhoramento genético do embrião em relação às escolhas de sua
composição biológica, como uma técnica de prevenção, visa à diminuição
das características que oferecem riscos à sua saúde e vida. Tais saberes já
começaram a modificar a relação e o entendimento da morte e do aborto pela

36
prática do descarte de embriões, bem como dos processos de vida e das
práticas econômicas de trabalho pelo consumo da técnica de manipulação e
venda de produtos biológicos (embrionários). A implicação de tais práticas
nas questões sociais é algo a se ver para buscar compreender aonde podem
levar e o que podem produzir. Afinal, como sugere Deleuze, “concentra-se
nas práticas de vida o lugar mais potente de novos saberes e poderes”, por
isso, busca-se descrever o que está acontecendo, procurando “analisar
racionalidades específicas ao invés de sempre invocar o progresso da
racionalização em geral” (RABINOW, 2002, p.137).

Como vínhamos discutindo, as relações de saber/poder criaram


tecnologias direcionadas à superação do orgânico, ao prolongamento da vida
e à imortalidade. Pesquisas da atualidade, como as das áreas de engenharia
genética, criogenia e farmacologia, são exemplos de que esses “projetos”,
além de aceitos, se tornaram realizáveis pelas biotecnologias. Dentre elas,
está a de uma vida sem sofrimentos, em função dos psicofármacos (COUTO,
2009); sem fim, com o uso da bioengenharia e do congelamento dos
organismos à espera de técnicas médicas mais eficazes; “programada” e
“melhorada”, pela possibilidade de manipulação ou “correção” do código
genético – novas conformações de práticas eugênicas? (CARDOSO e
CASTIEL, 2003, RABINOW e ROSE, 2006). Enfim, todas essas promessas e
buscas poderiam acabar por fazer, segundo Bellino (1997), concorrência com
os cemitérios em um futuro não tão distante.

As conquistas técnico-científicas presenciadas nos últimos anos têm


exigido que sejam revisados os limites médicos e jurídicos entre vida e morte,
e “as condições antes consideradas como morte passaram a ser reversíveis,
exigindo a elaboração de novas leis, definições e práticas” (HUGHES apud
SIBILIA, 2003, p.51). O borramento das fronteiras entre a morte e a vida,
que antes eram nitidamente definidas, traz conceituações probabilísticas que
determinam o estado do corpo do paciente, as chances de recuperação e de
utilização de seus órgãos e células. No campo médico, percebemos
modificações criadas na hospitalização, nas unidades de terapia intensiva e
nos transplantes, “três grandes tendências do século XX que alteraram

37
totalmente o horizonte da morte e do morrer” (VALLS, 2004, p.176). Essas
mudanças trouxeram outras, entre elas, a doação de órgãos, os quais devem
ser retirados ainda vivos do paciente, ou seja, “quando o paciente estiver
legalmente morto” (idem, ibidem).

A definição de morte legal tem como pressuposto a utilização dos


órgãos para fins de transplantes, efeito das preocupações com a vida e em
manter vivo aquele que está considerado sem salvação ou condenado à
morte. Com isso, a morte torna-se legal quando tem como função gerar ou
prolongar a vida de outros. Tal argumento vincula-se à noção de morte
encefálica12, cada vez mais presente e aceita, que vem constituindo a
definição de morte na nossa sociedade.

As mudanças médicas entrecruzam-se, ainda, com a desvalorização


sociocultural da morte, tendo como efeito mudanças nas cerimônias de
funerais e de velamento do corpo. Tais processos foram associados por
Foucault aos mecanismos de biopoder, ou seja, um conjunto de ações de
uns sobre outros, que conduz condutas e ordena o campo das possibilidades
dos outros, cuja focalização na vida, desde o século XIX, teria atenuado o
sentido da morte (DREYFUS e RABINOW, 1995). A partir desse período,
configura-se uma medicina cujas ações se dirigem aos problemas de higiene
e de saúde, enquadrando-se numa política de regulamentação da vida da
população, ou seja, como um campo de saber em que as estratégias
pretendem fazer viver. Nesse sentido, ao estarmos sob os cuidados de uma
instituição hospitalar, estamos ali buscando manter a vida, o que pode
interferir na decisão ou no pensar sobre a própria morte. No entanto, temos
que nos questionar sobre que vida estamos mantendo e qual o “preço” que
estamos dispostos a pagar. Será que viver é estar inconsciente, imóvel, sob a
ação de sedativos, “vivo” graças a tubos e máquinas?

12Morte encefálica é definida pela parada irreversível de todas as funções cerebrais, ou seja, só é
constatada a morte encefálica caso estejam inativas todas as funções cerebrais, incluindo o tronco
cerebral, que controla a respiração, o batimento cardíaco e a pressão sanguínea (MARTIN, 1998). Tal
definição remete a noção de “sujeito cerebral”, ou seja, a constituição do sujeito atribuída ao
funcionamento de seu cérebro (AZIZE, 2010).
38
Entendendo que as estratégias de controle se concentram nas
condições, nas interfaces e nos fluxos entre as fronteiras, e não na
integralidade do natural, a relação entre organismo e máquina tem sido uma
guerra de fronteiras que coloca em jogo os “territórios da produção,
reprodução e da imaginação” (HARAWAY, 2000, p.41-42). Para Donna
Haraway, assumir a responsabilidade pelas relações sociais da ciência e da
tecnologia significa a rejeição de uma metafísica anticiência, de uma
demonologia da “tecnologia, e portanto significa abraçar a delicada tarefa de
reconstruir os limites da vida cotidiana, em conexão parcial com outras”
(idem, p.108; RABINOW, 2002, p.153). Ela argumenta que o ciborgue pode
ser “uma forma de saída do labirinto dos dualismos por meio dos quais
temos explicado nossos corpos e nossos instrumentos” e que a sua imagem
pode construir ou destruir máquinas, identidades, categorias e relações
(HARAWAY, 2000, p.108).

Nesse sentido, se, por um lado, conforme Rabinow (2002), a


maleabilidade da natureza é um convite ao artificial, por outro, as
tecnologias da informação e as biotecnologias são “ferramentas cruciais no
processo de remodelação de nossos corpos”. Essas ferramentas, aliadas aos
discursos científicos e às tecnologias, corporificam e produzem relações
sociais (HARAWAY, 2000, p.70).

Sem ignorar ou menosprezar as crescentes mudanças ocorridas na


medicina e nas biotecnologias, o tom muitas vezes sensacionalista da mídia
em torno dos feitos da tecnociência cria expectativas em muitas pessoas a
respeito de possíveis “curas” num futuro, mesmo que médicos especializados
digam o contrário. Assim, se, em outras épocas, a promessa de “Salvação da
Vida” encontrava-se “fora” deste mundo, hoje parece que a promessa e a
“Salvação” são encontradas neste mundo, no saber/poder da medicina, das
biotecnologias, da ciência.

Tais situações vêm reforçar a necessidade de repensar e discutir


questões e assuntos relativos à vida e à morte, especialmente quando nos
encontramos atravessados por lógicas direcionadas ao prolongamento da
vida, à infinitude através de poderes soberanos: políticos, médicos,
39
científicos e religiosos, por exemplo. Em alguns casos13, mesmo quando
jurídica e publicamente o paciente requer o direito de decisão sobre sua vida
e morte, seus desejos, sentimentos e reivindicações geram manifestações
contrárias à sua “liberdade” de escolha. Isso mostra a rede de governamento
em que nosso corpo e vida/morte se encontram inseridos e também que
pouco olhamos para a condição do outro, imersos nas “verdades” instituídas
que nos outorgam o direito soberano de decidir sobre a vida e a morte.

O percurso parece-nos conduzir às práticas e aos estudos de “técnicas


e procedimentos destinados a dirigir a conduta dos homens”, tendo como
ideia central o “governo dos vivos” (FOUCAULT, 1997, p.101). Crescem as
tecnologias e os recursos para a previsão e, talvez, prevenção daquelas
características e atitudes que podem representar “riscos” à vida, como
também as técnicas associadas ao autocuidado. Crescem os enunciados
associados à medicalização da vida através de atitudes medicamentosas e
“mecanismos” preventivos, como a alimentação, os esportes, as terapias, o
lazer, como também por meio de prescrições para exames e remédios para
prevenir os riscos de anormalidades.

Para Castiel (1999, p.38), um dos principais elementos que participam


na construção da noção ou “‘espírito de risco’ de nossas sociedades
modernas pode ser localizado na produção científica”, a qual, articulada aos

13Como exemplo, trago a discussão difundida na mídia sobre a morte induzida do italiano Piergiorgio
Welby, de 60 anos de idade – abordada na dissertação. Segundo a reportagem Morte de italiano volta
foco à eutanásia (MORTE, 2006), Welby não movia nenhum órgão do corpo, com exceção dos olhos, e
estava conectado a um respirador artificial, em uma cama, desde 1997.
Welby foi presidente de uma associação de defesa dos doentes e já havia reivindicado à Justiça e, de
maneira oficial, aos seus médicos o direito de interromper o tratamento que o mantinha vivo
(MÉDICO, 2006). Conforme a reportagem, nos últimos meses, ele liderara uma campanha pelo seu
direito de morte e, em setembro, enviara um vídeo ao presidente italiano falando (através do
computador que sintetizou sua voz) de suas condições e pedindo o direito de morrer. No vídeo, que
foi transmitido pela televisão, ele dizia: Se eu fosse suíço, holandês ou belga, poderia aforrar este sofrimento.
Mas sou italiano, e aqui não existe piedade.
Depois de ter seu pedido negado por várias instâncias judiciais, o anestesista Mario Riccio desligou o
respirador artificial que mantinha o paciente vivo, mas primeiro ministrou um coquetel de sedativos,
nas suas palavras, “para que ele não sofresse com a falta de ar” (MÉDICO, 2006). Riccio alegou que a
suspensão do tratamento era a vontade do paciente: “Aceitei sua vontade de morrer”, declarou o médico. A
confirmação da morte de Welby ocorreu meia hora depois de desligado o aparelho. Sua irmã, Carla,
disse que tudo aconteceu “como ele queria”. Na Itália, o responsável pela eutanásia está sujeito a até 15
anos de prisão. Ver página 7 do anexo 1.
40
discursos médicos, abrange os mais variados fatores de risco, especialmente
em relação a questões de saúde e doença, juventude e longevidade. A
importância da noção de risco nas sociedades contemporâneas tem sido
abordada por inúmeros autores. Giddens (1991) sugere que a busca pela
segurança é possibilitada pela criação da confiança na previsão de
consequências contingentes, seja para evitá-las, seja para estabilizá-las.
Essa previsão torna também o indivíduo um objeto de reflexão. Ao assumir-
se como objeto de reflexão, o indivíduo passa a exercer decisões críticas
sobre si em busca de um resultado desejável, ou seja, uma consequência
prevista em razão da escolha de seu futuro modelo de corpo, juventude e/ou
padrão de saúde, por exemplo.

Com o surgimento de estudos de medicina experimental e


epidemiologia baseados na biologia molecular, “a determinação dos riscos
vai, em algumas circunstâncias, se tornar mais bem demarcada, permitindo
predições com menores margens de erro” (CASTIEL, 1999, p.38). No caso de
um diagnóstico médico, por exemplo, o conhecimento do especialista torna-
se o “veículo através do qual uma circunstância é declarada decisiva”
(GIDDENS, 2002, p.108). Porém, mesmo com o avanço da testagem genética,
as predições da medicina só são válidas para algumas doenças específicas
(CASTIEL, 1999). Dessa noção, mesmo que as predições do risco revelem de
modo antecipado as possibilidades de ocorrência de eventos indesejáveis a
partir dos conhecimentos disponíveis, esta noção costuma ser probabilista e
não determinista (CASTIEL, 1999). Por esses motivos, parece importante
levar em conta o que os autores comentam sobre a relatividade da exatidão
da previsão dos riscos pela falta de refinamento na sua precisão. Afinal, essa
desestabilização da crença na certeza científica pode trazer outros elementos
a serem considerados diante das escolhas, como a implicação da
contingência ou imprevisibilidade de eventos cotidianos não-intencionais.

Giddens (2002, p.106), ao falar da emergência da noção de risco,


comenta que a “‘abertura’ das coisas por vir expressa a maleabilidade do
mundo social e a capacidade que os homens têm de dar forma aos
ambientes físicos de sua existência”, na intenção de controlar o tempo

41
presente para colonizar o futuro. O risco implica acontecimentos futuros, o
que torna o futuro um novo “território de possibilidades contrafactuais” que
pode ser invadido e colonizado pelo “pensamento contrafactual e pelo cálculo
do risco” (idem, ibidem). Conforme o autor, as tendências globalizantes são
simultaneamente extensionais e intencionais, vinculando os indivíduos a
escalas locais e global, em que a exposição ao risco pode ser relacionada ao
ambiente de risco ou ao comportamento de risco e, ainda, à quantidade de
indivíduos afetados ou a consequências particulares para a vida de poucos
no futuro (GIDDENS, 2002). Nesse sentido, o risco atua como “uma regra
que permite ao mesmo tempo unificar uma população e identificar os
indivíduos que a compõem segundo um mecanismo de auto-referência” que
pressupõe que todos os indivíduos possam ser afetados pelos mesmos males,
ou seja, todos estão expostos e partilham as respectivas responsabilidades
(EWALD, 1993. p.97). Dessa forma, o risco pode ser entendido como uma
estratégia que normaliza (classifica e busca trazer para a normalidade) e
governa (pelo gerenciamento das condutas). Para Giddens (1991, p. 192), as
tendências globalizantes constituem um processo “simultâneo de
transformação da subjetividade e da organização social global, contra um
pano de fundo perturbador de riscos de alta consequência”, num futuro com
status de modelador contrafactual. Segundo ele:

Antecipações do futuro tornam-se parte do presente,


ricocheteando assim sobre como o futuro na realidade se
desenvolve; o realismo utópico combina a "abertura de janelas"
sobre o futuro com a análise das correntes institucionais em
andamento pelas quais os futuros políticos estão imanentes no
presente (GIDDENS 1991, p. 192-193).

Vemos essa tentativa de colonizar e modelar o futuro nas práticas


voltadas à promoção da vida e do corpo saudáveis, as quais tornam a pessoa
a única responsável pela sua saúde, cuidado e bem-estar. Tais questões
vinculam-se, por exemplo, a procedimentos que determinam a variação
estabelecida na taxa de normalidade, definida por critérios que aumentam o
número de pré-doentes, ou seja, pessoas que apresentam ou podem
apresentar características relacionadas ao surgimento de certos distúrbios
(CASTIEL, 2007). Nesse sentido, a vigilância e o controle dos possíveis riscos
42
não têm esperado nem mesmo a manifestação da doença para que o médico
exija exames para intervir na doença e no corpo – as ações voltam-se para a
detecção da pré-doença. Essa noção, cada vez mais aceita, vem constituindo
a definição de saúde e gerando mudanças nos hábitos de vida, que passam a
ser ligados à promoção da saúde.

Czeresnia (2003, p.43), ao diferenciar os conceitos da prevenção de


promoção da saúde, comenta que “um dos eixos básicos do discurso da
promoção da saúde é fortalecer a ideia de autonomia dos sujeitos e dos
grupos sociais”. Porém, a concepção de autonomia que é proposta e
construída pode estar evidenciando como a configuração dos conhecimentos
e das práticas construiria noções científicas e culturais, de modo a
conformar os sujeitos a exercerem uma autonomia regulada, ou seja, tendo
suas escolhas dirigidas segundo regras mercadológicas (idem). Além disso, a
partir de Lupton e Petersen, a autora comenta que a perspectiva da
promoção da saúde reforça a tendência de diminuição das responsabilidades
do Estado, progressivamente delegando aos sujeitos a tarefa de tomarem
conta de si mesmos. Sobre as ações preventivas, a autora comenta que estas
se definem como

[...] intervenções orientadas a evitar o surgimento de doenças


específicas, reduzindo sua incidência e prevalência nas
populações. A base do discurso preventivo é o conhecimento
epidemiológico moderno; seu objetivo é o controle da
transmissão de doenças infecciosas e a redução do risco de
doenças degenerativas ou outros agravos específicos. Os
projetos de prevenção e de educação em saúde estruturam-se
mediante a divulgação de informação científica e de
recomendações normativas de mudanças de hábitos
(CZERESNIA, 2003, p.49).

No que tange à noção de promoção da saúde, ela comenta, segundo


Leavell & Clarck, que é mais ampla que a da prevenção, pois se refere a
medidas que “não se dirigem a uma determinada doença ou desordem, mas
servem para aumentar a saúde e o bem-estar gerais" (CZERESNIA, 2003,
p.49). Assim, as estratégias de promoção enfatizam a transformação das
condições de vida e de trabalho que estruturam os problemas de saúde.

43
Em outras palavras, a promoção da saúde é constituída por ações
preventivas, mas para isso se vale de ações educativas que visam ao
gerenciamento das condutas não apenas das pessoas que estão doentes,
mas de todos. Um exemplo de estratégia bastante utilizada para promover a
saúde são as campanhas de saúde. Estas podem atuar em favor do uso de
preservativos para evitar/prevenir doenças ou mostrando a importância da
amamentação, da prática de exames periódicos para medicalização
antecipada do câncer, de não fumar, de seguir uma dieta e de fazer
atividades físicas, por exemplo. Essas estratégias configuram formas de
buscar intervir ou normalizar o comportamento e os hábitos de vida de cada
indivíduo conforme as regras ou políticas de saúde e mercado vigentes.
Assim, o disciplinamento do indivíduo marca sua postura preventiva em
relação aos supostos riscos à sua saúde, mas, ao prevenir-se, ele estará
contribuindo ou promovendo a saúde e o bem-estar também de outros/
“todos” (CASTIEL, 1999; CZERESNIA, 2003).
Se a busca pela saúde está para além da sobrevivência, pois
compreende a qualificação da existência, para viver mais e melhor, promover
a saúde envolve escolhas que são regidas por escalas de valor que emergem
da articulação de múltiplas “verdades”, as quais constituem as
subjetividades e singularidades de eventos individuais e coletivos
(CZERESNIA, 2003).

A partir dessas noções, percebe-se que hoje são difundidas as


probabilidades de ocorrência de doenças relacionadas ao comportamento
que as pessoas optam por manter, doenças vistas como resultado de
resistência ou falta de informação e como um mau exemplo do
gerenciamento do próprio corpo, ou seja, o comportamento coloca o
indivíduo em risco. Como já comentado, existem à disposição várias
prescrições, de diferentes áreas e de fácil acesso, especialmente as
associadas à saúde, indicando regras, normas e padrões de vida (como as
dietas, os exercícios, as análises, os exames preventivos...) direcionados a
assegurar uma vida saudável, meta principal para a longevidade.

44
A articulação de estratégias direcionadas à “autonomia” do sujeito e à
regulamentação da vida tem gerado um aumento dos cuidados de si em
relação à saúde. Isso demonstra que as estratégias do biopoder engendram o
nosso cotidiano e vida através da naturalização de suas “verdades”, que
atuam de modo a subjetivar os sujeitos.

Em uma rede de discursos que circulam em diversas instâncias


(mercado, moda, estética, mídia, medicina, ciência...), a imperfeição,
incompletude e vulnerabilidade14 como potenciais de nosso corpo vêm sendo
produzidas ao mesmo tempo que a saúde e a beleza – por meio de atitudes e
cuidados necessários ao atendimento das exigências que são para o “nosso
próprio bem” ou para o bem de nosso corpo/saúde. Numa sociedade de
consumo regida pela política do mercado, para suprir os “desejos” e as
“necessidades” dos corpos consumidores, encontram-se à disposição tantos
objetos e procedimentos quanto forem “necessários” para garantir vida
longa, saúde, juventude e beleza, com a finalidade de atender às promessas
do mais antigo desejo humano: a vida eterna.

Enfim, o biopoder, ao servir para “assegurar a inserção controlada dos


corpos no aparato produtivo e para ajustar os fenômenos da população aos
processos econômicos”, constitui um elemento “fundamental para o
desenvolvimento do capitalismo, cujo objetivo é produzir forças, fazê-las
crescer, ordená-las e canalizá-las” (CASTRO, 2009, p.58; SIBILIA, 2003,
p.163). Para isso, diferentes estratégias atuam constantemente por meio de
novos saberes e técnicas para conhecer e conquistar novos espaços de
intervenção, onde podem acontecer também os embates, as resistências, as
fugas possibilitadas no viver. Nessa relação, a morte, momento em que o
indivíduo se encontra na iminência de escapar ao poder, deixa de interessar
aos mecanismos do biopoder – desde que não seja mais produtiva e útil.

Nikolas Rose argumenta que “a economia da biopolítica


contemporânea opera de acordo com a lógica da vitalidade”, ou seja, pelo

14Conforme Czeresnia (2003, p.43), termos como vulnerabilidade têm sido “desenvolvidos e utilizados
cada vez mais no contexto das propostas de promoção da saúde”. Esses “quase conceitos” permitem,
além de abordagens articuladas a conceitos de outras áreas, múltiplas significações que emergem dos
acontecimentos individuais e coletivos.
45
investimento no incremento e na optimização da própria vida para fazer viver
por mais tempo – estendendo o tempo de vida “indeterminadamente” – e com
mais qualidade, remetendo à conquista do controle da mortalidade pela
redução dos riscos à saúde (RABINOW e ROSE, 2006, p.47;
VASCONCELLOS-SILVA; CASTIEL; BAGRICHEVSKY; GRIEP, 2010). A essa
noção de infinitude, as práticas biotecnológicas investidas no material
genético da vida e tudo o que pode estar ligado a elas, como as indústrias
privadas, o serviço nacional de saúde pública e companhias multinacionais,
acenam possibilidades de “nos tornarmos senhores de vida e de morte”
(RABINOW, 2002, p.10). Senhores, soberanos nas escolhas e decisões sobre
a criação de formas de vidas, em fazer viver por mais tempo, em recusar
determinadas formas de vida.

Após fazer a releitura da dissertação, na tentativa de lembrar quais


foram “mesmo” os caminhos que me fizeram chegar ao tema do aborto e
buscar entender alguns conceitos, comecei, então, a lembrar-me das vezes
em que já reescrevi e apresentei cada um dos capítulos, transformados em
artigos, das oficinas e aulas de que participei e do que emergia nas falas das
pessoas. Em meio a essa rede, percebi que, em muitas ocasiões, a temática
do aborto aparecia – ou por remeter a essa prática pela exposição ao risco de
morte das mulheres, ou por ter sido abordada na mídia e estar em discussão
naquele momento.

Além disso, esse assunto sempre provocou estranheza e perturbação


em mim. No meu entendimento, tratava-se de uma questão privada, e toda
essa discussão na mídia – um espaço público – sobre as intervenções no
corpo de uma mulher fez-me pensar o quanto deveria causar de
constrangimento e perturbações. O incômodo gerado na fala das pessoas fez
vir à tona o meu próprio incômodo diante dessas questões, e penso que só
agora consegui enxergar isso. Todos os momentos, seja de leitura, de escrita,
dos congressos ou das aulas, contribuíram para aumentar e reforçar ainda
mais meu interesse pela pesquisa e fizeram-me perceber a importância e a
abrangência desse tema.

46
CAPÍTULO 2

ESTRATÉGIAS DE GOVERNAMENTALIDADE E
O PODER SOBRE O VIVER/MORRER... ONDE
N O S L E V A O E X E R C Í C I O D A S “ V E R D A D E S 15” ?

P AR A F O U C A UL T , O H OM EM É , A O M E SM O TEM P O , SU J EI TO E OB J E TO DO S E U

P R ÓP R I O C ON H E C I M E N T O (TUCHERMAN, 1999, P .85).

T AN TO N O P R OC E S S O DE O B JE TI V AÇ ÃO Q U AN TO N O P R O C ES S O DE

S U BJ E TI V A Ç ÃO , É O I N V E S TI M EN T O P O L Í TI CO S OB R E A VI DA Q U E P OS SI BI LI T A A

CON S TI T UI Ç Ã O D O I N DI V Í D UO CO M O O BJ E TO E S U J EI T O (FONSECA, 2003,


P .100).

15 A imagem desse capítulo foi escolhida por tratar-se da inseminação artificial, estratégia utilizada
para driblar a infertilidade e possibilitar o viver.
47
CAPÍTULO 2

ESTRATÉGIAS DE GOVERNAMENTALIDADE E O PODER


SOBRE O VIVER/MORRER... ONDE NOS LEVA O EXERCÍCIO
DAS “VERDADES”?

Neste capítulo, trago as ferramentas teórico-metodológicas, o material de


análise, indicações de alguns caminhos que pretendi seguir para o desenvolvimento
das análises e, a partir de proposições de Michel Foucault, questões relativas ao
governamento do corpo e da vida, com base na ressignificação do poder pastoral e
nas práticas do biopoder como estratégias de governamentalidade.

2.1. Do forasteiro desengajado: itinerários

[...] não há um caminho traçado de antemão que bastasse


segui-lo, sem desviar-se, para se chegar a ser o que se é. O
itinerário que leve a um “si mesmo” está para ser inventado, de
uma maneira sempre singular, e não se pode evitar nem as
incertezas nem os desvios sinuosos. O eu [...] não está para ser
explorado, mas para ser criado (LARROSA, 2003a, p.09). O eu
não é o que existe por trás da linguagem, mas o que existe na
linguagem (idem, p.25).

Acredito que ensaiar e perguntar têm sido o meu caminho, a minha


experiência e experimentação na escrita e na leitura – perguntar, questionar,
problematizar, pensando quem eu sou nessa trama e o que quero fazer
comigo mesma na formação do meu modo de escrever e de ler, do meu modo
de pensar e habitar este lugar e de atuar na posição de professora-
pesquisadora que escreve e faz escrever, lê e dá a ler, fala e ouve de
determinada forma, assim como pensa e possibilita modos de pensar
(LARROSA, 2004). Nesse sentido e neste momento, entendo esta pesquisa
como um ensaiar-se. Um ensaiar-se no pensamento (no e para o presente);
na escrita, que parte de um distanciamento crítico; e na vida, em suas
relações e experimentações (idem).

Porém, para um ensaiar-se, parece-me necessário partir do


entendimento de que “nem sempre fomos o que somos”, o que leva ao
48
interesse pelo conhecimento do passado das nossas “verdades”, pela história
do que somos ou de como chegamos a ser a diferença que somos agora
(LARROSA, 2004, p.34; FISCHER, 2004). Para construir essa relação com o
presente, é preciso que nos distanciemos de nós mesmos, que estranhemos
o presente, convertendo-o não em um tema, mas em um problema
(LARROSA, 2004). Isso nos fará perceber a provisoriedade de ser, as
possibilidades do vir-a-ser (devir) e o “quão artificial, arbitrário e produzido é
o que nos parece dado, necessário ou natural” (LARROSA, 2004, p.34).

E o que quero com esta proposta de pesquisa? Quero criar condições


que possibilitem a inquietação diante de determinadas “verdades” e da
complexidade de práticas relativas ao governo dos corpos nos processos do
viver/morrer. Sim, se uma pesquisa, tal como Foucault desenvolveu, “foi
uma tentativa de pensar de um outro modo, sua atitude foi um exercício
sobre si mesmo, uma prática de si na perspectiva de sua transformação”
(RAMIREZ, 2008, p.09), a proposta é promover a experiência da própria
contingência e transformação. Isso implica repensar, desestabilizar,
incomodar e perturbar o fluxo que tende a naturalizar ideias, pensamentos,
discursos, condutas e práticas. Trata-se de buscar “saber de que maneira e
até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se
sabe” (FOUCAULT, 1998, p.13). Por isso, considero esta pesquisa um
ensaiar-se, ou seja, o desafio do exercício de si na escrita, no pensamento e
na vida. Algo que não busca profetizar uma prescrição do que e/ou de como
se deve conduzir, fazer, agir e falar, mas criar condições para que “os atos,
os gestos, os discursos que até então lhe pareciam andar sozinhos tornem-se
problemáticos, perigosos, difíceis” (FOUCAULT, 2003b, p.348).

Compreendo que esses movimentos não são a solução nem a salvação,


que não atuam de forma a intervir de modo impactante e imediato para
esclarecer ou mostrar a “verdade” aos indivíduos, mas que são processos
extremamente árduos, ousados e difíceis. Entretanto, quem foi que disse que
a possibilidade de criar mudanças pela prática de suscitar diferentes
pensamentos não seria uma batalha lenta, uma guerra de micropoderes?

49
Para Foucault, a crítica não é uma premissa, mas um instrumento
para ser usado nos processos de conflitos, enfrentamentos e tentativa de
recusa; “é um desafio em relação ao que é” (FOUCAULT, 2003b, p.349). E,
nesse desafio em relação ao que “é”, pelo uso da crítica, produzem-se
desconfianças e dúvidas, como, por exemplo: como as coisas ditas “reais”
acontecem no interior dos discursos?

Os discursos estão sendo entendidos, aqui, como “um conjunto


regular de fatos linguísticos em determinado nível, e polêmicos e estratégicos
em outro” (FOUCAULT, 2005, p. 9); “um conjunto de estratégias16 [de
saber/poder] que fazem parte das práticas sociais” (idem, p.11), com a
finalidade de produzir “coisas” no mundo, pensamentos, atitudes, “objetos” e
tipos de sujeitos, por exemplo. Mais do que produzir significados, os
discursos encontram-se implicados na constituição das subjetividades das
pessoas. Segundo Foucault, eles “só dizem o que é o sujeito dentro de um
certo jogo muito particular de verdade” (2006a, p.237); sujeito e objeto são
constituídos em certas condições, que não param de se modificar. Nesse
sentido, as práticas, entendidas como “modos de agir e de pensar, dão a
chave de inteligibilidade para a constituição correlativa do sujeito e do
objeto” (idem, p.238-239). A partir dessas noções, uma análise das relações
entre sujeito e “verdade”, em que o sujeito é inserido como objeto nos jogos
de “verdade”, pretende estudar

[...] os procedimentos e as técnicas utilizados nos diferentes


contextos institucionais, para atuar sobre o comportamento
dos indivíduos tomados isoladamente ou em grupo, para
formar, dirigir, modificar sua maneira de se conduzir, para
impor finalidades à sua inação ou inscrevê-la nas estratégias
de conjunto, consequentemente múltiplas em sua forma e em
seu local de atuação; diversas da mesma forma nos
procedimentos e técnicas que elas fazem funcionar: essas
relações de poder caracterizam a maneira que os homens são
“governados” uns pelos outros (FOUCAULT, 2006a, p.238-
239).

16Nessa perspectiva, estratégias discursivas são os “fatos de discurso, não mais simplesmente sob seu
aspecto lingüístico, mas, de certa forma como jogos (games), jogos estratégicos, de ação e de reação, de
pergunta e de resposta, de dominação e de esquiva, como também de luta” (FOUCAULT, 2005, p.09).
50
A noção de governo empregada neste estudo compreende a
estruturação do eventual campo de ação das pessoas. Nesse entendimento, o
governo não se restringe apenas às estruturas políticas e à gestão dos
Estados, mas designa a “maneira de dirigir a conduta dos indivíduos ou dos
grupos” (DREYFUS e RABINOW, 1995, p.244). Nas relações sociais, em que
funcionam as diversas e particulares maneiras de governo dos indivíduos,
atuam práticas/técnicas de modo a objetivar e também subjetivar,
constituindo tanto conhecimentos e ações direcionadas ao sujeito quanto “a
maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si mesmo em um jogo de
verdade” (FOUCAULT, 2006a, p.236). Essa mútua relação com os jogos de
“verdade” – as regras que fazem o sujeito dizer o que é da ordem do
verdadeiro e do falso, do certo e do errado... – torna a objetivação e a
subjetivação dependentes uma da outra (idem). Enfim, para Foucault, a
“sobreposição dos mecanismos de objetivação e de subjetivação presentes na
atualidade define a forma da individualidade no presente” (FONSECA, 2003,
p.142-143).

A partir dessas noções, a mídia, como instância veiculadora de


discursos que nos interpelam cotidianamente, mostra-se como um elemento
de uma rede discursiva implicado nos processos de objetivação e de
subjetivação, os quais configuram determinadas formas de pensar e de agir
nas relações consigo e com o outro (WITT, 2007). Dessa forma, torna-se
oportuno questionar: como a mídia impressa vem falando sobre o aborto?
Quem vem falando sobre esse tema nesse espaço?

Dúvidas como essas permeiam e movimentam este ensaio, formam


meu caminho, minha experiência e experimentação na escrita e na leitura,
que visa a conhecer e mostrar algumas relações presentes na superfície de
determinados discursos, dando certa visibilidade ao que “só é invisível por
estar muito na superfície das coisas” (FOUCAULT, 2000, p.146). Como
mencionei anteriormente, tomo o discurso “como uma prática que obedece a
regras [...] de formação, de existência, de coexistência, a sistemas de
funcionamento”, entendendo que os discursos conformam os objetos de que
falam e podem atuar de forma a controlar outros discursos (idem, ibidem).

51
Ou seja, o discurso próprio de um determinado período possui uma função
“normativa e reguladora e coloca em funcionamento mecanismos de
organização do real por meio da produção de saberes, de estratégias e de
práticas” (REVEL, 2005, p.37). Nesse sentido, a análise de ordem discursiva
trata de buscar

[...] compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de


sua situação; de determinar as condições de sua existência, de
fixar seus limites de forma mais justa, de estabelecer suas
correlações com outros enunciados a que pode estar ligado, de
mostrar que outras formas de enunciação exclui (FOUCAULT,
1995b, p.31).

Procuro, então, problematizar o discurso não como conjuntos de


“signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a
representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos
de que falam” (idem, p.56). Afinal, mesmo sendo feitos de signos, os
discursos fazem mais do que utilizar os signos para designar coisas. “É esse
mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala [...] que é preciso
aparecer e que é preciso descrever” (idem, ibidem).

Nessa perspectiva, os discursos encontram-se imbricados em relações


de saber/poder, visto que, a cada instante, a sociedade ocidental produz
“verdades” associadas ao poder17 e, ao mesmo tempo, aos mecanismos de
poder, “porque esses mecanismos de poder tornam possíveis, induzem essas
produções de verdades, e porque essas produções de verdade têm efeitos de
poder” (FOUCAULT, 2003d, p.229). Assim, são os processos, as lutas
implicadas na diversidade de relações que simultaneamente atravessam e
constituem o sujeito e “determinam as formas e os campos possíveis do
conhecimento” (idem, p.27). Dessa forma, uma análise das relações

17Entendendo o poder como algo que "não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe
em ação”; esse poder só existe em relação entre uma pessoa ou um grupo de pessoas e outra pessoa ou
grupo (FOUCAULT, 2002b, p.175). Não é repressivo, negativo e violento. “O que faz com que o poder
se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas de
fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso” (idem, p.8). “Deve-se
considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma
instância negativa que tem por função reprimir” (idem, ibidem). Segundo Foucault, “o poder não é do
mal. O poder são jogos estratégicos (...), em que as coisas poderão se inverter” (FOUCAULT, 2006b,
p.284).
52
verdade/poder e saber/poder deve considerar os sujeitos, os objetos e os
procedimentos de conhecimentos como tantos outros efeitos dessas relações
(FOUCAULT, 2004).

Portanto, com este ensaio, busco problematizar como os discursos


operam e trazer elementos para pensarmos de outro modo discursos
colocados em circulação através de reportagens impressas. Tal movimento
de pesquisa assenta-se no entendimento de que os discursos cumprem “uma
função dentro de um sistema estratégico onde o poder está implicado” e
através do qual o poder funciona e opera (FOUCAULT, 2003a, p.253;
CASTRO, 2009, p.120). O discurso, mais do que colocar “verdades” em
circulação, atua como uma estratégia de poder que liga o sujeito à “verdade”,
o que me leva a considerar relevante empreender estudos voltados à análise
das práticas sociais, neste caso, daquelas relacionadas à mídia impressa
(FOUCAULT, 2003a).

Parto, então, da compreensão de que somos produzidos nas relações


sociais – que atravessam e se correlacionam no corpo social –, procurando,
num “olhar genealógico”, conhecer as práticas relativas ao aborto que
integram a produção dos sujeitos, para fazer um uso tático das discussões
aqui desenvolvidas (FOUCAULT, 2002b). Ao mencionar a busca por um olhar
genealógico, pretendo dizer que, ao debruçar-me sobre uma questão do
presente – práticas direcionadas ao aborto –, procuro conhecer e
problematizar as condições em que tais práticas se inserem, ou seja, quais
acontecimentos e “verdades” têm possibilitado produzir os discursos que
vêm regulamentando o aborto na nossa sociedade hoje. Para tanto, valho-me
de aproximações das estratégias/ferramentas genealógicas propostas por
Michel Foucault para pensar e examinar a emergência e manutenção de
enunciados relativos às práticas de abortamento (idem).

Argumentos para um olhar genealógico como forma de análise


empregada neste estudo, que articula uma análise discursiva/enunciativa
com questões de poder, governo e biopolítica, encontro em Foucault, por
exemplo, quando ele nos fala das análises que empreendeu para ver como se
dava a constituição do sujeito na trama histórica, dizendo-nos que é
53
necessário nos livrarmos do sujeito constituinte e “chegar a uma análise que
possa dar conta da constituição do sujeito na trama histórica” (FOUCAULT,
2002b, p.7). Estudos que pretendem aproximações com a genealogia, no
meu entender, visam a usar ferramentas analíticas voltadas para conhecer e
discutir as condições históricas – as relações de saber/poder implicadas na
constituição de saberes, domínios de objetos, discursos, por exemplo –
implicadas na constituição dos sujeitos, neste caso, contemporâneos. Tal
articulação faz-se necessária, ainda, visto que os estudos de Foucault acerca
da vida, seja do corpo, seja da população, vão nos mostrar que a vida,
especialmente desde a modernidade, se encontra controlada, vigiada,
regulada e regulamentada por mecanismos de saber/poder, chamando
nossa atenção para a necessidade de análises e debates voltados ao
aprofundamento da crítica e do diagnóstico do presente. Essa extensão do
campo de análise remete à questão da ética moderna para Foucault, a qual,
conforme Castro (2009), comporta

[...] uma atitude crítica, de análise dos limites. Essa crítica é


arqueológica no seu método (ocupa-se dos discursos como
acontecimentos históricos) e genealógica em sua finalidade:
“Não deduzirá da forma do que somos o que nos é impossível
fazer ou conhecer, mas extrairá da contingência que nos fez
ser o que somos a possibilidade de não ser, fazer ou pensar o
que somos, fazemos, pensamos” (p.187).

Tais entendimentos fazem-me acreditar que, através de um olhar


atento18 para os discursos divulgados na mídia, implicados na constituição
do pensamento e das ações dos sujeitos19, seja possível chamar atenção para
a função que certas “verdades” assumem no governo das condutas dos
indivíduos – neste caso, em relação às práticas de abortamento (FOUCAULT,
2006b) – e pensá-las de outro modo. Afinal,

18Para Foucault, a atenção é um “instrumento de luta”, pois “o olhar não sobrevoa um campo: ele bate
em um ponto, que tem o privilégio de ser o ponto central ou decisivo [...]; o olhar vai direto: ele
escolhe, e a linha contínua que ele traça opera, em um instante, a divisão do essencial; ele vai além do
que se vê; as formas imediatas do sensível não o enganam; pois ele sabe atravessá-las; ele é
desmistificador” (FOUCAULT apud ARTIÈRES, 2004, p.27). “O olhar é mudo como um dedo
apontado, e denuncia” (idem. ibidem).
19Ao compreender-se o “discurso como prática”, assume-se não haver separação entre a prática do
pensar e do agir, ou seja, o pensar é entendido como uma ação (FOUCAULT, 1995b, p.56).
54
[...] somos julgados, condenados, classificados, obrigados a
desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver
ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem
consigo efeitos específicos de poder (FOUCAULT, 2002b,
p.180).

55
2.2. Sobre as estratégias metodoló gicas e os objetos de análise

Nossas escolhas não são livres porque nossos pensamentos


não o são. Nossos pensamentos estão conformados pelos
discursos que nos cruzam desde sempre (VEIGA-NETO, 1996,
p.18).

O entendimento de que os discursos conformam nossos pensamentos


e nos constituem e que temos a possibilidade de atuar para inventar novas
experiências sociais, moveu-me na direção de interrogar sobre os discursos
divulgados na mídia impressa – espaço pedagógico não-formal. Trata-se de
um veículo que integra o processo de validação de regras, princípios e
procedimentos produzidos pelo discurso que regulam a produção de
“verdades” (SOUZA, 2001). Conforme Foucault, cada sociedade tem seu
regime de “verdade”, sua “política geral”, isto é,

[...] os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como


verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem
distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira
como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos
que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto
daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como
verdadeiro (FOUCAULT, 2002b, p.12).

Dessa noção, ao falar sobre a função pedagógica da mídia, Fischer


(1997) diz que

[...] as diversas modalidades enunciativas [...] dos diferentes


meios e produtos de comunicação e informação – televisão,
jornal, revistas, peças publicitárias – parecem afirmar em
nosso tempo o estatuto da mídia não só como veiculadora mas
também como produtora de saberes e formas especializadas de
comunicar e de produzir sujeitos, assumindo nesse sentido
uma função nitidamente pedagógica (idem, p.61).

A mídia, como produtora de saberes, vem se constituindo como uma


“arma” bastante potente. Mais do que simplesmente levar as “informações
diárias” às pessoas, produz “verdades” sobre o mundo, transmite “uma
variedade de formas de conhecimento que, embora não sejam reconhecidas
como tais, são vitais na formação da subjetividade” das pessoas (SILVA,
2001, p.140). Diante da força da mídia na produção e veiculação de
“verdades”, a partir das quais passamos a pensar o mundo, compreendo que

56
os meios de comunicação (jornais, revistas, rádio, televisão, Internet...)
geram profundos efeitos na arte de gerenciar e conduzir a vida cotidiana das
pessoas (WITT, 2007).

Torna-se oportuno dizer que, nos dias de hoje, a mídia se configura


como uma instância com destacado papel de formadora de opiniões, uma vez
que se encontra implicada na constituição de nossas subjetividades (SILVA,
2001; FISCHER, 1997). Compreender que, na sociedade contemporânea, a
mídia tem atuado como uma importante instância na veiculação de
“verdades” que incidem de forma produtiva nos leitores/consumidores levou-
me a problematizar enunciados relacionados ao aborto em textos de
reportagens de jornais.

Diante disso, realizei o movimento de seleção do material de análise,


partindo do entendimento de que os jornais escolhidos – Zero Hora (Porto
Alegre/RS) e Folha de São Paulo (São Paulo/SP) – abordam discussões
presentes também em reportagens de outros jornais. Além disso, a escolha
desses jornais deveu-se ao fato de que eles abrangem diferentes áreas de
circulação (estadual e nacional); são produzidos em estados diferentes e, por
isso, têm características próprias; lideram o mercado dentro do seu
segmento; têm publicações diárias; e suas reportagens estão disponíveis nas
respectivas páginas da Internet, o que aumenta a divulgação e mantém a
possibilidade de acesso a edições anteriores – disponíveis inclusive para não-
assinantes. O jornal Zero Hora é editado pelo grupo RBS e caracteriza-se
pela grande circulação na região sul do país, principalmente na capital
gaúcha (Porto Alegre); já o jornal Folha de São Paulo é editado pela Empresa
Folha da Manhã S. A. e caracteriza-se pela ampla circulação, uma vez que
atua em nível nacional.

Segundo informações presentes na página online do jornal Folha de


São Paulo referentes à caracterização do leitor e à história do jornal, a
empresa Folha da Manhã foi fundada em 1921, com o jornal Folha da Noite.
Em 1925, foi criado o jornal Folha da Manhã e, em 1949, o jornal Folha da
Tarde. Através da fusão desses três jornais, surgiu o jornal Folha de São
Paulo, em 1960. Este possui o formato standard, ou seja, tem 65 cm de
57
altura e 30 cm de largura, diferenciando-se do formato tabloide do jornal
Zero Hora, que tem 35 de altura e 30 de largura. Folha de São Paulo é o
jornal mais vendido do país. No site da Associação Nacional de Jornais20
(ANJ), consta a média diária de circulação dos jornais brasileiros, com uma
taxa referente ao período entre janeiro e dezembro de cada ano. As médias
mais recentes referem-se ao ano de 2009. Nesse ano, o jornal Folha de São
Paulo ocupou o primeiro lugar entre os maiores jornais do Brasil, com
circulação média de 295.558 exemplares por dia, enquanto o jornal Zero
Hora (primeiro jornal da região sul) ocupou o sétimo lugar, com circulação
média de 183.521 exemplares por dia.

A pesquisa realizada no ano de 2000 pelo Datafolha (instituto de


pesquisa de opinião pública e de mercado) constatou que o leitor típico do
jornal Folha de São Paulo tem em média 40 anos e um alto padrão de renda
e de escolaridade – 47% cursaram uma faculdade e 13% realizaram uma
pós-graduação (MOTA, 2000). A maioria possui renda individual de até 15
salários mínimos, e 33% têm renda familiar superior a 30 salários mínimos.
O jornal é consumido principalmente pelas classes A e B. A proporção entre
leitores homens e mulheres não difere, mas 52% deles são casados. Na
pesquisa anterior, realizada em 1988, 28% dos leitores tinham mais de 50
anos; já em 2000, esse número de leitores, no Estado de São Paulo,
aumentou para 41%. O crescimento dessa fatia em 12 anos foi de 46%; em
contrapartida, houve a diminuição em 50% na participação dos jovens de até
29 anos. Procurei informações sobre a história e o perfil do leitor do jornal
Zero Hora, mas não estão divulgados no respectivo site.

Na tentativa de conhecer os enunciados – jurídicos, religiosos,


biológicos, médico-científicos... – que se articulam, configurando a
autorização ou não do aborto, selecionei para análise as edições publicadas
no período de 2007 até 2012. Tentei limitar-me a problematizar
circunstâncias desse período nesses jornais, sem a pretensão de fazer um
exercício comparativo com outros momentos num intervalo muito
expandido, em razão da contingência dos acontecimentos que levam a

20 Disponível em:< http://www.anj.org.br/dia>.


58
modificações nas maneiras de lidar com o abortamento, o que demandaria
outro prazo para conclusão da pesquisa. Restou o desejo do desenvolvimento
desse estudo para buscar entender: como, em outros tempos, a mídia
retratava o abortamento e como este era discutido, a que era associado,
quais as modificações ocorridas, quando passou a ser notícia e por quê?

Partir do ano de 2007 deveu-se à maior frequência de reportagens com


discussões sobre a temática do aborto e da anencefalia. Um caso importante
foi o de Marcela de Jesus Galante Ferreira, que na época gerou embates em
torno de seu reconhecimento como anencéfala por alguns profissionais da
saúde. Esse caso, ao mesmo tempo, tornou-se um símbolo antiaborto, já
que, por definição, está previsto que os fetos anencéfalos morrem poucas
horas após o nascimento, e ela viveu um ano e oito meses, o que promoveu a
divulgação, nas reportagens, de erro na constatação do diagnóstico. Afinal,
como ela apresentava “cerebelo, tronco cerebral intacto e parte do lobo
temporal”, não se enquadraria na descrição da anencefalia21, mas teria uma
má-formação rara, chamada merocrania, que foi confundida com
anencefalia22. Essas discussões geraram outras questões, que foram
aparecendo em reportagens subsequentes, trazendo discursos e
posicionamentos religiosos, médicos e jurídicos em relação a diversas
circunstâncias ligadas ao aborto e à anencefalia.

Assim, proponho como recorte temporal para análise dos jornais o


período de 2007 a 2012. Nas reportagens, examino os enunciados que
funcionam como condição de possibilidade para a naturalização de

21Conforme a reportagem intitulada Mãe diz que filha anencéfala foi "presente divino"; médicos acusam erro
de diagnóstico (Folha SP, 26/08/2008), “estima-se que a Justiça brasileira já tenha permitido, nos
últimos 15 anos, ao menos 5.000 abortos de fetos anencefálicos [ou anencéfalos]”. Na reportagem,
consta que anencéfalo “é aquele de má-formação por defeito do fechamento do tubo neural durante a
gestação, que não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, o que o leva à morte intra-uterina em
65% dos casos, ou a uma sobrevida de, no máximo, algumas horas após o parto”. Ver página 10 do
anexo 1.
22Segundo a reportagem intitulada Bebê teve má-formação rara confundida com anencefalia, dizem médicos
(ZH, 28/08/2008), “ela tinha um defeito menos grave na formação do crânio e o resquício de cérebro
presente, ao contrário dos anencéfalos, que não têm nada, é coberto com uma membrana chamada
cerebrovasculosa. (...) há apenas dez casos descritos de merocrania na literatura médica. E que se trata
de um diagnóstico que também caracteriza a morte cerebral — apesar de, por causa da presença dessa
membrana, o feto poder ter uma sobrevida vegetativa”. Ver página 12 do anexo 1.
59
determinadas “verdades” associadas ao aborto, partindo de alguns
questionamentos: que discursos têm validado e justificado as “verdades”
difundidas nos jornais? Quem fala e de que lugar fala? Que posições de
sujeito aparecem em tais práticas discursivas?

Essas perguntas parecem formar um labirinto sem centro e sem


periferia. Infinitamente aberto, dispersando-me em seus meandros, conforme
nos fala Larrosa, o labirinto é o “lugar do estudo (…) um espaço de
pluralização, uma máquina de desestabilização e dispersão, que desencadeia
um movimento de desordem” (LARROSA, 2003b, p.31). Entendo essas
interrogações como alternativas de partida a serem usadas como estratégias
para acessar alguns fios da rede discursiva a partir da qual se fala,
posicionando e regulando o aborto. A análise dos discursos (presentes nas
reportagens) pode nos levar a conhecer e entender o funcionamento da rede
de saber/poder que cria condições à existência de um conjunto de
enunciados implicados na formação de nossas subjetividades (FISCHER,
2001). Tais discursos, como já referi, torna-nos sujeitos de “verdades”, das
quais nos apropriamos, proferindo-as e tornando-as também “nossas”
naturalmente (FISCHER, 2004). Assim, ao apoderarmo-nos das “verdades” e
proferi-las, atuamos no processo de normalização e instituição de categorias
que passam a conduzir nossas ações.

Sobre a reportagem, compreendo que ela não se limita à descrição de


uma suposta “realidade” ao público leitor, sendo uma composição regida
pela articulação de “verdades”, as quais vêm de diversas fontes de
informação, dos repórteres e dos editores dos jornais, envolvendo sistemas
de avaliação e enfoque (próprios à editoração dos jornais) e, ainda, a questão
do espaço a ser partilhado e dividido com anúncios publicitários e outras
matérias (ADGHIRNI, 2002). Isso faz da reportagem um elemento discursivo
composto por “verdades” de vários campos de saber/poder (como os
discursos médicos, científicos, religiosos, jurídicos...), os quais se
correlacionam, legitimando as discussões sobre os temas abordados. A
divulgação de uma reportagem configura a veiculação da articulação de
“verdades” vindas de vários campos discursivos, conformando um texto que,

60
ao trazer tais “verdades” (que informam ou indicam riscos e prevenções,
propõem tendências, insistem ou repetem argumentações prescritivas,
enfatizam práticas), pode operar como uma estratégia de saber/poder
implicada na constituição de formas de pensamento, na prescrição de
hábitos e de comportamentos em relação à promoção da saúde, da beleza e
da longevidade, por exemplo.

Em relação à seleção das reportagens23, primeiramente, olhei-as de


modo geral, independentemente da seção ou caderno que traziam questões
sobre o aborto. Fiz essa opção pelo fato de o número de reportagens sobre
esse tema ser relativamente reduzido e elas se encontrarem distribuídas no
jornal conforme a situação em que ocorreu o aborto. Tal situação implica
uma classificação do aborto e faz com que sua apresentação esteja presente
em seções diversificadas – relacionadas com saúde, ciência, política, religião,
polícia, justiça, tecnologia e medicina, por exemplo. Essa distribuição do
tema em diferentes seções proporcionou-me um olhar mais abrangente sobre
as questões que atravessam as discussões do aborto ou que a elas se
articulam.

De acordo com Rose, se estivermos vivendo no centro ou no caminho


de uma transformação devemos prestar a atenção não apenas para uma
única causa, mas tentar “mapear o modo pelo qual múltiplos deslocamentos
permitem que algo novo emerja – algo que não se estabiliza, mas que
continua mudando” (ROSE, 2011a, p.13). A partir dessa noção, com base
nas circunstâncias relacionadas ao aborto divulgadas nas reportagens,
tentei mapear as temáticas que se articulam e configuram o panorama
contemporâneo envolvendo as práticas de aborto legal e ilegal. A intenção,
portanto, foi mapear as circunstâncias do aborto para fazer uma análise do

23 Reportagem pode ser considerada como uma ação (“atividade jornalística que basicamente consiste
em adquirir informações sobre determinado assunto ou acontecimento para transformá-las em
noticiário”) ou o resultado dessa ação, “que é veiculado por órgãos da imprensa (escrito, filmado,
televisionado)” (HOUAISS apud ROCHA, 2005, p.31). Uma reportagem, enquanto resultado da ação
jornalística (produto veiculado) também é chamada de matéria jornalística (ROCHA, 2005, p.31).
Outros conceitos ligados ao Jornalismo – artigo, nota informativa, lead (as primeiras duas linhas de
uma notícia), notícia, etc. – também poderiam ser aqui utilizados (idem, ibidem). Tal como Rocha,
neste estudo, apesar das diferenças existentes entre elas, utilizarei particularmente (e de forma
indistinta) as expressões “reportagem”, “matéria” ou “notícia” como o resultado da ação do jornalista.
61
presente remetendo assim a noção de história do presente. Para demonstrar
esses trajetos, tracei o esquema a seguir:

Materiais analisados de 2007 até 2012

Violência sexual: aborto por estupro.

Jornal Zero Hora e Folha de São Paulo

Clandestinidade das práticas do aborto e a rede


implicada nesse “crime”.

Temáticas relativas ao aborto


encontradas nas reportagens –
“categorias” analíticas Mulheres grávidas: pobres e ricas –
possibilidades e circunstâncias de abortamento.

Drogadição: os “papéis” da mulher e o


abortamento.

Ao conhecer as “categorias”/instâncias
articuladas ao tema aborto, busquei
conhecer as estratégias biopolíticas de Tecnologias biomédicas e as possibilidades de
governo das condutas e investigar como intervenção, utilização e produção do viver e do
elas operavam nessas instâncias, a fim de morrer do embrião: formas de maternidade e
compreender os diversos níveis de aborto.
atuação do biopoder e dar-lhes
visibilidade.
Anencefalia: possibilidades e justificativas para:
interrupção da gravidez ou “aborto”; doação de
órgãos e utilização dos tecidos do anencéfalo na
promoção do viver.
Para isso, problematizei:
- algumas transformações que vêm
ocorrendo em relação às formas como se
lida com práticas ligadas ao aborto e à Constituição e aprovação da lei que autoriza a
vida/morte e como se fala delas; cirurgia de antecipação do parto ou “aborto”
- como essas noções vêm sendo como prática terapêutica na prevenção dos
modificadas/construídas; riscos causados pelo feto anencefálico à mulher.
- as implicações dessas noções no governo
dos corpos para a vitalidade e na produção
e determinação de “verdades” que
constituem as subjetividades em relação ao
aborto e ao viver/morrer;
- a possibilidade de relação entre essas
formas de governo e as noções eugênicas.

62
Para pensar e analisar as práticas implicadas na constituição de
determinadas noções e sentidos atribuídos ao corpo e à vida/morte
difundidos pela mídia impressa na sociedade brasileira, utilizei como
ferramentas as contribuições e os olhares de autores como: Michel Foucault,
Hubert Dreyfus, Paul Rabinow, Rosa Fischer, Paula Sibilia, Jorge Larrosa,
Fabíola Rohden, Nikolas Rose, Luís H. S. Santos, Luis Castiel, Anthony
Giddens, Dagmar Meyer, Deborah Lupton, Nancy L. Stepan e Lucila
Scavone, Zygmunt Bauman, entre outros.

Assim, este estudo numa perspectiva foucaultiana utiliza-se de


autores assentados em estudos culturalistas em suas vertentes pós-
estruturalistas. A esse respeito, reconhecendo que Foucault “nunca quis ser
um modelo, nem fundador de uma escola, mas que suas contribuições
fossem tomadas como ferramentas” (VEIGA-NETO, 2003, p.19), e tomando
suas palavras – “eu não vejo quem possa ser mais anti-estruturalista do que
eu” (FOUCAULT, 2002b, p.05) –, faço uso de seus estudos, nesta proposta,
como de um filósofo pós-estruturalista que recusa as noções convencionais
de método. Assim, considero que, a rigor, não existe método foucaultiano,
mas soluções pontuais, ou seja, que o entendimento de método admitido
seja o de “certa forma de interrogação e um conjunto de estratégias
analíticas de descrição” (VEIGA-NETO, 2003, p.20),

[...] algo como um conjunto de procedimentos de investigação e


análise quase prazerosos, sem maiores preocupações com
regras práticas aplicáveis e problemas técnicos, concretos.
Seja como for, pode-se compreender que o método em
Foucault tem também o sentido de ‘determinadas formas de
análise muito específicas’, algo que funciona sempre como
uma vigilância epistemológica que tem, no fundo, uma
teorização subjacente (idem, ibidem).

Outro ponto que considero relevante mencionar nesta seção diz


respeito à escassez de pesquisas sobre a temática do aborto nessa
perspectiva. Empreendi uma busca em várias bibliotecas, organizações e
departamentos de pesquisa e não encontrei publicações que fossem
exatamente na direção deste estudo.

63
Entre os locais pesquisados, estão o Instituto de Bioética, Direitos
Humanos e Gênero24 (Anis), a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul25
(Ajuris) e Ipas26. Também pesquisei publicações de diversas áreas do
conhecimento, como, por exemplo, educação, direito, comunicação,
sociologia, psicologia, medicina, biologia, enfermagem e antropologia,
acessadas por diversas bibliotecas eletrônicas: Scientific Electronic Library
Online (Scielo – biblioteca eletrônica que abrange uma coleção selecionada
de periódicos científicos brasileiros), Portal Domínio Público (biblioteca
digital de amplo acesso às obras), banco de teses do portal da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES - agência de
fomento à pesquisa que atua em todos os estados do país), Sistema de
Automação de Bibliotecas da Universidade (SABi/UFRGS) e Biblioteca
Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), entre outras.

24Organização não-governamental voltada para a pesquisa, assessoramento e capacitação em bioética


na América Latina, com sede em Brasília.
25 Fundada em 11 de agosto de 1944, congregando magistrados de todos os ramos do Poder Judiciário
- Justiças Estadual, Federal, Trabalhista e Militar.
26Ipas não é uma sigla, trata-se do nome da instituição. Organização não-governamental que atua em
parceria com Secretarias de Saúde e Associações Médicas. Trabalha com os objetivos de reduzir o
número de mortes e danos físicos associados a abortamentos; melhorar as condições de acesso a
serviços de saúde associados à reprodução, inclusive aos serviços de abortamento legal em condições
adequadas. Integrou o Grupo Técnico do Ministério da Saúde que elaborou a Norma Técnica de
Atenção Humanizada ao Abortamento em 2004.
64
2.3. Das ressignificações do poder pasto ral: o governo dos
indivíduos

Como seria possível governar, sem se conhecer aquilo a que se


governa, aqueles a quem governa e os meios pelos quais se
governam os homens e as coisas? (FONSECA, 2000, p.219).

