Programa Reza e Soro
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Pesquisadores
Acesso a servios de sade no significa apenas haver equipamentos e profissionais de sade em nmero suficiente para atender toda a populao. Acesso tampouco significa apenas que eles estejam localizados de tal forma que toda a populao possa alcan-los nos mais diferentes horrios. Acesso significa, principalmente, estabelecer uma relao de confiana entre o servio de sade e os moradores da comunidade de maneira que, alm de procurar os profissionais biomdicos, as pessoas tambm sigam suas prescries para evitar ou curar uma situao de doena. Os Programas de Agentes Comunitrios da Sade e de Sade da Famlia1, por exemplo, garantem o acesso fsico da popula-
1. Ver MELAMED, Clarice. A experincia do mdico de famlia em Londrina. In: SPINK e CLEMENTE (orgs.), 1999; e MELAMED, Clarice. Programa de Agentes Comunitrios de Sade. In: FUJIWARA, ALESSIO e FARAH (orgs.), 1998
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o aos equipamentos e profissionais biomdicos, mas nem sempre isso suficiente para reduzir a morbi-mortalidade. Esse problema foi constatado em Maranguape, municpio de cerca de 90 mil habitantes, na regio metropolitana de Fortaleza, ao p da serra. At 1998, constatava-se um elevado ndice de mortalidade infantil, explicado pela equipe da Secretaria Municipal de Sade como decorrncia da pobreza e da ausncia de mdicos. Nessa poca, havia em Maranguape apenas dois mdicos, cuja atuao na extensa rea rural do municpio era bastante limitada. Em 1999, entre as iniciativas para melhorar o atendimento, o nmero de mdicos e de equipes de Sade da Famlia foi aumentado, de dois para 19, e eles passaram a atuar em conjunto com os agentes comunitrios de sade. Mas, ao contrrio do que se acreditava, isso no reduziu a mortalidade infantil. O nmero de bitos de menores de um ano continuou elevado (36 por mil), e 40% eram decorrentes de diarria. Uma equipe da Secretaria de Sade, reunindo uma epidemiologista, uma assistente social e uma assessora de projetos especiais2 que trabalhavam havia muitos anos em Maranguape, decidiu compreender melhor o que estava acontecendo e passou a realizar processos de autpsia verbal a cada bito de criana menor de um ano.3 A partir das autpsias, a equipe percebeu que vrias crianas morriam de diarria (que seria facilmente superada pela hidratao oral), nas mos das rezadeiras4 pessoas de confiana da comunida-
2. A equipe era constituda por Tnia Maria Vasconcelos de Morais (assessora de Polticas Pblicas da Sade), Maria Ruth Cavalcante Martins (tcnica da Coordenao da Ateno Bsica), Maria de Ftima Lima Viana (coordenadora da Vigilncia Sade) e Ccera Rogilane Tavares Vitoriana (farmacutica da Secretaria Municipal de Sade). A todas elas agradecemos pela disponibilidade em nos atender e explicar o Programa Soro, Razes e Rezas. 3. A autpsia verbal consiste na investigao de todos as circunstncias que levaram morte da criana, em questionrios detalhados, buscando-se identificar desde as condies socioeconmicas da famlia e a sua relao com a comunidade at o atendimento no servio de sade. A equipe de sade se rene e, a partir desses dados, analisa o que ocorreu, rev os procedimentos adotados e encaminha as mudanas necessrias para evitar a morte de outras crianas. Sobre autpsia verbal ver: PAULICS, Veronika. Autpsia verbal: Investigao de bito de menores de um ano. In: BARBOZA e SPINK (orgs.), 2002. 4. Embora haja alguns rezadores, em sua grande maioria so mulheres. Adotaremos sempre o feminino, inclusive no plural, ao contrrio do que determina a gramtica da lngua portuguesa.
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de s quais os familiares recorriam quando a criana no estava bem. Diante da diarria, as rezadeiras muitas vezes orientavam a suspenso de qualquer tipo de alimentao e concentravam-se na reza, deixando a hidratao da criana em um segundo plano. O pequeno ncleo da Secretaria de Sade que resolveu iniciar o processo de autpsias concluiu que, se quisesse interferir efetivamente na realidade para diminuir a mortalidade infantil decorrente de diarria, no poderia ignorar a existncia das rezadeiras do municpio; pelo contrrio, elas deveriam ser conhecidas e seria necessrio compreender melhor o seu papel na comunidade, envolvendo-as na hidratao das crianas, alm da reza. Seria preciso conhecer mais o papel dessas lideranas comunitrias e estabelecer um dilogo para aprender o que elas sabiam. Por outro lado, seria preciso tambm que os profissionais biomdicos tivessem disponibilidade para aprender com as rezadeiras, compreendendo o significado da reza na efetivao da cura. A equipe acreditava que, na medida em que os profissionais da sade ouvissem as rezadeiras, seria mais fcil tambm que as rezadeiras ouvissem os biomdicos e que, a partir dessa troca, um novo saber emergisse, permitindo melhorar a sade da comunidade.
