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O Esporte de Alto Rendimento

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Motrivivência Ano XXV, Nº 41, P. 190-205 Dez.

/2013

http://dx.doi.org/10.5007/2175-8042.2013v25n41p190

O ESPORTE DE ALTO RENDIMENTO FAZ


MAL À SAÚDE? Uma análise das atletas da seleção
brasileira de ginástica rítmica

Danielle Freire Wiltshire Viana1


Cristiano Mezzaroba2

RESUMO

Considerando as atletas da seleção brasileira de Ginástica Rítmica e seu contexto de


treinamento esportivo, identificamos e analisamos as compreensões que essas atletas
têm no que se refere à saúde. O tipo de pesquisa foi estudo de caso, com observação
participante e entrevistas semi-estruturadas. A partir dos dados coletados, sintetizamos
as análises nas categorias: “Habitus esportivo”, “O sonho das Olimpíadas” e “Saúde é
só ausência de doença?”. Vemos uma visão restrita de que saúde, ao menos para essas
atletas de alto rendimento, baseia-se apenas no controle das dores, portanto, uma visão
restrita ao físico, sendo desconsideradas questões psicológicas e sociais.

Palavras-chave: Esporte de alto rendimento; Saúde; Ginástica rítmica.

1 Especialização em Educação Física Escolar/Faculdade Atlântico Brasil. Professora da Rede Pública de Sergipe.
São Cristóvão/Sergipe, Brasil.
E-mail: daniellewiltshire@hotmail.com.
2 Mestre em Educação Física. Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão/Sergipe, Brasil.
E-mail: cristiano_mezzaroba@yahoo.com.br.
Ano XXV, n° 41, dezembro/2013 191

INTRODUÇÃO deve manter sempre o seu rendimento má-


ximo com treinamentos de seis a oito horas
O esporte de alto nível é hoje um por dia, com vistas à superação constante
dos maiores fenômenos sociais atingindo de desafios, ou seja, o fator esporte como
direta ou indiretamente todos os segmentos, uma prática que transcende os limites físicos
sejam de ordem econômica, educacional, do corpo.
científica, entre outras. Esse modelo, que Considerando que os Jogos Olímpi-
há muitos anos é sinônimo (ou modelo) de cos são a principal competição do alto ren-
provedor da saúde, oculta uma realidade dimento, tem-se o lema do ideal olímpico:
contraditória. Isso porque, costumeiramen- Citius, Altius, Fortius o que significa, em
te, ao menos no plano do senso comum, latim, “o mais rápido, o mais alto, o mais
tem-se a ideia – e os discursos são veicu- forte”. Essa citação, criada pelo Padre Di-
lados nesse sentido – de que a prática e o don3, amigo do Barão Pierre de Coubertin4,
treinamento do esporte de alto rendimento, resume a postura que um atleta precisa ter
em que atinge-se o máximos dos limites para alcançar seus objetivos, a superação
físicos dos atletas, acaba impactando em em busca da medalha olímpica. Sua essên-
ganhos no que se refere à saúde física desses cia está na superação dos limites.
praticantes. Como qualquer outra profissão,
Neste texto, trazemos os dados de os atletas praticantes do alto rendimento
uma pesquisa realizada em 2011, em Araca- também possuem seus agravos consequen-
ju, estado de Sergipe, cidade onde a seleção temente ligados ao sistema capitalista que
brasileira de ginástica rítmica realiza seus vivemos, na qual, envolvem muito mais a
treinamentos para as principais competições questão da sustentabilidade do sujeito do
internacionais. Participaram da pesquisas que qualquer outro fator que seja relacio-
as atletas da seleção brasileira de Ginástica nado à saúde ou não.
Rítmica, em que nos detemos investigar o Do ponto de vista sócio-econômico
contexto de seus treinamentos e seus coti- vale ressaltar que muitas pessoas, principal-
dianos, procurando compreender as visões mente de classes sociais menos favorecidas,
dessas atletas no que se refere à saúde. vêem no esporte um meio de ascensão
Iremos considerar que o esporte de social, algo que no Brasil é fácil de ser cons-
alto rendimento é aquele no qual o indiví- tatado, pela existência de vários exemplos
duo participa regularmente em competições de atletas que se destacaram no esporte e
esportivas, com treinos exaustivos, sendo o que atualmente melhoraram sua condição
objetivo principal obter recordes. O atleta de vida através dele (nossos jogadores de

3 Sacerdote dominicano francês, diretor de um colégio, o qual sua pedagogia era baseada no desporto, mandou
bordar na bandeira do seu colégio o lema “Citius, Altius, Fortius” sendo em 1894 adotado como frase lema
no primeiro congresso olímpico, utilizado desde as primeiras Olimpíadas da Era Moderna em Atenas, 1896.
Informações obtidas em: http://www.cob.org.br/movimento_olimpico/simbolos.asp.
4 Pedagogo e historiador francês, tornou-se amigo do padre Didon, por suas visitas aos colégios, os quais traba-
lhava para que as escolas religiosas incluíssem atividades desportivas em seus currículos. Ele foi considerado
o fundador dos jogos olímpicos da era moderna. Informações obtidas em: http://noticias.bol.uol.com.br/espor-
te/2008/07/28/ult33u73642.jhtm.
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futebol que são “produzidos” e “exportados” apresentamos e analisamos os dados en-


