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Ideologias de Linguagem - Uma Breve Discussão Acerca Da Mudança de Paradigmas Nas Ciências e No Ensino Da Linguagem

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Building the way

IDEOLOGIAS DE LINGUAGEM: UMA BREVE DISCUSSÃO ACERCA


DA MUDANÇA DE PARADIGMAS NAS CIÊNCIAS E NO ENSINO DA
LINGUAGEM

LANGUAGE IDEOLOGIES: A BRIEF DISCUSSION ABOUT


CHANGING PARADIGMS IN SCIENCES AND LANGUAGE
TEACHING
202
Sérgio Gomes de Miranda
Doutor em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás
serginhosong@hotmail.com

Resumo: A busca pelo conhecimento e a sua produção sintetizam um dos aspectos


centrais do que significa ser humano. O texto discute a produção do conhecimento
científico, com ênfase na mudança de paradigmas em curso nas ciências e nos
estudos da linguagem, bem como seus reflexos na educação e na docência. Também
discute os pressupostos de base e as ideologias em que se baseiam as práticas
científicas e docentes, por adesão paradigmática e epistemológica. O texto defende a
importância da construção da postura e da prática anti-hegemônica: novos conceitos,
métodos, novas ideias, práticas científicas e docentes compreendidas na pós-
modernidade. A defesa é a de que, nesse paradigma, a ciência e a docência
respondem de maneira mais complexa, crítica, ética e engajada aos problemas,
desejos, às necessidades... da vida real das pessoas.

Palavras-chave: Conhecimento; Paradigma; Modernidade; Pós-modernidade;


Agenda Anti-hegemônica.

Abstract: The search for knowledge and its production synthesize what it means to be
human. The text discusses the production of scientific knowledge, with an emphasis
on changing paradigms underway in science and language studies, as well as their
reflexes in education and teaching. It also discusses the basic assumptions and
ideologies on which scientific and teaching practices are based, through paradigmatic
and epistemological adherence. The text defends the importance of building an anti-
hegemonic agenda: new concepts, methods, ideas, and new scientific and teaching
practices understood in post-modernity. The defense is that, in this paradigm, science
and teaching respond in a more complex, critical, ethical and engaged way to the
problems, desires, needs ... of people's real life.

Keywords: Knowledge; Paradigm; Modernity; Postmodernity; Anti-hegemonic


agenda.