Considerando que as formas de governo dos indivíduos, dos seus


corpos e vida/morte, na contemporaneidade, ocorrem através de relações de
poder, em que os homens são “governados” uns pelos outros – “o governo
como relação entre os sujeitos e o governo como relação consigo mesmo”
(CASTRO, 2009, p.190) –, e que esse governo atua de forma a objetivar e
subjetivar o sujeito nas relações entre o sujeito e os jogos de “verdade”,
compreendo que essas relações atuam como estratégias com a finalidade de
regular e conduzir o indivíduo e a população. Aqui, portanto, como já
mencionado, alarga-se o sentido do termo governo para além do Governo
político, que se refere ao Governo de Estado, deslocando-o e articulando-o ao
entendimento de uma estratégia de governamento em que uns governam os
outros. O governo pode ser visto como “certa forma de buscar a realização de
fins sociais e políticos através da ação, de uma maneira calculada, sobre as
forças, atividades e relações dos indivíduos” da população (ROSE, 1998,
p.35). Dessa perspectiva, os modos de objetivação e subjetivação situam-se
no entrecruzamento das relações entre as formas de governo de si e as
formas de governo dos outros, e “governar consiste em conduzir condutas”
(CASTRO, 2009, p.190).

A partir dessa noção de governo, o Estado passa a ser compreendido


como uma composição de governos, em que “quem é governado são as
pessoas, são os homens, são os indivíduos ou coletividades”, e não um
Estado, um território ou uma estrutura política (FOUCAULT, 2008b, p.164).
O Estado é uma composição porque seu governo é difundido no corpo social
e atua de forma a estruturar o eventual campo de ação dos indivíduos
(idem).

Foucault diz que essa ideia de que os “homens são governáveis é uma
ideia que certamente não é grega”, nem romana, mas dos pastores hebreus,
65
pois a “ideia e a organização de um poder pastoral” é um tema encontrado
“em todo o Oriente mediterrâneo” (FOUCAULT, 2008b, p.165-166, 2003c,
p.358). Ao traçar uma genealogia das modernas formas de governar, o autor
fala das transformações e ressignificação das práticas pastorais, na
constituição do Estado moderno, para o governo dos indivíduos, agora não
mais com vistas à salvação fora deste mundo, mas neste mundo através da
saúde, da educação, do trabalho, enfim, de todas as práticas que nos fazem
ovelhas – “a se deixar governar por outros” – ou pastores – “a governar os
outros” (FOUCAULT, 2008b, p.200).

Para o autor, foi na constituição do Estado moderno que ocorreu uma


transformação nos objetivos do poder pastoral, criando-se uma série de
objetivos “mundanos” (FOUCAULT, 1995a). O objetivo do pastor deixou de
ser a salvação no outro mundo, mas neste mundo, por meio das ações dos
representantes do poder do Estado – o médico, a família, a polícia, o
professorado, etc. A salvação passou a significar saúde, bem-estar,
segurança, educação e proteção contra acidentes. O poder pastoral,
modificado e difundido no corpo social, foi ampliado na constituição do
Estado moderno, sendo a polícia uma invenção do século XVIII, não só para
assegurar a lei e a ordem, como também para garantir a higiene, a saúde, os
padrões urbanos, a manutenção e o crescimento das riquezas – enfim, para
encarregar-se da vida (FOUCAULT, 1995a, 2002b).

Além disso, em analogia com o antigo poder, em que o papel do pastor


era garantir a salvação de seu rebanho, cuidando de cada indivíduo dia após
dia, a salvação configurou-se no desenvolvimento de saberes sobre os
humanos e na incidência de estratégias direcionadas aos fenômenos da
população e do indivíduo, exercidas por diferentes instâncias, como a
medicina, a família, a psiquiatria, a educação, a segurança e os
empregadores. Tais saberes/poderes acabaram configurando e
correlacionando diversas instituições, difundindo-se no corpo social
(FOUCAULT, 1995a).

A combinação do dispositivo pastor-rebanho com o da cidade-cidadão


“dará ensejo aos Estados Modernos, em seu poder, ao mesmo tempo
66
coletivizante e individualizante” (FERREIRA, 2005, p.60). Nesse sentido,
“podemos considerar o Estado como a matriz moderna da individualização
ou uma nova forma de poder pastoral” (FOUCAULT, 1995a, p.237); a
modernidade como o resultado da combinação e do deslocamento das
práticas pastorais – em que o indivíduo se torna pastor e ovelha de si
mesmo; e a Razão de Estado como uma razão do coletivo (VEIGA-NETO,
2000). Para conhecer e governar as coletividades, a razão moderna voltou-se
para os fenômenos dos corpos-espécie e do corpo-indivíduo, constituindo
saberes sobre os corpos, as doenças, a natalidade e a mortalidade, os quais
integram campos, como o da medicina, marcados pelo saber científico,
detentor das “verdades” sobre a vida.

O médico/cientista passa a ser visto como Deus neste mundo (e a


ocupar tal posição). Desse lugar, obstinadamente encontrou-se (encontra-se)
na busca por novos saberes e desenvolvimento de pesquisas científicas cujos
resultados sejam eficazes para a “salvação”, neste mundo, por meio da cura
ou da promoção e prolongamento da vida. Tal posição, muitas vezes,
interdita e controla a possibilidade de a pessoa decidir sobre as ações
relacionadas com seu próprio corpo, sua vida e sua morte. Contudo, no
controle e regulamentação do corpo e da vida, hoje atuam vozes de muitos
representantes “divinos” – os médicos, os religiosos, o judiciário –,
prescrevendo e legislando soberanamente.

A articulação das “verdades” que circulam no corpo social, proferidas


pelas vozes soberanas, conforma e legitima as práticas exercidas
institucionalmente, governando “naturalmente” a vida dos sujeitos, suas
decisões, escolhas, comportamentos e ações, em analogia com o governo da
vida dos indivíduos pela tecnologia do poder pastoral cristão, em que o
cuidado religioso atinge cada ovelha e a totalidade do rebanho e “de todas as
suas ações” (FOUCAULT, 2003c, p.367). As estratégias de
governamentalidade têm exercido um poder ao mesmo tempo totalizante e
individualizante, no qual a regulação do viver está ligada à criação e ao
controle dos desejos, das necessidades, do pensar e sentir de cada indivíduo
– a partir da sujeição ou tomada de “consciência” de “verdades” soberanas

67
que possibilitam a condução das suas condutas (CANDIOTTO, 2010;
FOUCAULT, 2003c).

No poder pastoral, a direção da “consciência” pela “verdade” constitui


um laço moral permanente relativo à vida e aos atos que se estabelece entre
o pastor e a ovelha que se deixa “conduzir a cada instante” – pela
“obediência total, o conhecimento de si e a confissão a um outro”
(FOUCAULT, 2003c, p.369). Para além da obediência religiosa, a obediência
constitui um estado permanente de submissão às “verdades” inquestionáveis
e não é necessariamente “a melhor escolha” feita racionalmente para se
alcançar um fim (FOUCAULT, 2003c, p.367). Assim, falar de governo dos
corpos e das vidas pode vir a dar a alternativa de não aceitar tudo, recusar.
Isso implica falar das lutas travadas dentro de um jogo de poder, ou seja, ao
sermos governados, “aquilo que nos é imposto nos dá o direito de não aceitá-
lo” (GROS, 2010, p.20). Isso constitui um meio de pensar no direito dos
indivíduos (ou dos governados) como uma relação de resistência, ligada à
“idéia de liberdade, mas no sentido das liberdades práticas, no sentido dos
processos de libertação” das formas de autogoverno que o poder pode nos
levar a adotar (idem, ibidem). Disso decorrem indagações sobre do que
precisamos nos libertar. Se, por um lado, existem os mecanismos do
biopoder em funcionamento (orientando e dirigindo a vida dos indivíduos),
por outro, há possibilidades de resistência – seja como capacidade de revolta
contra opressões, denúncia sobre o intolerável, condenação do que violenta a
vida ou invenção de “novas formas de vida, de [...] estilizações inéditas da
existência” (GROS, 2010, p.20) –, o que cria condições para a vida tornar-se
“sempre resistência e criação ao mesmo tempo” (idem, ibidem).

Estudos que tomam a governamentalidade – “encontro entre as


técnicas de dominação exercidas sobre os outros e as técnicas de si”
(FOUCAULT apud CASTRO, 2006, p.76) – como ferramenta de análise podem
gerar discussões sobre a relação consigo mesmo e elementos para pensar a
dimensão ética das maneiras de governar. A respeito da ética, Foucault
remete à modernidade dizendo:

68
[...] me pergunto se não se pode considerar a modernidade
mais como uma atitude que como um período da história. Com
atitude quero dizer um modo de relação a respeito da
atualidade, uma eleição voluntária que fazem alguns; enfim,
uma maneira de pensar e de sentir, também uma maneira de
construir e conduzir-se que marca uma pertença e por sua vez
se apresenta como uma tarefa. Um pouco, sem dúvida o que
os gregos chamavam de éthos (FOUCAULT apud CASTRO,
2006, p.76).

A modernidade, entendida como atitude ética, é “uma crítica que adota


a forma prática da superação possível do limite”, o que a faz uma crítica
arqueológica em seu método, ao ocupar-se “dos discursos que articulam o
que pensamos, dizemos e fazemos como acontecimentos históricos”, e
genealógica em sua finalidade, ao buscar “deduzir, a partir da contingência
histórica que nos tem feito ser o que somos, a possibilidade de não ser, fazer
ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos” (CASTRO, 2006, p.76-77).
Trata-se, portanto, do entendimento de ética como uma crítica, de um
trabalho de nós sobre nós mesmos. Esse seria o exercício da liberdade em
busca de “transformações parciais e não nas promessas de um homem novo”
(idem, p.77).

69
2 . 4 . Vida como objeto e finalidade para a potencialização e
manutenção dos governos

Foucault, ao falar da gênese do “poder sobre a vida”, busca mostrar as


“formas de experiência e de racionalidade a partir das quais se organizou no
Ocidente” essa modalidade de poder cuja emergência se deu no século XVIII
por uma estratégia geral de poder, apresentada como o esboço de uma
“história das tecnologias de segurança” e de governamentalidade
(FOUCAULT, 2008b, p.496).

A criação ou o entendimento da existência de agrupamentos humanos


que têm características próprias com determinados interesses individuais
que se organizam num coletivo, numa população, cria condições para a
governamentalidade do Estado.

Conforme Rose (1998, p.40), “procedimentos de motivação, desde


obrigações morais até sistemas de pagamento, dirigem a conduta das
crianças, trabalhadores e soldados para certos fins”. Nesse sentido, as
tecnologias estabelecem-se “à medida que as redes se formam, que os
mecanismos de transmissão, as traduções e as conexões conectam as
aspirações políticas com modos de ação sobre as pessoas” (idem, ibidem).
Essas tecnologias envolvem

[...] a organização calculada de forças e capacidades humanas,


juntamente com outras forças (naturais, biológicas,
mecânicas) e artefatos (máquinas, armas) em redes
operacionais de poder [e] têm tido consequências radicais para
a vida econômica, para a existência social e para a cultura
política (ROSE, 1998, p.40).

Nesse entendimento, as estratégias de governamento ou o governo da


alma dependem do nosso reconhecimento como um potencial modelo de
pessoa, do desconforto gerado por julgamentos normativos relativos à
distância entre aquilo que somos e aquilo que podemos nos tornar e “do
incitamento oferecido para superar essa discrepância, desde que sigamos o
conselho dos experts na administração do eu” (ROSE, 1998, p.44).

70
Os interesses coletivos, ao agregarem-se, dão força ao Estado; por isso,
é importante que sejam de seu conhecimento. Conhecer tais interesses torna
possível “dirigir para determinada região ou para uma determinada atividade
os fluxos de população” (FOUCAULT, 2002b, p.289). A população, como
objeto de governo, aparece

[...] consciente, frente ao governo, daquilo que ela quer e


inconsciente em relação àquilo que se quer que ela faça. O
interesse individual – como consciência de cada indivíduo
constituinte da população – e o interesse geral – como o
interesse da população, quaisquer que sejam os interesses e
as aspirações individuais daqueles que a compõem –
constituem o alvo e o instrumento fundamental do governo da
população (FOUCAULT, 2002b, p.289).

Foucault busca mostrar as implicações dos saberes e dos campos de


conhecimento – as teorias e os conceitos da História Natural, classificando,
ordenando, sendo aplicados e servindo como parâmetros sociais – na
emergência do conceito de população. O entendimento da população como
coleção de súditos submetidos ao soberano e à intervenção da polícia vai
sendo “substituído pela população como conjunto de fenômenos naturais”
(FOUCAULT, 2008b, p.473). A naturalidade da população e as leis de
composição de interesses no interior da população fazem dela uma
“realidade muito mais densa, espessa e natural” (idem, ibidem), interpretada
como uma “variável dependente de um certo número de fatores, que não são
todos naturais”, mas que são determinantes essenciais da taxa de população
– sistema de impostos, atividade da circulação, repartição do lucro. O
estabelecimento dessa dependência pode ser analisado de forma racional,
“de modo que a população apareça como 'naturalmente' dependente de
fatores múltiplos e que podem ser artificialmente modificados” (FOUCAULT,
1997, p.84). Esse é o início do problema da população, que aparece numa
“derivação em relação à tecnologia de 'polícia' e numa correlação com o
nascimento da reflexão econômica” (idem, ibidem).

Dessa noção, a linha de organização de uma biopolítica encontrou seu


ponto de partida com a emergência da economia política, com a introdução
do princípio limitativo da prática governamental, quando os sujeitos de

71
direito passam a constituir uma “população que um governo deve
administrar”. A biopolítica, como nova razão governamental, tem como
quadro geral o liberalismo (FOUCAULT, 2008a, p.30).

O governo, como “arte de exercer o poder na forma da economia”


(FOUCAULT, 2008b, p.127), utiliza-se do liberalismo econômico como uma
arte de governar, que é “condição de inteligibilidade da biopolítica” (idem,
p.523). Assim, a “biopolítica só pode ser concebida como 'uma biorregulação
do Estado'”, ou seja, essa regulação da vida dos indivíduos pelo Estado se dá
pelo exercício de políticas sobre a vida, as quais constituem uma forma
específica de poder – o biopoder (idem, p.520). Nesse sentido, a análise da
governamentalidade – como o conjunto das racionalidades políticas e dos
procedimentos técnicos pelos quais se dá o governo da vida – em relação à
análise do poder inscreve-se pelo “problema do biopoder”, ou seja, das
estratégias biopolíticas que articulam mecanismos disciplinares e de
segurança (FOUCAULT, 2008b, p.521).

72
2.5. Formas de gerenciamento do capital humano:
disciplinamento e as “verdades” sobre o corpo , a vida/morte e
os “desvios”

O entendimento de ser humano como uma existência política e de seu


corpo como suporte dos processos da vida biológica (nascimento,
mortalidade, saúde...) converte-o no “verdadeiro objeto do governo”
(CASTRO, 2009, p.189). Com base nas proposições de Foucault, as práticas
de poder sobre a vida, ou seja, do biopoder, deram-se através da utilização
de estratégias biopolíticas direcionadas à regulamentação da vida dos
indivíduos e ao governo das populações. Isso ocorreu com a articulação de
dois polos, os quais diziam respeito à espécie humana e ao corpo no sentido
de objetos a serem manipulados (DREYFUS e RABINOW, 1995). O primeiro
polo centrou-se no adestramento do corpo, assim como na

[...] ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no


crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua
integração em sistemas de controle eficazes e econômicos –
tudo isso assegurado por procedimentos de poder que
caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano
(FOUCAULT, 2007, p. 131).

A essa forma de poder exercida sobre os corpos, Foucault chamou de


poder disciplinar, cujo principal objetivo era produzir “um ser humano como
um ‘corpo dócil’” e também produtivo (DREYFUS e RABINOW, 1995, p. 149).
A disciplina, segundo Fonseca (2000), é capaz de normalizar, pois analisa,
decompõe os indivíduos, os lugares, o tempo. Ela “classifica os termos,
estabelece seqüências e ordenações entre eles, fixa procedimentos de
adestramento e de controle e, a partir daí, estabelece uma separação entre o
‘normal’ e o ‘anormal’” (idem, p. 227). Fonseca diz, ainda, que a norma,

[...] recobrindo a superfície que vai do orgânico (corpo) ao


biológico (espécie), recupera em seus procedimentos
mecanismos mais gerais de intervenção e de poder, como
aqueles das medidas de administração empreendidas pelo
Estado (FONSECA, 2000, p. 226).

73
A norma disciplinar consiste em tentar definir as pessoas, seus gestos
e atos a partir de um modelo que é deduzido do normal. Nesse processo, a
norma é anterior, gerando um processo de normação (idem).

Retomando a explicação que Foucault traz sobre o biopoder, o segundo


polo a que o autor se refere centrou-se no corpo-espécie, ou seja, nos
fenômenos da espécie humana, entendendo o corpo como ser vivo e suporte
dos processos biológicos da população, como os nascimentos, a mortalidade,

[...] o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com


todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos
são assumidos mediante toda uma série de intervenções e
controles reguladores: uma bio-política da população
(FOUCAULT, 2007, p. 131).

A partir do século XIX, esses dois polos passam a articular-se,


configurando um conjunto de tecnologias direcionadas à vida, com base nas
disciplinas do corpo e nas regulações da população, que normalizam o
coletivo e extraem dele a sua máxima utilidade. Em outras palavras, a união
dessas duas formas de poder caracteriza o biopoder e a nossa situação atual
(DREYFUS e RABINOW, 1995).

Partindo dessas noções, para o exercício do biopoder, faz-se necessário


que cada indivíduo ingresse no disciplinamento presente numa sociedade de
normalização, na qual se cruzam “a norma da disciplina e a norma da
regulamentação” (FOUCAULT, 2002a, p.302). A norma “é o que pode tanto
se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que
se quer regulamentar” (idem, ibidem), ou seja, através da disciplina, são
criados modelos, prescrições ou normas de conformação dos gestos, atos e
condutas por um processo relacional de normação que demarca, determina,
identifica e classifica o normal e o anormal (FONSECA, 2000; FOUCAULT,
2008b). Através da regulamentação ou da instituição dessa norma criada
pela disciplina, isto é, pelo processo de normação que se dá pela dedução da
norma em relação ao normal, são criadas práticas preventivas e de
segurança que visam a reduzir ou minimizar os índices e as taxas
desfavoráveis das anormalidades, das exceções em relação à forma da
espécie e da perturbação que o anormal traz às regularidades jurídicas
74
(FONSECA, 2000). Em outras palavras, no sistema de biopoder, para se
produzir uma norma, as biopolíticas vão avaliar as ocorrências dos
fenômenos dos quais serão extraídas as taxas ou os números estatísticos
que compõem a curva normal geral, pelos conhecimentos obtidos tanto do
indivíduo quanto da população; portanto, a norma é um processo posterior à
definição do normal, porque ela é deduzida do normal, e “é a partir desse
estudo das normalidades que a norma se fixa e desempenha seu papel
operatório” (FOUCAULT, 2008b, p.83). O poder disciplinar, no sentido de
controlar as eventualidades próprias dos processos biológicos, articulado ao
biopoder e ao racismo, sustentou a “assunção do biológico, da procriação, da
hereditariedade; assunção também da doença, dos acidentes” (FOUCAULT,
2002a, p.309).

Para que as estratégias do biopoder funcionem, é necessário que cada


indivíduo ingresse no disciplinamento e admita a “verdade” do discurso, que
vai atuar de forma a determinar e normalizar seu
comportamento/pensamento. Os dispositivos disciplinares utilizam-se da
normação, que parte da norma estabelecida pela distinção definida entre o
normal e o anormal, enquanto os dispositivos de segurança utilizam-se da
normalização, que parte das taxas definidas pela curva de normalidade
estabelecida a partir da ocorrência de fenômenos e de comportamentos na
população.

Tais entendimentos tornam possível agrupar os seres humanos em


função da noção de corpo-espécie, a qual torna a compreensão de corpo
ligada à ideia de mais uma vida; a função do indivíduo é garantir
produtivamente a manutenção dos processos do viver, como a natalidade, a
mortalidade, o nível de saúde e a duração da vida. O corpo e o viver/morrer
do indivíduo passam a ser utilizados como ferramentas/objetos para o
desenvolvimento de estratégias que os tornam alvos de práticas de
intervenção e de regulação dos fenômenos que ocorrem na população. Se,
por um lado, os mecanismos de dominação podem levar à submissão, por
outro, mostrar tais funcionamentos e efeitos pode gerar possibilidades para
outras maneiras de conduzir o viver, como estratégias de resistência aos

75
investimentos e/ou tentativas de governamento. Afinal, deixando-se de
conduzir o viver segundo a exclusividade das “verdades” determinadas por
estratégias biopolíticas de governo – da área médica, publicitária, jurídica,
mercadológica, religiosa, por exemplo –, penso que seja possível fazer
prevalecer, ao governo dos outros, o governo de si por decisões e escolhas
refletidas – uma ética própria (CANDIOTTO, 2010).

Acredito que minha proposta de análise venha a inserir-se nesse ponto


de articulação das discussões. Analisar as “verdades” produzidas
discursivamente talvez possibilite perceber o funcionamento de biopolíticas
como estratégias de governamentalidade – direcionadas à regulamentação e
ao controle da saúde, das condutas e dos cuidados que se estabelecem
numa relação econômico-administrativa de pretensa “autonomia” e
“liberdade” dos indivíduos e da população – num contexto neoliberal. Num
tempo marcado pela globalização e por políticas neoliberais, cada um deve
constituir-se como um ponto de passagem e de intensificação do fluxo de
estratégias biopolíticas que visam a transformar traços humanos em proveito
das forças políticas econômicas que legislam e regulam a população (GROS,
2010).

Na sequência, discuto de forma breve a história do aborto, buscando


apontar como vem ocorrendo o governo dos corpos femininos e como a vida
tem sido tomada como um objeto de saber/poder definidor do papel social e
político da reprodução nos diversos períodos e espaços. Finalizo o capítulo
trazendo situações relacionadas ao aborto para mostrar os modos de
intervenções nesse universo hoje.

76
CAPÍTULO 3

BREVE HISTÓRIA DO ABORTO: DEIXAR


V I V E R O U F A Z E R M O R R E R 27?

A ED U C AÇ Ã O É O M O DO CO M O A S P E S SO A S , A S I N S TI T UI Ç Õ E S E

A S SO C I ED A DE S R E S P O N DE M À CH E G AD A D AQ U EL E S Q UE N A S C EM .

A ED U C AÇ Ã O É A F O R M A C OM Q U E O M U N DO R EC E B E O S Q UE N A SC EM

(LARROSA , 2003 A , P .188).

A S P E S SO A S S A BEM A QU I L O Q U E F A Z E M ; F R EQ Ü EN T EM EN TE S A BE M P O R Q U E

F AZ EM O Q UE F AZ EM ; M AS O Q U E I G N OR A M É O EF EI T O P R O D U Z I DO P OR

AQ UI L O Q U E F A Z EM (DREYFUS E RABINOW, 1995, P .206).

27Escolhi esta imagem da mulher grávida e do feto porque as discussões neste capítulo se referem às
práticas dirigidas a eles.
77
CAPÍTULO 3

BREVE HISTÓRIA DO ABORTO: UM CRIME?

Neste capítulo, trago brevemente a história do aborto, na tentativa de mostrar


algumas das modificações ocorridas nas experiências com tal prática ao longo do
tempo. A partir daí, busco discutir o governo dos corpos femininos com fins
econômicos da sociedade e mostrar que esta, tomando a vida como um objeto de
saber/poder, define o papel social e político da reprodução. Abordo essas questões
para retomar ou tornar mais nítidos alguns dos argumentos/discursos
normalizadores que têm conduzido o viver e as estratégias que eles podem
desencadear. Finalizo a discussão deste capítulo apontando situações do
abortamento relacionadas ao panorama atual, em que a legalidade e a ilegalidade do
aborto se confrontam. Tais movimentos serão mais bem explorados ao longo dos
próximos capítulos.

3.1. Da busca pelo controle reprodutivo: contr acepção e aborto


como problemas políticos

[Ao] escutar a história, em vez de acreditar na metafísica, o


que é que [se] aprende? Que atrás das coisas há “algo
inteiramente diferente”: não seu segredo essencial e sem data,
mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência
foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram
estranhas (FOUCAULT, 2002b p.17-18).

Utilizei-me dessa passagem da discussão de Foucault sobre a


importância da abordagem histórica, com o intuito de enfatizar a
necessidade de conhecer o passado de algumas “verdades” relativas à
temática do aborto para que se possam entender alguns pontos do presente
e possibilitar outras formas de pensar ou conduzir o futuro. A pretensão foi
a de “visitar” outros momentos para conhecer e entender as modificações
ocorridas nas experiências relativas ao aborto – como aparecia, era discutido
e a que era associado – em relação aos acontecimentos de hoje.

78
Dessa proposição, tomo as palavras de Stepan (2005, p.23) para falar
da importância da gestão da vida da mulher na constituição da sociedade. A
autora comenta que, na conformação dos “papéis reprodutivos dos homens e
mulheres”, aparece como responsabilidade coletiva o papel social da mulher,
o qual, em seu aspecto político e normativo, passa a ser definido pela
reprodução. Assim, ao falar-se da preocupação com a constituição e gestão
da população, aparece no foco da discussão a sexualidade como elemento
principal da reprodução humana, ou seja, a qualidade dessa reprodução, em
que atuaram e atuam a ciência e as políticas sociais. Para Foucault, “na
junção entre o corpo e a população, o sexo tornou-se o alvo central de um
poder que se organiza em torno da gestão da vida, mais do que da ameaça de
morte” (FOUCAULT, 2007, p.160).

Tendo em vista a reprodução como o papel social das mulheres,


diversas políticas concentraram-se nelas para controlar os casamentos,
especialmente, entre anormais e degenerados, criando-se uma forma
especial de eugenia28: a eugenia matrimonial, que estabelecia normas
científico-hereditárias e controles da reprodução através dos exames médicos
e dos certificados pré-nupciais (STEPAN, 2005).

No casamento, homens e mulheres saudáveis aparecem como


responsáveis pelo povoamento da pátria e a sobrevivência da espécie; nesses
moldes, a fecundidade é tida como uma grande benção da natureza, e a
mulher, criada para ser mãe, perpetuará a geração, constituirá o equilíbrio
das “raças” e o progresso da civilização (ROHDEN, 2003). Assim, a benção
ou a maldição passam a ser identificadas no parentesco, no sangue, o que
faz do sangue e da sexualidade elementos capazes de acionar as estratégias
de controle dos nascimentos. Estas se dão de diferentes maneiras, através

28Eugenia (do grego eugen-s, “bem nascidos”, “boa geração”) foi uma palavra inventada por Francis
Galton em 1883, cientista britânico, geógrafo e “precursor da estatística”, primo e adepto de Charles
Darwin (SIBILIA, 2003). Escreveu o livro Heredity Genius em 1869. A partir de estudos estatísticos e
genealógicos, pretendia aperfeiçoar a espécie pela seleção dos cruzamentos, a fim de criar um ser
“superior” (idem). Em relação à diversidade, promoveu a detecção dos anormais pelo uso de padrões
da distribuição definidos estatisticamente como norma, transformando, então, a eugenia em
movimento social e científico. Retornarei mais detidamente à discussão da eugenia no seguimento do
estudo.
79
da articulação da preocupação com o sangue e da gestão da sexualidade na
composição da população (FOUCAULT, 2007). O sangue coloca-se ao “lado
da lei, da morte, da transgressão, do simbólico e da soberania”, e a
sexualidade, ao lado “da norma, do saber, da vida, do sentido, das
disciplinas e das regulações” (FOUCAULT, 2007, p.161; CASTRO, 2009,
p.58).

Conforme Fonseca (2003), o dispositivo da sexualidade constituiu-se e


operou a partir do desenvolvimento da confissão, uma tecnologia específica
de poder. Com ela, foi possível articular “os elementos essenciais ao
biopoder, como o corpo, os discursos, o saber e o poder” (idem, p.91).

O que estimula o indivíduo a confessar é a ideia de que a confissão o


levará ao autoconhecimento; assim, a vontade de saber e o “desejo de
conhecer a verdade sobre si exerce[m] sobre o indivíduo um poder que o
seduz e o faz confessar” – aos outros e a si (FONSECA, 2003, p.92). Esse
saber gerado pela confissão permite a atuação sobre o corpo daquele que
confessa, pois produz e faz funcionar estratégias de controle e
disciplinarização dos corpos, operando pelo dispositivo da sexualidade. Por
esse dispositivo, criam-se as noções de sexualidade, que, pelas estratégias de
poder direcionadas à vida do corpo, como a confissão, é “identificada em
cada indivíduo, que passa a ser sujeito dessa produção” no corpo social
(idem, p.99).

Possibilita-se, desse modo, o acesso de estratégias de biopoder à vida


do corpo e da espécie, pois são atingidos “os desejos, os pensamentos e os
atos mais sutis e também as condutas coletivas mais gerais da população”
(FONSECA, 2003, p.99). Partindo-se dessa premissa, o corpo da mulher
torna-se alvo não só de preocupações com a regulação e o controle da função
reprodutiva, mas também dos efeitos produzidos pela reprodução – efeitos
que podem intervir na saúde da mulher, do feto e nas questões políticas de
moralidade social relacionadas à manutenção de regras ou modelos de
sexualidade e noções de sexo (RIBEIRO, 2002). Para Foucault, as noções
atribuídas ao sexo são necessárias para o funcionamento da sexualidade,
isto é, o sexo é o
80
[...] elemento mais especulativo, mais ideal e igualmente mais
interior, num dispositivo de sexualidade que o poder organiza
em suas captações dos corpos, de sua materialidade, de suas
forças, suas energias, suas sensações, seus prazeres
(FOUCAULT, 2007, p.169).

A sexualidade, tomada como um dispositivo, em suas diferentes


estratégias e finalidades, “permite às técnicas de poder investirem sobre a
vida”, assim como em suas funções biológicas, condutas, sensações e
prazeres (idem, p.170). Tais investimentos disciplinam o corpo e regulam a
população, dando lugar a práticas de vigilância, controle, exame, mas
também a estimativas estatísticas, intervenções em grupos ou no corpo
social.

Através do sexo, tem-se “acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e


da espécie”, o que serve de matriz para as disciplinas e de princípio para as
regulamentações, como, por exemplo, em intervenções econômicas,
estimulando ou freando a procriação, ou, ainda, em “campanhas ideológicas
de moralização ou de responsabilização” (FOUCAULT, 2007, p.159). Tais
práticas demonstram a importância do sexo no controle e regulação pela
sexualidade para o governo do corpo e vida – objeto político.

Conforme Sohn (2008), a partir do século XX, o corpo sexuado passou


a ser objeto de cuidados mais atenciosos do que nunca. Chegou a tornar-se,
com o desenvolvimento científico da metade desse século, um desafio médico
e comercial em que práticas sexuais e discursos sobre a medicalização da
sexualidade se articulam e tornam públicas e políticas as questões da vida
privada. Para a autora, foi com o progressivo recuo do pudor, “ligado à
exigência de sedução imposta pelo casamento por amor”, que homens e
mulheres passaram a desvelar em público seus corpos para jogar com seus
trunfos pessoais (SOHN, 2008, p.109). Essa revelação e espetacularização
dos corpos tiveram uma repercussão imediata na vida privada, implicando
cuidados e intervenções para manutenção da beleza e saúde corporal.

A partir de 1900, a sexualidade é, além de sugerida, apresentada em


cenas de filmes e cartazes, práticas publicitárias que contribuíram para a
dessacralização do corpo feminino e à sugestão do amor físico, remetendo à

81
comercialização do corpo sexuado e ao direito à sexualidade, que se afirma
em 1960 (SOHN, 2008). De acordo com Perrot (2003), as revistas feministas
exerceram significativo papel na difusão de novos comportamentos. Desde
1900, objetos variados, tais como automóveis e alimentos, são associados ao
“encanto” da mulher, e, “ainda hoje, o corpo feminino, silencioso e
dissecado, continua sendo o principal suporte da publicidade” (PERROT,
2003, p.15).

No final do século XIX, na Alemanha e na Inglaterra, nasce a primeira


ciência sexual, que atribui a cada sexo um papel exato – “as mulheres, mais
que os homens, focalizam os discursos científicos em nome da função
materna” (SOHN, 2008, p.119). Os discursos sexológicos contribuíram para
a legitimação do prazer, para tirar a sexualidade do silêncio e da vergonha,
porém o prazer sexual da mulher chocava-se com a angústia e o medo da
gravidez indesejada.

No quadro de medicalização da sociedade, gerida por especialistas de


diferentes áreas, a partir de 1973, torna-se lícito falar publicamente de
sexualidade e de desentendimento sexual, que abrangem desde
representações sexuais até a reprodução ou o controle da sexualidade. A
maternidade torna as mulheres controladas desde muito cedo, em uma rede
de prescrições médicas. Afinal, o corpo feminino é, em primeiro lugar, um
corpo grávido que se deve “conduzir até o parto seguro e, depois, colocar ao
serviço do bebê” (SOHN, 2008, p.126).

Como no começo do século XX a preocupação estava centrada na


proteção materna e infantil, os médicos tinham “o dever de combater o
aborto e impor o aleitamento”, assim como de tratar a infertilidade e vencer a
esterilidade pela sujeição dos corpos a experimentações que possibilitaram
gravidezes múltiplas e patológicas (SOHN, 2008, p.126).

Desde a legalização da pílula, nos EUA em 1957, na França em 1967 e


no Brasil em 1962, as mulheres têm passado por um acompanhamento e
uma inspeção médica rigorosas, substituindo o acompanhamento ocasional
obstétrico por uma gestão que dura toda a vida, da contracepção ao aborto,
às ecografias e aos tratamentos hormonais (SOHN, 2008). Além disso, o
82
desejo de limitar a descendência tornou-se evidente no século XX. Por volta
de 1900, o aborto era praticado tanto por mulheres jovens “seduzidas e
abandonadas” quanto por mulheres casadas com vários filhos, que
recusavam a imprevisibilidade de novos nascimentos, mesmo que isso lhes
custasse a vida (PERROT, 2003, p.18; SOHN, 2008).

De acordo com Scavone (2004), os efeitos do feminismo, entre outros


movimentos sociais, aconteceram no Brasil posteriormente aos de países
como a França (anos 60), no final dos anos 70. No fim do regime militar, o
retorno “das exiladas políticas, que tinham vivido a experiência feminista
européia, contribuiu para impulsionar o feminismo no Brasil” (idem, p.29).
No início dos anos 80, no Brasil, a prática política do feminismo
transformou-se, de forma variada, devido às especificidades das situações
socioculturais e econômicas de cada região e época, numa “organização mais
institucionalizada”, atuando nas áreas da saúde e violência contra as
mulheres (SCAVONE, 2004, p.35). Com base em Costa, Scavone lembra que,
no Brasil, a emergência de uma problemática relativa à mulher foi
constituída por um “ativo movimento local de mulheres”, e não apenas pela
“existência de um movimento de liberação nos países centrais” (idem, p.36).

Para Stepan (2005, p.119), a ascensão do feminismo, o envolvimento


das mulheres na “força de trabalho assalariada e as subsequentes alterações
em fertilidade e natalidade” proporcionaram ao Estado o enfrentamento da
resistência das mulheres no controle de suas vidas reprodutivas, ligando as
questões de fertilidade e aborto aos debates sobre o tamanho populacional
em relação à força nacional.

Na passagem do século XIX para o XX, em vários países, houve um


“aumento no uso de contraceptivos e também na prática do aborto”
(ROHDEN, 2003, p.29). Em 1937, na França, a estimativa do número de
abortos ilegais era entre 200 mil e 500 mil por ano (STEPAN, 2005; SOHN,
2008). A falta de acesso ou um menor acesso aos contraceptivos por
mulheres de classes menos favorecidas fez do aborto uma prática de
compensação, uma rede de segurança quando o coito interrompido falhava –
o pecado de Onã, tão condenado pela Igreja (PERROT, 2003; ROHDEN,
83
2003; SOHN, 2008). Nos anos 1930, na França, um sexto dos casais não
tem filhos – “somente uma pequena fração de franceses católicos convictos,
ou vindos de ambientes modestos, mantém uma forte natalidade” (SOHN,
2008, p.136). A França foi um dos primeiros países europeus a reduzir a
natalidade pelo retardo do casamento e coito interrompido, mas também
pelo infanticídio e aborto (PERROT, 2003; THÉBAUD, 2003). O desejo de
controle reprodutivo estava relacionado ao “controle de suas próprias vidas”,
afinal, para as mulheres que trabalhavam, era importante restringir o
número de gestações e de filhos (ROHDEN, 2003, p.32). A disseminação dos
métodos contraceptivos e o recurso ao aborto tornaram-se, então, um
“mercado relativamente grande e lucrativo, particularmente no meio urbano”
(idem, ibidem).

Nessa perspectiva, o controle da natalidade e, principalmente, “o


aborto e a contracepção passam a ser discutidos não apenas em função das
consequências que representam para os indivíduos”, mas também em
relação à ameaça ao crescimento da nação, uma vez que o aborto era tido
como um crime contra a segurança do Estado, passível de pena de morte
(ROHDEN, 2003, p.29; SOHN, 2008; THÉBAUD, 2003). A partir da metade
do século XIX, período em que o controle da natalidade se propaga nas elites
e “as grandes famílias vão perdendo terreno”, ocorre a transformação do
aborto e da contracepção em um problema político (ROHDEN, 2003, p.32;
SOHN, 2008; THÉBAUD, 2003). Com a nova vida urbana e industrial, a
queda da natalidade comprometeria e colocaria em risco o capitalismo e a
soberania nacional, favorecendo o declínio da “raça”, na medida em que
“impediria o crescimento da mão-de-obra e do mercado consumidor”
(ROHDEN, 2003, p.33). Por isso, a queda na natalidade passa a ser motivo
de preocupação e incômodo para as classes dominantes e os poderes
públicos, que começam a perceber o “comportamento sexual desregulado”
como um perigo moral e biológico que colocaria em risco a própria
organização social (idem, ibidem).

84
Discursos atuais assemelham-se aos daquele período, como podemos
perceber neste excerto retirado do artigo intitulado Índice de natalidade,
publicado no site da CNBB no dia 08 de dezembro de 2009:

[...] a taxa de nascimentos no meio urbano caiu num perigoso


abismo: 1,8 filhos por mulher (2008). Isso significa que o
nosso país vai parar de crescer demograficamente. Cada censo
irá demonstrar que a população está decrescendo. Vai haver
mais mortes do que nascimentos. A lógica da manutenção da
cultura de um povo exige que cada casal tenha pelo menos
três filhos. “A herança do Senhor são os filhos” (Sl 127, 3).
Penso que essa passagem para um patamar deficitário vai
prejudicar muito o nosso país. Ficamos expostos à invasão
cultural de povos cujo índice de natalidade é superior ao
nosso. [...] Está faltando uma verdadeira educação para a vida
de família. A prova dessa deficiência está neste fato: os
nascimentos provindos de moças ingênuas, fora do casamento,
alcançar 20% em algumas regiões (ÍNDICE, 2009).

Como sugere o excerto, ainda existe certa preocupação com o índice de


natalidade relativo à manutenção dos “povos” e da percepção do país quanto
à sua potencialidade, de acordo com a composição de sua população.
Noutras épocas, essa preocupação aparecia na combinação entre a política
familista e natalista, no sentido de conservação da “raça”, que fez da família
a instituição principal da sociedade francesa, por exemplo – o remédio para
os males da nação. Por essa razão, foram tomadas medidas que a
reforçassem, tais como: “o combate ao aborto, ao divórcio e ao trabalho
feminino”, além dos incentivos às famílias consideradas grandes e privilégios
aos seus chefes, como o “auxílio- família variável em razão do número de
filhos” (ROHDEN, 2003, p.34; THÉBAUD, 2003, p.206).

Conforme Matos (2003, p.110), “ao identificar a criança como


elemento-chave para construção da sociedade”, os médicos atribuíram às
mães a responsabilidade pela mortalidade infantil e divulgavam preceitos de
higiene, hábitos e dieta para as crianças. Assim, a educação materna
submetida à tutela médica-sanitarista, à medida que aperfeiçoava física e
moralmente a mulher, pretendia torná-la um agente da higiene social a
transmitir seus conhecimentos sobre os cuidados, o bem-estar da família, os
hábitos, os prazeres permitidos/proibidos e sexualidade às filhas e às
futuras gerações. Porém, a intervenção era mais dirigida às famílias pobres,
85
pois eram julgadas como as que mais precisavam ser educadas física,
higiênica, moral e nutricionalmente (idem).

Alertado pelos médicos, o poder público mobiliza-se e intensifica a


repressão ao aborto, “por conta da vontade natalista, reforçada pela Primeira
Guerra Mundial” (1914-1918), dando origem, em 1920, à lei contra a
propaganda contraceptiva e, em 1923, contra o aborto (PERROT, 2003,
p.18). Esse discurso trazia a noção de que a reprodução não pertencia à vida
privada, mas que era de interesse nacional; com base nesse interesse, era
dever “proteger a instituição do casamento e impedir o divórcio” (ROHDEN,
2003, p.35). Foi na ideia de que ser mãe era da natureza e essência feminina
que foram ancoradas as garantias para a conservação da sociedade, o que
sinaliza a importância da ordem dos corpos como “dimensão fundamental da
ordem política” (idem, ibidem; MEYER, 2000). Com isso, as mulheres,
especialmente as mães, seriam apresentadas, ao longo dos séculos XIX e
primeira metade do século XX, em diferentes países, em momentos de crise,
como as

[...] responsáveis pela saúde física, emocional e moral do corpo


social, como esteio do lar e da família, como agentes de
purificação e regeneração racial, como educadoras e símbolos
da nação e da pátria e, em contrapartida, como o oposto a
tudo isso (MEYER, 2000, p.124).

Isso leva a perceber que o interesse não está na mulher, mas na


regulação da produtividade de um ser para a espécie, que deverá agir, ser e
sentir com essa finalidade (THÉBAUD, 2003). Nesse sentido, ser mãe coloca
em jogo “a produção de novos indivíduos para a coletividade” (ROHDEN,
2003, p.50). Assim, a gravidez como um acontecimento social que produz
bens para a sociedade, faz com que a mulher grávida tenha,
necessariamente, que “apresentar algum resultado, ou seja, o filho, mesmo
que seja morto” (ROHDEN, 2003, p.50). Nesse caso, isto é, se algo der
errado, “é preciso investigar muito bem as razões, determinando se se trata
de um crime ou de uma manifestação da loucura” (idem, ibidem).

A partir dessas noções, o aborto e o infanticídio tornam evidentes


certas “perturbações ligadas ao corpo feminino como perigosas inclusive
86
para a sociedade”, gerando estudos e a elaboração de prescrições para as
possíveis desordens e crimes causados pelas mulheres29 (ROHDEN, 2003,
p.60).

Com relação à importância das questões de desordens sociais


causadas pelas mulheres, penso ser pertinente trazer um excerto da
reportagem intitulada Mãe que jogou bebê em rio é indiciada por homicídio30
(ZH, 2007):

A Polícia Civil de Minas Gerais encerrou hoje o inquérito sobre


a morte da recém-nascida jogada num rio da região
metropolitana de Belo Horizonte. A decisão foi de pedir o
indiciamento da mãe, de 25 anos, por homicídio qualificado,
praticado por motivo fútil e torpe, e por asfixia.
A investigação concluiu que a mãe teve a intenção de matar a
filha quando a atirou nas águas poluídas do rio, no município
de Contagem. Em depoimento, a mãe alegou que achou que a
menina estava morta.
O delegado indiciou também [sua] vizinha, por co-autoria no
homicídio. Conforme o inquérito, [a vizinha] indicou à gestante
onde adquirir o chá e o comprimido que foram usados pela
mãe para provocar o aborto da criança. O relatório da
investigação policial será encaminhado à Justiça municipal
(MÃE, 2007).

Conforme o texto, a reportagem torna visível a intervenção da polícia e


do delegado, que, em nome da ordem e da segurança, determinaram o

29 Relacionado a essas questões, é pertinente mencionar uma reportagem que trouxe a discussão da
condenação à morte de mulheres infiéis no Irã e que motivou uma grande campanha internacional.
Trata-se da recusa à proposta de asilo no Brasil de uma mulher de 43 anos e mãe de dois filhos,
condenada em 2006 por ter mantido um relacionamento ilícito com dois homens. Foi sentenciada no
ano de 2006 a receber 99 chicotadas, porém seu caso foi reaberto quando a Justiça iraniana a acusou de
ter matado o marido. Inocentada desse crime, teve a pena relativa ao adultério reconsiderada e foi
sentenciada a morrer apedrejada. Após a mobilização de diversos países, o governo do Irã mudou a
sentença para morte por enforcamento. Hoje, seu caso ainda está com a sentença indefinida.
Reportagem: Condenação à morte: Irã rejeita apelo de Lula (ZH, 04/08/2010). Ver página 13 do anexo 1.
Essa situação mostra-nos que, ainda hoje, o corpo feminino deve ser disciplinado de forma a controlar
seus comportamentos, caso contrário, pode ser condenado à morte ou a diversos tipos de punição
morais ou físicas – outras formas de anulamento dos problemas causados por sua existência. Nesse
sentido, existir é estar condicionado às leis constitucionais e religiosas regulamentadas em cada país,
as quais governam legitimamente o viver e o morrer dos sujeitos ditos cidadãos – como exemplo, tem-
se o exercício da pena de morte em diversos países (parte dos Estados Unidos, Caribe, Ásia, África e
Guatemala), a qual, em comparação à sentença de morte dessa mulher, não tem sido alvo de uma
discussão e manifestação tão destacada em relação à morte do sujeito.
30Reportagem: Mãe que jogou bebê em rio é indiciada por homicídio (ZH, 11/10/2007). Ver página 14 do
anexo 1.
87
indiciamento das mulheres por homicídio como forma de punição diante do
crime cometido contra a recém-nascida. Trouxe esse excerto na tentativa de
chamar a atenção para o modo como vem se agindo, ainda nos dias de hoje,
em relação àquelas atitudes das mulheres que “fogem” ao instituído para a
sua “natureza” no cuidado com os filhos, o que gera ações soberanas do
Estado para controlar e punir as perturbações e os crimes causados ou
ligados às mulheres.

88
3.2. Profilaxia social ou prevenção moral do aborto
terapêutico: crime contra a vida do feto, futuro cidadão

Discussões sobre o aborto surgem nas “teses da Faculdade de


Medicina do Rio de Janeiro entre 1840 e 1931 em 66 trabalhos” (ROHDEN,
2003, p.60). Nesses estudos, aparece a preocupação em elaborar categorias
de aborto: espontâneo, acidental ou provocado, considerando-se também a
predisposição da mulher ao abortamento, com destaque para a “idade e o
temperamento da mãe, a herança biológica, os hábitos, a alimentação, o
meio em que vive, as doenças, a conformação da bacia, etc.”, assim como as
características do pai (idem, p.61).

Nesse período, outra questão também discutida foi a da decisão sobre


o aborto terapêutico (provocado para salvar a vida da mulher), confrontada
por médicos, pelo secretário do governo e pela Igreja, gerando situações sem
“solução” (ROHDEN, 2003). A responsabilidade médica em assumir
publicamente o compromisso de concordar com esse tipo de aborto acabava
interferindo nos posicionamentos dos médicos, mas consta nos documentos
dessa época que o “procedimento não era incomum entre os médicos” e que
os meios para provocar o aborto eram bem conhecidos e considerados
seguros (idem, p.63; SOHN, 2008). Assim, a “primeira metade do século XX
assiste, com efeito, à emergência do abortamento racional” (SOHN, 2008,
p.138). Em 1938, a Inglaterra autoriza o aborto “em caso de ‘doença física e
mental’”, e, em 1975, a França despenalizou o aborto, com a Lei Veil (idem,
p.139; PERROT, 2003).

Em busca da legitimação da prática médica frente às concepções mais


tradicionais, especialmente as ligadas ao pensamento religioso, era utilizada
como arma a “objetividade do conhecimento científico, que garantiria a
correção de suas atitudes e justificaria sua autoridade” (ROHDEN, 2003,
p.65). Segundo o livro Lições de Clínica Obstétrica, de Fernando Magalhães,
datado de 1917, era a ciência, e não a religião, que poderia comprovar o
risco de morte materna; nesse caso, o médico que decidisse seguir o preceito
religioso – não matarás – acabaria “assistindo à morte da gestante e do

89
embrião” (idem, p.64). Essa autoridade científica, além de prever a prática do
aborto terapêutico, servia para condenar o chamado aborto criminoso.

A respeito do aborto criminoso, Antonio F. da Costa Junior apresentou


sua tese à Faculdade de Medicina em 1911, procurando investigar a
“freqüência deste crime no Rio de Janeiro” e propor meios para reprimir a
prática (ROHDEN, 2003, p.65). Sobre a ideia do direito ao aborto, ele
comentou que os

[...] defensores pensam que a mulher é dona do próprio corpo,


e que, por isso, pode dispor dele à sua vontade, sacrificando,
se assim o quiser, o fruto de sua concepção, considerado por
eles como uma parte do corpo, que tem tanto valor como um
dedo (COSTA JUNIOR apud ROHDEN, 2003, p.66).

Além da enfática negação da propriedade de seu corpo, Costa Junior


comenta que a sociedade não aprovaria tão degradante costume, tido como
um crime contra a vida do feto, por este ser considerado uma pessoa. Assim,
reconhecer o direito ao aborto “seria dar um golpe na própria base da
sociedade, desorganizar a família, justificar todos os atentados contra a
pessoa, legitimar o homicídio” (idem, p.67). O autor ressaltou, ainda, que

[...] o produto da concepção normal não pertence só à mãe, ele


pertence também ao Estado, do qual virá fazer parte e como
tal, este deve zelar pela sua vida. A prática do aborto é um
crime por excelência anti-social, pois que suprime o indivíduo,
membro da família, de que se compõe o Estado (COSTA
JUNIOR apud ROHDEN, 2003, p.67).

O aborto, além de representar um risco para a saúde da mulher, era


visto como um crime “antissocial”, que fazia da degradação moral e da
diminuição da população suas consequências. Por isso, deveriam ser
instituídas práticas de controle, de ordem moral ou legislativa, como:
campanhas, regularizações, fiscalização, aumento da penalidade, inquérito
policial, etc. (ROHDEN, 2003; THÉBAUD, 2003). Essas medidas pretendiam
a repressão do ato, e não a busca da prevenção; afinal, impedir a gravidez
também era algo mal visto, pois estava relacionado ao controle reprodutivo e
à redução de indivíduos (cidadãos). Assim, o aborto e a contracepção
estavam implicados na restrição do crescimento da população, o que

90
impediria o progresso e colocaria em “risco a soberania da nação” (ROHDEN,
2003, p.81; THÉBAUD, 2003). Costa Junior termina seu estudo
relacionando o aborto à moral pública, à proteção da família, à probidade
profissional e ao futuro do país, dizendo que o “nosso país necessita de seus
filhos para atingir rapidamente o glorioso futuro a que está destinado”
(COSTA JUNIOR apud ROHDEN, 2003, p.81; THÉBAUD, 2003).

O aborto mostra a preocupação com a sociedade, com a população, e


não apenas com as mulheres, pois nesse período, assim como hoje, pouco se
fala sobre os cuidados e tratamentos para as mulheres no pós-abortamento.
Entretanto, é dispensada uma atenção especial à punição dos praticantes
envolvidos na execução do aborto ou no seu incentivo (THÉBAUD, 2003).
Nesse sentido, ao destituir-se a mulher de desejos e circunstâncias pessoais
que a levam a tal prática, também é anulada a sua voz e são
desconsideradas as suas experiências e a propriedade de seu corpo.

Naquela época, a profilaxia social ou a prevenção moral, como


estratégia de solução para o aborto, poderia ser alcançada através da
“educação da mulher desde menina para a aceitação da maternidade como
um encargo natural” (ROHDEN, 2003, p.84; MATOS, 2003). Considerando-
se que o fator econômico era o principal causador do aborto, deveria haver
um “programa de proteção às crianças filhas de pais desconhecidos e mães
sem recursos” (idem, ibidem). Assim, apesar de o aborto ser o resultado de
articulações entre os valores morais, a possibilidade de admitir essa prática
nas clínicas de aborto ou hospitais e a intenção refletida da mulher diante de
determinadas circunstâncias e experiências passariam a ser uma ameaça e,
por isso, deveriam ser combatidas “pelo reforço da educação para a
maternidade e da proteção de filhos e mães sem recursos” (idem, ibidem). A
partir dessas noções, o aborto passou a ser combatido a partir da voz do
médico, que – através do esclarecimento sobre os riscos para as mulheres e
os prejuízos para a coletividade, na medida em que se “suprime um cidadão”
– fez da mulher que comete o aborto, pelo menos em princípio, “uma
‘criminosa’ plenamente ciente de seus atos” (ROHDEN, 2003, p.85).

91
Essa mulher passa a representar o “‘perigo’ da disjunção entre sexo,
reprodução e maternidade, do ponto de vista de boa parte dos médicos”
(idem, p.86). Em um contexto político em que “a população adquiria cada vez
mais importância”, os médicos passaram a investir “menos no ‘tratamento’
individual e mais em campanhas de condenação do aborto e da
contracepção e de valorização da maternidade” (idem). A estratégia
biopolítica de governo atuou, desse modo, na passagem do século XIX para o
XX, através da evocação de discursos sobre o perigo que estas práticas
representavam para o “projeto nacional de construção de um povo numeroso
e saudável” (idem, ibidem).

Porém, se nesse período o aborto foi criminalizado em razão da


garantia de saúde da mãe, hoje esse argumento não se sustenta, pois é
confrontado por justificativas de avanços e desenvolvimentos da biociência e
da medicina, as quais tratam o procedimento de abortamento e antecipação
terapêutica do parto, no caso da anencefalia, por exemplo, como práticas
seguras. Além disso, tal prática pressupõe a manutenção da vida e da saúde
da mulher. Nesse sentido, ao contrário do que se pensava em outras épocas,
o aborto torna-se necessário e descriminalizado enquanto um meio de
prevenção e de promoção de vida e saúde da mulher – discursos bastante
enfatizados e acionados na atualidade. Um exemplo é a reportagem
intitulada Juízes defendem mudança na lei do aborto31 (Folha SP, 2008), que
traz duas pesquisas feitas simultaneamente no país com juízes e
promotores, apontando que 78% dos entrevistados são favoráveis à
ampliação das possibilidades de aborto legal. Nos estudos, foram ouvidos
1.493 juízes e 2.614 promotores de todas as regiões. Consta no texto da
reportagem que:

No caso dos juízes, 61,2% apontaram necessidade de


mudanças na legislação atual para aumento das
circunstâncias em que não se pune o aborto praticado por
médicos.

31 Reportagem: Juízes defendem mudança na lei do aborto (Folha SP, 17/09/2008). Ver página 15 do anexo
1.
92
Outros 16,8% dos juízes se disseram favoráveis à
descriminalização do aborto, independentemente da
circunstância, totalizando 78% favoráveis a mudanças na lei.
No estudo, 12,5% dos promotores disseram ser favoráveis à
não-punição em qualquer caso e 3,2% opinaram que a prática
nunca deveria ser permitida.
No caso dos magistrados, 7,3% disseram que a prática do
aborto não deve ser permitida sob qualquer circunstância.
O juiz Torres, da Vara do Júri de Campinas (SP), defendeu a
descriminalização da prática. "Vivemos sob uma ilegalidade
consentida. O aborto deve ser tratado como problema de saúde
pública, e não enfrentado dentro do sistema criminal."
Segundo ele, há poucos casos de abertura de inquéritos para
apurar casos de aborto por má-formação fetal. "Sou a favor da
descriminalização em qualquer hipótese, mas enquanto isso
não acontece, que sejam pelo menos descriminalizados os
casos de má-formação fetal."

Além de grande aceitação da ampliação das possibilidades de aborto


legal, percebe-se a ideia de desvinculação do abortamento ao crime,
retratando a prática como um problema de saúde pública.

Quando se trata da proposta de que o aborto seja descriminalizado ao


menos em casos de má-formação fetal, a leitura pode dar visibilidade à
desqualificação desses fetos e à busca da manutenção da normalidade social
pela morte deles, como se uma formação diferenciada justificasse menos
preocupação ou menor valoração de sua vida/morte.

A interrupção da gravidez em caso de feto anencefálico, nesse


período32, dependia de autorização da justiça e era considerada como crime
da mãe e dos médicos. Numa reportagem, foi relatado que, em Porto Alegre,
a ação de interrupção de gestação de feto anencéfalo foi negada em primeiro
grau, mas a gestante entrou com recurso no Tribunal e conseguiu
autorização33. Em sua fala ao votar, o desembargador, além de esclarecer
que os anencéfalos não sobrevivem fora do útero, também referiu que:

O fato de o feto ser monstruoso, possuir graves anomalias


físicas ou mentais, não é, por si só, motivo para autorizar o
aborto, desde que haja viabilidade para a vida extra-uterina,
embora possa sê-lo quando a vida for praticamente artificial,

32 Na sequência do estudo, capítulo 5, tratarei da alteração na Lei.


33Reportagem: Autorizada interrupção de gestação de bebê anencéfalo em Porto Alegre (ZH, 29/08/2008).
Ver página 16 do anexo 1.
93
sem qualquer possibilidade de se manter a partir do momento
em que deixar o ventre da mãe34.

Percebe-se, nesse trecho, que a ideia da anormalidade da forma do feto


remete a uma ideia de monstro, mas isso não justifica a sua morte se houver
possibilidade de vida após o nascimento.

Além dessas questões, reportagens têm difundido estimativas de


autorizações de abortos em caso de anencefalia. Por exemplo, a Justiça
autorizou, entre os anos de 2001 e 2006, 54% dos 46 pedidos de
procedimentos de interrupção de gravidez de fetos com anencefalia35, sendo
que os “argumentos religiosos embasaram a maior parte dos pedidos
negados” (ABORTO, 2008). Outra reportagem36 veiculou uma estimativa
sobre o aumento do número de abortos com amparo legal no Brasil. Nela
consta que a quantidade de procedimentos cresceu 43% na rede do Sistema
Único de Saúde (SUS), passando de 2.130 (2007) para 3.053 (até novembro
de 2008) (GUIMARÃES, 2009). Segundo estimativas da Organização Mundial
da Saúde (OMS),

[...] metade das gestações é indesejada e uma a cada nove


mulheres recorre ao aborto. No Brasil, os cálculos mostram
que o índice de abortamento é de 31%. Ou seja, ocorrem
aproximadamente 1,44 milhão de abortos espontâneos e
inseguros com taxa de 3,7 para cada 100 mulheres. A
gravidade da situação do abortamento também se reflete no
SUS. Só em 2004, 243.988 mulheres foram internadas para
fazer curetagem pós-aborto37.

Considerando os dados da OMS, o que se percebe, diante do elevado


número de abortamentos, entre outras questões apresentadas nas
reportagens, é que vem se discutindo há bastante tempo a possibilidade de

34Idem nota 33. Reportagem: Autorizada interrupção de gestação de bebê anencéfalo em Porto Alegre (ZH,
29/08/2008). Ver página 16 do anexo 1.
35ABORTO, 2008. Reportagem: Aborto de anencéfalos é liberado pela Justiça em 54% dos casos (ZH,
01/09/2008). Ver página 17 do anexo 1.
Há desdobramentos posteriores, no capítulo 5, sobre a anencefalia.
36GUIMARÃES, 2009. Reportagem: Abortos com amparo legal crescem 43% (Folha SP, 23/01/2009). Ver
página 17 do anexo 1.
37Aborto inseguro: um problema de saúde pública. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/sau-
de/visualizar_texto.cfm?idtxt=22411>.
94
uma modificação na lei para ampliar e descriminalizar a prática do aborto,
tornando-o legal se referido à promoção da saúde da mulher e à
caracterização do feto com má-formação como um anormal, um monstro,
evidenciando o risco de deixá-lo viver. Porém, mesmo com as possíveis
anormalidades, o feto não deixa de apresentar-se como uma forma de vida;
esse é o grande problema, pois gera incompreensão e angustiantes
divergências institucionais sobre o viver/morrer.