para os mercados do futebol europeu são os contrados, ou seja, as categorias que foram
exemplos mais rotineiros desse mecanismo). elaboradas a partir dos dados coletados.
Não por acaso, vê-se uma preocupação
institucionalizada – governamental, inclu-
sive – em ofertar escolinhas de futebol em Esporte na modernidade: espetáculo, mer-
contextos desfavorecidos, como forma de cadoria, mídia
controle do tempo dessas crianças/jovens,
mas também como forma barata (senão Se levarmos em consideração o
gratuita) de encontrar talentos esportivos. esporte moderno é de fácil percepção que
A escolha deste tema também está todo o seu objetivo antigo, considerando
atrelada aos discursos midiáticos sobre o seu aspecto lúdico, foi deixado de lado
esporte de alto rendimento, que veiculam ao retratar o esporte como sendo ele de
a ideia de que “esporte faz bem à saúde”, rendimento. Aqui trataremos como suas
portanto, quanto mais se treinar esporte, características o rendimento físico-técnico,
mais saúde (física/corporal) e que é através a competição frequente, obtenção de re-
da representação corporal de uma “boa esté- cordes e superação constante de desafios,
tica” – por isso a representação de um corpo conforme Vaz (2005) e Bracht (1997).
atlético – que se obtém um corpo saudável. Ao discutir o esporte de rendimento,
Assim, é de vital importância consi- Bracht (1997, p.13) relaciona o esporte de
derar os problemas que o esporte de alto ren- rendimento ao esporte espetáculo “porque
dimento podem provocar à saúde do indiví- este abriga a característica central desta ma-
duo praticante. Para isso, perguntamo-nos, nifestação (...) a transformação do esporte
como problema de pesquisa: quais as em mercadoria veiculada pelos meios de
compreensões que as atletas da seleção comunicação de massa.” Ou seja, o esporte
brasileira de ginástica rítmica têm em de rendimento que se transforma em lazer
relação à prática constante e intensa do enquanto espetáculo assistido significando
esporte de alto rendimento em relação a uma transformação do esporte em mercado-
sua própria saúde? ria pelos meios de comunicação, havendo
Assim, neste estudo que ora apre- uma constante aparência entre essas duas
sentamos, fizemos uma análise com as manifestações. A partir daí, percebe-se a
ex-atletas da seleção brasileira de ginástica transformação que a mídia exerce sobre as
rítmica que até então possuíam o objetivo imagens escolhidas para mascarar o quão
de alcançar performances consideradas tal esporte é representado para o mundo de
inatingíveis. Apresentamos uma discussão uma maneira irreal.
sobre o esporte na modernidade; depois, Segundo Marin (2005, p.80) “quan-
uma discussão sobre saúde em sua con- do a mídia oferece ao público (...) os tênis
cepção ampla; na sequência, abordamos as da Nike, a espetacularização esportiva, ela
questões da ginástica rítmica, em relação à não está apenas vendendo produtos, mas
feminilidade, beleza e corpo perfeito. Segui- sim fornecendo ‘referências culturais para
mos com a explanação dos procedimentos suas identidades.’” Assim, as imagens retra-
metodológicos da pesquisa e, em seguida, tadas pela mídia mostram apenas aquilo que
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lhe é de interesse, pois ao retratar esporte que “é capaz de expressar, transcender,


induzindo todas as pessoas acreditarem que mascarar, simular e maquiar sentidos a todo
tal prática proporciona benefícios à saúde, o momento” trazendo para a plateia uma
esconde que esta prática pode trazer riscos linda performance, podendo haver muitas
à saúde de quem o pratica. vezes alguma contusão no corpo físico da
O esporte de alto rendimento que ginasta, porém não há percepção por parte
a mídia se apropria como espetáculo para dos espectadores devido à beleza da atleta
mascarar o verdadeiro significado deste em quadra. Assim,
esporte nos faz acreditar que esporte é si-
nônimo de saúde e que pelo fato do sujeito O esporte de alto rendimento procura
construir uma imagem que pretende
apresentar uma elevada condição atlética,
criar uma ilusão de que as práticas
este é considerado como um indivíduo esportivas nada têm a ver com as dro-
saudável. Isso acontece porque, segundo gas, ao passo que a convivência com
Bianchi e Hatje (2006, p.166) “a mídia elas – legais ou não – parece ser uma
necessidade no alto rendimento dadas
representa no contexto social, como forma-
às enormes exigências competitivas e o
dora de opinião e construtora de saberes/ extremo sacrifício somático e psicoló-
fazeres sociais sobre o esporte”. gico ao qual o indivíduo é submetido.
Assim, fica evidente, conforme Betti (VAZ, 2005, p.28)
(2002, p.2) que “o esporte não teria alcan-
çado a importância política, econômica e Ou seja, a mídia não retrata o sofri-
cultural de que desfruta hoje não fosse sua mento da atleta e quando o faz, o problema
associação com a televisão, associação esta está sempre relacionado exclusivamente a
que criou uma ‘realidade textual autônoma’: alguma dor muscular, desprezando-se a
o esporte telespetáculo”. pressão psicológica que a própria mídia
O fato de que a mídia expõe tal exerce ou mesmo questões que ampliam
afirmação, qual seja, de que esporte é para além do físico-corporal o entendimento
sinônimo de saúde, explica-se através de sobre “saúde”.
não possuir capacidade suficiente para se
apossar do esporte como um todo existin-
A saúde em foco: qual saúde?
do dois motivos importantes que, segundo
Betti (2002, p.2) “pela própria natureza e
Ao iniciar esta discussão sobre saúde
limitações de cada mídia; pelo fato de que
é necessário entender um pouco a respeito
cada mídia cumpre funções específicas”, ou
do discurso médico-higienista na constitui-
seja, como a mídia não é capaz de por si só
abordar o esporte em sua inteireza, através ção do campo da Educação Física no Brasil
de seus interesses ela divulga o esporte de enquanto prática saudável para o corpo.
alto rendimento como sendo uma prática De uma maneira bem sucinta, o
saudável e deixa de lado outras discussões discurso médico-higienista trata saúde como
importantes a respeito do esporte. sendo ausência de doença, ou seja, aborda
No caso específico da GR, Cavalcanti a saúde do ponto de vista exclusivamente
e Porpino (2007, p.2) argumentam sobre biológico, deixando de tratar o corpo
esse corpo que se apresenta como algo como algo para além da esfera individual,
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entendido, também, como um “corpo auxiliar à formação integral humana – a ser