Considerações iniciais

Desde nossa saída das cavernas para as savanas começamos a procurar


o que o “horizonte” nos revelaria. A transformação do mundo natural em mundo

v. 11, n. 1 (2021) Interdisciplinaridades... ISSN 2237-2075


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cultural, por meio de nossas ações sobre esse mundo é, na essência, nossa
esperançosa busca pelo saber, pelo conhecer. Começamos, pela necessidade mais
imediata de sobrevivência, a descortinar o mundo ao nosso redor e, mais tarde, no
fluxo da história de nossa evolução, a produção do conhecimento tornou-se mais
abrangente, metafísico, metódico, metodológico e intencional, no intento de
desvelar/descobrir o universo, o mundo, as relações sociais etc.: inventamos, assim,
modelos de ciência. A produção do conhecimento e a prática científica estão num
203
processo perpétuo de vir a ser.
Se voltarmos no tempo e iniciarmos um traçado da história, na Grécia
Antiga, quando a Filosofia abrangia todos os modos de produção do conhecimento e
não havia cisões com o que a modernidade concebe como Ciência, temos um marco
histórico importantíssimo: o salto do mito ao logos (razão). A filosofia grega antiga
atribuiu um papel basilar à razão no processo do conhecer. Assim, o mito vai perder
sua autoridade e a razão vai assumir esse lugar de desvendamento do mundo. Os
atores protagonistas nesse cenário atuaram na histórica Escola de Mileto (Sec. VIII
a.C. e VI a.C.), são eles: Thales; Anaximandro e Anaxímenes. Cada um, ao seu modo,
marca o período conhecido como pré-socrático. No Ocidente, reconhece-se esse
momento como a gênese do que poderíamos, mais tarde, chamar de conhecimento
científico. Esse marco chegou à consolidação com três grandes nomes da Filosofia
Grega: Sócrates; Platão e Aristóteles (Sec. V a.C. e IV a.C.). Assim, o mito (mythos)
e a opinião (doxa) perderam a sua soberania para a razão (logos). O núcleo dessa
mudança está na ideia de uma episteme em que, pelo discurso e pela racionalidade
argumentativa, alicerçados na lógica e na matemática, o objetivo era demonstrar, por
meio da prova, para expressar a verdade. Dessa maneira, a filosofia grega antiga
constituiu o que ainda prevalece em nossos dias como sendo uma das formas de
conhecer o mundo.
Na Idade Média, principalmente por meio dos trabalhos de Santo Agostinho
(354-430) e de Santo Tomás de Aquino (1225-1274), a razão passa a ser associada
e debatida em relação à fé, à graça divina, numa associação entre a Teologia e a
Filosofia. O conhecimento era nutrido pela iluminação e pela revelação divinas. O
homem somente poderia conhecer por um atributo da graça de Deus.
Ainda mais pra perto de nós, na Modernidade, contemplamos uma incrível
revolução nesse percurso histórico do conhecimento científico. Por volta do Sec. XII
d.C., tem-se o que conhecemos por Revolução Científica, na separação entre a
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Filosofia e a Ciência, propiciada, principalmente pela ideia de uma ciência que
explicasse os fenômenos naturais, com destaque para Galileu Galilei, que aperfeiçoou
vários instrumentos para a observação dos fenômenos, tais como o telescópio, bem
como elaborou a Lei da Inércia, dando um novo rumo às pesquisas do movimento
cósmico, recuperando as ideias de Copérnico. Nessa Revolução Científica se
associaram a observação, a experimentação e a formulação de uma explicação
teórica e matemática. Instauram-se, assim, novos modelos de cientificidade: o método
204
matemático tornou-se a referência para o fazer científico. Nessa base epistêmica, o
objeto do conhecimento passou a ser atomizado, regido por leis universais,
mensurável, ordenado, medido etc. Em três séculos desse projeto de ciência, Sec.
XVI – Sec. XVIII, seu objeto de compreensão se estendeu do universo físico,
passando pela física terrestre, até o mundo das pessoas. A partir daqui, a ciência
ganhou a necessidade da legitimação, da certeza, da empiricidade... Desde o filósofo
inglês Francis Bacon (1561–1626), propositor do “método indutivo”; Galileu Galilei
(1564–1642), criador do método experimental; René Descartes (1596-1650), ao
fracionar o mundo em material e espiritual, o corpo e a mente, dividindo a existência
em duas substâncias: a das coisas e a do sujeito pensante; chegando a Isaac Newton
(1642-1727), criador das leis da mecânica e da teoria da gravitação universal,
responsável por uma nova divisão nas ciências: de um lado, as ciências da natureza
e, de outro, as ciências dos homens; a Immanuel Kant (1724 – 1804), influente
pensador da modernidade, fundador do idealismo transcendental, para quem as
faculdades mentais humanas e sua intuição levam o ser humano à racionalidade e,
por isso, ao conhecimento, no sentido de que a mente humana relaciona conceitos
puros à sua percepção; chegando até Augusto Comte (1798-1857) fundador do
positivismo, no sentido de explicar a natureza pela observação e pela experiência,
com leis regentes para os fenômenos, no sentido de tentar prever os acontecimentos,
responsável pela separação das ciências em disciplinas, numa espécie de hierarquia
científica, pelo grau de positividade: a matemática, a física, a química, a biologia, a
astronomia, a sociologia. No positivismo, o sujeito passa a atuar como uma câmera
que registra a objetividade do mundo com a exigência da neutralidade do cientista; e
Wilhelm Dilthey (1833-1911), propositor da divisão entre ciências naturais e ciências
humanas, no sentido de buscar a explicação dos fenômenos naturais e a
compreensão do homem e dos aspectos sociais.

