Tese Neila
Tese Neila
Tese Neila
N E I L A S E LI AN E P E R E I R A W I T T
Porto Alegre
2012
Neila Seliane Pereira Witt
Porto Alegre
2012
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
Reitor: Prof. Dr. Carlos Alexandre Netto
Vice-Reitor: Prof. Dr. Rui Vicente Oppermann
Departamento de Bioquímica
Av. Ramiro Barcelos, 2600 - anexo
Campus Saúde
Bairro Santa Cecília
Porto Alegre – RS
CEP 90035-000
Telefone: 3308 5538
3
Neila Seliane Pereira Witt
Banca examinadora:
5
AGRADECIMENTOS
Devo a escrita desta tese a muitas pessoas com quem mantenho
relações singulares, especiais e indispensáveis. Mesmo que essas pessoas já
tenham lido as mais sinceras e particulares palavras no “silêncio” de um
olhar ou gesto meus, acredito que repetir algumas delas neste momento e
espaço possibilite algo diferente. Assim, arrisquei a escolha de algumas
poucas palavras na esperança de que elas, de uma forma ou de outra, deem
conta de me fazer entender... Agradeço:
6
À CAPES, pela viabilização financeira da pesquisa, indispensável para
a realização deste estudo e experiência.
A você, pelo interesse por esta leitura. Que ela lhe possibilite outras
leituras de mundo e o instigue a pensar sobre o que acontece e nos
acontece.
7
E se a Realidade não é a Realidade, mas a Questão;
Se Desconfiamos da Verdade,
8
RESUMO
9
transformações de sujeito, julgamentos morais, estigmas e desigualdades
sociais. Além disso, tratar do aborto significa lidar com uma “arena de
significações” na qual estão em luta diversas instâncias – religiosas,
políticas, médicas, legislativas, morais, mercadológicas e midiáticas.
10
ABSTRACT
In a society concerned with making live, which seeks for longevity and
health, the growing prevention of risks to health and living triggers
government strategies for ‘vitality’. Such strategies aim at stimulating and
intensifying, for instance, a ‘desire’ for health/life/happiness; the
observation, follow-up, medicalization and control of pregnant women’s
body/health; the promotion of health and life/death of the unborn; and the
use of biomedical technologies. Such issues, articulated with abortion, have
caused me to investigate the ‘truths’ directed to the ‘government’ of pregnant
women’s body and life as well as their ‘children’s’. The analysis of reports
dealing with abortion are important if we consider the ways through which
subjectivity has become an object of certain government strategies and
procedures, besides having a remarkable place in the media, which
integrates processes that constitute our subjectivities by spreading ‘truths’.
The corpus of analysis of this study consists of reports taken from two
newspapers: Zero Hora, from Porto Alegre/RS, and Folha de São Paulo, from
São Paulo/SP. The reports analyzed were published in the years of 2007,
2008, 2009, 2010, 2011 and 2012. From post-structuralist lines of the
Cultural Studies, Michel Foucault’s notion of government, and Nikolas
Rose’s conception of vitality, I have both attempted to know the bio-political
strategies intended to govern conducts, and investigated how they operated,
in order to understand and bring visibility to the several levels of the bio-
power action. I have problematized some changes that have occurred in the
ways one deals with and talk about practices associated with abortion and
life/death; the implications of such notions for both the government of
bodies seeking for vitality and the production and determination of ‘truths’
that constitute subjectivities and ethics related to abortion and living/dying;
finally, the possibility of relating such forms of government to eugenics.
Among other things, the analyses have enabled me to think that subject
constructions, limitations and transformations, moral judgments, stigmas
and social inequalities have been adjusted and affirmed in this government
11
relationship, intertwined with discourses of market, consumption, risk
prevention and life/health promotion. Besides, addressing abortion means
dealing with an ‘arena of significations’ in which several spaces are
competing – religion, politics, medicine, law, moral, market and media.
12
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
13
Figura 6 – Imagem da capa do sexto capítulo....................................................................... 248
Embriões de Leonardo da Vinci (1452-1519). Disponíveis em: < http://genteart-
e.com/obras/Leonardo-da-Vinci/leonardo%20da%20vinci%20codice%20leonar-
desco%20studio%20sul%20feto%20in.jpg/ >. Acesso em: 01 jul. 2011.
14
SUMÁRIO
15
5. TECNOLOGIAS REPRODUTIVAS E ANENCEFALIA: POSSIBILIDADES DE VIDA/MORTE
5.1. Da noção de vitalidade às “verdades” sobre a maternidade e as utilidades do
viver/morrer. .................................................................................................... 144
REFERÊNCIAS
ANEXOS - CD
1. Reportagens ............................................................................................................ 1
2. Matérias sobre votos no STF e Resolução do CFM ........................................ 116
16
CAPÍTULO 1
A E SC R I T A D E SD O BR A - S E C O M O UM J O GO QU E V AI I N F A LI VE LM E N TE P AR A
A LÉ M D A S S U A S R E G R A S (FOUCAULT, 2002 C , P .35).
EI S O Q U E E U E S C U T O , A C AD A V EZ Q UE S E P E R G UN T A : “D E Q U E TE OR I A VO CÊ
S E UTI LI Z A ? O Q UE O A BR I G A ? O Q U E O J U S TI F I C A ?”
O UÇ O Q UE S T ÕE S P O L I C I A I S E AM E AÇ A D OR A S :
“A O S O LH O S D E QU EM V OC Ê
S ER Á I N OC EN TE M E S M O Q U E D EV A S ER C ON D EN A DO ?” O U : ” DE V E H AV ER UM
GR UP O D E P E S SO A S , UM A S OCI ED A D E , UM A F OR M A D E P EN S AM E N TO Q U E O
A B SO LV ER Ã O , E DO S QU AI S V OC Ê P OD ER Á OB T ER S U A SO L T UR A .
1A imagem do silêncio perante o mundo foi escolhida em razão da leitura do texto Imagens do estudar
de Jorge Larrosa. No qual o autor fala das tensões e do voltar para si mesmo como gesto que convém
ao estudante, do “silêncio como o som peculiar do estudo” e do estudo como “aquilo que o coloca em
perigo” em relação às “verdades” do mundo (LARROSA, 2003a, p.200-201).
17
CAPÍTULO 1
18
mão do entendimento de estratégia proposto por Foucault. Para o autor,
estratégia designa:
19
nasceram ou de indivíduos que atuam na fronteira da
normalidade/anormalidade e da legalidade/ilegalidade na condução do viver.
Compreendendo que os avanços da biotecnologia, da tecnociência e da
ampliação do poder de intervenção médica no “curso” da vida/morte têm
atuado, em sua maioria, como estratégias para promover e manter a vida, é
oportuno pensar também sobre suas atuações e estratégias para interrompê-
la. Faz-se necessário o questionamento sobre as condições do viver/morrer e
sobre as “verdades” que são assumidas como legítimas na atualidade. Neste
estudo, faço uso da noção de verdade conforme Foucault. Em sua definição,
o autor diz:
2 Entendo, a partir de Foucault, que saber e poder estão diretamente implicados; o poder produz
saber, e “não há relações de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que
não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” (FOUCAULT, 2004, p.27).
20
Considerando essas questões, esta pesquisa visa a criar condições
para pensarmos e problematizarmos determinadas práticas diante da
possibilidade de “liberdade” de decisão e ação das pessoas em relação à
“autonomia” e ao gerenciamento de seu corpo e vida. Associado ao modo
como lidamos com a vida/morte, o principal propósito do estudo é examinar
como se tem lidado com situações relacionadas ao aborto. Além disso, esta
investigação propõe-se a chamar atenção para a posição que os discursos –
jurídico, religioso, biológico e médico-científico – adquirem no governo da
vida/morte, nas regulamentações relativas à prática do abortamento e na
possibilidade de deixar viver ou fazer morrer, bem como para a pertinência
da integração dessas discussões às diversas modalidades de ensino.
21
1.2 Sobre a organização estrutural da Pesquisa
22
possibilidades de intervenções institucionais relativas às formas de olhar e
lidar com o que se considera normal/anormal.
23
1.3 Das cartografias: multiplicando caminhos
24
Ao tomar conhecimento da existência de um grupo que estudava
Educação em Ciências no Departamento de Bioquímica, entrei em contato
com professores que, além de explicar o que e como trabalhavam, me
ajudaram a pensar um projeto que relacionava a escola ao ensino de Biologia
a partir do questionamento: como acontecem as aprendizagens sobre a
alimentação no espaço escolar?
28
Enfim, nesse processo, foram constituídos vários questionamentos e
entendimentos, dentre eles, destaco o que mais me instigou a continuar a
pesquisar o tema: questões relativas ao viver/morrer. Trata-se, aí, de
compreender que vivemos numa sociedade que busca promover a vida, que
elimina a possibilidade de perceber a morte como um evento que faz parte da
vida; nessa perspectiva, evita-se, inclusive, falar sobre esse processo ou
sobre temas que remetam à finitude. Além disso, essa negação do morrer dá-
se também pela ausência de discussões no ensino – seja de ciências, de
biologia, de medicina ou de outros (AZEREDO, 2007).
Ao falar sobre o sujeito, Foucault diz que a palavra sujeito tem dois
significados: “sujeito a algum outro através de controle e de dependência, e
atado à sua própria identidade através de uma consciência ou
autoconhecimento” (FOUCAULT, 1995a, p.235; RABINOW, 2002, p.45).
“Ambos os sentidos sugerem uma forma de poder que subjuga e que faz
alguém sujeito a” (idem, ibidem). Trouxe essa noção de sujeito porque parto
dela para falar sobre algumas práticas soberanas relativas à possibilidade de
“autonomia”. Dessa noção, outra questão relaciona-se às práticas soberanas
e às decisões sobre os cuidados do corpo e sobre o morrer, em que a forte
oposição à eutanásia, em relação à “autonomia” dos sujeitos de decidirem
sobre sua vida e morte, poderia gerar, por exemplo, deslocamentos do poder
de decisão sobre tais eventos – da religião, da autoridade divina (Deus, o
Soberano), do Estado, dos representantes da justiça, da segurança, da saúde
e do Governo (outros Soberanos). Há, ainda, que se considerar a crença no
poder da tecnociência como soberana para prolongar a vida e alterar as
condições orgânicas do corpo.
29
“ortotanásia5”, o documento, no artigo 22 do Capítulo I (princípios
fundamentais), delibera que:
9Reportagem: Novo código de ética médica privilegia decisões do paciente (ZH, 13/04/2010). Ver página 2
do anexo 1.
Para facilitar o acesso às reportagens referidas neste estudo, disponibilizei-as, na íntegra, no anexo 1 -
CD. Elas estão numeradas com o mesmo número da nota de rodapé, seguindo a ordem em que
aparecem no texto.
10Reportagem: Conselho diz que código de ética médica será revisto a cada 5 anos. (Folha SP, 13/04/2010).
Ver página 6 do anexo 1.
11Novo código de ética médica: 'a medicina brasileira entra no século XXI’. Entrevista especial com Léo Pessini
(membro da Diretoria da Associação Internacional de Bioética e superintendente da União Social
Camiliana, além de vice-reitor do Centro Universitário São Camilo, em São Paulo – publicação em
27/04/2010). Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=co-m_noticias&Ite-
mid=29&task=detalhe&id=31842>. Acesso em: 03.05. 2010.
31
ligados à medicalização e a tecnologias sobre o corpo para fazê-lo viver.
Utilizo o termo dispositivo partindo da proposição de Foucault. Para ele, um
dispositivo compreende a rede que se pode tecer entre o dito e o não-dito, ou
seja, são “as práticas elas mesmas, atuando como um aparelho, uma
ferramenta, constituindo sujeitos e os organizando”, atuando também na
organização da “realidade” social (DREYFUS e RABINOW, 1995, p.135), de
modo que “está sempre inscrito em um jogo de poder” e ligado ao saber que
dele nasce, mas que o condiciona, isto é, o dispositivo como estratégia de
relações dá sustentação e é sustentado pelos saberes (FOUCAULT, 2002b,
p.246). Por isso, articula discursos, instituições, leis, “organizações
arquitetônicas, decisões regulamentares, medidas administrativas,
enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas”
(FOUCAULT, 2002b, p.244).
32
implicadas na determinação da desigualdade e do pertencimento ou não,
mesmo antes do nascer.
33
1.4 Fragmentos do pensar: condições de emergência da
pesquisa
Numa sociedade regida pela vida e pelo fazer viver, que se move
gradativamente na busca pela infinitude, emergem dificuldades de lidar com
os sentimentos despertados pela vulnerabilidade da vida (relacionados à
doença, ao envelhecer e à morte), pois essa circunstância remete-nos a
pensamentos relacionados à nossa finitude e à dos que nos são caros. Tais
sentimentos e valores, muitas vezes, geram decisões e atitudes direcionadas
à separação e ao isolamento dos doentes e dos idosos do mundo dos vivos.
Em outras palavras, “a morte do outro torna-se dramática e insuportável e
se inicia um processo de afastamento social da morte” (MENEZES, 2004,
p.27).
34
Mesmo numa época com enormes avanços na arte de repelir e impedir
as causas de morte, esta não foi abolida, mas esse “inimigo invisível”
desapareceu de vista e do discurso (BAUMAN, 1998). Ao mesmo tempo,
nossa vida passou a ser policiada do início ao fim, tornando-nos, pelo menos
temporariamente, “inválidos acompanhando a vida das janelas do hospital”
(idem, p.195). Para chegar a essas condições, nossa cultura desenvolveu
estratégias, como, por exemplo, esconder
35
permanentemente”. Diz ainda que essa relação entre poderes e saberes é
capaz de criar incessantemente as tecnologias de poder. Ao discutir o
funcionamento da tecnociência moderna e contemporânea, a autora aponta
que, na atual sociedade tecnológica, os avanços mais recentes nas áreas da
biotecnologia e da informática, a serviço do “deciframento da vida”, fazem
vigorar o caráter essencialmente tecnológico do conhecimento científico
(idem). Nessa direção, os procedimentos científicos não visam à “verdade” ou
ao conhecimento da natureza íntima das coisas, mas à compreensão dos
fenômenos para exercer a previsão e o controle total sobre a vida. Tais
procedimentos não pretendem apenas a melhora das condições de vida, mas
a busca insaciável pela infinitude, desconhecendo os limites, buscando o
domínio e a apropriação total da natureza e superando suas limitações
biológicas, inclusive, a mortalidade (idem). Assim, vinculam-se à noção cada
vez mais presente de superação dos limites do corpo, o que tem sido tema de
discussões contemporâneas. Um exemplo é a medicina reprodutiva, que se
tornou uma das áreas com grande investimento e desenvolvimento nos
últimos anos, atendendo, talvez, à lógica de fazer viver por meio da
fertilização in vitro, uma forma de superação das limitações biológicas em
busca da manutenção da utilidade e produtividade do corpo pela criação da
possibilidade de mulheres com problemas de fertilidade gerarem filhos.
36
prática do descarte de embriões, bem como dos processos de vida e das
práticas econômicas de trabalho pelo consumo da técnica de manipulação e
venda de produtos biológicos (embrionários). A implicação de tais práticas
nas questões sociais é algo a se ver para buscar compreender aonde podem
levar e o que podem produzir. Afinal, como sugere Deleuze, “concentra-se
nas práticas de vida o lugar mais potente de novos saberes e poderes”, por
isso, busca-se descrever o que está acontecendo, procurando “analisar
racionalidades específicas ao invés de sempre invocar o progresso da
racionalização em geral” (RABINOW, 2002, p.137).
37
totalmente o horizonte da morte e do morrer” (VALLS, 2004, p.176). Essas
mudanças trouxeram outras, entre elas, a doação de órgãos, os quais devem
ser retirados ainda vivos do paciente, ou seja, “quando o paciente estiver
legalmente morto” (idem, ibidem).
12Morte encefálica é definida pela parada irreversível de todas as funções cerebrais, ou seja, só é
constatada a morte encefálica caso estejam inativas todas as funções cerebrais, incluindo o tronco
cerebral, que controla a respiração, o batimento cardíaco e a pressão sanguínea (MARTIN, 1998). Tal
definição remete a noção de “sujeito cerebral”, ou seja, a constituição do sujeito atribuída ao
funcionamento de seu cérebro (AZIZE, 2010).
38
Entendendo que as estratégias de controle se concentram nas
condições, nas interfaces e nos fluxos entre as fronteiras, e não na
integralidade do natural, a relação entre organismo e máquina tem sido uma
guerra de fronteiras que coloca em jogo os “territórios da produção,
reprodução e da imaginação” (HARAWAY, 2000, p.41-42). Para Donna
Haraway, assumir a responsabilidade pelas relações sociais da ciência e da
tecnologia significa a rejeição de uma metafísica anticiência, de uma
demonologia da “tecnologia, e portanto significa abraçar a delicada tarefa de
reconstruir os limites da vida cotidiana, em conexão parcial com outras”
(idem, p.108; RABINOW, 2002, p.153). Ela argumenta que o ciborgue pode
ser “uma forma de saída do labirinto dos dualismos por meio dos quais
temos explicado nossos corpos e nossos instrumentos” e que a sua imagem
pode construir ou destruir máquinas, identidades, categorias e relações
(HARAWAY, 2000, p.108).
13Como exemplo, trago a discussão difundida na mídia sobre a morte induzida do italiano Piergiorgio
Welby, de 60 anos de idade – abordada na dissertação. Segundo a reportagem Morte de italiano volta
foco à eutanásia (MORTE, 2006), Welby não movia nenhum órgão do corpo, com exceção dos olhos, e
estava conectado a um respirador artificial, em uma cama, desde 1997.
Welby foi presidente de uma associação de defesa dos doentes e já havia reivindicado à Justiça e, de
maneira oficial, aos seus médicos o direito de interromper o tratamento que o mantinha vivo
(MÉDICO, 2006). Conforme a reportagem, nos últimos meses, ele liderara uma campanha pelo seu
direito de morte e, em setembro, enviara um vídeo ao presidente italiano falando (através do
computador que sintetizou sua voz) de suas condições e pedindo o direito de morrer. No vídeo, que
foi transmitido pela televisão, ele dizia: Se eu fosse suíço, holandês ou belga, poderia aforrar este sofrimento.