social” em decorrência da forma como a realizada nas escolas, já que o corpo exigido
sociedade moderna se estrutura – enten- diante de uma nova ordem social seriam os
dimento que amplia o que se entende por “corpos” e as “mentes” disciplinadas. De
“saúde” para além da interpretação tratada uma maneira bem simplista, é daí que vem
no senso comum como “ausência de doen- a ideia de que atividade física é geradora de
ças”. Assim, saúde ou de que o movimento corporal, por
si só, de maneira naturalizada, geraria saúde
A medicina social que se estrutura a (o discurso da monocausalidade).
partir do século XIX, procura demons-
Assim, a visão sobre saúde na área
trar que a verdadeira origem, causa ou
determinação da doença era a realida- da Educação Física repercutiu de uma
de social, absolutamente opressora do maneira geral ao longo dos anos, tendo
capitalismo a partir do século XIX. A permanecido praticamente reduzida à com-
fome, a miséria e a dominação tinham,
preensão de se promover práticas esportivas
para esta concepção de medicina, uma
relação direta com a origem das do- e de atividades físicas, o estabelecimento de
enças, não sendo, suficiente portanto, uma suposta relação positiva e linear de que
apenas, a intervenção médica no corpo “esporte é saúde” transforma esse conceito
individual ou no coletivo social para o
de um jeito que não se pode negar a força
restabelecimento ou o estabelecimento
da saúde, como postulava a medicina de sua representação, já que ao longo dos
clínica. Não pode haver saúde sem que tempos o esporte passou a ser o conteúdo
se mude a sociedade, pois, é a estrutura principal/hegemônico da Educação Física.
social que explica o surgimento das do-
Nesse sentido, o esporte – aqui
enças. (SOARES, 2007, p.23)
estamos tratando do esporte enquanto
manifestação do alto rendimento – hoje
Dessa maneira, os causadores das
é uma grande potência representativa que
doenças: a miséria, as (más) condições de
de maneira simplista e errônea é tratado
habitação, de saneamento básico e esgoto
como algo que proporciona automatica-
etc. transformavam os “corpos saudáveis”,
mente a saúde de quem pratica, porém se
que era exigência do capitalismo ao utilizar
analisarmos as condições do treinamento
a mão de obra do trabalhador, em “corpos
esportivo de alto nível nem sempre essa
doentes” que não poderiam utilizar sua mão
afirmação se confirma.
de obra. Ao mesmo tempo, o trabalhador te-
Na discussão que nos propomos fa-
ria um novo traçado, seria “um trabalhador
zer agora, trazemos à tona a crítica principal
mais produtivo, disciplinado, moralizado
que se baseia em minimizar o conceito de
e sobretudo, fisicamente ágil.” (SOARES,
saúde ao aspecto biológico, no qual envolve
2007, p.134)
a ausência de doença para aquisição de saú-
A partir daí, a Educação Física, idea-
de, uma forma de pensar a complexidade
lizada e realizada pelos médicos higienistas,
do tema da “saúde” do ponto de vista do
tornou-se uma disciplina – digamos aqui de senso comum.
cunho “prático”, até hoje confundida ape- Além disso, o próprio conceito de
nas como uma “prática” e não como um sa- saúde apresentado pela Organização Mun-
ber e um fazer, articulados, na dimensão de dial de Saúde (OMS) no século XX, entende
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a saúde como “um estado de completo bem- alcançado e faz o atleta sentir-se excluído
-estar físico, mental e social e não apenas a do mundo esportivo que:
ausência de doença ou enfermidade”.
Pensamos que esse conceito de Mais problemáticos que os prejuízos à
saúde são (...) os problemas de ordem
saúde apresenta análises reducionistas do psíquica. Estes se manifestam e se tor-
estudo do ser humano, visto que as doen- nam mais graves, especialmente em
ças decorreriam apenas de determinismos casos onde houve desilusões. (KUNZ,
2000, 13)
biológicos, o foco central seria o indivíduo
e a ausência de doenças seria o marcador
Mas o problema não acaba aqui. A
da saúde – importante destacar que não
saúde psíquica, como Kunz (2000) se refere
desprezamos que são dimensões a serem
pode ser afetada também pela própria cobi-
consideradas no estudo do que se entende
ça por medalhas, pois é através delas que se
por saúde, por doença, mas aqui nos pro- obtêm resultados e consequentemente, isso
pomos a pensar numa compreensão para repercute em atração (positiva ou negativa)
além de aspectos deterministas, em que de patrocínios e recursos para um treina-
apenas um aspecto determina ou configura mento mais adequado e eficiente. Além
práticas sociais e de vida que garantem ou disso, a própria mídia colabora com a não
geram saúde nas pessoas, ou o entendimen- promoção da saúde psíquica, ou seja, quan-
to destas em relação à saúde e às formas do um atleta bastante conhecido está no seu
de se mantê-la ou recuperá-la, ou mesmo auge, há uma certa pressão, principalmente
promovê-la. da mídia, no sentido de fazer uma intensa
Dessa maneira, o aspecto biológico divulgação e todo esse sensacionalismo
não deve ser encarado único e exclusiva- faz com que o atleta se sinta pressionado e
mente de forma reduzida, mas sim de forma obrigado a fazer bons resultados (e com isso,
ampliada, levando em consideração as trazer resultados para o seu país).
diversas variáveis, entre elas: as condições Se levarmos em consideração a
sócio-econômicas, culturais, comporta- variável “família” nesse contexto, provavel-
mente os atletas por passarem meses sem
mentais, ecológicas e políticas de cada
ter contato presencial com suas famílias e
população.
grupos de amigos se sentem fragilizados
A condição comportamental a que
quanto a tal isolamento social, centrando-se
nos referimos aqui é em relação ao atleta
unicamente nas suas equipes e no próprio
de alto rendimento que além de conviver
treinamento, o que acaba por abalá-los
com as intensas pressões de um cotidiano psicologicamente pensando-se no convívio
com altas doses de treinamento físico/ social e no excesso de treinamento.
técnico e com isso, também com as dores Certamente se levarmos em con-
das lesões convivem com a “pressão” por sideração a saúde de uma maneira bem
parte de técnicos e até mesmo da própria ampla, como deve ser tratada, a discussão
torcida que acompanha sua trajetória. Além e o entendimento que devemos ter/fazer
disso, o psicológico dos atletas pode ser deve permitir que os fatores biológicos e
afetado também por fracassos ou desilusões psicológicos de um atleta que pratica es-
no esporte, na qual seu objetivo não foi porte de alto rendimento devem ser levados
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em conta em conjunto a outras variáveis, senti-la construindo assim as próprias ca-