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Em todos esses modelos de preservação do rigor científico, de demarcação
do pensamento científico em sua especificidade, temos como marcas as cisões entre
os saberes, apagamentos de saberes e reificações de outros saberes, sua
fragmentação em fontes distintas, em detentores legítimos de áreas que não se
dialogam para uma integração de um conhecimento que seja mais holístico e
complexo: caracteriza-se o Paradigma Moderno.
Noutro prisma de produção do conhecimento e do fazer científico, no final
205
do Século XX, passamos a procurar alternativas para a integração de todos esses
saberes. Thomas Samuel Kuhn (1922-1996), filósofo e físico estadunidense, se
dedicou a nos ensinar como se dão os processos que levam ao desenvolvimento das
ciências e como atuam os paradigmas em confronto nesse processo: no século XX,
vemos emergir novas ideias, novas compreensões, novas teorias e novas práticas
científicas, para responder a um mundo complexo, em constante transformação, cada
vez mais global e marcado pela tecnologização, na forma de crítica e de confronto à
Modernidade. Esse novo paradigma é concebido como o Paradigma da Pós-
modernidade.
Conforme explica Vasconcellos (2005), a mudança de paradigmas exposta
aqui está assentada na distinção entre três eixos epistemológicos. A citada autora
expõe que a ciência moderna tem como pressupostos a “simplicidade”; a
“estabilidade”; a “objetividade”. Em oposição, a ciência pós-moderna está assentada
nos pressupostos da “complexidade”; da “instabilidade”; e da “intersubjetividade”.
De acordo com o que Vasconcellos (2005) expõe, o pressuposto da
simplicidade está situado na separação do que é complexo em partes, para torná-lo
simples e explicável. Retira-se o objeto de estudo de seu contexto. Disso decorre a
análise e a busca por relações causais lineares. As categorias de análise são
estabelecidas através da operação de disjunção. Essa compartimentação resulta na
criação de áreas específicas do saber, em disciplinas estanques, assim como elegem
os/as especialistas nos conteúdos exclusivos dessas disciplinas. O pressuposto da
estabilidade está baseado na crença de que o mundo é estável, com fenômenos
previsíveis e que, por isso, podem ser determinados e controlados. A ciência é
constituída por leis imutáveis e universalizantes, por uma regularidade. Os resultados
da pesquisa são submetidos à confirmação ou não confirmação de hipóteses
levantadas a priori. Nessa mesma direção, o pressuposto da objetividade se localiza
na crença de que é possível conhecer a realidade objetivamente tal como ela se
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mostra. A ideia é atingir a versão única do conhecimento como critério de
cientificidade. Cabe ao/à cientista ficar fora da constituição do que ele/ela pesquisa,
para não opinar, não modificar, não “contaminar” o objeto pesquisado. Sua descrição
serve como representação da própria realidade, a qual o/a cientista pretende
descobrir. Dessa concepção, surge a ideia da neutralidade do/da cientista na ciência
que ele/ela faz, a qual depois ele/ela generaliza. Nesses três pressupostos o mundo
é abordado de modo racional, com forte influência da lógica clássica. Sob a égide
206
desses três pressupostos epistemológicos se constrói a ciência moderna.
Por outro lado, Vasconcellos (2005) também ensina que, na perspectiva
pós-moderna há três pressupostos científicos imediatamente opostos a esses que
caracterizam a modernidade. No Paradigma da Pós-modernidade é imprescindível
saber lidar com a complexidade do mundo, reconhecê-la como característica inerente
à vida. Todo fenômeno, todo acontecimento, deve ser compreendido na sua existência
contextual. O estudo do todo implica um raciocínio que não ignora as contradições
existentes na sua composição. Existem incertezas com as quais o/a pesquisador/a
deve aprender a lidar. Há uma franca convergência de diversas áreas do
conhecimento para a realização da pesquisa. O pressuposto da instabilidade se
baseia no reconhecimento de que o mundo é marcado por assimetrias e pelo
dinamismo caótico. Todas as coisas estão em contínua transformação, em processo
de vir a ser. Cabe ao/à cientista entender que sua pesquisa estará sempre sujeita a
novas configurações. Seu olhar deve se atendar para o que é periférico, para as
múltiplas relações dos elementos e para o que emerge espontaneamente fora do
quadro das rotinas. Da mesma forma, o pressuposto da intersubjetividade
compreende que o conhecimento nunca prescinde ao diálogo entre os mais diversos
campos do saber. A ciência deixa de ser apenas disciplinar, para ser interdisciplinar;
ou ainda, transdisciplinar. Outro benefício desse pressuposto reside na superação da
ruptura entre ciências humanas e ciências da natureza. As contradições são bem
vistas, na medida em que elas refletem diferentes e diversos olhares para os mesmos
contextos.
Depois dessa breve história do fazer científico e suas personagens
centrais; após esse ligeiro panorama dos pressupostos de base dos paradigmas em
posições de conflito, é possível passar ao foco mais exclusivo de como se dá essa
oposição nos estudos linguísticos.