Quem so as rezadeiras?
difcil precisar a origem histrica das rezadeiras e benzedeiras do Brasil, presentes em todas as regies do pas. Em cada regio, sua prtica diferencia-se quanto s formas, rituais e procedimentos utilizados. A partir de uma etnografia local possvel identificar contribuies de religies africanas e principalmente do catolicismo popular. A falta de uma presena constante dos missionrios catlicos (padres e religiosos), e, mais recentemente, dos mdicos, talvez tenha estimulado a prtica das rezadeiras. Na fala dessas pessoas recorrente a afirmao de que o seu ofcio um dom, recebido de Deus, para curar e proteger. Nesse sentido, elas so mediadoras de uma ao do sagrado. Por ser uma ddiva divina, a reza no pode ser feita em troca de dinheiro, mas s vezes as rezadeiras rece-
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bem presentes da comunidade, como toalhas, legumes, frutas, frango, ovos, etc. Nada que seja caro, uma vez que os que requisitam seus servios so pessoas de baixo ou nenhum poder aquisitivo. Elas afirmam ter comeado muito cedo a rezar, algumas ainda quando crianas. Em suas histrias, aparecem avs, mes, tias, avs e outros parentes como portadores desse dom, mas a herana nem sempre transmitida diretamente atravs de um conselho, de um pedido. Pode ser iniciativa da prpria rezadeira, que diante de algum acontecimento na famlia ou na comunidade, envolvendo doena, sente-se impelida a atuar para curar. Outras vezes, as rezadeiras j idosas procuram algum em quem identificam o dom da reza e, de certa maneira, adotam este algum. As rezadeiras so, em geral, pessoas que tm uma vida exemplar, servindo de referncia para a comunidade. Procura-se uma rezadeira pela empatia que esta desperta e pela fama que ela vai construindo na comunidade em que est inserida. Em Maranguape, h basicamente trs tipos de rezadeiras, segundo a populao local: as catlicas, as evanglicas e as da umbanda. Todas creditam os efeitos da reza ao sagrado, que pode ser principalmente Deus, mas tambm os santos, Nossa Senhora (a Virgem Maria), os orixs (divindades do Candombl) e os caboclos (entidades da Umbanda). Como diz Raimundo Rezador: A reza pode ser viceversa, mas Deus um s. H uma distribuio bastante equilibrada de rezadeiras por todo o municpio: esto presentes em todos os bairros e comunidades, tanto nas reas rurais quanto nas reas urbanas.
Etapas
O Programa Soro, Razes e Rezas visa diminuir os bitos em menores de um ano, mediante a reduo dos casos graves de diarria. Para isso, fundamental garantir a hidratao oral da criana, ampliando a utilizao do soro oral. Como no basta o profissional biomdico receitar o soro, uma vez que este saber nem sempre respeitado pela populao, chegou-se concluso de que seria fundamental introduzir o medica-
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mento na ocasio da reza. Isso seria alcanado com um enfoque na valorizao da cultura local, unindo o saber tradicional ao saber biomdico, conforme recomendao da Organizao Mundial de Sade. Num primeiro momento, em 1999, os agentes comunitrios de sade foram convidados a identificar as rezadeiras existentes em sua comunidade de atuao. Em seguida, os agentes contataram essas pessoas para saber se gostariam de se cadastrar na Secretaria de Sade para a realizao de um trabalho conjunto. Naquele momento, 155 rezadeiras se cadastraram. Para elas, a iniciativa da Secretaria de Sade significava um reconhecimento por parte do poder pblico quanto importncia de seu trabalho. At ento, a assistncia biomdica considerava-as, de certa maneira, como mgicas, feiticeiras ou charlates, embora elas j fossem reconhecidas pela comunidade. A partir do cadastramento, foram realizados trs tipos de aes. Um primeiro bloco diz respeito valorizao do dom da reza e troca de saberes entre as prprias rezadeiras. Ainda que o conhecimento de uma rezadeira no seja partilhado com outra, sempre h possibilidade de troca quanto s dificuldades encontradas no dia-adia e de dilogo com a assistncia biomdica, em especial com as equipes de Sade da Famlia. Para essa troca de experincias, foram