geralmente desconsideradas, como lesões, racterísticas da GR constituindo um esporte
desilusões, pressões, cobiça, sensacionalis- eminentemente feminino cujas expressões
mo e geração de expectativas pela mídia, corporais são evidenciadas e ressaltadas
isolamento social, distância da família e em sua prática, já que, considerando-se as
amigos e a dificuldade de adequação a um formatações e preconceitos da sociedade,
contexto social que difere de sua cidade/ dificilmente caberia ao homem desenvolver
estado/país de origem (quando, por exem- os mesmos movimentos “femininos” (apesar
plo, há a necessidade de mudança do local que essa sensibilidade atribuída às atletas é
de treinamento). conseguida na base de muita força, muito
treino, muita dor, muita superação – para-
doxalmente, atribuições masculinas).
Dimensionando a ginástica rítmica: femi- Diante disso, o corpo utilizado no
nilidade, beleza, corpo perfeito esporte de alto rendimento como sendo um
objeto que procura cada vez mais e maior
Para entendermos a GR na dimen- produção na obtenção de recordes, também
são da feminilidade, beleza e do corpo per- é o corpo que ao ser comparado a uma má-
feito é necessário um breve entendimento a quina, executa movimentos considerados
respeito do surgimento do esporte que antes complexos e de difíceis execuções. E para
praticado como um meio de sobrevivência que esses movimentos sejam executados é
tomou dimensões mais amplas, sendo pra- necessário que o corpo seja disciplinado,
ticado para os homens se prepararem para garantindo uma melhor performance do indi-
as guerras, recentemente para a conservação víduo que, segundo Vigarello (2008, p.231),
da saúde, chegando aos aspectos estéticos “o esporte pode constituir a única educação
e artísticos do corpo do ser humano, prin- do corpo”, pois se analisarmos atualmente,
cipalmente do corpo da mulher. foi constituído um mito sobre esporte que
Se compararmos a participação afirma piamente que a prática esportiva retira
de homens e mulheres seja na prática de “o jovem das drogas”, que “gera saúde” e isso
qualquer manifestação esportiva, seja ela significam escolhas que devemos realizar na
de rendimento ou não, é fácil perceber vida, não só esportiva, e que seria por essa
que antigamente, esporte era considerado razão a educação do corpo, técnico ou não,
algo masculino, pois era o homem que se ao fazer escolhas sejam elas dolorosas ou
preparava para guerra, pelas características não. Assim, Vigarello (2008, p.209) afirma:
da força, robustez, enquanto à mulher “este corpo técnico... é um corpo medido.
configuravam-se características como fragi- Seus progressos, como seus treinamentos,
lidade, sensibilidade e a indissociável figura são ‘maquinados’.” Assim,
da maternidade.
Dessa maneira, as mulheres conse- O corpo é tomado como objeto mani-
guiram espaço dentro da prática esportiva pulável enquanto investido na direção
da ginástica, justamente por possuírem de expressar a capacidade humana de
dominar a natureza e de explorá-la,
histórica e culturalmente a característica fazendo-a render o máximo possível.
do “sensível”, capaz de expressá-la, de Potencializar o corpo só é possível
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enquanto esse é objetivado, para en- mitológicas abordarem a beleza feminina, a


tão fazê-lo suportar a dor e a renúncia magreza, ou seja, sua aparência, acaba por
do prazer imediato exigido – sentir
voluntariamente fome; levar o corpo
se tornar a principal característica de uma
até a exaustão por meio do exercício ginasta praticante desse esporte que exige
físico; comer a partir do cálculo sobre cada vez mais da feminilidade, beleza de
o número de calorias e nutrientes dos movimentos e consequentemente corpos
alimentos –, em benefício de se cons-
truir um corpo atlético e/ou saudável.
modelados para uma boa performance.
(BOAVENTURA, 2008, 42)

Se nos referirmos à Dialética do es- PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS


DA PESQUISA
clarecimento, Adorno e Horkheimer (1985)
afirmam que para alcançar o processo de
Essa pesquisa qualitativa, de caráter
civilização são necessários alguns sacrifícios
descritivo-exploratória, configurou-se, em
ao corpo que por terem sido repreendidos
seu tipo, como estudo de caso (MEKSENAS,
como: desejos, sensações; possibilitou a
2002), em que pretendemos compreender
construção de um indivíduo esclarecido
de maneira interpretativa as experiências
capaz de controlar as vontades de seu
dos indivíduos inseridos no contexto em
próprio corpo. A partir daí, ao fazermos
que vivem a fim de buscar uma maior ve-
analogia com o esporte fica claro que este,
racidade e fidedignidade dos fatos. Como
segundo Boaventura (2008, p.42) tem como
sujeitos desta pesquisa, selecionamos sete
“princípio básico do treinamento colocar o
atletas da seleção brasileira de ginástica
corpo sob o máximo controle”.
rítmica, sendo os dados coletados a partir
Para que o corpo seja controlado
da entrevista semi-estrutura (realizadas no
é imprescindível a utilização da técnica,
período de 05 a 20 de março de 2011),
e neste caso da GR, uma técnica perfeita,
tendo como técnica para análise dos dados
difícil de ser executada e com o passar dos
a análise de conteúdo (BARDIN, 2004), em
tempos torna-se quase impossível de ser rea-
lizada, e um corpo perfeito para execução que, a partir deste procedimento, identifica-
dos movimentos. mos três categorias de análise: (1) Habitus
Fazendo uma referência ao que esportivo; (2) O sonho das Olimpíadas, e
Vigarello (2008, p.220) chama de “mo- (3) Saúde é só ausência de doença?
delagem do próprio corpo”, ao retratar o Com base nas entrevistas realizadas
corpo utilizado numa prática esportiva e com as sete atletas da seleção brasileira de
ao ter como base principal desta pesquisa GR organizaram-se as respostas, realizando
a GR, esta modelagem está associada a um uma pré-análise e em seguida a elaboração
conceito de beleza constituído a depender das categorias de análise, conforme sugere a
do tempo sócio-cultural que vivemos, pois análise de conteúdo. Na sequência do texto,
nem sempre a magreza foi sinônimo de apresentamos essas três categorias – Habitus
beleza. Ao discutir essa tal modelagem, esportivo; O sonho das Olimpíadas; Saúde
o corpo da ginasta deve estar apropriado é só ausência de doença? – que sintetizam
ao uso do collant, que por ser um esporte os achados deste trabalho, acompanhadas
praticado por mulheres e suas características da discussão teórica pertinente ao tema.
198

APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS considerando esta, a única qualidade das


aulas de Educação Física e por isso, o aluno
Hábitos esportivos ao praticar um esporte qualquer é dispensa-
do dessas aulas, trazendo essa proposta que,
Esta categoria de análise revela as desde cedo, as crianças são acostumadas a
informações dadas pelas atletas no que diz optarem por um único esporte.
respeito ao treinamento precoce especia- Tratando das questões do treina-
lizado, que desde muito cedo são disci- mento precoce:
plinadas para obter resultados no esporte.
Além disso, as informações desta categoria Os maiores problemas que um treina-
também apontam para a rotina de treina- mento especializado precoce provoca
na vida da criança e especialmente
mento dessas atletas (e o impacto disso em
em seu futuro, após encerrar a carrei-
suas vidas sociais, na sua alimentação/dieta, ra esportiva são: a unilaterização de
nas perspectivas de superação diária) e as um desenvolvimento que deveria ser
competições as quais participaram. plural; reduzida participação em ativi-
dades, brincadeiras do mundo infantil,
Habitus5 esportivo aparece o maior
indispensáveis para o desenvolvimento
número de vezes diante dos relatos apresen- da personalidade na infância.(KUNZ,
tados pelas atletas. Foram 21 menções nos 1994, p.12)
depoimentos obtidos através das entrevistas.
As ginastas entrevistadas iniciaram Essa unilaterização de movimentos
sua prática esportiva na escola desde muito que o esporte específico de rendimento
novas, na faixa de sete anos de idade. Todas proporciona, também traz consigo uma
afirmam serem dispensadas das aulas de unilaterização do atleta que se materializa
Educação Física escolar, já que para as es- depois de obter uma graduação em Educa-
colas o interessante é que o aluno pratique ção Física (como também se constatou nesta
qualquer atividade física (aqui entendida pesquisa), mantendo o círculo vicioso, ou
como “esporte”), sendo portanto a GR como seja, continua realizando, agora na condi-
o esporte escolhido por elas; motivo pelo ção de professor, apenas o que aprendeu
qual as ginastas entrevistadas não recordam na sua vida de treinamento esportivo, ou
de suas aulas de Educação Física escolar. seja, tratar a GR no seu sentido estritamen-
Isso acontece porque as próprias es- te técnico e de treinamento numa aula de
colas desconhecem a importância das aulas Educação Física Escolar:
de Educação Física, componente curricular
Ginástica é vício! Você sai da ginástica
este sendo erroneamente tratado como uma e vira técnica, é mole? (Ginasta 5, de-
simples aula que aborda apenas os esportes poimento)
em si, de maneira “prática”.
Assim, o senso comum pensa Se pensarmos num treinamento
que qualquer atividade física “natural- de rendimento durante a infância, Kunz
mente” proporciona saúde ao indivíduo, (1994) faz críticas ao analisar que a criança

5 O habitus é o princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma
posição, isto é, em um conjunto unívoco de escolha de pessoas, de bens, de práticas. (PILATTI, 2006).
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perde as brincadeiras, que são próprias da pessoal por causa de um trabalho, no caso
idade, vivenciando uma fase antecipada delas, profissionais que vivem do esporte,
de responsabilidades e de uma vida social em especial, da seleção brasileira de GR.
regrada e diferente das outras crianças que O que se vê diante das entrevistas
não o praticam. realizadas com essas ginastas é a presença
Além disso, as ginastas relatam a do chamado Ethos esportivo que se carac-
disciplina que aprendem a ter em relação teriza por possuir características próprias de
ao ritmo de treinamento, a chamada “super- um atleta de rendimento, ou seja, é como
-dosagem de treinamento” desde novas. se fosse uma identidade esportiva que pos-
Aprendem que a repetição do movimento suem uma cultura que seria ter disciplina,
leva à perfeição e que tudo que elas querem determinação e garra, como os sujeitos da
alcançar depende, apenas, da força de von- pesquisa afirmam, para conseguir atingir
tade delas. Ou seja, tudo para essas atletas qualquer objetivo, seja no esporte ou na
depende do desempenho e da superação dimensão da vida social de cada um.
que elas procuram ter para permanecerem Sobre isso, apoiamo-nos em Vigarello
na seleção brasileira. (2008, p.197), ao considerar que:
A partir daí, é perceptível o quanto
o sacrifício de manter o “corpo ideal”, essa O treinamento pode continuar sendo
uma cultura “curiosa”, surdamente con-
sistematização de controlar o peso é algo
testável: esforço muito egoísta enquanto
naturalizado para elas, sendo um hábito já se deveriam privilegiar outras eficácias.
incorporado pelas ginastas enquanto um É a legitimidade do treinamento: as re-
esporte que exige ter um corpo longilíneo sistências, aos obstáculos escondidos.
A passagem da simples expectativa
e esbelto, fazendo parte, assim, de um “ha-
de força, por exemplo, a um objetivo
bitus esportivo” da ginástica rítmica. mais profundo, mais complexo, o de
um interminável e íntimo desabrochar
É uma educação diferenciada das pes- pessoal. Daí essa constatação de um trei-
soas que não praticam o esporte, sabe? namento físico e um desenvolvimento
(ginasta 7, depoimento) pessoal. Trata-se do jogo com o limite.