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Ideologias Linguísticas: regulando o foco para os estudos da linguagem

Para uma melhor compreensão de como se dá essa mudança de


paradigmas, especificamente, nos estudos da linguagem, o antropólogo Agha (2007)
critica como a linguística do século XX foi dominada ideologicamente por um impulso
atomístico, caracterizada pela fragmentação da linguagem, marcada pela dominância
disciplinar. O referido autor traça um diagnóstico do projeto epistêmico que é
207
encontrado nos estudos de Saussure; de Bloomfield e de Chomsky, ícones para a
representação dos eixos centrais de estudos da linguagem no século passado. Nessa
abordagem, Agha (2007) elenca três aspectos que caracterizam esse projeto
epistêmico ao qual ele critica.
Em síntese, para esse autor, esse projeto é marcado, antes de tudo, pelo
aspecto extracionista, caracterizado pela extração de uma pequena fração,
denominada língua, do interior da totalidade da linguagem. Aqui, percebe-se uma
atenção exclusiva ao recorte de uma língua ideal, fator ao qual o citado autor chama
de redução metonímica. Assim, não existe a abordagem da linguagem de forma
complexa, sobretudo no tocante às práticas variantes que aparecem na fala, no
discurso, mas uma invenção da língua que será eleita para estudo. Outro aspecto é o
restritivista, caracterizado pela criação de limites exclusivos para uma disciplina,
instituindo um campo do saber para o estudo do objeto extraído. Conforme a crítica
desse autor, o argumento de Saussure para um foco exclusivo na langue não é
apenas uma pretensão de método sistemático, mas uma tentativa de reivindicar um
domínio próprio. O terceiro aspecto desse projeto é o exclusionista, marcado pela
exclusão prévia de quem pode ou não pode ser chamado de linguista. Somente
àqueles cujo interesse está na estrutura da língua pode ser dado esse título. Isso cria
uma espécie de afiliação profissional, bem como uma carreira profissional e um
espaço para a atuação acadêmica. Conforme Agha (2007), nesses três aspectos de
base para o estudo da linguagem são reificados o objeto, o campo de atuação e o
pesquisador para esse campo e para esse objeto.
Contrário a essa proposta, Agha (2007) apresenta a proposta do
antropólogo Franz Boas (1911) para o estudo da linguagem. No projeto de Boas,
nunca se encontrará a segregação de um objeto com nome de língua. Seu projeto liga
as estruturas da linguagem aos discursos, à história da linguagem e aos princípios
culturais, bem como a conexão dos estudos da linguagem ao quadro de estudos
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sociopolíticos que motivam projetos de minorização, dominância, e exclusão das
esferas de participação na sociedade civil. Numa breve explicação, o primeiro aspecto
do projeto boasiano é o expansionista, que entende a linguagem como uma formação
histórica, cultural e discursiva. Esse aspecto leva em conta a mudança no modo em
que fazemos linguística. Interessam as práticas de linguagem em suas variações que
o discurso instaura. Outro aspecto é o integracionista, caracterizado pela percepção
da língua em sua inserção contextual, manifesta em distintos gêneros de texto
208
expressos na realização dessa língua. Esse aspecto leva em consideração a mudança
no que entendemos como linguagem: em lugar das estruturas, o conjunto de práticas
discursivas. Enfim, o outro aspecto desse projeto é o colaborativo, no sentido da
organização sociológica de fazer linguística, em que a linguística é integrada e, ao
mesmo tempo, integrante de um campo de atuação composto por diferentes
disciplinas, mas que dialogam para uma causa comum: um empreendimento que liga
o estudo da linguística a outras formas de estudos científicos sociais, tais como, a
etnologia, a linguística, a antropologia física e a arqueologia. Trata-se de um projeto,
por natureza, aberto a outras formas de estudo da linguagem; um projeto
interdisciplinar.
Mudar de paradigma significa transformar a nós mesmos e, por
conseguinte, o conhecimento que produzimos; significa encontrar a nós mesmos e,
por extensão, um lugar significativo no mundo para o conhecimento que produzimos.
Trata-se de qual é a ideologia que nos interpela em nossas práticas e as formas como
essas práticas constituem o nosso mundo e o mundo de outras pessoas. Feyerabend
(2011, p. 33, grifos do autor) explica que “a ciência não conhece, de modo algum,
“fatos nus”, mas que todos os “fatos” de que tomamos conhecimento já são vistos de
certo modo e são, portanto, essencialmente ideacionais.” Em síntese, ele afirma que
toda prática científica é, inerentemente, ideológica.