realizados dois encontros, em 1999 e em 2003. Ambos serviram tambm como momentos de reconhecimento, por parte do poder pblico, da importncia do trabalho das rezadeiras para a comunidade e para a superao da morbi-mortalidade infantil no municpio. Um segundo bloco de aes diz respeito integrao entre a rezadeira e a equipe de Sade da Famlia que atua na mesma comunidade. At ento, a rezadeira no confiava no saber do mdico e este tampouco reconhecia como vlida a ao da rezadeira. Mantinha-se um abismo entre as aes biomdicas e o saber tradicional e quem perdia era principalmente a comunidade: na dvida, a populao preferia seguir as indicaes da rezadeira, que gozava de mais prestgio e estava mais prxima de seu cotidiano. Era preciso mudar a relao entre os dois grupos para tornar suas aes complementares e coope-
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rativas e no competitivas. Para tanto, foi preciso que ambos compreendessem os limites de suas aes e que fossem encorajados a encaminhar os doentes para o mdico (no caso da rezadeira) ou para a rezadeira (no caso do mdico). Na medida em que se criaram relaes de proximidade entre a rezadeira e a equipe de Sade da Famlia do mesmo bairro, as aes da assistncia biomdica mostraram-se complementares s aes das rezadeiras e vice-versa. Aos poucos, a comunidade passou a se sentir mais segura em procurar o mdico, conforme a orientao da rezadeira. E, na medida em que o profissional biomdico recomenda o retorno rezadeira, a populao se sente respeitada e passa a confiar mais nesse profissional. Um terceiro bloco de aes refere-se capacitao das rezadeiras para que sua reza no impea a cura da diarria, como ocorria quando elas orientavam a suspenso de todo tipo de alimento e, no raro, procuravam hidratar a criana com chs e infuses que utilizavam gua no filtrada. Para este bloco de aes, alm dos momentos de capacitao sobre a importncia do soro feito com gua filtrada e sobre o modo de prepar-lo, foram entregues alguns utenslios s rezadeiras, como filtro de gua, jarra para preparao do soro e uma colher de cabo longo para evitar que a mo entre em contato com o soro durante o preparo. Tambm foi ensinada a maneira de se utilizar o filtro. Para que as mes das crianas com diarria fossem motivadas a administrar o soro aos seus filhos, as rezadeiras passaram tambm a benzer o soro, fortalecendo as recomendaes dos profissionais biomdicos quanto ao seu uso para hidratar a criana, superar a diarria e evitar o bito infantil.
Estgio atual
O sistema local de sade acompanha, em mdia, por ms, 1.230 crianas menores de um ano, o que representa cerca de 62% das crianas do municpio. Esse nmero aumenta nos perodos de chuva, quando h mais casos de diarria e menos alimentos na rea rural.
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Os bitos por diarria foram reduzidos para 5% do total de bitos em menores de um ano. O nmero de rezadeiras cadastradas passou de 155 para 188. Todas as crianas com diarria que elas atendem iniciam a reidratao oral por iniciativa da prpria rezadeira. Tanto as rezadeiras quanto os profissionais de sade tm respeitado o pacto de a rezadeira realizar sua reza e cura da criana, orientando sobre o preparo do soro, benzendo-o, mas, em seguida, encaminha a criana para a equipe de sade. Os profissionais biomdicos, por sua vez, aps o atendimento encaminham a criana para a rezadeira, para que esta siga acompanhando o processo da cura.5 De tempos em tempos, so repostos os materiais utilizados para a fabricao do soro: filtro, jarra e colher. Os sais de hidratao oral so repassados para as rezadeiras pelos agentes comunitrios de sade de acordo com a demanda. Nas reas urbanas, a partir da doao de alguns comerciantes e empresrios do municpio, foram afixadas placas de identificao na porta das rezadeiras que quiseram ser identificadas como tal. Essa identificao refora o sentimento de reconhecimento da importncia do papel da rezadeira no s por parte da comunidade e da Secretaria de Sade, mas tambm por parte do poder pblico como um todo. Em cada comunidade, a equipe de Sade da Famlia