Essa “educação” que a ginasta se A crítica que Vigarello (2008) faz ao


refere condiz com o fato de que quem pra- treinamento diz respeito ao fato de que, a
tica o esporte de alto rendimento aprende cada ano que passa o treinamento fica mais
valores que normalmente um sujeito que técnico e mais rigoroso, transformando esse
não pratica não possui. Valores como: ter treinamento num desafio impactante em re-
determinação e não desistir facilmente de lação ao psicológico e ao tempo disponível
seu objetivo, garra, força de vontade não de lazer de um atleta que numa (in)certeza
só no esporte em si, mas força de vontade de ganhar um campeonato realiza sacrifícios
no que diz respeito a abdicar de outras ati- egoístas diante uma vida social habitual.
vidades na vida delas; são valores que para Todas as entrevistadas relatam que
serem praticados, necessitam da abdicação seu treinamento ocupa de oito a dez horas
de muitas atividades que normalmente um por dia, com repetições desde muito cedo,
sujeito não abdicaria de sua vida social e pois a GR é um esporte que necessita da
200

repetição para alcançar a perfeição, como alimentação, já que o perfil de uma atleta
elas dizem, porque até mesmo treinando de GR é ter um corpo esbelto e longilíneo
muito, no momento da competição pode-se que transpareça suavidade e leveza em
falhar: movimentos que cada dia mais se exigem
técnica e aperfeiçoamento. Então a própria
É um esporte muito impreciso! Você roupa utilizada por elas exige um corpo ma-
pode fazer lindo, perfeito hoje e amanhã
gro, exige um controle de alimentação até
errar tudinho (ginasta 3, depoimento).
mesmo porque todo dia elas são pesadas,
objetivando-se, assim, um “enquadramento
Por fim, esta categoria ilustra o quan-
corporal” quantitativo e simbólico:
to as atletas são disciplinadas desde cedo
para exercerem sua carreira profissional
É incontestável que a transformação dos
obtendo êxitos e conquistando seu espaço corpos das ginastas depende de muita
dentro do mundo esportivo. dedicação em relação aos treinos, mas
seria ingenuidade pensar que o perfil
atlético se dá somente devido a esse
fator. Para compor o treinamento, além
O sonho das Olimpíadas
da exigência técnica, elas devem con-
trolar o peso corporal. (BOAVENTURA,
A categoria O sonho das Olimpíadas 2008, p.44)
foi criada a partir da evidência que as atletas
fazem em relação a atingir a principal meta Além disso, é perceptível que a GR
que qualquer atleta do alto rendimento ao mesmo tempo que exige da atleta uma
espera alcançar: ir aos Jogos Olímpicos. “magreza” para que seja bonito de se ver,
O sonho de um dia chegar às Olim- exige também cada vez mais funcionalida-
píadas é uma expressão utilizada por todas de. Segundo Gonçalves (2007), isso aconte-
as ginastas entrevistadas aparecendo 16 ce principalmente com bailarinas que, para
vezes nos relatos de entrevistas. nós, também apresenta-se como caracterís-
Esta categoria mostra a expectativa tica da GR, já que o ballet e a GR possuem
que as atletas têm em estar e se manter na características em comum no sentido de
seleção brasileira e seus planos futuros no que percebemos a contradição existente
que diz respeito a sua carreira esportiva. nessas duas práticas que é a beleza versus
O que se vê diante das respostas o sofrimento e que exige um “corpo ideal”
coletadas de cada ginasta é a presença e cada vez mais técnica nessas práticas.
exacerbada do lema do ideal olímpico: Em contraponto elas afirmam que
Citius, Altius, Fortius, que resume a postura precisam sempre emagrecer, mas não
que um atleta precisa ter para alcançar seus possuem acompanhamento de um nu-
objetivos, a superação em busca da medalha tricionista, podendo acarretar sacrifícios
olímpica, a essência que deve possuir em maiores ainda:
qualquer atleta que é a superação de limites
e aprender a transpor as barreiras. O que mais chocou (...) foi ver minha
Nas falas das atletas expressam-se amiga que conheci lá em Joinvile, sabe?
Ter início de bulimia e era horrível,
alguns sacrifícios que alegam terem feito/
sabe, ver ela comendo e vomitando vá-
fazerem, como por exemplo controlar a rias vezes por dia (...) todo dia né e você
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não poder fazer nada, era triste. Prefiro mostrarem apaixonadas pelo esporte que
nem falar (...) (Ginasta 3, depoimento) praticam:

Além disso, as ginastas contam que Quem faz ginástica faz por amor e não
abdicam de famílias, amigos, de sair para por dinheiro entendeu? (Ginasta 5, de-
poimento)
as festas, tudo em prol de um treinamento
de alto nível para a realização de um sonho.
As falas mais acentuadas se referem Por fim, conforme a lógica das gi-
ao sacrifício realizado por elas quando nastas entrevistadas, poderíamos dizer que
retratam as dores e as lesões já sofridas qualquer sacrifício vale a pena para estar e
por causa do esporte. O que se vê diante se manter numa seleção a fim de realizar
disso é uma preocupação em não conse- o maior sonho de qualquer atleta, ou seja,
guir suportar as dores e em consequência atingir sua meta que é participar dos Jogos
não atingir a meta delas que sempre foi o Olímpicos, mesmo com chances irrisórias
sonho de estar nos Jogos Olímpicos. Jamais de medalha. Para elas, portanto, a partici-
ressaltam a preocupação em passar o resto pação já é suficiente para a realização deste
da vida sentindo dores. O importante para grande sonho presente na vida de qualquer
elas são as Olimpíadas. atleta profissional.
Manter-se na seleção brasileira de
GR requer alguns sacrifícios, como: con-
Saúde é só ausência de doença?
trolar a alimentação, abdicar de uma vida
social “normal”, conviver com as dores/
A categoria apresentada foi citada
lesões, mas para elas:
pelas atletas 11 vezes, tendo como discus-
são as questões relativas ao conceito de
Não importa o sacrifício, não importa
as dores, não importa dinheiro, não im- saúde estipulado por elas, abordando os
porta nada na verdade né? Tudo vale fatores sobre as lesões, as dores, os pensa-
a pena pra um dia você chegar numa mentos otimistas e o controle da alimenta-
Olimpíadas sabe? Acho que é a melhor ção, mostrando uma relação controversa no
sensação, entende? Você saber que trei-
nou muito, que se sacrificou muito (...) sentido mais amplo do que seria “saúde”,
que arrebentou sua coluna pra tá ali (...) bem como algumas contradições apontadas
e saber que deu certo sabe? Acho que nos depoimentos dessas atletas pesquisadas.
deve ser a melhor sensação pra qual- As ginastas contam que para elas
quer atleta né? (Ginasta 7, depoimento).
controlar a alimentação é uma exigência
desse esporte, mas não associam a algum
As ginastas entrevistadas comparam
sacrifício, pois acreditam que por controlar
o salário referente a um jogador de futebol
a alimentação elas estão sendo sujeitos
e o salário referente a uma ginasta, que na saudáveis.
verdade elas chamam de “bolsa ajuda”. Fica Neste ponto, percebe-se um discur-
evidente em suas falas que elas não praticam so muito utilizado popularmente no sentido
a GR por causa do capital financeiro que de que uma boa alimentação (restritiva, no
supostamente viria em troca pela prática caso) gera saúde, ou seja, caindo novamente
esportiva e alto rendimento, mas por se numa unicausalidade em relação a um
202