A proposta ideológica da Modernidade...

Para compreender melhor a modernidade, um bom caminho é o


conhecimento de suas bases ideológicas. A primeira dessas bases ideológicas a ser
discutida aqui é a que recebe o nome de Colonialismo/Nacionalismo. Anderson (1983)
explica que o conceito de Nacionalismo advém da ideia de uma comunidade política
delimitada e soberana, concebida pelo Iluminismo Europeu do Século XVIII, de
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concepção racionalista. Errington (2001) discute que o domínio colonial reproduziu,
em escalas menores, modos europeus de territorialidade, na forma de estratégias
para controle de pessoas e de suas relações, por delimitar e afirmar o controle sobre
uma área geográfica, assumida como culturalmente homogênea e limitada
linguisticamente entre cidadãos nacionais dentro de Estados soberanos europeus.
Para explicar esse processo de hierarquização sociolinguística colonial, o citado
estudioso utilizou o termo glotofagia, fenômeno político-ideológico no qual uma forma
209
de manifestação linguística é eleita e autorizada em detrimento do descarte e
desautorização de outra manifestação: uma variante tem seu valor de cientificidade
linguístico engolido pelo ato de seleção de outra variante em seu lugar, no interior da
língua. Essa hierarquia sociolinguística institui classes e diferenças na vida social,
como suporte às formas missionárias do discurso e subordinação das variantes
“degeneradas”.
Jacquemet (2005) salienta que os primeiros filósofos modernos do
Iluminismo francês e do Romantismo alemão identificaram a língua com o povo de um
lugar e, consequentemente, compreenderam a proximidade entre as pessoas de
acordo com o critério de unidade linguística e territorial. Ao seu modo, Jacquemet
(2005) rechaça essa postura e expõe a crítica de que a maioria dos estudos
linguísticos contemporâneos ainda está sob a influência do mito de Babel, expresso
no desejo ideológico de manter fronteiras linguísticas, alocar pessoas para seus
respectivos territórios, com o ideário de conectar a língua ao surgimento do sentimento
de identidade nacional. A esse respeito, Blommaert (2005) explica que os nomes das
línguas, como Inglês, Francês, Swahili ou Chinês pertencem ao reino das ideologias
populares da linguagem e dos discursos popularizados ou institucionalizados ali
ancorados, e que só de vez em quando eles são salientados como objetos de
investigação da sociolinguística.
No sentido de explicar as bases ideológicas ocidentalistas de estudo da
linguagem, Makoni e Pennycook (2007) afirmam que as noções de línguas foram
inventadas como parte dos projetos do cristianismo/colonialismo e do nacionalismo
em diferentes partes do mundo. Eles alertam que esse projeto de invenção das línguas
precisa ser entendido para além da tentativa europeia de construir um mundo à sua
imagem, indo em direção ao projeto de construção da história dos outros povos para
eles próprios, como uma forma de base para a governança europeia e a vigilância