e as rezadeiras renem-se regularmente para analisar as estatsticas de bitos de menores de um ano por diarria no ms ou no bimestre. Tais estatsticas so comparadas tambm com os atendimentos realizados pela rezadeira e os encaminhamentos dados tanto pela rezadeira quanto pelos profissionais de sade. Na medida em que se constata o quanto a ao conjunta permite a diminuio dos bitos, refora-se a importncia de uns colaborarem com a ao dos outros, aliando os saberes distintos, biomdico e tradicional. Recentemente foi iniciada uma experincia de se implantar um cantinho da f em uma das Unidades Bsicas de Sade da Famlia na
5. Em geral, para curar a maioria dos males so necessrias trs ou mais sesses de reza
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rea urbana do municpio. Uma das rezadeiras dedica parte do seu dia ao atendimento na Unidade. Ali, monta seu altar, como faria em sua prpria casa. A mesa sintetiza a possibilidade de convivncia entre o saber tradicional e o saber cientfico: nela os objetos religiosos de devoo das rezadeiras esto acompanhados pela jarra com gua filtrada, por uma colher grande para mexer o soro e por saquinhos de sais fornecidos pela Secretria de Sade. Ao lado da mesa geralmente est o filtro de barro. Ao sair do consultrio, a famlia pode passar pela rezadeira, que benze a criana e o medicamento, e refora a importncia de se seguir as orientaes do profissional de sade. Est-se iniciando tambm um processo de esclarecimento das rezadeiras quanto importncia do aleitamento materno at o sexto ms de vida da criana. H pouco tempo o municpio comeou um trabalho com os raizeiros (vendedores de razes e ervas). um trabalho mais difcil, uma vez que, ao contrrio das rezadeiras, o raizeiro vive de vender as ervas e as razes, relutando em alterar as receitas tradicionais. Alm disso, os raizeiros tm medo de qualquer contato com o poder pblico, pois isso pode significar um controle policialesco e limitativo por parte da Vigilncia Sanitria. De todo modo, o objetivo do envolvimento destes raizeiros fazlos utilizar gua filtrada em seus xaropes e garrafadas, alm de substituir o uso de ervas que, segundo comprovao cientfica, podem ser txicas conforme o uso, como o caso do confrei (Symphitum officinale L.), que considerado um timo agente cicatrizante quando usado externamente, mas muito txico se ingerido. Outro exemplo a goiabeira (Psidium guajava L.), utilizada no tratamento da diarria: para que tenha efeito, preciso usar 20 olhos (gomos foliares terminais) para um litro de gua e no apenas um olho por litro, que no provoca o efeito medicinal esperado. Esse trabalho com os raizeiros est sendo desenvolvido pela farmacutica que tambm responsvel pela horta e pelo laboratrio de fitoterpicos da prefeitura. O projeto Farmcia Viva, da prefeitura de Maranguape, realizado em parceria com a Universidade Federal do
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Cear. O objetivo do projeto suprir o servio pblico de sade com medicamentos alternativos aos remdios alopticos. Alm de terem custo menor que os alopticos, os fitoterpicos tambm tm maior credibilidade perante a populao6.
Recursos
O Programa Soro, Razes e Rezas muito mais um instrumento de ao de outros programas de Sade Pblica do que um programa em si. Em decorrncia disso, embora no signifique custos a mais para o poder pblico, exige a disponibilidade dos diversos profissionais da Secretaria para um trabalho que integre programas, como o de Sade da Famlia, Agentes Comunitrios, Epidemiologia, Farmcia Viva, etc. A avaliao dos avanos, o planejamento das aes e a coordenao do Programa so realizados por pessoas que tambm respondem por outros projetos ou tm outras funes na Prefeitura. Alm disso, o Programa engloba todos os agentes e profissionais de sade que j atuavam no municpio. Para alcanar todo o municpio, o Programa conta com a participao intensa dos agentes comunitrios de sade que tm um contato mais freqente com as rezadeiras. Sem a participao destes agentes, seria difcil articular e orientar todas as rezadeiras e raizeiros envolvidos atualmente no Programa.