elemento tão amplo, diverso e complexo significa, simplesmente, não ter doenças! –
da vida humana, que é a “saúde”. algo que também impera no senso comum.
Pelos depoimentos citados, consta- Isso vem do discurso médico higienista
ta-se que existe uma naturalização das dores que de uma maneira simplista aborda a
e lesões por parte das ginastas que se sentem saúde como sendo única e exclusivamente
“obrigadas” a sentirem dores por praticar ausência de doença. Assim, tratar a saúde
um esporte de rendimento. Isso ocorre por- a partir de um determinante biológico é
que já está implícito em atletas de alto nível algo ingênuo diante de outros aspectos
o chamado ethos esportivo que é como se relevantes como o contexto social ao qual
fosse algo de costume de todos os atletas o sujeito está inserido.
(o famoso ditado “sem dor, sem ganhos!”).
Muitas vezes, as ginastas afirmam Conceituar “saúde” não é tarefa fácil.
Os conceitos aparecem frouxos, não tão
que procuram diminuir a dor por meio do
bem delimitados. (...).a doença está rela-
uso de medicamentos diversos, analgésicos, cionada à história do indivíduo e deste
sprays, pomadas, ataduras, bolsas térmicas, com a sociedade, ela é uma perturba-
equipamentos de proteção, enfim, uma série ção experimentada pelo indivíduo, uma
exceção que o afasta das suas relações
de artimanhas cujo propósito não é cessar a
vitais em que ele estava habitualmente
fonte da dor, mas permitir, mesmo com ela, vivendo. (PALMA, 2001, p.30)
que o treinamento e a máxima performance
continuem. Perguntamo-nos: que saúde é Concordamos com o que afirma Pal-
essa? Que “ausência de doenças” é essa? A ma (2001) pois, ao analisarmos o histórico
simples forma de “lidar”com a dor, mesmo das ginastas entrevistadas percebemos que
que por curtos instantes temporais? além do esforço/desgaste físico realizado
Essas atletas afirmam possuírem por elas, existe todo um contexto, seja so-
lesões principalmente nos membros inferio- cial (quando a ginasta treina em um estado
res, isso ocorre porque na GR são específi- diferente da qual está habituada, longe da
cos exercícios de ponta de pé, flexibilidade família/amigos e com a pressão da respon-
nas pernas e na coluna, por isso as principais sabilidade de representar o país), seja no
lesões delas estão localizadas na coluna, contexto individual (fazendo parte assim do
virilha e tornozelo. Ao fazer uma análise aspecto saudável dessas ginastas).
sobre as lesões é evidente que um torno- De acordo com Kunz (2000, p.13):
zelo machucado, lesões e dores no pé, por
exemplo, impactam na saúde de uma atleta, O treinamento esportivo apresenta
mas essas dores são naturalizadas por elas e elevadas exigências à psique do atleta.
Assim, o treinamento é um processo
o importante seria manter a “saúde mental”
que submete o organismo do despor-
como as entrevistadas relatam. Ou seja, se tista a elevadas cargas físicas e psíqui-
preocupam apenas em atingir o objetivo cas, procurando elevar sua capacidade
proposto por elas enquanto profissionais de trabalho e, com isso, possibilitar
esforços máximos.
do esporte, o que é evidente na categoria
O sonho das Olimpíadas.
Finalizando esta categoria de análi-
Para as ginastas, conforme seus
se, constatamos que as atletas se consideram
depoimentos e entendimentos, ter saúde
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sujeitos saudáveis, mesmo possuindo “bem mentalmente”, ter pensamentos oti-


inúmeras lesões e dores que para elas já é mistas e não possuir doença.
algo natural em suas vidas – é do universo Dessa maneira, buscamos através
esportivo, do habitus esportivo –, mas de vários questionamentos e discussões
tendo como principal característica de um responder uma das questões, senão a mais
“ser saudável” um sujeito que esteja bem importante deste trabalho, que se refere ao
mentalmente (pensamentos otimistas) e que esporte de alto rendimento ser prejudicial
não possua doença alguma. à saúde.
É claro que esse pensamento contra- Se considerarmos que: a prática
ditório dessas ginastas é uma naturalização/ esportiva de alto nível exige repetições de
incorporação deste tipo de sentimento exercícios, ocasiona lesões das mais diver-
às suas vidas, pois para atingir um sonho sas e de graus variados; distância familiar
submetem-se a qualquer sacrifício. e isolamento social, ocasionam impactos
Assim, poderíamos afirmar, basea- emocionais e consequentemente impactos
dos nessas três categorias apresentadas e da esfera social; bem como pressão para
discutidas, que configuram-se, neste estudo ganhar um campeonato e resultados/re-
e neste grupo de atletas em particular, como cordes, impactos psicológicos; desilusões
representações sobre o treinamento de alto etc., poderíamos inferir que de certo modo,
rendimento não só para o senso comum a este grupo em específico, o esporte de
mas como também, e principalmente, para alto rendimento faz mal à saúde de quem
aqueles/as que são os sujeitos dessas práti- o pratica.
cas (atletas profissionais). Porém não há manifestações das
atletas em relação ao não ser saudável
diante da prática esportiva de rendimento
CONSIDERAÇÕES FINAIS (que nos remete à discussão da categoria
Saúde é só ausência de doença?), o que per-
A pesquisa nos revelou que as cebemos é que o que move essas ginastas
atletas são disciplinadas desde cedo para à prática do esporte de alto rendimento é
exercerem sua carreira profissional obtendo atingir o sonho de chegar às Olimpíadas e
êxitos e conquistando seu espaço dentro quem sabe se tornar uma campeã Olímpica
do mundo esportivo, visualização presente (o que visualizamos na categoria O sonho
na categoria Habitus esportivo, em que se das Olimpíadas).
percebeu a naturalização de vários sacrifí- Assim, o esporte de alto rendimen-
cios com o objetivo de alcançar a meta dos to proporciona às ginastas uma vida mais
Jogos Olímpicos. regrada em relação à vida social, conhe-
Considerando que conceituar “saú- cimento de culturas diferentes que talvez
de” é algo objetivamente difícil, constata- se não tivessem praticado esse esporte não
mos que as atletas se consideram “sujeitos teriam conhecido tantos países (caracterís-
saudáveis”, mesmo possuindo inúmeras tica bastante positiva apresentada em seus
lesões e dores (algo naturalizado em suas depoimentos); o amadurecimento delas
vidas), entretanto, para elas, a principal enquanto cidadãs no sentido de aprenderem
característica de um “ser saudável” é estar a “se virar sozinhas” desde cedo, ou seja,
204