Mas sou italiano, e aqui não existe piedade.
Depois de ter seu pedido negado por várias instâncias judiciais, o anestesista Mario Riccio desligou o
respirador artificial que mantinha o paciente vivo, mas primeiro ministrou um coquetel de sedativos,
nas suas palavras, “para que ele não sofresse com a falta de ar” (MÉDICO, 2006). Riccio alegou que a
suspensão do tratamento era a vontade do paciente: “Aceitei sua vontade de morrer”, declarou o médico. A
confirmação da morte de Welby ocorreu meia hora depois de desligado o aparelho. Sua irmã, Carla,
disse que tudo aconteceu “como ele queria”. Na Itália, o responsável pela eutanásia está sujeito a até 15
anos de prisão. Ver página 7 do anexo 1.
40
discursos médicos, abrange os mais variados fatores de risco, especialmente
em relação a questões de saúde e doença, juventude e longevidade. A
importância da noção de risco nas sociedades contemporâneas tem sido
abordada por inúmeros autores. Giddens (1991) sugere que a busca pela
segurança é possibilitada pela criação da confiança na previsão de
consequências contingentes, seja para evitá-las, seja para estabilizá-las.
Essa previsão torna também o indivíduo um objeto de reflexão. Ao assumir-
se como objeto de reflexão, o indivíduo passa a exercer decisões críticas
sobre si em busca de um resultado desejável, ou seja, uma consequência
prevista em razão da escolha de seu futuro modelo de corpo, juventude e/ou
padrão de saúde, por exemplo.
41
presente para colonizar o futuro. O risco implica acontecimentos futuros, o
que torna o futuro um novo “território de possibilidades contrafactuais” que
pode ser invadido e colonizado pelo “pensamento contrafactual e pelo cálculo
do risco” (idem, ibidem). Conforme o autor, as tendências globalizantes são
simultaneamente extensionais e intencionais, vinculando os indivíduos a
escalas locais e global, em que a exposição ao risco pode ser relacionada ao
ambiente de risco ou ao comportamento de risco e, ainda, à quantidade de
indivíduos afetados ou a consequências particulares para a vida de poucos
no futuro (GIDDENS, 2002). Nesse sentido, o risco atua como “uma regra
que permite ao mesmo tempo unificar uma população e identificar os
indivíduos que a compõem segundo um mecanismo de auto-referência” que
pressupõe que todos os indivíduos possam ser afetados pelos mesmos males,
ou seja, todos estão expostos e partilham as respectivas responsabilidades
(EWALD, 1993. p.97). Dessa forma, o risco pode ser entendido como uma
estratégia que normaliza (classifica e busca trazer para a normalidade) e
governa (pelo gerenciamento das condutas). Para Giddens (1991, p. 192), as
tendências globalizantes constituem um processo “simultâneo de
transformação da subjetividade e da organização social global, contra um
pano de fundo perturbador de riscos de alta consequência”, num futuro com
status de modelador contrafactual. Segundo ele:
43
Em outras palavras, a promoção da saúde é constituída por ações
preventivas, mas para isso se vale de ações educativas que visam ao
gerenciamento das condutas não apenas das pessoas que estão doentes,
mas de todos. Um exemplo de estratégia bastante utilizada para promover a
saúde são as campanhas de saúde. Estas podem atuar em favor do uso de
preservativos para evitar/prevenir doenças ou mostrando a importância da
amamentação, da prática de exames periódicos para medicalização
antecipada do câncer, de não fumar, de seguir uma dieta e de fazer
atividades físicas, por exemplo. Essas estratégias configuram formas de
buscar intervir ou normalizar o comportamento e os hábitos de vida de cada
indivíduo conforme as regras ou políticas de saúde e mercado vigentes.
Assim, o disciplinamento do indivíduo marca sua postura preventiva em
relação aos supostos riscos à sua saúde, mas, ao prevenir-se, ele estará
contribuindo ou promovendo a saúde e o bem-estar também de outros/
“todos” (CASTIEL, 1999; CZERESNIA, 2003).
Se a busca pela saúde está para além da sobrevivência, pois
compreende a qualificação da existência, para viver mais e melhor, promover
a saúde envolve escolhas que são regidas por escalas de valor que emergem
da articulação de múltiplas “verdades”, as quais constituem as
subjetividades e singularidades de eventos individuais e coletivos
(CZERESNIA, 2003).
44
A articulação de estratégias direcionadas à “autonomia” do sujeito e à
regulamentação da vida tem gerado um aumento dos cuidados de si em
relação à saúde. Isso demonstra que as estratégias do biopoder engendram o
nosso cotidiano e vida através da naturalização de suas “verdades”, que
atuam de modo a subjetivar os sujeitos.
14Conforme Czeresnia (2003, p.43), termos como vulnerabilidade têm sido “desenvolvidos e utilizados
cada vez mais no contexto das propostas de promoção da saúde”. Esses “quase conceitos” permitem,
além de abordagens articuladas a conceitos de outras áreas, múltiplas significações que emergem dos
acontecimentos individuais e coletivos.
45
investimento no incremento e na optimização da própria vida para fazer viver
por mais tempo – estendendo o tempo de vida “indeterminadamente” – e com
mais qualidade, remetendo à conquista do controle da mortalidade pela
redução dos riscos à saúde (RABINOW e ROSE, 2006, p.47;
VASCONCELLOS-SILVA; CASTIEL; BAGRICHEVSKY; GRIEP, 2010). A essa
noção de infinitude, as práticas biotecnológicas investidas no material
genético da vida e tudo o que pode estar ligado a elas, como as indústrias
privadas, o serviço nacional de saúde pública e companhias multinacionais,
acenam possibilidades de “nos tornarmos senhores de vida e de morte”
(RABINOW, 2002, p.10). Senhores, soberanos nas escolhas e decisões sobre
a criação de formas de vidas, em fazer viver por mais tempo, em recusar
determinadas formas de vida.
46
CAPÍTULO 2
ESTRATÉGIAS DE GOVERNAMENTALIDADE E
O PODER SOBRE O VIVER/MORRER... ONDE
N O S L E V A O E X E R C Í C I O D A S “ V E R D A D E S 15” ?
P AR A F O U C A UL T , O H OM EM É , A O M E SM O TEM P O , SU J EI TO E OB J E TO DO S E U
T AN TO N O P R OC E S S O DE O B JE TI V AÇ ÃO Q U AN TO N O P R O C ES S O DE
S U BJ E TI V A Ç ÃO , É O I N V E S TI M EN T O P O L Í TI CO S OB R E A VI DA Q U E P OS SI BI LI T A A
15 A imagem desse capítulo foi escolhida por tratar-se da inseminação artificial, estratégia utilizada
para driblar a infertilidade e possibilitar o viver.
47
CAPÍTULO 2
49
Para Foucault, a crítica não é uma premissa, mas um instrumento
para ser usado nos processos de conflitos, enfrentamentos e tentativa de
recusa; “é um desafio em relação ao que é” (FOUCAULT, 2003b, p.349). E,
nesse desafio em relação ao que “é”, pelo uso da crítica, produzem-se
desconfianças e dúvidas, como, por exemplo: como as coisas ditas “reais”
acontecem no interior dos discursos?
16Nessa perspectiva, estratégias discursivas são os “fatos de discurso, não mais simplesmente sob seu
aspecto lingüístico, mas, de certa forma como jogos (games), jogos estratégicos, de ação e de reação, de
pergunta e de resposta, de dominação e de esquiva, como também de luta” (FOUCAULT, 2005, p.09).
50
A noção de governo empregada neste estudo compreende a
estruturação do eventual campo de ação das pessoas. Nesse entendimento, o
governo não se restringe apenas às estruturas políticas e à gestão dos
Estados, mas designa a “maneira de dirigir a conduta dos indivíduos ou dos
grupos” (DREYFUS e RABINOW, 1995, p.244). Nas relações sociais, em que
funcionam as diversas e particulares maneiras de governo dos indivíduos,
atuam práticas/técnicas de modo a objetivar e também subjetivar,
constituindo tanto conhecimentos e ações direcionadas ao sujeito quanto “a
maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si mesmo em um jogo de
verdade” (FOUCAULT, 2006a, p.236). Essa mútua relação com os jogos de
“verdade” – as regras que fazem o sujeito dizer o que é da ordem do
verdadeiro e do falso, do certo e do errado... – torna a objetivação e a
subjetivação dependentes uma da outra (idem). Enfim, para Foucault, a
“sobreposição dos mecanismos de objetivação e de subjetivação presentes na
atualidade define a forma da individualidade no presente” (FONSECA, 2003,
p.142-143).
51
Ou seja, o discurso próprio de um determinado período possui uma função
“normativa e reguladora e coloca em funcionamento mecanismos de
organização do real por meio da produção de saberes, de estratégias e de
práticas” (REVEL, 2005, p.37). Nesse sentido, a análise de ordem discursiva
trata de buscar
17Entendendo o poder como algo que "não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe
em ação”; esse poder só existe em relação entre uma pessoa ou um grupo de pessoas e outra pessoa ou
grupo (FOUCAULT, 2002b, p.175). Não é repressivo, negativo e violento. “O que faz com que o poder
se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas de
fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso” (idem, p.8). “Deve-se
considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma
instância negativa que tem por função reprimir” (idem, ibidem). Segundo Foucault, “o poder não é do
mal. O poder são jogos estratégicos (...), em que as coisas poderão se inverter” (FOUCAULT, 2006b,
p.284).
52
verdade/poder e saber/poder deve considerar os sujeitos, os objetos e os
procedimentos de conhecimentos como tantos outros efeitos dessas relações
(FOUCAULT, 2004).
18Para Foucault, a atenção é um “instrumento de luta”, pois “o olhar não sobrevoa um campo: ele bate
em um ponto, que tem o privilégio de ser o ponto central ou decisivo [...]; o olhar vai direto: ele
escolhe, e a linha contínua que ele traça opera, em um instante, a divisão do essencial; ele vai além do
que se vê; as formas imediatas do sensível não o enganam; pois ele sabe atravessá-las; ele é
desmistificador” (FOUCAULT apud ARTIÈRES, 2004, p.27). “O olhar é mudo como um dedo
apontado, e denuncia” (idem. ibidem).
19Ao compreender-se o “discurso como prática”, assume-se não haver separação entre a prática do
pensar e do agir, ou seja, o pensar é entendido como uma ação (FOUCAULT, 1995b, p.56).
54
[...] somos julgados, condenados, classificados, obrigados a
desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver
ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem
consigo efeitos específicos de poder (FOUCAULT, 2002b,
p.180).
55
2.2. Sobre as estratégias metodoló gicas e os objetos de análise
56
os meios de comunicação (jornais, revistas, rádio, televisão, Internet...)
geram profundos efeitos na arte de gerenciar e conduzir a vida cotidiana das
pessoas (WITT, 2007).
21Conforme a reportagem intitulada Mãe diz que filha anencéfala foi "presente divino"; médicos acusam erro
de diagnóstico (Folha SP, 26/08/2008), “estima-se que a Justiça brasileira já tenha permitido, nos
últimos 15 anos, ao menos 5.000 abortos de fetos anencefálicos [ou anencéfalos]”. Na reportagem,
consta que anencéfalo “é aquele de má-formação por defeito do fechamento do tubo neural durante a
gestação, que não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, o que o leva à morte intra-uterina em
65% dos casos, ou a uma sobrevida de, no máximo, algumas horas após o parto”. Ver página 10 do
anexo 1.
22Segundo a reportagem intitulada Bebê teve má-formação rara confundida com anencefalia, dizem médicos
(ZH, 28/08/2008), “ela tinha um defeito menos grave na formação do crânio e o resquício de cérebro
presente, ao contrário dos anencéfalos, que não têm nada, é coberto com uma membrana chamada
cerebrovasculosa. (...) há apenas dez casos descritos de merocrania na literatura médica. E que se trata
de um diagnóstico que também caracteriza a morte cerebral — apesar de, por causa da presença dessa
membrana, o feto poder ter uma sobrevida vegetativa”. Ver página 12 do anexo 1.
59
determinadas “verdades” associadas ao aborto, partindo de alguns
questionamentos: que discursos têm validado e justificado as “verdades”
difundidas nos jornais? Quem fala e de que lugar fala? Que posições de
sujeito aparecem em tais práticas discursivas?
60
ao trazer tais “verdades” (que informam ou indicam riscos e prevenções,
propõem tendências, insistem ou repetem argumentações prescritivas,
enfatizam práticas), pode operar como uma estratégia de saber/poder
implicada na constituição de formas de pensamento, na prescrição de
hábitos e de comportamentos em relação à promoção da saúde, da beleza e
da longevidade, por exemplo.
23 Reportagem pode ser considerada como uma ação (“atividade jornalística que basicamente consiste
em adquirir informações sobre determinado assunto ou acontecimento para transformá-las em
noticiário”) ou o resultado dessa ação, “que é veiculado por órgãos da imprensa (escrito, filmado,
televisionado)” (HOUAISS apud ROCHA, 2005, p.31). Uma reportagem, enquanto resultado da ação
jornalística (produto veiculado) também é chamada de matéria jornalística (ROCHA, 2005, p.31).
Outros conceitos ligados ao Jornalismo – artigo, nota informativa, lead (as primeiras duas linhas de
uma notícia), notícia, etc. – também poderiam ser aqui utilizados (idem, ibidem). Tal como Rocha,
neste estudo, apesar das diferenças existentes entre elas, utilizarei particularmente (e de forma
indistinta) as expressões “reportagem”, “matéria” ou “notícia” como o resultado da ação do jornalista.
61
presente remetendo assim a noção de história do presente. Para demonstrar
esses trajetos, tracei o esquema a seguir:
Ao conhecer as “categorias”/instâncias
articuladas ao tema aborto, busquei
conhecer as estratégias biopolíticas de Tecnologias biomédicas e as possibilidades de
governo das condutas e investigar como intervenção, utilização e produção do viver e do
elas operavam nessas instâncias, a fim de morrer do embrião: formas de maternidade e
compreender os diversos níveis de aborto.
atuação do biopoder e dar-lhes
visibilidade.
Anencefalia: possibilidades e justificativas para:
interrupção da gravidez ou “aborto”; doação de
órgãos e utilização dos tecidos do anencéfalo na
promoção do viver.
Para isso, problematizei:
- algumas transformações que vêm
ocorrendo em relação às formas como se
lida com práticas ligadas ao aborto e à Constituição e aprovação da lei que autoriza a
vida/morte e como se fala delas; cirurgia de antecipação do parto ou “aborto”
- como essas noções vêm sendo como prática terapêutica na prevenção dos
modificadas/construídas; riscos causados pelo feto anencefálico à mulher.
- as implicações dessas noções no governo
dos corpos para a vitalidade e na produção
e determinação de “verdades” que
constituem as subjetividades em relação ao
aborto e ao viver/morrer;
- a possibilidade de relação entre essas
formas de governo e as noções eugênicas.
62
Para pensar e analisar as práticas implicadas na constituição de
determinadas noções e sentidos atribuídos ao corpo e à vida/morte
difundidos pela mídia impressa na sociedade brasileira, utilizei como
ferramentas as contribuições e os olhares de autores como: Michel Foucault,
Hubert Dreyfus, Paul Rabinow, Rosa Fischer, Paula Sibilia, Jorge Larrosa,
Fabíola Rohden, Nikolas Rose, Luís H. S. Santos, Luis Castiel, Anthony
Giddens, Dagmar Meyer, Deborah Lupton, Nancy L. Stepan e Lucila
Scavone, Zygmunt Bauman, entre outros.
63
Entre os locais pesquisados, estão o Instituto de Bioética, Direitos
Humanos e Gênero24 (Anis), a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul25
(Ajuris) e Ipas26. Também pesquisei publicações de diversas áreas do
conhecimento, como, por exemplo, educação, direito, comunicação,
sociologia, psicologia, medicina, biologia, enfermagem e antropologia,
acessadas por diversas bibliotecas eletrônicas: Scientific Electronic Library
Online (Scielo – biblioteca eletrônica que abrange uma coleção selecionada
de periódicos científicos brasileiros), Portal Domínio Público (biblioteca
digital de amplo acesso às obras), banco de teses do portal da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES - agência de
fomento à pesquisa que atua em todos os estados do país), Sistema de
Automação de Bibliotecas da Universidade (SABi/UFRGS) e Biblioteca
Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), entre outras.
Foucault diz que essa ideia de que os “homens são governáveis é uma
ideia que certamente não é grega”, nem romana, mas dos pastores hebreus,
65
pois a “ideia e a organização de um poder pastoral” é um tema encontrado
“em todo o Oriente mediterrâneo” (FOUCAULT, 2008b, p.165-166, 2003c,
p.358). Ao traçar uma genealogia das modernas formas de governar, o autor
fala das transformações e ressignificação das práticas pastorais, na
constituição do Estado moderno, para o governo dos indivíduos, agora não
mais com vistas à salvação fora deste mundo, mas neste mundo através da
saúde, da educação, do trabalho, enfim, de todas as práticas que nos fazem
ovelhas – “a se deixar governar por outros” – ou pastores – “a governar os
outros” (FOUCAULT, 2008b, p.200).
67
que possibilitam a condução das suas condutas (CANDIOTTO, 2010;
FOUCAULT, 2003c).
68
[...] me pergunto se não se pode considerar a modernidade
mais como uma atitude que como um período da história. Com
atitude quero dizer um modo de relação a respeito da
atualidade, uma eleição voluntária que fazem alguns; enfim,
uma maneira de pensar e de sentir, também uma maneira de
construir e conduzir-se que marca uma pertença e por sua vez
se apresenta como uma tarefa. Um pouco, sem dúvida o que
os gregos chamavam de éthos (FOUCAULT apud CASTRO,
2006, p.76).
69
2 . 4 . Vida como objeto e finalidade para a potencialização e
manutenção dos governos
70
Os interesses coletivos, ao agregarem-se, dão força ao Estado; por isso,
é importante que sejam de seu conhecimento. Conhecer tais interesses torna
possível “dirigir para determinada região ou para uma determinada atividade
os fluxos de população” (FOUCAULT, 2002b, p.289). A população, como
objeto de governo, aparece
71
direito passam a constituir uma “população que um governo deve
administrar”. A biopolítica, como nova razão governamental, tem como
quadro geral o liberalismo (FOUCAULT, 2008a, p.30).