No que tange à lei, o aborto não constitui crime em duas


circunstâncias: como forma de preservar a vida da mulher e em caso de
estupro. Conforme estabelecido no Decreto-Lei Nº 2.848, de 7 de dezembro
de 1940 do Código Penal, no capítulo que trata dos crimes contra a vida:

Infanticídio
Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o
próprio filho, durante o parto ou logo após: pena - detenção,
de dois a seis anos.
Aborto provocado pela gestante ou com seu
consentimento
Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir
que outrem lho provoque: pena - detenção, de um a três anos.
Aborto provocado por terceiro
Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da
gestante: pena - reclusão, de três a dez anos.
Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da
gestante: pena - reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior se a
gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil
mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave
ameaça ou violência.
Forma qualificada
Art. 127 - As penas combinadas nos dois artigos
anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência
do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a
gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são
duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a
morte.
Não é crime o aborto que é praticado por médico nos
casos de risco para gestante ou estupro da mãe, conforme o
Art. 128 que diz: Não se pune o aborto praticado por médico:
- Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
- Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

95
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é
precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz,
de seu representante legal38.

Trouxe o texto da Lei a fim de dar visibilidade aos argumentos


normalizadores sob os quais nós, brasileiros, vivemos, desde 1940. Nas
sessões do próximo capítulo, apresento mais detidamente o panorama atual
em que se desenham e inserem as situações de abortamento legal e ilegal,
tanto em relação a clandestinidade, condição social e violência causada por
estupro e consumo de drogas, quanto, talvez, no que se refere a
possibilidades biotecnológicas.

38DECRETO-Lei No 2.848, de 7 de dezembro de 1940 do Código Penal (DECRETO, 1940). Disponível


em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/DECRETO-Lei/Del2848.htm>. Acesso em: 08 nov. 2009.
96
CAPÍTULO 4

EM BUSCA DA CONQUISTA DO CORPO A


VIOLÊNCIA SEXUAL, A CLANDESTINIDADE DO
ABORTO, A CONDIÇÃO SOCIOECONÔMICA E A
DROGADIÇÃO APONTAM DECISÕES SOBRE O
V I V E R / M O R R E R 39?

F U T UR O É O R E S U L T A DO D E UM JO G O D E

F OR Ç AS Q U E SE D Á N O P R E SEN T E ,

N A S Q UAI S P O D EM O S A T U AR E I N T ER VI R

P AR A I N V EN T AR N OV A S F OR M A S D E

VI D A E N OV A S

EX P ER I ÊN CI A S S OCI A I S …

(BRANCO, 2008)

39Esta imagem é adaptada da obra Grávida no Espelho de Marília Chartune Teixeira. Trouxe-a para a
abertura do capítulo, porque remete a uma visão idealizada da maternidade em contraposição a
outras percepções do corpo da mulher grávida por ela mesma e por outros indivíduos, instituição
científica, médica, religiosa, etc.
97
CAPÍTULO 4

EM BUSCA DA CONQUISTA DO CORPO: A VIOLÊNCIA


SEXUAL, A CLANDESTINIDADE DO ABORTO, A CONDIÇÃO
SOCIOECONÔMICA E A DROGADIÇÃO APONTAM DECISÕES
SOBRE O VIVER/MORRER?

Neste capítulo, apresento mais detidamente o panorama atual em que se


desenham e inserem as situações de abortamento legal e ilegal relacionadas com
clandestinidade, condição social, violência causada pelo estupro e consumo de
drogas. Trago essas questões para mostrar a rede em que se insere a problemática do
aborto hoje e para destacar a possibilidade de morte no sistema de biopoder como
parte de estratégias (bio)políticas que se valem dos discursos de valorização ou
desvalorização da vida de alguns indivíduos em relação aos modos de vida de outros
– tidos como referenciais ou padrões das normas para definir os investimentos, ou a
falta deles, no viver/morrer. Finalizo a discussão deste capítulo apontando as
possibilidades de intervenções institucionais relativas às formas de olhar e lidar com
o que se considera normal/anormal.

4.1. Ciência, servidão e sujeição: o g overno de uns sobre os


outros

A maioria das meninas de até 14 anos que fez aborto com


amparo legal em 2008 foi vítima de estupro. Levantamento do
Ministério da Saúde, obtido pela Folha, mostra que 49 garotas
com idade entre 10 e 14 anos se submeteram à interrupção de
gravidez no ano passado.
Desse total, 64% viveram drama similar ao da menina de
Pernambuco, de 9 anos, que abortou após ter sido estuprada
pelo padrasto.
O número de interrupções de gravidez nessa faixa etária (de 10
a 14 anos) mais do que dobrou no ano passado, passando de
22 casos de aborto (em 2007) para 49 [em 2008].

98
Inicio este capítulo com a apresentação dos dados divulgados numa
reportagem40, com a intenção de apontar as temáticas de matérias que têm
sido veiculadas e as discussões que pretendo traçar para pensar sobre os
posicionamentos assumidos nos debates, ações e intervenções diante do
aborto autorizado no caso de estupro.

Cabe salientar que, conforme a Norma Técnica do Ministério da Saúde


sobre prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual
contra mulheres e adolescentes, ao tratar da Lei sobre o aborto autorizado, o
Código Penal refere que:

[...] não exige qualquer documento para a prática do


abortamento nesse caso, a não ser o consentimento da
mulher. Assim, a mulher que sofre violência sexual não tem o
dever legal de noticiar o fato à polícia. Deve-se orientá-la a
tomar as providências policiais e judiciais cabíveis, mas caso
ela não o faça, não lhe pode ser negado o abortamento. O
Código Penal afirma que a palavra da mulher que busca os
serviços de saúde afirmando ter sofrido violência deve ter
credibilidade, ética e legalmente, devendo ser recebida como
presunção de veracidade. O objetivo do serviço de saúde é
garantir o exercício do direito à saúde, portanto não cabe ao
profissional de saúde duvidar da palavra da vítima, o que
agravaria ainda mais as consequências da violência sofrida.
Seus procedimentos não devem ser confundidos com os
procedimentos reservados à Polícia ou Justiça.
Caso revele-se, após o abortamento, que a gravidez não foi
resultado de violência sexual, o Código Penal brasileiro, artigo
20, § 1º, afirma que “é isento de pena quem, por erro
plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de
fato que, se existisse, tornaria a ação legítima”. Assim, se
todas as cautelas procedimentais foram cumpridas pelo
serviço de saúde, no caso de verificar-se, posteriormente, a
inverdade da alegação de violência sexual somente a gestante,
em tal caso, responderá criminalmente pelo crime de aborto
(BRASIL, 2011, p.69).
Segundo o Código Penal brasileiro é imprescindível o
consentimento por escrito da mulher para a realização do
abortamento em caso de violência sexual, que deve ser
anexado ao prontuário médico. O Código Civil estabelece que,
a partir dos 18 anos, a mulher é considerada capaz de
consentir sozinha para a realização do abortamento (idem,
p.71).

40Reportagem: 64% dos abortos com amparo legal são consequência de estupro (Folha SP, 14/03/2009). Ver
página 19 do anexo 1.
99
De acordo com a norma, em casos de gravidez decorrente de violência
sexual, o Código Penal estabelece que a realização do aborto não se
condiciona a uma decisão judicial que sentencie e decida se ocorreu estupro
ou violência sexual. A lei penal brasileira também não exige autorização
judicial para a realização do abortamento, nem a apresentação de
documentos, como o Boletim de Ocorrência Policial e o laudo do Exame de
Corpo de Delito do Instituo Médico Legal. Assim, “não há sustentação legal
para que os serviços de saúde neguem o procedimento caso a mulher não
possa apresentá-los” (BRASIL, 2011, p.71). Porém, tal consentimento para
menores de 18 anos exige outras medidas; afinal, existem limitações etárias
para o exercício dos direitos civis. Essas situações suscitam dúvidas e
receios entre profissionais de saúde do ponto de vista ético e legal.

A fim de discutir essas questões, trago excertos de reportagens sobre


um caso divulgado na mídia que, em certa medida, ilustra as possibilidades
de ação diante dessas situações. Trata-se do aborto de uma menina de nove
anos que desde os seis era violentada pelo padrasto (23 anos) e engravidou
de gêmeos. Conforme divulgado41, a gravidez da menina foi constatada após
ela se queixar de dores na barriga e de náuseas. Diante do resultado do
exame, o médico comunicou o fato ao Conselho Tutelar, que avisou a polícia
(GUIBU, BATISTA, 2009). A mãe, dona de casa de 42 anos, afirmou ao
delegado que não desconfiava dos abusos e que chegou a passar mal ao
saber da gravidez da filha (idem).

Em março de 2009, a imprensa divulgou manifestações favoráveis à


prática de aborto e as posições de médicos e de políticos argumentando em
defesa da vida da menina, como sugere o seguinte excerto:

Cerca de 5.000 pessoas compareceram a uma passeata


realizada em São Paulo em comemoração ao Dia Internacional
da Mulher. O ato reivindicou a legalização do aborto, tema em

41 GUIBU, BATISTA, 2009. Reportagem: Homem acusado de violentar enteadas diz que meninas o
provocavam, afirma polícia (Folha SP, 27/02/2009). Ver página 20 do anexo 1.
100
destaque na semana passada por conta da excomunhão, pelo
arcebispo42.

Tais movimentos geraram oposições de religiosos, dividindo opiniões


no Vaticano e causando manifestações de grupos contrários ao aborto, como
podemos perceber neste trecho:

Depois de elogiada por uma autoridade do Vaticano, a


excomunhão dos envolvidos no episódio de aborto de uma
menina, o presidente da Academia Pontifícia para a Vida em
Roma condenou a excomunhão dos médicos. Segundo ele, o
arcebispo foi apressado e deveria ter se preocupado primeiro
com a menina, que engravidou de gêmeos depois de violentada
pelo padrasto em Alagoinha (PE). O religioso disse ainda que a
excomunhão atinge a credibilidade da Igreja e que “são outros
que merecem a excomunhão e nosso perdão, não os que lhe
permitiram viver e a ajudaram a recuperar a esperança e a
confiança43”.

Esse trecho, ao mostrar a existência de diferentes posicionamentos


numa mesma confissão religiosa, remete ao questionamento sobre a
sustentação de uma “hegemonia” do pensamento religioso em relação ao
pensamento da população católica brasileira e ainda poderia acionar o
debate e o exame da questão da “falta de legitimidade do discurso de uma
hierarquia religiosa que pretende atuar no plano político” como se estivesse
representando a totalidade da população católica (LOREA, 2006, p.188).
Nesse sentido, a análise do aspecto religioso sobre o acesso ao aborto não se
limita a uma simplificação que contrapõe “o pensamento” de católicos e não-
católicos, considerando-se também a pluralidade de pensamento entre os
católicos, haja vista a formação de organizações não-governamentais em
busca da autonomia e liberdade das mulheres em relação à sexualidade e à
reprodução, a exemplo da Organização das Católicas pelo Direito de Decidir,
fundada no Brasil em 8 de março de 199344.

42Reportagem: Marcha em São Paulo lembra excomunhão devido a aborto (Folha SP, 09/03/2009). Ver
página 22 do anexo 1.
43 Reportagem: Excomunhão divide opiniões no Vaticano (Folha SP, 16/03/2009). Ver página 23 do anexo
1.
44 Disponível em: <http://catolicasonline.org.br/>. Acesso em: 18.07.2010.
101
Apesar da relevância dessas questões, esses movimentos não foram
muito explorados e divulgados nos jornais Zero Hora e Folha de SP. A ênfase
nas reportagens foi dada às polêmicas geradas em torno da excomunhão
religiosa, dando visibilidade aos debates sobre a legalidade e ilegalidade do
aborto no Brasil. O caso teve repercussão em jornais internacionais45, como,
por exemplo, The New York Times, El Pais, Le Figaro e Fox News.

Nesse caso, foi possível perceber a complexidade da discussão sobre


um Estado de sistema laico deparando-se com discursos de ordem religiosa
regidos pelo sistema canônico que sustentam a “excomunhão46” das pessoas,
seja em razão do

[...] aborto praticado para salvar a vida da gestante, seja no


caso da expulsão do fruto proveniente de estupro. Atinge,
ainda, a todos que, de qualquer forma, participaram do ato
[...], que obrigam ou instigam a mulher à prática do
procedimento abortivo (Código de Direito Canônico apud
TEODORO, 2008, p.232).

Independentemente dos sentidos que o termo assume na vida de cada


um, parece-me que a excomunhão, tomada como “verdade”, implica relações
soberanas que sentenciam os desobedientes com a exclusão. Assim, a leitura
de reportagens sobre tal punição pode produzir, naqueles que creem,
reações de renúncia, de autoavaliação, de culpa e de constrangimento, entre
outras produções de governo que ultrapassam a religiosidade, pois tal
prática fundada na “lei divina” coloca-se acima das demais leis. Práticas
religiosas e laicas mostraram-se, neste caso, em confronto, numa aparente
oposição entre leis dos homens e divinas. Contudo, convergem para o
governo das pessoas mesmo que com diferentes posicionamentos e
discursos, borrando fronteiras entre as criações humanas, de controle e
condução dos corpos e aquelas direcionadas às “almas”.

45 Reportagem: Igreja critica aborto feito por menina de 9 anos violentada em PE; veja repercussão
internacional (Folha SP, 06/03/2009). Ver página 24 do anexo 1.
46Excomunhão é uma penalidade que consiste em excluir alguém da totalidade ou de parte dos bens
espirituais comuns aos fiéis. Coloca alguém fora da comunhão, ou seja, exclui a participação da pessoa
em grupo ou comunidade. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br>. Acesso em: 04.12.09.
102
Nas reportagens, as falas trazem para o cenário social embates entre
soberanos, religiosos, médicos (os experts) e os políticos, cujas “verdades” se
direcionam tanto para o controle quanto para a concessão ou não do direito
de vida/morte dos fetos e da gestante/menina neste mundo e, talvez,
pretensamente, em outro mundo. Nesse sentido, tais falas tornam visíveis as
lutas travadas num jogo de poder voltado ao governo de uns em relação a
outros a partir das “verdades” que têm regido as decisões e ações das
pessoas no seu viver.

Sobre a excomunhão religiosa dos “médicos que participaram do


procedimento e da mãe da menina” após o aborto, trouxe excertos de
algumas reportagens para problematizar a produtividade dessa prática na
vida dos sujeitos. Os primeiros excertos são da reportagem intitulada Para
CNBB, excomunhão não vale para mãe de menina estuprada por padrasto 47
(GUERREIRO, 2009):

Dirigentes da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do


Brasil) afirmaram nesta quinta-feira que a mãe da menina
estuprada pelo padrasto em Alagoinha (PE) não foi
excomungada pela Igreja Católica depois que a criança foi
submetida a aborto para interromper a gravidez [de quase
quatro meses, de gêmeos], no início deste mês. Apesar de o
arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, ter
declarado a excomunhão da mãe, a CNBB entende que ela não
deve ser penalizada.
"O seu grito e o seu desabafo [de Dom José Cardoso] em tom
de excomunhão em nenhum momento se dirigiu às vítimas,
mas àquelas pessoas que acham que matar seres humanos é
uma solução para casos como este. Para quem persegue as
criancinhas, vale a pena da excomunhão", disse Dom Dimas.

Essa prática de excomunhão do arcebispo de Olinda e Recife, Dom


José Cardoso Sobrinho, fez emergir discussões sobre o aborto, provocando
grandes manifestações públicas, inclusive a do presidente do Brasil, que
disse “lamentar o posicionamento ‘conservador’ do religioso48” (CARDEAL,
2009). Para o presidente, esse caso de violência sexual reflete “um processo

47GUERREIRO, 2009. Reportagem: Para CNBB, excomunhão não vale para mãe de menina estuprada por
padrasto (Folha SP, 12/03/2009). Ver página 27 do anexo 1.
48CARDEAL, 2009. Reportagem: Cardeal do Vaticano defende excomunhão da mãe de menina que fez aborto
(Folha SP, 08/03/2009). Ver página 29 do anexo 1.
103
de degradação da estrutura da sociedade49” (LULA, 2009a; LULA, 2009b).
Diante desse comentário, o arcebispo disse que “o presidente deveria
procurar assessoria teológica para falar com mais propriedade sobre religião”
(CARDEAL, 2009; ARCEBISPO, 2009a).

Os embates discursivos divulgados pela mídia em torno da


excomunhão dos que contribuíram ou apoiaram esse aborto envolveu as
áreas médica, religiosa, legislativa, política e de segurança (com a prisão do
padastro), mostrando diferentes posicionamentos, coações e punições.

Com relação aos médicos que realizaram o aborto, também


excomungados pelo arcebispo, a CNBB se absteve da condenação, pois
considera que “somente a ‘consciência individual’ de cada um pode
estabelecer eventuais punições pelos seus atos” (GUERREIRO, 2009). “Cada
um sabe se foi excomungado ou não”, ou seja, através do apelo à “verdade”,
aqueles que tiverem consciência se sentirão culpados e excomungados, uma
vez que, pelo Direito Canônico, “o aborto está entre os crimes cuja pena é a
excomunhão – penalidade máxima” (idem).

Conforme fala do presidente da CNBB, “a repercussão da excomunhão


dos médicos envolvidos mudou o foco da situação e esvaziou o debate da
sociedade” sobre o crime praticado, o qual “se diluiu diante da história da
excomunhão” (CNBB, 2009a). Sobre o estupro, o presidente da CNBB disse
que o estuprador não precisa ser punido com a excomunhão, porque

[...] toda a população sabe da sua gravidade. “O estupro é uma


coisa tão repugnante que a Igreja não precisa chamar a
atenção para ele, está na consciência de todos50”.

Assim, as “verdades” em que se apoiam as normas criadas e ditadas


pela instituição religiosa mostram a possibilidade da produção de culpa
através do reconhecimento da sua legitimidade pelo sujeito. Essa estratégia

49LULA, 2009a. Reportagem: Lula critica excomunhão e defende medicina em caso de aborto de menina em PE
(Folha SP, 06/03/2009).
LULA, 2009b. Reportagem: Lula: caso de menina violentada em PE mostra "degradação da estrutura da
sociedade"( ZH, 06/03/2009). Ver página 30 do anexo 1.
50 GUERREIRO, 2009. Idem nota 47.
104
de governamento se repete na fala do secretário da CNBB, pois para ele o
arcebispo não excomungou ninguém, “apenas lembrou uma norma em que a
pessoa se coloca fora da Igreja ao cometer um determinado ato”
(GUERREIRO, 2009). Desse modo, quem agir de forma a não obedecer aos
preceitos da Igreja, será punido com a expulsão, ou seja, será banido de seu
rebanho. Para Dom Geraldo, “a excomunhão não é só para punir, mas para
que quem praticou o ato possa perceber a gravidade e buscar sua
reconciliação” (GUERREIRO, 2009). A reconciliação ocorre pela confissão e
pelo arrependimento: “podem ser perdoados se mostrarem
arrependimento51” (ARCEBISPO, 2009a). Nas palavras do pastor das almas:
“os excomungados podem deixar a condição e, se se arrependerem, ser
absolvidos em confissão52” (BAPTISTA, ODILLA, 2009).

O padrasto53 não foi excomungado pelo arcebispo, mesmo sendo


responsável pelo estupro da menina e tendo

[...] confessado à polícia que abusava sexualmente dela e da


irmã mais velha, de 14 anos, que possui problemas mentais,
há cerca de três anos, afirma a polícia. De acordo com Dom
José [arcebispo de Olinda e Recife], para a Igreja Católica, o
aborto é um “crime mais grave que o estupro”, porém, a CNBB
considera que ele [padastro] cometeu um pecado mortal.
A entidade considera que médicos e profissionais da saúde que
praticam "deliberadamente" o aborto estão automaticamente
excomungados54.

Nas palavras de Dom Dimas Lara Barbosa, secretário da CNBB


(Conferência Nacional dos Bispos do Brasil),

[...] “as pessoas que trabalham contra o nascituro55,


conscientemente, se colocam fora da comunhão da Igreja,

51ARCEBISPO, 2009a. Reportagem: Arcebispo do Recife diz que Lula deve procurar teólogo (ZH,
07/03/2009). Ver página 32 do anexo 1.
52BAPTISTA, ODILLA, 2009. Reportagem: Arcebispo afirma que aborto é mais grave que estupro. (Folha
SP, 07/03/2009). Ver página 33 do anexo 1.
53 Reportagem: Mãe de menina que abortou é indiciada (Folha SP, 28/03/2009). Ver página 34 do anexo 1.
54 GUERREIRO, 2009. Idem nota 47.
ARCEBISPO, 2009b. Reportagem: Arcebispo diz que suspeito de violentar menina não pode ser excomungado
(ZH, 06/03/2009). Ver página 35 do anexo 1.
105
porque elas já não comungam com o pensamento cristão, que
é em defesa da vida56”.

Além dessa, outra interessante posição trazida nas reportagens foi a


do delegado responsável pelas investigações. Para ele, houve omissão por
parte da mãe57: “ela faltou na responsabilidade de proteger as filhas”.
Afirmou, ainda, que a acusação foi de negligência, e não de coautoria dos
abusos. Sua colocação traz para a cena as competências e deveres
conferidos à mulher quando se torna mãe, remetendo ao não-cumprimento
do “papel” materno da mulher, segundo o qual deveria zelar, cuidar,
proteger, defender, enfim, ser responsável, nesse caso, pela vida das filhas.

Diante dessas falas e levando em consideração o que os médicos


disseram sobre o risco de morte que essa gravidez assume, questiono-me
sobre qual vida é defendida e se a vida da menina, em risco pela gravidez,
seria condição de vida dos fetos... Isto é, se os fetos representam o risco de
morte para a menina, a manutenção da gravidez colocaria em risco de morte
tanto a menina quanto os fetos. Pelas normas brasileiras, como comentado,
são admitidos abortos em dois casos: o aborto terapêutico para salvar a vida
da gestante e o aborto para evitar o parto concebido através de estupro58.
Dessa forma, pela lei do Estado, a menina se enquadrava nas duas
exigências, assim como pelas leis da saúde, que também visam à
manutenção e promoção da vida.

O secretário da CNBB disse ainda:

55Nascituro é uma terminologia jurídica para descrever o feto ainda no útero da mulher (ANIS, 2004,
p.99).
56 CNBB, 2009a e CNBB, 2009b.
CNBB, 2009a. Reportagem: CNBB afirma que arcebispo de Olinda não excomungou envolvidos no aborto de
criança em PE. (Folha SP, 12/03/2009).
CNBB, 2009b. Reportagem: CNBB apoia excomunhão dos envolvidos no aborto de criança pernambucana
(ZH, 12/03/2009). Ver página 36 do anexo 1.
57 Idem nota 53. Reportagem: Mãe de menina que abortou é indiciada (Folha SP, 28/03/2009). Ver página
34 do anexo 1.
58 Decreto-Lei No 2.848, de 7 de dezembro de 1940 do Código Penal, no capítulo que trata dos crimes

contra a vida (DECRETO, 1940). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-


Lei/Del2848.htm>. Acesso em: 08 nov. 2009.
106
[...] a mãe da criança não pode ser excomungada porque agiu
sob pressão ao autorizar o aborto dos netos. A garota estava
grávida de gêmeos. “O medo de perder a própria filha lhe levou
a apoiar esse ato59”.

Percebe-se que, ao falar do posicionamento da mãe da menina em


autorizar o aborto de seus “netos”, o secretário recorre ao discurso de que
seus motivos seriam o medo da morte da filha e de que, por a mãe ter agido
sob pressão, ela não se enquadra na pena. Contudo, não se fizeram
presentes nas reportagens as falas da mãe, do pai ou da menina.

A reportagem intitulada Cardeal do Vaticano defende excomunhão da


mãe de menina que fez aborto60 (CARDEAL, 2009) trouxe as seguintes falas:

"É um caso triste, mas o verdadeiro problema é que os gêmeos


concebidos eram pessoas inocentes que tinham o direito à vida
e não podiam ter sido eliminados".
Segundo o cardeal, os ataques à Igreja brasileira são
injustificáveis. "A excomunhão dos que provocaram o aborto é
justa, porque a operação é a supressão de uma vida inocente."

Na primeira frase, ao referir-se aos fetos, o cardeal fala de pessoas


inocentes que não podiam ser eliminadas e tinham direito à vida. Aqui,
caberia uma leitura sobre a forma como foi percebida (pelo arcebispo de
Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho) a relação entre a maternidade
e o corpo de uma menina de nove anos sobre sua capacidade em manter até
o fim uma gestação de gêmeos. Ao que parece, ele desconsiderou os limites
biológicos da menina em favor dos fetos, visto que somente Deus pode tirar a
vida. Já o médico Olimpio Moraes, que coordenou a equipe responsável pelo
aborto, considerou o procedimento necessário “por trazer riscos à menina61”
(NUBLAT, BAPTISTA, 2009), pois a vida dela seria colocada em risco se a
gravidez fosse mantida. Esse médico foi excomungado duas vezes: por
defender a pílula do dia seguinte e por participar desse aborto (idem).
Entretanto, teve o apoio do ministro da saúde, que disse cumprimentar um

59 GUERREIRO, 2009. Idem nota 47.


60Idem, nota 48. Reportagem: Cardeal do Vaticano defende excomunhão da mãe de menina que fez aborto
(Folha SP, 08/03/2009). Ver página 307 do anexo 1.
61NUBLAT, BAPTISTA, 2009. Reportagem: Ministro para evento para cumprimentar médico que coordenou
aborto de criança (Folha SP, 10/03/2009). Ver página 38 do anexo 1.
107
dos profissionais que "salvou a vida de uma criança" (idem). Numa
entrevista, um dos médicos que interromperam a gestação da menina disse:

"Tenho pena do nosso arcebispo, que não conseguiu ser


misericordioso com o sofrimento de uma criança inocente,
desnutrida, franzina, em risco de vida, que sofre violência
desde os seus seis anos62."
Não foi Deus que proibiu a interrupção da gestação em
qualquer caso. Foram os homens da Igreja. E eles erram – já
queimaram gente viva em praça pública, não se esqueça",
disse o médico63.

Por fim, coincidentemente aos desfechos da situação, mas segundo o


Vaticano, não estabelecendo relação com o caso, houve a substituição do
arcebispo de Recife, que provocou a polemica64.

Enfim, tomando as informações divulgadas nas reportagens, em


relação aos posicionamentos da Igreja, a condenação sobre o aborto se
manteve, já no estado e na área da saúde, houve aprovação, em nome da
garantia de vida da menina. Pensar no que produz a articulação e a
veiculação desses discursos ou políticas de “verdade” em torno da
experiência dessa menina faz perceber que em momento algum as
reportagens abordaram o que a menina tinha a dizer sobre as decisões de
agir em seu corpo e vida, mesmo considerando-se que o que ela tem a dizer
encontra-se marcado pelas práticas culturais com as quais convive. Quem
fala em seu nome e é escutado são os responsáveis pelas coisas que devem
acontecer com o seu viver, sentir, sofrer... O corpo e, nele, a saúde, a
doença, a possibilidade de gerar outra vida e a morte passaram a ser
responsabilidade e propriedade tanto das instituições e dos mecanismos
estatais/científicos quanto do sujeito, que em casos como esse se refere ao
adulto. Assim, o sujeito, ao mesmo tempo em que se torna objeto dos
representantes dos campos de saber/poder, cujas “verdades” incidem em

62 Idem nota 52. BAPTISTA, ODILLA, 2009. Reportagem: Arcebispo afirma que aborto é mais grave que
estupro. (Folha SP, 07/03/2009). Ver página 33 do anexo 1.
63ARCEBISPO, 2009c. Reportagem: Arcebispo não teve pena da criança que interrompeu gravidez, afirma
médico de Recife (PE) (Folha SP, 06/03/2009). Ver página 39 do anexo 1.
64Reportagem: Dom Antônio Saburido toma posse como arcebispo de Recife (Folha SP, 17/08/2009).
Reportagem: Vaticano substitui arcebispo de Recife (Folha SP, 02/07/2009). Ver página 40 do anexo 1.
108
seu corpo, passa a ser visto como autossuficiente, racional, autônomo.
Diante do conhecimento ou da tomada de “consciência” das “verdades”, o
sujeito torna-se responsável por tudo que vier a lhe acontecer.

Isso fica bastante claro nas manifestações dos representantes da Igreja


em oposição ao aborto. É possível perceber que, arcebispos, bispos e padres,
ao se fazerem porta-vozes de Deus na terra, agem nas decisões sobre a
vida/morte dos sujeitos em nome da legitimidade da vontade “divina”. Por
isso, contrariar qualquer determinação dessa ordem é o mesmo que
contrariar, negar ou tirar o poder das mãos de Deus, o Soberano. Isso
implica punições ou sanções institucionais de banimento ou condenação,
como a excomunhão. As falas dos religiosos dirigidas ao governo das “almas”
para a salvação constituem, ainda, uma forma de governo dos corpos e do
viver neste mundo, assim como os discursos de saber/poder sobre a saúde,
a lei e a segurança, os quais têm suas estratégias de governamento
divulgadas e reforçadas pela repetição de seus discursos na mídia.

Essa circunstância faz perceber o quanto as “verdades” em que


acreditamos ou que “deveríamos” acreditar e pelas quais somos julgados
moralmente no meio social estão em negociação permanente. Além disso,
mostra o lugar que o espaço midiático – um espaço educativo – tem
assumido ao tornar públicos tais embates, o que poderia torná-lo uma
ferramenta para pensar sobre o que estamos fazendo, e deixando que façam,
uns com os outros.

Nesse caso, houve a garantia da vida da menina, mas, pelo código


penal, independentemente da idade da mulher, se esta engravidou em
decorrência de estupro, o aborto é aceito. Em caso de estupro, a decisão
soberana sobre a vida do feto parece assentar-se também sobre a origem
paterna, que é assumida como condição de legitimação para o aborto do feto,
representante, talvez, da preservação e difusão social da herança genética de
um criminoso. Com isso, supostamente haveria a possibilidade de o feto
apresentar predisposição para diversos crimes, o que o transformaria num
indivíduo patológico predisposto a ações anormais – um possível risco. Nesse
sentido, a autorização legitimada para o aborto em caso de gravidez por
109
estupro, além de mostrar-se como uma medida em defesa das condições de
vida e saúde da mulher, pode remeter à ideia de segurança e de limpeza
social.

Para tentar finalizar esta seção, destaco que, por um lado, o episódio
narrado mostra a produção de um olhar “curioso” sobre a noção de
acolhimento e proteção religiosa, com os posicionamentos contrários à
interrupção da gravidez da menina vítima de estupro por parte da Igreja
Católica. Por outro lado, mesmo com efeitos contrários aos defensores do
aborto, apresentando um debate marcado por questões morais e
conservadoras em relação às mulheres, esse caso promoveu a constituição
de uma ampla defesa pelo direito ao aborto legal como exercício de um
direito. Além disso, possibilitou a emergência de considerações e
questionamentos sobre o exercício das leis, da ética e das políticas de saúde
e de Estado.

110
4.2. No plano da invisibilidade: mortos simbólicos

Nas seções anteriores, apresentei algumas circunstâncias trazidas nas


reportagens e abordei questões sobre a autorização legitimada para o aborto,
seja de feto viável em caso de estupro, seja justificado por argumentos
médicos e legais. Nesta seção, falo da aparente invisibilidade e da
recorrência do aborto do feto viável de forma clandestina (ilegal), na qual se
faz presente a produção de experiências divergentes dessa prática em grupos
que vivem em situação de riqueza ou de pobreza. Trago essa questão não
pelo fator determinante da condição social, no sentido de luta de classes ou
de luta contra “o poder”, mas para chamar a atenção para a forma como a
sociedade lida com essa prática em diferentes instâncias, ou seja, nas
implicações provocadas pela prática do abortamento para mulheres que
vivem em situações econômicas diversas.

No século XX, passamos a entender o ser vivo em relação à evolução


genética e ao ambiente e a problematizar a existência de uma “natureza” que
determinaria a noção de “raça”. Nesse sentido, também não existe uma
“natureza” que determine a anormalidade da pobreza, do crime, da
delinquência, etc. Porém, começamos a excluir os indivíduos que se
encaixam em tais adjetivos por leis/razões morais/culturais.

Nesse entendimento, nomear um sujeito como vítima ou “criminoso”


poderá definir quem pode ou não morrer, isto é, quem deve ter investimentos
em sua vida para desfrutar de um futuro promissor e produtivo ou não. Essa
relação com as “verdades” mostra que não somos livres, mas capturados por
alguns discursos e liberados de outros, o que pode demonstrar o quanto o
processo de subjetivação interfere na possibilidade de as pessoas ocuparem
determinado lugar e também de mudarem de lugar e de posicionamento em
nossa sociedade.

Na mídia, por exemplo, as mortes muitas vezes são divulgadas como


espetáculo, e isso acaba sendo produtivo, pois gera a comercialização de
jornais, revistas, filmes, jogos, etc. Como forma de entretenimento e/ou
informação, as diferenças entre os sujeitos que cometem delitos e os

111
cidadãos de “bem” são amplamente divulgadas, marcando as diversas
posições e os diversos governos de uns sobre os outros. Nesse sentido,
existem modelos do viver que fogem às regras do mercado e que interferem
diretamente na economia – estes são os que vivem a pobreza “absoluta”. Não
consomem, pois estão num “limiar abaixo do qual se considera que as
pessoas não têm uma renda decente capaz de lhes proporcionar um
consumo suficiente”, o que se torna um problema, pois, além de não
consumir, causam despesas ao Estado (FOUCAULT, 2008a, p.282).

Essa relação pode mostrar o quanto vamos criando os mortos


simbólicos que estão no plano da invisibilidade da própria sociedade, o que
significa criar misérias no mundo ao longo da história (FOUCAULT, 2008a).
Isso está relacionado à estratégia de governo que aumenta a estatística65 da
mortalidade para o exercício da governamentalidade.

Nessa direção, as reportagens trazem questões intrigantes; por


exemplo, a fala de algumas pessoas comparando a favela a uma "fábrica de
marginal"; relacionando a criminalidade à desestrutura familiar e dizendo,
com base em “estudos”, que a interrupção da gravidez está relacionada à
redução da violência e do crime66. Porém, suscitam questionamentos: por
que será que a grande maioria dos moradores de comunidades populares
não entra para o crime? Como explicar que jovens de classe média andem
por aí espancando empregadas domésticas, trafiquem drogas ou usem seus
carrões e motos como armas mortíferas? Há, ainda, problematizações sobre
a existência de uma população ideal e a argumentação de que altas taxas de
nascimento entre pobres não são causa única de violência67.

65Estatística como tecnologia de governo para a gestão ou gerenciamento social da população


(TRAVERSINI e BELLO, 2009).
66 Reportagem: Cabral apóia aborto e diz que favela é "fábrica de marginal" (Folha SP, 25/10/2007).
Reportagem: Estudo revela ligação entre gravidez indesejada e violência em SP (ZH, 21/07/2007).
Reportagem: Estudo de economistas da FGV relaciona criminalidade à desestrutura familiar (Folha SP,
26/10/2007). Ver página 41 do anexo 1.
67 Reportagem: A dama e o "Minúnculo" (Folha SP, 02/11/2007).
Reportagem: Aborto não combate a violência, diz demógrafa (Folha SP, 11/11/2007). Ver página 44 do
anexo 1.
112
Diferentes pontos de vista veiculados nos jornais debatendo a relação
da condição de pobreza com os diversos crimes acabam sinalizando para a
legalização do aborto como uma possível política de segurança. As
reportagens sugerem o entendimento dessa prática como meio para prevenir
contra os riscos oferecidos pela presença de um marginal previa e
culturalmente determinado em face de seu poder aquisitivo e das
circunstâncias ligadas à pobreza.

Além disso, gera-se uma polêmica a partir de estudos que veem a


pobreza como condição para a marginalidade, daí surgindo a presunção do
aborto como estratégia de contenção da violência. Tais embates discursivos
dão visibilidade aos estigmas marcadores das diferenças entre as mulheres
grávidas, pobres ou ricas, em busca do aborto; mais ainda, remetem à
exposição ao risco de doenças e morte aos quais as mulheres em condição de
pobreza se submetem em busca do aborto clandestino.

Dessas questões, a reportagem intitulada Legalização do aborto será


avaliada na Conferência Nacional de Saúde menciona que, entre os
problemas provocados pela prática clandestina, estão as

[...] adolescentes que se autoagridem para interromper uma


gravidez indesejada. Outras, que adotam procedimentos
recomendados por pessoas irresponsáveis e, se o aborto não é
feito de forma adequada, a criança vai nascer com más
formações68.

Sobre a mesma conferência, outras reportagens abordaram os


posicionamentos da Igreja em relação à possibilidade de legalização do
aborto, como os que seguem:

Igreja Católica e Pastoral da Criança se mobilizaram para que


delegados votassem contra projeto69.

O presidente da CNBB declarou que "a Igreja tem um papel


importantíssimo a desempenhar" nos "princípios morais e
éticos", como o aborto. A ideia é pressionar parlamentares que

68Reportagem: Legalização do aborto será avaliada na Conferência Nacional de Saúde (ZH, 16/11/2007). Ver
página 47 do anexo 1.
69Reportagem: Conferência de Saúde rejeita descriminalização do aborto (ZH, 19/11/2007). Ver página 48
do anexo 1.
113
proponham projetos que facilitem ou estimulem ações como o
aborto ou a eutanásia. Com isso, a Igreja pretende
desestimular eleitores católicos a votar em candidatos ligados
a assuntos contrários aos dogmas religiosos70.

A partir das falas dos religiosos, percebe-se que eles desenvolveram


uma atuação estratégica a fim de pressionar os parlamentares favoráveis ao
aborto por meio de intervenções que conduzissem os eleitores a não votar em
políticos que deixassem de compartilhar do pensamento religioso. O
aparente resultado foi que o uso da mobilização como estratégia de ameaça
ao voto alcançou a devida finalidade – a conferência rejeitou a
descriminalização do aborto. Tal atuação e resultado levam ao
questionamento sobre os motivos para a introdução de valores religiosos no
espaço do debate político laico e democrático e sobre a noção de laicidade
que tem sido empregada em determinações estatais quando a promoção da
saúde pode ser interpretada como uma atividade biopolítica, ancorada em
elementos de caráter religioso (CASTIEL, 2010).

Nessa direção, Castiel (2010) comenta que, mesmo na era de


desencantamento do mundo, existem aspectos religiosos em elementos de
nossa cultura. Tomando como referência a afirmação do filósofo inglês John
Gray, ele menciona que as

[...] ideologias laicas mais importantes da atualidade se


modelaram em um formato de religião recalcada com
elementos utópicos – a crença de um acontecimento
transformador do mundo que nos traria a redenção com o
término de todos os conflitos. Porém, a religião retornou de
modo distorcido, como se fosse um ritual sacrílego de mitos
políticos oficiado ao contrário. Além disso, Gray assinala que
os Estados Unidos são excepcionais em relação ao poder
puritano cristão (CASTIEL, 2010, p.172).

Falar sobre a promoção de saúde como prática biopolítica com formato


religioso dá margem a uma relação paradoxal entre Estado e Religião. Afinal,
no caso do Brasil, existe a separação entre o Estado e a Igreja, porém, pode
ser percebida na prática pública a incorporação da herança de uma
“tradição de padroado, onde o espaço público ainda é visto muitas vezes

70Reportagem: Igreja tem o direito de opinar, afirma CNBB (Folha SP, 28/04/2009). Ver página 49 do
anexo 1.
114
como um espaço de expressão de uma única confissão religiosa” (CASTIEL,
2010; RAYMUNDO, 2010, p.182).

A existência de aspectos religiosos em elementos de nossa cultura


apresenta-se na resistência à descriminalização do aborto e à prática de
adoção de crianças por casais homossexuais. A definição de políticas ou
legislação relativas a essas circunstâncias mostra-se permeada por
considerações tanto do “início da vida”, quanto de uma “normalidade”
parental, sendo muitas vezes utilizadas como referenciais (pretensiosamente
generalistas) “impostos a toda a sociedade, independente de seu
pertencimento cultural, filosófico ou religioso” (RAYMUNDO, 2010, p.183).

Neste ponto, cabe mencionar que o termo laicidade, referindo-se à


ideia de imparcialidade e neutralidade do Estado frente à diversidade de
crenças, ideologias e religiões, desassocia o Estado de qualquer confissão
religiosa. Nessa noção, o poder político do Estado apresenta-se como
autônomo frente às convicções religiosas, portanto, livre para governar
segundo os critérios políticos que possibilitem tratar igualmente a todos os
cidadãos, sem favorecer nem discriminar nenhuma confissão religiosa em
particular. Porém, isso não significa que o Estado desconsidera todas as
formas de valores, pois não pode abster-se dos valores comuns, como os
direitos humanos, por exemplo (LOREA, 2006; RAYMUNDO, 2010).

O termo laicidade existe como conceito desde o século XIX e foi


“utilizado pela primeira vez na França em 1871, na defesa de um ensino
laico, no sentido de um ensino não confessional” (BLANCART apud
RAYMUNDO, 2010, p. 181). A Declaração Universal sobre a Laicidade no
Século XXI a define como

[...] a harmonização, em diversas conjunturas sócio-históricas


e geopolíticas, dos três princípios já indicados: respeito à
liberdade de consciência e a sua prática individual e coletiva;
autonomia da política e da sociedade civil com relação às
normas religiosas e filosóficas particulares; nenhuma

115
discriminação direta ou indireta contra os seres humanos71
(DECLARAÇÃO, 2012).

Diante dessas colocações e divulgações, questionei-me sobre o uso da


noção de laicidade. Afinal, ao que parece, caso as políticas públicas em
relação à saúde estivessem ajustadas ao atendimento da diversidade
sociocultural de modo indistinto, as mobilizações de grupos específicos em
busca por suas reivindicações, como por direitos reprodutivos, talvez não se
fizessem tão presentes (RAYMUNDO, 2010).

A intenção, com esses breves apontamentos, é ressaltar a importância


de as decisões do Estado e a criação de políticas públicas serem regidas por
princípios laicos, ou seja, não estarem pautadas por noções religiosas,
independentemente da crença dos envolvidos. Afinal, se, conforme
Raymundo (2010) e Lorea (2006), o respeito pela diversidade e a integração
dos indivíduos em convivência na sociedade cabe ao Estado, a definição de
laicidade faz evocar a garantia de que cada cultura, crença, ideologia ou
filosofia possa expressar-se sem que se sobressaia uma entre as outras,
estabelecendo-se uma aceitação social e jurídica da diversidade. Nesse
sentido, ao referir-me à questão da laicidade, a proposta é produzir reflexões
sobre o modo como se tem lidado com as diferenças e com as referências de
liberdade de cada indivíduo na sociedade brasileira. Afinal, ao contrário do
que possa parecer, a questão da

[...] religião deve ser contemplada no debate justamente para


assegurar a liberdade religiosa, atendendo a amplos setores da
sociedade brasileira que, embora comungando os valores da
religião católica, divergem da orientação da hierarquia de sua
própria igreja quanto ao enfrentamento da questão do aborto
(LOREA, 2006, p.186).

Lorea (2006) busca demonstrar que não há qualquer obstáculo de


ordem jurídica à descriminalização do aborto no país, bastando para isso
que se desconstrua o mito da proteção jurídica da vida desde a concepção.

71DECLARAÇÃO UNIVERSAL DA LAICIDADE NO SÉCULO XXI. Disponível em: < http://ww-


w.nepp-dh.ufrj.br/ole/disponiveis1.html>. Acesso em: 27.06.12.
116
Fechando esse parêntese provocador sobre a noção de laicidade, mas
mantendo a questão da diversidade, na sequência, retomo a discussão sobre
as clínicas clandestinas.

As mulheres que colocam suas vidas em risco em clínicas clandestinas


de aborto, onde muitas morrem por praticar o aborto em condições
inseguras, são exemplos de mortes que ocupam o lugar de “invisibilidade”,
podendo demonstrar as brechas da legislação brasileira, que tipifica o aborto
como crime, sem dar conta desses acontecimentos. Essas situações podem
mostrar que, enquanto o aborto, para algumas mulheres, ocorre em um
hospital ou clínica médica segura, sem colocar em risco sua vida, para
outras, ocorre de forma insegura em clínicas clandestinas de aborto, como
podemos visualizar nas cenas que seguem.

A clínica de aborto descoberta ontem em Porto Alegre tinha


uma tabela de preços para executar os procedimentos nas
mulheres. Conforme o Ministério Público estadual, o aborto em
uma grávida de um mês custava R$ 1,5 mil. De dois meses, R$
2 mil. Já as mulheres em três meses de gestação pagavam até
R$ 2,5 mil.
O promotor de Justiça João Nunes Ferreira lembra que ficou
surpreendido com as condições de higiene do local.
— O que nos assusta é o risco que essas mulheres estão
correndo — diz Nunes.
O cumprimento do mandado de busca e apreensão deferido
pela Justiça ocorreu às 11h. Os agentes chegaram ao local
após duas semanas de apurações desencadeadas depois de
uma denúncia anônima.
Quando entraram na clínica, o médico estava numa sala e a
paciente, em outra. A mulher, uma funcionária pública
estadual, se encontrava sedada. No piso, vaso sanitário e em
equipamentos cirúrgicos, havia manchas de sangue. Uma
ambulância da Samu foi acionada para conduzi-la ao hospital.
Muito medicamento foi apreendido pelos agentes, assim como
prontuários, R$ 11,1 mil e 1.091 dólares.
Clóvis Madruga, que teria oferecido todo o dinheiro aos
policiais, também recebeu voz de prisão por tentativa de
corrupção ativa72.

Essa reportagem trata de uma clínica clandestina sem condições de


higiene, dirigida a mulheres em situação de pobreza, mostrando: os preços

Reportagem: Aborto em clínica clandestina descoberta na Capital custava até R$ 2,5 mil (ZH, 17/06/2008).
72

Ver página 50 do anexo 1.


117
pagos pela exposição à morte; que tais preços variam de acordo com o risco
apresentado pelo período gestacional da mulher; a possibilidade de
corrupção pela presença de medicamentos numa clínica não-autorizada e,
ainda, pela tentativa de suborno dos policiais. No trecho abaixo, outra
reportagem retrata a prática, só que numa clínica destinada a mulheres com
melhores condições financeiras, mas não sem envolver uma rede de práticas
ilegais interligando agentes não só da área da saúde, mas também da
“segurança”.

O capitão reformado foi preso pela terceira vez em três anos


sob suspeita de comandar clínicas de aborto. Esta é a 13ª
passagem do militar por delegacias que, desde 1984, já foi
acusado oito vezes pela prática.
Na operação realizada ontem, a Polícia Civil do Rio fechou dois
consultórios em Botafogo que atendiam a mulheres das
classes média e alta.
Na ação, 26 pessoas entre médicos, enfermeiros e pacientes
foram levadas à delegacia para prestar depoimento. Segundo o
delegado, o atendimento custava de R$ 1.000 a R$ 5.000.
Uma jovem de 21 anos também foi presa em flagrante. Ela
acabara de ser submetida à cirurgia quando os policiais
chegaram ao local.
A clínica já havia sido fechada em fevereiro, e outras três
pacientes foram indiciadas. O Tribunal de Justiça suspendeu
o processo contra as mulheres, mas manteve contra [o militar],
que será indiciado por prática de aborto (1 a 5 anos de
reclusão)73.

Ao tomar conhecimento das circunstâncias e diferenças desses


acontecimentos, pensei sobre os motivos da aparente invisibilidade de uma
questão que tem se mostrado bastante presente na sociedade e sobre os
problemas de enfrentá-los. Afinal, esse viver e morrer são problemas de
quem? Em que ou o quanto a forma de governo que rege nossos modos de
vida, nossos desejos e economia está envolvida no aceite e legitimação de
algumas mortes? Em que medida as mortes por aborto em razão da
anomalia, do estupro e da clandestinidade estão relacionadas às condições
de promoção de “modelos” e/ou modos de vida? Nessa direção, o
abortamento tem se mostrado ligado também à falta de condições para

73Reportagem: Médico é preso pela 3ª vez acusado de aborto. Militar foi acusado de praticar aborto desde 1990
(Folha SP, 14/08/2009). Ver página 51 do anexo 1.
118
prover um filho, a exemplo do seguinte trecho, que relata as escolhas feitas
devido às condições de existência.

Sem carteira assinada, uma empregada doméstica que recebe


R$ 100 por mês em Salvador contou à Polícia Civil que tomou
três comprimidos de um remédio para abortar seu terceiro
filho "porque luta para sustentar duas crianças" [dois meninos
- um de quatro e outro de seis anos].
Solteira, 23, foi presa no último dia 10, sob a acusação de ter
abortado. Ela vai responder pelo crime em liberdade, mas pode
ser condenada a até três anos de prisão.
"Não sei o que passou por minha cabeça, só sei que não tinha
a menor condição de criar mais um filho", afirmou ela, em
depoimento à polícia.
A empregada, que mora numa casa de 40 metros quadrados
sem infra-estrutura na periferia de Salvador, disse que contou
com a ajuda do namorado para abortar. "Tinha seis meses de
gravidez, mas não queria ter o filho. Sei de todas as
dificuldades que passo para criar meus dois filhos, mas estou
arrependida", afirmou, no depoimento à polícia.
Após o aborto, [ela] enrolou o feto em um saco plástico. Em
seguida, pediu para um sobrinho de 14 anos "enterrar o
material", o que foi feito em um terreno baldio a menos de 20
metros da casa dela. "Tudo foi feito à noite para ninguém
perceber", disse.
Um cachorro que revirava lixo encontrou o saco. Dois vizinhos
viram o feto e acionaram a polícia. A identificação da mãe foi
rápida.
"Ela se entregou quando mostrei a foto do feto que fiz pelo
celular. Não perguntamos mais nada, ela começou a chorar",
disse o investigador João Gomes.
À delegada, a empregada doméstica disse que não usa
nenhum anticoncepcional.
"Não tenho dinheiro para nada", afirmou. Após deixar a
delegacia, Maria de Fátima foi levada a um hospital - dois dias
depois do aborto, ela ainda perdia sangue74.

Depois de explorar as circunstâncias do acontecimento e mostrar as


pessoas envolvidas no crime, num relato minucioso das cenas, a reportagem
traz, no último parágrafo, as consequências fisiológicas do aborto para a
mulher quando fala que, após dois dias, ela ainda estava perdendo sangue.

Em outra divulgação, Hillary Clinton, a secretária de Estado


americana, enquanto defendia a política de apoio à prática do aborto, citou o
Brasil para denunciar males do veto ao aborto, dizendo:

74Reportagem: "Não tinha a menor condição de criar mais um", diz empregada (Folha SP, 20/05/2007). Ver
página 52 do anexo 1.
119
"Eu visitei hospitais no Brasil onde a metade das mulheres
tinha o bebê com uma alegria entusiasta e a outra metade
lutava pela vida, após um aborto frustrado".
[...] "nós consideramos o planejamento familiar uma parte
muito importante da saúde das mulheres, e a saúde da
reprodução inclui o acesso ao aborto que, a meu ver, deve ser
seguro, legal e incomum75."

No combate às repercussões da clandestinidade do aborto, como a


criminalização, o adoecimento ou a morte da mulher e o abandono de recém-
nascidos, diversas organizações não-governamentais têm atuado na
prevenção de gravidezes indesejadas e de abortos clandestinos feitos em más
condições nos países em que o aborto é proibido76. Segundo o estudo de
Kath (2008, p.16) sobre gestações expostas ao misoprostol77 (princípio ativo
do Cytotec), “as tentativas de abortos malsucedidas aumentam a proporção
de crianças com malformações pelo uso de abortivos que podem ter efeitos
teratogênicos”. A autora menciona que aproximadamente 25% da população
mundial vivem em países com leis sobre o aborto altamente restritivas,
principalmente na América Latina, África e Ásia. Para Matos (2010), a
descriminalização do aborto está relacionada não só à liberdade de escolha
da mulher, mas à valorização da vida. O autor comenta em seu estudo que
em Portugal, país onde o aborto é legalizado desde 2007, houve uma
diminuição no número de mortalidade materna e de complicações por
abortamentos clandestinos em razão da descriminalização do aborto que
possibilitou a criação de políticas de saúde voltadas à melhoria na
assistência médica das mulheres e ao planejamento de vida/familiar. Em
Portugal, a mulher que deseja realizar o aborto precisa “passar por três dias
de reflexão”, entre a primeira e a segunda consulta médica, para que tenha

75Reportagem: Hillary Clinton cita Brasil para denunciar males do veto ao aborto (Folha SP, 22/04/2009).
Ver página 53 do anexo 1.
76Nas referências 3 e 4, trago indicações de sites de algumas dessas organizações e de vídeos com
documentários sobre o aborto no Brasil.
77 “Para muitas mulheres, a eficácia do misoprostol como método abortivo depende do acesso
imediato a hospitais para a finalização do aborto” (BRASIL, 2009, p.33). O misoprostol tem circulação
restrita no país e é “proibido para fins abortivos fora de indicações médicas controladas” (idem,
ibidem). A comercialização e circulação do misoprostol são desconhecidas, mas dados iniciais
mostram que essa “substância segue o do tráfico de drogas ilícitas” (idem, ibidem). Este medicamento
“entrou no mercado brasileiro em 1986 para tratamento de úlcera gástrica, e até 1991 sua venda era
permitida nas farmácias” (idem, p.35).
120
certeza da decisão de interromper a gravidez; afinal, a complexa decisão de
interromper uma gravidez inclui questões emocionais, morais e de agressão
ao corpo (MATOS, 2010, p.80). Nesse período, a mulher “tem direito a
atendimento de aconselhamento” com psicólogos ou profissionais de serviço
social e todo atendimento é feito gratuitamente em hospitais públicos (idem,
ibidem).

A legalização do aborto no mundo apresenta-se conforme a figura


abaixo78 (KATH, 2008, p.15):

Legenda do mapa:

VERMELHO: o aborto é ilegal em todas as circunstâncias ou é


permitido apenas em caso de risco de vida da mulher.

MARROM: o aborto é permitido por lei apenas em risco de vida


ou para proteger a saúde física da mulher.

LARANJA: o aborto é permitido por lei apenas em risco de vida


ou para proteger a saúde mental da mulher.

AZUL: o aborto é permitido por lei com base em motivos


socioeconômicos.

78 Disponível em: < http://www.womenonwaves.org/pt/page/461/legal-world-map >.


121
VERDE: o aborto é permitido mediante requisição.

Pontes, ao trazer relatos de mulheres que provocaram aborto em


clínicas clandestinas, comenta que a clandestinidade impede uma
assistência de qualidade, porque “os lugares aonde ocorrem os abortos não
são regidos por normas legais da área da saúde” (PONTES, 2006, p.69).
Assim, essa assistência é, às vezes, buscada na rede pública do sistema de
saúde, que, mesmo regida por normas de Atenção Humanizada ao
Abortamento (BRASIL, 2010), nas descrições das mulheres entrevistadas,
apresentou ocorrência de “atos de desrespeito”. Os dois espaços (público e
privado) podem implicar falta de escuta e acolhimento, discriminação e
retardo no atendimento. Os relatos trazidos no estudo de Pontes
caracterizaram o atendimento na unidade pública como “preconceituoso”,
com experiências “bem traumáticas”; nas clínicas privadas, o atendimento
foi descrito como “legal”, com orientação. Para ilustrar o atendimento em
saúde recebido pelas mulheres que compuseram a pesquisa79, trago a fala
de duas participantes. A autora identificou-as com nome de pedras. “Âmbar”
disse:

Você tem uma lei [...] isso é lei, né? Você foi violentada, tem
gravidez que você não quer, tem direito. Ou um filho
malformado, você tem direito. Agora me pergunta em qual
sistema de saúde oficial você pode fazer isso com facilidade.
Eu não conheço. As pessoas continuam procurando
alternativas. Se você tem alguma grana, você tem quem te
empreste, vai num troço bem feito. Se não tem, você vai pra
onde [...] (PONTES, 2006, p.75).

Já “Berilo” falou:

Eu não tive assistência porque foi escondido. Eu não permitia


que ninguém soubesse, porque eu tinha vergonha por tá
estudando, tá numa faculdade e ter me permitido engravidar
um atrás do outro pela terceira vez. Então, eu tinha vergonha.

79A pesquisa de Juliana Silva Pontes, intitulada Histórias de vida de mulheres que provocaram abortamento:
contribuições para a enfermagem, desenvolveu-se num Hospital Universitário do Rio de Janeiro. A autora
atuou nessa instituição durante a graduação em enfermagem e conseguiu aproximar-se das mulheres
e entrevistá-las porque participou do serviço de consulta de enfermagem ginecológica junto da
profissional responsável.
122
Não falava isso pra ninguém, nem para as minha amigas da
faculdade, pra minha família. Não falei isso pra ninguém
(PONTES, 2006, p.69).

E assim, pra tomar remédio sempre fui relapsa em relação a


mim; cuidar do outro não. Se eu tiver uma responsabilidade
de te dar uma medicação de hora em hora, você vai tomar.
Agora, em relação a mim [...] porque eu priorizava outras
coisas, priorizava meus filhos, priorizava faculdade [...]
esquecia de tomar remédio, foi e engravidei de novo (idem,
p.79).

Fiquei em pânico. Eu fiquei totalmente desestruturada e ao


mesmo tempo eu não queria contar pra ninguém; a única
pessoa que soube foi meu marido (idem, p.82).

As circunstâncias relatadas e os sentimentos das entrevistadas dão


pistas sobre algumas das experiências vividas por mulheres de nosso tempo.
Mulheres que têm sido estigmatizadas, punidas e culpadas por terem tido
autonomia para fazer escolhas relativas a seus corpos e vidas. Trouxe suas
falas para tentar promover o pensar sobre quantas pedras, não menos
preciosas que “Âmbar” e “Berilo”, estariam presentes em nosso convívio, e
podem ser muitas. Contudo, as “verdades” em funcionamento – na sociedade
e em nós mesmos – dificultam a emergência de falas sobre os sentimentos e
valores associados ao aborto pelas mulheres, mostrando o efeito e a força do
“enredamento” dos sujeitos nas tramas discursivas. Trazer essas falas não
significa que elas transformam as relações, mas que apontam para outras
relações possíveis.

O véu que pretende “cobrir” essas experiências é tecido por


sentimentos e “verdades” que, muitas vezes, machucam. Talvez seja melhor
deixar de falar disso. É melhor não mexer nessas pedras. Deixá-las paradas
e mudas vai perturbar menos a estabilidade dos “muros” criados por nossas
“verdades” sobre a “perfeição” e “glamour” da noção materna implicada na
vida da espécie humana, assim como deixar de falar sobre as práticas
médicas relacionadas ao mercado lucrativo gerado com a ilegalidade do
aborto e sobre as repercussões, na vida e saúde, do fato de que “muitos dos
brasileiros não conseguem acessar o SUS” (MATOS, 2010, p.90).

123
Outra questão relativa ao atendimento do serviço de saúde que não se
fez presente nas edições dos jornais analisados relaciona-se ao modo como
as mulheres que abortam têm sido tratadas nesses espaços. O jornal Correio
Braziliense trouxe a discussão desse tema a partir da pesquisa80 de tese
intitulada: Mulheres jovens e o processo do aborto clandestino: uma
abordagem sociológica, de autoria de Simone Mendes Carvalho (2009).

