Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

15 - Benhabib. Abaixo Do Asfalto Está A Praia

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 27

Cadernos do Ateliê jan.

2019

Cartografias da Crítica:
Fundamentos, Potencialidades e Limites

Fascículo 1. Abaixo do asfalto está a praia:


Reflexões sobre o legado da Escola de Frankfurt
Seyla Benhabib
Jan.2019
CA D E R N O S D O AT E L I Ê

Plano de convergência

Cartografias da Crítica: Fundamentos, Potencialidades e Limites

Em 2017, dávamos início ao Projeto Cartografias da Crítica no núcleo de


pesquisa SOCIOFILO, com atividades no Blog do Sociofilo. Ele se propunha a
(re)pensar a (teoria) crítica em seus fundamentos, potencialidades e limites,
realizando uma genealogia das constelações de crítica e fazendo uma
cartografia das teorias e pesquisas críticas.

Sendo liderado por Alberto Luis Cordeiro de Farias & André Magnelli, o
Cartografias passou a ter como locus central o Ateliê de Humanidades e
integrou, como co-coordenador, o professor Felipe Maia (UFJF). Iniciamos com
grande alegria, agora em 2019, a segunda fase do Cartografias, trazendo a
público um novo projeto, o nosso primeiro livro e uma série de publicações no
Cadernos do Ateliê.

Como estreia, publicamos, no primeiro fascículo, o excelente texto de uma das


principais teóricas da atualidade, Seyla Benhabib (Universidade de Yale).
Agradecemos fortemente à Benhabib e à Boston Review pela gentil autorização
da publicação.

Fascículo 1. Abaixo do asfalto está a praia:


Reflexões sobre o legado da Escola de Frankfurt

Seyla Benhabib

Produzido por: Ateliê de Humanidades l www.ateliedehumanidades.com


i

Apresentação

Alberto Luis Cordeiro de Farias


Felipe Maia G. da Silva

Seyla Benhabib (1950 - ) é uma das mais


importantes teóricas críticas contemporâneas. Como
tal, insere-se na tradição de pensamento crítico que
teve início nos anos 20 em Frankfurt, trabalhando
sobretudo com os temas da teoria democrática e
questões de teoria social.
Turca de ascendência judaica (judia sefardita),
radica nos EUA, onde é Eugene Mayer Professor of
Political Science and Philosophy na Universidade de
Yale, tendo sido ainda diretora do programa de
Ethics, Politics, and Economics de 2002 a 2008.
Seu trabalho em filosofia política e teoria social,
com ênfase nos estudos de gênero, baseia-se na
teoria crítica e na teoria política feminista. São
conhecidos seus estudos sobre Hannah Arendt e
Jürgen Habermas. Dentre seus principais trabalhos,
destacam-se: Dignity in Adversity: Human Rights in
Troubled Times (2011); Politics in Dark Times:
Encounters with Hannah Arendt (2010); Another
ii

Cosmopolitanism (2006); The Rights of Others (2004);


The Reluctant Modernism of Hannah Arendt (2003);
The Claims of Culture (2002); Democracy and
Difference (1996); Situating the Self: Gender,
Community and Postmodernism in Contemporary
Ethics (1992); Critique, Norm and Utopia. A Study of
the Foundations of Critical Theory (1986).
Uma boa síntese da obra de Benhabib é
oferecida por Rodrigo Cordero (2014):
o problema que orientou seu trabalho por mais de três
décadas consiste em como reconciliar os princípios
universais da liberdade e dos direitos humanos com o
caráter historicamente contingente, culturalmente
heterogêneo e socialmente situado de nossa existência
em comum. No contexto dos desafios e problemas de
uma sociedade globalizada e multicultural, o trabalho de
Benhabib busca lidar de uma nova forma com o dilema
que inquieta o projeto de uma teoria crítica da sociedade
desde suas origens na filosofia de Hegel: por um lado,
como articular as aspirações de autonomia e
emancipação dos sujeitos sem apelar para princípios
transcendentais cuja validade seja independente das
situações e processos sociopolíticos concretos; e, por
outro lado, como reconhecer a pluralidade dos modos de
ser e da vida humana sem excluir a priori a referência a
normas gerais ou a critérios universais que transcendem
iii