72
2.5. Formas de gerenciamento do capital humano:
disciplinamento e as “verdades” sobre o corpo , a vida/morte e
os “desvios”
73
A norma disciplinar consiste em tentar definir as pessoas, seus gestos
e atos a partir de um modelo que é deduzido do normal. Nesse processo, a
norma é anterior, gerando um processo de normação (idem).
75
investimentos e/ou tentativas de governamento. Afinal, deixando-se de
conduzir o viver segundo a exclusividade das “verdades” determinadas por
estratégias biopolíticas de governo – da área médica, publicitária, jurídica,
mercadológica, religiosa, por exemplo –, penso que seja possível fazer
prevalecer, ao governo dos outros, o governo de si por decisões e escolhas
refletidas – uma ética própria (CANDIOTTO, 2010).
76
CAPÍTULO 3
A ED U C AÇ Ã O É O M O DO CO M O A S P E S SO A S , A S I N S TI T UI Ç Õ E S E
A S SO C I ED A DE S R E S P O N DE M À CH E G AD A D AQ U EL E S Q UE N A S C EM .
A ED U C AÇ Ã O É A F O R M A C OM Q U E O M U N DO R EC E B E O S Q UE N A SC EM
A S P E S SO A S S A BEM A QU I L O Q U E F A Z E M ; F R EQ Ü EN T EM EN TE S A BE M P O R Q U E
F AZ EM O Q UE F AZ EM ; M AS O Q U E I G N OR A M É O EF EI T O P R O D U Z I DO P OR
27Escolhi esta imagem da mulher grávida e do feto porque as discussões neste capítulo se referem às
práticas dirigidas a eles.
77
CAPÍTULO 3
78
Dessa proposição, tomo as palavras de Stepan (2005, p.23) para falar
da importância da gestão da vida da mulher na constituição da sociedade. A
autora comenta que, na conformação dos “papéis reprodutivos dos homens e
mulheres”, aparece como responsabilidade coletiva o papel social da mulher,
o qual, em seu aspecto político e normativo, passa a ser definido pela
reprodução. Assim, ao falar-se da preocupação com a constituição e gestão
da população, aparece no foco da discussão a sexualidade como elemento
principal da reprodução humana, ou seja, a qualidade dessa reprodução, em
que atuaram e atuam a ciência e as políticas sociais. Para Foucault, “na
junção entre o corpo e a população, o sexo tornou-se o alvo central de um
poder que se organiza em torno da gestão da vida, mais do que da ameaça de
morte” (FOUCAULT, 2007, p.160).
28Eugenia (do grego eugen-s, “bem nascidos”, “boa geração”) foi uma palavra inventada por Francis
Galton em 1883, cientista britânico, geógrafo e “precursor da estatística”, primo e adepto de Charles
Darwin (SIBILIA, 2003). Escreveu o livro Heredity Genius em 1869. A partir de estudos estatísticos e
genealógicos, pretendia aperfeiçoar a espécie pela seleção dos cruzamentos, a fim de criar um ser
“superior” (idem). Em relação à diversidade, promoveu a detecção dos anormais pelo uso de padrões
da distribuição definidos estatisticamente como norma, transformando, então, a eugenia em
movimento social e científico. Retornarei mais detidamente à discussão da eugenia no seguimento do
estudo.
79
da articulação da preocupação com o sangue e da gestão da sexualidade na
composição da população (FOUCAULT, 2007). O sangue coloca-se ao “lado
da lei, da morte, da transgressão, do simbólico e da soberania”, e a
sexualidade, ao lado “da norma, do saber, da vida, do sentido, das
disciplinas e das regulações” (FOUCAULT, 2007, p.161; CASTRO, 2009,
p.58).
81
comercialização do corpo sexuado e ao direito à sexualidade, que se afirma
em 1960 (SOHN, 2008). De acordo com Perrot (2003), as revistas feministas
exerceram significativo papel na difusão de novos comportamentos. Desde
1900, objetos variados, tais como automóveis e alimentos, são associados ao
“encanto” da mulher, e, “ainda hoje, o corpo feminino, silencioso e
dissecado, continua sendo o principal suporte da publicidade” (PERROT,
2003, p.15).
84
Discursos atuais assemelham-se aos daquele período, como podemos
perceber neste excerto retirado do artigo intitulado Índice de natalidade,
publicado no site da CNBB no dia 08 de dezembro de 2009:
29 Relacionado a essas questões, é pertinente mencionar uma reportagem que trouxe a discussão da
condenação à morte de mulheres infiéis no Irã e que motivou uma grande campanha internacional.
Trata-se da recusa à proposta de asilo no Brasil de uma mulher de 43 anos e mãe de dois filhos,
condenada em 2006 por ter mantido um relacionamento ilícito com dois homens. Foi sentenciada no
ano de 2006 a receber 99 chicotadas, porém seu caso foi reaberto quando a Justiça iraniana a acusou de
ter matado o marido. Inocentada desse crime, teve a pena relativa ao adultério reconsiderada e foi
sentenciada a morrer apedrejada. Após a mobilização de diversos países, o governo do Irã mudou a
sentença para morte por enforcamento. Hoje, seu caso ainda está com a sentença indefinida.
Reportagem: Condenação à morte: Irã rejeita apelo de Lula (ZH, 04/08/2010). Ver página 13 do anexo 1.
Essa situação mostra-nos que, ainda hoje, o corpo feminino deve ser disciplinado de forma a controlar
seus comportamentos, caso contrário, pode ser condenado à morte ou a diversos tipos de punição
morais ou físicas – outras formas de anulamento dos problemas causados por sua existência. Nesse
sentido, existir é estar condicionado às leis constitucionais e religiosas regulamentadas em cada país,
as quais governam legitimamente o viver e o morrer dos sujeitos ditos cidadãos – como exemplo, tem-
se o exercício da pena de morte em diversos países (parte dos Estados Unidos, Caribe, Ásia, África e
Guatemala), a qual, em comparação à sentença de morte dessa mulher, não tem sido alvo de uma
discussão e manifestação tão destacada em relação à morte do sujeito.
30Reportagem: Mãe que jogou bebê em rio é indiciada por homicídio (ZH, 11/10/2007). Ver página 14 do
anexo 1.
87
indiciamento das mulheres por homicídio como forma de punição diante do
crime cometido contra a recém-nascida. Trouxe esse excerto na tentativa de
chamar a atenção para o modo como vem se agindo, ainda nos dias de hoje,
em relação àquelas atitudes das mulheres que “fogem” ao instituído para a
sua “natureza” no cuidado com os filhos, o que gera ações soberanas do
Estado para controlar e punir as perturbações e os crimes causados ou
ligados às mulheres.
88
3.2. Profilaxia social ou prevenção moral do aborto
terapêutico: crime contra a vida do feto, futuro cidadão
89
embrião” (idem, p.64). Essa autoridade científica, além de prever a prática do
aborto terapêutico, servia para condenar o chamado aborto criminoso.
90
impediria o progresso e colocaria em “risco a soberania da nação” (ROHDEN,
2003, p.81; THÉBAUD, 2003). Costa Junior termina seu estudo
relacionando o aborto à moral pública, à proteção da família, à probidade
profissional e ao futuro do país, dizendo que o “nosso país necessita de seus
filhos para atingir rapidamente o glorioso futuro a que está destinado”
(COSTA JUNIOR apud ROHDEN, 2003, p.81; THÉBAUD, 2003).
91
Essa mulher passa a representar o “‘perigo’ da disjunção entre sexo,
reprodução e maternidade, do ponto de vista de boa parte dos médicos”
(idem, p.86). Em um contexto político em que “a população adquiria cada vez
mais importância”, os médicos passaram a investir “menos no ‘tratamento’
individual e mais em campanhas de condenação do aborto e da
contracepção e de valorização da maternidade” (idem). A estratégia
biopolítica de governo atuou, desse modo, na passagem do século XIX para o
XX, através da evocação de discursos sobre o perigo que estas práticas
representavam para o “projeto nacional de construção de um povo numeroso
e saudável” (idem, ibidem).
31 Reportagem: Juízes defendem mudança na lei do aborto (Folha SP, 17/09/2008). Ver página 15 do anexo
1.
92
Outros 16,8% dos juízes se disseram favoráveis à
descriminalização do aborto, independentemente da
circunstância, totalizando 78% favoráveis a mudanças na lei.
No estudo, 12,5% dos promotores disseram ser favoráveis à
não-punição em qualquer caso e 3,2% opinaram que a prática
nunca deveria ser permitida.
No caso dos magistrados, 7,3% disseram que a prática do
aborto não deve ser permitida sob qualquer circunstância.
O juiz Torres, da Vara do Júri de Campinas (SP), defendeu a
descriminalização da prática. "Vivemos sob uma ilegalidade
consentida. O aborto deve ser tratado como problema de saúde
pública, e não enfrentado dentro do sistema criminal."
Segundo ele, há poucos casos de abertura de inquéritos para
apurar casos de aborto por má-formação fetal. "Sou a favor da
descriminalização em qualquer hipótese, mas enquanto isso
não acontece, que sejam pelo menos descriminalizados os
casos de má-formação fetal."
34Idem nota 33. Reportagem: Autorizada interrupção de gestação de bebê anencéfalo em Porto Alegre (ZH,
29/08/2008). Ver página 16 do anexo 1.
35ABORTO, 2008. Reportagem: Aborto de anencéfalos é liberado pela Justiça em 54% dos casos (ZH,
01/09/2008). Ver página 17 do anexo 1.
Há desdobramentos posteriores, no capítulo 5, sobre a anencefalia.
36GUIMARÃES, 2009. Reportagem: Abortos com amparo legal crescem 43% (Folha SP, 23/01/2009). Ver
página 17 do anexo 1.
37Aborto inseguro: um problema de saúde pública. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/sau-
de/visualizar_texto.cfm?idtxt=22411>.
94
uma modificação na lei para ampliar e descriminalizar a prática do aborto,
tornando-o legal se referido à promoção da saúde da mulher e à
caracterização do feto com má-formação como um anormal, um monstro,
evidenciando o risco de deixá-lo viver. Porém, mesmo com as possíveis
anormalidades, o feto não deixa de apresentar-se como uma forma de vida;
esse é o grande problema, pois gera incompreensão e angustiantes
divergências institucionais sobre o viver/morrer.
Infanticídio
Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o
próprio filho, durante o parto ou logo após: pena - detenção,
de dois a seis anos.
Aborto provocado pela gestante ou com seu
consentimento
Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir
que outrem lho provoque: pena - detenção, de um a três anos.
Aborto provocado por terceiro
Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da
gestante: pena - reclusão, de três a dez anos.
Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da
gestante: pena - reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior se a
gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil
mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave
ameaça ou violência.
Forma qualificada
Art. 127 - As penas combinadas nos dois artigos
anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência
do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a
gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são
duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a
morte.
Não é crime o aborto que é praticado por médico nos
casos de risco para gestante ou estupro da mãe, conforme o
Art. 128 que diz: Não se pune o aborto praticado por médico:
- Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
- Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
95
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é
precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz,
de seu representante legal38.
F U T UR O É O R E S U L T A DO D E UM JO G O D E
F OR Ç AS Q U E SE D Á N O P R E SEN T E ,
N A S Q UAI S P O D EM O S A T U AR E I N T ER VI R
P AR A I N V EN T AR N OV A S F OR M A S D E
VI D A E N OV A S
EX P ER I ÊN CI A S S OCI A I S …
(BRANCO, 2008)
39Esta imagem é adaptada da obra Grávida no Espelho de Marília Chartune Teixeira. Trouxe-a para a
abertura do capítulo, porque remete a uma visão idealizada da maternidade em contraposição a
outras percepções do corpo da mulher grávida por ela mesma e por outros indivíduos, instituição
científica, médica, religiosa, etc.
97
CAPÍTULO 4
98
Inicio este capítulo com a apresentação dos dados divulgados numa
reportagem40, com a intenção de apontar as temáticas de matérias que têm
sido veiculadas e as discussões que pretendo traçar para pensar sobre os
posicionamentos assumidos nos debates, ações e intervenções diante do
aborto autorizado no caso de estupro.
40Reportagem: 64% dos abortos com amparo legal são consequência de estupro (Folha SP, 14/03/2009). Ver
página 19 do anexo 1.
99
De acordo com a norma, em casos de gravidez decorrente de violência
sexual, o Código Penal estabelece que a realização do aborto não se
condiciona a uma decisão judicial que sentencie e decida se ocorreu estupro
ou violência sexual. A lei penal brasileira também não exige autorização
judicial para a realização do abortamento, nem a apresentação de
documentos, como o Boletim de Ocorrência Policial e o laudo do Exame de
Corpo de Delito do Instituo Médico Legal. Assim, “não há sustentação legal
para que os serviços de saúde neguem o procedimento caso a mulher não
possa apresentá-los” (BRASIL, 2011, p.71). Porém, tal consentimento para
menores de 18 anos exige outras medidas; afinal, existem limitações etárias
para o exercício dos direitos civis. Essas situações suscitam dúvidas e
receios entre profissionais de saúde do ponto de vista ético e legal.
41 GUIBU, BATISTA, 2009. Reportagem: Homem acusado de violentar enteadas diz que meninas o
provocavam, afirma polícia (Folha SP, 27/02/2009). Ver página 20 do anexo 1.
100
destaque na semana passada por conta da excomunhão, pelo
arcebispo42.
42Reportagem: Marcha em São Paulo lembra excomunhão devido a aborto (Folha SP, 09/03/2009). Ver
página 22 do anexo 1.
43 Reportagem: Excomunhão divide opiniões no Vaticano (Folha SP, 16/03/2009). Ver página 23 do anexo
1.
44 Disponível em: <http://catolicasonline.org.br/>. Acesso em: 18.07.2010.
101
Apesar da relevância dessas questões, esses movimentos não foram
muito explorados e divulgados nos jornais Zero Hora e Folha de SP. A ênfase
nas reportagens foi dada às polêmicas geradas em torno da excomunhão
religiosa, dando visibilidade aos debates sobre a legalidade e ilegalidade do
aborto no Brasil. O caso teve repercussão em jornais internacionais45, como,
por exemplo, The New York Times, El Pais, Le Figaro e Fox News.
45 Reportagem: Igreja critica aborto feito por menina de 9 anos violentada em PE; veja repercussão
internacional (Folha SP, 06/03/2009). Ver página 24 do anexo 1.
46Excomunhão é uma penalidade que consiste em excluir alguém da totalidade ou de parte dos bens
espirituais comuns aos fiéis. Coloca alguém fora da comunhão, ou seja, exclui a participação da pessoa
em grupo ou comunidade. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br>. Acesso em: 04.12.09.
102
Nas reportagens, as falas trazem para o cenário social embates entre
soberanos, religiosos, médicos (os experts) e os políticos, cujas “verdades” se
direcionam tanto para o controle quanto para a concessão ou não do direito
de vida/morte dos fetos e da gestante/menina neste mundo e, talvez,
pretensamente, em outro mundo. Nesse sentido, tais falas tornam visíveis as
lutas travadas num jogo de poder voltado ao governo de uns em relação a
outros a partir das “verdades” que têm regido as decisões e ações das
pessoas no seu viver.
47GUERREIRO, 2009. Reportagem: Para CNBB, excomunhão não vale para mãe de menina estuprada por
padrasto (Folha SP, 12/03/2009). Ver página 27 do anexo 1.
48CARDEAL, 2009. Reportagem: Cardeal do Vaticano defende excomunhão da mãe de menina que fez aborto
(Folha SP, 08/03/2009). Ver página 29 do anexo 1.
103
de degradação da estrutura da sociedade49” (LULA, 2009a; LULA, 2009b).
Diante desse comentário, o arcebispo disse que “o presidente deveria
procurar assessoria teológica para falar com mais propriedade sobre religião”
(CARDEAL, 2009; ARCEBISPO, 2009a).
49LULA, 2009a. Reportagem: Lula critica excomunhão e defende medicina em caso de aborto de menina em PE
(Folha SP, 06/03/2009).
LULA, 2009b. Reportagem: Lula: caso de menina violentada em PE mostra "degradação da estrutura da
sociedade"( ZH, 06/03/2009). Ver página 30 do anexo 1.
50 GUERREIRO, 2009. Idem nota 47.
104
de governamento se repete na fala do secretário da CNBB, pois para ele o
arcebispo não excomungou ninguém, “apenas lembrou uma norma em que a
pessoa se coloca fora da Igreja ao cometer um determinado ato”
(GUERREIRO, 2009). Desse modo, quem agir de forma a não obedecer aos
preceitos da Igreja, será punido com a expulsão, ou seja, será banido de seu
rebanho. Para Dom Geraldo, “a excomunhão não é só para punir, mas para
que quem praticou o ato possa perceber a gravidade e buscar sua
reconciliação” (GUERREIRO, 2009). A reconciliação ocorre pela confissão e
pelo arrependimento: “podem ser perdoados se mostrarem
arrependimento51” (ARCEBISPO, 2009a). Nas palavras do pastor das almas:
“os excomungados podem deixar a condição e, se se arrependerem, ser
absolvidos em confissão52” (BAPTISTA, ODILLA, 2009).
51ARCEBISPO, 2009a. Reportagem: Arcebispo do Recife diz que Lula deve procurar teólogo (ZH,
07/03/2009). Ver página 32 do anexo 1.
52BAPTISTA, ODILLA, 2009. Reportagem: Arcebispo afirma que aborto é mais grave que estupro. (Folha
SP, 07/03/2009). Ver página 33 do anexo 1.
53 Reportagem: Mãe de menina que abortou é indiciada (Folha SP, 28/03/2009). Ver página 34 do anexo 1.
54 GUERREIRO, 2009. Idem nota 47.
ARCEBISPO, 2009b. Reportagem: Arcebispo diz que suspeito de violentar menina não pode ser excomungado
(ZH, 06/03/2009). Ver página 35 do anexo 1.
105
porque elas já não comungam com o pensamento cristão, que
é em defesa da vida56”.
55Nascituro é uma terminologia jurídica para descrever o feto ainda no útero da mulher (ANIS, 2004,
p.99).