Na reportagem, são referidos os dados do estudo, mencionando que há


demora no atendimento dessas mulheres, que elas são submetidas a
procedimentos sem anestesia e que geralmente são de baixa renda. Como
sugere o texto:

Devido ao despreparo de profissionais e à discriminação,


mulheres que recorrem ao aborto induzido no país são
maltratadas ou atendidas inadequadamente no sistema de
saúde.
Essa é um das conclusões de uma tese da enfermeira Simone
Mendes Carvalho (Fiocruz). O estudo mostra que há demora
no atendimento dessas mulheres e que elas são submetidas a
procedimentos sem anestesia. Geralmente são mulheres de
baixa renda que abortaram.
A enfermeira entrevistou 16 mulheres que tiveram 44
gestações e abortaram 22 vezes, procedimento ilegal no Brasil.
Na maioria dos casos, elas tinham menos de 20 anos,
alegaram não ter condições de sustentar um filho ou
instabilidade no relacionamento com o parceiro.
De acordo com o estudo, os 22 abortos foram realizados em
condições de risco. Entre as técnicas utilizadas, estão a
ingestão de comprimidos, chás abortivos, clínicas clandestinas
e técnicas populares com a introdução de talo de mamona ou
gaze.
Em pelo menos de dez casos, os resultados desses métodos
foram complicações médicas, com hemorragias, cólicas, dores
fortes e desmaios. Encaminhadas posteriormente a uma
unidade de saúde, as mulheres definiram o atendimento como
péssimo ou ruim.
“Olha, não recebem bem porque sabem que o aborto foi
provocado, por mais que você tente dizer que não, eles sabem,

80Trouxe essa reportagem para ilustrar questões que não se fizeram presentes nas edições dos jornais
para análise. Assim, apesar de essa reportagem incluir outro jornal é trazida aqui porque mostra o
registro, no espaço jornalístico, de relevantes circunstâncias relacionadas ao aborto não encontradas
nas edições dos jornais ZH e Folha SP de 2007 até 2012. A reportagem refere-se à tese intitulada:
Mulheres jovens e o processo do aborto clandestino: uma abordagem sociológica. Autoria de Simone Mendes
Carvalho, orientação de Profª. Drª. Karen Mary Giffin – Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio
Arouca (ENSP/FIOCRUZ), RJ, 2009.
124
porque são profissionais, né? E para te dizer, eu fiz a
curetagem a sangue frio”, conta uma das entrevistadas.
Para a pesquisadora da Fiocruz, o mau atendimento reflete o
julgamento moral que os profissionais fazem sobre quem
abortou. Esse tratamento, seguido das práticas arriscadas
para interromper a gestação, desestimula as mulheres a
procurar o serviço médico e aumenta o número de mortes em
decorrência do procedimento.
De acordo com o Ministério da Saúde, o aborto é a quarta
causa de morte materna no país e a terceira no estado do Rio.
“Em primeiro lugar, a equipe tem que salvar a vida.
Independentemente do que o paciente tenha feito. Caso
contrário, os bandidos que chegam baleados nas emergências
não seriam atendidos”, criticou a pesquisadora. “Eles tratam
mal porque fazem juízo de valor”.
O Conselho Regional de Enfermagem (Coren) reconhece o
problema no atendimento e admite que cerca de 80% das
pacientes que fizeram o procedimento, até mesmo aquelas com
autorização judicial, são hostilizadas de alguma maneira nas
unidades.
“Não há acolhimento. Elas sofrem preconceito”. De acordo com
a vice-presidente do Coren do Rio, Regiane de Almeida, acabar
com o problema requer mudança cultural e estímulo.
“A categoria de enfermagem é uma categoria feminina que
poderia entender mais esse momento”, afirmou81.

A discriminação como efeito do julgamento moral, a falta de


acolhimento, o juízo de valor reafirmando “verdades” sobre o papel da
mulher e crenças que estão em constante modificação mostram ações
desrespeitosas e pouco “profissionais”, caracterizadas pela demora no
atendimento dessas mulheres e sua submissão a procedimentos sem
anestesia. Denotam, também, uma forma de atendimento diferenciado,
comparado a uma punição social e à tortura física, como uma espécie de
preço a pagar pela intransigência às leis, crenças e valores em prol da “vida”,
servindo como aprendizado para as próximas experiências decorrentes dos
riscos de suas escolhas reprodutivas.

É interessante destacar, ainda, o elevado número de reportagens que


debatem e divulgam, em páginas policiais, situações de prisão, indiciamento,
corrupção e mandado de busca e apreensão por envolvimento com a prática
ilegal do aborto.

81Reportagem: Mulheres que abortam são maltratadas no serviço de saúde, revela pesquisa (Correio
Braziliense, 14/02/2010). Ver página 54 do anexo 1.
125
As distintas circunstâncias e atores envolvidos no/com abortamento
que têm sido apresentadas tanto pelas reportagens quanto por estudos
levam a perceber a falta de diálogo entre os fundamentos religiosos, as
(bio)políticas de Estado e os diversos valores culturais que constituem os
pensamentos da sociedade brasileira. Nessa relação, a articulação de tais
discursos produziu e pode estar produzindo redes discursivas que cerceiam
o exercício da autonomia reprodutiva das mulheres, atuando, talvez, como
uma espécie de conjunto de violências institucionais. Ao mesmo tempo, em
nome da segurança e prevenção de riscos, constata-se um número enorme
de estratégias de combate e controle desses crimes com punições, coações,
condenações e prisões dos envolvidos – como um esquadrão da vida/morte.

Ao perceber tais controvérsias e embates, alguns questionamentos


foram produzidos: será que existe prática de aborto legal? Quais as razões
para a incessante busca pela imposição de determinados modelos de vida?
Qual a relação dessa tentativa de condução dos indivíduos com o domínio do
viver? Quais vidas são fundamentais e invioláveis e por quê? Se, para a
questão anterior, existir resposta, isso significa que a noção de sacralidade
da vida não se aplica a todos? Parto dessas questões para, na próxima
seção, abordar algumas circunstâncias ligadas ao aborto ilegal e espontâneo.

126
4.3. O silêncio, o corpo “habitado”, as vidas clandestinas

Hoje, as necessidades de consumo (e, em muitos casos de


subsistência) e as cobranças para as mulheres ingressarem no mercado de
trabalho, formal ou não, foram modificadas, levando as mulheres a
trabalharem fora de casa. Muitas vezes, ela não tem tempo para os filhos,
não tem como sustentar a alimentação, os medicamentos, a educação; não
tem moradia para acomodar uma criança; pode viver em condições
insalubres em que uma criança não sobreviveria por muito tempo; pode não
ter ou não desejar um parceiro fixo para dividir as responsabilidades de ter
um filho; pode estar num processo de formação de carreira profissional,
situação em que o feto representa o risco de mudar sua vida ou de
interromper um planejamento que estava em curso; ainda, pode recusar a
ideia de deixar seu filho sozinho enquanto sai para trabalhar – não
raramente, no cuidado da casa e dos filhos de seus empregadores ou
patrões. Esses são alguns exemplos que podem estar envolvidos na prática
do aborto e na colocação da vida em jogo numa clínica clandestina.

Por outro lado, formas de gravidez indesejada também podem ocorrer


porque o método contraceptivo de alguma forma “falhou” ou por estupro, por
exemplo. Tais circunstâncias trazem a questão da liberdade de escolha da
mulher em relação ao seu corpo, desejos e vida/morte e ainda apontam
relações ocasionadas pelo medo de enxergar e de conviver com a pobreza.
Por isso, parece bastante conveniente que a camada empobrecida fique à
margem do centro, na periferia, marginalizada desde a criação das cidades.
É um mal necessário?

Criar discursos mascarados por aceitação ou compaixão, sem relação


de reconhecimento de necessidades, em minha opinião, pode gerar mais
preconceitos, estigmas e punições sociais. Então, me pergunto: será que a
forma de vida desses sujeitos não é visível? Ou será que nossas práticas têm
se resumido a esconder com “muros” ou afastar dos olhos o que nos
incomoda?

127
Só para ilustrar essa provocação e desconsiderando a estatística sobre
o número da pobreza, no Brasil, abro um parêntese para um relato meu.
Passando, outro dia, por uma requintada praia próxima de Porto Alegre
(RS/Brasil), percebi de um lado da estrada um paredão com entradas
imponentes que cercavam uma série de condomínios compostos por casas
luxuosas enfileiradas, localizados em frente ao mar. Do outro lado, seguiam
amontoados de pequenas casas, conformando vilas. Então, pensei que, às
vezes, não dá para deixar de perceber o que somos capazes de fazer para
tentar esconder e afastar as coisas, os modos de vida e os sujeitos que nos
atormentam e que nossos olhos insistem em enxergar. Esse momento me fez
pensar que, quando algo nos emociona, perturba, afeta ou inquieta, nos
torna sensíveis. A sensibilidade desperta a percepção, a reflexão e a crítica
sobre os valores e as “verdades”. Nesse sentido, a sensibilização pareceu-me
uma estratégia, ou uma condição de possibilidade, capaz de proporcionar
rupturas, mudanças, transformações.

Porém, como mencionava anteriormente, na tentativa de afastar dos


olhos o que nos incomoda, aparecem, ainda, as mulheres grávidas
desnutridas, vivendo desabrigadas, sem acompanhamento médico e
consumindo drogas lícitas, como o tabaco e o álcool, e ilícitas, como a
cocaína e os seus subprodutos o crack, óxi e merla por exemplo.

Os problemas causados às mulheres grávidas e aos seus filhos pela


intensificação do consumo do crack têm sido bastante abordados nas
reportagens e têm ocupado generosos espaços na mídia a qual alerta que o
Brasil tem se mostrado o maior mercado de crack do mundo e o segundo de
cocaína82. A ênfase dos textos está em esclarecer sobre os impactos
causados pelas drogas no desenvolvimento dos fetos; entre eles, está o
nascimento prematuro, com retardo mental, déficit de aprendizagem e
hiperatividade. Além desses problemas, as reportagens informam que tais

82 Reportagem: Brasil é o maior mercado de crack no mundo, aponta levantamento (Folha SP, 05/09/2012).
Ver página 56 do anexo 1.
128
condições aumentam as possibilidades de ocorrer abortos, hemorragias e
descolamentos de placenta, como mostra a imagem83 abaixo.

83Reportagem: Operação da PM escancara drama das grávidas do crack em SP (Folha SP, 12/01/2012). Ver
página 58 do anexo 1.
Apesar de esta análise centrar-se no texto escrito e não nas imagens das reportagens, apresento
algumas delas a fim de visualizar as maneiras produtivas como os jornais mostram modelos de corpos
e de vidas.
129
As sequelas aparecem relacionadas à condição de existência da mãe e
ao uso de drogas entorpecentes. Como saber o que mais prejudica ou qual a
causa principal diante desse conjunto de fatores?

A reportagem intitulada Grávidas do crack84 (Folha SP, 2012), num


extenso texto, contando detalhes da vida das usuárias que habitam a área
chamada de cracolândia em São Paulo, com base num estudo da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com dez grávidas, informa:

Imagem dos habitantes da cracolândia85.

Apenas duas estão fazendo o pré-natal. Todas elas


engravidaram na região central de São Paulo. [...] quando
foram feitas as entrevistas da Unifesp, sete estavam entre o
quarto e o sexto mês de gestação. Apenas uma concluiu o
ensino fundamental.
Cinco das gestantes sabem quem é o pai do filho: parceiros do
crack. Oito já tinham filhos e três haviam sofrido abortos
anteriores. Seis grávidas fumavam até dez pedras por dia. As
demais chegavam a consumir 20 pedras.
Metade das gestantes financia o consumo de crack pedindo
esmola e ou trocando sexo pela droga.
Se a cracolândia acabasse, para onde você iria?, perguntaram
os pesquisadores. Todas responderam: para outra cracolândia
ou para qualquer outro lugar que tenha crack.
A missionária da igreja Batista no projeto Cristolândia, que
trabalha com viciados em crack, diz que é difícil conseguir

84COLLUCI; PAGNAN, 2012. Reportagem: Grávidas do crack (Folha SP, 12/01/2012). Ver página 60 do
anexo 1.
85Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/top-da-semana/01-de-setembro-a-07-de-setembro.ht-
m>.
130
vagas em clínicas de recuperação para mulheres grávidas. "As
clínicas não aceitam porque não têm o que fazer com o bebê."
Por ainda estarem nas ruas, essas mulheres perdem a guarda
dos bebês logo na maternidade, segundo ela. Os hospitais,
para proteção da criança, não liberam a criança nessas
condições.
"Quando eles perdem o bem mais precioso de suas vidas, se
afundam ainda mais nas drogas. É um círculo vicioso", relata
(COLLUCI; PAGNAN, 2012).

Conforme o excerto da reportagem, a esmola e o sexo são as fontes de


renda que financiam a compra da droga, mas o preço cobrado pelo consumo
dessa substância vai muito além, pois é pago com a deterioração do corpo,
dos sentimentos, da saúde, da vida da usuária e da vida do feto.

O inegável peso do texto faz pensar na constituição dos valores


atribuídos ao viver e mostra que, apesar de estarem numa situação de ampla
vulnerabilidade, algumas dessas mulheres não tinham uma vida
caracterizada como de extrema pobreza ou sem família antes do vício, como
podemos observar neste outro recorte86 da mesma reportagem:

SARA, 27. GRÁVIDA HÁ CINCO MESES. USUÁRIA DE CRACK


HÁ 16 ANOS
Tinha 11 anos quando um tio lhe ofereceu a droga. [...] se
sentia rejeitada pela família, motivo pelo qual abraçou o vício.
Ela diz ter conseguido abandoná-lo por alguns anos e, no
período, teve três filhos. Em 2009, porém, teve uma recaída.
Isso aconteceu após o marido ser preso. Para sustentar a casa,
passou a trabalhar até tarde da noite. Deixava os filhos com a
sogra cadeirante. "Uma noite, quando cheguei, o conselho
tutelar tinha levado todos os meus filhos. Aí, me afundei nas
drogas."

86 O álbum com as fotos das entrevistadas na cracolândia está disponível no site: <
http://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/6082-gravidas-na-cracolandia#foto-114118 >.
131
Nos últimos seis meses, ela morou na cracolândia.
Sara afirma que esteve internada sete vezes. Ontem, tentava
nova internação. "Não quero perder mais um filho."
Ela diz que sua principal preocupação, agora, é com a saúde
do bebê. Antes fazia de tudo pela droga. "Já matei, já roubei.
Me prostituí87."

Sara relata que começou a usar drogas por incentivo do tio e por
sentir-se rejeitada pela família. Contudo, conseguiu afastar-se das drogas e,
nesse período, constituiu uma família. Porém, com a prisão do marido e a
perda da guarda dos filhos, após muito esforço para sustentá-los, retornou
ao ponto de fuga, “afundou nas drogas”, cometeu crimes e sofreu abortos.
Preocupada com a saúde do feto, disse: “não quero perder mais um filho”.
Essa reação diante das circunstâncias e experiências que as pessoas
vivenciam expressa a constituição de outros valores para a sua vida e para a
vida do feto. Tais valores passam a determinar as escolhas e a orientar ou
dirigir suas condutas. Nessa direção, segue o relato de Lilian:

LILIAN, 26. GRÁVIDA HÁ NOVE MESES. USUÁRIA DE CRACK


HÁ QUATRO ANOS.
Lilian diz ter começado a usar cocaína aos 22 anos, quando
frequentava estacionamentos de postos de combustível para
ouvir música com colegas. O crack veio na sequência.
Lucas, que carrega agora na barriga, pode nascer a qualquer
momento. Lilian [soropositiva] ainda não sabe como fará para
tirá-lo do hospital sem ter endereço nem emprego fixo.

87 Idem nota 84. Reportagem: Grávidas do crack (COLLUCI; PAGNAN, 2012).


132
A filha [dois anos e oito meses] mora com um irmão e com a
cunhada. "É muito estranho ver minha filha chamar minha
cunhada de mãe. Eu, para ela, sou a tia."
O bebê que leva na barriga fica agitado, conta, quando ela usa
droga ou quando está em abstinência. Os exames dizem que a
criança está normal. A jovem diz conversar muito com o bebê
na barriga. "Peço tanta desculpa que já nem sei se ele as
aceita mais."
Lilian não quer mais ter filhos. Diz que aceita ser internada,
mas desde que a clínica receba também seu atual namorado,
que ela admite ter arrastado para o crack.
"Se for com ele [o namorado], eu vou agora mesmo88."

A fala de Lilian expressa o sentimento de culpa pela distância da filha,


pelos riscos que ela provoca ao filho que espera e por ter induzido o
namorado ao consumo da substância. Além disso, seu relato dá visibilidade
a uma nova configuração de família, que, mesmo em situações adversas,
mantém relações de afeto, proteção e dependência, como podemos ver
também no próximo relato:

JOYCE, 19. GRÁVIDA HÁ DOIS MESES.


USUÁRIA DE CRACK HÁ SETE ANOS.
Joyce chora ao falar da prisão do companheiro, ocorrida na
cracolândia há seis dias, por tráfico de drogas.
"Ele me protegia. Agora estou só eu e o bebê."
[...] a jovem admite temer pela saúde da criança que carrega,
dada a vida que leva.
Joyce cogita entregar o bebê para adoção, a fim de que tenha
"uma vida melhor".
Ela diz já ter se prostituído para comprar drogas. Está na
cracolândia, conta, para que sua filha de cinco anos não a veja
nas atuais condições.
"Mas eu tenho a guarda [da filha de cinco anos]. Quando
quiser, eu pego ela de volta."
"A gente é dependente químico. É uma doença. Quando entra
na veia da gente, acabou, nunca mais sai89."

88 Idem nota 84.


133
A preocupação com o bem-estar e com a saúde dos filhos e a sua
decisão em afastar-se deles denotam a noção negativa que Joyce tem de sua
situação e de seu modo de vida; além disso, revelam a sua condição de
dependência e/ou doença. O contrário é apresentado no relato que segue:

DÉBORA, 28. GRÁVIDA HÁ CINCO MESES. USUÁRIA DE


CRACK HÁ 16 ANOS.
Débora começou a usar crack aos 12 anos, quando, afirma
ela, envolveu-se emocionalmente com um traficante.
Hoje, ela tem quatro filhos de três pais diferentes. Espera pelo
quinto, que não será o último, ela promete.
Débora diz que quer ter mais um filho para homenagear o
atual companheiro.
Eles "moram" nas calçadas da rua, no bairro nobre, em razão
da "generosidade" das pessoas nas doações. Só conseguem
comprar drogas, afirma Débora, por causa delas.
"Roubar, nunca roubei."
No Natal, ela recebeu a visita de uma filha. A menina pediu
um chocolate. "A mamãe não tem dinheiro."
Débora diz ter sido internada várias vezes. Seu sonho, conta, é
ter uma carroça para catar papelão e, assim, ganhar dinheiro,
comprar um barraco e reunir os filhos.
"Todo mundo pode ter um sonho, por que eu não90?"

A fala inicia curiosamente com a argumentação de que um filho pode


servir para homenagear o companheiro, como um modo de Débora expressar
seu afeto e reconhecimento da importância que ele tem em sua vida. Isso
torna possível perceber que algumas pessoas, não tão raras, cultivam a
interpretação de que a reprodução configura um ato que se propõe a ser

89 Idem nota 84.


90 Idem nota 84.
134
superior, mais importante e desvinculado do fato de colocar a vida de um
embrião e, logo, de uma criança num jogo de risco que envolve a
possibilidade de desenvolver sequelas, passar necessidades e fome, contrair
doenças e vícios e, ainda, expô-la a ambientes violentos, com propensão à
prostituição e à morte. Ao que parece, o filho, assim como um presente, tem
a função de provar algo ao companheiro, o que eximiria a mãe de qualquer
preocupação relacionada com a preservação da vida do novo indivíduo, mas
isso não significa que ela não sinta afeto por ele.

A fala sobre essa “contravenção” é seguida por valores, como o de não


roubar e o da liberdade de sonhar: "Todo mundo pode ter um sonho, por que
eu não?". Isso leva a pensar que as privações fazem parte de seu cotidiano,
mas não a impedem de ter esperança e sonhar. Por estar vivendo nas ruas
de um bairro nobre, a ajuda que Débora recebe reverte em condições para o
consumo do crack sem que precise roubar. Além disso, possibilita que ela
alimente a esperança de reunir a família com o resultado de seu trabalho –
quando conseguir realizar o sonho de comprar uma carroça, sonho tão
pequeno e com um resultado imenso para a vida dela. O maior problema são
as “pedras” em seu caminho. Aliás, como sugere o próximo relato, a dureza
das pedras não falta no caminho das pessoas que convivem com esse vício.

JÉSSICA, 20. GRÁVIDA HÁ SEIS MESES. NÃO SE LEMBRA


HÁ QUANTO TEMPO É USUÁRIA.
Chove na rua e a jovem Jéssica não consegue abrigo.
Encharcada, é tocada de uma marquise a outra.
Transportadoras, lojas [...] ainda abertas não querem a
menina por perto, um fiapo magrinho vestido com um collant,
o barrigão de fora. No fim da tarde, fechado o comércio, ela
135
encontra sossego e estica seu papelão no chão, para
descansar.
Jéssica diz que quer ficar com o bebê. Ela sabe que a regra é
dura. Se não tiver um endereço fixo até o parto, perderá a
criança. "Aí, eu deixo o nenê com a minha mãe", diz. O
problema é que Jéssica não fala com a mãe há dois meses. As
duas não se dão.
A jovem diz que já passou no posto de saúde que atende a área
da cracolândia, para fazer um pré-natal.
Na testa dela, é possível ver um hematoma proeminente e
muitas escoriações.
"Eu nem sei direito como isso me aconteceu."
Depois de cinco minutos de uma conversa feita com muita
dificuldade, Jéssica acende de novo seu cachimbo de crack91.

Essas habitantes de lugar nenhum ou, segundo Bauman (2005), esses


“refugos humanos”, quase invisíveis, inadequados, que são enxotados e
agredidos no meio urbano, levam a pensar em muitas coisas, entre elas:
para onde irão as crianças que conseguirem nascer nessas condições?
Conforme as falas das mulheres, vão para o Conselho Tutelar, para a casa
das cunhadas, irmãs e mães ou serão encaminhadas para adoção. Além
disso, essas crianças correm um grande risco de nascer com sequelas e
precisarão de atenção e cuidados especiais em casa, na escola, nas unidades
de saúde. Essas crianças constituirão outros refugos nascidos com a marca
do descarte iminente? Como fugir dos estigmas de projetos abandonados e
de vidas desperdiçadas?

Bauman (2005, p.28), ao falar da constituição do refugo humano,


comenta:

Saber é escolher. Na fábrica do conhecimento, o produto é


separado do refugo, e é a visão dos potenciais clientes, de suas
necessidades e desejos, que decide o que é o quê. Sem lugares
para depositar o lixo, a fábrica do conhecimento está
incompleta. É por cortesia da escuridão circundante que a luz
do conhecimento ilumina. Ele é inconcebível sem a ignorância
[...] A precisão, a exatidão e a utilidade pragmática do
conhecimento crescem na proporção desses espaços. Para
todos os fins e propósitos práticos, as coisas excluídas –
tiradas de foco, jogadas às sombras, empurradas para
panorama de fundo vago ou invisível – não mais pertencem ‘ao
que é’. A existência lhes foi negada, da mesma forma que um
espaço próprio no mundo da vida. Foram desse modo

91 Idem nota 84.


136
destruídas – porém com uma destruição criativa. [...] eliminar
‘não é um movimento negativo, mas um esforço positivo para
organizar o ambiente’.

A leitura que fiz desse texto, em articulação com as falas


apresentadas, fez ver que, por cortesia das irregularidades em relação às
normas, são criadas as “verdades”. Tais “verdades” crescem na proporção
dos espaços criados entre as diferenças entre o que é correto e errado. Nesse
universo, quem não se deixa guiar pelas “verdades” acaba ficando à margem
e perde o foco, criando, assim, sua própria invisibilidade – isso contribui
para que o ambiente fique organizado. No entanto, a importância da
invisibilidade vai além, pois admite a eliminação de algumas existências. O
problema é que nenhum objeto pode tornar-se refugo por suas qualidades
intrínsecas ou por sua lógica interna, mas porque lhe foi atribuído um “papel
de refugo nos projetos humanos”; uma vez nesse papel, o ator pode adquirir
todas as características misteriosas, aterrorizantes, assustadoras e
repulsivas (BAUMAN, 2005, p.32).

Os relatos tornam possível visualizar a noção de risco operando em


nosso cotidiano e indicando os valores que os corpos e a vida/morte
adquirem como consequência direta das escolhas e atitudes individuais
frente às ações institucionais. A qualidade de vida é consequência dos
comportamentos e hábitos pelos quais os sujeitos optaram, configurando as
implicações de um estilo de vida92.

Além disso, esses relatos norteiam o seguinte questionamento: até que


ponto é necessária a marginalização/patologização/predisposição de alguns
para que outros se tornem parâmetros de normalidade/verdade?

Considerando-se que a promoção da saúde é uma atividade biopolítica


e que a biopolítica tem se convertido em bioeconomia, a vida passou a ser
assumida como uma dimensão política passível de governos, por meio de
“políticas públicas e de vigorosas ações bioeconômicas de empreendimentos

92Conforme a Organização Mundial de Saúde (OMS), o estilo de vida constitui-se em um “modo de


viver baseado em padrões identificáveis de comportamento, determinados pela interação entre as
características pessoais, trocas sociais e condições socioeconômicas e ambientais”, assumindo o
profundo efeito que tem na saúde dos indivíduos (CASTIEL, DIAZ, 2007, p.27).
137
privados” (CASTIEL, 2010, p.164; ROSE, 2011a). Tais práticas tornam
evidentes os benefícios trazidos para alguns e a falta de acesso a essas
benesses para “outros, que podem, inclusive, desaparecer, sem trazer danos
à ordem jurídica vigente, pois esta passa a admitir estados de exceção”
(CASTIEL, 2010, p.164). Essa compreensão leva a pensar nas privações e
nos privilégios daquilo que é necessário à vida com a condenação ou a
salvação prometida pela promoção da saúde, que configura um
prolongamento da vida ou “mais vitalidade”.

A partir de Rose, Castiel (2010) comenta que o discurso das


predisposições cria a “pessoa predisposta”. Assim, a conduta desregrada da
mãe grávida e seus maus hábitos, como o consumo de drogas, tornam o
embrião predisposto a apresentar problemas de desenvolvimento e a tornar-
se, após o nascimento, um indivíduo com predisposições a problemas de
saúde, portanto, um pré-doente ou um potencial doente. Conforme esses
autores,

[...] nos últimos 150 anos, as elaborações sobre o risco têm


sido cruciais à biopolítica e no interior dos contextos
sociopolíticos liberais avançados, as interações entre a
dimensão biológica individual e a saúde e bem-estar coletivos
não consiste mais em questões de classificação, identificação,
restrição, eliminação de indivíduos deficientes ou de promoção
eugênica de traços esperados em função da aptidão geral seja
da população, da nação ou da raça. Mas, sim, de estratégias
biopolíticas que identificam, gerenciam e prescrevem ações
preventivas e curativas para indivíduos, grupos e locais com
altos níveis de risco.
[...] A religião capitalista de espetáculo e consumo é excessiva
e estrita. Para não ser consumido por ela, os arautos do
consumo da vitalidade e saúde tentam alimentar uma culpa
putativa e pregam práticas com elementos assépticos, sob a
égide das provas (evidências) das ciências da saúde como
argumento definitivo, pressionando o indivíduo que não
assume a racionalidade evidente do discurso da auto-
contenção (CASTIEL, 2010, p.176).

O autor menciona que a noção contemporânea de controle


comportamental dos riscos do “estilo de vida” à saúde apresenta pontos de
conexão com a dimensão moral quando se aproxima da perspectiva do
século XIX ao explicitar “os riscos resultantes de ações que escapem das

138
rédeas moralistas aplicadas ao comer, beber, exercitar-se, etc.” – entre os
infindáveis cuidados de si (CASTIEL, 2010, p.176).

A partir disso, torna-se visível a dimensão moral enfatizada nos


discursos de diversos especialistas sobre prevenção e promoção de saúde.
Tais discursos produzem, além da responsabilidade individual nas decisões
voltadas a essas metas, a culpa diante das contravenções cometidas e
desajustadas ao “estilo de vida” que visa a minimizar a doença e otimizar a
saúde ou, ainda, a acrescentar melhores condições de saúde e mais tempo
de vida para que se viva mais e melhor – eis as fontes da vitalidade. Isso
exige que a própria vida seja conduzida

[...] de modo estratégico e responsável em relação aos outros


de modo a ponderar decisões sobre empregos, casamentos,
reprodução à luz de elementos biomédicos e epidemiológicos. A
saúde pública atual espera isso de cada um de nós (CASTIEL,
2010, p.177).

Dessa noção, torna-se evidente a relação dos fatores que envolvem a


qualidade de vida e o estilo de vida com as estratégias de promoção da saúde
– como formas ou meios de obter mais saúde. A saúde, percebida como um
benefício decorrente de diversos investimentos, não recompensa apenas o
indivíduo, mas também a economia e a sociedade – do contrário, gera
prejuízo para todos.

Numa época em que a modelagem das práticas ocorre de acordo com a


meta do projeto humano, as recompensas por todo esse empreendimento
nos modos de viver e na administração dos prazeres, rituais e contenções (no
comer, no beber, no sedentarismo, no tabagismo, no estresse, no mau-
humor, no isolamento) são comprovadas e disponibilizadas por pesquisas
científicas que recomendam um estilo de vida como o melhor modo de
conduzir-se e que seja, ao mesmo tempo, ativo, relaxado e extrovertido. Elas
marcam, através da falta de possibilidade de acesso (por questões pessoais e
socioeconômicas), os indivíduos mais propensos a não desfrutar dessas
recompensas (CASTIEL, 2010). Porém, os especialistas, ou “gestores do viver
saudável”, alertam que os rituais moralizantes de segurança também

139
demandam controle, pois os excessos podem gerar problemas e dificultar a
recompensa, comprometendo os ideais de vitalidade e longevidade.

Aliada às prescrições para a vitalidade, a popularização dos dados da


pesquisa pela mídia destaca como “efeitos colaterais”, nas condições de
existência apresentadas, a produção de muitas mortes, mas também de
muitas vidas e de pouca saúde, o que resulta num maior investimento e
gasto institucional. Para controlar esses riscos, têm sido criadas estratégias
ou políticas de prevenção e combate ao crack através de campanhas
anticrack, como, por exemplo, Crack nem pensar, do grupo RBS93, e de
centros de tratamento e ajuda no controle da abstinência para os usuários
de drogas, como as Equipes de Consultório na Rua – eCR e o Complexo
Prates94.

Assim, podemos perceber que a busca pela avaliação e governo dos


riscos para obtenção da vitalidade leva à promoção da saúde, ao
gerenciamento das doenças, à constituição dos estilos de vida
(comportamentos e escolhas), à gestão da reprodução e até mesmo da morte.

Levando em conta o modo como alguns países lidam com essa


questão, e independentemente de minha posição – e, por isso, sem nenhuma
intenção de fazer apologia ao consumo de drogas, pois, por vários motivos,
sou contra –, uma questão que inevitavelmente emerge dessa discussão e
acontecimentos é: será que existiriam tantos tipos de drogas sendo lançadas
no mercado, prejudicando tantas pessoas, onerando o Estado e
enriquecendo outras, caso o consumo, a produção e a distribuição das
drogas fossem legalizados e regulamentados, ou seja, fossem controlados
pelas empresas privadas e pelo Estado, assim como o cigarro, as bebidas

93 Disponível em: < http://cracknempensar.blogspot.com.br/ >.


94 Conforme publicação no jornal Folha de São Paulo:
Principal investimento da Prefeitura de São Paulo para dar apoio a dependentes de drogas da cracolândia, o
Complexo Prates, capaz de atender até 1.200 pessoas ao dia, será inaugurado incompleto.
“A obra da saúde está um pouco mais atrasada. A plena carga, só final de fevereiro, começo de março. Como nós
acreditamos que vamos receber muitos moradores dependentes químicos, era necessário que este espaço nascesse
junto com a saúde’, disse a secretária e vice-prefeita em entrevista à TV Folha.
Reportagem: Centro anticrack será aberto incompleto (Folha SP, 12/01/2012). Ver página 65 do anexo 1.
140
alcoólicas e os remédios? Dito de outra forma: diante de um grande
problema de saúde correndo desordenadamente na contramão dos discursos
de promoção de saúde e vitalidade, em diversos níveis, será que a
regulamentação do consumo poderia promover ou ajudar a redução do
número de usuários e o controle das causas e dos efeitos para estes, assim
como para a economia e para a sociedade?

Aliás, numa sociedade lastreada por estratégias biopolíticas que


reivindicam “verdades” para a vitalidade, em que se promete a fugaz
felicidade com o consumo, as drogas poderiam configurar outro produto a
prometer: o entusiasmo, a autoestima, a alegria e o alívio com a eliminação
da dor, angústias, depressão e ansiedade, devido à ação química de
substâncias/medicamentos usados, por vezes, de modo abusivo.

Como produto que promete a felicidade momentânea durante o


consumo, a oferta de tipos e preços variados confere a determinação do
poder econômico do consumidor em relação às possibilidades oferecidas
pelos “bolsos” dos indivíduos. Porém, os efeitos ou sintomas da drogadição
repercutem biológica, psicológica e socialmente, independentemente da
“classe” econômico-social. Trata-se de efeitos colaterais para o indivíduo,
economia e sociedade, daí a enfática reivindicação pelas mudanças de
comportamento e estilos de vida focalizadas nos investimentos e no consumo
para a vitalidade – consumir sem se consumir. As estratégias ou políticas de
prevenção e combate ao uso de drogas e as campanhas de saúde mostram
ambiguidades no gerenciamento da própria vida, pois, embora o indivíduo,
em determinadas circunstâncias, seja considerado responsável e capaz de
escolher o que é melhor para seu corpo e saúde, em outras, pode ser
considerado impotente e incapaz de conduzir suas práticas, necessitando de
prescrições e orientações de especialistas que o conduzam.

Na tentativa de encerrar este capítulo, gostaria de ressaltar que, na


busca por conhecer os caminhos e atravessamentos por onde passam as
questões do aborto, estas análises podem dar algumas pistas sobre as
circunstâncias e as relações que podem estar envolvidas nessa problemática.

141
Por isso, não considero que sejam fixas; afinal, em seus caminhos, devem
aparecer outros desdobramentos.

Sem procurar uma solução, aponto possíveis “brechas”. Pensadores,


como Foucault, falam do corpo como lugar de inscrição dos acontecimentos
– seja em gerar vidas, seja em definir e agir sobre os limites do viver, sobre a
beleza desse corpo, comportamentos, deveres... Contudo, se lembrarmos que
as escolhas são individuais, num determinado contexto, e regidas pela
criação de espaços de “liberdade”, talvez seja possível dar maior atenção e
investimento à importância do ato de pensar criticamente sobre as práticas
que nos atravessam cotidianamente – neste caso, os discursos e imperativos
de “verdade” presentes na mídia impressa, por exemplo. Eis a possibilidade
de aventurarmo-nos em outros modos de pensar ou de tomarmos
conhecimento de que é possível pensar de outras formas e talvez nos
arriscarmos a mudar a relação e produzir outras práticas de “liberdade”!

Trouxe essas questões – estupro, clandestinidade, consumo de drogas


– ligadas ao aborto para tentar mapear a rede em que se insere a
problemática do aborto hoje e, ainda, para destacar a possibilidade de morte
no sistema de biopoder como resultado ou parte das estratégias (bio)políticas
que se valem dos discursos de valorização ou desvalorização da vida de
alguns indivíduos em relação aos modos de vida de outros – tidos como
referenciais ou padrões das normas. Porém, se a valorização significa a
possibilidade de investimentos no viver, a desvalorização implica a falta de
investimentos na vida. Tais práticas remetem à função de morte, pois,
quando os indivíduos estão expostos a circunstâncias que tornam o viver
vulnerável, aumentam os riscos, as taxas, as estatísticas de mortalidade.

Se o caminho em busca da conquista de nossos corpos passa pelo


governo das condutas, ou seja, pelas decisões que conduzem e determinam o
nosso próprio viver/morrer, a valorização da vida passa pela noção de
seleção, no sentido de que, na procura da promoção do viver melhor e por
mais tempo, as estratégias biopolíticas defendem “verdades” relacionadas a
determinados “estilos de vida” ou modos de viver e condenam outros. Ao
praticarem tais condenações, intervêm decisivamente nas possibilidades do
142
viver, admitindo, inclusive, a negação de determinadas existências. Isso leva
a questionar sobre o direcionamento e a abrangência pretendida com essa
intensa marcha em prol da valorização do viver saudável e por mais tempo,
tornando possível perguntar: a quais indivíduos as estratégias biopolíticas
dirigidas à valorização e promoção do viver mais e melhor pretendem
beneficiar e por quê? Qual a importância e o valor da vida dos indivíduos
que não se encaixam nesse “perfil”?

Ainda com a intenção de mapear o panorama atual em que se insere a


questão da legalidade e ilegalidade do aborto, dos investimentos na vida e da
promoção do viver, no próximo capítulo, considerando os desenvolvimentos
da biomedicina, passo a falar das possibilidades de promoção do viver e
morrer na contemporaneidade com base na determinação biológica, ou seja,
no governo da produção do viver.

143
CAPÍTULO 5

TECNOLOGIAS REPRODUTIVAS E
ANENCEFALIA: POSSIBILIDADES DE
V I D A / M O R T E 95

ASSUMIR A RESPONSABILIDADE PELAS RELAÇÕES SOCIAIS DA CIÊNCIA E DA TECNOLOGIA


SIGNIFICA RECUSAR UMA METAFÍSICA ANTICIÊNCIA, UMA DEMONOLOGIA DA TECNOLOGIA,

E PORTANTO SIGNIFICA ABRAÇAR A DELICADA TAREFA DE RECONSTRUIR OS LIMITES DA

VIDA COTIDIANA, EM CONEXÃO PARCIAL COM OUTRAS (HARAWAY, 2000, p.108;


RABINOW, 2002, p.153).

95As imagens mostrando o código genético dentro de uma pílula e as tecnologias médico-científicas
foram escolhidas para abertura deste capítulo por tratarem de possibilidades e conhecimentos sobre
os aprimoramentos do corpo e da vida. Além disso, remetem aos ambientes em que se pode gerar e
fabricar vidas/mortes, hoje. Desse modo, relacionam-se as discussões abordadas neste capítulo sobre
as estratégias para manutenção e promoção do viver como questões relativas à superação da
organicidade do corpo e ao prolongamento da vida saudável de forma indeterminada – noção de
infinitude presente na rede discursiva contemporânea.
144
CAPÍTULO 5

TECNOLOGIAS REPRODUTIVAS E ANENCEFALIA:


POSSIBILIDADES DE VIDA/MORTE

Neste capítulo, dou continuidade à intenção de conhecer como se desenha e


insere a problemática do aborto e de destacar a possibilidade de morte como parte
das estratégias (bio)políticas para a vitalidade, as quais se valem dos discursos de
valorização/desvalorização do viver. Parto das possibilidades de intervenção
biomédica, das determinações biológicas e de promoção e produção da vida/morte
na contemporaneidade para compreender e tensionar as estratégias e as
conformações dos governos do viver que definem: a constituição biológica do novo
indivíduo; o viver ou morrer do anencéfalo e as utilidades da vitalidade contida nos
corpos – órgãos, tecidos, células. Por fim, busco problematizar as formas de olhar,
tratar e justificar a valorização e desvalorização do viver/morrer.

5.1. Da noção de vitalidade às “verdades” sobre a maternidade


e as utilidades do viver/morrer

Numa sociedade regida pela vida, pelo fazer viver e pela produtividade
do indivíduo, colocamo-nos a pensar sobre as finalidades dos mecanismos
de prevenção, controle e tratamento direcionados à saúde do corpo e à
manutenção da vida. Ao que parece, na lógica em que nos movemos, mesmo
no termo da vida, as estratégias de governo, médicas, religiosas e
tecnológicas direcionam-se ao controle daquilo que resta ao indivíduo, nesse
caso, tornando o sujeito produtivo enquanto “viver”. Considerar que a
produtividade do indivíduo seja determinada pelo viver torna importante e
“indispensável” o prolongamento do tempo de vida, daí a constante criação
de estratégias para viver cada vez mais e da melhor maneira, ou seja,
saudável. Afinal, mantendo-se o sujeito vivo e saudável, aumenta-se a
expectativa de vida e reduzem-se os índices de mortalidade. Conforme
apontam as reportagens analisadas no capítulo anterior, a intervenção e os
investimentos para promover o viver dirigem-se ou aplicam-se aos casos
145
normalizados, em que os indivíduos, no governo de si mesmos (autogoverno),
se deixam guiar pelas normas.

No fazer viver, diversas são as formas de busca pela superação das


limitações biológicas: agir sobre a possibilidade de vida por meio da
fertilização in vitro; gerar ou prolongar a vida de outros através do
transplante de órgãos ou pelo uso de procedimentos e tratamentos que
prolonguem o processo de morte; usar tecnologias e recursos para a previsão
e, talvez, prevenção daquelas características que podem representar “riscos”
à vida; utilizar técnicas associadas ao autocuidado e vigilância por meio de
práticas cotidianas de exames médicos, exercícios, alimentação...

Trata-se de práticas moralizantes, isto é, não se reduzem a ações


conforme uma regra, uma lei ou um valor, mas comportam uma relação com
a circunstância em que se realizam, com o código ao qual se referem
conferindo também certa relação na constituição de si como “sujeito moral”
(CASTRO, 2009). Nessa perspectiva, tais práticas enquadram-nos nas
estratégias biopolíticas de regulamentação da vida que pretendem fazer viver
melhor e por mais tempo para buscar capturar o máximo da produtividade
gerada pelo viver individual – condição de utilidade fundamental para o
desenvolvimento do capitalismo numa economia neoliberal96. A vida, como
evento biológico e político individual, torna-se vital para a vida coletiva.
Nesse sentido, viver e morrer são eventos políticos relacionados com a
economia da vida: a biopolítica (SANTOS, 2002).

Nessa proposta de moralização das condutas, Meyer, ao falar da


produtividade da veiculação na mídia de enunciados sobre as implicações
das formas de viver a maternidade para a valorização social dos corpos
maternos ativos e esbeltos, diz que os discursos de promoção da saúde
investem sobre o corpo grávido partindo do imperativo da magreza para
prescrição de cuidados, exercícios e exames corporais; o exame pré-natal é
considerado primordial, pois atua na definição “entre a vida e a morte, a
saúde e a doença, a normalidade e a anormalidade” (MEYER, 2009, p.23).

96A questão do capitalismo e da economia neoliberal será abordada de forma mais detalhada na
discussão “final” deste capítulo.
146
Assim, uma “boa” mãe será aquela que, de forma disciplinada, se deixa guiar
por “recomendações” de “tom normativo e moralista” sobre o investimento e
os cuidados para gestar, parir e criar um ser humano saudável e, de
preferência, “perfeito”. Essas recomendações agem de maneira a
responsabilizar a mulher pela saúde de si, do feto e do viver/morrer de
ambos (idem). A autora comenta, ainda, que esse cuidado, essa educação de
si, essa vigilância e controle podem ser operados sobre os corpos tanto por
estímulos externos, vindos das “verdades” dos diversos campos de saber,
quanto por “iniciativa do próprio sujeito”, que é incitado constantemente
pelas veiculações midiáticas (MEYER, 2009, p.21). Isso leva a pensar na
posição social das mulheres grávidas, cuja condição biológica de gerar um
ser se encontra atravessada e marcada pelas práticas sociais que atribuem
noções e valores, definindo formas de maternidade e de ser mãe –
responsável/irresponsável, negligente, desleixada ou boa mãe... Alguns
exemplos dessas questões foram discutidos no capítulo anterior quando
abordei o preço cobrado para realizar o desejo de impedir a reprodução ou o
desenvolvimento da vida contida no embrião.

Outra forma de maternidade direcionada à promoção da vida que pode


levar a repensar a “essência” de ser mãe diz respeito à oferta da maternidade
substitutiva (ou “barriga de aluguel”) – prática em que uma mulher gesta o
filho para outra pessoa ou casal a partir da inseminação artificial ou da
transferência de embriões, como já referido no Capítulo 1. Para Goldim
(2002), tal prática ocorre quando a mulher97 compreende que a criança que
irá gestar, ao nascer, será criada pelas pessoas que propuseram esse
procedimento, à semelhança de uma adoção pré-natal.

Dessas conformações de maternidade, aparece a mãe genética,


doadora do óvulo; a mãe substituta, que gesta o embrião; e a mãe social, que
solicitou a “barriga de aluguel” e será a responsável pela criação da criança
após o nascimento. Assim, a promoção da vida com o objetivo de possibilitar

97Embora de outro modo, a ideia de outra mulher gestar um filho para um casal cuja mulher é estéril
já consta na Bíblia. Abraão, instruído por Sara, sua esposa, que era infértil, procura uma escrava,
chamada Hagar, para ter um filho (GOLDIM, 2002).
147
a gravidez em situações antes impensadas aparece como uma solução, mas
também como geradora de questionamentos sobre quem seria a mãe
“verdadeira”, o que coloca em jogo a noção de “essência” biológica de ser
mãe98 e de “naturalidade” das “obrigações” e atribuições como invenções
humanas, muitas vezes, impostas.

Para ilustrar parte do panorama contemporâneo sobre as tecnologias


reprodutivas, trago a seguir trechos de reportagens que abordam questões
relacionadas às ciências do viver, no que se refere à reprodução e ao aborto.
Trata-se de pesquisa científica relativa à utilização de células-tronco
embrionárias como potenciais terapêuticos na cura de enfermidades através
do uso ou “consumo” de embriões humanos – fonte dessas células.

Considerando o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas


científicas como um método abortivo e antiético, o secretário-geral da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) mencionou o
posicionamento contrário da Igreja à utilização dessas células, conforme o
trecho que segue:

Dom Dimas [...] falou sobre o uso de células-tronco


embrionárias em pesquisas científicas, também considerado
um método abortivo e antiético pela Igreja Católica.
O secretário-geral da CNBB lembrou ainda que vários grupos
religiosos fazem lobby no Congresso Nacional para que não
sejam aprovados projetos de lei que permitem o aborto.
— Queremos fazer cada vez mais iniciativas de conscientização
da população — disse.
O secretário informou que a CNBB fará um folder explicativo
sobre o aborto para distribuir nas paróquias e uma cartilha
destinada aos formadores de opinião, mostrando o resultado
de pesquisas relacionadas à saúde da mulher que aborta99.

Em sua fala, percebe-se o poder de intervenção das concepções


religiosas contra a aprovação de projetos de lei que se oponham aos seus

98No Brasil, assim como em vários outros países, existe a obrigatoriedade de vínculo familiar entre a
mãe social e a mãe gestacional, estabelecida pela Resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina
(dispõe sobre a reprodução humana), que é a única diretriz nacional a esse respeito. Esse
posicionamento tem por base manter tal procedimento entre pessoas previamente ligadas, eliminando
a possibilidade de exploração comercial (GOLDIM, 2002).
99Reportagem: CNBB diz que mortes decorrentes de abortos não são problema de saúde pública (ZH,
06/02/2008). Ver página 67 do anexo 1.
148
dogmas e ideias; para isso, lança-se mão de estratégias de “conscientização”
ou convencimento das pessoas sobre as suas “verdades” e também de textos
explicativos e orientadores em cartilhas. Nessa mesma direção, a reportagem
intitulada Manifestantes protestam no STF contra uso de células-tronco (ZH,
2008) trata da manifestação contra a autorização do uso de células-tronco
embrionárias em pesquisas científicas, conforme se lê abaixo:

O publicitário que representava na manifestação o Movimento


em Defesa da Vida e Contra o Aborto afirma que muitas
células-tronco embrionárias que os cientistas querem utilizar
em pesquisas são provenientes de abortos, de uma "indústria
clandestina".
No caso das células-tronco embrionárias provenientes de
procedimentos de fertilização, diz que poderiam ser usadas em
pesquisas, caso houvesse no Brasil uma fiscalização plena que
mostrasse de onde viriam essas células.
— Nossa intenção é mobilizar os ministros do Supremo, fazer
um chamamento para que possam observar e saber que
pesquisas dizem que 90% da população brasileira é contra o
aborto, e no nosso ponto de vista, as pesquisas com células-
tronco embrionárias estão ligadas ao aborto.
O jornalista, representante da campanha Nascer é um Direito,
acredita que não há necessidade de usar células-tronco
embrionárias, porque a ciência já conseguiu resultados
promissores com células-tronco adultas. [...] porque elas são
conseguidas do próprio paciente. Então não há o processo de
rejeição que tem havido com as embrionárias.
Para o jornalista, a ciência precisa também ter parâmetros
éticos e respeitar a vida que está contida nos embriões.
— Nós temos as células adultas que estão conseguindo o que
se deseja. Por que, então, ferir o direito à vida? — questiona.
O presidente da Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família
[disse:] não vejo razão para liberar as embrionárias, porque,
além de matar um ser humano, não traz nenhuma vantagem
para a saúde, uma vez que as adultas já têm trazido vantagens
em experiências comprovadas100.

100Reportagem: Manifestantes protestam no STF contra uso de células-tronco (ZH, 04/03/2008). Ver
página 68 do anexo 1.
149
Na primeira fala, o publicitário, assumindo sua posição contrária ao
aborto, afirmou que muitas células-tronco embrionárias utilizadas em
pesquisas são “provenientes de abortos, de uma ‘indústria clandestina’”.
Porém, mesmo representando o Movimento em Defesa da Vida e Contra o
Aborto e entendendo que a utilização das células-tronco em pesquisas
configura prática abortiva, mostrou-se conivente com o uso de células-tronco
embrionárias provenientes de procedimentos de fertilização.

Diante das inovações biomédicas que se valem das terapias celulares,


as células-tronco (ou stem cells) têm representado a ampliação da
possibilidade de conhecer o corpo humano e de acionar terapias para
doenças ainda consideradas incuráveis. Nessa perspectiva, contradições
como a mencionada pelo publicitário podem estar relacionadas ao processo
de constituição das definições sobre o viver, o morrer, o aborto e as práticas
médicas e terapêuticas, por exemplo.

Considerar que, nesse universo de informações, o que mais tem se


destacado é a construção da concepção de autonomia em relação à
prevenção de doenças e à promoção da saúde evidencia como a configuração
dos conhecimentos ou da falta dessa configuração tem dificultado os
posicionamentos dos indivíduos. Conceitos que ainda estão em processo de
constituição e consolidação atuam exercendo a incerteza nas práticas
cotidianas de “autonomia” – notadamente dirigidas e reguladas pela
construção de noções científicas e culturais de forma articulada. Afinal,
ainda não foi possível obter uma certificação científica sobre o

150
reconhecimento do embrião humano como uma forma de vida ou não. Essa
situação pode estar relacionada às causas de tais conflitos de “verdade” ou,
ainda, a questionamentos, como: a garantia da cura ou salvação pode agir
como elemento capaz de constituir a subjetividade, de modo que se acredite
que tais propósitos possam valer o “sacrifício” de uma “vida”? Uma medida
terapêutica pode desvincular-se da ideia de crime em razão de sua
finalidade?

Enfim, na direção da constituição da incerteza sobre as noções de


“vida”, outra fala, a do jornalista representante da campanha Nascer é um
Direito, indica a compreensão de que o embrião é um organismo vivo. Diz o
jornalista: “a ciência precisa também ter parâmetros éticos e respeitar a vida
que está contida nos embriões”. Tendo em vista o sucesso obtido com as
células-tronco adultas que são retiradas do próprio paciente e não causam a
rejeição observada com o uso das células embrionárias, ele questiona: por
que ferir o direito à vida? Também o presidente da Associação Nacional Pró-
Vida e Pró-Família contestou as razões para a liberação das células-tronco
embrionárias; para ele, “além de matar um ser humano, não traz nenhuma
vantagem para a saúde”.

Na busca aparente por amenizar o sofrimento e “salvar” vidas, as


terapias celulares envolvendo células-tronco têm sido consideradas um dos
principais avanços científicos que apontam esperanças para a cura ou
“salvação” pela medicina e biotecnologia. Porém, além dos parâmetros éticos
de manipulação, a utilização das células-tronco envolve a produção
científica, que precisa de investimentos econômicos em pesquisa e
desenvolvimento. No caso do Brasil, as pesquisas básicas com células-tronco
têm se desenvolvido em instituições públicas (Universidades e Institutos de
Pesquisa), por vezes, financiadas com verbas governamentais (FERNANDES,
2008).

Conforme Goldim (2004), a utilização de células-tronco adultas para


promover a restauração de funções biológicas já é realizada no Rio Grande
do Sul. Foi utilizada com sucesso para recuperar tecido miocárdico em
pacientes do Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul (IC-FUC) –
151
utilizaram-se células da medula óssea do próprio paciente, processadas no
Centro de Pesquisas Genéticas da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS). O tratamento utilizado teve bons resultados e não exigiu a
utilização de medicação de imunossupressão, pois foram utilizadas células
do próprio indivíduo (GOLDIM, 2004).

Para Fernandes (2008), na perspectiva da articulação entre questões


médicas, econômicas e éticas, cientistas como John Thomson101 têm
publicado notícias de que seria pouco provável que as linhagens celulares
embrionárias pudessem ser utilizadas em terapias como o transplante ou
curar doenças como câncer, Alzheimer e Parkinson, mas seriam úteis para
realização de testes de medicamentos. Por isso, empresas têm utilizado
linhagens de células-tronco embrionárias como instrumento de pesquisa
para testar drogas experimentais e seus efeitos cardíacos, por exemplo.
Justifica-se, assim, o interesse econômico nas referidas linhagens e a
monopolização do conhecimento, garantida por suas patentes, como se fosse
apenas uma “coisa” biológica desvinculada do humano. Assim, como um
título de propriedade, o patenteamento de materiais biológicos humanos na
área da saúde e biotecnologia, além de interferir no interesse público de
acesso – relacionado à saúde e à pesquisa –, dirige-se ao consumidor de
saúde que pode pagar pelo acesso a produtos como medicamentos,
invenções ou “descobertas” científicas102. As células, como propriedade

101Em 28 de maio de 2008, publicou na revista Forbes a notícia que deixava a Universidade de
Wisconsin para formar a empresa Cellular Dynamics International, com o objetivo de realizar testes de
drogas experimentais e seus efeitos colaterais na área cardíaca com a utilização de células-tronco
embrionárias.
Disponível em: <http://www.forbes.com/forbes/2008/0616/086.html>.
102Rebecca Skloot, no livro A Vida Imortal de Henrietta Lacks, fala da vida de uma mulher, personagem
da história da medicina e do progresso científico do século XX, que morreu na década de 50, mas cujas
células se reproduzem até hoje. Aos 30 anos, casada e mãe de cinco filhos, Henrietta descobriu que
tinha câncer. Em poucos meses, um tumor no colo uterino espalhou-se por seu corpo. Ela se tratou no
Hospital Johns Hopkins e faleceu em 1951. No hospital, uma amostra das células cancerígenas de
Henrietta – que produzia metástases anormalmente rápidas, mais que qualquer outro tipo de câncer
conhecido pelos médicos - havia sido extraída sem o seu conhecimento. Suas células possuíam uma
característica até então inédita - mesmo fora do corpo de Henrietta, multiplicavam-se num curto
intervalo, tornando-se imortais num meio de cultura adequado. Atribui-se isso ao fato de essas células
terem uma versão modificada da enzima Telomerase, implicada no processo de morte celular e no
número de vezes que uma célula pode se dividir. Conhecidas como ‘HeLa’, as células logo começaram
a ser utilizadas nas pesquisas em universidades e centros de tecnologia de todo o mundo para saber os
152
justificada pela racionalidade econômica, têm definidos pelo titular da
patente a liberação ou o impedimento de uso, produção, venda e importação
da invenção por terceiros (FERNANDES, 2008).

Relacionado aos limites de propriedade intelectual, no Brasil, o


patenteamento de células e partes do corpo humano é proibido pela Lei de
Propriedade Intelectual brasileira103, Lei nº9.279 de 14 de maio de 1996,
artigos 10, inciso IX e 18, inciso III.

Art. 10. Não se considera invenção nem modelo de utilidade:


IX - o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais
biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela
isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser
vivo natural e os processos biológicos naturais.
Art. 18. Não são patenteáveis:
III - o todo ou parte dos seres vivos, exceto os microorganismos
transgênicos que atendam aos três requisitos de
patenteabilidade - novidade, atividade inventiva e aplicação
industrial - previstos no art. 8º e que não sejam mera
descoberta.

A proibição de patenteamento de células-tronco humanas


embrionárias também é expressa na Lei de Biossegurança, Lei no11.105 de
24 de março de 2005, artigo 5º, §3º, regulamentada pelo Decreto nº 5.591,
de 22 de novembro de 2005, art. 63, §3º. A Lei de Biossegurança104 decreta:

Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a


utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões
humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados
no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais,
na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data

efeitos da radiação e o mapeamento genético; inclusive, foram enviadas ao espaço para experiências
sob gravidade zero, etc. Como resultado, a vacina contra a poliomielite e contra o vírus HPV, vários
medicamentos para o tratamento de câncer, de AIDS e do mal de Parkinson, entre outros, foram
obtidos com a linhagem 'HeLa'. Porém, os responsáveis jamais deram informações adequadas à
família da “doadora” ou ofereceram qualquer compensação moral ou financeira pela massiva
utilização das células cancerosas. Calcula-se que a quantidade de células existentes nos laboratórios de
todo o mundo supere o número de células de Henrietta em vida. Disponível em: <
http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=12974 >.
103 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9279.htm>. Acesso em: 12.08. 2010.
Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11105.htm>.
104

Acesso em: 12.08. 2010.


153
da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos,
contados a partir da data de congelamento.
§ 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento
dos genitores.
§ 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que
realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias
humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e
aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.
§ 3º É vedada a comercialização do material biológico a
que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado
no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997 (a Lei no
9.434 dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do
corpo humano para fins de transplante e tratamento).

Porém, mesmo com tal proibição expressa na lei brasileira, há registro,


no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), de mais de 100
pedidos de patentes envolvendo células-tronco animais e humanas
(FERNANDES, 2008). Isso revela o interesse na possibilidade de garantir os
lucros financeiros oferecidos pela apropriação e mercantilização do material
gerado pela “vida” embrionária – evitando-se, assim, o risco da perda de
propriedade caso haja modificação na lei.

Nesse contexto, pode-se pensar: o que se torna a vida de um “embrião”


se ela se reduz aos lucros obtidos com o comércio baseado no desejo de
evitar a morte?

O texto da reportagem À espera de legislação: Brasil não tem regras


específicas nem fiscalização para a reprodução assistida (ZH, 2009), aborda
outra questão relacionada à “fabricação” de embriões, que é o comércio da
possibilidade de fazer viver - o que tem promovido o turismo reprodutivo.