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desses outros povos. Assim, os colonizadores europeus inventaram a si mesmos e
aos outros em um processo recíproco. Nas palavras dos próprios estudiosos,

[n]ossa posição de que as línguas são invenções é consistente com


observações de que muitas estruturas, sistemas e construções, como
tradição, história ou origem étnica, que são frequentemente pensadas
como partes naturais da sociedade, são invenções de um aparelho
ideológico muito específico. Reivindicar a autenticidade de tais
construções é, portanto, tornar-se sujeito a discursos muito
210 particulares de identidade (MAKONI; PENNYCOOK, 2007, p. 09).

Nessa mesma direção, Love (2009) também salienta que esse modelo
ideológico dos Estados-Nações expressa, entre suas características mais centrais, a
criação de comunidades monoglotas, projetadas como modelo de normalidade. Na
esteira dessa crítica, Love (2009) critica que, desde o século XIX, a linguística
ocidental tem se orgulhado de ser a ciência da linguagem e como consequência as
línguas são comumente entendidas como sendo sistemas fixos de entidades
invariantes biplanares, cada uma unindo uma forma a um significado, como previsto
em um dicionário e em uma gramática.
Como pode ser percebida até aqui, com base nos referidos autores, os
modelos ideológicos do colonialismo, do nacionalismo marcam a condução das
ciências na modernidade e se mantêm vivos até nos dias atuais. Em particular, a
linguística atual ainda reflete as mesmas visões e práticas desses modelos
tradicionais e modernos, baseados na estabilização da linguagem. Em acordo com a
forma expressa no início deste subitem, a linguística ainda se guia pelos pressupostos
da simplicidade, da estabilidade e da objetividade. No mesmo sentido, a linguística
atual ainda tem como características centrais de seu projeto epistêmico os aspectos
extracionista, restritivista e exclusionista.

Do outro lado: propostas pós...

Blommaert (2013) propõe que a maneira de escapar das armadilhas da


Modernidade é reintroduzir a história como uma verdadeira categoria de análise; usar
um conjunto de ferramentas e de conceitos que são intrinsecamente históricos para
fugir da simplicidade; isto é: conceitos que definem e explicam eventos sociais
sincrônicos em termos de suas histórias de se transformarem como eventos sociais.