56 CNBB, 2009a e CNBB, 2009b.
CNBB, 2009a. Reportagem: CNBB afirma que arcebispo de Olinda não excomungou envolvidos no aborto de
criança em PE. (Folha SP, 12/03/2009).
CNBB, 2009b. Reportagem: CNBB apoia excomunhão dos envolvidos no aborto de criança pernambucana
(ZH, 12/03/2009). Ver página 36 do anexo 1.
57 Idem nota 53. Reportagem: Mãe de menina que abortou é indiciada (Folha SP, 28/03/2009). Ver página
34 do anexo 1.
58 Decreto-Lei No 2.848, de 7 de dezembro de 1940 do Código Penal, no capítulo que trata dos crimes
62 Idem nota 52. BAPTISTA, ODILLA, 2009. Reportagem: Arcebispo afirma que aborto é mais grave que
estupro. (Folha SP, 07/03/2009). Ver página 33 do anexo 1.
63ARCEBISPO, 2009c. Reportagem: Arcebispo não teve pena da criança que interrompeu gravidez, afirma
médico de Recife (PE) (Folha SP, 06/03/2009). Ver página 39 do anexo 1.
64Reportagem: Dom Antônio Saburido toma posse como arcebispo de Recife (Folha SP, 17/08/2009).
Reportagem: Vaticano substitui arcebispo de Recife (Folha SP, 02/07/2009). Ver página 40 do anexo 1.
108
seu corpo, passa a ser visto como autossuficiente, racional, autônomo.
Diante do conhecimento ou da tomada de “consciência” das “verdades”, o
sujeito torna-se responsável por tudo que vier a lhe acontecer.
Para tentar finalizar esta seção, destaco que, por um lado, o episódio
narrado mostra a produção de um olhar “curioso” sobre a noção de
acolhimento e proteção religiosa, com os posicionamentos contrários à
interrupção da gravidez da menina vítima de estupro por parte da Igreja
Católica. Por outro lado, mesmo com efeitos contrários aos defensores do
aborto, apresentando um debate marcado por questões morais e
conservadoras em relação às mulheres, esse caso promoveu a constituição
de uma ampla defesa pelo direito ao aborto legal como exercício de um
direito. Além disso, possibilitou a emergência de considerações e
questionamentos sobre o exercício das leis, da ética e das políticas de saúde
e de Estado.
110
4.2. No plano da invisibilidade: mortos simbólicos
111
cidadãos de “bem” são amplamente divulgadas, marcando as diversas
posições e os diversos governos de uns sobre os outros. Nesse sentido,
existem modelos do viver que fogem às regras do mercado e que interferem
diretamente na economia – estes são os que vivem a pobreza “absoluta”. Não
consomem, pois estão num “limiar abaixo do qual se considera que as
pessoas não têm uma renda decente capaz de lhes proporcionar um
consumo suficiente”, o que se torna um problema, pois, além de não
consumir, causam despesas ao Estado (FOUCAULT, 2008a, p.282).
68Reportagem: Legalização do aborto será avaliada na Conferência Nacional de Saúde (ZH, 16/11/2007). Ver
página 47 do anexo 1.
69Reportagem: Conferência de Saúde rejeita descriminalização do aborto (ZH, 19/11/2007). Ver página 48
do anexo 1.
113
proponham projetos que facilitem ou estimulem ações como o
aborto ou a eutanásia. Com isso, a Igreja pretende
desestimular eleitores católicos a votar em candidatos ligados
a assuntos contrários aos dogmas religiosos70.
70Reportagem: Igreja tem o direito de opinar, afirma CNBB (Folha SP, 28/04/2009). Ver página 49 do
anexo 1.
114
como um espaço de expressão de uma única confissão religiosa” (CASTIEL,
2010; RAYMUNDO, 2010, p.182).
115
discriminação direta ou indireta contra os seres humanos71
(DECLARAÇÃO, 2012).
Reportagem: Aborto em clínica clandestina descoberta na Capital custava até R$ 2,5 mil (ZH, 17/06/2008).
72
73Reportagem: Médico é preso pela 3ª vez acusado de aborto. Militar foi acusado de praticar aborto desde 1990
(Folha SP, 14/08/2009). Ver página 51 do anexo 1.
118
prover um filho, a exemplo do seguinte trecho, que relata as escolhas feitas
devido às condições de existência.
74Reportagem: "Não tinha a menor condição de criar mais um", diz empregada (Folha SP, 20/05/2007). Ver
página 52 do anexo 1.
119
"Eu visitei hospitais no Brasil onde a metade das mulheres
tinha o bebê com uma alegria entusiasta e a outra metade
lutava pela vida, após um aborto frustrado".
[...] "nós consideramos o planejamento familiar uma parte
muito importante da saúde das mulheres, e a saúde da
reprodução inclui o acesso ao aborto que, a meu ver, deve ser
seguro, legal e incomum75."
75Reportagem: Hillary Clinton cita Brasil para denunciar males do veto ao aborto (Folha SP, 22/04/2009).
Ver página 53 do anexo 1.
76Nas referências 3 e 4, trago indicações de sites de algumas dessas organizações e de vídeos com
documentários sobre o aborto no Brasil.
77 “Para muitas mulheres, a eficácia do misoprostol como método abortivo depende do acesso
imediato a hospitais para a finalização do aborto” (BRASIL, 2009, p.33). O misoprostol tem circulação
restrita no país e é “proibido para fins abortivos fora de indicações médicas controladas” (idem,
ibidem). A comercialização e circulação do misoprostol são desconhecidas, mas dados iniciais
mostram que essa “substância segue o do tráfico de drogas ilícitas” (idem, ibidem). Este medicamento
“entrou no mercado brasileiro em 1986 para tratamento de úlcera gástrica, e até 1991 sua venda era
permitida nas farmácias” (idem, p.35).
120
certeza da decisão de interromper a gravidez; afinal, a complexa decisão de
interromper uma gravidez inclui questões emocionais, morais e de agressão
ao corpo (MATOS, 2010, p.80). Nesse período, a mulher “tem direito a
atendimento de aconselhamento” com psicólogos ou profissionais de serviço
social e todo atendimento é feito gratuitamente em hospitais públicos (idem,
ibidem).
Legenda do mapa:
Você tem uma lei [...] isso é lei, né? Você foi violentada, tem
gravidez que você não quer, tem direito. Ou um filho
malformado, você tem direito. Agora me pergunta em qual
sistema de saúde oficial você pode fazer isso com facilidade.
Eu não conheço. As pessoas continuam procurando
alternativas. Se você tem alguma grana, você tem quem te
empreste, vai num troço bem feito. Se não tem, você vai pra
onde [...] (PONTES, 2006, p.75).
Já “Berilo” falou:
79A pesquisa de Juliana Silva Pontes, intitulada Histórias de vida de mulheres que provocaram abortamento:
contribuições para a enfermagem, desenvolveu-se num Hospital Universitário do Rio de Janeiro. A autora
atuou nessa instituição durante a graduação em enfermagem e conseguiu aproximar-se das mulheres
e entrevistá-las porque participou do serviço de consulta de enfermagem ginecológica junto da
profissional responsável.
122
Não falava isso pra ninguém, nem para as minha amigas da
faculdade, pra minha família. Não falei isso pra ninguém
(PONTES, 2006, p.69).
123
Outra questão relativa ao atendimento do serviço de saúde que não se
fez presente nas edições dos jornais analisados relaciona-se ao modo como
as mulheres que abortam têm sido tratadas nesses espaços. O jornal Correio
Braziliense trouxe a discussão desse tema a partir da pesquisa80 de tese
intitulada: Mulheres jovens e o processo do aborto clandestino: uma
abordagem sociológica, de autoria de Simone Mendes Carvalho (2009).
80Trouxe essa reportagem para ilustrar questões que não se fizeram presentes nas edições dos jornais
para análise. Assim, apesar de essa reportagem incluir outro jornal é trazida aqui porque mostra o
registro, no espaço jornalístico, de relevantes circunstâncias relacionadas ao aborto não encontradas
nas edições dos jornais ZH e Folha SP de 2007 até 2012. A reportagem refere-se à tese intitulada:
Mulheres jovens e o processo do aborto clandestino: uma abordagem sociológica. Autoria de Simone Mendes
Carvalho, orientação de Profª. Drª. Karen Mary Giffin – Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio
Arouca (ENSP/FIOCRUZ), RJ, 2009.
124
porque são profissionais, né? E para te dizer, eu fiz a
curetagem a sangue frio”, conta uma das entrevistadas.
Para a pesquisadora da Fiocruz, o mau atendimento reflete o
julgamento moral que os profissionais fazem sobre quem
abortou. Esse tratamento, seguido das práticas arriscadas
para interromper a gestação, desestimula as mulheres a
procurar o serviço médico e aumenta o número de mortes em
decorrência do procedimento.
De acordo com o Ministério da Saúde, o aborto é a quarta
causa de morte materna no país e a terceira no estado do Rio.
“Em primeiro lugar, a equipe tem que salvar a vida.
Independentemente do que o paciente tenha feito. Caso
contrário, os bandidos que chegam baleados nas emergências
não seriam atendidos”, criticou a pesquisadora. “Eles tratam
mal porque fazem juízo de valor”.
O Conselho Regional de Enfermagem (Coren) reconhece o
problema no atendimento e admite que cerca de 80% das
pacientes que fizeram o procedimento, até mesmo aquelas com
autorização judicial, são hostilizadas de alguma maneira nas
unidades.
“Não há acolhimento. Elas sofrem preconceito”. De acordo com
a vice-presidente do Coren do Rio, Regiane de Almeida, acabar
com o problema requer mudança cultural e estímulo.
“A categoria de enfermagem é uma categoria feminina que
poderia entender mais esse momento”, afirmou81.
81Reportagem: Mulheres que abortam são maltratadas no serviço de saúde, revela pesquisa (Correio
Braziliense, 14/02/2010). Ver página 54 do anexo 1.
125
As distintas circunstâncias e atores envolvidos no/com abortamento
que têm sido apresentadas tanto pelas reportagens quanto por estudos
levam a perceber a falta de diálogo entre os fundamentos religiosos, as
(bio)políticas de Estado e os diversos valores culturais que constituem os
pensamentos da sociedade brasileira. Nessa relação, a articulação de tais
discursos produziu e pode estar produzindo redes discursivas que cerceiam
o exercício da autonomia reprodutiva das mulheres, atuando, talvez, como
uma espécie de conjunto de violências institucionais. Ao mesmo tempo, em
nome da segurança e prevenção de riscos, constata-se um número enorme
de estratégias de combate e controle desses crimes com punições, coações,
condenações e prisões dos envolvidos – como um esquadrão da vida/morte.
126
4.3. O silêncio, o corpo “habitado”, as vidas clandestinas
127
Só para ilustrar essa provocação e desconsiderando a estatística sobre
o número da pobreza, no Brasil, abro um parêntese para um relato meu.
Passando, outro dia, por uma requintada praia próxima de Porto Alegre
(RS/Brasil), percebi de um lado da estrada um paredão com entradas
imponentes que cercavam uma série de condomínios compostos por casas
luxuosas enfileiradas, localizados em frente ao mar. Do outro lado, seguiam
amontoados de pequenas casas, conformando vilas. Então, pensei que, às
vezes, não dá para deixar de perceber o que somos capazes de fazer para
tentar esconder e afastar as coisas, os modos de vida e os sujeitos que nos
atormentam e que nossos olhos insistem em enxergar. Esse momento me fez
pensar que, quando algo nos emociona, perturba, afeta ou inquieta, nos
torna sensíveis. A sensibilidade desperta a percepção, a reflexão e a crítica
sobre os valores e as “verdades”. Nesse sentido, a sensibilização pareceu-me
uma estratégia, ou uma condição de possibilidade, capaz de proporcionar
rupturas, mudanças, transformações.
82 Reportagem: Brasil é o maior mercado de crack no mundo, aponta levantamento (Folha SP, 05/09/2012).
Ver página 56 do anexo 1.
128
condições aumentam as possibilidades de ocorrer abortos, hemorragias e
descolamentos de placenta, como mostra a imagem83 abaixo.
83Reportagem: Operação da PM escancara drama das grávidas do crack em SP (Folha SP, 12/01/2012). Ver
página 58 do anexo 1.
Apesar de esta análise centrar-se no texto escrito e não nas imagens das reportagens, apresento
algumas delas a fim de visualizar as maneiras produtivas como os jornais mostram modelos de corpos
e de vidas.
129
As sequelas aparecem relacionadas à condição de existência da mãe e
ao uso de drogas entorpecentes. Como saber o que mais prejudica ou qual a
causa principal diante desse conjunto de fatores?
84COLLUCI; PAGNAN, 2012. Reportagem: Grávidas do crack (Folha SP, 12/01/2012). Ver página 60 do
anexo 1.
85Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/top-da-semana/01-de-setembro-a-07-de-setembro.ht-
m>.
130
vagas em clínicas de recuperação para mulheres grávidas. "As
clínicas não aceitam porque não têm o que fazer com o bebê."
Por ainda estarem nas ruas, essas mulheres perdem a guarda
dos bebês logo na maternidade, segundo ela. Os hospitais,
para proteção da criança, não liberam a criança nessas
condições.
"Quando eles perdem o bem mais precioso de suas vidas, se
afundam ainda mais nas drogas. É um círculo vicioso", relata
(COLLUCI; PAGNAN, 2012).
86 O álbum com as fotos das entrevistadas na cracolândia está disponível no site: <
http://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/6082-gravidas-na-cracolandia#foto-114118 >.
131
Nos últimos seis meses, ela morou na cracolândia.
Sara afirma que esteve internada sete vezes. Ontem, tentava
nova internação. "Não quero perder mais um filho."
Ela diz que sua principal preocupação, agora, é com a saúde
do bebê. Antes fazia de tudo pela droga. "Já matei, já roubei.
Me prostituí87."
Sara relata que começou a usar drogas por incentivo do tio e por
sentir-se rejeitada pela família. Contudo, conseguiu afastar-se das drogas e,
nesse período, constituiu uma família. Porém, com a prisão do marido e a
perda da guarda dos filhos, após muito esforço para sustentá-los, retornou
ao ponto de fuga, “afundou nas drogas”, cometeu crimes e sofreu abortos.
Preocupada com a saúde do feto, disse: “não quero perder mais um filho”.
Essa reação diante das circunstâncias e experiências que as pessoas
vivenciam expressa a constituição de outros valores para a sua vida e para a
vida do feto. Tais valores passam a determinar as escolhas e a orientar ou
dirigir suas condutas. Nessa direção, segue o relato de Lilian:
138
rédeas moralistas aplicadas ao comer, beber, exercitar-se, etc.” – entre os
infindáveis cuidados de si (CASTIEL, 2010, p.176).
139
demandam controle, pois os excessos podem gerar problemas e dificultar a
recompensa, comprometendo os ideais de vitalidade e longevidade.
141
Por isso, não considero que sejam fixas; afinal, em seus caminhos, devem
aparecer outros desdobramentos.
143
CAPÍTULO 5
TECNOLOGIAS REPRODUTIVAS E
ANENCEFALIA: POSSIBILIDADES DE
V I D A / M O R T E 95
95As imagens mostrando o código genético dentro de uma pílula e as tecnologias médico-científicas
foram escolhidas para abertura deste capítulo por tratarem de possibilidades e conhecimentos sobre
os aprimoramentos do corpo e da vida. Além disso, remetem aos ambientes em que se pode gerar e
fabricar vidas/mortes, hoje. Desse modo, relacionam-se as discussões abordadas neste capítulo sobre
as estratégias para manutenção e promoção do viver como questões relativas à superação da
organicidade do corpo e ao prolongamento da vida saudável de forma indeterminada – noção de
infinitude presente na rede discursiva contemporânea.
144
CAPÍTULO 5
Numa sociedade regida pela vida, pelo fazer viver e pela produtividade
do indivíduo, colocamo-nos a pensar sobre as finalidades dos mecanismos
de prevenção, controle e tratamento direcionados à saúde do corpo e à
manutenção da vida. Ao que parece, na lógica em que nos movemos, mesmo
no termo da vida, as estratégias de governo, médicas, religiosas e
tecnológicas direcionam-se ao controle daquilo que resta ao indivíduo, nesse
caso, tornando o sujeito produtivo enquanto “viver”. Considerar que a
produtividade do indivíduo seja determinada pelo viver torna importante e
“indispensável” o prolongamento do tempo de vida, daí a constante criação
de estratégias para viver cada vez mais e da melhor maneira, ou seja,
saudável. Afinal, mantendo-se o sujeito vivo e saudável, aumenta-se a
expectativa de vida e reduzem-se os índices de mortalidade. Conforme
apontam as reportagens analisadas no capítulo anterior, a intervenção e os
investimentos para promover o viver dirigem-se ou aplicam-se aos casos
145
normalizados, em que os indivíduos, no governo de si mesmos (autogoverno),
se deixam guiar pelas normas.
96A questão do capitalismo e da economia neoliberal será abordada de forma mais detalhada na
discussão “final” deste capítulo.
146
Assim, uma “boa” mãe será aquela que, de forma disciplinada, se deixa guiar
por “recomendações” de “tom normativo e moralista” sobre o investimento e
os cuidados para gestar, parir e criar um ser humano saudável e, de
preferência, “perfeito”. Essas recomendações agem de maneira a
responsabilizar a mulher pela saúde de si, do feto e do viver/morrer de
ambos (idem). A autora comenta, ainda, que esse cuidado, essa educação de
si, essa vigilância e controle podem ser operados sobre os corpos tanto por
estímulos externos, vindos das “verdades” dos diversos campos de saber,
quanto por “iniciativa do próprio sujeito”, que é incitado constantemente
pelas veiculações midiáticas (MEYER, 2009, p.21). Isso leva a pensar na
posição social das mulheres grávidas, cuja condição biológica de gerar um
ser se encontra atravessada e marcada pelas práticas sociais que atribuem
noções e valores, definindo formas de maternidade e de ser mãe –
responsável/irresponsável, negligente, desleixada ou boa mãe... Alguns
exemplos dessas questões foram discutidos no capítulo anterior quando
abordei o preço cobrado para realizar o desejo de impedir a reprodução ou o
desenvolvimento da vida contida no embrião.