6. O projeto Farmcia Viva, desenvolvido pelo professor F. J. Abreu Matos, foi adotado pelo sistema pblico de sade de vrios municpios, que passam a oferecer medicamentos mais baratos populao. O trabalho comeou com o levantamento, por uma equipe de pesquisadores, das razes e ervas utilizadas pelos raizeiros vendedores de ervas e razes medicinais. Foram coletadas cerca de 600 plantas. Destas, 70 passaram pelo teste dos cientistas e voltaram para as comunidades na forma de medicamentos. A populao recebe orientao de como empregar corretamente essas plantas. Alm disso, so produzidos cerca de 12 medicamentos fitoterpicos, em forma de xaropes, tinturas, pomadas ou cpsulas. Com o projeto, o conhecimento popular sobre as plantas medicinais retorna para a comunidade
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Para garantir que todas as rezadeiras tivessem acesso a filtro, jarra e colher para preparo do soro, alm de camiseta e placa de identificao em algumas casas, a equipe de coordenao do Programa solicitou o apoio de empresrios e comerciantes do municpio. Como a maioria das pessoas em algum momento de suas vidas chegou a procurar uma rezadeira, no foi difcil, segundo a coordenao do Programa, conseguir apoio em forma de doao de materiais. O Programa conta com a adeso de quase todos as rezadeiras do municpio. Embora essa adeso seja voluntria, no exigindo qualquer dispndio, se a Prefeitura contasse com recursos para deslocamento e alimentao das rezadeiras, os processos de formao e de troca de experincia poderiam ser realizados com maior freqncia. Sendo a rea rural do municpio muito extensa e a maioria das rezadeiras muito idosas, o transporte acaba se tornando o aspecto mais importante para a organizao de um evento que rena as rezadeiras. Os processos de avaliao e a consolidao de indicadores tambm exigem recursos que esto atualmente alm da capacidade do municpio. A baixa ou nenhuma escolaridade das rezadeiras demanda que sejam elaborados materiais didticos e de registro de atividades com pouco texto, utilizando muita imagem e muitas cores. Um exemplo o levantamento do nmero de atendimentos realizados por uma rezadeira. A ficha consiste numa folha com vrios desenhos: de uma me com um beb no colo, de uma me com um beb que j fica sentado, de uma me com uma criana de colo, de uma me com uma criana que j fica em p sozinha, de um adulto sem criana por perto. Na frente de cada desenho, h vrios quadradinhos, a serem marcados de acordo com o atendimento realizado. Esta a ficha utilizada mensalmente para comparar o nmero de atendimentos realizados pela rezadeira, quais chegaram at a Unidade Bsica de Sade e como estes casos foram tratados. Por falta de recursos apropriados, esta ficha est elaborada de maneira muito rudimentar, nem sempre sendo de fcil compreenso para quem a manuseia.
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Dificuldades
Uma das maiores dificuldades enfrentadas pelo Programa Soro, Razes e Rezas a resistncia dos profissionais biomdicos em aceitar e respeitar o saber tradicional das rezadeiras e raizeiros. Muitos se manifestavam contra a idia de trabalhar com macumbeiros. A equipe buscava convencer os profissionais biomdicos de que no se tratava de mexer em crenas nem do profissional biomdico nem das rezadeiras mas sim de estabelecer alianas com diferentes habilidades para lidar com os problemas da comunidade. O sucesso na reduo dos casos de mortalidade infantil nas comunidades em que a equipe de Sade da Famlia passou a trabalhar de maneira integrada acaba contribuindo para a diminuio dessa resistncia. No entanto, existe outra dificuldade: muitas vezes, quando um profissional se convence da importncia do trabalho conjunto, sai do municpio e vai para outro, em busca de melhor remunerao. A alta rotatividade, especialmente dos mdicos, exige que a equipe de coordenao do Programa esteja o tempo todo convencendo novos profissionais a respeito da importncia do trabalho conjunto. Alm disso, preciso reconstruir a relao de confiana entre as rezadeiras e o novo profissional que vai trabalhar no bairro ou na comunidade. Dessa maneira, constata-se que em algumas equipes de Sade da Famlia a colaborao maior, em outras menor. Outra dificuldade a resistncia por parte das rezadeiras e raizeiros, como no caso do incentivo ao aleitamento materno exclusivo at o sexto ms de vida da criana. A sabedoria tradicional no confia no aleitamento materno como nica fonte de alimento da criana. Para que as rezadeiras incentivem o aleitamento materno exclusivo, primeiro tero que passar por um longo processo de desconstruo e reconstruo do seu saber. Tambm no fcil conquistar a confiana por parte das rezadeiras num sistema de sade pblico que sempre as desconsiderou e desprezou. Neste caso, as rezadeiras manifestam o sentimento das populaes que sempre foram excludas do sistema de ateno biomdica
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e, de certa maneira, tambm por causa disso construram e consolidaram uma estrutura paralela de ateno sade.