os contextos espaço-temporais particulares em que a


ação humana se inscreve e se desenvolve.1

A solução dessas questões passa, em Benhabib,


pela elaboração de uma crítica da “metafísica do
Iluminismo” e pelo enfrentamento do legado da
teoria crítica do século XX, o que não pode ser
realizada sem uma reavaliação dos fundamentos
teóricos e normativos da própria tradição da teoria
crítica.
Um momento mais conhecido desse trabalho é a
sua leitura de Karl-Otto Apel e de Jürgen
Habermas, centralmente a ideia de uma
pragmática-universal que propõe uma posição
universalista pós-metafísica que se distancia de
concepções substancialistas de razão, substituindo-
as por um conceito de racionalidade comunicativa.
Trata-se de uma leitura com fins sistemáticos, que
será incorporada pela autora em suas formulações
teóricas mais amplas.
O texto que ora apresentamos ao público,
porém, faz parte de outro momento menos
conhecido desse trabalho autorreflexivo de
Benhabib, se a considerarmos como parte da

1 CORDERO, Rodrigo (2013/2014). El cosmopolitismo crítico de


Seyla Benhabib. Introducción a la conferencia de Seyla Benhabib
“The Future of Democratic Sovereignty and Transnational Law”.
iv

tradição referida. Nele, como indicado no próprio


título, a autora faz um balanço do legado
frankfurtiano à luz dos dilemas do pensamento
crítico do tempo presente. De maneira clara e
objetiva, Benhabib sintetiza tópicos e questões que,
acreditamos, devem orientar a investigação
genealógica da teoria crítica do século XX, tais como
a investigação acerca das transformações do
conceito de crítica na passagem do pensamento
kantiano e neokantiano para a teoria crítica hegelo-
marxista no século XX, ou a reflexão sobre as
formas de mediação entre crítica e crise. Nesse
sentido, seu projeto se aproxima, juntamente com
autores como Amy Allen e George Steinmetz, do
nosso esforço empreendido no Cartografias da
Crítica, uma vez que todos nós convergimos para
uma defesa do caráter plural da noção de crítica, bem
como da necessidade de sua articulação com uma teoria
da crise.
1

Abaixo do asfalto está a praia:


Reflexões sobre o legado da
Escola de Frankfurt

Seyla Benhabib 1

Maio de 1968 marcou o despertar político de


minha geração. Naquela época, estando no terceiro
ano do American College para garotas em Istambul,
eu sentia os ventos revolucionários por ser uma
jovem mulher judia em uma sociedade
predominantemente muçulmana, e por causa do
antiamericanismo precipitado pela Guerra do
Vietnã. Fotos de ataques com napalm em crianças e
adultos vietnamitas circulavam entre nós durante a
hora do almoço. E quando a Sexta Frota de navios

1 [Nota do Editor (N.E.)] Uma versão deste ensaio foi preparada


para uma conferência internacional sobre emancipação na
Universidade Humboldt de Berlim em 25 de maio de 2018. Foi
originalmente publicado na Boston Review em 9 de outubro de 2018.
Agradecemos fortemente a Seyla Benhabib e à Boston Review por
pela gentil autorização da publicação. A tradução foi feita por
Felipe Maia G. da Silva, com revisão e edição de André Magnelli.
Para torná-lo mais acessível ao público não iniciado, inserimos
algumas informações em colchetes e na forma de hiperlink.
2

americanos agendou uma visita a Istambul, e


muitos namorados, parentes e outros foram detidos
pela polícia, nosso sentimento de desapontamento
político e de oposição às políticas americanas
cresceu.
Vivendo em Istambul, nós sabíamos que o
mundo político mais amplo estava pegando fogo.
Tanques soviéticos esmagavam o movimento
reformista de Praga de Alexander Dubcek e o
experimento do “socialismo com uma face
humana”. Estudantes construíam barricadas em
Paris e confrontavam a polícia. E o movimento da
contracultura nos Estados Unidos desafiava as
hipocrisias do decoro burguês. O continuado
conflito Israel – Palestina era pessoalmente
devastador: eu temia pela continuidade da
existência de Israel depois da guerra de 1967, ao
mesmo tempo em que sentia indignação moral e
dor pela opressão e ocupação da Arábia palestina.
Maio de 1968 viu nossa revolta contra o
conformismo opressivo da Pax Americana do pós-
guerra. Nós tínhamos esperança de nos libertar do
espírito do consumismo, das algemas do
patriarcado, da família burguesa, do nacionalismo,
do militarismo e muito mais. Nenhuma tradição
3

teórica capturou melhor as aspirações que eu


compartilhava com muitos contemporâneos tão
bem quanto a teoria crítica da Escola de Frankfurt.
Minha jornada intelectual de Istambul a Frankfurt
começou com O homem unidimensional (1964) de
Herbert Marcuse [1898-1979], que eu li naquela
primavera fatídica.2