97Embora de outro modo, a ideia de outra mulher gestar um filho para um casal cuja mulher é estéril
já consta na Bíblia. Abraão, instruído por Sara, sua esposa, que era infértil, procura uma escrava,
chamada Hagar, para ter um filho (GOLDIM, 2002).
147
a gravidez em situações antes impensadas aparece como uma solução, mas
também como geradora de questionamentos sobre quem seria a mãe
“verdadeira”, o que coloca em jogo a noção de “essência” biológica de ser
mãe98 e de “naturalidade” das “obrigações” e atribuições como invenções
humanas, muitas vezes, impostas.
98No Brasil, assim como em vários outros países, existe a obrigatoriedade de vínculo familiar entre a
mãe social e a mãe gestacional, estabelecida pela Resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina
(dispõe sobre a reprodução humana), que é a única diretriz nacional a esse respeito. Esse
posicionamento tem por base manter tal procedimento entre pessoas previamente ligadas, eliminando
a possibilidade de exploração comercial (GOLDIM, 2002).
99Reportagem: CNBB diz que mortes decorrentes de abortos não são problema de saúde pública (ZH,
06/02/2008). Ver página 67 do anexo 1.
148
dogmas e ideias; para isso, lança-se mão de estratégias de “conscientização”
ou convencimento das pessoas sobre as suas “verdades” e também de textos
explicativos e orientadores em cartilhas. Nessa mesma direção, a reportagem
intitulada Manifestantes protestam no STF contra uso de células-tronco (ZH,
2008) trata da manifestação contra a autorização do uso de células-tronco
embrionárias em pesquisas científicas, conforme se lê abaixo:
100Reportagem: Manifestantes protestam no STF contra uso de células-tronco (ZH, 04/03/2008). Ver
página 68 do anexo 1.
149
Na primeira fala, o publicitário, assumindo sua posição contrária ao
aborto, afirmou que muitas células-tronco embrionárias utilizadas em
pesquisas são “provenientes de abortos, de uma ‘indústria clandestina’”.
Porém, mesmo representando o Movimento em Defesa da Vida e Contra o
Aborto e entendendo que a utilização das células-tronco em pesquisas
configura prática abortiva, mostrou-se conivente com o uso de células-tronco
embrionárias provenientes de procedimentos de fertilização.
150
reconhecimento do embrião humano como uma forma de vida ou não. Essa
situação pode estar relacionada às causas de tais conflitos de “verdade” ou,
ainda, a questionamentos, como: a garantia da cura ou salvação pode agir
como elemento capaz de constituir a subjetividade, de modo que se acredite
que tais propósitos possam valer o “sacrifício” de uma “vida”? Uma medida
terapêutica pode desvincular-se da ideia de crime em razão de sua
finalidade?
101Em 28 de maio de 2008, publicou na revista Forbes a notícia que deixava a Universidade de
Wisconsin para formar a empresa Cellular Dynamics International, com o objetivo de realizar testes de
drogas experimentais e seus efeitos colaterais na área cardíaca com a utilização de células-tronco
embrionárias.
Disponível em: <http://www.forbes.com/forbes/2008/0616/086.html>.
102Rebecca Skloot, no livro A Vida Imortal de Henrietta Lacks, fala da vida de uma mulher, personagem
da história da medicina e do progresso científico do século XX, que morreu na década de 50, mas cujas
células se reproduzem até hoje. Aos 30 anos, casada e mãe de cinco filhos, Henrietta descobriu que
tinha câncer. Em poucos meses, um tumor no colo uterino espalhou-se por seu corpo. Ela se tratou no
Hospital Johns Hopkins e faleceu em 1951. No hospital, uma amostra das células cancerígenas de
Henrietta – que produzia metástases anormalmente rápidas, mais que qualquer outro tipo de câncer
conhecido pelos médicos - havia sido extraída sem o seu conhecimento. Suas células possuíam uma
característica até então inédita - mesmo fora do corpo de Henrietta, multiplicavam-se num curto
intervalo, tornando-se imortais num meio de cultura adequado. Atribui-se isso ao fato de essas células
terem uma versão modificada da enzima Telomerase, implicada no processo de morte celular e no
número de vezes que uma célula pode se dividir. Conhecidas como ‘HeLa’, as células logo começaram
a ser utilizadas nas pesquisas em universidades e centros de tecnologia de todo o mundo para saber os
152
justificada pela racionalidade econômica, têm definidos pelo titular da
patente a liberação ou o impedimento de uso, produção, venda e importação
da invenção por terceiros (FERNANDES, 2008).
efeitos da radiação e o mapeamento genético; inclusive, foram enviadas ao espaço para experiências
sob gravidade zero, etc. Como resultado, a vacina contra a poliomielite e contra o vírus HPV, vários
medicamentos para o tratamento de câncer, de AIDS e do mal de Parkinson, entre outros, foram
obtidos com a linhagem 'HeLa'. Porém, os responsáveis jamais deram informações adequadas à
família da “doadora” ou ofereceram qualquer compensação moral ou financeira pela massiva
utilização das células cancerosas. Calcula-se que a quantidade de células existentes nos laboratórios de
todo o mundo supere o número de células de Henrietta em vida. Disponível em: <
http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=12974 >.
103 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9279.htm>. Acesso em: 12.08. 2010.
Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11105.htm>.
104
154
técnica muito boa, estrangeiros vêm para cá fazer o que na
Europa e nos Estados Unidos é proibido.
Além disso, segundo o urologista especialista em infertilidade
masculina, a falta de legislação e de um protocolo de conduta
faz com que, no país, se usem técnicas de reprodução
assistida em casais que não precisam:
– Há pessoas muito sérias, mas há muita gente que não
investiga as causas da infertilidade do casal. Fazer uma
fertilização in vitro sem saber por que a pessoa não engravida
é como fazer um transplante de coração sem ter feito um
ecocardiograma. É absurdo e não traz resultados.
Em dois terços dos casos de infertilidade masculina há
tratamentos que resolvem o problema sem a fertilização.
Nesses casos, os casais ficam sem saber a quem recorrer,
procurando o médico que garantir mais resultados.
– O casal com infertilidade está frágil. Se você falar que ela vai
engravidar se eles forem de ponta-cabeça e mindinhos
esticados até a igreja, eles vão. O médico tem muito poder
nessa situação – diz a vice-presidente da Sociedade Brasileira
de Reprodução Assistida.
Com tudo isso em jogo, fica nas mãos de cada profissional o
modo de agir. [...] o problema da falta de lei é que tudo acaba
resvalando na ética de cada médico para acontecer.
– Tenho pacientes que chegam pedindo a sexagem
(possibilidade de escolha do sexo), mas desestimulo no
primeiro filho. É uma prática interessante em alguns casos,
não para todos que queiram. É preciso ser flexível na
discussão desse tema e dos outros que envolvem a reprodução
assistida, e não pensar em proibir totalmente105.
105Reportagem: À espera de legislação: Brasil não tem regras específicas nem fiscalização para a reprodução
assistida (ZH, 16/05/2009). Ver página 70 do anexo 1.
155
dezembro de 2010, essas diretrizes foram atualizadas pela Resolução CFM
1957/2010, considerando que o avanço do conhecimento científico permite
solucionar vários dos casos de reprodução humana; que as técnicas de
reprodução assistida têm possibilitado a procriação em diversas
circunstâncias, o que não era possível pelos procedimentos tradicionais; e
que há necessidade de harmonizar o uso dessas técnicas com os princípios
da ética médica106.
108Reportagem: Maternidade mais perto: Institutos oferecem tratamentos avançados e de baixo custo para
casais com problemas de fertilidade (ZH, 03/01/2009). Ver página 71 do anexo 1.
109O filme Gattaca – A experiência genética, de Andrew Niccol (1997), é uma ficção científica futurística
em que as pessoas são criadas geneticamente em laboratórios. A trama fictícia fala sobre uma
sociedade controlada por sofisticadas técnicas de manipulação do código genético e da possibilidade
de manipulação da interação entre os DNAs paternos para gerarem seus filhos. Tal procedimento cria
os indivíduos válidos, oriundos desta combinação genética planejada (com raras doenças); e os
inválidos, concebidos pela interação sexual usual, sujeitos a várias doenças. Disponível em:
<http://www.comciencia.br/resenhas/gattaca.htm>.
160
A ampliação dessa possibilidade de acesso – a um mercado antes de
“luxo” –, incluindo pessoas com restrição financeira, mostra-se articulada
com a ideia de que a vida pode ser amplamente explorada pela inovação das
técnicas e pelas formas de economia com base na vitalidade em diversos
níveis socioeconômicos. Assim, a maior abrangência de um mercado
consumidor de vida e saúde fazendo uso da medicina para otimizar e
melhorar as potencialidades do viver, articulada com a noção de saúde como
um desejo, um direito e uma obrigação, capacita uma gama de especialistas
para atuar numa diversificada linha de produção de serviços e
empreendimentos bioeconômicos pela vitalidade. Além disso, nesse processo,
ocorre a produção, a configuração de “verdades” e a reconfiguração dos
indivíduos dentro de uma política econômica da vida, em que “os
investimentos comerciais configuram a própria direção, organização, espaço
de problemas e efeitos de solução da bioeconomia e da biologia básica que
lhe dá suporte”, ou seja, a biopolítica tem se tornado bioeconomia (ROSE,
2011a, p. 22).
161
Com relação a essa questão – a constituição da subjetividade –, no
início do excerto, a reportagem traz a seguinte afirmação: “no país, estima-se
que entre 10% e 15% dos casais em idade reprodutiva tenham problemas
para gerar descendentes pelo método natural”.
163
inclusive a gente tem o Estatuto da Criança e do Adolescente.
O direito humano é para a criança e não é para o feto? —
questionou.
O médico e professor da Faculdade de Medicina da
Universidade de Brasília (UnB) Cláudio Bernardo Pedrosa de
Freitas disse que a ciência evoluiu muito e acredita que o
projeto é um avanço.
Para a assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e
Assessoria (Cfemea), Kauara Rodrigues, o estatuto é um
absurdo porque tenta proteger os direitos do nascituro em
detrimento dos direitos das mulheres.
— Do ponto de vista dos direitos humanos das mulheres, ele
viola completamente. Dentro desse estatuto tem questões
polêmicas como, por exemplo, o que a gente apelidou de bolsa
estupro, que é uma tentativa de retirar os direitos já
garantidos no Código Penal de uma mulher que é vítima de
estupro, praticar um aborto de forma legal e segura.
O Ministério da Saúde conclui o parecer alegando que "a
melhoria da atenção obstétrica tem impacto direto na garantia
do direito à saúde do nascituro. Após o nascimento com vida a
pessoa está garantida pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente. Razão pela qual não somos favoráveis à
aprovação do referido projeto de lei110".
Ao tratar das mudanças que têm ocorrido nas ciências da vida como
“avanços” científicos, da relação com os direitos do embrião/nascituro e
também da criação de um projeto de lei que proibiria o uso ou consumo de
embriões humanos, essa reportagem faz pensar nas implicações da
biomedicina contemporânea na constituição das formas de compreensão da
existência. Afinal, ao experimentarmos a biologização no gerenciamento da
vitalidade do nosso viver/morrer, nossos corpos humanos tornam-se ainda
mais biológicos, e isso não é uma mera hipótese científica, mas uma
constatação que se dá na gestão de si promovida pelas estratégias de
governo para precaução diante da iminência dos riscos. Desse modo, pode-
se dizer que as formas de conhecimento que estão configurando as
compreensões e as visualizações sobre os seres vivos e sobre nós mesmos
estão cada vez mais biológicas. Tais noções e interpretações da vida e de si
mesmo constituem-se a partir da articulação das éticas oriundas de diversas
instâncias – numa ética “somática” – que têm sido elaboradas de forma
110 Reportagem: Estatuto que proíbe qualquer tipo de aborto gera polêmica (ZH, 13/12/2007).
Projeto proíbe a manipulação, o congelamento, descarte e comércio de embriões humanos. Ver página
72 do anexo 1.
164
híbrida entre o conhecimento dito científico e o leigo, os quais são assumidos
nos discursos cotidianos presentes também nas mídias (ROSE, 2011a).
Assim, a relação entre a bioeconomia e a concepção de um corpo mais
biológico confere à vitalidade a chave (estratégia) para o governo dos
indivíduos através do gerenciamento de seus corpos – local de esperança e
de otimização das potencialidades ou, ainda, (bio)capital para gerir a
biopolítica ou a (bio)economia por meio de um mecanismo vital: a vida.
111Lei 11.105, de 24 de março de 2005. Lei de Biossegurança. Disponível em: < https://www.planal-
to.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11105.htm >. Acesso em: 12 ago. 2010.
165
cada parte envolvida” e, também, a saúde dos que demandam a técnica
(BRAZ, 2005, p.190). Nesse sentido, enquanto a Lei de Biossegurança
permite que embriões congelados para fins reprodutivos tenham a sua
finalidade alterada, os próprios procedimentos de reprodução assistida que
geraram e geram esse tipo de procedimento carecem de legislação específica
no Brasil (GOLDIM, 2008).
166
Para ele, o tema sobre quando a vida começa é "extremamente
controvertido" e que o STF não pode levar em conta dogmas
católicos. "O que não podemos é fazer opção por uma teoria
que defina o início da vida a partir da perspectiva estritamente
confessional112."
112Reportagem: Celso de Mello defende ampliação do debate sobre células-tronco embrionárias (Folha SP,
07/03/2008). Ver página 74 do anexo 1.
113STF libera pesquisas com células-tronco embrionárias: o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu no dia
29 de maio de 2008 que as pesquisas com células-tronco embrionárias não violam o direito à vida,
tampouco a dignidade da pessoa humana. Esses argumentos foram utilizados pelo ex-procurador-
geral da República Claudio Fonteles em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3510) ajuizada
com o propósito de impedir essa linha de estudo científico.
Os argumentos de voto de cada ministro para esta ação estão na página 117 do anexo 2.
167
do embrião a um material biológico como qualquer outro tecido ou células do
corpo. Nesse sentido, zigoto (óvulo fecundado) ou embrião (estágios iniciais
do desenvolvimento ou de divisão celular) constituem nomenclaturas para a
vitalidade contida num corpo ou conjunto celular. As atribuições biológicas,
descoladas do humano, denotam a presença de um processo de
desenvolvimento embrionário em que o diagnóstico da vitalidade contida nas
células embrionárias compõe a compreensão da vida no nível molecular.
Como já referido, isso não a torna artificial, pelo contrário, torna-a ainda
mais biológica, talvez menos humanizada. Esses discursos, no âmbito da
vida, assumem repercussões na subjetivação, de modo que nos percebemos
como corpos biológicos com cada vez mais possibilidades para o
aperfeiçoamento e remodelação em busca da bela idealização de vitalidade
para atingir a prometida longevidade.
168
criopreservados e dos que serão descartados em função dos diagnósticos
genéticos pré-implantação. Nessas circunstâncias, tais diagnósticos, ao
revelarem características moleculares e cromossômicas, podem tornar a
herança genética o fator determinante para a escolha de sua inseminação ou
não. Esse nível de conhecimento e possibilidades de intervenções biomédicas
e biotecnológicas como estratégias em busca das garantias para viver mais e
melhor aproxima-se da fórmula da imortalidade. Assim, o embrião
“fabricado” que não apresentar as características ou predisposições
genéticas que possibilitem um modo de vida nessas conformações não será
escolhido para implantação, gerando o descarte ou criopreservação. Tal
rejeição tem sido relacionada com a prática de aborto.
114“O diagnóstico genético realizado durante a fase embrionária in vitro permite identificar alterações
cromossômicas nos embriões antes de os mesmos serem transferidos para a cavidade uterina”
(PEDROSA NETO e FRANCO JÚNIOR, 1998, p.121).
169
deslocamentos das noções eugênicas, da repugnante violência racial nazista
para o atraente avanço tecnológico propiciado pela ciência, que, ao sair da
ficção, traz para a “realidade” questões para além do cientificismo neutro –
como a possibilidade de eliminar “indesejáveis” e de estimular a reprodução
de “desejáveis”. Porém, sem cair em dualismos como o “endeusamento” ou
“demonização” da ciência e da tecnologia, as propostas de tais práticas talvez
possam ser muito mais a expressão de políticas sociais de segmentos
restritos da sociedade do que aplicação de teorias científicas universais – ou
seja, com base nos conhecimentos e valores da vida, os interesses de
determinados indivíduos ou comunidades biossociais passam a reger
normas de conduta e existência – éticas somáticas dos especialistas da
própria vida (ROSE, 2011a).
170
5.1.1. Estratégias biopolíticas de gerenciamento dos riscos para
a vitalidade ou nova eugenia – aborto eugênico?
115 Rabinow e Rose (2006) destacam que uma forma visível de eugenia está relacionada à saúde
pública. “No Chipre, há programas sistemáticos de testes em todo o país, com o consentimento da
população, da igreja e do Estado, para identificar e eliminar a fibrose cística – não pela seleção de
embriões, mas pela interdição do casamento” (RABINOW e ROSE, 2006, p.47). “Podemos ver algo da
mesma estratégia em ação em práticas para o controle de Tay Sachs entre os judeus ocidentais na
América do Norte e em Israel – práticas que têm sido desenvolvidas por autoridades oriundas
daquelas próprias ‘comunidades biossociais’” (idem, ibidem). “Em qualquer definição, essa é uma
estratégia de reduzir os níveis de morbidade (taxa de portadores da doença) e patologia herdadas em
uma população considerada como um todo, através da atuação sobre as escolhas reprodutivas
individuais de cada cidadão, por meio de várias formas de cálculo e supervisão autoritárias,
sancionadas por uma gama de autoridades religiosas e seculares, incluindo bioéticos, e aprovadas pela
população” (idem, ibidem). Se esse é um típico caso de biopolítica contemporânea, seria enganoso
diagnosticar esse fenômeno como uma forma de genocídio ou a ressurreição dos espectros dos
campos de concentração porque a ocorrência da violência política ocorrida no regime biopolítico não é
a mesma que ocorre fora dele (idem).