como elas afirmam, trata-se de uma edu- BETTI, M. Esporte na mídia ou esporte da
cação diferenciada das “pessoas normais”. mídia? Motrivivência, Florianópolis,
De acordo com Kunz (1994, p. 25) n.18, p.1-3 2002.
“arrancar resultados cada vez melhores em BIANCHI, P.; HATJE, M. Mídia e esporte:
menos tempo, isto é o ‘princípio da racio- os valores-notícia e suas repercussões
nalidade irracional do esporte’”. Em outras na sociedade contemporânea.
palavras significa ser um ato sacrificante Motrivivência, Florianópolis. n.27,
o esporte de alto nível se pensarmos na p.165-178, 2006.
BOAVENTURA, P. Feminilidade, corpo e
dimensão humana desta prática.
técnica: sobre a produção da beleza na
Concluindo, é de extrema importân-
ginástica rítmica. 2008. 79f. (Monografia
cia alertar os atletas de alto nível quanto aos
de Licenciatura em Educação Física –
riscos que eles correm não com a finalidade
Universidade Federal de Santa Catarina),
de abolir a prática do esporte de rendimento Florianópolis, 2008.
(afinal de contas, o esporte configura-se con- BRACHT, V. Sociologia crítica do esporte:
temporaneamente como um dos fenômenos uma introdução.Vitória: UFES, 1997.
de maior encantamento estético), mas com CAVALCANTI, L.; PORPINO, K. O
a finalidade de conscientizá-los dos male- corpo belo da ginasta: uma análise
fícios à saúde que podem acarretar durante da regulamentação do espaço e do
a prática e até mesmo na continuidade de tempo. Congresso Brasileiro de Ciências
sua vida profissional esportiva. E no caso do Esporte. Anais... XV, CBCE, Recife,
da Educação Física escolar, estudos como 2007. Disponível em: <http://www.
este se apresentam como uma tentativa de cbce.org.br/cd/resumos/093.pdf>.
melhor compreender o fenômeno esporti- Acesso: 02 agosto 2011.
vo e suas múltiplas facetas, ampliando o GONÇALVES, M. Corpos e subjetivações:
olhar simplista em torno do esporte de alto o domínio de si e suas representações
em atletas e bailarinas. 2007. 124f.
rendimento visto muitas vezes como algo
(Dissertação de mestrado em Educação
saudável e que afasta naturalmente o jovem
– Universidade Federal de Santa
das drogas. O habitus esportivo precisa ser
Catarina), Florianópolis, 2007.
compreendido em sua complexidade, e KUNZ, E. Transformação didático-
não apenas da maneira mercadorizada e pedagógica do esporte. Ijuí: Unijuí,
espetacularizada que costumamos ver em 2000.
programas esportivos disseminados pela _____. As dimensões inumanas do esporte
mídia, em especial, a televisiva. de rendimento. Movimento, v.1, n.1,
p.23-28, 1994.
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BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: pedagógica: conceitos, métodos e
Ed. 3, 2004. práticas. São Paulo: Ed. Loyola, 2002.
Ano XXV, n° 41, dezembro/2013 205

PALMA, A. Educação Física, corpo e saúde: VIGARELLO, G. Treinar. In: CORBIN, A;


Uma reflexão sobre outros “modos de COURTINE, J-J; VIGARELLO, G. (org).
olhar”. Revista brasileira de ciências do História do corpo: as mutações do
esporte, Campinas, v.22, n.2, p. 23-39, olhar. O século XX. Tradução de Ephaim
jan.2001. Ferreira. São Paulo: Vozes: 2008,
PILATTI, L.A. Pierre Bourdieu: apontamentos p. 197-250.
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da história do esporte moderno. Entrevistas:
Efdeportes – Lecturas Educación GINASTA 1. Depoimento à autora em 05
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36, 2005. de março de 2011.

THE HIGH PERFORMANCE SPORT IS BAD FOR HEALTH? An analysis of the athletes of
the brazilian national rhythmic gymnastics

ABSTRACT

Considering the Brazilian national team athletes in rhythmic gymnastics and sports
training context, we identify and analyze the understandings that these athletes have
in relation to health. What kind of research was a case study, participant observation
and semi-structured interviews. From the data collected, the analyzes summarized in
the following categories: “Habitus sports”, “The dream of the Olympics” and “Health is
not only absence of disease? We see a narrow view of health that, at least for these high
performance athletes, based only on pain control, so a restricted view to the physical,
and psychological and social issues disregarded.

Keywords: High performance sport; Health; Rhythmic gymnastics.

Recebido em: julho/2013


Aprovado em: outubro/2013

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