***

A teoria crítica da Escola de Frankfurt era uma


combinação de reflexão filosófica e pesquisa social
científica, nascida em reação à catástrofe europeia
do último século: a falha das classes trabalhadoras
europeias em resistir à emergência do fascismo
(com exceção das forças republicanas na Espanha,
que resistiram mas foram derrotadas); a cegueira da
burguesia e do grande capital que se iludiram no
pensamento de que poderiam manipular o nazismo
para seus próprios fins; o silêncio e a cooperação da
classe dos “mandarins”; e o Holocausto dos judeus
europeus.

2 [N.E.] MARCUSE, Herbert. (1964) One-Dimensional Man: Studies in


the Ideology of Advanced Industrial Society. Boston: Beacon Press.
Publicado em português como: MARCUSE, Herbert. (1969) Ideologia
da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
4

No centro desse projeto político e teórico estava


a transformação do conceito de crítica. A Escola de
Frankfurt completou uma revolução epistêmica e
ontológica que havia começado com Immanuel
Kant. A tarefa da “crítica da razão pura” kantiana
era limitar as pretensões teóricas da razão de modo
a criar espaço para uma fé que poderia sustentar
liberdade e moralidade. Kant argumentava que nós
nunca podemos estabelecer, com certeza teórica,
que temos uma vontade livre; e nem que essa
reivindicação pode ser provada em contrário. Então
permanece aberto a nós agir com uma crença
prática de que somos livres: que podemos ser
movidos por razões, assegurar nossa autonomia e
preencher as demandas da moralidade. A crítica
para Kant está a serviço da autonomia: apenas um
exercício crítico da razão pode nos salvar da tutela
que infligimos a nós mesmos pela falsa crença na
autoridade, na religião e na tradição.
Em seu ensaio de 1937, Teoria tradicional e teoria
crítica, Max Horkheimer [1895-1973] ofereceu uma
afirmação particularmente convincente da
concepção pós-kantiana de crítica da Escola de
5

Frankfurt.3 Seguindo G.W.F. Hegel e o brilhante


marxista húngaro Georg Lukács [1885-1971],
Horkheimer defendeu um programa para o
pensamento crítico que fosse além da concepção de
liberdade de Kant. Lukács argumentou que a visão
de liberdade de Kant era limitada porque faltava a
ele uma concepção de “práxis” – de uma agência
humana histórica e socialmente situada. Nós não
somos apenas sujeitos com liberdade moral, mas
sujeitos históricos que expressam nossa liberdade
por meio da transformação do mundo externo por
variadas formas de atividade humana individual e
coletiva – incluindo trabalho, religião, arte e
instituições políticas.
A realização notável de Horkheimer em Teoria
tradicional e teoria crítica foi desenvolver essa
filosofia da práxis em uma crítica da epistemologia
de seus contemporâneos – tanto as ciências sociais
positivistas como a fenomenologia de Edmund
Husserl. Horkheimer colocava a pesquisa crítica
uma vez mais a serviço da autonomia e da
emancipação. O conhecimento emancipatório, ele

3[N.E.] HORKHEIMER, Max. (1937) Teoria Tradicional e Teoria


Crítica. In. HORKHEIMER, M. et al. Textos escolhidos. Col. Os
Pensadores, Vol. XLVIII. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 117-161.
6

afirma, ajuda a desmistificar a suposta objetividade


do mundo social e, sobretudo, das assim chamadas
“leis” do capitalismo. Pelo desvelamento de que o
mundo dos fatos sociais não é governado por leis
naturais, mas é, em vez disso, o resíduo histórico do
trabalho dos próprios seres humanos, será possível
pôr fim à alienação e à escravidão frente a uma
realidade social que domina os humanos.
A ambição vertiginosa de Horkheimer era
transformar a tradição do idealismo alemão em
uma teoria crítica da sociedade. Mas esse programa
deixou de ser convincente mesmo durante o tempo
de vida dos primeiros membros da Escola de
Frankfurt. Diferentemente dos jovens Marx e
Lukács, a Escola de Frankfurt não podia ver
nenhum sujeito histórico revolucionário que fosse
pôr fim à alienação no mundo e à dominação social.
Na época em que Theodor Adorno [1903-1969] e
Horkheimer compuseram a Dialética do
Esclarecimento no exílio na Califórnia nos anos 1940,
o programa da filosofia emancipatória da práxis
inverteu-se em seu oposto.4 O domínio humano
sobre a natureza veio às custas da repressão interna;