171
Governo? A lógica em que opera a biopolítica é diferente, porque ela envolve
investimentos em alvos/objetos para expansão dos mercados farmacêuticos
e dos cuidados com a saúde que buscam inscrever os indivíduos, grupos de
pacientes, médicos e políticos em campanhas de “conscientização”
172
definição das características da população para fins nacionais. Por isso,
mesmo que práticas como a seleção sexual provoquem alterações nas
características da população, as tecnologias genéticas apenas amplificam as
formas culturais existentes, visto que, mesmo como produtos de escolhas
individuais almejadas como aspirações pessoais e conformadas por
circunstâncias específicas, são com frequência explicitamente condenadas
pelas políticas oficiais (RABINOW e ROSE, 2006). A possibilidade de optar
indica os tipos de escolhas éticas produzidas pela esperança investida nas
tecnologias (ROSE, 2010), de modo que o gerenciamento das características
populacionais através de intervenções na reprodução torna
175
Conhecer as predisposições do próprio corpo sugere uma nova
percepção sobre a vida (mais biológica) e nos capacita e responsabiliza para
gerenciar e controlar (ainda mais) o viver?
Por fim, concordo com a autora quando comenta que “corpos” devotos
às “boas formas” e ao bem-estar corporal se veem constrangidos por um
conjunto tirânico de crenças e valores, tais como as “verdades” ou os mitos
de beleza, magreza e juventude. Trata-se de um ideário contemporâneo que
tem os meios de comunicação como aliados fundamentais, pois o turbilhão
de imagens e discursos midiáticos que cotidianamente nos bombardeia
contribui para a disseminação desses padrões do “corpo perfeito”, além de
divulgar as técnicas, produtos e serviços disponíveis para atingi-los (SIBILIA,
2008). Assim, sem limites na especulação de futilidades, a artificialidade da
manipulação do biológico vem tomando um ar de “naturalidade”, numa rede
predominantemente industrial e cada vez menos amadora ou artesanal, e
sua gestão impõe mais interferências, controles e intervenções, inclusive da
autonomia.
177
como daqueles que ainda nem nasceram, pelas diversas circunstâncias que
podem levar ao abortamento e ao infanticídio, dentre outros exemplos.
179
responsabilidade quanto a incerteza, a culpa ou o fracasso na realização dos
desejos (RABINOW e ROSE, 2006).
Com isso, não quero dizer que o capitalismo neoliberal seja do bem ou
do mal, mas que, num sistema biopolítico, mesmo que as responsabilizações
sejam endereçadas a todos, não serão todos – ou seja, a totalidade – que
guiarão suas decisões para determinados propósitos ou que poderão acessar
as estratégias de reconfiguração do biológico. Em seus estudos sobre o
181
nascimento da biopolítica, Foucault (2008a) mencionou que as
desigualdades são necessárias para o mercado, pois é por meio da
desigualdade que se promove a concorrência das mais variadas formas e nos
diversos setores. Caso uma política social tivesse por objetivo a igualização,
ainda que relativa, seria necessariamente antieconômica. Nessa lógica, para
que as regulações se façam, é preciso que “haja pessoas que trabalhem e
outras que não trabalhem, ou que haja salários altos e baixos, é preciso que
os preços subam e desçam” (FOUCAULT, 2008a, p.196). Assim, nesses jogos
instáveis e não-igualitários, um desempregado não é uma vítima da
sociedade, mas “é um trabalhador em trânsito” que está “entre uma
atividade não rentável e uma atividade mais rentável” (FOUCAULT, 2008a,
p.191). Tendo em vista não a extinção, mas a tolerância em relação à
manutenção de um equilíbrio dessas taxas, as pessoas oscilam entre a falta
de acesso aos recursos de gestão da vida e saúde e a possibilidade de
acessá-los e também de viver por mais ou por menos tempo, por viver com
mais ou com menos saúde, etc.
182
um mecanismo muito sutil que gerencia interesses articulados e/ou
compartilhados (FOUCAULT, 2008a, p.192).
183
5.2. Anencefalia: paradigmas da existência e seus riscos
184
acidentes ou então de compensar seus acidentes” (FOUCAULT, 2002a,
p.304).
116 Reportagem: Médicos evitam falar em aborto e defendem "antecipação de parto" (Folha SP, 28/08/2008).
Ver página 75 do anexo 1.
117 A doença de Tay-Sachs (DTS) consiste numa deficiência enzimática congênita; na maioria das
vezes, leva a uma deterioração mental e física intensa, tornando-se letal durante a infância. Pode ser
detectada por exame de sangue ou por técnicas diagnósticas baseadas na análise molecular do DNA,
tal como a reação de polimerização em cadeia, PCR – Polymerase Chain Reaction (PURVES, 2002).
Com o intuito de diminuir a incidência dessa doença, são incentivados exames pré-natais e
aconselhamento genético.
186
(4%). Traz, ainda, a informação de que, num total de 4.320 ginecologistas,
83,5% consideraram a possibilidade de riscos físicos e mentais.
187
50% deles morrem ainda intra-útero” (ANIS, 2004, p.71). Nesse caso, não há
o que fazer para tornar o feto “viável”, pois ele
188
do sétimo dia de vida. E, segundo ele, mesmo que dê pra
retirar os órgãos, eles estarão comprometidos.
— Manter a vida do anencéfalo artificialmente para retirar os
órgãos é questionável eticamente.
Por fim, o médico disse que o risco de um casal que teve um
feto anencefálico vir a ter outras gestações semelhantes é de
25 a 50 vezes maior comparado com casais que nunca tiveram
fetos anencefálicos:
— Então, não é impossível nem improvável que uma gestante
tenha uma gestação de um feto anencefálico, pela legislação
atual não possa interromper essa gestação, e numa próxima
gestação, a mesma coisa venha a acontecer.
O STF vai ouvir opiniões de diferentes profissionais,
associações e entidades religiosas antes de julgar a Argüição
de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, sobre
o tema.
A matéria deverá ser enfrentada pelo plenário do Supremo em
novembro, segundo o relator da ação, ministro Marco
Aurélio118.
Reportagem: A cada três horas, nasce um bebê anencéfalo no país, diz geneticista (ZH, 28/08/2008). Ver
118
página 76 do anexo 1.
189
falta de conhecimento e de atitude reflete-se num sério problema de saúde
em que a única medida terapêutica para resguardar sua vida será a omissão
da vida de seu filho.
191
5.2.1. Da vida do anencéfalo: valores para a “reciclage m”
de “materiais” biológicos?
119SUWWAN, 2007. Reportagem: Governo restringe transplante de órgão de bebê anencéfalo (Folha SP,
06/03/2007). Ver página 77 do anexo 1.
192
São apresentadas compreensões sobre o limite entre o viver e o
morrer, conforme posicionamento do governo federal e do Conselho Federal
de Medicina (CFM), envolvendo a proibição do transplante de órgãos e
tecidos de anencéfalos até que seja constatada uma parada cardíaca
irreversível. Também são trazidas interpretações do que seja o anencéfalo –
para o CFM, trata-se de um "natimorto cerebral", enquanto que, para o
Ministério da Saúde, é um ser humano que precisa ser protegido. Pode-se
depreender que, mesmo que haja pouca demanda por órgãos de bebês,
conforme salientou o conselheiro da Associação Brasileira de Transplante de
Órgãos (ABTO), a fatalidade biológica da condição de anencefalia e a
possibilidade de esse corpo gerar mais vida produzem incerteza sobre a
conexão desse sujeito com a noção de vida e provocam questionamentos
sobre quando inicia a vida, o que é nomeado como vida e o que se entende
por viver.
193
2004). Outra questão é o problema que envolve a remoção dos órgãos, pois
ela só pode ser “realizada após a confirmação da morte”, mas os critérios de
morte cerebral não são adotados para esse caso, o que implica a ausência de
parâmetros de morte para crianças com menos de sete dias de “vida”
(TESSARO, 2008, p.108). Nesse caso, tem sido adotada a definição do
processo de “morte” pela parada cardíaca. “Considerando que os anencéfalos
só possuem a parte anterior do cérebro, que morre lentamente” depois do
parto, os outros órgãos podem danificar-se nesse período, quando o coração
começa a falhar, tornando os órgãos possivelmente inaptos para doação
(idem, ibidem). Note-se que os autores se referem aqui à preocupação com a
manutenção da vida dos órgãos.
No filme Uma prova de amor (My Sister's Keeper, 2009), a vida de Sara e Brian Fitzgerald com o filho
120
pequeno e Kate, a filha de dois anos, é modificada para sempre quando eles descobrem que Kate tem
194
preservação da vida por práticas de promoção da vitalidade. Afinal, não
desperdiçar a vida também pode implicar reaproveitar, reutilizar e “reciclar”
células, tecidos, órgãos!
leucemia. A única esperança dos pais é conceber outro filho, especificamente para salvar a vida de
Kate. Nessa parte, entra Anna. Kate (Sofia Vassilieva) e Anna (Abigail Breslin) compartilham um laço
mais próximo do que a maioria das irmãs: embora Kate seja mais velha, ela recorre à irmã caçula para
continuar vivendo. Anna nasceu com o propósito de doar sangue, medula óssea e o que mais for
necessário para ajudar sua irmã, que tem uma agressiva forma de leucemia. Depois de muitos anos
com idas constantes a hospitais, a menina contrata um advogado para ter o direito de escolha sobre
seu corpo. Disponível em: <http://cinema.uol.com.br/filmes/uma-prova-de-amor-2009.jhtm>.
<http://www.cinepop.com.b-r/criticas/provadeam-or_101.htm>.
Outro filme de ficção que retrata a questão da criação do viver para fornecer materiais de “reposição”
biológica é A Ilha (The Island, 2004); no futuro, existe uma entidade utópica baseada na vida do século
XXI, que procura recriá-la nos mínimos detalhes. Lincoln Six Echo (Ewan McGregor) vive nessa
realidade e, como todos seus residentes, sonha em chegar num local chamado "a ilha", o único ponto
não contaminado do planeta. Após descobre que todos os habitantes são clones, que possuem a única
finalidade de fornecer partes de seu corpo para seres humanos “reais”, por isso, têm mais valor morto
do que vivo. Juntamente com outra habitante (Jordan), Lincoln faz uma fuga ousada para o mundo
exterior, que ele nunca conheceu. Agora sendo caçados pela instituição que antes os acolhia, Lincoln e
Jordan terão de lutar desesperadamente por suas vidas. Disponível em: <
http://www.adorocinema.com/filmes/fil-me-55792/>.
Por fim, o filme Não Me Abandone Jamais (Never Let Me Go, 2010) trata de uma ficção que fala da vida
de pessoas que estão sendo criadas apenas para doarem seus órgãos aos que ficam doentes. Nela a
solução encontrada pela medicina para aumentar a longevidade foi a troca de órgãos doentes pelos
que funcionam. Mostra a vida de três britânicos desde crianças num misterioso colégio interno
praticamente sem contato com o mundo exterior e com disciplina rígida. Eles têm que comer bem e se
exercitar muito para manter os corpos/órgãos saudáveis. Disponível em: <
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/818852-nao-me-abandone-jamais-narra-triangulo-amoroso-
em-contexto-soturno.shtml>.
195
“glamurização” da maternidade como atributo de feminilidade quanto de
“rendição” às normas e responsabilidades reprodutivas.
121Há inúmeras complicações numa “gestação cujo resultado é um feto sem nenhuma perspectiva de
sobrevida” (ANIS, 2004, p.27). Existem “pelo menos 50% de chance de polidrâmnio, ou seja, excesso
de líquido amniótico que causa maior distensão do útero, possibilidade de atonia no pós-parto,
hemorragia e, no esvaziamento do excesso do líquido, a possibilidade de descolamento prematuro da
placenta, que é um acidente obstétrico de relativa gravidade” (idem, ibidem). Além disso, por não
terem o polo cefálico, os fetos “podem iniciar a expulsão antes da dilatação completa do colo do
útero” e ter distócia de ombro, pois com frequência têm o ombro maior que a média, podendo haver
um acidente obstétrico, o que pode acarretar dificuldades muito grandes (ANIS, 2004, p.27).
Na seção 5.3, será discutida a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº. 54,
ela autoriza a interrupção da gravidez em caso de anencefalia e, portanto, altera essa situação das
mulheres pobres.
122Considera-se anomalia fetal a “irregularidade ou disfunção no desenvolvimento fetal quando
comparado ao da população geral” (ANIS, 2004, p.91). “Há vários tipos de anomalia fetal, sendo a
196
que sequer viverá”, o que submete a mulher a grande sofrimento em nome
da gestação de um feto inviável123 (idem, p.83).
grande maioria compatível com a vida extra-uterina” (idem, ibidem). “A anencefalia é uma situação-
limite de anomalia fetal, pois não é possível a sobrevivência do feto fora do útero” (idem, ibidem).
“Em mais da metade dos casos, os fetos com anencefalia morrem ainda no útero”; a outra metade
morre em poucas horas (ANIS, 2004, p.91).
123A definição de fetos inviáveis se refere a anomalias que sejam incompatíveis “com a vida extra-
uterina”, ocorrendo o falecimento logo após o parto (TESSARO, 2008, p.26).
Idem nota 99. Reportagem: CNBB diz que mortes decorrentes de abortos não são problema de saúde pública
124
125Reportagem: Curetagem após aborto é a cirurgia mais realizada no SUS, revela estudo (Estadão,
14/07/2010). Estudo foi feito por pesquisadores do Instituto do Coração com base em dados do
Datasus de 1995 a 2007; especialistas avaliam que maioria dos procedimentos é decorrente de aborto
provocado, pois os espontâneos, em geral, não exigem internação. Ver página 78 do anexo 1.
198
mas com muitas reservas. "Na Cidade do Vaticano a
certificação de morte cerebral não é usada", escreve Lucetta
Scaraffia126.
Reportagem: Jornal do Vaticano diz que vida não acaba com morte cerebral (Folha SP, 03/09/2008). Ver
126
página 80 do anexo 1.
127Reportagem: Igreja Católica tem postura "radical" contra aborto de anencéfalo, diz CNBB (Folha SP,
21/08/2008). Ver página 82 do anexo 1.
199
Uma pesquisa feita em todo o Brasil pelo Ibope mostra que
72% das mulheres católicas entrevistadas são a favor de que
grávidas de feto anencéfalo — sem cérebro e sem chance de
sobrevivência fora do útero — tenham o direito de optar entre
interromper a gestação ou mantê-la. O índice vai a 77% na
faixa dos 25 aos 29 anos.
O percentual é um pouco maior do que os 70% registrados há
quatro anos, quando o levantamento foi realizado pela
primeira vez.
Em setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) promoveu
uma série de audiências públicas com a participação de
médicos, especialistas e religiosos para discutir sobre o direito
de a mulher decidir pelo aborto ou não em caso de anencéfalo.
O levantamento do Ibope foi feito a pedido das organizações
não-governamentais Católicas pelo Direito de Decidir e Anis —
Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. Foram
entrevistadas 2.002 pessoas em 24 Estados, mais o Distrito
Federal, entre 11 e 15 de setembro.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas
países muçulmanos e parte da América Latina proíbem a
prática. Em 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores
em Saúde entrou com ação no STF pedindo que a antecipação
do parto para esses fetos fosse permitida.
O ministro Marco Aurélio Mello chegou a conceder liminar
permitindo a prática, mas ela foi suspensa pelos outros
ministros. A expectativa agora é de que o STF julgue o mérito
ainda neste ano [2008]128.
Reportagem: Pesquisa Ibope diz que 72% das católicas são a favor de aborto de anencéfalo. Índice chega a
128
77% em entrevistadas na faixa dos 25 aos 29 anos (ZH, 27/10/2008). Ver página 83 do anexo 1.
200
Pode-se considerar que provavelmente essas mulheres não desejam
cometer “pecados” nem romper com suas crenças, mas antecipar ou
terminar um processo de morte. Como questão de saúde, essa situação
mostra que estamos, enquanto sociedade, lidando com o sofrimento e as
dores de mulheres e também de seus maridos, famílias e amigos.
Principalmente, trata-se da dor de mulheres que poderiam ser assistidas e
orientadas sobre as consequências da gestação nessas condições e
destituídas de julgamentos e estigmas, entre outras interferências, sobre a
sua “liberdade” de escolha no campo reprodutivo – seja na opção de manter
ou de interromper a gestação do anencéfalo (ANIS, 2004). Quanto à emissão
de julgamentos devido à interrupção da gravidez de anencéfalo, uma
reportagem apontou, conforme relato do pai, que, depois da antecipação do
parto, a família teria sido alvo de discriminação social:
129 Reportagem: Parto de bebê sem cérebro é antecipado (Folha SP, 08/11/2006). Ver página 84 do anexo 1.
201
político’ do corpo da mulher”. Ele argumentou que “a decisão sobre
interromper ou não a gravidez seja da mãe e que o aborto nesses casos seja
legalizado”. Conforme sua fala:
Reportagem: Ministro da Saúde defende legalização de aborto de anencéfalos (Folha SP, 04/09/2008). Ver
130
página 85 do anexo 1.
202
O geneticista diz que, exceto alguns serviços universitários
concentrados sobretudo nas regiões Sul e Sudeste, a oferta de
genética clínica praticamente inexiste na rede pública. "A
demanda é muito grande, mas está reprimida. Só vamos ter
noção do tamanho dela quando os serviços forem abertos."
Segundo Joselito Pedrosa, coordenador-geral de alta
complexidade do Ministério da Saúde, o eixo da política será o
aconselhamento genético, com atendimento das anomalias
congênitas, das deficiências mentais e dos erros inatos do
metabolismo131.
De acordo com o texto, a anencefalia representava, no ano de 2008, a
segunda causa de mortalidade infantil. Diante da alta incidência e da quase
inexistência do atendimento de genética clínica na rede pública, o governo
propôs um investimento em recursos para atender à elevada demanda,
porém tal previsão para a política mostrava-se muito aquém do que se
consideraria necessário atender. De acordo com a proposta, percebem-se a
produtividade e os efeitos de intervenção que uma técnica de caráter
terapêutico – o diagnóstico pré-natal por ecografia ou exame genético – pode
representar em termos da constatação da “verdade” sobre o feto e o risco de
definir sua rejeição. Assim, a anomalia ou, como o próprio termo sugere, a
anormalidade pode servir de pré-requisito e justificativa para a interrupção
da gravidez ou, ainda, para a prática do aborto de forma descriminalizada.