Carter inovador
O aspecto mais inovador ao Programa o reconhecimento de que a garantia do acesso sade significa mais do que assegurar a existncia de profissionais biomdicos e de equipamentos disponveis para atender a populao. A garantia de acesso depende tambm do estabelecimento de confiana recproca entre o profissional de sade e o cidado que busca atendimento. Essa relao de confiana fruto do respeito aos saberes e vises de mundo de uma populao que sempre esteve excluda tanto do acesso quanto do reconhecimento da sua capacidade de produzir conhecimento. Ao reconhecer o novo significado de acesso aos servios de sade, a Prefeitura da Maranguape tambm reconhece o conhecimento produzido pela populao e por suas lideranas. O Programa Soro, Razes e Rezas est inserido num movimento mais amplo, apoiado pela Organizao Mundial da Sade, de valorizao do saber tradicional para garantir a sade das populaes. Similares a essa iniciativa so o Projeto Parteiras Tradicionais, do Amap7, e o envolvimento das rezadeiras para preveno da Hansenase, em Sobral (CE), que tm apresentado bons resultados na diminuio da morbi-mortalidade. No que se refere s rezadeiras, h uma mudana na percepo que elas tm de seu prprio papel. Antes elas viam passar os caixes de anjinhos e achavam que os outros, o governo ou mesmo Deus deveria fazer alguma coisa. Hoje percebem que a mudana est nas suas prprias mos, rezando e benzendo, umas vezes, e outras vezes encaminhando para o posto de sade. Ao fazerem as anlises peridicas com as equipes de sade da famlia e ao constatarem que diminui
7. Ver SILVA, Ivanete Amaral. Parteiras Tradicionais do Amap. In: FUJIWARA, ALESSIO e FARAH (orgs.), 1999
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o nmero de anjinhos que passam, as rezadeiras agora compreendem que suas aes podem curar e transformar a realidade. Elas dizem que o fato de a Secretaria de Sade haver tomado a deciso de envolv-las formalmente no processo de atendimento populao do municpio, especialmente das crianas menores de um ano, significou o reconhecimento pblico do seu saber e da sua importncia para a comunidade. Se antes eram vistas como elementos do folclore, passaram a ser vistas pelo poder pblico como cidads detentoras de um saber e de uma capacidade de dilogo com a comunidade que o sistema de sade convencional, por meio das equipes de profissionais biomdicos, no alcana. Os mdicos, por sua vez, ganharam fora na medida em que deixaram de se contrapor ao saber tradicional da populao e de suas lideranas. Ao se aliarem a tais lideranas e aprenderem com o seu saber, passaram a ser recomendados por essas mesmas lideranas. O cuidado com a sade, antes buscado pela populao apenas com as rezadeiras, passou a ser buscado tambm com o profissional biomdico, conforme a orientao recebida das rezadeiras. Do ponto de vista do poder pblico, a valorizao das rezadeiras como agentes pblicos de sade permite ampliar a capilaridade do sistema, especialmente no que diz respeito porta de entrada para o atendimento. Ao contrrio dos mdicos, enfermeiros e agentes de sade, que atendem em horrios definidos, em geral durante os dias da semana, e com especialidades ou faixas etrias de acordo com o dia da semana ou perodo de atendimento, as rezadeiras esto todo o tempo disposio da comunidade. interessante notar ainda que, para cada mdico que atua em Maranguape, h cerca de 10 rezadeiras. Ou seja, h muito mais rezadeiras per capita do que mdicos, o que tambm promove o aumento da capilaridade do sistema. Alm disso, diferentemente dos trabalhadores da sade, as rezadeiras vivem em determinada comunidade, estabelecem a sua vida e seus vnculos, conquistam a confiana dos vizinhos, no mudando de casa e de bairro a toda hora como ocorre com os mdicos, por exemplo. Ou seja, um atendimento sade que no descontinuado.
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REFERNCIAS
BIBLIOGRFICAS
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Luiz Nouvel e FARAH, Marta Ferreira Santos (orgs.). 20 Experincias de Gesto Pblica e Cidadania Ciclo de Premiao 1998. So Paulo: Programa Gesto Pblica e Cidadania, 1. edio, 1999. MATOS, F. J. Abreu e LORENZI, H. Plantas medicinais no Brasil nativas e exticas. Nova Odessa (SP): Plantarum, 2002. SPINK, Peter e CLEMENTE, Roberta (orgs.). 20 Experincias de Gesto Pblica e Cidadania. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2. edio, 1999