Ao se completarem 25 anos do primeiro bebê de proveta


brasileiro – nasceu em outubro de 1984 –, o país ainda não
tem uma legislação específica sobre a reprodução assistida.
Isso quer dizer que, na prática, há poucos parâmetros legais e
cabe a cada profissional decidir se faz ou não, e de qual
maneira, escolha do sexo da criança, doações de óvulos e
esperma, uso de material genético de terceiros, fertilização em
casais com HIV, congelamento de óvulos e descarte de
embriões. Tampouco existem órgãos fiscalizadores, menos
ainda comissões que acompanhem o que acontece nas clínicas
privadas.
– A falta de regra e fiscalização transformou o Brasil em um
destino de turismo reprodutivo – afirma o juiz, professor de
Direito e estudioso do assunto. – Como temos uma capacidade

154
técnica muito boa, estrangeiros vêm para cá fazer o que na
Europa e nos Estados Unidos é proibido.
Além disso, segundo o urologista especialista em infertilidade
masculina, a falta de legislação e de um protocolo de conduta
faz com que, no país, se usem técnicas de reprodução
assistida em casais que não precisam:
– Há pessoas muito sérias, mas há muita gente que não
investiga as causas da infertilidade do casal. Fazer uma
fertilização in vitro sem saber por que a pessoa não engravida
é como fazer um transplante de coração sem ter feito um
ecocardiograma. É absurdo e não traz resultados.
Em dois terços dos casos de infertilidade masculina há
tratamentos que resolvem o problema sem a fertilização.
Nesses casos, os casais ficam sem saber a quem recorrer,
procurando o médico que garantir mais resultados.
– O casal com infertilidade está frágil. Se você falar que ela vai
engravidar se eles forem de ponta-cabeça e mindinhos
esticados até a igreja, eles vão. O médico tem muito poder
nessa situação – diz a vice-presidente da Sociedade Brasileira
de Reprodução Assistida.
Com tudo isso em jogo, fica nas mãos de cada profissional o
modo de agir. [...] o problema da falta de lei é que tudo acaba
resvalando na ética de cada médico para acontecer.
– Tenho pacientes que chegam pedindo a sexagem
(possibilidade de escolha do sexo), mas desestimulo no
primeiro filho. É uma prática interessante em alguns casos,
não para todos que queiram. É preciso ser flexível na
discussão desse tema e dos outros que envolvem a reprodução
assistida, e não pensar em proibir totalmente105.

A reportagem datada do ano de 2009, ou seja, anterior às alterações


na lei sobre a reprodução assistida de 1992, ocorrida em 2010, traz as
opiniões de um juiz sobre a defasagem da lei referida frente aos avanços
biomédicos, o que transformaria o Brasil em um destino de turismo
reprodutivo. Há, ainda, a fala de uma médica sobre o poder contido nas
mãos dos profissionais da saúde em circunstância de fertilização como uma
das consequências da falta de lei. Ela enfatiza a falta de uma
regulamentação que atinja a responsabilização social e ética na gestão da
vida reprodutiva.

No Brasil, o Conselho Federal de Medicina, através da Resolução CFM


1358/92, instituiu as primeiras normas éticas para a utilização das técnicas
de reprodução assistida em 1992. Depois de 18 anos de vigência, em 15 de

105Reportagem: À espera de legislação: Brasil não tem regras específicas nem fiscalização para a reprodução
assistida (ZH, 16/05/2009). Ver página 70 do anexo 1.
155
dezembro de 2010, essas diretrizes foram atualizadas pela Resolução CFM
1957/2010, considerando que o avanço do conhecimento científico permite
solucionar vários dos casos de reprodução humana; que as técnicas de
reprodução assistida têm possibilitado a procriação em diversas
circunstâncias, o que não era possível pelos procedimentos tradicionais; e
que há necessidade de harmonizar o uso dessas técnicas com os princípios
da ética médica106.

Outra questão presente nesse recorte é a da fragilidade e insegurança


do casal, que fica sem saber a quem recorrer, procurando o médico que
prometer ou “garantir” mais resultados. Essa circunstância possibilita
pensar sobre o papel que as práticas biomédicas podem exercer na produção
do sujeito submetido às “verdades” desse campo de conhecimento, que
passam a definir as escolhas, as condutas e os investimentos sobre si. Além
disso, tais práticas tornam visível a imprevisibilidade das repercussões
geradas por pesquisas com células-tronco e denotam a espetacularização da
técnica para além do conhecimento obtido e dos riscos de insucesso,
promovendo, em situações de insegurança e fragilidade, a criação de
esperanças, por vezes, irrealizáveis ou mesmo fraudulentas pela
comercialização de serviços e produtos sem certificação ou comprovação
científica.

A reportagem aponta, ainda, para a falta de investigação sobre as


causas da infertilidade que levam à utilização de técnicas de reprodução
assistida em casais que não precisariam lançar mão dessa prática, como
sugerido neste fragmento: “em dois terços dos casos de infertilidade
masculina, há tratamentos que resolvem o problema sem a fertilização”.

Sabe-se que os problemas com a fertilidade podem ser gerados por


diversos fatores, que, em alguns casos, não podem ser prevenidos, como
endometriose, incompatibilidade imunológica, problemas nas células
germinativas, produção insuficiente de espermatozóides, etc. Porém, em
outros casos, a infertilidade pode ser prevenida, pois tem como fatores as

106 RESOLUÇÃO CFM nº 1.957/10. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolu-


coes/CFM/2010/1957_2010.htm>.
156
doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), insalubridade, alteração nas
taxas hormonais, infecções não tratadas no pós-parto ou abortos, deficiência
na alimentação, etc. (BRAZ, 2005). Considerando-se essas circunstâncias,
pode-se perceber que a “solução” para a infertilidade não está estritamente
vinculada aos recursos biotecnológicos, mas a fatores comportamentais de
prevenção que alertam para as consequências da má gestão de si.

Para além da prevenção comportamental, a utilização dessas técnicas


de reprodução medicamente assistida em casais sem problemas de
infertilidade constitui uma demanda que onera sem necessidade a saúde
pública ou gera um lucrativo comércio em procedimentos no âmbito de
instituições privadas. Goldim (2011) enfatiza a importância do
questionamento e discussão sobre a necessidade do uso desse recurso e
aponta para a utilização dessas técnicas como prática preventiva, ou seja,
protegendo os parceiros de mulheres portadoras do vírus HIV (causador da
AIDS) de uma eventual contaminação diante da possibilidade de terem
filhos. O risco da exposição do filho ao vírus, em outros tempos, tornava a
técnica contraindicada. Hoje, porém, tal risco de transmissão vertical é
bastante reduzido em função das estratégias terapêuticas criadas, que
permitem o gerenciamento de tal risco e a rediscussão dessa possibilidade
por profissionais, portadores, parceiros e Comitês de Bioética (idem).

No último parágrafo, a reportagem traz a questão da possibilidade de


intervenção na escolha do sexo do filho, conforme o relato: “com tudo isso
em jogo, fica nas mãos de cada profissional o modo de agir”. “É preciso ser
flexível na discussão desse tema [sexagem] e dos outros que envolvem a
reprodução assistida e não pensar em proibir totalmente”.

Esse nível de intervenção biológica voltada para a otimização das


chances de vida futura como um processo em que, ao invés de o biológico
tornar-se humanizado, “o humano se torna ainda mais biológico”, remete às
possibilidades de projeções e encomenda de filhos (ROSE, 2011a, p.18). Isso
se dá a partir do gerenciamento de interesses e de riscos de uma demanda
de consumidores que têm suas escolhas definidas por desejos constituídos
numa cultura de consumo e de mercado (idem).
157
Entre os importantes aspectos da biopolítica contemporânea, ou seja,
de “uma política da própria vida”, Rose (2011a) menciona, em relação ao
poder médico-terapêutico e econômico, a molecularização dos fenômenos
humanos. Ao falar da noção molecular do corpo, o autor refere que muitas
pessoas ainda pensam seus corpos apenas no nível de seus membros,
órgãos, tecidos e hormônios, por exemplo107. Para ele, essa escala
compreende o nível molar do corpo, no qual intervimos por meio de
plásticas, exercícios, tatuagens e dietas – “foco da medicina clínica do século
dezenove” (ROSE, 2011a, p.14). Entretanto, na contemporaneidade, a vida é
compreendida e sobre ela se opera também num outro nível, o molecular,
que abrange as propriedades dos códigos de sequência das bases
nucleotídicas com suas variações, os mecanismos que controlam a
expressão e a transcrição gênica, a relação entre as propriedades funcionais
das proteínas e suas conformações moleculares, a função dos componentes
intracelulares, ou seja, os canais iônicos, enzimas, genes transportadores e
potenciais de membrana (idem). Sem deixar de lembrar que ambas as
escalas – molar e molecular – operam de maneira articulada às “verdades” de
discursos moralizantes.

Nessa perspectiva, novas noções sobre o viver estão tomando forma, e


as técnicas de visualização e de simulação da vida no nível molecular têm
sido fundamentais para a constituição dessa nova ontologia da vida. Tal
noção incorpora a possibilidade da produção da vida, ao passo que a
manipulação de tecidos, células e fragmentos de DNA confere uma nova
mobilidade aos elementos da vida. Assim, ao pensar como a biopolítica opera
nessa escala, podemos pensar numa “biopolítica molecular” que, ao valer-se
dessas projeções de vitalidade, diz respeito aos modos como esses elementos,
que vão de “estruturas moleculares que compõem medicamentos a oócitos e
células-tronco, podem ou devem ser mobilizados, controlados, combinados”,

107Em relação à possibilidade de novas constituições da compreensão sobre o corpo em outros


períodos, Foucault constatou em seus estudos transformações no pensamento médico na França e suas
práticas no período entre, aproximadamente, 1780 e 1830; também diagnosticou uma substituição da
medicina das espécies e de classificações das doenças para uma medicina de órgãos e funções do
corpo orgânico (ROSE, 2007).
158
de forma que lhes sejam atribuídas propriedades que ainda não existiam
(ROSE, 2011a, p.15).

As intervenções na vida interpretada a partir dessa escala parecem


não mais se limitar às normas vitais de um corpo “natural”, mas ao controle
biológico que não aceita imposições de limites da “própria” biologia ao
domínio biológico das ambições humanas. Desse modo, as tecnologias
biomédicas contemporâneas buscam o controle e o gerenciamento dos
processos vitais do corpo e da mente, e não apenas a cura de doenças
(idem). Assim, para o sujeito e para o especialista, proporcionar
artificialmente aprimoramentos e melhoramentos moleculares que
reformatam a vitalidade configura modos de ver, praticar e pensar a
reprodução em relação às técnicas de testagem, às práticas de visualização e
aos modos de dar aconselhamento, o que vai além das capacidades médicas
de utilizar os instrumentos e as técnicas (ROSE, 2011a).

No que se refere à possibilidade de acesso a essas técnicas por casais


com pouca disponibilidade financeira ou que não podem pagar pelos
tratamentos, trago um recorte da reportagem intitulada: Maternidade mais
perto: Institutos oferecem tratamentos avançados e de baixo custo para casais
com problemas de fertilidade (ZH, 2009).

Três centros criados no Estado trazem esperança para casais


que têm condições financeiras de criar um filho, mas não
podem pagar por tratamentos de reprodução assistida. [...]
todos com sede na Capital, oferecem as mais modernas
técnicas de medicina reprodutiva a um custo bem inferior ao
preço usual, que varia entre R$ 8 mil e 12 mil. No país,
estima-se que entre 10% e 15% dos casais em idade
reprodutiva tenham problemas para gerar descendentes pelo
método natural.
[...] o Instituto Assistireh acaba de ganhar sede própria. Desde
que foi criado, há um ano, realizou 37 ciclos de fertilização in
vitro em 25 pacientes – 34 deles gratuitamente e três com
custo reduzido. Ao todo, foram 16 gestações – três ainda estão
em andamento, sendo uma de gêmeos – e 13 nascimentos.
Foram realizados ainda 96 ciclos de inseminação artificial em
56 pacientes, com custo exclusivo da medicação, que
resultaram em 10 gestações. A lista de espera conta com mais
de 200 pacientes.
– Estamos trabalhando com captação de recursos junto à
iniciativa privada e aos órgãos públicos para realizar cada vez
mais tratamentos – diz Mariangela.
159
Em funcionamento desde o início do ano, o Instituto Willkok
desenvolve o Projeto Cegonha voltado a casais com renda
inferior a nove salários mínimos. [...] a entidade também busca
apoio com as empresas para baratear ao máximo o
tratamento, que sai, em média, por R$ 3 mil a R$ 4 mil.
Marcos Hoher, médico que atua no recém-inaugurado
Instituto da Fertilidade (IFE), destaca que a oferta dos
tratamentos com descontos que chegam a 60% é uma das
únicas formas de permitir que casais tenham a oportunidade
de conceber um filho.
– Queremos proporcionar às famílias uma chance. Do
contrário, passariam o resto da vida com a dúvida: será que
teríamos conseguido? – conclui Hoher108.
O texto da reportagem torna possível perceber que a facilitação de
acesso à reprodução assistida, assim como seu impedimento, atua de modo
a conduzir as práticas e as decisões dos indivíduos sobre os investimentos
no fazer viver a partir da gratuidade ou da possibilidade de compra dos
serviços médicos. Como uma estratégia de governo dos corpos, os
“espetaculares” avanços biotecnológicos tornaram “realidade” o desejo de ter
filhos de muitas pessoas estéreis ou com outros problemas reprodutivos.

No entanto, tais tecnologias de intervenção sobre o processo da


procriação humana, ao possibilitarem essa “realidade”, contribuem também
para a constituição de outras noções de maternidade, de concepção humana
e de família. Além de tornarem possível ter um filho, possibilitam que esse
filho tenha as características genéticas que os pais “sempre” desejaram em
relação à saúde e aos fenótipos de parecença entre os genitores ou
familiares, por exemplo. Isso leva a crer que, com o aperfeiçoamento da
técnica de reprodução, se pode obter a melhor criação ou o melhor produto
possível109.

108Reportagem: Maternidade mais perto: Institutos oferecem tratamentos avançados e de baixo custo para
casais com problemas de fertilidade (ZH, 03/01/2009). Ver página 71 do anexo 1.
109O filme Gattaca – A experiência genética, de Andrew Niccol (1997), é uma ficção científica futurística
em que as pessoas são criadas geneticamente em laboratórios. A trama fictícia fala sobre uma
sociedade controlada por sofisticadas técnicas de manipulação do código genético e da possibilidade
de manipulação da interação entre os DNAs paternos para gerarem seus filhos. Tal procedimento cria
os indivíduos válidos, oriundos desta combinação genética planejada (com raras doenças); e os
inválidos, concebidos pela interação sexual usual, sujeitos a várias doenças. Disponível em:
<http://www.comciencia.br/resenhas/gattaca.htm>.
160
A ampliação dessa possibilidade de acesso – a um mercado antes de
“luxo” –, incluindo pessoas com restrição financeira, mostra-se articulada
com a ideia de que a vida pode ser amplamente explorada pela inovação das
técnicas e pelas formas de economia com base na vitalidade em diversos
níveis socioeconômicos. Assim, a maior abrangência de um mercado
consumidor de vida e saúde fazendo uso da medicina para otimizar e
melhorar as potencialidades do viver, articulada com a noção de saúde como
um desejo, um direito e uma obrigação, capacita uma gama de especialistas
para atuar numa diversificada linha de produção de serviços e
empreendimentos bioeconômicos pela vitalidade. Além disso, nesse processo,
ocorre a produção, a configuração de “verdades” e a reconfiguração dos
indivíduos dentro de uma política econômica da vida, em que “os
investimentos comerciais configuram a própria direção, organização, espaço
de problemas e efeitos de solução da bioeconomia e da biologia básica que
lhe dá suporte”, ou seja, a biopolítica tem se tornado bioeconomia (ROSE,
2011a, p. 22).

Nessa perspectiva, pode-se concluir que a linguagem da biomedicina,


ou seja, os jogos de “verdade” da biopolítica molecular, além de modificar
nossa relação com as práticas e compreensões sobre saúde, doença, vida,
morte e aborto, atua na constituição de nossa subjetividade, tornando-nos
as pessoas que somos – ela nos transforma nos “tipos de seres humanos que
nós mesmos pensamos ser” a cada momento (idem, p.19). Atentando-se a
uma pedagogia cultural (jornais) que, aliada a diversas redes de práticas,
subjetiva os indivíduos, constituindo “verdades” sobre o pensar e agir, torna-
se fundamental o investimento em discussões sobre temas tão complexos.

Tais “verdades” intervêm nos planejamentos para o futuro da vida das


pessoas, que passam a depender da revelação de uma série de exames de
triagem e de “rotina” para conhecer o seu estado de saúde e, então, manejar
sua suscetibilidade. Através de intervenções no “destino” biológico, contém-
se a ocorrência ou recorrência de males e doenças relativos ao risco
calculado de manifestações de genes considerados anômalos – defeito
genético.

161
Com relação a essa questão – a constituição da subjetividade –, no
início do excerto, a reportagem traz a seguinte afirmação: “no país, estima-se
que entre 10% e 15% dos casais em idade reprodutiva tenham problemas
para gerar descendentes pelo método natural”.

Em princípio, pode parecer que essas porcentagens não dizem muito


sobre quem as lê, mas, ao relatarem um problema de saúde constituído por
um número elevado de pessoas, elas “apontam o dedo” para o leitor, dizendo,
entre outras coisas, que ele corre o risco de fazer parte dessa estatística.
Nesse sentido, essas informações atuam como predições que podem produzir
no leitor ansiedade, insegurança e medo diante da possibilidade de estar
incluído nas taxas de suscetibilidade a problemas de saúde como a
infertilidade. Porém, quando o texto da reportagem destaca a oferta dos
tratamentos com descontos de até 60%, tal informação promove expectativas
e esperanças por conferir aos indivíduos algumas alternativas diante das
adversidades e do estigma da infertilidade. Tais números funcionam como
tecnologias de governo que atuam tanto na identificação quanto na
promoção do governo sobre si, o que pode estar relacionado a uma forma de
regulação da autonomia.

Rose (2011a) vale-se da expressão usada por Carlos Novas, a política


econômica da esperança, para dizer que a “biologia” deixou de ser um
destino para ser uma possibilidade entre as ideias de saúde e vida que
produzem expectativa e esperança no lugar da ansiedade e do medo da
mortalidade e morbidade. Lastreando essa esperança, aparecem diferentes
atores – em busca da cura, atuando em pesquisas, à procura de terapias, no
desenvolvimento de produtos lucrativos, almejando a geração de empregos,
atividades econômicas e a competitividade internacional globalizada.

Assim, parece-me que, dentro da lógica de uma política econômica da


vida/vitalidade, a manutenção da esperança ao consumidor da vida e saúde
contribui para os investimentos em novas tecnologias, o que é interessante
no âmbito individual e coletivo, pois promove diversos benefícios a muitas
instituições, governos, indústrias, comércios, economias, ciências, Estados,
etc. Isso acaba conferindo à biopolítica o caráter de bioeconomia,
162
possibilitando a produção e a exploração dos conhecimentos sobre a
vitalidade. Assim, as estratégias biopolíticas valem-se, hoje, da economia da
vitalidade e “sobrevivem” porque são mantidas pelos valores capturados pela
esperança de vitalidade, ou seja, aqueles referentes à saúde humana e ao
crescimento econômico (ROSE, 2011a).

Entretanto, entre a saúde e a economia existe a ética, ou melhor, as


éticas dos especialistas de diversos campos de atuação – médicos,
promotores de saúde, pesquisadores, bioéticos, aconselhadores genéticos e
indústrias farmacológicas, entre outros empreendimentos biotecnológicos e
bioeconômicos. Essas éticas em articulação constituem outra ética, a ética
do indivíduo, nas condutas sobre si e sobre a sua vida, diante dos impasses
que impõem posicionamentos e decisões.

Desse modo, aquilo que Rose (2011a) denomina como a biopolítica


molecular é central na produção dessa ética “somática”, pois é consequência
da relação com a existência de um corpo mais biológico, projetado – no nível
de genoma e de embriões – para gerenciar a saúde e a vitalidade com vistas
ao prolongamento da existência dos consumidores de produtos biológicos ou
não.

A reportagem intitulada Estatuto que proíbe qualquer tipo de aborto


gera polêmica (ZH, 2007) trata de um projeto de Lei que proíbe a
manipulação, o congelamento, o descarte e comércio de embriões humanos.

Um projeto que estabelece uma série de proteções ao feto e


proíbe qualquer tipo de aborto foi discutido em audiência
pública na Comissão de Seguridade Social e Família da
Câmara dos Deputados. O projeto de Lei 478/07 cria o
Estatuto do Nascituro e, entre outras medidas, proíbe a
manipulação, o congelamento, descarte e comércio de
embriões humanos.
Caso seja aprovado, o Estatuto do Nascituro retira do Código
Penal a possibilidade de se fazer aborto em caso de estupro e
prevê a criação de uma pensão alimentícia, popularmente
chamada de bolsa, para as crianças nascidas deste tipo de
violência. O estatuto torna o aborto um crime hediondo.
Para a relatora do projeto, deputada Solange Almeida (PMDB-
RJ), a medida é uma forma de modernizar a Constituição.
— A Constituição já garante o direito à vida. Então esse
estatuto está vindo regulamentar o que a Constituição já dizia,

163
inclusive a gente tem o Estatuto da Criança e do Adolescente.
O direito humano é para a criança e não é para o feto? —
questionou.
O médico e professor da Faculdade de Medicina da
Universidade de Brasília (UnB) Cláudio Bernardo Pedrosa de
Freitas disse que a ciência evoluiu muito e acredita que o
projeto é um avanço.
Para a assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e
Assessoria (Cfemea), Kauara Rodrigues, o estatuto é um
absurdo porque tenta proteger os direitos do nascituro em
detrimento dos direitos das mulheres.
— Do ponto de vista dos direitos humanos das mulheres, ele
viola completamente. Dentro desse estatuto tem questões
polêmicas como, por exemplo, o que a gente apelidou de bolsa
estupro, que é uma tentativa de retirar os direitos já
garantidos no Código Penal de uma mulher que é vítima de
estupro, praticar um aborto de forma legal e segura.
O Ministério da Saúde conclui o parecer alegando que "a
melhoria da atenção obstétrica tem impacto direto na garantia
do direito à saúde do nascituro. Após o nascimento com vida a
pessoa está garantida pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente. Razão pela qual não somos favoráveis à
aprovação do referido projeto de lei110".

Ao tratar das mudanças que têm ocorrido nas ciências da vida como
“avanços” científicos, da relação com os direitos do embrião/nascituro e
também da criação de um projeto de lei que proibiria o uso ou consumo de
embriões humanos, essa reportagem faz pensar nas implicações da
biomedicina contemporânea na constituição das formas de compreensão da
existência. Afinal, ao experimentarmos a biologização no gerenciamento da
vitalidade do nosso viver/morrer, nossos corpos humanos tornam-se ainda
mais biológicos, e isso não é uma mera hipótese científica, mas uma
constatação que se dá na gestão de si promovida pelas estratégias de
governo para precaução diante da iminência dos riscos. Desse modo, pode-
se dizer que as formas de conhecimento que estão configurando as
compreensões e as visualizações sobre os seres vivos e sobre nós mesmos
estão cada vez mais biológicas. Tais noções e interpretações da vida e de si
mesmo constituem-se a partir da articulação das éticas oriundas de diversas
instâncias – numa ética “somática” – que têm sido elaboradas de forma

110 Reportagem: Estatuto que proíbe qualquer tipo de aborto gera polêmica (ZH, 13/12/2007).
Projeto proíbe a manipulação, o congelamento, descarte e comércio de embriões humanos. Ver página
72 do anexo 1.
164
híbrida entre o conhecimento dito científico e o leigo, os quais são assumidos
nos discursos cotidianos presentes também nas mídias (ROSE, 2011a).
Assim, a relação entre a bioeconomia e a concepção de um corpo mais
biológico confere à vitalidade a chave (estratégia) para o governo dos
indivíduos através do gerenciamento de seus corpos – local de esperança e
de otimização das potencialidades ou, ainda, (bio)capital para gerir a
biopolítica ou a (bio)economia por meio de um mecanismo vital: a vida.

A partir dessa reportagem, pode-se pensar que as configurações das


ciências da vida e da biomedicina têm modificado a maneira como nós –
usuários e sobreviventes do sistema bioeconômico – entendemos e
interpretamos os seres vivos, a vida e o aborto/morte e o quanto essas
questões estão articuladas à produção dos desejos/vontades negociáveis na
compra e venda de mercados biológicos que utilizam a vitalidade como um
capital econômico.

É interessante destacar que, com a inclusão da questão da pesquisa


em embriões na Lei de Biossegurança111 (Art. 5º da Lei nº 11.105, de 24 de
março de 2005, regulamentado pelo Decreto nº 5.591, de 22 de novembro de
2005, art. 63), os embriões congelados há três anos ou mais podem ser
utilizados para pesquisa com células-tronco. Tanto na Lei quanto em seus
desdobramentos, os genitores podem doar seus embriões se já tiverem um
filho (GOLDIM, 2008).

Segundo Goldim (2008), a criobiologia demonstra que, estando


adequadamente congelados, os embriões podem ser viáveis por prazos bem
superiores aos três anos estabelecidos na Lei de Biossegurança. A escolha
desse prazo, inclusive, nunca foi devidamente esclarecida, sendo destoante
das demais legislações sobre reprodução assistida existentes no mundo
(idem).

No Brasil, ocorreu um grande “crescimento de clínicas de fertilização


que necessitam de regulamentação para assegurar os direitos e deveres de

111Lei 11.105, de 24 de março de 2005. Lei de Biossegurança. Disponível em: < https://www.planal-
to.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11105.htm >. Acesso em: 12 ago. 2010.
165
cada parte envolvida” e, também, a saúde dos que demandam a técnica
(BRAZ, 2005, p.190). Nesse sentido, enquanto a Lei de Biossegurança
permite que embriões congelados para fins reprodutivos tenham a sua
finalidade alterada, os próprios procedimentos de reprodução assistida que
geraram e geram esse tipo de procedimento carecem de legislação específica
no Brasil (GOLDIM, 2008).

A complexidade de tais questões leva a questionar sobre o governo


molecular dos riscos em relação à vida: deve-se ou não aceitar a utilização
de embriões produzidos para fins reprodutivos para gerar células-tronco
embrionárias quando os prazos legais de utilização forem ultrapassados?
Isso significa que a vida passou a ter prazo de validade? É adequado
promover esperança para pacientes e seus familiares quanto à possibilidade
de uso terapêutico de células em procedimentos ainda não testados?

Nessa perspectiva, a reportagem Celso de Mello defende ampliação do


debate sobre células-tronco embrionárias (Folha SP, 2008) aponta:

Celso de Mello, [ministro do Supremo Tribunal Federal],


defendeu ontem que o Brasil amplie o debate sobre a
legalização do aborto e disse que o país "tem sido mais aberto
no plano internacional do que no doméstico" sobre o tema.
"O que nós temos notado é que jovens adolescentes se expõem
a práticas abortivas clandestinas e não apenas comprometem
gravemente seu estado de saúde, como muitas vezes morrem,
o que é mais sério. Daí a preocupação da comunidade
internacional", afirmou.
"Lá [em Pequim] discutiu-se a questão do aborto, e o Brasil no
plano internacional assumiu uma posição mais aberta do que
esta que vem assumindo internamente no plano de sua
legislação. Por quê? Há uma questão em debate que é a do
aborto seguro."
Mello fez essa afirmação um dia após o STF começar a julgar
se libera ou não o uso de células-tronco embrionárias em
pesquisas científicas. O julgamento foi adiado por um pedido
de vista do ministro Carlos Alberto Menezes Direito.
Mello diz que a decisão sobre células-tronco pode provocar
debate sobre novas condições de aborto legal, além das duas já
previstas no Código Penal: estupro e risco de vida à mulher.
Mello prevê a liberação das pesquisas com células-tronco
embrionárias humanas. "Tudo indica que o tribunal vá, ainda
que por maioria exígua, repelir a ação. A rejeição do pedido do
procurador-geral significa a celebração da vida e representa a
restauração da esperança a milhões de pessoas."

166
Para ele, o tema sobre quando a vida começa é "extremamente
controvertido" e que o STF não pode levar em conta dogmas
católicos. "O que não podemos é fazer opção por uma teoria
que defina o início da vida a partir da perspectiva estritamente
confessional112."

Ao trazer a noção de liberação das pesquisas com células-tronco


embrionárias humanas, Mello enfatizou que isso “significa a celebração da
vida e representa a restauração da esperança a milhões de pessoas113.” Além
da utilidade terapêutica, o ministro disse que a “decisão sobre células-tronco
pode provocar debate sobre novas condições de aborto legal”, o que se
articula com a noção de que a inutilização dos embriões, com interrupção da
“vida”, caracteriza uma forma de aborto. Isso tem sido abordado de várias
maneiras, como na primeira reportagem trabalhada nesta seção,
Manifestantes protestam no STF contra o uso de células-tronco embrionárias
(ZH, 2008), que, ao considerar o embrião como uma pessoa, menciona:

[...] no nosso ponto de vista, as pesquisas com células-tronco


embrionárias estão ligadas ao aborto.
[...] a ciência precisa também ter parâmetros éticos e respeitar
a vida que está contida nos embriões.
— Nós temos as células adultas que estão conseguindo o que
se deseja. Por que, então, ferir o direito à vida?
[...] não vejo razão para liberar as embrionárias, porque, além
de matar um ser humano, não traz nenhuma vantagem para a
saúde.

Essas questões atribuem um valor moral às células embrionárias, que,


apesar de serem descartadas ou congeladas nos procedimentos de
fertilização, têm sua criação refutada para fins investigativos e terapêuticos.

O estatuto do embrião é um tema recorrente nas reportagens que


trazem embates em prol da legitimação da manipulação dos embriões. Os
argumentos daqueles que são favoráveis às pesquisas trazem comparações

112Reportagem: Celso de Mello defende ampliação do debate sobre células-tronco embrionárias (Folha SP,
07/03/2008). Ver página 74 do anexo 1.
113STF libera pesquisas com células-tronco embrionárias: o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu no dia
29 de maio de 2008 que as pesquisas com células-tronco embrionárias não violam o direito à vida,
tampouco a dignidade da pessoa humana. Esses argumentos foram utilizados pelo ex-procurador-
geral da República Claudio Fonteles em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3510) ajuizada
com o propósito de impedir essa linha de estudo científico.
Os argumentos de voto de cada ministro para esta ação estão na página 117 do anexo 2.
167
do embrião a um material biológico como qualquer outro tecido ou células do
corpo. Nesse sentido, zigoto (óvulo fecundado) ou embrião (estágios iniciais
do desenvolvimento ou de divisão celular) constituem nomenclaturas para a
vitalidade contida num corpo ou conjunto celular. As atribuições biológicas,
descoladas do humano, denotam a presença de um processo de
desenvolvimento embrionário em que o diagnóstico da vitalidade contida nas
células embrionárias compõe a compreensão da vida no nível molecular.
Como já referido, isso não a torna artificial, pelo contrário, torna-a ainda
mais biológica, talvez menos humanizada. Esses discursos, no âmbito da
vida, assumem repercussões na subjetivação, de modo que nos percebemos
como corpos biológicos com cada vez mais possibilidades para o
aperfeiçoamento e remodelação em busca da bela idealização de vitalidade
para atingir a prometida longevidade.

Examinando nas reportagens os discursos científicos em torno das


pesquisas com células-tronco embrionárias, a noção de ciência parece
articular-se à ideia de religião, aquilo que há de mais elevado e superior nas
atividades intelectuais. Para Rose (2011a, p.21), “no campo emergente da
biopolítica do século XXI, novos tipos de poder pastoral envolvem os
cidadãos biológicos contemporâneos”. Esses novos pastores compartilham
princípios éticos de vitalidade que se multiplicam tanto na “aplicação” do
conhecimento biomédico, quanto numa variedade de instâncias
popularizadas no cotidiano pela divulgação de “verdades” – em jornais,
revistas, televisão, internet. Nessa rede discursiva, os indivíduos
intermediados pelo conjunto de especialistas e técnicas tornam-se capazes
de produzir a vida em si. Afinal, o pastor não conduz mais as almas das
ovelhas confusas e indecisas; ao contrário, os especialistas têm a missão de
convencer o próximo da responsabilidade com os cuidados consigo mesmo,
sob a validação da ciência (CASTIEL, 2010).

O rechaço da instrumentalização biotecnológica por meio do embrião


como possibilidade de agir sobre a saúde e a vida, fazendo viver mais e
melhor, envolve a condenação da escolha dos embriões que serão candidatos
à implantação no útero da mulher, assim como dos que serão congelados ou

168
criopreservados e dos que serão descartados em função dos diagnósticos
genéticos pré-implantação. Nessas circunstâncias, tais diagnósticos, ao
revelarem características moleculares e cromossômicas, podem tornar a
herança genética o fator determinante para a escolha de sua inseminação ou
não. Esse nível de conhecimento e possibilidades de intervenções biomédicas
e biotecnológicas como estratégias em busca das garantias para viver mais e
melhor aproxima-se da fórmula da imortalidade. Assim, o embrião
“fabricado” que não apresentar as características ou predisposições
genéticas que possibilitem um modo de vida nessas conformações não será
escolhido para implantação, gerando o descarte ou criopreservação. Tal
rejeição tem sido relacionada com a prática de aborto.

Retomando Bauman (2005, p.28), a existência do resíduo ou do refugo


gerado por uma produção é negada da mesma forma que o espaço próprio do
mundo da vida, afinal é “a visão dos potenciais clientes, de suas
necessidades e desejos, que decide o que é o quê”. Admitir a eliminação dos
refugos humanos nessa produção contribui para a organização ou
manutenção de estilos de vida a partir da atribuição do papel de refugo
conferido frente às “verdades” em prol da vitalidade. Nesse sentido, “eliminar
‘não é um movimento negativo, mas um esforço positivo para organizar o
ambiente’” em que vivemos – projetos humanos (idem, p.28).

Entretanto, outra perspectiva pode levar a pensar que tal nível de


conhecimento pode gerar intervenções biomédicas e biotecnológicas
aproximadas dos desdobramentos dos ideais eugênicos como “novas”
práticas eugênicas, na medida em que se busca, no conhecimento
genético114 adquirido, o “potencial” de “justificar e acionar mecanismos de
exclusão” pautados em decisões assentadas nas normas sociais vigentes –
como, por exemplo, os requisitos de beleza, a inteligência e a normalidade,
que marcam a desigualdade e o não-pertencimento mesmo antes do nascer
(MACIEL, 1999, p.140). Poderíamos, então, defrontar-nos com

114“O diagnóstico genético realizado durante a fase embrionária in vitro permite identificar alterações
cromossômicas nos embriões antes de os mesmos serem transferidos para a cavidade uterina”
(PEDROSA NETO e FRANCO JÚNIOR, 1998, p.121).
169
deslocamentos das noções eugênicas, da repugnante violência racial nazista
para o atraente avanço tecnológico propiciado pela ciência, que, ao sair da
ficção, traz para a “realidade” questões para além do cientificismo neutro –
como a possibilidade de eliminar “indesejáveis” e de estimular a reprodução
de “desejáveis”. Porém, sem cair em dualismos como o “endeusamento” ou
“demonização” da ciência e da tecnologia, as propostas de tais práticas talvez
possam ser muito mais a expressão de políticas sociais de segmentos
restritos da sociedade do que aplicação de teorias científicas universais – ou
seja, com base nos conhecimentos e valores da vida, os interesses de
determinados indivíduos ou comunidades biossociais passam a reger
normas de conduta e existência – éticas somáticas dos especialistas da
própria vida (ROSE, 2011a).

170
5.1.1. Estratégias biopolíticas de gerenciamento dos riscos para
a vitalidade ou nova eugenia – aborto eugênico?

Sem negar a existência de práticas eugênicas115 na


contemporaneidade, Rabinow e Rose (2006) explicam que a eugenia, como
aprimoramento do estoque biológico da população, se direcionava à
maximização da aptidão racial a serviço de uma disputa biológica entre os
países. Porém, as formas do conhecimento biológico que informam nossos
modos de governar a si e aos outros não são mais aquelas da sobrevivência
do mais apto, nem da purificação da raça pela eliminação dos degenerados,
o que torna enganoso fazer determinadas críticas através de uma associação
retórica com a eugenia de meados do século XX (idem). Assim, se fizermos
uso do

[...] termo eugenia para aplicar a qualquer intervenção sobre a


reprodução, a morbidade e a mortalidade da população, ele
cobre tudo o que diga respeito à contracepção, desde o aborto
à saúde pública, e seu uso torna-se meramente parte de uma
crítica retórica geral (RABINOW e ROSE, 2006, p.46).

De acordo com os autores, a economia da biopolítica contemporânea


opera conforme a lógica da vitalidade, por isso, mesmo com seus circuitos de
exclusão, deixar morrer não é o mesmo que fazer morrer. Além disso, com
base em quais evidências poderíamos sugerir que as formas de biopolítica
que estão se conformando em torno dessas técnicas têm como objetivo
estratégico a administração total das características das populações pelo

115 Rabinow e Rose (2006) destacam que uma forma visível de eugenia está relacionada à saúde
pública. “No Chipre, há programas sistemáticos de testes em todo o país, com o consentimento da
população, da igreja e do Estado, para identificar e eliminar a fibrose cística – não pela seleção de
embriões, mas pela interdição do casamento” (RABINOW e ROSE, 2006, p.47). “Podemos ver algo da
mesma estratégia em ação em práticas para o controle de Tay Sachs entre os judeus ocidentais na
América do Norte e em Israel – práticas que têm sido desenvolvidas por autoridades oriundas
daquelas próprias ‘comunidades biossociais’” (idem, ibidem). “Em qualquer definição, essa é uma
estratégia de reduzir os níveis de morbidade (taxa de portadores da doença) e patologia herdadas em
uma população considerada como um todo, através da atuação sobre as escolhas reprodutivas
individuais de cada cidadão, por meio de várias formas de cálculo e supervisão autoritárias,
sancionadas por uma gama de autoridades religiosas e seculares, incluindo bioéticos, e aprovadas pela
população” (idem, ibidem). Se esse é um típico caso de biopolítica contemporânea, seria enganoso
diagnosticar esse fenômeno como uma forma de genocídio ou a ressurreição dos espectros dos
campos de concentração porque a ocorrência da violência política ocorrida no regime biopolítico não é
a mesma que ocorre fora dele (idem).
171
Governo? A lógica em que opera a biopolítica é diferente, porque ela envolve
investimentos em alvos/objetos para expansão dos mercados farmacêuticos
e dos cuidados com a saúde que buscam inscrever os indivíduos, grupos de
pacientes, médicos e políticos em campanhas de “conscientização”

[...] de doenças e tratamento em nome da maximização da


qualidade de vida. Isto é capitalismo e liberalismo, não
eugenia, seja pela porta da frente ou de trás, ao menos na
medida em que a eugenia tenha adquirido um sentido negativo
inescapável em nossa cultura contemporânea.
Ainda precisamos desenvolver as ferramentas conceituais para
a análise crítica das maneiras nas quais a biopolítica se
relaciona com o biocapital e a bioeconomia, em circuitos nos
quais a saúde e a vitalidade tornam-se apostas importantes
nas relações de mercado e no valor das ações (RABINOW e
ROSE, 2006, p.48).

Afinal, as possibilidades da administração genômica ou o controle


genético em larga escala da população através de bebês projetados e futuros
planejados não ocorreu e, inclusive, é tecnicamente impossível atualmente,
pois, com a exceção de alguns setores minoritários, há poucas forças que
alcançam tal racionalidade (idem).

Além disso, a proposta de uso dos sofisticados e onerosos testes


genéticos pretendem um diagnóstico probabilístico para “posicionar as
pessoas em grupos de risco” com chances de responder bem ou mal a
determinado tratamento com custos elevados, mas sem garantias de
benefícios ou de acesso (ROSE, 2010, p.635). Nessa perspectiva biopolítica,
os exames genéticos envolvidos na seleção do embrião não estão
relacionados ao aprimoramento racial geral ou mesmo de “bebês projetados”
individualizados, mas têm sido empregados na identificação de fetos com
malformações ou disfunções genéticas terminais com a finalidade preventiva
de fornecer antecipadamente informações para gerir os “serviços dos tipos de
planejamento de vida que têm se tornado intrínsecos às formas de vida nas
sociedades liberais contemporâneas” (RABINOW e ROSE, 2006, p.44).

Rabinow e Rose (2006) ainda destacam que, nessa diferenciação,


existem importantes distinções a serem consideradas entre os interesses
pessoais relativos à reprodução e um compromisso do Estado com a

172
definição das características da população para fins nacionais. Por isso,
mesmo que práticas como a seleção sexual provoquem alterações nas
características da população, as tecnologias genéticas apenas amplificam as
formas culturais existentes, visto que, mesmo como produtos de escolhas
individuais almejadas como aspirações pessoais e conformadas por
circunstâncias específicas, são com frequência explicitamente condenadas
pelas políticas oficiais (RABINOW e ROSE, 2006). A possibilidade de optar
indica os tipos de escolhas éticas produzidas pela esperança investida nas
tecnologias (ROSE, 2010), de modo que o gerenciamento das características
populacionais através de intervenções na reprodução torna

[...] extremamente improvável que a micro-administração das


características populacionais através da intervenção ao nível
da reprodução seja científica e tecnicamente plausível. Mesmo
que seja plausível em relação a certas condições específicas, as
formas e o alcance de tal administração genômica serão
moldados pelos interesses de comunidades biossociais
particulares, ao invés de um compromisso do Estado com a
engenharia das qualidades da população para fins nacionais
(RABINOW e ROSE, 2006, p.48).

Isso dificulta pensar no governo das escolhas genéticas feitas pelos


genitores visando a modelos de futuros cidadãos definidos a partir dos
interesses do Estado para a gestão nacional. Na percepção dos autores,
como não repetiremos o passado, nem as utopias ou distopias da
futurologia, é preciso – para entender e intervir em futuros possíveis – de
“uma analítica que seja mais modesta e empírica, atenta a todas as
pequenas mutações em que o hoje está se tornando diferente do ontem”
(RABINOW e ROSE, 2006, p.48).

O futuro, interpretado como probabilidade, abre-se à esperança e a


um nível de intervenções que torna tênues as fronteiras entre as finalidades
das políticas de promoção e manutenção de vida e saúde proporcionadas
pelas biotecnologias e as políticas voltadas ao desenvolvimento econômico
com o consumo da vitalidade e os dispositivos de aceitação do morrer. Afinal,
em prol de uma vida saudável, são justificadas e aceitas escolhas e
intervenções que podem implicar uma normação regida por biopolíticas para
vitalidade que se valem de discursos por vezes discriminatórios, em nome da
173
proteção, promoção e/ou manutenção da vida. Nesse sentido, as
oportunidades da biologia molecular alteram a velha noção de Biologia,
entendida como destino e restrições para a noção de possibilidade e de
intervenção (ROSE, 2010).

Parece que os discursos sobre o corpo presentes nos jornais impressos


têm se utilizado do entretenimento e da publicidade para abordar, informar
ou revelar a “verdade real” sobre os corpos e suas possibilidades, no sentido
de interpretar e assumir o corpo como espaço de produção e como um
produto biológico que compõe a perspectiva do mercado e do consumo.
Trata-se de discursos que, entrelaçados com as noções de beleza,
sensualidade, saúde e juventude, tornam o corpo também um espaço para o
prazer, o espetáculo, o entretenimento, a promoção da saúde e as
justificativas responsabilizadoras e moralizantes para o que vier a lhe
acontecer.

As discussões sobre o uso de embriões nas pesquisas, aliadas às


práticas de fertilização em que vários embriões fabricados para tentativas de
gravidez sobram e são descartados ou criopreservados em clínicas de
fertilização artificial, parecem estabelecer relação tanto com uma forma de
aborto quanto com a possibilidade de “reciclagem” do material biológico.
Neste caso, os embriões condenados à “morte” poderiam ser aproveitados em
pesquisas na busca por gerar mais vida e saúde, já que vivemos no regime
biopolítico que procura a promoção e o gerenciamento da vitalidade.

Pelo que vinha discutindo, a lógica do biopoder é maximizar suas


forças, buscando incluir o máximo que puder, mas não a totalidade. Essa
racionalidade torna visíveis os efeitos de uma sociedade de normalização
regida pelo biopoder, utilizando biopolíticas que expõem a morte, deixando
morrer ou investindo na manutenção da vida dos corpos que fazem do seu
viver algo útil e produtivo. Isso pode apontar questionamentos sobre as
ideias de naturalidade ou natureza promulgadas pela “neutralidade” do
conhecimento científico; como produções e invenções humanas, elas agem
na vida dos indivíduos, desqualificam, excluem, criam diferenças... Porém,
também promovem benefícios para a saúde dos doentes por meio do
174
uso/“sacrifício” de outras vidas ou do aproveitamento de suas moléculas,
células, tecidos e órgãos.

Assim, a noção de vida como objeto político de estratégias para a


vitalidade busca e alcança sua legitimidade por suas conexões com as
políticas da ciência, da saúde e da economia. Isso oferece a oportunidade de
examinar as relações entre a vida/morte social e os usos que podem ser
feitos da ciência na contemporaneidade, pois os “problemas de elaborarem-
se políticas sociais com base em novos conhecimentos nos campos da
genética humana e da tecnologia reprodutiva são particularmente presentes
em nossos dias” (STEPAN, 2005, p.13).

Contemporaneamente, vivemos em um clima em que predomina a


aceitação do controle da natalidade, da esterilização (vasectomia,
laqueaduras de trompa, cirurgias de “mudança” de sexo) e do aborto por
motivos de saúde ou médicos em favor da vida. Evitando um reducionismo,
a compreensão desses movimentos vem alertar-nos para as políticas
dirigidas à vida com interpretações científicas, em que as ciências do viver e
seus discursos são complexas construções que “envolvem lutas em torno de
significados e valores” (STEPAN, 2005, p.218).

A partir das noções discutidas por Rabinow e Rose e do entendimento


de ciência da vida como processo de produção social, pode-se perceber que a
relação entre o viver e o morrer vem perpassando nebulosas fronteiras de
luta, num cenário bioeconômico marcado pela mercantilização da vida, o que
possibilita os seguintes questionamentos:

Como está se constituindo o valor à vida/morte nessa rede de


“verdades” – conhecimento, mercado, religião, saúde e éticas?

Quais dispositivos estão operando e como operam nas valorizações e


desvalorizações do viver?

As escolhas apontadas por diagnósticos biotecnológicos equivalem a


práticas eugênicas ou relacionam-se com a constituição de “autonomia” e
governo?

175
Conhecer as predisposições do próprio corpo sugere uma nova
percepção sobre a vida (mais biológica) e nos capacita e responsabiliza para
gerenciar e controlar (ainda mais) o viver?

Será a eugenia ou os valores diferenciais dirigidos à vida a questão


ameaçadora para a constituição da ética do viver/morrer?

Que tipos de humanos desejamos ser – mais biológicos ou menos – e


qual o papel da economia de mercado nessa transformação?

Quais as produções e os efeitos da vida como projeto baseado em


cálculos de propensões genéticas?

Na constituição do indivíduo em circunstâncias de incerteza, Sibilia


(2008), ao falar da redefinição dos limites da condição humana pelas
ciências da vida, menciona que os projetos tecnocientíficos exercem
importante papel nas transformações das definições e compreensões de vida
e morte, de natural e artificial e de normal e patológico.

Para a autora, conhecer as “essências” de um organismo dá acesso à


tradução da vitalidade de cada um de nós, o que faz com que a “natureza
humana” deixe de ter limites fixos e rígidos e se abra a ilimitadas
possibilidades de “reprogramação” de suas características e funções. Os
limites da definição do “humano” têm sido desafiados por pesquisas que
reprogramam novos projetos de “envelhecimento”, visando, por exemplo, à
“imortalidade” ou à promessa de que logo poderemos exercer um controle
“total” sobre o corpo humano, assumindo-se (ou não) os riscos que esse
projeto pode implicar.

Uma racionalidade biopolítica modificada em relação à saúde e ao


viver/morrer está nitidamente se formando. Nela, a noção de biopoder
direciona nossa atenção para: o conhecimento de processos de vida vitais, as
relações de poder que adotam os humanos/seres vivos como seu objeto e os
modos de subjetivação através dos quais os sujeitos atuam sobre si próprios
e sobre os outros – três elementos, “o conhecimento, o poder e a
subjetividade, estão entrando em novas configurações, algumas visíveis,
outras potenciais” (RABINOW e ROSE, 2006, p.50).
176
Nesse movimento, a possibilidade de decidir sobre o desejo de alterar
ou não a programação genética indica até que ponto têm avançado a cultura
do individualismo e a crença na individualidade (SIBILIA, 2008). Além disso,
elementos que ultrapassam as meras regras econômicas do capitalismo
confluem para obter-se uma visão do mundo, um denso tecido de valores e
crenças que constituem as nossas “verdades” e alimentam nossos desejos e
medos, nossos sonhos e pesadelos (idem). As descontinuidades constituídas
nessas redefinições tornam as discussões necessárias, em razão da sua
magnitude e dos efeitos que podem provocar em vários âmbitos e níveis –
econômicos, políticos, sociais, culturais, morais e éticos (idem).

Por fim, concordo com a autora quando comenta que “corpos” devotos
às “boas formas” e ao bem-estar corporal se veem constrangidos por um
conjunto tirânico de crenças e valores, tais como as “verdades” ou os mitos
de beleza, magreza e juventude. Trata-se de um ideário contemporâneo que
tem os meios de comunicação como aliados fundamentais, pois o turbilhão
de imagens e discursos midiáticos que cotidianamente nos bombardeia
contribui para a disseminação desses padrões do “corpo perfeito”, além de
divulgar as técnicas, produtos e serviços disponíveis para atingi-los (SIBILIA,
2008). Assim, sem limites na especulação de futilidades, a artificialidade da
manipulação do biológico vem tomando um ar de “naturalidade”, numa rede
predominantemente industrial e cada vez menos amadora ou artesanal, e
sua gestão impõe mais interferências, controles e intervenções, inclusive da
autonomia.

Assim, no sucesso desse projeto, confluem não apenas a tecnociência


e o mercado, mas outro aliado imprescindível implicado nas experiências
corporais contemporâneas – a mídia (SIBILIA, 2008). Os jornais, como parte
da mídia relacionada às nossas experiências, já sem muito espanto ou
comoção, possibilitam a leitura diária sobre a morte de indivíduos que
pretensamente nos causam riscos – bandidos, criminosos, delinquentes –,
sobre a morte dos que sofrem a falta de assistência médica ou vivem em
condições insalubres – desnutrição, contaminações, epidemias... –, assim

177
como daqueles que ainda nem nasceram, pelas diversas circunstâncias que
podem levar ao abortamento e ao infanticídio, dentre outros exemplos.

Pensar sobre as formas do viver/morrer que nos cercam e sobre a


prorrogação ou não da morte por meio das intervenções médicas, da polícia
ou de regulamentações do Governo significa pensar sobre quem estamos
sendo no mundo. Afinal, pensar sobre “a limitação da sua vida é pensar
sobre o sentido da nossa própria existência” (DOLL, 2004, p.120). A noção
de governamento implica o controle e o “governo” de uns em relação aos
outros, com vistas à utilidade e produtividade das pessoas/corpos nos
diversos sistemas que integram a sociedade, o que nos leva a questionar os
efeitos das práticas sociais postas em circulação/funcionamento numa
sociedade regida pelo fazer viver – mais e melhor.

Problematizar algumas das condições que geraram e geram


possibilidades de pensar o viver e o morrer, inclusive de quem ainda não
nasceu, faz perceber que, a partir de uma análise relativamente local das
formas de poder em relação ao corpo e ao viver, seja possível discutir
problemas mais gerais sobre o viver/morrer. Isso porque falar de problemas
no nível do micropoder implica falar de suas relações com os macropoderes,
ou seja, conhecer como as estratégias de governamento dos corpos e das
vidas se articulam a problemas biopolíticos. Nas palavras de Foucault, a
“análise dos micropoderes ou dos procedimentos de governamentalidade não
está, por definição, limitada a uma área precisa”, definida por setor ou
escala, mas deve ser considerada uma perspectiva, “um ponto de vista, um
método de decifração que pode ser válido para a escala inteira, qualquer que
seja a sua grandeza” (FOUCAULT, 2008a, p.258).

Após essas discussões, percebo e compreendo que, ao viver num


contexto de economia neoliberal e sob o sistema do biopoder, a testagem
genética configura-se como um exame digital – a exemplo da
ultrassonografia – que se destaca entre outras possibilidades de exames
rentáveis economicamente que já estão à disposição e que intervêm nas
nossas escolhas e comportamentos dirigidos à promoção da saúde/vida e à
prevenção de doenças. Esses procedimentos, baseados em “verdades”,
178
mesmo se refletindo em abortamentos, discriminações ou estigmatizações,
não equivalem à eugenia, mas dizem respeito à constituição de noções sobre
a valorização e desvalorização da vida. Trata-se de técnicas de exames mais
amplos que dizem outras coisas e possibilitam outras práticas, mais
incisivas e significativas, nas intervenções. No entanto, as escolhas são
individuais, pessoais e, por isso, subjetivadas no regime do biopoder pela
noção de vitalidade, ou seja, de fazer viver mais e melhor, de produzir a
saúde antes de precisar restabelecê-la e, ainda, de contar com a esperança e
a incerteza de fazer as escolhas “corretas” diante do governo de si, que se dá
a partir da administração de riscos ou propensões genéticas.

Considerar que as tecnologias de reprodução e as técnicas de


aconselhamento genético por meio de testagens pré-natais estabelecem uma
relação entre o conhecimento dos riscos e as intervenções, entre elas, o
aborto, implica a articulação entre a comunicação, a informação e as
explicações médicas na tomada de decisões, ou seja, as decisões são
constituídas a partir de ponderações próprias, e não apenas da voz/ordem
médica (ROSE, 2010). Faz perceber também que, no quadro de
medicalização da sociedade, gerida por especialistas de diferentes áreas, a
ideia da hereditariedade e do gene como unidade de herança codificada tem
instigado a imaginação sobre o domínio do biológico em relação à
possibilidade de novas práticas eugênicas. Porém, ao contrário da eugenia, a
desproporcional distribuição e acesso aos recursos para a otimização da vida
evocam a valorização econômica do viver pela redução da vida do indivíduo a
elementos que podem ser explorados economicamente, por exemplo, as
técnicas de diagnósticos e patenteamentos.

Se a meta da biopolítica/bioeconomia é convencer o indivíduo a viver –


trabalhar, gastar, consumir, endividar-se, etc. – pela saúde do próprio corpo
para viver mais até o “distante” dia de sua morte, parece que a intenção é
mobilizar os indivíduos para a produção de intervenções sobre a vida, tendo
a saúde e o corpo cada vez mais relacionados à ideia de felicidade ou à
própria felicidade de viver por mais tempo e da melhor maneira. No entanto,
o preço consiste em assumir tudo o que envolve os cuidados de si – tanto a

179
responsabilidade quanto a incerteza, a culpa ou o fracasso na realização dos
desejos (RABINOW e ROSE, 2006).

No que se refere aos estímulos para os cuidados de si, como já


referido, eles aparecem em vários espaços – jornais, internet, revistas,
televisão... –, conectados com informações de especialistas sobre as
possibilidades e as estimativas de doenças. Tais estímulos competem entre si
na constituição da subjetividade do indivíduo como responsável que busca
cada vez mais por informações e pelo exercício das recomendações com
vistas à pretendida “proteção” promovida pelas “garantias” biotecnológicas
de redução de riscos e de acesso ao melhoramento da vida do futuro filho.

Essa percepção da maternidade atravessada por discursos


biotecnológicos de otimização da vida e de autocuidado, ligada à
responsabilização pelas escolhas e riscos e divulgada em mídias como os
jornais confere investimentos em vários níveis à mulher. Ao tornar-se
gestora do filho, a mulher consome possibilidades, necessidades, saúde,
aptidões, vontades que fazem da ideia/sonho de filho “perfeito” um produto
de intenso comércio, mas sujeito ao descarte quando não atender à demanda
(SOMAVILLA e SANTOS, 2011). Por meio dessas técnicas preventivas, pode-
se imaginar a compra de uma vida projetada para a “perfeição” que, por isso,
pode oferecer mais segurança a esse indivíduo pela potencialização na
redução dos riscos à sua saúde/vida. Além disso, a exposição a riscos
procriativos, como deformações, anomalias, anormalidades, malformações,
deficiências e síndromes, aponta aos pais, mas especialmente para a mulher,
os discursos de responsabilidade pela prevenção para o nascimento de um
bebê saudável.

Diante dessa “tarefa” e temor, a futura mãe, num regime de cuidado


de si e gerenciamento dos riscos, encontra nos testes e nas intervenções
genéticas uma poderosa estratégia de detecção e de combate aos genes
causadores desses possíveis “males”. Com o auxílio do aconselhamento
genético dos especialistas e das tantas informações que a mídia fornece
diariamente, a futura mãe vê-se munida e apta para tomar as decisões de
forma “autônoma” e “responsável”, provando para a família, os amigos, a
180
sociedade e a si mesma sua capacidade no gerenciamento de sua vida e da
vida futura de seu filho. Do contrário, vai provar sua postura irresponsável e
incompetente pelas escolhas que fez para a saúde/vida de seu filho e estará
sujeita a julgamentos e questionamentos morais e de culpa sobre suas
condutas, obrigações, amor e responsabilidade enquanto mulher atuante no
papel de mãe. Assim, a racionalidade aparentemente salvacionista atribuída
à biotecnologia e à biomedicina – que classificam, dirigem e regulamentam
as práticas dos indivíduos – torna-as instâncias com dimensões educativas
de produção e posicionamento dos sujeitos e de governo dos corpos/vidas.

Daí a eficiência dos anunciados benefícios das tecnologias


reprodutivas, como os exames de rotina e genéticos, em não onerar o Estado,
reduzir prejuízos e custos com doenças e gerar rentabilidade e
movimentação da economia com o seu comércio. Isso se constitui em
estratégias bioeconômicas ou mercadológicas de articulação de diversos
níveis de governos para manutenção do Estado, visando a promover o bem
de “todos”, da economia e das pessoas pela perpetuação do consumo num
governo de si atravessado por julgamentos morais.

Ao que parece, como consequência da produtividade em prol da


garantia da manutenção do Estado por meio da movimentação da economia
que se vale da promoção da vitalidade, há aqueles que não conseguem
acessar a saúde privada ou pública. Sem tais acessos, esses padecem as
mazelas da falta de prevenção, diagnóstico e cuidados, numa intensa
exposição aos riscos do destino biológico do próprio corpo e aos riscos da
falta de condições socioeconômicas para a saúde e vida – fatores que
configuram riscos ambientais e de estilo de vida e que aumentam as chances
de doenças e de morte, mas que por vezes têm sido veiculados como contra-
exemplos para os “cidadãos biológicos”.

Com isso, não quero dizer que o capitalismo neoliberal seja do bem ou
do mal, mas que, num sistema biopolítico, mesmo que as responsabilizações
sejam endereçadas a todos, não serão todos – ou seja, a totalidade – que
guiarão suas decisões para determinados propósitos ou que poderão acessar
as estratégias de reconfiguração do biológico. Em seus estudos sobre o
181
nascimento da biopolítica, Foucault (2008a) mencionou que as
desigualdades são necessárias para o mercado, pois é por meio da
desigualdade que se promove a concorrência das mais variadas formas e nos
diversos setores. Caso uma política social tivesse por objetivo a igualização,
ainda que relativa, seria necessariamente antieconômica. Nessa lógica, para
que as regulações se façam, é preciso que “haja pessoas que trabalhem e
outras que não trabalhem, ou que haja salários altos e baixos, é preciso que
os preços subam e desçam” (FOUCAULT, 2008a, p.196). Assim, nesses jogos
instáveis e não-igualitários, um desempregado não é uma vítima da
sociedade, mas “é um trabalhador em trânsito” que está “entre uma
atividade não rentável e uma atividade mais rentável” (FOUCAULT, 2008a,
p.191). Tendo em vista não a extinção, mas a tolerância em relação à
manutenção de um equilíbrio dessas taxas, as pessoas oscilam entre a falta
de acesso aos recursos de gestão da vida e saúde e a possibilidade de
acessá-los e também de viver por mais ou por menos tempo, por viver com
mais ou com menos saúde, etc.