Segundo Teodoro (2008, p.46), as principais causas de pedido de autorização
judicial para a realização de aborto são:
131 Reportagem: SUS terá exame genético em 2009 (Folha SP, 05/12/2008). Ver página 86 do anexo 1.
203
do feto, este não tem sido considerado como morto ou natimorto132 em
função da atividade do tubo neural. Entretanto, ainda que haja controle da
respiração, do batimento cardíaco e da pressão sanguínea, o feto “não pode
ver, nem ouvir e nem sentir, não pode sofrer nem ter emoções, não pode
querer nem pensar” (VALLS, 2004 apud TEODORO, 2008, p.216). Essa
interpretação tem levado autores a relacionar a discussão sobre anencefalia,
entre outras anomalias, à noção do aborto eugênico (TEODORO, 2008). Já
para outros, a utilização dessa definição em tal situação não parece
adequada, pois, ao considerar-se a incompatibilidade com a vida
extrauterina, desconsidera-se a relação com o melhoramento da espécie.
Além disso, na intensidade da vida e de sua criação, ao considerar-se que
todo ou qualquer indivíduo é levado a contribuir de alguma maneira com o
seu corpo e viver desenvolvendo determinadas funções ou papéis, de alguma
forma, esses também podem ter utilidade e, portanto, interessar à sociedade
– seja na pesquisa, no transplante de órgãos, na utilização de seus tecidos,
etc.
132“Feto que morre instantes após o parto ou no momento do parto” (ANIS, 2004, p.99). “O feto com
anencefalia é considerado natimorto cerebral” (idem, ibidem). A anomalia pode ser diagnosticada
através de um exame de ecografia, também chamado de ultrassonografia (idem).
133 Retornarei a essa questão no final do capítulo.
204
entram em luta, se apagam uns aos outros e continuam seu
insuperável conflito.
205
5.2.2. Julgamentos e inquisições públicas: corpo e vida/mort e
sob as vozes do saber/poder
Reportagem: Supremo ouve comunidade médico-científica sobre anencefalia (Folha SP, 28/08/2008). Ver
134
página 88 do anexo 1.
206
constituição de uma regulamentação na forma de lei? Por quê? Talvez uma
lei produza nos indivíduos e na sociedade uma sensação de segurança em
relação às suas escolhas e conceda a sensação de propriedade e “autonomia”
sobre o corpo. Isso seria bom para todos?
135SUPREMO, 2009. Reportagem: Supremo julgará em 2010 interrupção da gravidez em caso de anencefalia
(Folha SP, 24/12/2009). Ver página 89 do anexo 1.
207
em caso de gravidez de feto anencéfalo não caracteriza aborto,
tal como tipificado no Código Penal", sustenta a ação
(SUPREMO, 2009).
208
Sobre o processo de luto por patologias fetais incompatíveis com a
vida, Carmo (2007) menciona que o luto do anencéfalo não tem sido
reconhecido socialmente em razão de a morte ocorrer no período de gestação
ou logo após o parto, tempo considerado como insuficiente para a mãe criar
vínculos afetivos com o feto, como se, “desta forma, sofresse menos”
(CARMO, 2007, p.63). Além disso, a falta do velório e a intolerância dos
amigos e familiares em falar da perda contribuem para o luto não ser
“validado socialmente” (idem, ibidem). O autor observou em sua pesquisa136
que o histórico da gestação se mostra implicado no desenvolvimento da
elaboração do luto, sendo atravessado pelas dificuldades dos profissionais de
saúde em lidar com tais circunstâncias. Segundo o autor, o período entre o
diagnóstico e a internação apresenta uma “lacuna” na assistência à
gestante, que experimenta a falta de orientação e de suporte emocional em
uma perda difícil de ser elaborada (CARMO, 2007).
136Em sua pesquisa intitulada O processo de luto na interrupção de gestação por feto anencéfalo, Jorge
Ramalho do Carmo efetuou um estudo com base na entrevista de uma mulher de 39 anos, católica,
que se submeteu à interrupção da gestação de feto com anencefalia no Hospital Municipal de São
Paulo, SP. A entrevista aconteceu após um mês e dezessete dias da interrupção.
209
determinadas vidas, e isso remete às estratégias de promoção da saúde
como forma de manutenção do viver saudável. Entretanto, não basta
assegurar a vida, como abordado nos excertos da reportagem; devem ser
“garantidas” também a saúde mental e a “autonomia”. Trata-se do
gerenciamento da produtividade e da otimização do viver de um indivíduo
implicado na constituição da vitalidade de si e de outros. Em relação a essa
questão, aparecem autores comentando as implicações do sofrimento da
mulher em nome da gestação de um feto inviável e a possibilidade da
interrupção desse tipo de gestação como estratégia para resguardar a saúde
emocional não só da mulher, mas de toda a família, inclusive dos outros
filhos, caso existam (GIL, 2005; ANIS, 2004). Enfatiza-se que o
prolongamento da gestação, nesse caso, tem repercussões traumáticas. Para
Lima (2009, p.102), a gestação consiste num processo fisiológico de
modificação do organismo feminino que produz “inúmeras mudanças e
transformações necessárias para que a gravidez tenha êxito”, as quais
repercutem não só no corpo biológico, mas na vida da mulher, no seu papel
social e na sua estrutura familiar. Partindo dos princípios bioéticos, a autora
argumenta:
210
Contudo, diante dessas proposições e posicionamentos, não encontrei
reportagens em que fosse abordado o que as mulheres pensam sobre a
anencefalia ou se suas falas também poderiam ser consideradas relevantes
para a criação de regulamentações, mesmo através de um plebiscito. Porém,
no jornal Zero Hora, foram publicadas reportagens sobre a autorização de
uma juíza para o aborto de um anencéfalo na cidade de Rio Grande/RS. Na
fala da juíza, em nove anos de carreira, foi a decisão mais difícil que teve de
tomar. Em entrevista ao jornal ela relatou:
137MAZUI, 2010a. Reportagem: “Foi a decisão mais difícil da minha carreira”, diz juíza que autorizou aborto
de anencéfalo (ZH, 25/06/2010). Ver página 90 do anexo 1.
138Reportagem: Gaúcha grávida de anencéfalo desiste de abortar (ZH, 19/06/2010). Ver página 91 do
anexo 1.
211
Daniele – Com a demora, refleti melhor. O médico disse que,
na maioria dos casos, o corpo faz o aborto. Se não aconteceu,
é porque este bebê deve nascer. Ele me orientou a interromper
a gravidez, no máximo, até a 20ª semana. Acho arriscado
interromper a gravidez agora.
ZH – Você sabe que bebês anencéfalos duram horas, dias ou,
no máximo, semanas?
Daniele – Sei. Meu médico me alertou. Pesquisei e vi um caso
de um bebê que sobreviveu por um ano e oito meses. Agora me
sinto mãe. Decidi entregar na mão de Deus.
ZH – Como foi receber a notícia de que o feto era anencéfalo?
Daniele – De repente, a tua gravidez é em vão. Quis
interromper a gestação e busquei meus direitos. Com a
demora, me apeguei ao filho que espero139.
139MAZUI, 2010b. Reportagem: “Agora eu me sinto mãe”, diz gestante que desistiu de abortar bebê
anencéfalo (ZH, 21/06/2010). Ver página 92 do anexo 1.
212
procedimentos de governo (idem). Haja vista que, como consumidores, nos
constituímos como “atores que buscam maximizar suas ‘qualidades de vida’,
moldando um ‘estilo de vida’ através de atos de escolha em um mundo de
mercadorias” onde a saúde é possibilitada, portanto, “através de uma
combinação entre o mercado, especialistas e uma autonomia regulada”
(ROSE, 2011b, 226).
213
5.3. Da promoção da vitalidade e gerenciamento do capital
humano: definições de saúde, vida, morte e aborto
214
No início do mês de abril de 2012, prazo excedente ao período
destinado à análise deste estudo, foi divulgada insistentemente e com grande
repercussão nas mídias a resolução do Supremo Tribunal Federal sobre a
aprovação dos ministros, por oito votos a dois, da permissão para as
gestantes de anencéfalos interromperem a gravidez em caso de
anencefalia140. Os textos que divulgaram essa medida traziam
esclarecimentos sobre o aborto e sobre os motivos para romper-se a relação,
mesmo que indireta, com essa prática ou com a ideia de descriminalização,
uma vez que esses termos141 deturpam a noção terapêutica, desvinculada da
morte, apresentada na argumentação “consensual” de que o feto não é vivo.
Se não há vida, não é possível pensar-se em morte, portanto, a prática não
se configura nem como aborto, nem como crime.
140 As matérias sobre os votos dos ministros do STF na ADPF 54 constam no anexo 2. Ver página 120.
141De acordo com Rose (2001, p.37), os vocabulários e as técnicas, assim como as noções de
normalidade, são criados a partir de preocupações com “tipos de conduta, pensamento e expressão
considerados problemáticos ou perigosos”.
142Reportagem: Decisão do Supremo sobre anencéfalos reaquece discussão sobre aborto no país (ZH,
13/04/2012).
Reportagem: Diário Oficial publica critérios do Conselho Federal de Medicina para aborto de feto anencéfalo
(ZH, 14/05/2012). Ver página 93 do anexo 1.
215
anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128,
incisos I e II, todos do Código Penal. Ficaram vencidos os
ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso, que julgaram
a ADPF improcedente143.
217
Tal resolução (ADPF 54) contribui para acionar a desculpabilização, a
segurança e o resguardo social de agir, conforme determina a lei, em prol da
saúde e vida da mulher/paciente exposta ao risco de tal gestação. Também
contribui para a redução de investimentos com despesas após o parto, como
medicamentos, alimentação e leitos para promover ou manter a saúde da
mulher e, se for o caso, a sobrevida de seu filho.
146Testamento vital permitirá às pessoas definirem limites terapêuticos na manutenção da vida – Para presidente
da Comissão de Cuidados Paliativos da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, resolução do CFM é
pioneira e garante autonomia ao paciente (CFM, 31/08/2012). Ver página 131 do anexo 2.
219
aborto de fetos anencéfalos147 (ZH, 2012), em que foi abordada a votação de
cada ministro:
PLACAR
- 8 a 2 a favor da interrupção
OS VOTOS
- A favor: Marco Aurélio Mello (relator), Rosa Weber, Joaquim
Barbosa, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Carlos Ayres Britto, Gilmar
Mendes e Celso de Mello.
- Contra: Ricardo Lewandowski e Cesar Peluso.
- Não vota o ministro Dias Toffoli, que se declarou impedido.
Peluso: "matança de anencéfalos"
O presidente da Corte foi o último a votar. Como previsto nos
bastidores do STF, Peluso entende que o aborto de anencéfalo
é crime, assim como a interpretação do ministro Ricardo
Lewandowski, dada ontem, na primeira parte do julgamento.
Para o Peluso, permitir a interrupção da gestação neste caso "é
dar autorização judicial para se cometer um delito".
— O feto anencéfalo tem vida e, ainda que breve, sua vida é
constitucionalmente protegida. O anencéfalo morre. E só pode
morrer porque está vivo. Não é possível pensar-se em morte de
algo que não está vivo.
Ao defender seu voto, ele falou em "matança de anencéfalos".
— ação de eliminação intencional da vida intrauterina de
anencéfalos corresponde ao tipo penal do aborto, não havendo
malabarismo hermenêutico ou ginástica dialética capaz de me
convencer do contrário.
Mello: "não é aborto"
Penúltimo a votar — falta apenas a posição de Peluso —, Celso
de Mello defendeu que a interrupção de gestação em caso de
fetos anencéfalos não pode ser considerada aborto. Ele
argumentou que a anencefalia traz "índices altíssimos" de
morte materna.
— O crime de aborto pressupõe gravidez em curso e que o feto
esteja vivo. A morte de feto vivo tem que ser resultado direto e
imediato de manobras abortivas. A interrupção de gravidez é
atípica e não pode ser taxada de aborto, criminoso ou não.
No entanto, ao longo de toda sua manifestação, de quase duas
horas, mostrou-se cauteloso e advertiu que a decisão do STF é
específica.
— Não estamos autorizando práticas abortivas. Não estamos,
com esse julgamento, legitimando a prática do aborto. Essa é
outra questão que, eventualmente, poderá ser submetida a
esta Corte.
Britto: "dar à luz é dar à vida".
Ao entender que a interrupção de uma gravidez de anencéfalo
é legal, Britto defendeu o direito da mulher.
— É um direito que tem a mulher de interromper uma gravidez
que trai até mesmo a ideia-força que exprime a locução dar à
147A votação de cada ministro consta na reportagem: Após decisão do STF, governo federal garante apoio a
aborto de fetos anencéfalos (ZH, 13/04/2012). Ver página 105 do anexo 1.
220
luz. Dar à luz é dar à vida, e não dar à morte. É como se fosse
uma gravidez que impedisse o rio de ser corrente —
argumentou.
Assim como Marco Aurélio Mello, Britto argumentou que
obrigar a mulher a manter uma gravidez em caso de
anencefalia é tortura.
— A mulher já sabe que o produto de sua gravidez está longe
de pelo parto cair nos braços aconchegantes da vida. Vai se
precipitar no mais terrível dos colapsos, o colapso da vida
humana. É um organismo prometido à inscrição do seu nome
não no registro civil, mas numa lápide mortuária.
Mendes: saúde psíquica da mulher
O ministro Gilmar Mendes argumentou que o caso de aborto
anencéfalo se assemelha à interrupção da gestação em caso de
estupro, autorizado pela lei, "porque visa proteger a saúde
psíquica da mulher.
— Não parece tolerável que se imponha à mulher esse
tamanho ônus à falta de um modelo institucional adequado de
proteção.
Declarações dos ministros que votaram na quarta
Marco Aurélio Mello: "O anencéfalo jamais se tornará uma
pessoa. Não se cuida de vida em potencial, mas de morte
segura"
Rosa Weber: "Não há interesse em tutelar vida que não se
desenvolverá socialmente. Proteger a mulher é proteger a
liberdade de escolha"
Ricardo Lewandowski: "Não é lícito ao maior órgão judicante
do país envergar as vestes de legislador criando normas legais.
Não é dado aos integrantes do Judiciário promover inovações
no ordenamento normativo"
Luiz Fux: "Se o diagnóstico (da anencefalia) fosse possível,
teria, sem dúvida alguma, o legislador previsto a antecipação
terapêutica do parto ou, afastando o eufemismo, o aborto".
221
Na exposição de motivos, o Conselho Federal de Medicina
ressalta as distinções que devem ser feitas entre interrupção
da gravidez, aborto e aborto eugênico (visando ao suposto
melhoramento da raça).
“Apesar de alguns autores utilizarem expressões 'aborto
eugênico ou eugenésico’ ou 'antecipação eugênica da gestação',
afasto-as, considerando o indiscutível viés ideológico e político
impregnado na palavra eugenia”, diz o texto, reproduzindo
palavras do relator do processo no STF, ministro Marco
Aurélio Mello148.
148Idem nota 142. Reportagem: Diário Oficial publica critérios do Conselho Federal de Medicina para aborto
de feto anencéfalo (ZH, 14/05/2012). Ver página 93 do anexo 1.
149Reportagem: Liberar aborto de feto sem cérebro é descartar ser humano, diz CNBB (Folha SP,
13/04/2012). Ver página 108 do anexo 1.
222
remeteu à noção proposta por Bauman (2005) de que toda produção gera
resíduos, rejeitos ou refugos que precisam ser descartados ou “reciclados”.
150 Reportagem: Catador encontra corpo de bebê em lixeira de Porto Alegre (ZH, 04/11/2007).
Reportagem: Feto é encontrado em rua de Porto Alegre (ZH, 18/10/2007).
Reportagem: Feto é encontrado no lixo em Três de Maio (ZH, 26/02/2008).
Reportagem: Feto é encontrado no aterro de lixo em SC (ZH, 26/02/2008).
Reportagem: Jovem aborta e joga feto no lixo na Serra de SC (ZH, 13/04/2008).
Reportagem: Bebê jogado no lixo em SC corre risco de morte (ZH, 06/03/2008).
Reportagem: Jovem coloca o filho no lixo em SC (ZH, 06/03/2008). Garota deu a luz em banheiro de
hospital.
Reportagem: Bebê é encontrado morto dentro de lixeira em Viamão (ZH, 21/04/2008). Corpo foi envolvido
em plástico e colocado dentro de um saco de ração de cachorro.
Reportagem: Bebê é achado morto dentro de saco plástico em frente a hospital (Folha SP, 26/01/2009).
Ver página 109 do anexo 1.
223
acordo com critérios que nos são fornecidos pelas “verdades” de outros –
operando, assim, para o governo da subjetividade. Conforme Rose (1998,
p.42), a qualidade de conhecedor, de perito, de quem é especialista ou expert
da subjetividade
224
Nessa relação de “coprodução” ou produção em conjunto, por assim
dizer, como devedores compelidos a reparar os resultados de seus “erros” ou
de falhas nos empreendimentos de si, a medida apresentada para driblar os
problemas da anencefalia foi a de antecipação do parto, visto que se entende
que, para o anencéfalo, não há possibilidade de medicalização. Porém, se
houver um período de sobrevida, ocorrerá preocupação com a perspectiva de
que ele possa viver uma vida marcada por dor e reduzida a um curto período
pela “doença”. Como não sobreviverá por muito tempo após o parto, ele não
ameaça a prosperidade da espécie, desconectando-se, assim, de noções
eugênicas. Porém, ao ameaçar a vida da mulher, ele denuncia as imperícias
cometidas no desempenho da gestão de si – seja pelo planejamento da nova
vida, seja por práticas de exames ou ações preventivas, como a ingestão do
ácido fólico e a não exposição a contaminações ambientas151.
151Reportagem: 30 anos após boom de anencéfalos, Cubatão (SP) registra poucos casos (Folha SP,
01/09/2008).
Há 30 anos, Cubatão (58 km de SP) ficou conhecida como a cidade dos "bebês sem cérebro". Era tida também
como uma das cidades mais poluídas do país. A relação foi quase imediata: especialistas apontaram as emissões
das indústrias como o principal fator para o boom de casos de anencefalia. Ver página 114 do anexo 1.