4[N.E.] ADORNO, Th. W.; HORKHEIMER, M. (1944) Dialética do


Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
7

a civilização não era um processo de humanização,


mas ao contrário um obscuro desenvolvimento de
repressão e disciplina da psiquê, que iria então se
manifestar em surtos de agressão violenta em
direção aos “outros” que ameaçam a já frágil
integridade do self civilizado. Em uma das “Notas”
adicionadas ao texto, intitulada A importância do
corpo, Adorno e Horkheimer escreveram de forma
memorável: “A Europa tem duas histórias: uma
história escrita bem conhecida e uma história
subterrânea. A última consiste no destino dos
instintos humanos e nas paixões que são expulsas e
distorcidas pela civilização”.5
A Dialética do Esclarecimento é um texto ponte
para uma concepção mais ampla de teoria crítica –
de um conhecimento oposicionista e emancipatório
– que emergiu nas últimas décadas do século vinte.
Embora Michel Foucault gracejasse que nunca leu a
Dialética do Esclarecimento (publicada em 1944), sua
obra substituiu o sujeito criativo que Horkheimer

5 [N.E.] A nota foi traduzida como Interesse pelo corpo. No mesmo


parágrafo, após o que foi citado pela autora, lê-se: “O fascismo
atual, onde o que estava oculto aparece à luz do dia, revela também
a história manifesta em sua conexão com esse lado noturno que é
ignorado tanto na legenda oficial dos Estados nacionais, quanto em
sua crítica progressista” (ibid. p. 190).
8

tomou de Hegel, Marx e Lukács por uma teoria


sobre como a subjetividade é criada. A história não
é um registro de feitos de sujeitos singulares ou
coletivos, ele argumenta: em vez disso, ela é
formada por uma série de epistemes – configurações
de poder-conhecimento – cada uma dando forma a
diferentes concepções de conhecimento e ação. No
ensaio Nietzsche, a Genealogia e a História [1971],
Foucault explica que, enquanto a arqueologia escava
as camadas do que é manifesto no presente, a
genealogia procura as rupturas e os deslocamentos
entre a fonte e o fenômeno.6 A genealogia procura
pela emergência (Herkunft), mas a emergência não
significa uma suave evolução de um original
conhecido (Ursprung). Assim como não há narrativa
contínua que possa ser contada sobre um sujeito
coletivo unificado que se desenvolve na história, a
genealogia também não traça uma linha
ininterrupta de desenvolvimento do passado para o
presente, que forneça uma narrativa de
conhecimento acumulado e progresso moral. Em
vez disso, a sociedade é constituída por séries

6 [N.E.] FOUCAULT, Michel. (1971) Nietzsche, a genealogia e a


história. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2002
(organização de Roberto Machado).
9

descontínuas e fragmentadas de configurações de


poder-conhecimento, cheias de deslocamentos e
apagamentos. O conhecimento não é apenas
emancipatório mas também disciplinar; poder só
pode ser confrontado por poder. “O
‘Esclarecimento’, que descobriu as liberdades,
também inventou as disciplinas”, escreve ele em
Vigiar e punir (1975).7
Há uma afinidade natural entre a
contranarrativa do Esclarecimento de Foucault e as
teorias contemporâneas do pós-colonialismo e da
critical race theory [teoria crítica da raça]. Ambas nos
obrigam a considerar o processo da modernização
europeia tanto a partir da periferia quanto do
centro. Em seu melhor, a teoria pós-colonial
explode também a distinção centro-periferia. As
contradições do Esclarecimento se tornam evidentes
quando, no processo de construção de suas
repúblicas, os poderes europeus – os ingleses,
franceses, espanhóis, holandeses e um pouco
depois, alemães e italianos – adquirem também seus
impérios e se confrontam com as diferenças radicais
de raça, cor e cultura. O imperialismo revela os

7[N.E.] FOUCAULT, Michel. (1975) Vigiar e Punir. Petrópolis, RJ:


Vozes, 1987. Ver Terceira Parte. Disciplina.
10

limites do universalismo iluminista. A Europa, nas


palavras de Dipesh Chakrabarty [1948- ], “precisou
ser provincializada” para poder considerar um
verdadeiro universalismo que incluísse toda
humanidade e não apenas homens brancos
cristãos.8
A teoria pós-colonial possui também afinidades
com uma das mais influentes teorias críticas do
período pós-Escola de Frankfurt, o método da
desconstrução de Jacques Derrida [1903-2004]. Ele
transformou a “crítica imanente” hegeliana em um
jogo entre o texto e sua exterioridade constitutiva.
Para Hegel, há mais em uma forma de vida do que
seus participantes podem apreender em
pensamento. A crítica imanente se desenvolve por
meio das contradições que eles enfrentam quando
procuram entender um mundo que podem
apreender apenas imperfeitamente; essa dialética
do pensamento pode ser apenas instilada quando –
como Hegel supôs que aconteceria em uma forma
de vida completamente racional – o pensamento e a
realidade fossem reconciliados. A ideia de que há

8[N.E.] Ver CHAKRABARTY, Dipesh. (2000) Provincializing Europe.


Postcolonial thought and historical difference. Princeton: Princeton
University Press.
11

sempre algo mais do que podemos compreender em


pensamento é transformada por Derrida em um
ensinamento sobre textos. Derrida mostra que os
silêncios e “gaps” de um texto são indícios de uma
subjetividade reprimida de outros que assombram
as notas de rodapé, os apêndices e a marginália. A
desconstrução tem então um núcleo ético: descobrir
as margens do texto se torna um projeto de crítica
da “racionalidade ocidental falogocêntrica”.9
Além da genealogia foucaultiana, da teoria pós-
colonial e da desconstrução, a teoria feminista
contemporânea é uma importante forma de crítica.
Assim como essas outras abordagens, a teoria
feminista quer desmistificar a antropologia
masculina prometeica que guia o modelo da
transformação humana da natureza pela práxis. O
modelo implícito por trás da práxis sempre foi o do
trabalho físico tal como a construção, a fabricação
ou a fabricação [making] em geral. O trabalho
feminino doméstico, que sempre foi uma forma de
trabalho físico que sustenta, repara e protege o
mundo cotidiano – assim como o trabalho de
procriação e criação de crianças e de sustentação

9
[N.E.] Ver em especial: DERRIDA, Jacques. (1972) Margens da
Filosofia. Campinas, SP: Editora Papirus, 1991.
12

das relações íntimas – foram ignorados. A teoria


feminista requer uma revisão radical da
antropologia filosófica marxista do trabalho.

***

Meus breves comentários sobre as teorias


críticas contemporâneas do período pós-Escola de
Frankfurt tem a intenção apenas de sugerir que elas
podem ser vistas como rearticulações plausíveis de
um projeto de crítica iniciado por Kant e
redirecionado pela Escola de Frankfurt. Essa não é
uma estratégia amplamente compartilhada de ler a
conflitiva pluralidade de abordagens que se
localizam no espaço entre a teoria crítica da Escola
de Frankfurt, a genealogia foucaultiana e a
desconstrução derridariana. Nem estou argumen-
tando que esse conflito e suas rivalidades podem
ser ignorados. Eu mesma me engajei em muitos
debates conflitivos com colegas. O que estou
argumentando é que temos que aceitar a legítima e
iluminadora pluralização das teorias críticas. O projeto
de emancipação em um mundo global – no qual
muitas diferentes civilizações e mundos da vida
estão continuamente confrontando uns aos outros,
13

no qual novas subjetividades representadas por


mulheres, gênero e minorias étnicas e sexuais, bem
como grupos raciais, estão expressando a si mesmos
por narrativas que competem – não pode ignorar as
lições da genealogia, do pós-colonialismo e da
teoria feminista, ou negligenciar o significado ético
da desconstrução.
Ainda assim, nenhuma dessas abordagens
consegue realizar um legado crucial de uma teoria
social crítica identificado por Horkheimer: a teoria
crítica da sociedade desenvolve, ele disse, um
julgamento existencial de um “período que está se
aproximando de seu fim”. A teoria crítica deve ser
também uma teoria de crises. Restaurar essa ligação
entre crítica e crise em uma teoria da sociedade tem
sido uma das mais duradouras contribuições de
Jürgen Habermas (1929- ).
Em Crise de legitimação no capitalismo tardio
(1973), Habermas argumentou que, no domínio da
economia e da administração, crise significava
disfuncionalidades, bloqueios, reveses econômicos
repentinos, assim como a inabilidade para prever e
controlar as consequências não intencionadas da
14