Dessas considerações, mesmo que determinadas tecnologias


reprodutivas sejam marcadas por históricos estigmas eugênicos, não me
parece que as decisões das pessoas sejam “manipuladas” de modo a atingir
fins eugênicos porque as estratégias não vislumbram nem a extinção de
doenças nem a plena saúde para toda a coletividade dos cidadãos.
Entretanto, essa relação com a reprodução e a possibilidade de acesso à
saúde mostra-se implicada na ampliação e manutenção do comércio
interno/externo por meio de uma infinidade de produtos biológicos e não-
biológicos ligados à noção de vitalidade. Essa noção, como estratégia
biopolítica de governo, tem operado moralmente na promoção da saúde, na
prevenção e manejo dos riscos e no adiamento da velhice e da morte, por
exemplo. Assim, através de alimentação, exercícios físicos, esportes e
cirurgias estéticas, entre outros, movimenta-se a economia de mercado e a
mantém-se em funcionamento. Isso faz lembrar, nas palavras de Foucault,
que “o mercado é um regulador econômico e social geral” e que ele constitui

182
um mecanismo muito sutil que gerencia interesses articulados e/ou
compartilhados (FOUCAULT, 2008a, p.192).

Nessa relação, a responsabilização moral de agir em prol da vida nas


decisões individuais de gestão dos riscos não parece relacionar-se às noções
eugênicas, mas, talvez, à noção de adaptação do viver de cada indivíduo às
circunstâncias em que vive – como uma prevenção comportamental
relacionada aos estilos de vida. Para que se pense em eugenia nessas
circunstâncias, seria necessário interpretar os esforços e as estratégias para
que se viva mais e melhor – relativos às práticas de si na manutenção de
beleza, saúde e juventude – como estratégias eugênicas para extinção do que
se considerar como feiura, doença e velhice, em prol da cultura do corpo
“perfeito”, e não como estratégias biopolíticas de prevenção de doenças e
promoção da saúde/vida para o governo dos corpos. Penso que esse não seja
o caso, afinal, inúmeras pesquisas têm enfatizado a produtividade das
“verdades” que vêm nos subjetivando, mesmo as relacionadas à “perfeição”
corporal, mostrando-se vinculadas aos discursos de prevenção de doenças e
promoção da saúde/vida, em negociações e redefinições constantes.

Na tentativa de limitar-me a conhecer as implicações das “verdades” e


definições da vida/morte nas biopolíticas atuais relacionadas ao aborto, na
próxima e última seção, trago algumas discussões sobre o corpo e a vida do
feto e da mulher grávida, para discutir as formas de governo na busca pela
maximização da produtividade do viver em caso de anencefalia. Apresento,
ainda, conceituações de termos utilizados para definir formas de aborto e
discussões sobre diferentes posicionamentos e olhares relativos a essa
questão – Legislação, Medicina e Religião.

183
5.2. Anencefalia: paradigmas da existência e seus riscos

Antes de iniciar a discussão sobre a anencefalia, pareceu-me


pertinente retomar, de forma breve, alguns apontamentos sobre a noção de
biopoder proposta por Foucault. Para ele, no regime de um poder que se
encarrega da vida, ou seja, que toma a vida como objeto político, são
necessários “mecanismos contínuos, reguladores e corretivos” que
distribuem os indivíduos em escalas de “valor e utilidade” em torno da
norma (FOUCAULT, 2007, p.157). Relacionada a esse poder dirigido à vida,
ocorre uma proliferação de tecnologias políticas que investem sobre o “corpo,
a saúde, as maneiras de se alimentar e de morar, as condições de vida, todo
o espaço da existência” (idem, p.156). Sobre isso, Foucault disse que

[...] a lei funciona cada vez mais como norma e a instituição


judiciária se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos
(médicos, administrativos etc.) cujas funções são sobretudo
reguladoras. Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico
de uma tecnologia de poder centrada na vida (FOUCAULT,
2007, p.135).

O biopoder ocupa-se em intervir para aumentar a vida, prolongar sua


duração, multiplicar suas possibilidades, controlar seus acidentes,
compensar suas deficiências, tendo essencialmente o objetivo de “intervir
para fazer viver, e na maneira de viver” (FOUCAULT, 2002a, p.295). Para
isso, utiliza estratégias para a eliminação do perigo e a promoção da
proteção e da longevidade de determinados indivíduos.

Para o autor, a redução do perigo pode relacionar-se à eliminação da


vida, o que compreende não só e simplesmente o assassinato direto, mas
todo um conjunto de elementos que podem ser formas de assassinar
indiretamente, como, por exemplo: expor à morte, multiplicar para alguns os
riscos de morte ou “a morte política, a expulsão, a rejeição, etc.”
(FOUCAULT, 2002a, p.306). Essa percepção leva a entender como é possível
admitir a morte num sistema político centrado no exercício do biopoder –
poder que tem como objetivo fazer viver, que trata de “aumentar a vida, de
prolongar sua duração, de multiplicar suas possibilidades, de desviar seus

184
acidentes ou então de compensar seus acidentes” (FOUCAULT, 2002a,
p.304).

Nesse regime, portanto, governar implica viver ou morrer em nome da


vida saudável, da produtividade e da utilidade das vidas e/ou dos modos de
viver que compõem os corpos e que garantem e mantêm a sustentação do
poder econômico de uma sociedade. Com isso, não quero dizer que o
capitalismo ou o biopoder sejam da ordem do bem ou do mal, mas que as
coisas/“verdades” funcionam e são criadas/pensadas de maneira que os
benefícios tendam a ser ou parecer mútuos. Afinal, estão articulados por
normas que valem para todos, as quais, ao instituírem-se, constituem leis
que governam os indivíduos – seus corpos e vidas – e que os tornam, além de
governáveis, governantes de si e dos outros.

“Encerrando” esse breve retorno às explicações de Foucault sobre


questões de poder e de governo da vida, retomo o que tratava na seção
anterior. Nela mencionava que, a partir de exames pré-natais, é possível
diagnosticar malformações congênitas intrauterinas, como as anomalias
cromossômicas e problemas no fechamento do tubo neural, e que aos riscos
genéticos se agregam recursos preventivos, diagnósticos e terapêuticos. Para
a interrupção da gravidez em casos como o de anencefalia,
contemporaneamente, tem-se usado a expressão antecipação terapêutica do
parto e evitado o termo aborto, como mencionado na reportagem intitulada
Médicos evitam falar em aborto e defendem “antecipação de parto” (Folha SP,
2008).

Entidades médicas defenderam "antecipação do parto" de fetos


com anencefalia durante a segunda audiência pública feita
pelo STF (Supremo Tribunal Federal). Durante toda a
audiência, os médicos evitaram usar o termo aborto, que,
segundo eles, só ocorreria se o feto tivesse vida. O vice-
presidente do Conselho Federal de Medicina, Roberto D'ávila,
disse que o órgão é favorável à antecipação do parto nesses
casos.
Segundo D'Ávila, como a legislação proíbe o aborto, o conselho
determina que os médicos orientem suas pacientes a procurar
a Justiça. "Entendemos que essas pacientes estão submetidas
a riscos. Somos obrigados a mandar os médicos orientarem
suas pacientes a buscarem o judiciário. Dessa forma, está
havendo uma judicialização da medicina", disse.
185
O médico, representante da Febrasgo (Federação Brasileira
das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) apresentou
estudos que mostram que 7% das gestantes de fetos
anencéfalos sofrem deslocamento de placenta e 4% passam
por uma histerectomia (retirada do útero). Ele apresentou
ainda dados de pesquisa feita com 4.320 ginecologistas que
mostra que 83,5% consideram que a gravidez traz riscos
físicos e mentais para a mulher e deve ser evitada116.

A justificativa apresentada para evitar-se o uso do termo é a de que o


aborto é considerado um crime contra a vida em potencial, ou seja, quando o
feto tiver chances de cura ou melhora, o que não existe no caso do feto com
anencefalia, pois o erro de fechamento do tubo neural “impossibilita a vida
extra-uterina” (TESSARO, 2008, p.26). Isso torna a anencefalia um caso
limite, em que o feto não tem chances de sobreviver fora do útero, mas há
casos, como a síndrome degenerativa de Tay-Sachs117, em que a morte
ocorre depois do parto, por volta dos quatro anos de idade (DINIZ e RIBEIRO,
2004).

Segundo Gil, cada caso tem suas peculiaridades, mas a interrupção de


gestações desse tipo não configura um aborto, e o seu prolongamento pode
causar “malefício para toda família”, inclusive aos outros filhos (GIL, 2005,
p.109). Em relação à aceitação da antecipação do parto nesses casos, o vice-
presidente do Conselho Federal de Medicina referiu-se às mulheres grávidas
como pacientes submetidas a riscos físicos e mentais que devem ser
evitados; porém, como o aborto é proibido pela legislação, tal conselho
determinou aos médicos que orientassem suas pacientes a procurarem a
Justiça. A reportagem, enfatizando a questão do risco para essa gravidez e
embasando-se em pesquisas, apresenta percentuais, como, por exemplo, de
incidência de casos de descolamento de placenta (7%) e de histerectomia

116 Reportagem: Médicos evitam falar em aborto e defendem "antecipação de parto" (Folha SP, 28/08/2008).
Ver página 75 do anexo 1.
117 A doença de Tay-Sachs (DTS) consiste numa deficiência enzimática congênita; na maioria das
vezes, leva a uma deterioração mental e física intensa, tornando-se letal durante a infância. Pode ser
detectada por exame de sangue ou por técnicas diagnósticas baseadas na análise molecular do DNA,
tal como a reação de polimerização em cadeia, PCR – Polymerase Chain Reaction (PURVES, 2002).
Com o intuito de diminuir a incidência dessa doença, são incentivados exames pré-natais e
aconselhamento genético.
186
(4%). Traz, ainda, a informação de que, num total de 4.320 ginecologistas,
83,5% consideraram a possibilidade de riscos físicos e mentais.

A partir dessa reportagem, percebe-se que o amparo no discurso de


prevenção de riscos à saúde da mulher comprovadamente constatados em
pesquisas feitas por especialistas contribui para acionar outra leitura e
significação para o aborto, remetendo não somente à morte do feto, mas
especialmente à solução terapêutica de eliminação do risco a que a saúde
física e mental da mulher está exposta. Assim, de acordo com o diagnóstico
do estado de saúde, ocorre uma alteração também do vocabulário dirigido à
mulher grávida, que deixa de ser interpretada como uma gestante “normal” e
passa a assumir o papel de paciente, portadora de um risco iminente. Com
base na possibilidade de manifestação desse risco calculado, recomenda-se a
busca pela liberação do judiciário para o abortamento; este, por adquirir a
conotação preventiva e terapêutica de promoção da saúde/vida da mulher,
muda a relação com a morte.

Se antes a prática de aborto remetia à interrupção da vida pela morte


do feto, agora passou a reportar-se à vida, à promoção da saúde/vida da
mulher. Aliadas a isso, apareceram outras denominações para tal prática,
como, por exemplo, a de antecipação terapêutica do parto e interrupção
terapêutica da gravidez. Tais nomeações produzem alterações nas formas de
ver e pensar essa prática e também atuam na constituição de “verdades” e
noções sobre os distintos valores que atribuímos à vida e à morte, de acordo
com as circunstâncias em que esses acontecimentos de fazer viver/morrer
estão inseridos. Isso promove o estabelecimento de outras percepções sobre
a possibilidade de morte e vida, pois a morte pode significar um começo
quando relacionada à manutenção da vida e, assim, pode tornar presentes
outras éticas relativas à modificação e superação dos critérios que definem o
viver/morrer.

Como já referido, a anencefalia tem sido considerada uma


malformação incompatível com a vida extrauterina em 100% dos casos, com
impossibilidade de sobrevida ou reversibilidade, sendo letal – “pelo menos

187
50% deles morrem ainda intra-útero” (ANIS, 2004, p.71). Nesse caso, não há
o que fazer para tornar o feto “viável”, pois ele

[...] não apresenta os hemisférios cerebrais por um defeito de


fechamento do tubo neural, nem o córtex cerebral, somente o
tronco. Como a cabeça não fechou e o cérebro não se
desenvolve, o feto apresenta um profundo achatamento da
cabeça [além da exposição dos tecidos e hemorragia] (idem,
p.83).

Em relação a essas questões e estimativas, têm-se buscado estratégias


preventivas em recursos como o tratamento com ácido fólico. No recorte da
reportagem intitulada A cada três horas, nasce um bebê anencéfalo no país,
diz geneticista (ZH, 2008), relata-se que o tratamento com ácido fólico,
apesar de reduzir a incidência de anencefalia, não abarca 100% dos casos.

O médico geneticista Salmo Raskin falou durante a audiência


pública em nome da Sociedade Brasileira de Genética Clínica,
da qual é presidente. Ele fez uma exposição técnica sobre
como acontece a anencefalia e afirmou que esta é a maior
causa de má formação congênita no primeiro trimestre de
gestação. Além disso, disse que a cada três horas no Brasil
nasce uma criança com anencefalia:
— Estamos falando de algo extremamente freqüente —
afirmou o médico.
Ele explicou que a fortificação com o ácido fólico não reduz
100% dos casos de anencefalia, mas reduz de 10% a 40% dos
casos. Os Estados Unidos alcançou a redução de 19% e o
Chile o maior índice, que é de 42%. No entanto, a eficiência da
substância precisa ser feita antes do fechamento do chamado
tubo neural e quando a gestante descobre que está grávida e
não utilizou o ácido, não adianta mais utilizar.
— No Brasil isso é muito comum, nós atendemos todos os dias
gestantes que descobrem que estão grávidas, vão ao obstetra
marcar consulta e então descobre que não adianta mais usar o
ácido fólico.
Raskin falou que a anencefalia tem prevalência maior em fetos
do sexo feminino e pode estar associada a mais de 20
síndromes genéticas. Ele disse que já presenciou casos em que
o feto sofre convulsões até a hora da morte:
— O tecido neural fica exposto, hemorrágico e fibrótico. Há
uma degeneração dos neurônios e a morte acontece dentro de
horas ou dias — explicou.
Doação de órgãos
De acordo com o geneticista, os bebês que nascem sem
cérebro não podem e não devem ser doadores de órgãos. Não
podem porque eles, geralmente, morrem muito rápido e não dá
tempo, pois o transplante em recém nascidos não é feito antes

188
do sétimo dia de vida. E, segundo ele, mesmo que dê pra
retirar os órgãos, eles estarão comprometidos.
— Manter a vida do anencéfalo artificialmente para retirar os
órgãos é questionável eticamente.
Por fim, o médico disse que o risco de um casal que teve um
feto anencefálico vir a ter outras gestações semelhantes é de
25 a 50 vezes maior comparado com casais que nunca tiveram
fetos anencefálicos:
— Então, não é impossível nem improvável que uma gestante
tenha uma gestação de um feto anencefálico, pela legislação
atual não possa interromper essa gestação, e numa próxima
gestação, a mesma coisa venha a acontecer.
O STF vai ouvir opiniões de diferentes profissionais,
associações e entidades religiosas antes de julgar a Argüição
de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, sobre
o tema.
A matéria deverá ser enfrentada pelo plenário do Supremo em
novembro, segundo o relator da ação, ministro Marco
Aurélio118.

No início do texto, é mencionado que, a cada três horas, nasce uma


criança com anencefalia no Brasil. Tal incidência, conforme afirmação
médica, pode assustar pela alta frequência de ocorrência desse risco. No
entanto, é referido que a administração do ácido fólico contribui como
estratégia preventiva, pois reduz de 10% a 40% dos casos. Contudo, a
eficácia da substância no organismo fetal depende de sua utilização antes do
fechamento do chamado tubo neural, nas palavras do médico: “quando a
gestante descobre que está grávida e não utilizou o ácido, não adianta mais
utilizar”.

Para Lupton (2000, p.26), em relação aos homens, o corpo feminino é


mais visível e recebe “maior atenção às questões da saúde da mulher”. Tais
discursos preventivos, ao enfatizarem a importância ou obrigação em
planejar a gravidez, mostram-se ligados à responsabilização da mulher e ao
seu dever no gerenciamento dos cuidados maternos. Do contrário, será a
principal culpada, pois é ela quem deve saber da gravidez no tempo
oportuno de tomar a medicação para prevenção. A estatística da ocorrência
chama a atenção para a negligência, o desleixo e a irresponsabilidade de um
elevado número de mulheres na gestão de si e do outro. Desse modo, a sua

Reportagem: A cada três horas, nasce um bebê anencéfalo no país, diz geneticista (ZH, 28/08/2008). Ver
118

página 76 do anexo 1.
189
falta de conhecimento e de atitude reflete-se num sério problema de saúde
em que a única medida terapêutica para resguardar sua vida será a omissão
da vida de seu filho.

Na sequência de “alertas” sobre a gravidade da alta ocorrência desses


casos no Brasil, o médico mencionou a prevalência da anencefalia em fetos
do sexo feminino, o que pode estar associado a mais de 20 síndromes
genéticas. Além disso, falou que já presenciou casos em que o feto sofre
convulsões até a hora da morte. Assim, numa aterrorizante narrativa, o
médico chama a atenção não só para a alta ocorrência da anencefalia, como
também para a possibilidade da associação dessa anomalia a um número
expressivo de outras síndromes genéticas. Tais “verdades” funcionam como
um reforço moral nas obrigações da mulher em práticas preventivas e nos
cuidados, tornando-a responsável ou irresponsável, cuidadosa ou insensata,
negligente ou ajuizada, entre todos os outros adjetivos capazes de, por bem
ou por mal, culpabilizá-la e responsabilizá-la (LUPTON, 2000).

Outra questão apontada no texto que é digna de atenção é a das


indicações de margem de risco com base em estimativas já no título, pois
este traz a estatística de que “a cada três horas nasce um bebê anencéfalo
no país, diz geneticista”. Em meio a tantos percentuais e estimativas sobre a
vida e a morte, é interessante lembrar que os números dos dados coletados
se referem ao humano. De acordo com Santos (2002), mesmo que não
tenham a ver com quem lê a reportagem, os números nela divulgados falam
de pessoas, pessoas que talvez não conheçamos e que desconhecem ou são
estranhas às normas e às condutas morais, sociais e legais. Se tais números
não nos representam, então não dizem respeito às nossas vidas, porém, ao
falarem do outro, falam também de nós. E se estivermos representados
diretamente por algum desses percentuais... O que esse número nos diz
sobre nossa vida?

Para Santos (2002), os números – gráficos, tabelas, porcentagens – são


um modo de governar, constituem uma das tecnologias de governo
envolvidas na produção e regulação dos indivíduos pelo autogoverno, isso
porque a probabilidade indica uma margem de risco que insere cada
190
indivíduo na lógica governamental. Tal lógica, de forma eficaz, torna
desnecessário um governo que controle cada cidadão, pois cada um exerce
“sobre si mesmo uma forma de governo que tanto pode se aproximar daquilo
que dele é esperado quanto pode se afastar” (SANTOS, 2002, p.38). Assim, o
autogoverno faz as probabilidades estatísticas ou os números de dados
científicos – enquanto tecnologias de governo – funcionar no nível do
gerenciamento e condução do indivíduo para a normalidade. Com base em
Hacking, Santos (2002) comenta que a estatística tem contribuído na
determinação do formato das leis sociais, do caráter dos fatos sociais e,
ainda, na criação de conceitos e classificações nas ciências humanas,
valendo-se da representação dos indivíduos por números. Os números
mostram-se “reveladores” das predições sobre os indivíduos que poderão ou
não ser afetados. Além disso, identificam, rotulam e definem agrupamentos
humanos sujeitos a intervenções ou medidas preventivas relacionadas às
tecnologias de governo, que, ao incidirem nas decisões, regulam a
autonomia, ou seja, configuram a promoção do autogoverno como estratégia
de governamento.

Retornando à reportagem, esta aborda a possibilidade de doação de


órgãos do anencéfalo; conforme a fala do geneticista, “os bebês que nascem
sem cérebro não podem e não devem ser doadores de órgãos” – em razão de
morrerem muito rápido, antes do prazo que autoriza a retirada dos órgãos,
que corresponderia a, no mínimo, sete dias de vida. Outro impedimento
mencionado por ele é que, “mesmo que dê pra retirar os órgãos, eles estarão
comprometidos”. O geneticista salientou, ainda, que “manter a vida do
anencéfalo artificialmente para retirar os órgãos é questionável eticamente”.

Abordando várias questões intrigantes, esse excerto remete à


discussão do transplante como tentativa de tornar úteis os órgãos do
anencéfalo, ainda vivo, em busca da promoção do viver de outros indivíduos
– ou seja, seu restrito tempo de vida torna-se uma possibilidade de gerar
mais vida.

191
5.2.1. Da vida do anencéfalo: valores para a “reciclage m”
de “materiais” biológicos?

No que se refere à doação de órgãos de um anencéfalo, a reportagem


intitulada Governo restringe transplante de órgão de bebê anencéfalo (Folha
SP, 2007) diz o seguinte:

O governo federal atropelou ontem o Conselho Federal de


Medicina e proibiu o transplante de órgãos e tecidos de bebês
anencéfalos até que seja constatada uma parada cardíaca
irreversível – para os demais doadores, segue valendo o
diagnóstico de morte cerebral.
O CFM autorizou esse tipo de transplante em resolução de
2004 porque considera o anencéfalo um "natimorto cerebral",
mas não há casos no país. Para o Ministério da Saúde, se o
anencéfalo nasce e respira, é um ser humano e precisa ser
protegido.
Segundo o coordenador do SNT (Sistema Nacional de
Transplantes) do Ministério da Saúde, Roberto Schlindwein, o
CFM recusou a sugestão de modificar sua resolução no ano
passado. Por isso, foi necessário publicar a portaria para evitar
"confusão" nas centrais de transplantes, que sempre foram
orientadas a recusar procedimentos com órgãos e tecidos de
anencéfalos.
A Lei de Transplantes, de 1997, determina que o doador morto
precisa ter a morte cerebral verificada por dois médicos e
caberia ao CFM determinar esses critérios. "Mas no caso do
anencéfalo, esse diagnóstico simplesmente não pode ser feito",
disse Schlindwein.
Para Henry Campos, conselheiro da ABTO (Associação
Brasileira de Transplante de Órgãos), a portaria do governo
tem pouco impacto em termos práticos, mas introduz o
elemento de "cautela" em "um momento de debate difícil e
polêmico sobre quando começa o direito à vida". Há pouca
demanda, afirmou, por órgãos de bebês.
Para o conselho, a portaria do governo é "inócua". "Hoje o
marco do diagnóstico de morte é a morte cerebral. Se for
aplicar a morte cardíaca, não poderemos mais ter transplantes
cardíacos", disse Marco Antônio Becker, autor do parecer que
fundamentou a resolução do CFM.
Segundo esse texto, os órgãos e tecidos do anencéfalo podem
ser removidos logo após o nascimento desde que os pais dêem
aval 15 dias antes do parto119.

119SUWWAN, 2007. Reportagem: Governo restringe transplante de órgão de bebê anencéfalo (Folha SP,
06/03/2007). Ver página 77 do anexo 1.
192
São apresentadas compreensões sobre o limite entre o viver e o
morrer, conforme posicionamento do governo federal e do Conselho Federal
de Medicina (CFM), envolvendo a proibição do transplante de órgãos e
tecidos de anencéfalos até que seja constatada uma parada cardíaca
irreversível. Também são trazidas interpretações do que seja o anencéfalo –
para o CFM, trata-se de um "natimorto cerebral", enquanto que, para o
Ministério da Saúde, é um ser humano que precisa ser protegido. Pode-se
depreender que, mesmo que haja pouca demanda por órgãos de bebês,
conforme salientou o conselheiro da Associação Brasileira de Transplante de
Órgãos (ABTO), a fatalidade biológica da condição de anencefalia e a
possibilidade de esse corpo gerar mais vida produzem incerteza sobre a
conexão desse sujeito com a noção de vida e provocam questionamentos
sobre quando inicia a vida, o que é nomeado como vida e o que se entende
por viver.

A busca por elementos ou critérios que definam o viver e o morrer ou


as “verdades” sobre determinadas condições biológicas traz para o cenário de
criação, por assim dizer, discussões de vários campos de conhecimento. Por
exemplo, ao considerar-se o cérebro uma “unidade integrada e não somente
o tronco cerebral, [o indivíduo] com as funções integradas está morto”; nesse
caso, alguns profissionais da área da saúde entendem que não há vida
(ANIS, 2004, p.32). Porém, há discussões do campo médico questionando
essa hipótese, pois, com a definição de morte cerebral, o conceito de morte
define-se pelo instante da constatação da inatividade cerebral, ou seja, pela
inatividade de todas as funções cerebrais, incluindo o tronco cerebral, que
controla a respiração, o batimento cardíaco e a pressão sanguínea (MARTIN,
1998). O uso desse conceito para o caso dos anencéfalos também tem sido
debatido.

Em razão da ausência do cérebro, a funcionalidade dos órgãos pode


ficar comprometida. Assim, a retirada de órgãos viáveis para transplantes,
caso seja possível, é considerada pouco provável, ainda mais pelo agravante
do tempo de “vida” desses órgãos após o parto, pois param de funcionar nos
momentos seguintes – em média, não passam de alguns minutos (ANIS,

193
2004). Outra questão é o problema que envolve a remoção dos órgãos, pois
ela só pode ser “realizada após a confirmação da morte”, mas os critérios de
morte cerebral não são adotados para esse caso, o que implica a ausência de
parâmetros de morte para crianças com menos de sete dias de “vida”
(TESSARO, 2008, p.108). Nesse caso, tem sido adotada a definição do
processo de “morte” pela parada cardíaca. “Considerando que os anencéfalos
só possuem a parte anterior do cérebro, que morre lentamente” depois do
parto, os outros órgãos podem danificar-se nesse período, quando o coração
começa a falhar, tornando os órgãos possivelmente inaptos para doação
(idem, ibidem). Note-se que os autores se referem aqui à preocupação com a
manutenção da vida dos órgãos.

Outra discussão relacionada à doação de órgãos do anencéfalo diz


respeito à opção de manter a gravidez até o fim para a extração dos órgãos.
Como havia comentado anteriormente, a viabilidade dos órgãos dos
anencéfalos para o transplante é discutível, pois o feto anencéfalo
“dificilmente apresenta órgãos adequados para doação”, em função da pouca
oxigenação dos tecidos, mas as chances, mesmo sendo poucas, existem (GIL,
2005, p.105). Com base na possibilidade de que os fetos sejam úteis para a
doação de órgãos, alguns profissionais defendem que a gestação seja levada
a termo. Tal perspectiva, num momento polêmico entre decisões, gerou
dificuldades quanto à aceitação da interrupção da gravidez ou da
descriminalização do aborto e deu margem a visões de que o feto continua
“vivo” nos bebês transplantados ou à espera de um possível milagre durante
a gestação. Além disso, criou-se a condição de produção de um ser com o
objetivo de extrair seus “materiais” para transplantes, comparando a
gravidez a uma linha de produção de medicamentos para tentar promover a
vida de alguns a partir da “morte” de outros (TESSARO, 2008; GIL, 2005).
Sob esse ângulo, podemos pensar na preservação da vida a partir da
utilidade da “morte” desse ser fadado a “nascer” para promover a vida de
outros pela possível utilização de seus órgãos120, o que remete à noção de

No filme Uma prova de amor (My Sister's Keeper, 2009), a vida de Sara e Brian Fitzgerald com o filho
120

pequeno e Kate, a filha de dois anos, é modificada para sempre quando eles descobrem que Kate tem
194
preservação da vida por práticas de promoção da vitalidade. Afinal, não
desperdiçar a vida também pode implicar reaproveitar, reutilizar e “reciclar”
células, tecidos, órgãos!

Contudo, a prática de transplante não tem apresentado resultados


relevantes quando envolve anencéfalos. Para Tessaro, a proposta de levar a
gestação a termo “para instrumentalizar a doação de órgãos” deveria ser
encarada com cautela pelos pais (TESSARO, 2008, p.108).

Isso nos leva a perceber o modo como os discursos científicos e


biológicos se articulam às políticas de saúde, forjando estratégias
biopolíticas para o governamento da vida/morte. Tais discursos ligam-se a
discursos da mulher como mãe, cuidadora, provedora, que alimenta,
amamenta e protege, configurando-se como um sujeito a quem se lança uma
expectativa e uma atenção aproximadas do divino ou da santidade, por
exemplo, pelo milagre da vida. Isso faz perceber que todo esse investimento
na responsabilização da mulher vem articulado tanto a discursos de

leucemia. A única esperança dos pais é conceber outro filho, especificamente para salvar a vida de
Kate. Nessa parte, entra Anna. Kate (Sofia Vassilieva) e Anna (Abigail Breslin) compartilham um laço
mais próximo do que a maioria das irmãs: embora Kate seja mais velha, ela recorre à irmã caçula para
continuar vivendo. Anna nasceu com o propósito de doar sangue, medula óssea e o que mais for
necessário para ajudar sua irmã, que tem uma agressiva forma de leucemia. Depois de muitos anos
com idas constantes a hospitais, a menina contrata um advogado para ter o direito de escolha sobre
seu corpo. Disponível em: <http://cinema.uol.com.br/filmes/uma-prova-de-amor-2009.jhtm>.
<http://www.cinepop.com.b-r/criticas/provadeam-or_101.htm>.
Outro filme de ficção que retrata a questão da criação do viver para fornecer materiais de “reposição”
biológica é A Ilha (The Island, 2004); no futuro, existe uma entidade utópica baseada na vida do século
XXI, que procura recriá-la nos mínimos detalhes. Lincoln Six Echo (Ewan McGregor) vive nessa
realidade e, como todos seus residentes, sonha em chegar num local chamado "a ilha", o único ponto
não contaminado do planeta. Após descobre que todos os habitantes são clones, que possuem a única
finalidade de fornecer partes de seu corpo para seres humanos “reais”, por isso, têm mais valor morto
do que vivo. Juntamente com outra habitante (Jordan), Lincoln faz uma fuga ousada para o mundo
exterior, que ele nunca conheceu. Agora sendo caçados pela instituição que antes os acolhia, Lincoln e
Jordan terão de lutar desesperadamente por suas vidas. Disponível em: <
http://www.adorocinema.com/filmes/fil-me-55792/>.
Por fim, o filme Não Me Abandone Jamais (Never Let Me Go, 2010) trata de uma ficção que fala da vida
de pessoas que estão sendo criadas apenas para doarem seus órgãos aos que ficam doentes. Nela a
solução encontrada pela medicina para aumentar a longevidade foi a troca de órgãos doentes pelos
que funcionam. Mostra a vida de três britânicos desde crianças num misterioso colégio interno
praticamente sem contato com o mundo exterior e com disciplina rígida. Eles têm que comer bem e se
exercitar muito para manter os corpos/órgãos saudáveis. Disponível em: <
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/818852-nao-me-abandone-jamais-narra-triangulo-amoroso-
em-contexto-soturno.shtml>.
195
“glamurização” da maternidade como atributo de feminilidade quanto de
“rendição” às normas e responsabilidades reprodutivas.

Uma questão não abordada nas reportagens desse período é a da


possibilidade de uma relação diversificada entre a condição socioeconômica
e as leis para o aborto em caso de anencefalia no Brasil. Em serviços de
saúde privados, há a tendência de que um mesmo médico acompanhe o pré-
natal de uma mulher, o que, muitas vezes, não ocorre em serviços públicos.
Essa ruptura no acompanhamento da trajetória reprodutiva faz retornar a
uma questão já mencionada, que é o fato de considerar a hipótese de que,
em alguns serviços privados de assistência pré-natal, seja possível
estabelecer entre equipe de saúde e mulheres a decisão por não condicionar
o procedimento médico à autorização judicial (DINIZ, 2009). Conforme Diniz,
a preocupação maior com a autorização judicial para o acesso à interrupção
da gestação acontece com as mulheres mais pobres e usuárias dos serviços
públicos de saúde, para quem a exigência da autorização judicial seria
condição para o acesso ao aborto, em razão da rigidez no controle da
legalidade nesses contextos (idem).

O fato de a gestação de feto com anencefalia acarretar riscos de


morte121 tem levado autores a considerar que, no caso de anencefalia, a
antecipação terapêutica do parto deve ser entendida como um procedimento
que visa a “resguardar e proteger a dignidade e a integridade física e mental
das mulheres” (ANIS, 2004, p.83). Afinal, algumas das mulheres grávidas de
fetos com essa anomalia122 “experimentam o luto antecipado por um filho

121Há inúmeras complicações numa “gestação cujo resultado é um feto sem nenhuma perspectiva de
sobrevida” (ANIS, 2004, p.27). Existem “pelo menos 50% de chance de polidrâmnio, ou seja, excesso
de líquido amniótico que causa maior distensão do útero, possibilidade de atonia no pós-parto,
hemorragia e, no esvaziamento do excesso do líquido, a possibilidade de descolamento prematuro da
placenta, que é um acidente obstétrico de relativa gravidade” (idem, ibidem). Além disso, por não
terem o polo cefálico, os fetos “podem iniciar a expulsão antes da dilatação completa do colo do
útero” e ter distócia de ombro, pois com frequência têm o ombro maior que a média, podendo haver
um acidente obstétrico, o que pode acarretar dificuldades muito grandes (ANIS, 2004, p.27).
Na seção 5.3, será discutida a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº. 54,
ela autoriza a interrupção da gravidez em caso de anencefalia e, portanto, altera essa situação das
mulheres pobres.
122Considera-se anomalia fetal a “irregularidade ou disfunção no desenvolvimento fetal quando
comparado ao da população geral” (ANIS, 2004, p.91). “Há vários tipos de anomalia fetal, sendo a
196
que sequer viverá”, o que submete a mulher a grande sofrimento em nome
da gestação de um feto inviável123 (idem, p.83).

Entretanto, alguns religiosos consideram o anencéfalo como uma


“vida” indefesa, inocente e frágil, promovendo a culpa da mulher que não
leva a gestação até o fim, por “cometer um dano irreparável” (ANIS, 2004,
p.72). Numa reportagem, foi mencionado que, mesmo que as estatísticas
mostrem que a interrupção da gravidez é a quarta causa de mortalidade
materna, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) não considera
as mortes decorrentes de abortos como problema de saúde pública e julga
tais levantamentos como superestimados:

As estatísticas oficiais mostram que o aborto é a quarta causa


de mortalidade materna no país. Apesar disso, para o
secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), dom Dimas Lara Barbosa, as mortes provocadas por
abortos feitos de forma clandestina não são um problema de
saúde pública e os dados oficiais são superestimados.
Em entrevista coletiva nesta quarta-feira para o lançamento da
Campanha da Fraternidade de 2008, ele afirmou que a CNBB
conferiu nos dados do próprio Ministério da Saúde que há
cerca de 120 mortes anuais causadas por abortos.
— Claro que nós vamos chorar por qualquer mulher que
morra por causa do aborto, mas isso não faz desse problema
um problema de saúde pública.
O Ministério da Saúde não divulga números oficiais sobre
mortes em decorrência de aborto, prática ilegal no país cuja
exceção são casos de estupro e risco de morte para a mãe. No
entanto, os dados referentes a mortes por gravidez, parto e
puerpério, item que inclui o aborto, mostram que houve 1.672
mortes por esses motivos em 2006124.

Ao questionarem-se as estimativas divulgadas e as mortes de mulheres


devido a práticas de aborto como um problema de saúde pública, parece
desconsiderar-se a relevância de um problema que envolve expressiva
mortalidade e que tem sido amplamente veiculado em reportagens que

grande maioria compatível com a vida extra-uterina” (idem, ibidem). “A anencefalia é uma situação-
limite de anomalia fetal, pois não é possível a sobrevivência do feto fora do útero” (idem, ibidem).
“Em mais da metade dos casos, os fetos com anencefalia morrem ainda no útero”; a outra metade
morre em poucas horas (ANIS, 2004, p.91).
123A definição de fetos inviáveis se refere a anomalias que sejam incompatíveis “com a vida extra-
uterina”, ocorrendo o falecimento logo após o parto (TESSARO, 2008, p.26).
Idem nota 99. Reportagem: CNBB diz que mortes decorrentes de abortos não são problema de saúde pública
124

(ZH, 06/02/2008). Ver página 67 do anexo 1.


197
abordam resultados de estudos feitos por especialistas. Consta no texto de
uma reportagem que os procedimentos de curetagem constituem a cirurgia
mais realizada no SUS, sendo a maioria decorrente de aborto provocado,
pois os espontâneos, em geral, não exigem internação125.
Em outra reportagem, referindo-se à concepção de vida, o Jornal do
Vaticano diz que vida não acaba com morte cerebral:

"Osservatore Romano", jornal do Vaticano, afirmou que os


atuais critérios científicos que definem o fim da vida estão
superados e isto pode criar problemas bioéticos na definição
dos casos de coma e anencefalias.
O artigo do jornal é assinado por Lucetta Scaraffia, membro do
comitê italiano de bioética e vice-presidente da associação
católica Ciência e Vida. Ela afirma que novas descobertas
estão questionando a definição do sistema nervoso usada
como justificativa científica do relatório de Harvard.
"Neurologistas, juristas e filósofos concordam em declarar que
a morte cerebral não é a morte do ser humano. Há risco de
confundir coma com morte cerebral. Novas pesquisas colocam
em dúvida o próprio fato de que a morte do cérebro possa
provocar a desintegração do corpo", diz o texto.
Fim da vida
Na avaliação do jornal, aceitar a morte cerebral como sendo o
fim da vida poderia colocar em discussão questões
importantes para os católicos como a definição dos casos de
coma e os de anencefalia.
"Se os teólogos católicos podem aceitar esta posição em caso
de morte cerebral, deveriam aceitá-la também no caso de
anencefalias", escreve o jornal.
De acordo com o "Osservatore Romano", o relatório Harvard
representou uma mudança radical na concepção da morte.
Resolveu o problema da interrupção da respiração artificial,
mas, sobretudo, tornou possíveis os transplantes de órgãos,
aceitos por quase todos os países avançados.
O artigo sugere que a definição de morte cerebral tenha sido
criada para favorecer os transplantes. "O problema dos
transplantes não se resolve com uma definição médico-
científica da morte", diz o jornal.
A Igreja Católica aceita que os órgãos para transplantes sejam
retirados de pacientes com morte cerebral detectada,
baseando-se na pressuposta certeza científica de que eles
estejam efetivamente mortos.
Segundo o texto, ao consentir os transplantes de órgãos, a
Igreja Católica aceita implicitamente esta definição de morte,

125Reportagem: Curetagem após aborto é a cirurgia mais realizada no SUS, revela estudo (Estadão,
14/07/2010). Estudo foi feito por pesquisadores do Instituto do Coração com base em dados do
Datasus de 1995 a 2007; especialistas avaliam que maioria dos procedimentos é decorrente de aborto
provocado, pois os espontâneos, em geral, não exigem internação. Ver página 78 do anexo 1.
198
mas com muitas reservas. "Na Cidade do Vaticano a
certificação de morte cerebral não é usada", escreve Lucetta
Scaraffia126.

Essa pluralidade de entendimentos sobre os limites da morte cerebral,


envolvendo noções sobre o coma e a anencefalia, torna a interpretação da
Igreja escorregadia, mas busca enfatizar que a vida não acaba com morte
cerebral; então, o anencéfalo enquadra-se nos parâmetros de vivo. Com isso,
pode-se compreender a lógica religiosa em opor-se ao aborto nesses casos. A
ênfase dessa contrariedade é relatada no trecho que segue:

Em meio à expectativa sobre o julgamento no STF (Supremo


Tribunal Federal [2008]) do processo que permite às mulheres
interromper a gravidez de fetos anencéfalos (sem cérebros), a
CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) se
manifestou nesta quinta-feira contrária ao aborto de fetos com
má-formação. O secretário-geral da entidade, dom Dimas Lara
Barbosa, disse que a Igreja Católica se posiciona de forma
"radical" contra o aborto de fetos anencéfalos na defesa da vida
humana.
"Para nós, independentemente do estado de saúde, a vida
humana sempre deve ser preservada. A Igreja se mostra
radical. A defesa da vida humana tem que ser garantida
apesar do que possa se desenvolver depois. Quem vai definir o
limite com que uma pessoa pode ou não nascer?", questionou
o bispo.
O presidente da CNBB, dom Geraldo Lyrio Rocha, disse que o
objetivo da Igreja Católica não é "impor à sociedade pluralista"
seus dogmas, mas lutar constantemente pela defesa da vida.
"Isso é inegociável. Mesmo curta, a vida humana deve ser
preservada", afirmou.
Dom Dimas disse que, se o STF autorizar o aborto de fetos
anencéfalos, vai abrir brechas para que a prática seja
legalizada no país. "Estamos diante de uma porta que, se for
aberta, ninguém garante o que vem pela frente. Só Deus é
autor da vida, só a ele cabe determinar o seu início e fim127."

Mesmo com a oposição de representantes religiosos ao “aborto” de


anencéfalos, o número de seguidores que têm se posicionado a favor dessa
prática tem aumentado, como abordado no trecho abaixo:

Reportagem: Jornal do Vaticano diz que vida não acaba com morte cerebral (Folha SP, 03/09/2008). Ver
126

página 80 do anexo 1.
127Reportagem: Igreja Católica tem postura "radical" contra aborto de anencéfalo, diz CNBB (Folha SP,
21/08/2008). Ver página 82 do anexo 1.
199
Uma pesquisa feita em todo o Brasil pelo Ibope mostra que
72% das mulheres católicas entrevistadas são a favor de que
grávidas de feto anencéfalo — sem cérebro e sem chance de
sobrevivência fora do útero — tenham o direito de optar entre
interromper a gestação ou mantê-la. O índice vai a 77% na
faixa dos 25 aos 29 anos.
O percentual é um pouco maior do que os 70% registrados há
quatro anos, quando o levantamento foi realizado pela
primeira vez.
Em setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) promoveu
uma série de audiências públicas com a participação de
médicos, especialistas e religiosos para discutir sobre o direito
de a mulher decidir pelo aborto ou não em caso de anencéfalo.
O levantamento do Ibope foi feito a pedido das organizações
não-governamentais Católicas pelo Direito de Decidir e Anis —
Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. Foram
entrevistadas 2.002 pessoas em 24 Estados, mais o Distrito
Federal, entre 11 e 15 de setembro.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas
países muçulmanos e parte da América Latina proíbem a
prática. Em 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores
em Saúde entrou com ação no STF pedindo que a antecipação
do parto para esses fetos fosse permitida.
O ministro Marco Aurélio Mello chegou a conceder liminar
permitindo a prática, mas ela foi suspensa pelos outros
ministros. A expectativa agora é de que o STF julgue o mérito
ainda neste ano [2008]128.

A reportagem informa que, desde o ano de 2004, vêm ocorrendo


manifestações e pedidos de permissão para que as mulheres tenham direito
de decidir pelo aborto em gestação de anencéfalo. Nesse trajeto, audiências
públicas com a participação de representantes institucionais das diferentes
áreas (religiosas, médicas, jurídicas, bioéticas, etc.) têm ocorrido para o
debate sobre a possibilidade de descriminalização do “aborto”. Ao que
parece, esses debates, ao trazerem as posições de diversas esferas do poder,
em tentativas de julgar a possibilidade da prática de interrupção da gravidez
e da constituição de uma nova norma, ampliaram o acesso das pessoas às
“verdades” que regem as determinações e as éticas na interpretação do
aborto e da vida/morte. Além disso, o acesso a essas discussões pode estar
relacionado ao aumento no número de pessoas que passaram a apoiar essa
prática.

Reportagem: Pesquisa Ibope diz que 72% das católicas são a favor de aborto de anencéfalo. Índice chega a
128

77% em entrevistadas na faixa dos 25 aos 29 anos (ZH, 27/10/2008). Ver página 83 do anexo 1.
200
Pode-se considerar que provavelmente essas mulheres não desejam
cometer “pecados” nem romper com suas crenças, mas antecipar ou
terminar um processo de morte. Como questão de saúde, essa situação
mostra que estamos, enquanto sociedade, lidando com o sofrimento e as
dores de mulheres e também de seus maridos, famílias e amigos.
Principalmente, trata-se da dor de mulheres que poderiam ser assistidas e
orientadas sobre as consequências da gestação nessas condições e
destituídas de julgamentos e estigmas, entre outras interferências, sobre a
sua “liberdade” de escolha no campo reprodutivo – seja na opção de manter
ou de interromper a gestação do anencéfalo (ANIS, 2004). Quanto à emissão
de julgamentos devido à interrupção da gravidez de anencéfalo, uma
reportagem apontou, conforme relato do pai, que, depois da antecipação do
parto, a família teria sido alvo de discriminação social:

A cesárea foi permitida pela Justiça local há cerca de uma


semana e meia. Segundo o hospital, o bebê, uma menina,
morreu minutos após o nascimento. A mãe deve receber alta
amanhã.
O pai da criança disse à Folha apenas que a família tem sido
alvo de discriminação por parte da sociedade. Na semana
passada, o contador Clóvis Alberto de Castro, 40, que não tem
ligação alguma com a família, entrou com um pedido de
habeas corpus na Justiça para impedir a interrupção da
gravidez sob a alegação de que a medida se constitui um crime
contra a vida – a ação não foi julgada129.

Além dos efeitos da discriminação, houve acusações por parte de


pessoas que até então não mantinham relação com a família e tentativa de
intervenção judicial para impedir a “liberdade” de escolha do casal para que
desistissem de interromper a gestação do anencéfalo. Essa circunstância, ao
apontar a possibilidade de envolvimento de “estranhos” nas decisões
“particulares” sobre a reprodução de um casal, mostra os jogos de “verdade”
em que a produção de um novo indivíduo pode estar inserida e submetida e
também o efeito das normas e convenções na constituição do viver.
Conforme publicado em outra reportagem, para o ministro da saúde, “proibir
a grávida de um feto anencéfalo de interromper a gravidez é um ‘controle

129 Reportagem: Parto de bebê sem cérebro é antecipado (Folha SP, 08/11/2006). Ver página 84 do anexo 1.
201
político’ do corpo da mulher”. Ele argumentou que “a decisão sobre
interromper ou não a gravidez seja da mãe e que o aborto nesses casos seja
legalizado”. Conforme sua fala:

[...] caso os homens engravidassem, esse assunto já teria sido


resolvido. Ele disse ainda que o SUS (Sistema Único de Saúde)
tem condições de fazer diagnósticos de anencéfalos com
absoluta segurança. De acordo com o ministro, basta para isso
fazer uma ecografia e que, no ano passado, foram feitos 2,5
milhões desses exames no SUS, enquanto foram
acompanhadas 2,1 milhões de mulheres grávidas.
"Existem equipamentos suficientes tanto no setor público
quanto no setor privado. Esse não é um obstáculo", disse130.

Diante do risco de morte e dos problemas conferidos à saúde da


mulher que gesta um feto com anencefalia, o diagnóstico pré-natal é
entendido como uma técnica de caráter terapêutico. Porém, diferentemente
da percepção do ministro de que os recursos disponíveis para o diagnóstico
são suficientes, a reportagem intitulada SUS terá exame genético em 2009
(Folha SP, 2008) trouxe a informação de que o governo pretendia investir
mais recursos, incluindo exames e aconselhamento genético, para realização
de diagnóstico, tratamento de defeitos congênitos e prevenção de novos
casos.

O governo diz que garantirá mais recursos para o diagnóstico e


tratamento de defeitos congênitos, além de aconselhamento da
equipe médica e dos pais para prevenção de novos casos. A
idéia é que haja um centro de aconselhamento genético para
cada grupo de 2 milhões de habitantes.
Mas, na prática, os R$ 3 milhões inicialmente previstos para a
política estão muito aquém das necessidades, segundo a
Sociedade Brasileira de Genética Médica (SBGM). O governo
diz que o valor poderá ser revisto. A estimativa da OMS
(Organização Mundial da Saúde) é que 5% das gestações
resultam no nascimento de uma criança com anomalias.
Nos últimos 25 anos, as doenças genéticas – como a
anencefalia – passaram da quinta para a segunda causa de
mortalidade infantil no país. A primeira são a prematuridade e
o baixo peso ao nascer.
Apesar da alta incidência, o atendimento genético no SUS
praticamente inexiste, segundo Salmo Raskin, presidente da
SBGM.

Reportagem: Ministro da Saúde defende legalização de aborto de anencéfalos (Folha SP, 04/09/2008). Ver
130

página 85 do anexo 1.
202
O geneticista diz que, exceto alguns serviços universitários
concentrados sobretudo nas regiões Sul e Sudeste, a oferta de
genética clínica praticamente inexiste na rede pública. "A
demanda é muito grande, mas está reprimida. Só vamos ter
noção do tamanho dela quando os serviços forem abertos."
Segundo Joselito Pedrosa, coordenador-geral de alta
complexidade do Ministério da Saúde, o eixo da política será o
aconselhamento genético, com atendimento das anomalias
congênitas, das deficiências mentais e dos erros inatos do
metabolismo131.
De acordo com o texto, a anencefalia representava, no ano de 2008, a
segunda causa de mortalidade infantil. Diante da alta incidência e da quase
inexistência do atendimento de genética clínica na rede pública, o governo
propôs um investimento em recursos para atender à elevada demanda,
porém tal previsão para a política mostrava-se muito aquém do que se
consideraria necessário atender. De acordo com a proposta, percebem-se a
produtividade e os efeitos de intervenção que uma técnica de caráter
terapêutico – o diagnóstico pré-natal por ecografia ou exame genético – pode
representar em termos da constatação da “verdade” sobre o feto e o risco de
definir sua rejeição. Assim, a anomalia ou, como o próprio termo sugere, a
anormalidade pode servir de pré-requisito e justificativa para a interrupção
da gravidez ou, ainda, para a prática do aborto de forma descriminalizada.
Segundo Teodoro (2008, p.46), as principais causas de pedido de autorização
judicial para a realização de aborto são:

[...] anomalias no sistema urinário, anomalias cardíacas


congênitas, anomalias cromossômicas, anomalias ósseas,
asplenia, bridas amnióticas, erros de fechamento da linha
média, erros de fechamento do tubo neural, englobando a
anencefalia, gemelaridade imperfeita, hidropsia fetal, más-
formações congênitas múltiplas, síndrome da rubéola
congênita etc.

O autor comenta que, pela constatação de processos judiciais sobre


autorização de aborto, a anencefalia é a modalidade mais frequente. Isso
mostra que, mesmo com as definições médico-científicas da “inviabilidade”

131 Reportagem: SUS terá exame genético em 2009 (Folha SP, 05/12/2008). Ver página 86 do anexo 1.
203
do feto, este não tem sido considerado como morto ou natimorto132 em
função da atividade do tubo neural. Entretanto, ainda que haja controle da
respiração, do batimento cardíaco e da pressão sanguínea, o feto “não pode
ver, nem ouvir e nem sentir, não pode sofrer nem ter emoções, não pode
querer nem pensar” (VALLS, 2004 apud TEODORO, 2008, p.216). Essa
interpretação tem levado autores a relacionar a discussão sobre anencefalia,
entre outras anomalias, à noção do aborto eugênico (TEODORO, 2008). Já
para outros, a utilização dessa definição em tal situação não parece
adequada, pois, ao considerar-se a incompatibilidade com a vida
extrauterina, desconsidera-se a relação com o melhoramento da espécie.
Além disso, na intensidade da vida e de sua criação, ao considerar-se que
todo ou qualquer indivíduo é levado a contribuir de alguma maneira com o
seu corpo e viver desenvolvendo determinadas funções ou papéis, de alguma
forma, esses também podem ter utilidade e, portanto, interessar à sociedade
– seja na pesquisa, no transplante de órgãos, na utilização de seus tecidos,
etc.

Contemporaneamente, na dimensão do conflito de interesses entre a


vida da mãe e a “vida” do feto, a prática de interrupção da gravidez ou
“aborto” pretende salvaguardar a saúde e a vida da mãe, e não a de um
modelo de descendência, levando mais uma vez às descontinuidades ou
contradições com a noção de eugenia133 (TESSARO, 2008). Sem
desconsiderar a relação do termo com o passado e suas “verdades”, mas
considerando os diferentes momentos e circunstâncias envolvendo política,
economia, técnicas e conhecimentos que têm nos constituído, penso no que
Foucault (2002b, p.22) disse em relação às inscrições:

[...] sobre o corpo se encontra o estigma dos acontecimentos


passados do mesmo modo que dele nascem os desejos, os
desfalecimentos e os erros; nele também eles se atam e de
repente se exprimem, mas nele também eles se desatam,

132“Feto que morre instantes após o parto ou no momento do parto” (ANIS, 2004, p.99). “O feto com
anencefalia é considerado natimorto cerebral” (idem, ibidem). A anomalia pode ser diagnosticada
através de um exame de ecografia, também chamado de ultrassonografia (idem).
133 Retornarei a essa questão no final do capítulo.
204
entram em luta, se apagam uns aos outros e continuam seu
insuperável conflito.

Para além da identificação de “resquícios” eugênicos nas configurações


atuais das práticas biomédicas, que têm buscado disponibilizar a redução de
riscos, proporcionando uma vida e gravidez mais seguras, o perigo que o
anencéfalo representa por colocar em risco a vida da mulher, em articulação
com a veiculação das taxas de incidência dessa malformação, constitui
“verdades” perturbadoras para as estratégias “pessoais” de medicalização
para a vitalidade. Assim, o papel do anencéfalo na sociedade regida pelo
biopoder seria o de acionar mecanismos de governo ou de proteção da
mulher ou de seu corpo biológico e de defesa da vida através da prevenção
do risco. Nessa perspectiva, as técnicas de prevenção desempenham o
exercício da detecção das possibilidades de incidência e manifestação do
risco em todos os que poderão ser efetivamente afetados.

Uma vez que a existência do feto durante a gestação coloca em risco a


vida/saúde da mulher, o aborto ou a cirurgia de antecipação do parto do
anencéfalo, seja qual for a denominação empregada para tal prática, pode
ser pensada como uma estratégia de promoção da vitalidade. Desse modo, a
suposta legitimação da “morte” do anencéfalo em nome da defesa da vida da
gestante pode atuar como uma estratégia terapêutica e preventiva.

Isso remete aos problemas relativos ao controle reprodutivo da mulher


e à sua “autonomia”, por interferências na possibilidade de “liberdade” e de
cuidado da mulher em relação à saúde de seu corpo e ao gerenciamento de
sua vida. Trata-se de valores muito incentivados na nossa sociedade por
campanhas de saúde e prescrições de variados campos, atuando em diversos
níveis como estratégias biopolíticas de controle e regulamentação das
práticas e condutas dos sujeitos relativas ao autocuidado e gerenciamento
da vida, sendo eles portadores de necessidades especiais e/ou síndromes ou
não. Se forem, na lógica do biopoder, podem ser incluídos, pois a ideia é
otimizar a produtividade e maximizar (não totalizar) a incorporação das
normas dos jogos do viver pelos indivíduos que compõem a sociedade.

205
5.2.2. Julgamentos e inquisições públicas: corpo e vida/mort e
sob as vozes do saber/poder

Como referido na seção anterior, a ação em prol da interrupção da


gestação ou descriminalização do aborto em caso de anencefalia é discutida
desde 2004. Tal período aponta a complexidade do tema, que suscitou uma
série de diálogos e opiniões.

No ano de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em


Saúde entrou com ação no Supremo Tribunal Federal (STF), pedindo
permissão para a antecipação do parto em caso de anencefalia. O ministro
Marco Aurélio de Mello concedeu liminar, permitindo tal prática de aborto se
comprovada a malformação por laudo médico. Porém, a liminar foi cassada,
e, desde então (2004), cada caso de solicitação para o aborto de anencéfalo
passou a ser julgado pela Justiça individualmente. É importante mencionar
que a sentença podia levar certo tempo, até meses.

Numa sequência de audiências públicas, ocorreram debates, dos quais


participaram representantes de entidades médico-científicas, de bioética,
religiosos e parlamentares, como deputados e ministros, por exemplo134.
Houve manifestações e mobilizações em favor e contra a descriminalização
do aborto em caso de anencefalia pela sociedade. A inviabilidade de a
comunidade médico-científica entrar num “consenso” para afirmar que os
fetos morrem após o nascimento colocou uma interrogação na “verdade” e
certeza científica; como resultado, alguns juízes aprovavam e outros
negavam a autorização para o aborto.

Porém, o que a busca pela regulamentação dessa prática pode


mostrar? A insegurança de agir fora da lei. A probabilidade de inúmeras
mulheres se tornarem criminosas e estarem sujeitas a penalidades
psicológicas, sociais, morais, civis, etc. O que fomos ensinados a buscar
diante de circunstâncias de risco, incertezas, impotência e medo?
Estratégias de prevenção e segurança, mas de qual se trataria? Da

Reportagem: Supremo ouve comunidade médico-científica sobre anencefalia (Folha SP, 28/08/2008). Ver
134

página 88 do anexo 1.
206
constituição de uma regulamentação na forma de lei? Por quê? Talvez uma
lei produza nos indivíduos e na sociedade uma sensação de segurança em
relação às suas escolhas e conceda a sensação de propriedade e “autonomia”
sobre o corpo. Isso seria bom para todos?

Para explorar algumas dessas questões, trago excertos da reportagem


intitulada Supremo julgará em 2010 interrupção da gravidez em caso de
anencefalia135 (SUPREMO, 2009). Nela consta que o Supremo Tribunal
Federal (STF) julgaria, em 2010, a ação movida pela Confederação Nacional
dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) que teve como relator o ministro Marco
Aurélio Mello. Em relação à ação movida para permitir a interrupção da
gravidez em caso de anencefalia, a reportagem diz que ela “contrapõe ciência
e religião, mas, sobretudo, joga luz na discussão sobre o direito da mulher
de interromper a gestação quando o diagnóstico revela anencefalia”
(SUPREMO, 2009). O ministro, explicando que a doação de órgãos é
autorizada a partir da morte cerebral, justificou que a antecipação
terapêutica do parto, em caso de anencefalia, não pode ser considerada
aborto e declarou que: “aborto é quando o feto tem possibilidade de vida”
(SUPREMO, 2009). “No caso da anencefalia, não há cérebro” (idem). “E, se
não há cérebro, não há vida” (idem). Sobre essa questão, a reportagem
apresenta as seguintes considerações:

A anencefalia é uma malformação fetal congênita e irreversível,


conhecida como "ausência de cérebro", que leva à morte da
criança poucas horas depois do parto. Em 65% dos casos,
segundo a CNTS, a morte do feto é registrada ainda no útero.
Com a ação, a CNTS quer que o Supremo declare que a
interrupção da gravidez em caso de anencefalia não pode ser
punida como se fosse aborto. O argumento é que a
permanência do feto anômalo no útero da mãe é
"potencialmente perigosa" em função do elevado índice de
mortes ainda durante a gestação, o que "empresta à gravidez
um caráter de risco".
"Assim, a antecipação do parto nessa hipótese constitui
indicação terapêutica médica: a única possível e eficaz para o
tratamento da paciente [a gestante], já que, para reverter a
inviabilidade do feto, não há solução. A antecipação do parto

135SUPREMO, 2009. Reportagem: Supremo julgará em 2010 interrupção da gravidez em caso de anencefalia
(Folha SP, 24/12/2009). Ver página 89 do anexo 1.
207
em caso de gravidez de feto anencéfalo não caracteriza aborto,
tal como tipificado no Código Penal", sustenta a ação
(SUPREMO, 2009).