Relativo à gestão da saúde, a Resolução 344/02 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
determina a adição de ferro e ácido fólico à farinha de trigo e a alguns tipos de farinha de milho. A
adição de nutrientes aos alimentos constitui uma estratégia preventiva para a redução de casos de
anemia e de malformação do tubo neural de fetos como a anencefalia, por exemplo. Disponivel em: <
http://www.anvisa.gov.br/legis/resol/2002/344_02rdc.htm>.
225
Enfim, considerando-se o anencéfalo como o resultado possível dos
“erros” de conduta da mulher, pode-se relacionar o anencéfalo a um desvio
do ideal de vida, não pelas preocupações com a composição da população,
mas porque remete às causas de sua deformação. Estas estão relacionadas à
gestão de várias escolhas anteriores, tanto no plano biológico quanto no
comportamental, incluindo: planejamento, cuidado, prevenção, as
circunstâncias de vida e os estilos de vida adotados pela mulher/mãe. Numa
combinação de obrigações e culpa no gerenciamento dos riscos, sendo
moralmente responsabilizada, agora, com o apoio da lei, essa mulher/mãe
passa a ser absolvida.
226
vida desde o século XIX e que esse processo tem atenuado o sentido da
morte (DREYFUS e RABINOW, 1995).
228
para a vitalidade, o que a infelicidade, a falta de consumo e a oneração pela
insuficiência biológica podem nos dizer?
229
[...] sujeito ideal nos discursos de saúde pública e da
promoção da saúde precisam ser problematizadas por suas
limitações, por seus julgamentos morais e pela sua tendência
de apoiar e reproduzir as desigualdades sociais. É preciso
também pôr em questão o foco muitas vezes míope da filosofia
dos cuidados de si ao qual tais construções se ajustam.
230
5.3.1. Das minhas hesitações e ensaios: quais as rel ações entre
o governo contemporâneo dos corpos e da vida e as noções
eugênicas?
Vidal Junior (2010), com base em Rose, menciona que a emergência de
novos saberes acerca da compreensão do que somos indica algumas
mudanças nos regimes de poder que novos “vetores” sociais colocam em
movimento. A ideia de melhorar a saúde das pessoas, preservar a vida,
prevenir doenças, estabelecer limites entre o vivo e o não vivo, pode
confundir as fronteiras entre a medicina preventiva e as noções de eugenia e
degeneração – “centrais às biopolíticas do século XIX” (ROSE, 2007, p.18).
232
[...] termos econômicos, nos custos da saúde, em termos de
dias de trabalho perdidos ou contribuições do seguro, ou em
termos morais, no imperativo de reduzir as desigualdades em
saúde. Embora comparações internacionais sejam, sem
dúvida, ainda significativas, a sua função política
contemporânea não é mais aquela de marcar o potencial de
vulnerabilidade de um sistema político em rivalidade
geopolítica, mas de servir como índices públicos, na medida
em que as nações instituem políticas de sucesso para a gestão
da saúde (ROSE, 2007, p.63, tradução minha).
Isso tudo faz pensar na descrição de políticas pelo uso de termos como
eugenia voluntária153, eugenia utópica154, eugenia responsável155, eugenia
liberal e nova eugenia, por exemplo. Trata-se de diferentes nomes atribuídos
a práticas/estratégias políticas de promoção da vitalidade ligadas ao governo
da “autonomia” reprodutiva, que se constrói a partir da subjetivação do
indivíduo numa rede de discursos produzidos por instâncias variadas e
235
prescrições, os riscos são indicações de possibilidades de acontecimentos
futuros, portanto, não garantem o efeito prometido ou esperado. Como refere
Lupton (2000), indivíduos que fumaram cigarro por quase toda a vida podem
não morrer de câncer. Em contrapartida, os que se guiam pelas prescrições,
como a de nunca fumar para prevenir os diversos tipos de câncer, podem
morrer deles.
237
Assim, ao conhecer os riscos, administramos o futuro da melhor maneira
que pudermos, porque nos tornamos responsáveis pelo que nos acontece.
239
Das dificuldades de escapar de peregrinações deterministas, as
compreensões do embrião (como vivo, não-vivo, como pessoa ou material
biológico passível de intervenções e da aleatoriedade) configuraram
importantes questões que atravessaram e nortearam debates e foram
relacionadas à eugenia, tanto pelo suposto aborto em razão do diagnóstico
genético pré-implantação quanto pela possibilidade de domínio de técnicas
de modificações genéticas na programação de bebês e usos em pesquisas.
Desse cenário de profecias, exortações/prescrições e possibilidades de
fabricação da vida, quais noções de parentesco/filiação podem ser
estabelecidas com o filho diante da possibilidade de separação entre
procriação e sexualidade e, ainda, entre reprodução e gravidez? As
tecnologias podem estar produzindo necessidades de outras definições para
as relações entre as novas formas de corpos/vidas? Para Botbol-Baum
(2009, p.11):
240
reprodutiva (idem). Esses processos técnicos mostram a que ponto definições
simples, permitindo rotulações, podem fragilizar-se “diante da unidade [do
que chamamos de] natureza quando encaramos esta do ponto de vista das
possibilidades do vir a ser” e das definições evolutivas (idem, p.45). Para o
autor, um dos desafios propostos pelas biotecnologias é
242
controlar o futuro potencial” (ROSE, 2007, p.70, tradução minha). Em alto
risco, os indivíduos podem ser aconselhados a fazer modificações tanto em
seu comportamento, dieta, estilo de vida, quanto num regime preventivo de
“drogas destinadas à redução do risco de ocorrência de tais desordens”
(idem, p.72, tradução minha). Assim, as práticas para a vitalidade amparam-
se nas taxas de “mortalidade e morbidade, que funcionam como chave para
o desenvolvimento de concepções do futuro como calculável e previsível”
(idem, p.71, tradução minha).
243
como temos compartilhado nossas “próprias” noções sobre o que é ser/estar
saudável e vivo e, ainda, a constituição de nossas normas vitais moldadas
por determinadas “verdades”, circunstâncias e condições de formação. Nessa
dimensão, considerar que a saúde e a vitalidade se tornaram importantes
meios para as interações das estratégias biopolíticas com o (bio)capital, a
(bio)economia e o mercado leva a pensar nos modos como essas relações e
“negociações” – que envolvem o conhecimento, o poder e a subjetividade –
estão acontecendo/governando e nos constituindo governantes do viver.
246
mecanismo sutil muito seguro se nada vier a perturbá-lo (FOUCAULT,
2008a, p.192).
247
Não se trata de tentar negar a importância do desenvolvimento do
capitalismo ou os avanços da tecnociência e biomedicina, nem de condená-
los, mas de ampliar a visão sobre o entendimento da vida que há nos corpos,
possibilitando entendê-los não apenas pela ótica reducionista de vida
orgânica ou de um capital a ser investido, mas percebendo que é muito mais
que isso. Afinal, aqueles que se encontram à margem, marginalizados,
abandonados ou excluídos, não são invisíveis e não estão “lá” por acaso.
249
CAPÍTULO 6
Liberalismo ou democratização da
verdade é tão ou mais perigoso
quanto sua restrição.
157Selecionei a imagem com os estudos de embriões de Leonardo da Vinci (1452-1519), para esse
capítulo, por tratar-se de um estudo anatômico que busca representar com “perfeição” a “beleza” e a
simetria do corpo humano e, por que, demonstra a capacidade de observação, experimentação e
questionamento na busca de conhecimento. Em relação aos estudos atuais e as propostas de
otimização da vida, essa imagem levou-me a pensar nas redes discursivas implicadas na produção de
“verdades” sobre os corpos e o viver/morrer, assim como, nos ambientes em que podemos ser
gerados, fabricados e mortos, hoje.
250
CAPÍTULO 6
251
Após a defesa do projeto, passei a enxergar com nitidez, só que enxerguei
muitos caminhos e, por um grande período, me perdi nesse labirinto de
ideias. Junto à Nádia, tentei definir uma trilha para examinar a constituição
e/ou o modo como “novas” práticas eugênicas operavam, mas esqueci por
um instante que a pesquisa, como a cartografia, não se projeta conforme
nosso pensamento, vontade e definição; ao contrário, a partir das análises
do terreno é que se torna possível traçar a cartografia – é a análise que nos
aponta os caminhos a seguir na pesquisa.
Por isso, mais uma vez, abandonei o caminho que traçava e me perdi.
Dessa vez, a agonia, a solidão e a incerteza quase me enlouqueceram, e foi
difícil resistir à tentação de desistir. Comecei, então, a aventurar-me em
estradas desconhecidas; entrei em outros sítios empíricos, tentando
relacioná-los às ferramentas conceituais que havia usado anteriormente,
para ver aonde levava essa caminhada.
Para Castiel (2011), a subjetividade dos indivíduos está cada vez mais
impregnada de noções de risco e de incerteza; contudo, relacionamo-nos com
o risco de modos distintos. De acordo com sua explicação, na constituição
das relações e das noções de risco, a mídia
257
mesmo que fazer morrer. Por isso, de acordo com Rose (2007), não se trata
de uma política de morte, nem mesmo de uma política de saúde e doença,
mas de uma questão do governo da vida. Nela, as racionalidades biopolíticas
estão ligadas a “formas peculiares de pensar sobre seu objeto, individual e
coletivo de vitalidade humana, e suas consequências políticas, isto é, uma
forma de pensar sobre a vida” (idem, p.75, tradução minha). Nessa
correlação de governo, em que operam noções de probabilidade, capacitação
e responsabilidade em circunstâncias individuais e conjuntas, como já
referido, a vida pode ser compreendida como um possível ponto de passagem
e de intensificação do fluxo de estratégias biopolíticas que buscam
transformar traços humanos em proveito das forças políticas e econômicas
que legislam e regulam a população (GROS, 2010).
258
possível, a partir da problematização desses conflitos, enxergar a
constituição de outras formas de pensamento e construções de outras
políticas de “verdade” sobre o viver/morrer, não apenas em relação à
anencefalia e aos usos, alterações e descartes de embriões, mas também
para situações fronteiriças relacionadas ao aborto propriamente dito (de
fetos com chances de sobreviver após o parto), pelas implicações de
circunstâncias sociais e econômicas ou mesmo da própria vida no caso de
pacientes ditos terminais – ortotanásia. Assim, na intensa promoção da
vitalidade, também são percebidos movimentos para a criação de uma
brecha em que se abre a possibilidade de a mulher decidir sobre o seu corpo
e vida sem passar por inquisições públicas, sem que sua vida seja divulgada
e julgada por diferentes representantes institucionais nas mídias – meios de
espetacularização do viver e do agir sobre a vida que promovem o
borramento das fronteiras entre problemas de ordem pública e privada
(FISCHER, 2005).
160Idem nota 125. Karina Toledo, reportagem: Curetagem após aborto é a cirurgia mais realizada no SUS,
revela estudo (Estadão, 14/07/2010). Ver página 78 do anexo 1.
259
após o nascimento, Azevêdo comenta que aproximadamente 42 milhões de
brasileiros são pobres, ou seja, não têm renda para satisfazer suas
necessidades básicas; 16,5 milhões são indigentes, isto é, não conseguem
satisfazer nem as necessidades alimentares (AZEVÊDO, 2002). Assim, “cerca
de um terço da população brasileira está ficando a meio caminho do próprio
ser” (idem, p.78). Muitos nascem, adoecem e morrem sem acesso à saúde,
passando fome, comprometidos pela desnutrição. Para a autora, o indivíduo
que não conseguiu desenvolver-se física e mentalmente por razões de
empobrecimento já foi violentado em seu direito de existir e viver, ou seja, de
vir-a-ser após o nascimento. Tais condições tornam difícil pensar em
relações de igualdade de acesso à saúde quando as propagandas da mídia
divulgam as campanhas de promoção da saúde, por exemplo.
260
implantados e outros talvez sejam criopreservados, descartados ou
“abortados”. Diante de um histórico familiar com recorrente câncer de
mama, por exemplo, seria “ético” promover o desenvolvimento de um
embrião com elevadas chances de desenvolver tumores, caso fosse
amplamente disponibilizado o acesso às onerosas técnicas de diagnóstico
pré-implantação (PGD) para evitar e intervir em doenças incompatíveis com
a vida ou doenças graves que causam sofrimento ou redução da sobrevida?
261
Nessa relação de “liberdade” conduzida por constantes negociações
entre os jogos de “verdade”, tais circunstâncias de governo regidas por
discursos ou “fontes” de vitalidade/felicidade que estabelecem modos de
pensar, “ser”, viver, morrer e reproduzir provocam questionamentos que não
calam: a partir de que noção de “autonomia” tem-se administrado o viver até
o morrer? Como objeto político, de quem é a autoria da existência? Que
relação de governo estamos estabelecendo com o nosso corpo e vida e com os
demais?
262
REFERÊNCIAS
1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
263
11. BELLINO, Francesco. Fundamentos da bioética: aspectos
antropológicos, ontológicos e morais. Tradução: Nelson Souza
Canabarro. Bauru, SP: EDUSC, 1997.
26. ___. A responsabilidade diante dos limites da vida. In: CASTIEL, Luis
David; DIAZ, Carlos Álvarez. A saúde persecutória: os limites da
responsabilidade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007. p.121-125
35. DINIZ, Debora; RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por anomalia fetal.
Brasília: Letras Livres, 2004.
266
das práticas corporais. São Paulo: Estação Liberdade, 1995. p. 69-
80.
53. ___. História da sexualidade II: O uso dos prazeres. Tradução: Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de
Janeiro: Edições Graal, Foucault, 1998.
54. ___. Michel Foucault explica seu último livro. In: Manoel Barros da
Motta (Org.). Ditos e escritos II: arqueologia das ciências e história
dos sistemas de pensamento. Tradução: Elisa Monteiro. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2000. p.145-152.
58. ___. Diálogo sobre o poder. In: Manoel Barros da Motta (Org.). Ditos
e escritos IV: Estratégia, poder-saber. Tradução: Vera Lucia Avellar
Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003a. p.253-266.
59. ___. Mesa Redonda. In: Manoel Barros da Motta (Org.). Ditos e
escritos IV: Estratégia, poder-saber. Tradução: Vera Lucia Avellar
Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003b. p.335-351.
60. ___. “Omnes et Singulatim”: uma crítica da razão política. In: Manoel
Barros da Motta (Org.). Ditos e escritos IV: Estratégia, poder-saber.
Tradução: Vera Lucia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2003c. p.355-385
61. ___. Poder e saber. In: Manoel Barros da Motta (Org.). Ditos e
escritos IV: Estratégia, poder-saber. Tradução: Vera Lucia Avellar
Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003d. p.223-240
64. ___. Foucault. In: Manoel Barros da Motta (Org.). Ditos e escritos V:
ética, sexualidade, política. Tradução: Elisa Monteiro, Inês A. D.
Barbosa. Rio de Janeiro: Forenze Universitária, 2006a. p.234-239.
268
69. __. Do governo dos vivos: curso no Collège de France, 1979-1980:
excertos. Tradução: Nildo Avelino. Rio de Janeiro: Achiamé, 2010.
70. GEERTZ, C. Estar lá, escrever aqui, Diálogo, 22 (3), SP, pp.58-63,
1989.
71. ___. Nova luz sobre a antropologia. Tradução: Vera Ribeiro, Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
74. GIL, Maria Estelita. Bioética e medicina fetal. In: Clotet, Joaquim;
Feijó, Anamaria. G. S; Oliveira, Marília. G. (coordenadores). Bioética
uma visão panorâmica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. p. 93-112.
269
82. KOVÁCS, Maria Júlia. Bioética nas questões da vida e da morte. In:
Psicol. USP. 2003, vol.14, n.2. São Paulo. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?scr-ipt=sci_arttext&pid=S01036-
5642003000200008&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0103-6564.
90. MACIEL, Maria Eunice S. Eugenía no Brasil. In: Anos 90: revista do
programa de pós-graduação em história. Porto Alegre: UFRGS, n.11,
p.121-143, jul. 1999.
270
(Orgs.). O corpo feminino em debate. São Paulo: UNESP, 2003.
p.107-127
101. PESSINI, Leocir. Distanásia até quando prolongar a vida. São Paulo:
Editora do Centro Universitário São Camilo: Loyola, 2001.
271
105. PURVES, William K. SADAVA, David. ORIANS, Gordon H. HELLER,
H. C. Vida: a ciência da biologia. Porto Alegre: Artmed, 2002.
115. ___. “Como se deve fazer a história do eu”. In: Educação &
Realidade, Porto Alegre, v. 26, n. 1, 2001, p.33-57.
116. ___. Biopolitics in the twenty-first century. In: The politics of life
itself, 2007. p.9-40.
272
117. ___. Politics and life. In: The politics of life itself, 2007. p.41-76.
273
políticas da própria vida. Paula Regina Costa Ribeiro, Luís Henrique
Sacchi dos Santos (Org.), FURG, 2011. p.241-249. Disponível em: <
http://www.corpogeneroesexualidade.furg.br>.
274
141. VEIGA-NETO, Alfredo. Olhares... In: Costa, Marisa V. C. (Org.).
Caminhos investigativos. Porto Alegre: Mediação, 1996. p. 19-35.
275
2. REFERÊNCIAS DE SITES DE ORGANIZAÇÕES:
- Aborto em Debate.
Disponível em: <http://www.abortoemdebate.com.br/wordpress/>.
- Grupo Curumim.
Disponível em: <http://www.grupocurumim.org.br/site/programas.php>.
- Ipas Brasil.
276
Disponível em: <http://www.ipas.org.br/>.
- Women on Waves.
Disponível em: <http://www.womenonwaves.org/set-248-pt.html>.
277
3. REFERÊNCIAS DE VÍDEOS SOBRE O ABORTO NO
BRASIL:
- Quem são elas? Filme de Débora Diniz, 2006, produzido por Anis - Instituto de
Bioética, Direitos Humanos e Gênero e pela produtora Imagens Livres. Apoio do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, da
International Women's Health Coalition e da Ford Foundation
(http://www.anis.org.br/ImagensLivres/Detalhes.cfm?Idfilme=10).
278
APÊNDICE - PUBLICAÇÕES
279
IV Colóquio Franco-Brasileiro de Filosofia da Educação: filosofia,
aprendizagem, experiência, 2008, Rio de Janeiro.
280