administração e das agências públicas e privadas.10


Mas socialmente, as crises transformativas
requerem algo mais: uma disrupção em nosso senso
de sentido compartilhado, em nossa habilidade
para comunicar e interagir livres de distorções, em
nossa capacidade de projetar formas futuras de boa
vida e solidariedade. Movimentos sociais e políticos
transformadores emergem – se emergirem – em
resposta às frustrações e desgostos de nosso mundo
da vida social, não apenas em resposta a disfunções
econômicas ou à falha da administração pública ou
privada. Uma crise de legitimação se desenvolveria,
Habermas argumentou, quando falhas na solução
de problemas práticos – crises econômicas e a
inabilidade estatal para garantir empregos seguros,
boa habitação, saúde e educação para todos (e hoje
poderíamos adicionar, um ambiente sustentável e a
preservação do habitat terrestre) – não pudessem
mais ser racionalizadas [explained away] por uma
cultura de se retirar para a privacidade familiar de
cada um, e pela indiferença e falta de solidariedade
com os outros. Uma crise de legitimação, que
levaria a movimentos oposicionistas, requeria tanto
10
[N.E.] Ver HABERMAS, Jürgen. (1973) Legitimation Crisis. Boston:
Beacon Press, 1975 (traduzido por Thomas McCarthy). Ainda carecemos
de uma tradução à altura do valor deste livro em português.
15

o desencantamento radical com os valores culturais


disponíveis, como a desmistificação das ideologias
públicas das sociedades do capitalismo tardio.
A teoria da ação comunicativa e das crises do
sistema e do mundo da vida, desenvolvida por
Habermas, visava uma pluralização das
subjetividades oposicionistas e dava adeus ao mito
de uma classe operária unificada como sujeito
privilegiado da transformação mundial. A
pluralidade de lutas emancipatórias, sem harmonia
assegurada, foi reconhecida também por muitos
outros. A teoria de Habermas difere das teorias
críticas de Foucault ou Derrida por causa de sua
insistência em que as lutas emancipatórias
contemporâneas devem se constituir sobre o legado
conflitivo e incompleto das democracias
constitucionais. As crises de legitimação em
democracias capitalistas não rejeitam o legado do
constitucionalismo radical, mas procuram
revitalizar a centelha das energias do
republicanismo cívico que uma vez criaram as
ordens constitucionais.
16

***

A teoria da ação comunicativa de Habermas foi


criticada por seu eurocentrismo. Essa crítica
compreende mal que conceitos, tais como de
racionalização, de sistema e de mundo da vida,
descrevem processos que não são apenas
eurocêntricos, mas sim desenvolvimentos de uma
modernidade global. A economia capitalista teve
desde seu início um alcance dinâmico global. O
Estado moderno e seu aparato jurídico e
administrativo se tornou uma aspiração universal
de muitas antigas colônias que se libertaram de seus
legados coloniais. As teorias de modernidades
alternativas não deveriam rejeitar a utilidade
analítica dessas categorias. Os modelos de
modernidades alternativas são mais úteis quando nos
informam sobre a variedade institucional e as
configurações organizacionais dos Estados, dos
mercados e das sociedades civis em contextos
ocidentais, não ocidentais e globais. Mas a descrição
histórica de modernidades alternativas não pode
substituir uma abordagem crítica que tente localizar
os potenciais emancipatórios e oposicionistas dessas
transformações. A acusação de eurocentrismo
17

compreende mal a abstração metodológica por


meio da qual Habermas desenvolve sua teoria da
crise entre sistema e mundo da vida.
Inspirado por Habermas, bem como por
Hannah Arendt [1906-1975], o meu próprio trabalho
tentou superar, nas últimas duas décadas, o
nacionalismo sociológico, por meio da interrogação
da cidadania, da migração e dos direitos dos outros
no contexto global de hoje. As fronteiras do demos –
do self em autogovernos democráticos – não foram
formadas democraticamente pela emancipação da
voz de todos os afetados. A nação foi a identidade
coletiva privilegiada que se inseriu no espaço vazio
[gap] entre o ideal de democracia – como uma
sujeição a leis que vêm de todos que são afetados por
ela – e a realidade de um demos fechado, fundado
no privilégio de pertencimento à nação. A interação
entre a participação democrática e o fechamento
nacionalista é um processo global que vemos na
Turquia, no nacionalismo hindu, no Japão, bem
como no crescente etnocentrismo alemão. O
Ocidente não tem o monopólio sobre a intensidade
de nacionalismos mortíferos.
Estudantes de Carl Schmitt [1888-1895], na
esquerda e na direita, veem nesses processos o
18

conflito necessário entre democracia e liberalismo.