Esses entendimentos sobre a anencefalia como uma malformação fetal


que causa riscos para a vida da mãe são aqui trazidos com a finalidade de
reafirmar e esclarecer a necessidade da antecipação do parto como um
tratamento terapêutico da gestante. Esta, a partir da constatação da
anomalia que determina a inviabilidade do feto, se torna uma “paciente” em
risco de morte.

Diferentes vozes, empoderadas pelo saber, fazem-se presentes.


Trazem-se para a discussão discursos de uma ginecologista e obstetra e de
um psiquiatra, entre outros aqui não mencionados, marcados por
posicionamentos sobre os sentimentos das mulheres e seus direitos, a defesa
do aborto ou o risco da gestação. Um excerto da reportagem diz:

Segundo a ginecologista e obstetra Elizabeth Kipman


Cerqueira, a interrupção da gravidez gera mais danos à
mulher do que sua continuidade, embora a dor da morte do
filho poucas horas depois do parto seja imensurável. A médica
reiterou que, além do risco do câncer que um aborto
provocado pode causar, há os problemas psicológicos. Para
ela, seguir com a gestação de um feto anencéfalo é mais
seguro para a mulher.
Já o psiquiatra Talvane de Moraes defende que a gestante
tenha o direito de escolha amparado em um diagnóstico 100%
preciso. "É possível comprovar a anencefalia. Obrigar a mulher
a ter o filho sabendo que o resultado será a morte é um
processo psíquico só comparado à tortura", disse (SUPREMO,
2009).

Essas falas, além de apontarem para a possibilidade de ocorrerem


problemas de ordem psíquica como outro risco da gestação do anencéfalo,
mostram um embate entre a possibilidade de manter ou não a gestação até o
fim. Para a médica, o risco maior está na prática do “aborto” do feto, pela
possibilidade de causar um câncer; o recomendado, segundo a médica, seria
levar a gestação até o fim e passar pelo processo de elaboração de luto como
fato inevitável e “natural”. Nas suas palavras: “uma coisa é a mãe sofrer a
dor inevitável, que é acompanhar a morte natural do filho” (SUPREMO,
2009). “Outra é saber que apressou sua morte” (idem).

208
Sobre o processo de luto por patologias fetais incompatíveis com a
vida, Carmo (2007) menciona que o luto do anencéfalo não tem sido
reconhecido socialmente em razão de a morte ocorrer no período de gestação
ou logo após o parto, tempo considerado como insuficiente para a mãe criar
vínculos afetivos com o feto, como se, “desta forma, sofresse menos”
(CARMO, 2007, p.63). Além disso, a falta do velório e a intolerância dos
amigos e familiares em falar da perda contribuem para o luto não ser
“validado socialmente” (idem, ibidem). O autor observou em sua pesquisa136
que o histórico da gestação se mostra implicado no desenvolvimento da
elaboração do luto, sendo atravessado pelas dificuldades dos profissionais de
saúde em lidar com tais circunstâncias. Segundo o autor, o período entre o
diagnóstico e a internação apresenta uma “lacuna” na assistência à
gestante, que experimenta a falta de orientação e de suporte emocional em
uma perda difícil de ser elaborada (CARMO, 2007).

Já o psiquiatra, no excerto mencionado acima, traz a noção da


segurança do diagnóstico, com a possibilidade de a gestante dispor do direito
de escolha; ele compara com a tortura a obrigação da mulher de gestar o feto
até o parto. O exame, ao determinar as “verdades” sobre o feto, mostra-se
implicado na orientação da escolha dos pais pela rejeição e morte de forma
legitimada ou pelo aceite da vida até o parto. Esses discursos de proteção e
de manutenção da vida da mãe, ao introduzirem estratégias de eliminação
do perigo que, no caso, constitui a vida do feto, tornam visíveis efeitos das
biopolíticas voltadas à promoção da vida pela promoção do morrer àqueles
que representarem determinado risco. Nesse sentido, como referido
anteriormente, o aborto do anencéfalo pode ser pensado como uma prática
preventiva e terapêutica em favor da vida. Afinal, sua existência coloca em
risco a vida da mulher, o que justifica a escolha do momento de sua “morte”.

Pode-se perceber que na mídia se fazem presentes circunstâncias que


demonstram a legitimação do fazer morrer em nome da defesa de

136Em sua pesquisa intitulada O processo de luto na interrupção de gestação por feto anencéfalo, Jorge
Ramalho do Carmo efetuou um estudo com base na entrevista de uma mulher de 39 anos, católica,
que se submeteu à interrupção da gestação de feto com anencefalia no Hospital Municipal de São
Paulo, SP. A entrevista aconteceu após um mês e dezessete dias da interrupção.
209
determinadas vidas, e isso remete às estratégias de promoção da saúde
como forma de manutenção do viver saudável. Entretanto, não basta
assegurar a vida, como abordado nos excertos da reportagem; devem ser
“garantidas” também a saúde mental e a “autonomia”. Trata-se do
gerenciamento da produtividade e da otimização do viver de um indivíduo
implicado na constituição da vitalidade de si e de outros. Em relação a essa
questão, aparecem autores comentando as implicações do sofrimento da
mulher em nome da gestação de um feto inviável e a possibilidade da
interrupção desse tipo de gestação como estratégia para resguardar a saúde
emocional não só da mulher, mas de toda a família, inclusive dos outros
filhos, caso existam (GIL, 2005; ANIS, 2004). Enfatiza-se que o
prolongamento da gestação, nesse caso, tem repercussões traumáticas. Para
Lima (2009, p.102), a gestação consiste num processo fisiológico de
modificação do organismo feminino que produz “inúmeras mudanças e
transformações necessárias para que a gravidez tenha êxito”, as quais
repercutem não só no corpo biológico, mas na vida da mulher, no seu papel
social e na sua estrutura familiar. Partindo dos princípios bioéticos, a autora
argumenta:

[...] respeitar o direito de escolha da mulher significa respeitar


sua autonomia de vontade e, consequentemente, sua
dignidade de pessoa humana. Impor a uma mulher, por meio
da força do Direito, a continuação de uma gestação, não mais
desejada, da qual se tem certeza, diagnosticada por meio do
exame pré-natal, tratar-se de anencéfalo, configura pleno
desrespeito aos seus direitos fundamentais (LIMA, 2009,
p.102).

Tais argumentos buscam respeitar a liberdade de “autonomia”


reprodutiva da mulher e de sua “capacidade de gerir e conduzir sua vida por
meio de suas escolhas e opções” (idem, ibidem). A autora diz que, na relação
médica, a mulher não deve ser tratada como objeto ou meio, mas como “um
fim em si mesmo”, e que legitimar qualquer conduta que lhe cause dor,
angústia e frustração é injustificável (Idem). Para a autora, a interrupção da
gestação de anencéfalo consiste numa prática que pode atuar no “bem-estar
físico e psíquico” (LIMA, 2009, p.103).

210
Contudo, diante dessas proposições e posicionamentos, não encontrei
reportagens em que fosse abordado o que as mulheres pensam sobre a
anencefalia ou se suas falas também poderiam ser consideradas relevantes
para a criação de regulamentações, mesmo através de um plebiscito. Porém,
no jornal Zero Hora, foram publicadas reportagens sobre a autorização de
uma juíza para o aborto de um anencéfalo na cidade de Rio Grande/RS. Na
fala da juíza, em nove anos de carreira, foi a decisão mais difícil que teve de
tomar. Em entrevista ao jornal ela relatou:

Zero Hora – O que pesou na decisão de autorizar a interrupção


da gestação?
Lourdes – É um caso complexo, delicado. Precisei me instruir
antes, por isso acionei o Ministério Público, que ouviu os
médicos que acompanhavam o caso. O parecer dos médicos
indicou a incompatibilidade deste feto em questão com a vida,
já que, além da má formação cerebral, o bebê possui outros
problemas. Segundo os médicos, sobreviveria por pouco
tempo. Foi a decisão mais difícil da minha carreira.
ZH – Por quê?
Lourdes – Por ser um caso que envolve diretamente vida e
morte. A decisão é irreversível. [...] Em nove anos de carreira,
jamais tinha passado por um caso deste.
ZH – A desistência da gestante surpreendeu a senhora?
Lourdes – É uma decisão dela. O judiciário cumpriu sua
função, e de forma ágil. Tratamos o caso com total urgência. O
alvará que autoriza o aborto segue valendo137.

A gestante, em outra entrevista, alegando a demora na autorização


para realizar o aborto, disse que acabou mudando de ideia. Ela disse ter se
apegado ao filho, refletido melhor e considerado os riscos em realizar o
aborto na 19ª semana de gestação (quase cinco meses), visto que foi
orientada por seu ginecologista a cumprir o procedimento até a 20ª semana
de gravidez. A gestante comentou que, quando fez o pedido, tinha 15
semanas de gestação138:

Zero Hora – Por que a desistência de interromper a gravidez


após a autorização da Justiça?

137MAZUI, 2010a. Reportagem: “Foi a decisão mais difícil da minha carreira”, diz juíza que autorizou aborto
de anencéfalo (ZH, 25/06/2010). Ver página 90 do anexo 1.
138Reportagem: Gaúcha grávida de anencéfalo desiste de abortar (ZH, 19/06/2010). Ver página 91 do
anexo 1.
211
Daniele – Com a demora, refleti melhor. O médico disse que,
na maioria dos casos, o corpo faz o aborto. Se não aconteceu,
é porque este bebê deve nascer. Ele me orientou a interromper
a gravidez, no máximo, até a 20ª semana. Acho arriscado
interromper a gravidez agora.
ZH – Você sabe que bebês anencéfalos duram horas, dias ou,
no máximo, semanas?
Daniele – Sei. Meu médico me alertou. Pesquisei e vi um caso
de um bebê que sobreviveu por um ano e oito meses. Agora me
sinto mãe. Decidi entregar na mão de Deus.
ZH – Como foi receber a notícia de que o feto era anencéfalo?
Daniele – De repente, a tua gravidez é em vão. Quis
interromper a gestação e busquei meus direitos. Com a
demora, me apeguei ao filho que espero139.

Lendo-se na mídia impressa tais discussões e os posicionamentos de


especialistas que buscam atuar no governo das condutas dos indivíduos, é
possível perceber que cada sujeito produz seu entendimento/ética permeado
por suas experiências. Nesse sentido, o texto, como uma prática, forma sua
opinião e o posiciona. Isso me faz falar novamente da importância do pensar
sobre a atuação das “verdades” no viver/morrer. Esse viver individual é
marcado por buscas de governo do coletivo, como se fôssemos apenas mais
um projeto institucional – político, médico, pedagógico, científico, teológico...
Trata-se de um jogo de “verdades” em que se tem a necessidade de debates
sobre a constituição da “autonomia” em relação ao viver/morrer.

Autonomia, nesse sentido, significa um dos objetivos e instrumentos


dos governos ou das mentalidades e estratégias de condução de conduta,
técnicas para a produção de sujeitos com “as capacidades ‘pessoais’ e
aspirações necessárias para suportar o peso político que repousa sobre eles”
(ROSE, 2011b, p.216). Incentivado a tornar-se o que quiser, o indivíduo deve
tornar-se “um empresário dele mesmo, procurando maximizar seus próprios
poderes, sua própria felicidade, sua própria qualidade de vida”, num
constante aprimoramento de sua “autonomia”, o que traduz suas “próprias”
escolhas em instrumentos a serviço do seu estilo de vida (ROSE, 2011b,
220). Assim, é permitido analisar as maneiras pelas quais a subjetividade
vem se tornando objeto, alvo e curso essenciais de certas estratégias e

139MAZUI, 2010b. Reportagem: “Agora eu me sinto mãe”, diz gestante que desistiu de abortar bebê
anencéfalo (ZH, 21/06/2010). Ver página 92 do anexo 1.
212
procedimentos de governo (idem). Haja vista que, como consumidores, nos
constituímos como “atores que buscam maximizar suas ‘qualidades de vida’,
moldando um ‘estilo de vida’ através de atos de escolha em um mundo de
mercadorias” onde a saúde é possibilitada, portanto, “através de uma
combinação entre o mercado, especialistas e uma autonomia regulada”
(ROSE, 2011b, 226).

213
5.3. Da promoção da vitalidade e gerenciamento do capital
humano: definições de saúde, vida, morte e aborto

Como referido na seção anterior, ao longo do período de 2004 até


2012, além dos debates e das audiências, foram publicadas ou expostas
publicamente situações de aprovação ou não do aborto em caso de
anencefalia, trazendo-se, por exemplo, detalhes das circunstâncias e
entrevistas com os envolvidos. Tais veiculações num extenso período
denotam certa “necessidade” desse tempo no “preparo” e processo de
constituição e aceitação de noções sobre o morrer que se deram nos embates
envolvendo jogos de “verdades” e percepções dos diversos campos do
saber/poder. A configuração desse quadro, construído pela articulação de
várias instâncias sociais, deu sustentação a uma “nova” possibilidade de
ação medicalizante para assegurar a saúde e a vida dos corpos das mulheres
expostas ao risco da gravidez de um anencéfalo. Com a suscetibilidade do
corpo biológico materno, as mulheres passam a ser compreendidas como
pacientes, doentes ou enfermas. Ao assumirem tais papéis, as mulheres
passaram para um “estado” de saúde que implica relações de fragilidade,
debilidade e uma série de sofrimentos, o que institui a valorização do
enfermo (STIKER, 2008). Os enfermos fazem parte de agrupamentos
humanos impotentes, vitimados, dependentes de assistência e educáveis
para reivindicações de “autonomia” e “dignidade” (idem).

Essa concepção de gravidez como condição de risco faz perceber a


mudança de relação, pois, se antes as mulheres eram marginalizadas por
praticar aborto porque é ilegal, agora, como doentes, podem exercer sua
“autonomia”, pois ascenderam à condição de “pacientes” em risco de morte.
Os danos biológicos passam a ser definidos como prioridade em termos de
(bio)política pública, ameaçando o viver de muitas mulheres.

Visto a deformidade ou anomalia do feto, fazendo-se com que as


grávidas tenham acesso ao “aborto” de forma legal, seria possível normalizar
a prática contra a causa de possíveis manifestações de tais “enfermidades”?

214
No início do mês de abril de 2012, prazo excedente ao período
destinado à análise deste estudo, foi divulgada insistentemente e com grande
repercussão nas mídias a resolução do Supremo Tribunal Federal sobre a
aprovação dos ministros, por oito votos a dois, da permissão para as
gestantes de anencéfalos interromperem a gravidez em caso de
anencefalia140. Os textos que divulgaram essa medida traziam
esclarecimentos sobre o aborto e sobre os motivos para romper-se a relação,
mesmo que indireta, com essa prática ou com a ideia de descriminalização,
uma vez que esses termos141 deturpam a noção terapêutica, desvinculada da
morte, apresentada na argumentação “consensual” de que o feto não é vivo.
Se não há vida, não é possível pensar-se em morte, portanto, a prática não
se configura nem como aborto, nem como crime.

O julgamento durou dois dias, e a maioria dos ministros da Corte


entendeu que a antecipação do parto de feto com anencefalia não é crime e
que as mulheres, ao optarem pela interrupção da gravidez, não estarão
sujeitas às penalizações por praticar aborto ilegal. Para a maioria dos
ministros, trata-se de um natimorto; portanto, a interrupção da gravidez não
é considerada aborto, que, pelo Código Penal, não deixou de ser um crime142.

Assim, no dia 12 de abril de 2012, foi publicada na página de notícias


do STF a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº.
54, de que as gestantes de anencéfalos têm direito de interromper gravidez:

Por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal


(STF) julgou procedente o pedido contido na Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, ajuizada
na Corte pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Saúde (CNTS), para declarar a inconstitucionalidade de
interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto

140 As matérias sobre os votos dos ministros do STF na ADPF 54 constam no anexo 2. Ver página 120.
141De acordo com Rose (2001, p.37), os vocabulários e as técnicas, assim como as noções de
normalidade, são criados a partir de preocupações com “tipos de conduta, pensamento e expressão
considerados problemáticos ou perigosos”.
142Reportagem: Decisão do Supremo sobre anencéfalos reaquece discussão sobre aborto no país (ZH,
13/04/2012).
Reportagem: Diário Oficial publica critérios do Conselho Federal de Medicina para aborto de feto anencéfalo
(ZH, 14/05/2012). Ver página 93 do anexo 1.
215
anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128,
incisos I e II, todos do Código Penal. Ficaram vencidos os
ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso, que julgaram
a ADPF improcedente143.

Os artigos referidos ditam:

Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que


outrem lho provoque:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Art. 126. Provocar aborto com o consentimento da gestante.
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de
consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu
representante legal.

Se, em alguns momentos dos debates, havia discursos destoantes. De


um lado, apontavam-se a angústia e incerteza da mulher grávida por saber
que seu filho não sobreviveria e poderia “nascer” morto e, ainda, trazer
riscos à sua vida; de outro, salientava-se o dever de cumprimento da lei,
sobretudo porque a vida é protegida pela legislação constitucional como bem
maior a ser preservado. As possibilidades de admitir-se a morte do feto
aparecem, como já referido, restritas aos casos de risco de morte ou estupro.
Porém, ao levar em conta a preservação da vida da mulher tendo em vista o
risco de morte pela gestação do feto anencéfalo, a constituição colocava-se
em contradição, por considerar até então o feto como um organismo vivo.

Assim, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS)


requereu que fosse dada interpretação conforme a Constituição aos artigos
124, 126 e 128 do Código Penal, para explicitar que a noção de aborto não
está vinculada aos casos de antecipação terapêutica do parto devido à
anencefalia.

O convencimento da Corte Constitucional de que a “morte” ou, ainda,


a não-preservação do feto no corpo da mãe tinha finalidade terapêutica, em
razão do sofrimento psicológico e de estatísticas, já mencionadas – por

143 Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=204878>.


216
exemplo, 100% dos casos de anencefalia levam ao óbito do feto; 50%, ao
óbito da mãe; trata-se de um problema de saúde pública, com mais de 1.000
registros por ano –, leva à solução ou “dever” apresentado pelo exercício de
estratégias preventivas para promoção e tutela da vida.

O conhecimento da condição de risco constitui-se como uma


tecnologia social que, ao estabelecer modos de relacionar-se consigo mesmo,
com a família e a sociedade, atua na produção de subjetividades (CASTIEL,
2007). Tal estratégia de prevenção, baseada na racionalidade de saúde
pública, consiste numa forma de controle (político, econômico e moral), a
qual, pela intervenção de exames, busca diagnosticar, tratar e vigiar os
indivíduos predispostos, de modo a reduzir os riscos de acontecimentos
indesejáveis, como o adoecimento e, principalmente, a morte da mulher
(idem).

Portanto, a ADPF é uma ação sobre a legalização da prática


terapêutica destinada a viabilizar a realização de direitos básicos e de
preceitos fundamentais contemplados pelo texto constitucional, que até
então não poderiam ser exercidos ou usufruídos, descumprindo-se, assim, a
própria Constituição relativa à tutela da vida (LEAL, 2008). Diante de
situações que envolvem e põem em jogo conceitos jurídicos que são levados a
cabo pela mais alta Corte do país, destinada a resolver controvérsias
diretamente ligadas à Constituição e, portanto, intimamente associadas aos
valores e princípios jurídicos e sociais da vida em comum de uma
coletividade, torna-se necessário aprender a lidar com a complexidade que
caracteriza as relações sociais na atualidade (LEAL, 2008). Tais relações
apontam elementos que levam a pensar na judicialização da saúde, da vida e
da medicina.

Frente à “autonomia” adquirida para decidir sobre o futuro do que


acontece com seu próprio corpo em relação à gestação do feto anencéfalo,
com aceitação médica e legal para tal posicionamento, a decisão de
interromper a gestação contribui com o quê? Pode tornar a experiência
menos dolorosa?

217
Tal resolução (ADPF 54) contribui para acionar a desculpabilização, a
segurança e o resguardo social de agir, conforme determina a lei, em prol da
saúde e vida da mulher/paciente exposta ao risco de tal gestação. Também
contribui para a redução de investimentos com despesas após o parto, como
medicamentos, alimentação e leitos para promover ou manter a saúde da
mulher e, se for o caso, a sobrevida de seu filho.

Além disso, contribui para reacender debates que envolvem a questão


da decisão sobre a possibilidade de morte, podendo interferir na legislação
de temas controversos, como eutanásia e ortotanásia144. Em relação a esses
temas, a ideia de preservação da vida tem abarcado complexas percepções,
por vezes condenáveis. A proposta de resolução do CFM que permite a
escolha do paciente, depois de décadas de discussão, chega para maximizar
a “liberdade” de escolha, mas não resolve todos os problemas de decisões de
fim de vida, como as fronteiras entre a eutanásia e a ortotanásia, o que
inclui o alívio da dor e sintomas e a precipitação da morte, por exemplo.
Avançamos num caminho que segue para a “autonomia”, para a assunção
soberana da própria vida, a “nossa própria vida biológica entrou no domínio
da decisão e da escolha” (ROSE, 2007, p.40). Como proprietários dos corpos
e vida, podemos decidir entre práticas de promoção ou não do viver pela
administração ou não de doses letais de sedativos ou procedimentos que
prolonguem ou antecipem o processo de morte, por exemplo.

O CFM aprovou, no dia 30 de agosto de 2012, a Resolução


1.995/2012145, referente ao documento denominado diretiva antecipada de
vontade, também chamado de testamento vital; o direito estabelece critérios

144 Várias reportagens registraram reivindicações pela “autonomia” na gestão da vida/morte.


Reportagem: Poder de escolha: Médicos deverão seguir o desejo de pacientes em situação terminal – Resolução
do Conselho Federal de Medicina prevê declaração antecipada sobre intervenções (ZH, 30/08/2012).
Reportagem: Tendência mundial é acatar desejos expressos do paciente (Folha SP, 31/08/2012).
Reportagem: "Morro como eu quiser" – Aposentada com doença intestinal declarou que prefere morrer a passar
por cirurgia; casos como esse se multiplicam pelo Brasil (Folha SP, 01/09/2012).
Reportagem: Registro de opção de tratamento cresce em SP (Folha SP, 01/09/2012).
Ver página 96 do anexo 1.
145 CFM RESOLUÇÃO Nº- 1.995, DE 9 DE AGOSTO DE 2012. Ver página 129 do anexo 2.
218
para o uso de tratamentos considerados invasivos ou dolorosos, permitindo
que as pessoas definam limites terapêuticos na manutenção da vida. É um
registro do desejo do paciente em documento que permite que a equipe
médica cumpra essa orientação146 – enquanto não entrar em vigor o novo
Código Penal.

Ao atribuírem-se significados às probabilidades e estimativas de risco


a mulher grávida, tais significados integram e norteiam a condução do viver,
em constante avaliação e gerenciamento “responsável” de si para a
administração “autônoma” dos riscos. Responsabilização, autonomia ou
liberdade de escolha na gestão de si diante da informação do risco são
estratégias que sugerem moralmente práticas preventivas para promoção e
manutenção da vida e saúde do próprio corpo – numa otimização da
vitalidade pelo governo da subjetividade através de “verdades” sobre o risco.
Considerando que tais práticas se dão no plano de escolhas pontuais e
individuais constituídas num governo a distância da “autonomia”,
poderíamos estar constituindo percepções e escolhas vinculadas à eugenia?
Pretendo explorar essa questão no fim do capítulo.

No panorama de gestão dos corpos, os debates contemporâneos de


redefinição de vida/morte e as biopolíticas de medicalização da vida dos
indivíduos apontam articulações entre os modos de existência e a economia,
o mercado e a saúde, por exemplo. Ou seja, múltiplas relações de poder dão-
se no plano do conhecimento, da política, da técnica e da ética, onde a
conduta dos indivíduos é moldada – pelos outros e por si mesmo (ROSE,
1998). Para mostrar essa tensão entre o excesso ou a exuberância de
vida/vitalidade, as suas “formas” e a “autonomia” sobre o viver, trago a
reportagem intitulada Após decisão do STF, governo federal garante apoio a

146Testamento vital permitirá às pessoas definirem limites terapêuticos na manutenção da vida – Para presidente
da Comissão de Cuidados Paliativos da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, resolução do CFM é
pioneira e garante autonomia ao paciente (CFM, 31/08/2012). Ver página 131 do anexo 2.
219
aborto de fetos anencéfalos147 (ZH, 2012), em que foi abordada a votação de
cada ministro:

PLACAR
- 8 a 2 a favor da interrupção
OS VOTOS
- A favor: Marco Aurélio Mello (relator), Rosa Weber, Joaquim
Barbosa, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Carlos Ayres Britto, Gilmar
Mendes e Celso de Mello.
- Contra: Ricardo Lewandowski e Cesar Peluso.
- Não vota o ministro Dias Toffoli, que se declarou impedido.
Peluso: "matança de anencéfalos"
O presidente da Corte foi o último a votar. Como previsto nos
bastidores do STF, Peluso entende que o aborto de anencéfalo
é crime, assim como a interpretação do ministro Ricardo
Lewandowski, dada ontem, na primeira parte do julgamento.
Para o Peluso, permitir a interrupção da gestação neste caso "é
dar autorização judicial para se cometer um delito".
— O feto anencéfalo tem vida e, ainda que breve, sua vida é
constitucionalmente protegida. O anencéfalo morre. E só pode
morrer porque está vivo. Não é possível pensar-se em morte de
algo que não está vivo.
Ao defender seu voto, ele falou em "matança de anencéfalos".
— ação de eliminação intencional da vida intrauterina de
anencéfalos corresponde ao tipo penal do aborto, não havendo
malabarismo hermenêutico ou ginástica dialética capaz de me
convencer do contrário.
Mello: "não é aborto"
Penúltimo a votar — falta apenas a posição de Peluso —, Celso
de Mello defendeu que a interrupção de gestação em caso de
fetos anencéfalos não pode ser considerada aborto. Ele
argumentou que a anencefalia traz "índices altíssimos" de
morte materna.
— O crime de aborto pressupõe gravidez em curso e que o feto
esteja vivo. A morte de feto vivo tem que ser resultado direto e
imediato de manobras abortivas. A interrupção de gravidez é
atípica e não pode ser taxada de aborto, criminoso ou não.
No entanto, ao longo de toda sua manifestação, de quase duas
horas, mostrou-se cauteloso e advertiu que a decisão do STF é
específica.
— Não estamos autorizando práticas abortivas. Não estamos,
com esse julgamento, legitimando a prática do aborto. Essa é
outra questão que, eventualmente, poderá ser submetida a
esta Corte.
Britto: "dar à luz é dar à vida".
Ao entender que a interrupção de uma gravidez de anencéfalo
é legal, Britto defendeu o direito da mulher.
— É um direito que tem a mulher de interromper uma gravidez
que trai até mesmo a ideia-força que exprime a locução dar à

147A votação de cada ministro consta na reportagem: Após decisão do STF, governo federal garante apoio a
aborto de fetos anencéfalos (ZH, 13/04/2012). Ver página 105 do anexo 1.
220
luz. Dar à luz é dar à vida, e não dar à morte. É como se fosse
uma gravidez que impedisse o rio de ser corrente —
argumentou.
Assim como Marco Aurélio Mello, Britto argumentou que
obrigar a mulher a manter uma gravidez em caso de
anencefalia é tortura.
— A mulher já sabe que o produto de sua gravidez está longe
de pelo parto cair nos braços aconchegantes da vida. Vai se
precipitar no mais terrível dos colapsos, o colapso da vida
humana. É um organismo prometido à inscrição do seu nome
não no registro civil, mas numa lápide mortuária.
Mendes: saúde psíquica da mulher
O ministro Gilmar Mendes argumentou que o caso de aborto
anencéfalo se assemelha à interrupção da gestação em caso de
estupro, autorizado pela lei, "porque visa proteger a saúde
psíquica da mulher.
— Não parece tolerável que se imponha à mulher esse
tamanho ônus à falta de um modelo institucional adequado de
proteção.
Declarações dos ministros que votaram na quarta
Marco Aurélio Mello: "O anencéfalo jamais se tornará uma
pessoa. Não se cuida de vida em potencial, mas de morte
segura"
Rosa Weber: "Não há interesse em tutelar vida que não se
desenvolverá socialmente. Proteger a mulher é proteger a
liberdade de escolha"
Ricardo Lewandowski: "Não é lícito ao maior órgão judicante
do país envergar as vestes de legislador criando normas legais.
Não é dado aos integrantes do Judiciário promover inovações
no ordenamento normativo"
Luiz Fux: "Se o diagnóstico (da anencefalia) fosse possível,
teria, sem dúvida alguma, o legislador previsto a antecipação
terapêutica do parto ou, afastando o eufemismo, o aborto".

Nesses discursos, vê-se a ênfase na distinção entre a prática de aborto


e a cirurgia de interrupção da gravidez, fundamentando e reafirmando a
postura favorável como uma estratégia de rompimento e exclusão com as
noções de crime contra a vida. A legalidade da prática, que atua como
mecanismo de defesa contra qualquer relação que se possa estabelecer com
práticas ilícitas ou condenáveis, pode significar mudanças nos modos de
governar a própria vida.

Outra questão abordada refere-se ao esclarecimento de que tal prática


remeta menos ainda à ideia de aborto eugênico porque age para proteger a
vida, como sugere a reportagem Diário Oficial publica critérios do Conselho
Federal de Medicina para aborto de feto anencéfalo (ZH, 2012):

221
Na exposição de motivos, o Conselho Federal de Medicina
ressalta as distinções que devem ser feitas entre interrupção
da gravidez, aborto e aborto eugênico (visando ao suposto
melhoramento da raça).
“Apesar de alguns autores utilizarem expressões 'aborto
eugênico ou eugenésico’ ou 'antecipação eugênica da gestação',
afasto-as, considerando o indiscutível viés ideológico e político
impregnado na palavra eugenia”, diz o texto, reproduzindo
palavras do relator do processo no STF, ministro Marco
Aurélio Mello148.

Além da preocupação com tais diferenciações, um dia após a


aprovação da interrupção da gravidez, a reportagem intitulada Liberar aborto
de feto sem cérebro é descartar ser humano, diz CNBB (Folha SP, 2012)
publicou o pronunciamento da igreja:

A presidência da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do


Brasil) divulgou nota, nesta sexta-feira, em que "lamenta
profundamente" a decisão tomada na quinta pelo STF
(Supremo Tribunal Federal), liberando o aborto de fetos
anencéfalos.
"Legalizar o aborto de fetos com anencefalia, erroneamente
diagnosticados como mortos cerebrais, é descartar um ser
humano frágil e indefeso. A ética que proíbe a eliminação de
um ser humano inocente não aceita exceções", diz a nota.
Para a entidade, o Supremo legislou no lugar do Congresso
Nacional.
Na nota, a CNBB ainda se defendeu de críticas ao dizer que
defende seu ponto de vista também com argumentos jurídicos
e científicos. "Exclui-se, portanto, qualquer argumentação que
afirme tratar-se de ingerência da religião no Estado laico149".

Ao lamentar a liberação do aborto de fetos anencéfalos, juntamente


aos dois votos contra a constitucionalidade da prática, tomando as
informações divulgadas nas reportagens, a igreja parece ter sido uma das
poucas instituições a manter um posicionamento e discurso contrário ao
entendimento de que o anencéfalo não é um morto cerebral responsável por
danos ao corpo da mulher, mas um feto que vive e que tem direito a viver.
Além disso, ao mencionar o “descarte” de um ser humano frágil e indefeso,

148Idem nota 142. Reportagem: Diário Oficial publica critérios do Conselho Federal de Medicina para aborto
de feto anencéfalo (ZH, 14/05/2012). Ver página 93 do anexo 1.
149Reportagem: Liberar aborto de feto sem cérebro é descartar ser humano, diz CNBB (Folha SP,
13/04/2012). Ver página 108 do anexo 1.
222
remeteu à noção proposta por Bauman (2005) de que toda produção gera
resíduos, rejeitos ou refugos que precisam ser descartados ou “reciclados”.

Outra questão, em que não me deterei, mas que considero importante


trazer porque se fez bastante presente nas reportagens, é a dos fetos ou
bebês encontrados mortos em latas de lixo e em rios, por exemplo, em razão
do aborto ou do abandono, e também a da comercialização de bebês pela
própria mãe. Isso faz pensar na constituição de noções e valores em relação
ao corpo, à vida/morte de si e do feto, que aparentemente é tratado, em
alguns casos, como uma “coisa” ou objeto a ser descartado. O elevado
número de reportagens pode dar uma ideia da frequência com que ocorrem
tais situações e de sua relação com a quantidade de fetos ou bebês
encontrados mortos150.

Enfim, fechando esse parêntese perturbador sobre outras formas de


aborto e infanticídio, percebe-se que, aliado à noção de produção de vida,
preservação e proteção, o viver aparece em perspectiva, isto é, como
possibilidade ou não de sucessão de modos de vida e de características
corporais pró-saúde/vitalidade entre gerações de cidadãos “projetados” na
arena de intervenções de governo sobre a vida e sobre os corpos. Assim, a
partir da ampla ideia de produção dos corpos para a vitalidade, pode-se
observar, na constituição de subjetividades, moldes de “autonomias”,
decisões e éticas, a composição de projetos e estratégias de múltiplas ordens
a capacitarem a inspeção, o monitoramento e a avaliação de nós mesmos de

150 Reportagem: Catador encontra corpo de bebê em lixeira de Porto Alegre (ZH, 04/11/2007).
Reportagem: Feto é encontrado em rua de Porto Alegre (ZH, 18/10/2007).
Reportagem: Feto é encontrado no lixo em Três de Maio (ZH, 26/02/2008).
Reportagem: Feto é encontrado no aterro de lixo em SC (ZH, 26/02/2008).
Reportagem: Jovem aborta e joga feto no lixo na Serra de SC (ZH, 13/04/2008).
Reportagem: Bebê jogado no lixo em SC corre risco de morte (ZH, 06/03/2008).
Reportagem: Jovem coloca o filho no lixo em SC (ZH, 06/03/2008). Garota deu a luz em banheiro de
hospital.
Reportagem: Bebê é encontrado morto dentro de lixeira em Viamão (ZH, 21/04/2008). Corpo foi envolvido
em plástico e colocado dentro de um saco de ração de cachorro.
Reportagem: Bebê é achado morto dentro de saco plástico em frente a hospital (Folha SP, 26/01/2009).
Ver página 109 do anexo 1.
223
acordo com critérios que nos são fornecidos pelas “verdades” de outros –
operando, assim, para o governo da subjetividade. Conforme Rose (1998,
p.42), a qualidade de conhecedor, de perito, de quem é especialista ou expert
da subjetividade

[...] tem-se tornado fundamental para nossas formas


contemporâneas de sermos governados e de governarmos a
nós próprios. Mas não porque os experts conspiram com o
estado para iludir, controlar e condicionar os sujeitos. A
política democrática liberal coloca limites às intervenções
coercivas diretas sobre as vidas individuais através do poder
do estado; o governo da subjetividade exige, pois, que as
autoridades ajam sobre as escolhas, os desejos e a conduta
dos indivíduos de uma forma indireta.

Essa ação à distância é obtida por estratégias educativas e persuasivas


inerentes “às suas verdades, das ansiedades estimuladas por suas normas e
das atrações exercidas pelas imagens da vida do eu que ela nos oferece”
(ROSE, 1998, p.42). Numa “aliança entre objetivos e ambições pessoais e
objetivos ou atividades institucionalmente ou socialmente valorizadas”,
somos subjetivados a compor uma parceria na responsabilização pelo
governo da vida (ROSE, 1998, p.43). Desse modo, na luta pela satisfação,
excelência e realização, atuamos como empreendedores, pois, na lógica do
empreendedorismo, se unem a política e os programas regulatórios às
capacidades de “autodireção” das pessoas, forjando uma “ligação entre as
formas pelas quais somos governados pelos outros e as formas pelas quais
deveríamos nos governar” (ROSE, 2011b, p.215). Nesses termos, empreender
implica diversas “regras para a conduta da existência diária de uma pessoa:
energia, iniciativa, ambição, cálculo e responsabilidade” e designa uma
forma ética de governo de si (idem, ibidem). As escolhas tornam-se, então,
centrais para toda a arena política, na qual o neoliberalismo tem constituído
uma poderosa contribuição para a reorganização das problemáticas de
governo (ROSE, 2011b). Nele, questionam-se, nos moldes da “ética particular
da soberania individual, a legitimidade e a capacidade das autoridades com
relação ao conhecimento e à administração da vida das pessoas em nome do
seu bem-estar” (ROSE, 2011b, p.228).

224
Nessa relação de “coprodução” ou produção em conjunto, por assim
dizer, como devedores compelidos a reparar os resultados de seus “erros” ou
de falhas nos empreendimentos de si, a medida apresentada para driblar os
problemas da anencefalia foi a de antecipação do parto, visto que se entende
que, para o anencéfalo, não há possibilidade de medicalização. Porém, se
houver um período de sobrevida, ocorrerá preocupação com a perspectiva de
que ele possa viver uma vida marcada por dor e reduzida a um curto período
pela “doença”. Como não sobreviverá por muito tempo após o parto, ele não
ameaça a prosperidade da espécie, desconectando-se, assim, de noções
eugênicas. Porém, ao ameaçar a vida da mulher, ele denuncia as imperícias
cometidas no desempenho da gestão de si – seja pelo planejamento da nova
vida, seja por práticas de exames ou ações preventivas, como a ingestão do
ácido fólico e a não exposição a contaminações ambientas151.

Outra questão que aparece diante da angústia gerada por saber da


exposição aos riscos diz respeito à promoção de atitudes medicalizantes e
práticas cirúrgicas preventivas “radicais”, como, por exemplo, as
mastectomias para evitar o câncer de mama. Extirpar partes do corpo como
medida preventiva para eliminação do risco leva a pensar que os
diagnósticos dos exames, incluindo os genéticos, consistem em um dentre
tantos outros elementos que participam da construção de subjetividades
responsáveis na gestão privada de riscos à saúde, ou seja, na administração
da probabilidade de algo que ainda não ocorreu, mas que pode acontecer
diante das evidências de risco constatadas pelos diagnósticos de um modo
geral (CASTIEL, 2007).

151Reportagem: 30 anos após boom de anencéfalos, Cubatão (SP) registra poucos casos (Folha SP,
01/09/2008).
Há 30 anos, Cubatão (58 km de SP) ficou conhecida como a cidade dos "bebês sem cérebro". Era tida também
como uma das cidades mais poluídas do país. A relação foi quase imediata: especialistas apontaram as emissões
das indústrias como o principal fator para o boom de casos de anencefalia. Ver página 114 do anexo 1.
Relativo à gestão da saúde, a Resolução 344/02 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
determina a adição de ferro e ácido fólico à farinha de trigo e a alguns tipos de farinha de milho. A
adição de nutrientes aos alimentos constitui uma estratégia preventiva para a redução de casos de
anemia e de malformação do tubo neural de fetos como a anencefalia, por exemplo. Disponivel em: <
http://www.anvisa.gov.br/legis/resol/2002/344_02rdc.htm>.
225
Enfim, considerando-se o anencéfalo como o resultado possível dos
“erros” de conduta da mulher, pode-se relacionar o anencéfalo a um desvio
do ideal de vida, não pelas preocupações com a composição da população,
mas porque remete às causas de sua deformação. Estas estão relacionadas à
gestão de várias escolhas anteriores, tanto no plano biológico quanto no
comportamental, incluindo: planejamento, cuidado, prevenção, as
circunstâncias de vida e os estilos de vida adotados pela mulher/mãe. Numa
combinação de obrigações e culpa no gerenciamento dos riscos, sendo
moralmente responsabilizada, agora, com o apoio da lei, essa mulher/mãe
passa a ser absolvida.

Assim, através de uma prática terapêutica reparadora dos


desconfortos gerados pelos julgamentos normativos e da remodelagem da
fala, da emoção e da percepção sobre o viver/morrer, a interrupção da
gravidez é ajustada por meio de propostas de governo dos experts para
superação dos desvios de conduta apontados pelo aborto – que tornavam os
envolvidos criminosos (ROSE, 1998).

No período de análise, após anos de debates e manifestações públicas,


ocorreram aprovações para as pesquisas com células-tronco embrionárias,
para a prática da ortotanásia e da interrupção da gravidez em caso de
anencefalia. Diante dessas novas possibilidades, pode-se perceber a
constituição de uma nova concepção de vida – ligada ao “bem-estar” e ao
viver por mais tempo, desde que seja de forma saudável, ou seja, a vida deve
valer a pena, não deve causar prejuízos, deve ser boa, longa, sem problemas,
dores e sofrimentos.

Compreender que vivemos numa sociedade onde os sujeitos devem ser


ativos e individualistas, ao invés de passivos e dependentes; o governo do
viver acontece “por meio da liberdade e das aspirações dos sujeitos, e não
apesar destes” (ROSE, 2011b, p.216); e, na busca da promoção da
vitalidade, se evita falar sobre a morte ou sobre temas que remetam à
finitude, torna possível lembrar que as estratégias do biopoder, ou seja, o
conjunto de ações sobre si e de uns sobre outros, têm sua focalização na

226
vida desde o século XIX e que esse processo tem atenuado o sentido da
morte (DREYFUS e RABINOW, 1995).

Além das tentativas de escamotear a morte e da atenuação de seus


sentidos de fim de vida, vemo-nos diante da “hipervisibilidade” das
estratégias para a vitalidade. Assim, por um lado, a relação com a morte tem
sido ofuscada, como se o excesso de visibilidade de vida criasse a ilusão
óptica de que a morte se tornou invisível – como se a morte não fizesse parte
da vida, tornando a vida “infinita” (BAUMAN, 2005). Porém, por outro lado,
novas noções sobre o viver estão tomando forma e incorporando a
possibilidade da produção da vida. Isso pode dar uma ideia do valor que tem
sido atribuído à saúde e à vida na contemporaneidade.

Problematizar o modo como a biopolítica tem operado leva a pensar


nas intervenções no viver/morrer. A vida deixou de limitar-se às normas
vitais de um corpo “natural”, submetendo-se ao controle biológico, que não
aceita imposições de limites da “própria” biologia, mas se curva ao domínio
biológico das ambições e vaidades humanas. Nesse contexto, a “biologia”
tornou-se uma possibilidade de controle, intervenção e gerenciamento dos
processos vitais do corpo e da mente, e não apenas da cura de doenças
(ROSE, 2011a). A avaliação e administração dos riscos para obtenção da
vitalidade podem levar à promoção da saúde e ao gerenciamento das
doenças por meio de cirurgias estéticas, conformação de estilos de vida
(comportamentos e escolhas), de reprodução e até mesmo da morte.

As significações para a morte na contemporaneidade têm se


constituído em meio a valores ditados por discursos de estilos de vida que se
valem de “verdades”, as quais dizem que práticas e modos de vida devem ser
evitados ou mantidos pelos sujeitos (LUPTON, 2000). Nessa relação moral, os
indivíduos passam a ser tidos como exemplos de vida ou como
inconvenientes e inoportunos. Vejo, a partir das alarmantes reportagens
falando de mortes causadas por aborto, ou mesmo por ortotanásia e
eutanásia, possibilidades que me levam a pensar nas razões e/ou “verdades”
que podem estar relacionadas à constituição de uma ética voltada ao aceite
do morrer ou à opção por não viver. Questiono, ainda: por que não aceitar a
227
“vontade” de morte que se mostra amparada pela lei, medicina e algumas
religiões se, ao aceitarmos as escolhas perante a vida, estamos incluindo o
aceite do morrer?

Dessas relações com as “verdades”, parece-me que estamos passando


a admitir e a aceitar a morte em virtude do sofrimento causado tanto pela
limitação do conhecimento biotecnológico e biomédico quanto pelo corpo
biológico de um indivíduo – feto ou adulto – sem chances de cura ou
melhora. Nessas circunstâncias, os sentimentos e a dor produzem a
impotência para cuidar, evitar o sofrimento e as sequelas, a ponto de
“desejar” ou optar por conceder a “liberdade” para que o indivíduo/paciente
assuma a propriedade de seu corpo e faça a escolha por interromper ou não
o viver.

Isso leva a perceber, ainda, que essa noção de acatar os desejos do


paciente em viver/morrer do modo como “quiser” se projeta numa tendência
muito ampliada, eu diria, quase globalizada. As biopolíticas de prevenção,
cuidado e promoção de estilos de vida, ao instituírem a noção de
“autonomia” e de responsabilidade, conferem um novo panorama ao morrer,
que não é mais aquele de evitar esse momento e lutar pela vida até o fim,
mas o de respeitar a forma de vida que o indivíduo julgar cabível para si e
para o seu filho/embrião ou feto, em caso de anencefalia. No sistema
biopolítico que promove a vida, fazer morrer parece estar deixando de ter
uma conotação somente negativa, associada aos “males” atribuídos às
biopolíticas de aborto e eutanásia, para expressar o cuidado com a vida e o
exercício da “autonomia” daquele que se vê em circunstâncias de ausência
de vitalidade para manter o viver.

Se saúde é “sinônimo” de vida e a vida tem constituído uma lucrativa


“moeda” nas negociações do mercado econômico, a ausência de saúde ou as
condições orgânicas como síndromes e malformações parecem dizer
“exatamente” o contrário. Além disso, relacionada à vida e à saúde, está a
noção de felicidade. Portanto, se vivemos numa sociedade regida por
“verdades” sobre felicidade ligadas ao consumo de saúde, juventude e beleza

228
para a vitalidade, o que a infelicidade, a falta de consumo e a oneração pela
insuficiência biológica podem nos dizer?

Morrer talvez seja o resultado ético de nossas “próprias” escolhas.


Talvez uma nova ética social esteja se formando perante as possibilidades de
vida/morte e, além disso, lastreando projetos de lei que incluam a
“liberdade” de escolha conforme a ética individual sobre o viver/morrer. Se
somos considerados e nos consideramos como gestores de nossos corpos,
como engenheiros responsáveis por projetos humanos, então, não parece ter
sentido sermos destituídos da capacidade de exercer o poder soberano de
vida/morte sobre nossa “própria” propriedade bioeconômica – ou a
existência do corpo.

Os caminhos do governo da “autonomia” em direção à vitalidade que


passam pelo fazer morrer levam a resultados que, difundidos na mídia –
como a interrupção da gravidez ou descriminalização do “aborto” em caso de
anencefalia e da ortotanásia para o doente terminal –, têm produzido, dentre
outras coisas, um questionamento: como podemos aceitar a morte se
buscamos, por escolha “própria”, promover a vida? Parece-me que é
justamente aí que o aceite para a morte se encontra, ou seja, se nos
propusermos a buscar promover a vida e nada mais que possa distanciar-se
dessa concepção, quem não apresentar chances de alcançar ou, ao menos,
de tentar alcançar a vitalidade estará livre. “Livre”, assim como todas as
pessoas, para exercer sua “autonomia” em optar por determinadas práticas,
segundo a constituição de sua ética, mas também para ser responsabilizado
moralmente. Porque, no sistema do biopoder, somos todos produzidos como
“autônomos” na gestão de si, ou seja, sujeitos constituídos pelas “verdades”
de trabalho/governo sobre si e sobre o outro e, por isso, responsáveis pelo
que vier a acontecer de “bom” ou de “mal” aos corpos, o que inclui o
viver/morrer.

Sobre a ideia de responsabilização dos indivíduos pelo sentimento de


orgulho, culpa ou fracasso em relação aos seus corpos, Lupton (2000, p.44)
refere que não somente as construções de

229
[...] sujeito ideal nos discursos de saúde pública e da
promoção da saúde precisam ser problematizadas por suas
limitações, por seus julgamentos morais e pela sua tendência
de apoiar e reproduzir as desigualdades sociais. É preciso
também pôr em questão o foco muitas vezes míope da filosofia
dos cuidados de si ao qual tais construções se ajustam.

230
5.3.1. Das minhas hesitações e ensaios: quais as rel ações entre
o governo contemporâneo dos corpos e da vida e as noções
eugênicas?
Vidal Junior (2010), com base em Rose, menciona que a emergência de
novos saberes acerca da compreensão do que somos indica algumas
mudanças nos regimes de poder que novos “vetores” sociais colocam em
movimento. A ideia de melhorar a saúde das pessoas, preservar a vida,
prevenir doenças, estabelecer limites entre o vivo e o não vivo, pode
confundir as fronteiras entre a medicina preventiva e as noções de eugenia e
degeneração – “centrais às biopolíticas do século XIX” (ROSE, 2007, p.18).

População, qualidade, território, nação, raça – esses foram os termos


agregados ao discurso da eugenia que lhe deram o específico e, finalmente,
mortífero caráter (ROSE, 2007). Muitos comentaristas contemporâneos
sugerem que este termo, eugenia, esteja relacionado ao “desejo de controlar
a composição biológica da população e sustentar políticas biológicas, hoje”
(idem, p.55, tradução minha).

Ao falar sobre as biopolíticas no século XXI, o autor explica que a


eugenia, em muitas avaliações contemporâneas da biomedicina, tem sido
evocada tanto para distinguir o presente do passado quanto para ligar o
presente ao passado. Nas tentativas de ligar o presente ao passado, sugere-
se que, embora com suas diferenças, a biomedicina contemporânea, em
combinação com a genética, atua no julgamento de “valor da vida humana
na medida em que intervém sobre as chances da vida, a fim de eliminar as
diferenças codificadas como defeitos” (ROSE, 2007, p.55, tradução minha). O
autor propõe que, se quisermos ser claros sobre a especificidade do presente,
além da retórica, é importante ser mais preciso sobre a natureza da eugenia
e seu contexto como uma estratégia biopolítica (idem).

Penso ser importante trazer alguns apontamentos sobre as


considerações feitas por Rose (2007) no livro The politics of life itself sobre a
eugenia152. A leitura foi bastante difícil, e precisei de "lapsos" de tempo para

152 O acréscimo ou decréscimo é de minha tradução e interpretação.


231
afastar-me e digerir o que vinha lendo. Durante esse tempo de
desestabilização das pretensas explicações teóricas que eu vinha
construindo sobre um novo movimento eugênico, aos poucos, comecei a
compreender de quais “verdades” Rose falava, para imergir na fluidez das
formas de governo. Talvez esse movimento tenha a ver com o ensaiar-se, pois
o ensaio pressupõe mudanças constantes de perspectivas. Arrisquei
conhecê-las. Vamos a elas!

Em seus estudos, o autor refere que, na contemporaneidade, a norma


de saúde individual substituiu a de qualidade da população e que esta
deixou de ser pensada em termos de grandes categorias sociais para ser
aplicada no plano molecular – central para o pensamento biológico e,
portanto, às práticas e políticas de biomedicina. Para ele, essa
molecularização não consiste apenas numa questão de construção de
explicações em um nível molecular e moral, mas atua na reorganização do
“olhar das ciências da vida: suas instituições, procedimentos, instrumentos,
espaços de operação e formas de capitalização” (ROSE, 2007, p.44, tradução
minha).

Além disso, conforme destaca o autor, “as racionalidades políticas do


nosso presente não são mais inspiradas pelo sonho de tomar conta da vida
de cada um em nome do destino de todos”, pois o ideal de um Estado em
formar, coordenar e gerir os negócios de todos os setores da sociedade caiu
em descrédito (idem, p.62, tradução minha). No panorama atual, a ideia de
"sociedade" foi modificada; sociedade já não é vista como um único domínio
com uma cultura nacional, uma população, um destino, com um território
nacional coextensivo, mas como um conjunto de "culturas" e de políticas
identitárias – comunidades (idem).

Para Rose, nessa nova configuração, o significado político de saúde e


doença mudou. Hoje, as justificativas para o interesse político na saúde da
população já não se fundamentam nos “termos das consequências de
inaptidão da população como um todo orgânico para a luta entre nações”
(ROSE, 2007, p.63, tradução minha). Entretanto, ajustam-se nos

232
[...] termos econômicos, nos custos da saúde, em termos de
dias de trabalho perdidos ou contribuições do seguro, ou em
termos morais, no imperativo de reduzir as desigualdades em
saúde. Embora comparações internacionais sejam, sem
dúvida, ainda significativas, a sua função política
contemporânea não é mais aquela de marcar o potencial de
vulnerabilidade de um sistema político em rivalidade
geopolítica, mas de servir como índices públicos, na medida
em que as nações instituem políticas de sucesso para a gestão
da saúde (ROSE, 2007, p.63, tradução minha).

Vinculados à promoção da saúde, os indicadores não mensuram a


aptidão de uma população, mas funcionam como indicações do estado de
saúde das pessoas. Quanto à resolução de questões de saúde da população,
já não é mais esperado que o Estado as resolva – as intervenções na
vitalidade dos indivíduos são operadas por eles mesmos (idem). Nesse
domínio, como em muitos outros, as imagens do Estado agora são de
habilitação, de facilitação, de animador, de acessibilidade, de superação, etc.
(idem). Embora o Estado tenha mantido a responsabilidade de fixar
condições gerais de saúde, como a regulação da venda de alimentos e o
saneamento, ele busca libertar-se de algumas das responsabilidades, como,
por exemplo, pelas consequências da doença e de acidentes (idem). Temos
assistido, assim, a uma

[...] intensificação e generalização das estratégias de promoção


da saúde desenvolvidas no século XX, juntamente com o
surgimento de uma indústria privada de seguro de saúde,
aumentando as obrigações que os indivíduos e as famílias têm
para monitorar e gerenciar sua saúde. Cada cidadão deve
agora tornar-se um parceiro ativo na unidade, aceitando sua
responsabilidade para garantir o seu próprio bem-estar.
Organizações e comunidades também tomaram um papel ativo
na garantia da saúde e do bem-estar de seus funcionários e
membros (ROSE, 2007, p.63, tradução minha).

Articulando a ideia de promoção da saúde, Rose (2007), assim como


Lupton (2000), refere que desenvolvemos uma "vontade de saúde", ou seja, a
saúde passou a ser pensada como uma meta a ser atingida. Essa vontade ou
desejo de ser/estar saudável constitui-se em meio a práticas e processos de
governo e faz parte das (bio)políticas (SANTOS, 2002). Além disso, ela tem se
tornado cada vez mais capitalizada por empresas, que vão desde as
farmacêuticas até as varejistas de alimentos, e por toda uma gama de
233
organizações, campanhas e grupos de autoajuda que têm atuado no espaço
dos desejos, angústias e decepções relativas à vontade de saúde e à
experiência de sua ausência (ROSE, 2007).

Dentro dessa complexa rede de forças e imagens, as


aspirações relacionadas com a saúde e conduta dos indivíduos
são governadas "à distância", moldando os caminhos que eles
entendem que decretam sua própria liberdade (idem, p.64,
tradução minha).

Nessa perspectiva, a biopolítica, hoje, deixou de operar apenas no


plano da população, qualidade, território e nação, para operar no nível
individual, em que a qualidade da aptidão evolutiva foi substituída pela
qualidade da vida. O território político da sociedade deu lugar aos espaços
domésticos da família e da comunidade, e a responsabilidade agora recai
sobre aqueles que governam a família, seus membros e a si próprios (idem).
Nessa política que temos chamado de neoliberalismo, além dos novos custos
da biomedicina, pode ser encontrada a multiplicidade de escolhas que esta
nos possibilita. Isso não a torna menos problemática, nem menos envolvida
com as relações de poder e de sentenças de valor diferencial para diferentes
formas de vida, natureza do sofrimento e nossas obrigações individuais e
coletivas para o futuro (idem). Entretanto, conforme Rose, a biopolítica
contemporânea merece ser analisada em seus próprios termos de governo,
porque o termo eugenia não dá conta, nem tampouco “é para se tornar para
todos os fins, devemos mantê-lo para as estratégias biopolíticas que
partilhavam de seu sentido original” (ROSE, 2007, p.73, tradução minha).

Isso tudo faz pensar na descrição de políticas pelo uso de termos como
eugenia voluntária153, eugenia utópica154, eugenia responsável155, eugenia
liberal e nova eugenia, por exemplo. Trata-se de diferentes nomes atribuídos
a práticas/estratégias políticas de promoção da vitalidade ligadas ao governo
da “autonomia” reprodutiva, que se constrói a partir da subjetivação do
indivíduo numa rede de discursos produzidos por instâncias variadas e

153 Termo sugerido por: NELKIN, Dorothy.


154 Termo sugerido por: KITCHER, Philip.
155 Termo sugerido por: FLECK, Leonard M.
234
contingentes ao desenvolvimento do conhecimento, à constituição de
“verdades” e de moralismos, ao saber, à economia, ao mercado, ao momento
histórico e circunstâncias sociais, etc.

Considerando que a possibilidade de o indivíduo optar sem


interferência de “verdades” não existe e que risco expressa estratégias de
governo nas tensões em determinadas circunstâncias, o que poderia haver
por “trás” da noção de risco? A ideia de haver uma “verdade” obscura não me
parece pertinente, nem me fascina, mas parto dela para pensar na
constituição de novos valores, noções e “verdades” no coletivo, os quais
passam a orientar e, talvez, determinar as escolhas individuais. Tais
escolhas poderiam ser consideradas como “inescapáveis” e configurar
práticas eugênicas? Porém, a ideia do inescapável também não me instiga,
porque, para assumi-la, teria que negar a possibilidade de práticas de
resistência numa política neoliberal de governo.

Para Lupton (2000), a noção de resistência compreende os modos


como os indivíduos não se submetem, não se conformam às exigências da
governamentalidade, nem as consentem, o que inclui, portanto, modos de
contestação ou de recusa ao “conjunto de máximas estabelecidas para a vida
cotidiana” (idem, p.18). A autora diz também que, em relação aos cuidados
de si, “as técnicas de governamentalidade não são simplesmente impostas
sobre os indivíduos e que, portanto, a resistência e a mudança podem ser
geradas e mantidas” (idem, ibidem). Em relação à resistência, Revel (2005),
com base em Foucault, menciona que, “sem possibilidades de resistência,
não haveria efeitos de poder, mas simplesmente problemas de obediência”
(idem, p.76). Contudo, mesmo em termos de obediência, esta deve ser
considerada como produto de uma escolha ética que se dá diante dos
“discursos que competem na construção do sujeito [os quais] são muito
diversos e contraditórios para garantir um alinhamento aos imperativos da
saúde” e vida (LUPTON, 2000, p.19). Isso não permite caracterizar os
governos como uniformes, pois não se exercem da mesma maneira sobre
todos os indivíduos; daí a necessidade de atuação contínua através de
diferentes instâncias e aparatos (SANTOS, 2002). Além disso, tal como as

235
prescrições, os riscos são indicações de possibilidades de acontecimentos
futuros, portanto, não garantem o efeito prometido ou esperado. Como refere
Lupton (2000), indivíduos que fumaram cigarro por quase toda a vida podem
não morrer de câncer. Em contrapartida, os que se guiam pelas prescrições,
como a de nunca fumar para prevenir os diversos tipos de câncer, podem
morrer deles.

A relatividade apontada por Lupton, tanto nas respostas do biológico


quanto na “liberdade” de recusar as prescrições, torna perceptíveis as
descontinuidades do governo. Por isso, talvez, o caminho que identifica as
práticas de governo atuais como “inescapáveis” e irrecusáveis não seja o
correto. Mais ainda, talvez não seja esse o caminho que consiga ligar nossas
formas de governo com a noção de eugenia. Temos que pensar um tanto
mais! Vamos lá?

Compreender que a produção de responsabilização individual


associada à de “autonomia” na gestão da própria saúde e da saúde do filho
atua no governo dos corpos de diferentes maneiras e em diversas instâncias,
participando, assim, como formas de governamento, possibilita pensar: de
que modo tais governos operam e o que produzem?