Enquanto a democracia pressupõe, eles
argumentam, uma subjetividade coletiva fechada,
um “nós” que é distinto de um “eles”, o liberalismo
é cosmopolita: ele pressupõe uma associação não
fechada de indivíduos com o direito de ter direitos.
A democracia liberal aparece como um contraditio in
adjecto. Esse ensaio não é o lugar para explicar como
essa justaposição simplista representa mal a
complexidade das lutas democráticas
contemporâneas sobre as fronteiras do demos. Mas
eu quero insistir – como penso que teria feito em
1968 – que, se nós abraçarmos o ceticismo em
relação a direitos humanos universais (como muitos
estão fazendo agora), nós teremos poucas armas
conceituais para nos opor ao populismo de direita
europeu, ao violento nacionalismo turco, ao
chauvinismo hindu e a um isolacionismo
reacionário e racista norte-americano que objetiva
manter a hegemonia branca pelo fechamento de
suas fronteiras para as pessoas negras e morenas
desse mundo.
19

***

Hoje, a ordem (ou a desordem) internacional


pós II Guerra mundial está em ruínas. Uma nova
guerra de superpoderes se anuncia, disfarçada, por
enquanto, como guerra comercial. A esquerda
sempre foi cética – em muitos casos
justificadamente – em relação a instituições de
governança multinacional, tais como as Nações
Unidas, o Tribunal Penal Internacional e a
Organização Mundial do Comércio. Mas essas
instituições agora se encontram nas margens da
história, assistindo ao confronto entre os EUA e a
China, de um lado, e a crescente expansão do
populismo autoritário da Hungria à Turquia, das
Filipinas à Polônia, da Rússia à Cingapura, de
outro. E, infelizmente, até agora temos muito pouco
a dizer sobre a formação de um mundo alternativo
no qual a liberdade e a justiça possam ser abrigadas
em instituições que transcendam confrontações
violentas de superpoderes. A crítica de esquerda da
globalização neoliberal terá que se ampliar para
considerar novas instituições globais de controle do
capitalismo em escala global, a fim de encorajar,
entre os povos, o crescimento planetário ecológico e
20

sustentável, e a fim de apoiar o sistema


internacional de direitos humanos.
Como observou Arendt, liberação não é o
mesmo que liberdade. Liberdade requer criar
instituições e práticas; isso envolve formatar
mundos novos e duráveis. E essa é uma tarefa que
cada geração deve novamente carregar. Eu não
compartilho a difusa “melancolia de esquerda” de
hoje, para usar o título de um ensaio de Walter
Benjamin [1892-1940]11, agora tornado famoso
novamente pelo magistral e pungente balanço de
Enzo Traverso [1957- ] sobre a morte do socialismo
e do comunismo tradicionais em nosso mundo.12 A
tarefa da crítica é interminável; ela precisa
confrontar as formas sempre novas de injustiça,
opressão, exploração e marginalização.
Emancipação não significa apenas liberação dessas
injustiças, explorações, exclusões e marginalizações,
mas também ter coragem de construir um novo
mundo no qual a liberdade possa ser abrigada.

11
[N.E.] A autora alude a: BENJAMIN, Walter. (1930) Melancolia de
esquerda. A propósito do novo livro de poemas de Erich Kästner. In:
BENJAMIN, W. Obras Escolhidas, vol. 1. Magia e técnica, Arte e
Política. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 73-77.
12
[N.E.] A autora se refere a: TRAVERSO, Enzo. (2017) Left-Wing
Melancholia: Marxism, History, and Memory. Columbia: Columbia
University Press, 2ª edição.
21

Um dos famosos slogans do movimento


estudantil alemão, originalmente usado pelos
situacionistas franceses nos anos 1960, era “abaixo
do asfalto está a praia”. Eu ainda procuro por ela.

Você também pode gostar