Na tentativa de examinar as relações entre a vida social e os usos que


podem ser feitos da ciência na contemporaneidade, essa é a produtiva
questão a ser pensada para o presente, ou seria a de que não deixamos de
praticar, mesmo que de outras maneiras, políticas supostamente eugênicas,
configurando um cenário de novo eugenismo? Ainda, considerando que há
muito se têm disponíveis os potenciais para exercer em diversos níveis
práticas consideradas eugênicas, por que focar os holofotes nas novas
possibilidades biomédicas e biotecnológicas, dando-lhes o status de “vilãs”
que habitam os procedimentos de governo atuais?

Essas questões levam a pensar também nos motivos para recorrer a


um termo carregado de significados totalitários e autoritários, como se
estivéssemos procurando identificar semelhanças e desejando desvelar os
“traços” de polêmicos e temíveis efeitos bons ou ruins, dependendo do
observador e do objeto (de valor, discriminação, racismo... de um regime de
236
políticas estatais altamente opressivas), na inserção de práticas relativas ao
saber da ciência em nossas escolhas (ATLAN, 2009).

Numa cultura de individualismo, diante do aumento das opções, das


escolhas e da “autonomia” na gestão do viver e também da possibilidade de
recusa ou resistência, estaríamos tentados a cair na tendência de
explicações reducionistas, vitimadoras e deterministas para as intervenções
biológicas de melhoramento da saúde/vida e manutenção do viver? Será que
essa busca por associações ou pelo reconhecimento de continuidades não
estaria relacionada a estratégias de consolidação ou de promoção da
persistência de pensamentos eugênicos? Investimentos em associações de
pensamentos eugênicos com a fluidez dos conceitos e com as práticas
preventivas deveriam ser reforçados ou dissolvidos?

Outra hipótese seria a de que talvez essa evocação do termo possa


expressar uma tendência em buscar estabelecer limitações ao uso de
recursos biotecnológicos relativos à promoção dos “desejos” de governo da
saúde/vida do próprio corpo e/ou do filho (ATLAN, 2009). Assim, ranços,
resquícios ou traços, no presente, do que se compreende por eugenia podem
possibilitar perceber o percurso do desenvolvimento do conhecimento
biológico e biomédico engajado às estratégias de governos em diferentes
momentos. Ainda, poderiam estar dando visibilidade à configuração de um
novo modelo de eugenia? Talvez fosse válido considerar que utilizar uma
nomenclatura de amplas compreensões, que teve diversas aplicações em
vários momentos e países, pode tornar-se ambíguo, vago ou generalista, pois
pode ser empregado para múltiplas circunstâncias. Basta pensar em
algumas entre todas as possibilidades preventivas e de segurança de que
dispomos e que utilizamos.

Frente à responsabilidade do gerenciamento de medidas de contenção


da ocorrência (ou possibilidade) de problemas de saúde e vida para manejar
ou intervir no futuro, passou-se a depender da possibilidade de
planejamento de ações preventivas e terapêuticas que modifiquem o
“destino” biológico, o que se torna possível pela identificação dos riscos.

237
Assim, ao conhecer os riscos, administramos o futuro da melhor maneira
que pudermos, porque nos tornamos responsáveis pelo que nos acontece.

Compreender que a busca por conduzir a conduta dos indivíduos


através de estratégias biopolíticas incorpora o governo da “autonomia” no
plano da “plasticidade” subjetiva individual pode possibilitar o
estabelecimento de relações entre noções eugênicas e questões de valor para
a vida do anencéfalo. Entretanto, será que um diagnóstico, como o de
anencefalia, torna o feto um indivíduo de menos valor se comparado a
outros? Ou, a partir dos riscos identificados nas testagens, por considerar-se
o valor que ele tem, assim como os outros, são causadas preocupações com
o modo de vida que está sendo criado/gerado em relação às possibilidades e
à responsabilidade de melhorá-la? Será que os pais, em suas ponderações de
cuidado e prevenção, articuladas às oportunidades, circunstâncias
econômicas e às “verdades” e valores coletivos sobre o nascimento ou não do
anencéfalo, conseguem refletir também sobre os custos que o curto período
de sobrevida desses bebês podem gerar à saúde pública no caso de optarem
por deixar “viver”? Considerando que a ideia de perpetuação do gene não
pode relacionar-se ao anencéfalo, em que medida a relatividade da
constituição de práticas responsáveis de gerenciamento do viver, ou seja, a
constituição de formas éticas de governo de si, poderia ser identificada com
ações eugênicas?

Outra hipótese é a de articulação da possibilidade de fabricação,


alterações e usos do embrião com práticas eugênicas. Porém, considera-se
que nem tudo que é necessário para o desenvolvimento do embrião está no
DNA do genoma, pois hoje sabemos que o “genoma desempenha o papel de
memória relativamente estática, mais do que de programação dinâmica” e
que os fatores epigenéticos156 contribuem de maneira determinante para o
desenvolvimento embrionário (ATLAN, 2009, p.18; CASTIEL, 1999). Num
cenário em que a escolha se torna um destino, uma vez que são

156Tomando a definição de Castiel (1999, p.247), o conceito de epigênese empregado refere-se à


“distinção entre o que é definido a partir de informação exclusivamente contida no genoma e o que é
determinado a partir de uma possível interação genes ambiente”.
238
apresentadas possibilidades de domínio de técnicas de diagnóstico pré-
implantação e de intervenção no embrião/filho para evitar que genes para
malformações e doenças graves se expressem, a negação de tais práticas
poderia estabelecer uma relação de recusa em favor do “destino” biológico e
da preservação da noção de “essência” da vida humana contida no DNA. A
malformação expressaria um “desejo” ou uma limitação do desejo dos pais,
invocando o reducionismo em prol da não-modificação biológica ou
“natureza” do embrião? Os genes decidem destinos ou o destino é resultado
da interação entre genética, estilo de vida (exposição às condições do corpo –
desnutrição, anemia...) e ambientes (das células e também externos, com
poluição do ar, da água, lixo tóxico...)?

Cardoso e Castiel (2003, p.660), com base em Haraway (1997),


comentam que tanto a genética quanto a biologia molecular são práticas
culturais complexas, são processos de “produção e não invenção metafísica e
suas realidades são ao mesmo tempo semióticas, institucionais,
maquinárias, orgânicas e bioquímicas”. Ao questionar se o gene seria o
oráculo do novo milênio, comentam:

Em caso de resposta afirmativa, cabe sublinhar que mapear


todos os nossos genes e conhecê-los não é sinônimo de
domínio de “contingências” tais como mutações de baixa
penetrância, polimorfismos, doenças multifatoriais, ligações
perigosas entre genes próximos e etc., só para ficarmos no
domínio do orgânico. Um exemplo claro e bastante em voga é o
do câncer de mama. Sabe-se que o número de casos de câncer
de mama causados por polimorfismos genéticos ou por
mutações de baixa penetrância, sempre colocando-se entre
parênteses a ressalva da exposição ambiental como combinada
a esses fatores genéticos, possivelmente será maior do que
daqueles casos hereditários causados por mutações de grande
penetrância, pois estes são menos comuns na população do
que os polimorfismos genéticos que possam estar ligados ao
câncer (Coughlin et al. 1998). Por outro lado, não se trata de
negar os avanços, mas de colocá-los em suas reais dimensões:
tarefa, esforço, engenho, produção conjunta, cultural e
engajada de homens e mulheres que são capazes de falar,
trabalhar, produzir e fazer história e histórias... Espera-se,
apenas, que essas histórias escapem dos determinismos e
façam pensar que o maior de todos os riscos talvez seja
endeusar, fetichizar e/ou dogmatizar os riscos genéticos (idem,
p.662).

239
Das dificuldades de escapar de peregrinações deterministas, as
compreensões do embrião (como vivo, não-vivo, como pessoa ou material
biológico passível de intervenções e da aleatoriedade) configuraram
importantes questões que atravessaram e nortearam debates e foram
relacionadas à eugenia, tanto pelo suposto aborto em razão do diagnóstico
genético pré-implantação quanto pela possibilidade de domínio de técnicas
de modificações genéticas na programação de bebês e usos em pesquisas.
Desse cenário de profecias, exortações/prescrições e possibilidades de
fabricação da vida, quais noções de parentesco/filiação podem ser
estabelecidas com o filho diante da possibilidade de separação entre
procriação e sexualidade e, ainda, entre reprodução e gravidez? As
tecnologias podem estar produzindo necessidades de outras definições para
as relações entre as novas formas de corpos/vidas? Para Botbol-Baum
(2009, p.11):

Estas novas técnicas, longe de estreitar o aleatório do


nascimento, exigem, em face do alargamento das
possibilidades, uma colaboração na reflexão contra a corrente,
sobre o risco global que representa a reinvenção da
maternidade biotécnica. Longe de transgredir as “leis da
natureza” (re-enviando às posições reducionistas do
biologicismo ou do essencialismo), ela deslocará todos os
possíveis, engajando uma liberdade responsável e evolutiva,
suscitando nossa imaginação ética.

Os fascínios pela simplicidade e universalidade que já foram


imaginados em relação ao programa genético, hoje, passaram à percepção de
que as coisas não são tão simples como se acreditou, afinal, “transpor um
gene humano em um camundongo não ‘humaniza’ o animal” (ATLAN, 2009,
p.13). Além disso, em razão do desenvolvimento de performances técnicas,
as tranformações no biológico parecem estar atuando como tentativas de
maculação de uma suposta essência em que se podia acreditar. Isso tem
ocorrido desde o nascimento da ovelha Dolly (1996), e a multiplicação de
técnicas tem modificado a definição de embrião (idem). Antes do nascimento
de Dolly, não ocorreria a ninguém considerar como um embrião a ideia de
capacidade ou potencialidade de uma célula (um óvulo com substituição de
seu núcleo por um núcleo somático) tornar-se um embrião – clonagem

240
reprodutiva (idem). Esses processos técnicos mostram a que ponto definições
simples, permitindo rotulações, podem fragilizar-se “diante da unidade [do
que chamamos de] natureza quando encaramos esta do ponto de vista das
possibilidades do vir a ser” e das definições evolutivas (idem, p.45). Para o
autor, um dos desafios propostos pelas biotecnologias é

[...] desembaraçar a genética humana dos bafios de racismo e


de eugenismo que sempre tiveram tendência; quando os
expulsamos pela porta da frente, retornam pela porta do
fundo.
A genética e a antropologia contribuíram para desmistificar a
noção de raça biológica aplicada ao homem. Mas hoje, no
lugar de etnias definidas pela cor da pele, traços do rosto ou
simplesmente pela história, trata-se de grupos de indivíduos
caracterizados por marcadores genéticos particulares que
correm o risco de ser atingidos pelo ostracismo de
estigmatizadores de deficiências físicas ou mentais.
[...] a biologia atual, especialmente através de suas
performances técnicas, tende cada vez mais a fazer explodir
representações antigas bem estabelecidas sobre a essência das
coisas e dos seres, aí incluídos nós mesmos, a partir de
barreiras que se pensava inultrapassáveis entre o vivo e o não-
vivo, o humano e o não-humano (ATLAN, p.14-15).

Considerando-se que, de acordo com o autor, a tarefa de


desmistificação não seja nada fácil, ainda mais pela difusão de especulações
futuras indevidamente “triunfalistas” e/ou leigas dos conhecimentos
científicos, ligando-os a projeções fantásticas, que o corpo biológico não se
reduz aos genes e que a própria expectativa de projeto eugênico se torna
amplamente ilusória em face da falta de domínio e incerteza da prosperidade
das técnicas, “vale mais denunciar a ilusão, cada vez mais reconhecida, que
a reforçar ao apresentá-la como uma ameaça intrínseca às técnicas
genéticas” (ATLAN, 2009, p.31).

Dessas considerações, questiono se as intencionalidades da


negociação dos dilemas de saúde e vida com que nos defrontamos e que
produzem formas de governo a partir de preocupações sociais com a
promoção da vitalidade do filho e de si (pelos pais, familiares, amigos,
médicos, pesquisadores, conselheiros, os quais estão lançando mão de
diferentes estratégias preventivas) estariam articuladas a noções de governo
eugênicas. De acordo com Rose:
241
O que temos aqui não é a eugenia, mas é a moldagem por
formas de autogoverno das obrigações, de escolha, do desejo
de autorrealização e o desejo dos pais para dar melhores vidas
para seus filhos. Sua lógica e seus custos merecem análise em
seus próprios termos (idem, p.69, tradução minha).
A experiência da eugenia deixou uma marca indelével na
política de saúde individual e coletiva, lançando suspeitas
sobre quaisquer formas de gerenciamento de estado de forças
vitais que não operam sob os signos de autonomia,
consentimento e direitos individuais. Na verdade, durante o
último meio século, pelo menos na Euro-América, as
patologias, disfunções, deficiências ou capacidades subótimas
de indivíduos e grupos têm se tornado as principais fontes de
biovalor e a concorrência entre Estados e corporações. Os
circuitos de biovalor tomam uma forma muito diferente das
lutas nacionais pela supremacia que sustentaram as
racionalidades da eugenia. É por estas razões que eu acho que
devemos conceituar a economia da biopolítica contemporânea
como operando de acordo com a lógica de vitalidade, e não de
mortalidade. Embora o biopoder, hoje, certamente tenha seus
circuitos de exclusão, deixar morrer não é fazer morrer. Isso
não é uma política de morte, embora a morte assombre; não é
nem mesmo uma política de saúde e doença; é uma questão
do governo da vida (idem, p.70, tradução minha).

Tendo em vista que os conhecimentos da ciência ditam discursos


normativos e buscando afastar-se dos discursos contrários à ciência e à
medicina que têm sustentado as noções de eugenia, nas circunstâncias
biomédicas e biotecnológicas da biopolítica atual, Vidal Junior (2010, p.241)
comenta que Rose sinaliza alguns riscos em utilizar o “conceito de eugenia,
esvaziando-o de sua historicidade”. Além disso,

[...] indagando se estaríamos assistindo ao surgimento de uma


nova forma de vida, forjada em meio às ideias de
suscetibilidade e aprimoramento, constata que vivemos uma
inflexão histórica na qual as políticas da vida já não são
pensáveis com base no par saúde e doença, mas focalizam a
otimização da própria vida (VIDAL JUNIOR, 2010, p.241).

Como já referido, a relação estabelecida entre a otimização da própria


vida e uma ética da “autonomia” e autenticidade indica os tipos de escolhas
que são criadas pela esperança que investimos nas tecnologias de vida e
organização de estratégias para o governo de riscos (ROSE, 2010). Risco
denota formas de pensar e agir envolvendo “cálculos no presente sobre
prováveis futuros seguidos de intervenções para o presente, a fim de

242
controlar o futuro potencial” (ROSE, 2007, p.70, tradução minha). Em alto
risco, os indivíduos podem ser aconselhados a fazer modificações tanto em
seu comportamento, dieta, estilo de vida, quanto num regime preventivo de
“drogas destinadas à redução do risco de ocorrência de tais desordens”
(idem, p.72, tradução minha). Assim, as práticas para a vitalidade amparam-
se nas taxas de “mortalidade e morbidade, que funcionam como chave para
o desenvolvimento de concepções do futuro como calculável e previsível”
(idem, p.71, tradução minha).

Nesse plural e contestado campo percorrido pelas “verdades”


produzidas (nos comitês de ética, associações profissionais, resultados de
pesquisas e exames, critérios dos empregadores e seguradoras, e
organizações religiosas), o poder pastoral não tem se mostrado preocupado
em guiar o rebanho como um todo. De acordo com Rose, talvez se possa
descrever melhor essa forma de poder pastoral como relacional, nela tal
poder atua na transformação das

[...] subjetividades dos que estão a dar o seu consentimento ou


recusá-lo, através de técnicas discursivas que ensinam novas
formas de interpretar aspectos de si mesmo em pensamento e
linguagem, novas formas de fazer a si mesmo e suas ações
passíveis de julgamento (ROSE, 2007, p.74, tradução minha).

Fundamentalmente, nessa forma relacional do poder pastoral, a


informação e o diagnóstico atuam como intensificadores da ética em que as
relações de todos os assuntos e “verdades” sobre si mesmos e os outros
estão em jogo, incluindo os próprios peritos (ROSE, 2007). No entanto, essa
política de gestão de riscos não equivale à da qualidade da população,

[...] porque ela opera em termos de um estilo de pensamento


diferente sobre natalidade e suas consequências políticas. As
variedades de biopolítica não são apenas caracterizadas por
diferentes e heterogêneas racionalidades políticas, mas cada
racionalidade está ligada a formas peculiares de pensar sobre
seu objeto, individual e coletivo de vitalidade humana, e suas
consequências políticas, isto é, uma forma de pensar sobre a
vida (ROSE, 2007, p.75, tradução minha).

Essas considerações podem apresentar elementos para entender como


temos praticado o governo dos riscos em relação à gestão da vida, ou seja,

243
como temos compartilhado nossas “próprias” noções sobre o que é ser/estar
saudável e vivo e, ainda, a constituição de nossas normas vitais moldadas
por determinadas “verdades”, circunstâncias e condições de formação. Nessa
dimensão, considerar que a saúde e a vitalidade se tornaram importantes
meios para as interações das estratégias biopolíticas com o (bio)capital, a
(bio)economia e o mercado leva a pensar nos modos como essas relações e
“negociações” – que envolvem o conhecimento, o poder e a subjetividade –
estão acontecendo/governando e nos constituindo governantes do viver.

No que tange à investigação do funcionamento de acontecimentos na


produção da vitalidade, as múltiplas responsabilizações têm colocado em
xeque a tutela dos pais sobre a vida dos filhos e os padrões de corpos e
estilos de vida estereotipados e adeptos de modismos e futilidades em
relação aos que não podem incorporar-se à sociedade de consumo. Apontam,
ainda, um grande distanciamento do “ideal”, que parece “nunca” ser
atingido, mas que move a esperança de conquista de modo estratégico.
Nesse processo interminável de busca pelos padrões, percebo que a questão
talvez não seja a de resolver o que fazer com as pessoas que não se
enquadram nessa busca, mas enxergar nelas a capacidade de acessar os
“desejos” e “necessidades” que têm constituído e moldado nossas formas de
ser e de nos interpretarmos, ou de se mobilizarem para tal.

Nossas escolhas diante das opções assemelham-se às apostas em um


jogo de “verdades” que se modificam continuamente, num jogo em que
participamos movidos pela ilusão do prêmio (beleza, saúde, juventude,
prolongamento da vida...) que tais “verdades” prometem como recompensa
pelos investimentos. Porém, sempre nos vemos na condição de
perdedores/devedores, a menos que não desistamos de jogar e estejamos
dispostos a fazer novas apostas em ilusórios meios de superação das perdas.

O mercado de consumo parece estabelecer e cultivar “verdades”


adaptadas ao que Bauman (2005) denominou como “cultura do cassino”, a
qual é adaptada às pressões do mercado. Nessa imagem da sociedade como
um cassino, os nomes dos jogos podem ser fragilidade, transitoriedade,
efemeridade, incerteza, ansiedade, insegurança, expectativa, medo e
244
obsolescência, por exemplo (idem). Nesses jogos de riscos, algumas vezes
jogamos como consumidores e outras como mercadorias sujeitas à compra,
venda, substituição e descarte em função da obsolescência do que se
considera belo, útil e produtivo para o mercado do viver. De acordo com
Bauman, “somos consumidores numa sociedade de consumidores e a
sociedade de consumidores é uma sociedade de mercado”, o que sugere que
nosso viver/vitalidade constitui uma mercadoria numa sociedade de
mercado, ou seja, um objeto político e econômico do biopoder (BAUMAN,
2005, p.151).

Cercada num labirinto de “verdades”, a constituição da noção de vida


como um objeto de saber/poder tem possibilitado definir o papel social e
político da reprodução no governo dos corpos com fins econômicos da
sociedade. Assim, no cenário neoliberal que articula consumo, autonomia,
escolhas, esperança, risco e vitalidade, o aborto aparece como uma questão
política de governo dos corpos a partir de variadas formas de apostas no
gerenciamento do capital humano. Nessa perspectiva, o viver e o morrer são
eventos políticos, relacionados à economia da vida – a biopolítica (SANTOS,
2002; FOUCAULT, 2007; ROSE, 2007).

Encaminhando-me para a finalização desta escrita, trago algumas


explicações de Foucault. Em tempos em que se vive sob a forma de governo
neoliberal, o sujeito é interpretado e compreendido como o “empresário de si
mesmo, sendo ele próprio seu capital”; ele se posiciona, toma decisões,
orienta e governa a sua vida sob uma forma de liberdade estrategicamente
construída (FOUCAULT, 2008a, p.311). Essa “liberdade” é baseada no
estímulo a uma “autonomia” para o investimento de cada um em si mesmo,
o que faz de cada sujeito um potencial “capital humano”, percebido e
valorizado cada vez mais como mercadoria a ser consumida pela economia
de mercado e para manter o mercado produtivo (FOUCAULT, 2008a, p.201).

Tais usos da vitalidade podem acontecer através das diversas formas


de rendimento econômico (salário, produção, remuneração, consumo...),
atribuídas à competência de cada um em tornar seu capital o mais produtivo
possível na tentativa de conseguir usufruir as vantagens prometidas, por
245
exemplo, a quem alcançar certo poder aquisitivo. Em outras palavras, seu
rendimento deve possibilitar que o indivíduo alcance um padrão econômico
capaz de corresponder aos modelos de comportamentos e de formas de vida
a que assistimos por meio de imagens idealizadas divulgadas na mídia como
o ideal para a existência.

Porém, nesse processo de otimização e/ou upgrade, são criados


sujeitos que estão fora dessa lógica, mas que também são importantes.
Afinal, o anormal, o incorrigível, o delinquente, o assassino, o criminoso, por
exemplo, geram o consumo da prevenção contra os riscos e os perigos que
assolam a normalidade da segurança do corpo, dos seus objetos e da sua
vida. Além disso, como já referido, para Foucault (2008a), as desigualdades
são necessárias para o mercado, pois é por meio da desigualdade que é
promovida a concorrência das mais variadas formas e nos diversos setores –
seja na produtividade do comércio de alimentos, medicamentos e segurança,
seja na produtividade intelectual, entre outros. Dito de outra forma, o
aprendizado empreendido ao longo da vida, compondo a subjetividade
individual nos diversos níveis, tornou-se uma moeda que interfere na
valorização de seu capital. Nesse sentido, a maleabilidade, a flexibilidade da
subjetivação do sujeito funciona como condição para a produtividade e
atuação do neoliberalismo, o qual trabalha com a noção de sujeito
inacabado, que sempre deve estar se aprimorando, se modificando e
investindo para adaptar-se aos novos conceitos, às novas “verdades”.

Enfim, a regra é buscar fazer-se útil e produtivo para ser reconhecido


como um bom investidor que faz bom uso do seu capital humano em relação
aos outros. Segundo Foucault, a “arte neoliberal de governo de normalizar e
disciplinar a sociedade” dá-se através dos mecanismos de concorrência e
consumo – princípio regulador do mercado (FOUCAULT, 2008a, p.200).

Nessa perspectiva, o principal interesse, na lógica neoliberal, é que os


indivíduos aumentem seu poder aquisitivo para gerar crédito, movimentar a
economia de mercado e mantê-la em funcionamento. Isso faz lembrar que “o
mercado é um regulador econômico e social geral” e que ele constitui um

246
mecanismo sutil muito seguro se nada vier a perturbá-lo (FOUCAULT,
2008a, p.192).

Para o autor, a preocupação principal da política neoliberal é com a


manutenção do poder aquisitivo, com a existência de um nível de emprego
mais elevado. Ou seja, o pleno emprego não é um objetivo dessa política, e
certo número de desempregados pode ser até necessário (idem). Nesse
entendimento, repito, um desempregado não é uma vítima da sociedade,
mas “é um trabalhador em trânsito” que está “entre uma atividade não
rentável e uma atividade mais rentável” (FOUCAULT, 2008a, p.191). Assim,
para que as regulações se façam, é preciso que “haja pessoas que trabalhem
e outras que não trabalhem, ou que haja salários altos e baixos, é preciso
que os preços subam e desçam” (FOUCAULT, 2008a, p.196). Nesse sentido,
uma política social que tivesse por objetivo a igualização, ainda que relativa,
seria necessariamente antieconômica (idem).

Conforme Foucault (2008a, p.196), “o jogo econômico, com os efeitos


desigualitários que ele comporta, é uma espécie de regulador geral da
sociedade”. Nesse jogo, frente ao processo e desenvolvimento do consumo,
tem-se como resposta a produção de diversos comportamentos, inclusive o
crime e a ilegalidade, os quais são admitidos, sem ter em vista a extinção,
mas a tolerância em relação à manutenção de um equilíbrio dessas taxas.
Isso porque a “sociedade vai bem com certa taxa de ilegalidade e iria muito
mal se quisesse reduzi-la indefinidamente” (FOUCAULT, 2008a, p.350).

Partindo da noção de que “se opera a crítica de um estado de coisas, a


partir do próprio interior da racionalidade que o governa, em seus pontos de
tensão ou de fragilidade” (SENELLART, 1995, p.06), ao pensarmos na
constituição dos sujeitos, torna-se importante problematizar a posição em
que se coloca a “verdade” e o que ela gera, isto é, questionar os efeitos de
poder produzidos a partir de determinada “verdade”. Por isso, como
empreendedores e gestores do capital humano, não devemos deixar de
pensar sobre as relações que estão sendo forjadas na produção dos desejos,
necessidades e prazeres instantâneos.

247
Não se trata de tentar negar a importância do desenvolvimento do
capitalismo ou os avanços da tecnociência e biomedicina, nem de condená-
los, mas de ampliar a visão sobre o entendimento da vida que há nos corpos,
possibilitando entendê-los não apenas pela ótica reducionista de vida
orgânica ou de um capital a ser investido, mas percebendo que é muito mais
que isso. Afinal, aqueles que se encontram à margem, marginalizados,
abandonados ou excluídos, não são invisíveis e não estão “lá” por acaso.

Diante das diversas estratégias de governamento, penso, a partir


dessas leituras, que deveríamos considerar até que ponto tais ofertas de
“escolha” nos são válidas, não no sentido de estarem certas ou erradas, mas
de considerar como estão possibilitando o viver, ser e sentir em relação ao
nosso corpo e vida e às formas de vida dos outros.

Trouxe essas discussões como forma de reforçar a importância que


dou à problematização, no sentido de buscar entender processos como
produções sociais e de desenvolver um pensar menos passivo e mais crítico
em relação às coisas que acontecem, que nos acontecem e que fazemos
acontecer. A partir das problematizações desses pontos do panorama atual –
da precariedade ao excesso –, tornou-se possível visualizar as intervenções
institucionais, as formas de governo das vidas dos indivíduos que se deixam
ou não conduzir pelas “verdades” em prol da vitalidade – mostrando os
diferentes valores atribuídos à vida em relação às formas de condução do
viver. Ainda, percebe-se que, nesse universo de luta pela manutenção da
vida e saúde, tendo em vista padrões de conduta para a longevidade, a morte
pode tornar-se aceita. Isso se evidencia como uma forma de gestão da vida
pelos indivíduos, sem necessária vinculação ao Estado, compondo governos
que se dão à distância, ou seja, pela subjetivação do indivíduo às “verdades”
relativas aos padrões e normas que regulamentam e conduzem o agir por
meio da constituição da autonomia em prol da vitalidade. Conforme Rose
(2001, p.34), a nossa preocupação deve estar nas

[...] práticas pelas quais as pessoas são compreendidas e pelas


quais se age sobre elas - em relação à sua criminalidade, à sua
saúde e à sua falta de saúde, às suas relações familiares, à
sua produtividade, ao seu papel militar, e assim por diante.
248
Se compreendermos que o termo subjetivação designa as práticas e os
processos por meio dos quais os indivíduos “vêm a se relacionar consigo
mesmos e com os outros como sujeitos de certo tipo, então a subjetivação
tem a sua própria história” (ROSE, 2001, p.36). E essa história é menos
unificada e mais prática e técnica do que se supõe, afinal, as definições e a

[...] experiência que temos de nós como constituindo certo tipo


de pessoa – criaturas de liberdade, de poderes pessoais, de
auto-realização – é o resultado de uma gama de tecnologias
humanas, de tecnologias que tomam modos de ser humano
como seu objeto [de governo] (idem, p.37).

Além disso, ao considerar a possibilidade de oposição a práticas de


governo para condução da própria conduta, o autor menciona que os
indivíduos

[...] não são os sujeitos unificados de algum regime coerente de


governo que produza pessoas da forma que ele imagina. Pelo
contrário, eles vivem suas vidas em um constante movimento
entre diferentes práticas, as quais os subjetivam de diferentes
maneiras (ROSE, 2001, p.48).

Por isso, “embora o ser humano seja necessariamente pensado, ele


não existe na forma de pensamento” e planejamentos, mas como uma
“realização”/prática do seu pensamento relativo às perspectivas transitórias,
incertas e inconstantes das produções de seu “caleidoscópio” – ética
somática (idem, ibidem).

249
CAPÍTULO 6

FINALIZANDO O PERCURSO PELAS


“VERDADES” DO VIVER/MORRER: AONDE
LEVAM OS (DES)CAMINHOS DO
F O R A S T E I R O 157?

Liberalismo ou democratização da
verdade é tão ou mais perigoso
quanto sua restrição.

O que está em jogo não é a censura


ou aceitação do discurso
verdadeiro, mas o poder da verdade
e seus efeitos sobre a subjetividade.

Foucault, 2010, p.26 – Do Governo


Dos Vivos.

157Selecionei a imagem com os estudos de embriões de Leonardo da Vinci (1452-1519), para esse
capítulo, por tratar-se de um estudo anatômico que busca representar com “perfeição” a “beleza” e a
simetria do corpo humano e, por que, demonstra a capacidade de observação, experimentação e
questionamento na busca de conhecimento. Em relação aos estudos atuais e as propostas de
otimização da vida, essa imagem levou-me a pensar nas redes discursivas implicadas na produção de
“verdades” sobre os corpos e o viver/morrer, assim como, nos ambientes em que podemos ser
gerados, fabricados e mortos, hoje.
250
CAPÍTULO 6

FINALIZANDO O PERCURSO PELAS “VERDADES” DO


VIVER/MORRER: AONDE LEVAM OS (DES)CAMINHOS DO
FORASTEIRO?

No término da tese, percebi que devia desculpar-me pelo título, que se


mostra bastante amplo e, por isso, excessivamente pretensioso para um
estudo bem mais modesto, em que assumi muitos riscos e não sei se tomei
as devidas ou melhores precauções. Entretanto, apareceram em minha
jornada elementos de “sorte” – autores, estudos, livros... – que indicaram os
próximos trajetos, envolvendo a passagem por períodos de paixão, ódio,
rebeldia, desabrigo, contrariedades, doença e solidão, o que me proporcionou
a aventura de conhecer e questionar diversos “povoados”/temas para o tão
esperado e questionável ponto “final” da tese.

Nessa trilha, tortuosa e cheia de surpresas, não sei se andei perto ou


longe demais, se peguei o melhor ou o pior dos caminhos, se fiz certo ou
errado. Só sei que, desses caminhos, trago comigo lições, questionamentos e
experiências que valeram, em muitos aspectos, o esforço da caminhada.

Geertz, ao falar sobre o pensamento, diz:

[...] o pensar é sério por ser um ato social, e de que, portanto,


somos tão responsáveis por ele quanto por qualquer outro ato
social. Talvez mais ainda [pelo pensar], pois o pensamento é o
ato social de maiores consequências em longo prazo (GEERTZ,
2001, p.30).

No extenso percurso da pesquisa, o pensar – que envolve a prática de


refletir, analisar, questionar e aprender, dentre outras coisas – traz diversas
consequências, algumas um pouco maiores. Afinal, compreendi que pensar
pode nos fazer mudar a perspectiva do olhar analítico, e isso aconteceu em
meu trajeto. Mas como ocorreu? Não sei ao certo, mas essa mobilização não
foi fácil. Até a defesa do projeto de tese, estava enxergando como se existisse
uma neblina entre mim e a proposta – não enxergava “direito” o caminho.

251
Após a defesa do projeto, passei a enxergar com nitidez, só que enxerguei
muitos caminhos e, por um grande período, me perdi nesse labirinto de
ideias. Junto à Nádia, tentei definir uma trilha para examinar a constituição
e/ou o modo como “novas” práticas eugênicas operavam, mas esqueci por
um instante que a pesquisa, como a cartografia, não se projeta conforme
nosso pensamento, vontade e definição; ao contrário, a partir das análises
do terreno é que se torna possível traçar a cartografia – é a análise que nos
aponta os caminhos a seguir na pesquisa.

Por isso, mais uma vez, abandonei o caminho que traçava e me perdi.
Dessa vez, a agonia, a solidão e a incerteza quase me enlouqueceram, e foi
difícil resistir à tentação de desistir. Comecei, então, a aventurar-me em
estradas desconhecidas; entrei em outros sítios empíricos, tentando
relacioná-los às ferramentas conceituais que havia usado anteriormente,
para ver aonde levava essa caminhada.

No início da peregrinação, eu pensava que não teria nada muito novo a


dizer. Porém, os tortuosos itinerários analíticos levaram-me a compreender
que os textos trazidos nas reportagens estão relacionados à instabilidade das
circunstâncias de um estudo sobre áreas de rápido desenvolvimento – as
ciências da vida (biomedicina, biotecnologia, tecnociência...) – que, ao
operarem nessa mobilidade, configuram uma análise do presente articulada
à ideia de possibilidades futuras, o que muitas vezes torna desencorajador o
trabalho sobre a governamentalidade, pois ele tem uma “realidade”
escorregadia (ROSE, 2010).

Esses textos, ao abordarem tais contingências, atuam como


importantes ferramentas na produção de discursos e práticas sociais,
reforçando algumas estratégias de produção de sujeitos e operando na
configuração de noções e transformações que vêm ocorrendo em relação às
formas como se lida com práticas ligadas ao aborto, à vida e à morte e como
se fala delas. Os discursos de “verdade” relativos às estratégias biopolíticas
de governo dos corpos para a vitalidade divulgados na mídia atuam como
dispositivos de aceitação do morrer de determinados indivíduos na sociedade
brasileira, na medida em que a veiculação de tais “verdades” aciona, incita,
252
reafirma e reforça a rede de elementos – institucionais, legislativos,
científicos, médicos, econômicos e morais – envolvidos na constituição de
sujeitos e na organização da “realidade” social. Ou seja, os discursos em prol
da vitalidade como estratégia de governo dos corpos e da vida presentes nas
reportagens dão sustentação e são sustentados pela rede de saberes que
produzem enquadramentos e valores (estigmatizantes e de desvalia, por
exemplo) implicados nas intervenções no viver/morrer (de quem ainda não
nasceu e de determinados indivíduos), na subjetivação dos indivíduos e na
remodelação do corpo econômico-social.

A forma educativa como os discursos de “verdade” têm se constituído


na mídia inclui escolhas e decisões sobre a criação de formas de vidas, sobre
fazer viver por mais tempo, sobre recusar determinadas formas de vida.
Assim, ao privilegiarem alguns temas de saúde e vida em relação ao aborto,
os jornais analisados, em articulação com outras instâncias, exerceram uma
função pedagógica de governo, pois colaboraram para reafirmar e criar
elementos para definição de papéis atribuídos ao corpo feminino e para
validação e valorização ou não de determinadas condutas. A produtividade
desse artefato cultural consiste, portanto, na relação que se estabelece entre
as “verdades” veiculadas/informadas e a constituição ou transformação dos
modos de pensar e gerenciar o corpo e o viver/morrer.

Embora tenha analisado discursos, leis, resoluções e normas de


diversas instâncias do poder (Conselho Regional e Federal de Medicina,
Supremo Tribunal Federal, Ministério da Saúde, Religião, etc.), torna-se
importante esclarecer que a análise não foi sobre as ações dessas instâncias,
mas sobre “como as formas de governo dos corpos [podem] se dar através de
outras instâncias e seus saberes especializados”, ou seja, aquilo que foi
mostrado e dito através de reportagens dos jornais sobre o aborto (SANTOS,
2002, p.263).

Compreender a governamentalidade em Foucault diz respeito ao modo


como uma série de discursos, estratégias, práticas e instituições atuam na
produção de determinadas noções para o governo dos indivíduos. Tais
instâncias atuam na conformação do risco, ou seja, “servem para trazer o
253
risco à existência, construindo-o como um fenômeno” (SANTOS, 2002,
p.267). Nestas análises, buscando-se entender o que se agrega às noções de
risco, percebeu-se que diferentes “verdades” se vincularam a essa noção nas
reportagens sobre o aborto. Essas verdades apareceram direcionadas tanto a
determinados grupos/comunidades, quanto à população em geral,
apontando, para algumas mulheres grávidas e embriões, uma exposição
maior do que para outros, mas todos, de alguma forma, se mostraram
expostos a determinada probabilidade de risco. Sobre as noções de risco,
Castiel (2011, p.47) questiona: “será possível pensar-se em um corpo-risco,
emblema de um poderoso vetor da subjetividade de nossos tempos
ambivalentes e paradoxais?”.

Pode-se considerar que os alertas e veiculações dos riscos nas mídias,


articulados às “verdades” ditas e aconselhadas por especialistas nas
campanhas de prevenção de doenças e promoção da saúde, conformam um
governo à distância que se dá por meio de um conjunto de “verdades”
vinculadas a diversos discursos que incessantemente se entrecruzam,
constituindo as subjetividades e as éticas “somáticas” dos indivíduos (ROSE,
2011a). Isso leva a compreender que as reportagens da mídia participaram
e/ou contribuíram para o governo da população. Ao veicularem “verdades”
sobre os corpos e a vida dos sujeitos, elas atuaram de modo
pedagógico/educativo, fazendo o risco aparecer e existir na vida de todos e
atribuindo às pessoas responsabilizações pelo gerenciamento e
monitoramento do viver/morrer de si e de seu filho (LUPTON, 2000;
SANTOS, 2002).

Para Castiel (2011), a subjetividade dos indivíduos está cada vez mais
impregnada de noções de risco e de incerteza; contudo, relacionamo-nos com
o risco de modos distintos. De acordo com sua explicação, na constituição
das relações e das noções de risco, a mídia

[...] participa intensamente da construção de um clima de


aversão aos riscos que pode chegar, no limite, ao ‘pânico
moral’, em função de sua velocidade de difusão extensiva,
amplificação e atribuição de significados e de valores na
exibição reiterada de ameaças desastrosas à nossa integridade
(CASTIEL, 2011, p.50).
254
Nessa dimensão, a mídia aumenta a sensibilidade ao risco, pois, além
de atuar de forma vigorosa “na construção de um ambiente de riscos
ameaçadores, participa na justificação e legitimação de uma política de
hipersegurança para o enfrentamento” dos riscos (idem, ibidem). Assim, a
constituição de racionalidade, autonomia e responsabilidade que norteiam
nossas ações e suas consequências dá-se em circunstâncias de complexas
relações entre tecnologia, cultura e riscos (idem). Além disso, caso
compreendamos

[...] os riscos como elementos passíveis somente de descrição e


explicação objetivas pela cultura tecnocientífica, estes irão
manter os pressupostos metafísicos que nos mantêm cativos
no interior de contextos que reduzem nossa subjetividade à
gestão racional como a possibilidade apropriada de lidar com
as ameaças reais e imaginárias que não cessam de nos
acossar. E, mais ainda, não conseguem nos proteger da
ansiedade acompanhada da sensação de incerteza que nos
assedia simultaneamente (CASTIEL, 2011, p.56).

Entretanto, a partir de Pedro e Chevitarese (2005), o autor menciona


que a racional gestão de riscos pode ser limitada mediante os diversos
modos de subjetivação que implicam a faculdade ou “liberdade” de escolha
do indivíduo por determinadas formas de vida. Assim, sem negar a
produtividade dos resultados da racionalidade técnica, considerando-se a
possibilidade de resistência na teia de relações, podem ser conferidas
imprevisibilidades e ampliações às restritas, por assim dizer, previsões de
governo do risco, tornando possíveis configurações de outras formas de
pensar e relacionar-se com os riscos, para além da incerteza e da opressão
(CASTIEL, 2011).

Ao considerar que, ligadas às estratégias para prevenção dos riscos,


são divulgadas na mídia noções médicas e científicas, Strim (2011), em seu
estudo sobre a educação do corpo feminino na revista Claudia, comenta que
Paul Crawshaw (2007) discute esse fenômeno a partir do conceito “medicina
de revista”, proposto por Robin Bunton (1997). Tal conceito aponta que as
questões de saúde têm expandido seu campo específico de estudo, estão
permeando diferentes meios e, por isso, se fazendo presentes em várias
instâncias da vida cotidiana, como revistas e jornais (idem). Com isso, as
255
questões de saúde articuladas a assuntos como estilo de vida, gênero,
vitalidade e aborto passam a compor os recentes e complexos conceitos da
área da saúde como uma “medicina de revista” ou, ainda, uma medicina de
mídia (idem).

Sobre as publicações da mídia escrita, Strim (2011) menciona que a


divulgação de dados de pesquisas científicas e de especialistas nas revistas
contribui para a legitimação dos padrões biomédicos de saúde. Nessa
perspectiva, os jornais analisados, como parte da mídia escrita, também
participaram da legitimação de determinadas normas ligadas à promoção da
saúde ao valerem-se da estratégia de publicação de informações de estudos,
o que ofereceu respaldo científico aos seus textos sobre práticas preventivas
e de responsabilização da mulher grávida, como: exames, alimentação,
comportamentos, etc.

Tratar do aborto significa lidar com uma “arena de significações” onde


está em luta uma série de instâncias – religiosas158, morais, políticas,
médicas, legislativas, bioéticas e midiáticas. Nessa arena pública, a mídia
impressa configura importante instância que coloca em circulação/em jogo,
para um grande público, questões, “verdades” e significados vindos das
demais instâncias de modo articulado. Oportuniza, assim, compreensões
próprias do jornal como um artefato cultural, ou seja, a constituição de um
conhecimento que não parte da ciência de origem (dito científico), tampouco
daquele que circula no âmbito dos leigos. Ao partir de algo que tem sua
configuração própria e contínua, que tem sua gramática própria mediando o
científico e o leigo como uma “tradução” ao leitor159, essa tradução do
científico, ao mesmo tempo em que opera como uma “medicina de revista” e
de jornal, incorpora cada vez mais aspectos da vida cotidiana à noção de
promoção da saúde, prevenção de riscos e medicalização do corpo e vida.

Em meio a expectativas sobre a possibilidade de ordenação e


determinação individual, a reiterada ideia de aleatoriedade da constituição
158 Nas reportagens analisadas as ênfases das discussões religiosas vincularam-se a Igreja Católica.
159Gostaria de agradecer ao professor Luís Henrique Sacchi dos Santos pelos comentários feitos na
qualificação de minha pesquisa. Foi graças a eles e às leituras subsequentes que compreendi, dentre
outras coisas, essa noção da construção e propriedade dos textos de jornais, revistas, etc.
256
do corpo biológico num mundo em constante movimento – quer isso
signifique modificações e desenvolvimento de práticas médicas, éticas,
tecnológicas, políticas, econômicas... – torna difícil pensar em uma lógica
que permita interpretar, nas circunstâncias atuais de governo – do risco,
medo e insegurança, atravessado por políticas individuais, locais e globais –,
um ideal eugênico como alicerce ou mentalidade de governamento atuando
na produção da subjetivação, a fim de legitimar o fazer morrer como jogo de
interesse recíproco – indivíduos e Governo.

Se a configuração do poder pastoral no regime do biopoder de política


liberal tornou-se relacional e, por isso, as escolhas dos sujeitos são feitas
com base na “autonomia” e responsabilidade conferida pela ética somática
individual a partir de “verdades” de diversas instâncias, por vezes
contraditórias, a relatividade e a imprevisibilidade desse “mundo em
movimento” torna escorregadios os investimentos em conduzir as práticas,
“realidades”/estratégias de governo (ROSE, 2010). Nessa composição
relacional de governo, a mentalidade/estratégia que tem operado é a de
vitalidade, que se dá pela produção da vontade de saúde, vida e segurança.
Essa vontade individual de prevenção de riscos e promoção da saúde/vida
mobiliza múltiplos circuitos de ações subjetivas que se movem
aleatoriamente entre as probabilidades e garantem ou definem a economia a
partir dessa “liberdade” do sistema de mercado capitalista no governo
político da vida – biopolítico.

Vejo a sociedade como um laboratório experimental que comporta uma


diversidade de indivíduos, desde aqueles que se encaixam nos “perfis de
normalidade” até os que são classificados como riscos relativos ao viver,
porém, no fim das contas, todos podem realizar, pelo autogoverno,
experimentações bioeconômicas em seus corpos/vidas. Afinal, somos
constantemente interpelados e subjetivados por remodelagens estilizadas em
normalizações que possibilitam ou condicionam formas contingentes de
governo do viver/morrer em favor da vitalidade e inclusão. Mesmo operando
através da noção de vitalidade, é importante retomar que o biopoder, hoje,
não deixou de ter seus circuitos de exclusão, mas deixar morrer não é o

257
mesmo que fazer morrer. Por isso, de acordo com Rose (2007), não se trata
de uma política de morte, nem mesmo de uma política de saúde e doença,
mas de uma questão do governo da vida. Nela, as racionalidades biopolíticas
estão ligadas a “formas peculiares de pensar sobre seu objeto, individual e
coletivo de vitalidade humana, e suas consequências políticas, isto é, uma
forma de pensar sobre a vida” (idem, p.75, tradução minha). Nessa
correlação de governo, em que operam noções de probabilidade, capacitação
e responsabilidade em circunstâncias individuais e conjuntas, como já
referido, a vida pode ser compreendida como um possível ponto de passagem
e de intensificação do fluxo de estratégias biopolíticas que buscam
transformar traços humanos em proveito das forças políticas e econômicas
que legislam e regulam a população (GROS, 2010).

Em relação ao governo dos corpos, as questões analisadas fizeram-me


pensar, ainda, que hoje talvez saibamos definir o morrer, mas quando se
inicia o que chamamos de vida? Vida com seus “conceitos” tão plásticos –
como afirmar? Entre tantas respostas, como ou por que escolher uma?
Vários dizem que a vida inicia com a fecundação; outros, que a fecundação
contém a pulsão da vida ou, ainda, que não passa de um aglomerado de
células.

Enfim, a discussão acaba tomando um rumo reducionista, amparado


no saber/poder das ciências, o que foge do caminho que propõe esta
discussão. Será que se prender a questões desse tipo não nos faz deixar de
pensar em outras dimensões humanas, como valores, ideias morais e éticas,
sentimentos, enfim, dimensões tão “particulares”? Então, “em que momento
e por que passamos a considerar que um óvulo fecundado deve ser valorado
com estatuto social” de vida aplicada ao cidadão, com interesses, direitos e
proteções (ANIS, 2004, p.70)? Num país que se diz laico, plural e
democrático, as discussões sobre o viver não deveriam ser um problema
somente judicial, religioso, político, médico; deveriam, isso sim, criar
condições para ampliar ou promover a “liberdade” individual no campo da
“autonomia” reprodutiva – mediante as análises, parece que estamos
caminhando para isso. Mesmo não chegando a uma resposta única, é

258
possível, a partir da problematização desses conflitos, enxergar a
constituição de outras formas de pensamento e construções de outras
políticas de “verdade” sobre o viver/morrer, não apenas em relação à
anencefalia e aos usos, alterações e descartes de embriões, mas também
para situações fronteiriças relacionadas ao aborto propriamente dito (de
fetos com chances de sobreviver após o parto), pelas implicações de
circunstâncias sociais e econômicas ou mesmo da própria vida no caso de
pacientes ditos terminais – ortotanásia. Assim, na intensa promoção da
vitalidade, também são percebidos movimentos para a criação de uma
brecha em que se abre a possibilidade de a mulher decidir sobre o seu corpo
e vida sem passar por inquisições públicas, sem que sua vida seja divulgada
e julgada por diferentes representantes institucionais nas mídias – meios de
espetacularização do viver e do agir sobre a vida que promovem o
borramento das fronteiras entre problemas de ordem pública e privada
(FISCHER, 2005).

A mídia divulgou pesquisa mostrando que o aborto, mesmo não sendo


legalizado, é realizado, haja vista o número de atendimentos para curetagem
no SUS (Sistema Único de Saúde) ter atingido 3,1 milhões de registros entre
o ano de 1995 e 2007160 (TOLEDO, 2010). Além disso, de acordo com a
Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, “estima-se que
ocorram, considerando apenas o Brasil, mais de um milhão de abortamentos
induzidos ao ano, sendo uma das principais causas de morte materna no
País” (BRASIL, 2010, p.05). Sem pensar em possíveis saídas ou respostas
para questões tão importantes e complexas do viver humano, penso que
talvez as políticas de saúde, especialmente as voltadas para a mulher,
pudessem atentar para as condições sociais, políticas e econômicas
implicadas na gravidez e nas decisões pelo aborto.

Considerando-se que o valor da vida humana deva ser igual para


todos, percebe-se que, num universo de profundas desigualdades sociais,
esses princípios se tornam questionáveis. Em seu livro O direito de vir-a-ser

160Idem nota 125. Karina Toledo, reportagem: Curetagem após aborto é a cirurgia mais realizada no SUS,
revela estudo (Estadão, 14/07/2010). Ver página 78 do anexo 1.
259
após o nascimento, Azevêdo comenta que aproximadamente 42 milhões de
brasileiros são pobres, ou seja, não têm renda para satisfazer suas
necessidades básicas; 16,5 milhões são indigentes, isto é, não conseguem
satisfazer nem as necessidades alimentares (AZEVÊDO, 2002). Assim, “cerca
de um terço da população brasileira está ficando a meio caminho do próprio
ser” (idem, p.78). Muitos nascem, adoecem e morrem sem acesso à saúde,
passando fome, comprometidos pela desnutrição. Para a autora, o indivíduo
que não conseguiu desenvolver-se física e mentalmente por razões de
empobrecimento já foi violentado em seu direito de existir e viver, ou seja, de
vir-a-ser após o nascimento. Tais condições tornam difícil pensar em
relações de igualdade de acesso à saúde quando as propagandas da mídia
divulgam as campanhas de promoção da saúde, por exemplo.

Todavia, em meio a essa tamanha falta de acesso à saúde e à


alimentação como condição para manter-se vivo e para que as crianças
atinjam a idade adulta, as preocupações ainda se centram nas decisões da
mulher sobre seu corpo e vida, através do controle de natalidade (que não é
difundido igualmente nas camadas da população) e do aborto. O controle da
natalidade, como um planejamento ou um investimento na vida social, traz
para o cenário das decisões sobre a possibilidade de a mulher ter um filho: o
marido, os pais, os avós, os tios, os médicos, os especialistas, as instituições
religiosas, jurídicas... Enfim, como observado nas análises, em torno do
corpo feminino, aparecem diferentes vozes a intervir com discursos que
agem no controle da natalidade.

Assim, para o cuidado e o investimento na vida, segue-se a sutileza da


lógica do biopoder, isto é, incluem-se diferentes atores na decisão de
promoção da vida, visando a um melhor controle das taxas reprodutivas em
prol da vitalidade – viver por mais tempo e da melhor forma. Nesse caso, o
controle da mulher dá-se pela subjetivação a formas de gerenciamento de
seu corpo e da reprodução, sob a noção de que tal gerenciamento visa à
otimização do viver – maximização da produtividade da vida. Aliás, nessa
lógica, considerando-se o processo de reprodução assistida, são produzidos
vários embriões, e, havendo ou não escolha entre eles, alguns não serão

260
implantados e outros talvez sejam criopreservados, descartados ou
“abortados”. Diante de um histórico familiar com recorrente câncer de
mama, por exemplo, seria “ético” promover o desenvolvimento de um
embrião com elevadas chances de desenvolver tumores, caso fosse
amplamente disponibilizado o acesso às onerosas técnicas de diagnóstico
pré-implantação (PGD) para evitar e intervir em doenças incompatíveis com
a vida ou doenças graves que causam sofrimento ou redução da sobrevida?

Dessas questões, o aborto e o controle reprodutivo, a meu ver, hoje


constituem uma relação com o cuidado, com a quantidade e a qualidade de
vida da espécie, ou seja, dos indivíduos humanos. Como, sob a lógica
neoliberal, a qualidade dessa vida vai depender de escolhas individuais –
afinal, a saúde é um problema social, mas de responsabilidade individual –,
o gerenciamento e o investimento que fizermos nos corpos e vidas vai
interferir no desenvolvimento econômico do Estado ou mesmo defini-lo
(FOUCAULT, 2008a). Por isso, os padrões que regem as normas do viver
configuram biopolíticas individualizantes e totalizantes que fazem do
autocontrole e do gerenciamento de si estratégias de atuação de biopolíticas
direcionadas ao governo da população, o que “naturalmente” torna a vida
um objeto de saber/poder, ou seja, um objeto político em razão da
potencialidade que representa.

Assim, numa “arena de significações” que compõem um conjunto de


práticas de governo, cada indivíduo é “seduzido” e/ou assediado a oferecer
sua vida, seu trabalho, seu consumo e sua prole – de preferência, saudável –
como contribuição para a manutenção da economia. Nesse sentido, o corpo
feminino, por conter a possibilidade de gerar vidas destinadas a manter o
desenvolvimento econômico, configura-se com um papel social e político
relevante a ser submetido à regulamentação e ao controle através de
investimentos no governo de sua subjetividade. Desse modo, esse controle
dos corpos pelos próprios indivíduos implica uma eficaz política econômica
de governo da vida, uma biopolítica/bioeconomia que, ao conduzir as
decisões do corpo individual, governa e modela o corpo social (SANTOS,
2002; FOUCAULT, 2007; ROSE, 2011a).

261
Nessa relação de “liberdade” conduzida por constantes negociações
entre os jogos de “verdade”, tais circunstâncias de governo regidas por
discursos ou “fontes” de vitalidade/felicidade que estabelecem modos de
pensar, “ser”, viver, morrer e reproduzir provocam questionamentos que não
calam: a partir de que noção de “autonomia” tem-se administrado o viver até
o morrer? Como objeto político, de quem é a autoria da existência? Que
relação de governo estamos estabelecendo com o nosso corpo e vida e com os
demais?

Enquanto me interrogo e penso em possíveis respostas, percebo que


chegou o momento de suspender minha aventura pelos labirintos desta
escrita, mas não de encerrar os ensaios de pesquisa, espero! Diante de
tantos questionamentos e leituras, enredei-me nas trilhas dos
conhecimentos e compreendi o que Larrosa (2003b) havia dito sobre o
labirinto, “lugar do estudo” – os caminhos abertos pela pesquisa não
terminam, mas se abrem a muitos outros.

262
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2. REFERÊNCIAS DE SITES DE ORGANIZAÇÕES:

- ANIS: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.


Disponível em: <http://www.anis.org.br/>.

- Aborto em Debate.
Disponível em: <http://www.abortoemdebate.com.br/wordpress/>.

- Associação para o Planejamento da Família.


Disponível em: <http://www.apf.pt/>.

- Agência Patrícia Galvão.


Disponível em: <http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/>.

- Católicas pelo Direito de Decidir.


Disponível em: <http://catolicasonline.org.br/>.

- Centro Feminista de Estudos e Assessoria - CFEMEA.


Disponível em: <http://www.cfemea.org.br/>.

- Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas.


Disponível em: <http://www.cemicamp.org.br/>.

- Comissão de Cidadania e Reprodução.


Disponível em: <http://www.ccr.org.br/>.

- Frente Nacional pelo fim da criminalização das mulheres e pela legalização do


aborto.
Disponível em: http://www.frentepelodireitoaoaborto.blogspot.com/>.

- Grupo Curumim.
Disponível em: <http://www.grupocurumim.org.br/site/programas.php>.

- Ipas Brasil.
276
Disponível em: <http://www.ipas.org.br/>.

- Médicos pela Escolha.


Disponível em: <http://www.medicospelaescolha.pt/>.

- SOS Corpo: Instituto Feminista para a Democracia.


Disponível em: <http://www.soscorpo.org.br/>.

- Revista de Estudos Feministas.


Disponível em: <http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/ref>.

- Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos.


Disponível em: <http://www.redesaude.org.br/portal/comunica/2010-12/>.

- União de Mulheres Alternativa e Resposta – UMAR.


Disponível em: <http://www.umarfeminismos.org/>.

- Women on Waves.
Disponível em: <http://www.womenonwaves.org/set-248-pt.html>.

277
3. REFERÊNCIAS DE VÍDEOS SOBRE O ABORTO NO
BRASIL:

- Fim do Silêncio. Documentário de Thereza Jessouroum (roteiro, produção e


direção) produzido pela Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, financiado pelo
Ministério da Saúde (fiocruz.br/fiocruzvideo).

Disponível em: <http://vimeo.com/6251893>.

- Clandestinas. Documentário de Ana Carolina Moreno, referente ao Trabalho de


Conclusão do Curso de Jornalismo da Universidade de São Paulo, 2006.

Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=PGy21f212OY>.

- Quem são elas? Filme de Débora Diniz, 2006, produzido por Anis - Instituto de
Bioética, Direitos Humanos e Gênero e pela produtora Imagens Livres. Apoio do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, da
International Women's Health Coalition e da Ford Foundation
(http://www.anis.org.br/ImagensLivres/Detalhes.cfm?Idfilme=10).

Disponível em: <http://vimeo.com/5918778>.

- O aborto dos outros. Documentário dirigido por Carla Gallo, 2008


(http://www.oabortodosoutros.com.br/index_pt.html).

Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=eZfkki1meDg>.

- Aborto se torna grave problema para o sistema de saúde pública. Reportagem


exibida pelo Jornal Fantástico no domingo, dia 01/08/2010.

Disponível em: <http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM1311112-7823-


ABORTO+SE+TORNA+GRAVE+PROBLEMA+PARA+O+SISTE-
MA+DE+SAUDE+PUBLICA,00.html>.

278
APÊNDICE - PUBLICAÇÕES

Articulando aos estudos da Profª Nádia minha pesquisa de Mestrado e


posteriormente de Doutorado tenho participado de palestras e aulas com
estudantes de graduação em Pedagogia da UFRGS. Nelas trabalhamos as
abordagens da temática da vida/morte na escola a partir de um conjunto de
atividades, nas quais buscamos discutir as intervenções e noções atribuídas
ao aborto, corpo e vida/morte e suas construções nos níveis biológico e
social. Além disso, temos participado de eventos e produzido artigos – com
apoio da CAPES – que foram apresentados e publicados em vários encontros
da área de Educação, entre eles:

V Seminário Corpo, gênero e sexualidade: instâncias e práticas de


produção nas políticas da própria vida, I Seminário Internacional Corpo,
gênero e sexualidade, 2011, Rio Grande.

XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida


humana, 2010, São Leopoldo.

IV Seminário Corpo, Gênero e Sexualidade: composições e desafios


para a formação docente, 2009, Rio Grande.

VI Congresso Internacional de Educação: Educação e Tecnologias


Sujeitos (des)conectados?, 2009, São Leopoldo.

VII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (Enpec),


2009, Florianópolis - SC.

VII Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul: Pesquisa em


Educação e Inserção Social - ANPEDSUL, 2008. Itajaí - SC.

XIV Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino - ENDIPE,


2008, Porto Alegre.

3º Seminário Brasileiro de Estudos Culturais e Educação: Pedagogias


sem Fronteiras - 3º SBECE, 2008, Canoas.

279
IV Colóquio Franco-Brasileiro de Filosofia da Educação: filosofia,
aprendizagem, experiência, 2008, Rio de Janeiro.

IV Colóquio Luso-Brasileiro sobre Questões Curriculares, 2008,


Florianópolis - SC.

BioEd 2008 Conference: Biological Sciences Ethics and Education. The


Challenges of Sustainable Development, 2008, Dijon (France).

280

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