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Por sua vez, Makoni e Pennycook (2007) também propõe como forma alternativa de
análise uma noção mais útil de história em oposição a apenas o foco linguístico
diacrônico: uma historiografia crítica que permita múltiplas temporalidades em lugar
de uma progressão linear para a mudança e o desenvolvimento. Como defendem
esses pesquisadores, todas as línguas são construções sociais, artefatos análogos a
outras construções, tais como o tempo. O projeto de historiografia crítica desses
autores abrange o alcance de múltiplas temporalidades, em defesa de uma
211
descontinuidade histórica para situar a invenção das línguas, sua desinvenção e sua
reconstrução no interior desse projeto. Acerca desse projeto de historiografia crítica,
Makoni e Mashiri (2007) propõem que um programa de desinvenção das línguas tem
de levar em consideração as realidades históricas e contemporâneas, em vez de
aceitar pressupostos sobre a promoção das línguas com base em crenças de que elas
são fenômenos unitários e discretos com realidades objetivas, como quer fazer crer a
ideologia colonialista.
Como Fiorin (2013) ressalta, devemos abandonar os construtos teóricos
com os quais estamos acostumados a nos guiar, deixar de lado o conforto axiomático
em que assentamos nosso trabalho, para pensar diferente. A ideia é a de que são
necessárias novas teorizações e novas percepções das ideologias linguísticas para
ser possível lidar com as várias naturezas que constroem a língua. Nas palavras de
Moita Lopes (2013, p. 21): “[a]s ideologias linguísticas são múltiplas e advêm de
perspectivas políticas, culturais e econômicas específicas”. No seu entendimento, a
proposição de diferentes reflexões e de práticas distintas nos estudos da linguagem
exige outra adoção paradigmática, que substitua os princípios tradicionais e
modernos, por outros princípios que respondam à vida contemporânea em seus
desafios mais prementes. Ou como postula Kumaravadivelu (2006), é tempo de
celebrar a diferença, desafiar as hegemonias e buscar formas alternativas de
expressão e de interpretação, assumindo outra direção para a atuação. Pennycook
(2006) corrobora a visão dos autores acima citados e salienta que a mudança de
paradigma “possibilita todo um novo conjunto de questões e interesses, tópicos tais
como identidade, sexualidade, acesso, ética, desigualdade, desejo ou a reprodução
da alteridade” (PENNYCOOK, 2006, p. 68).
Neste texto, essa mudança é compreendida como fundamental, uma vez
que essas dimensões da vida social ficaram esquecidas na perspectiva moderna de

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estudos da linguagem. Novas realidades implicam em novas maneiras de
compreender e de intervir nessas realidades. Para Moita Lopes (2006), se a pesquisa

quer falar à vida contemporânea é essencial, não a teorização


elegantemente abstrata que ignora a prática, mas uma teorização em
que teoria e prática sejam continuamente consideradas em uma
formulação do conhecimento na qual a teorização pode ser muito mais
um trabalho de bricolage, tendo em vista a multiplicidade dos
contextos sociais e daqueles que os vivem (MOITA LOPES, 2006, p.
212 101, grifos do autor).

Essa perspectiva traz consigo a necessidade de pensar os fluxos culturais


e a dissolução das línguas no processo de globalização, assim como elucida
Jacquemet (2005). De acordo com esse autor, esses fluxos culturais e essa
dissolução das línguas são metáforas mestras evocadas por discursos que expressam
as mutações culturais ocasionadas na modernidade tardia. Na visão desse autor, as
sofisticadas tecnologias de mobilidade humana e a comunicação global eletrônica são
elementos que cooperam para o avanço desse processo de construção de localidades
em relação às forças sociopolíticas globais. Jacquemet (2005) acentua, ainda, que
essa realidade se revela na formação de elites de poder global que usam as línguas
internacionais como mercadorias e ferramentas que garantem a sua posição
dominante no mundo, bem como permitem seu envolvimento nos processos de
desenvolvimento social e geográfico.
Heller (2010) encampa essa mesma posição até aqui discutida e salienta
que o estudo da linguagem precisa ser enquadrado em termos não só de construção
de significado, de categorias sociais, de identidades e de relações sociais, mas
também das condições econômicas e políticas que restringem as possibilidades de
construção desses significados e dessas relações sociais. Conforme essa autora
explica, as condições ideológicas subjacentes ajudam a explicar por que certas formas
e práticas linguísticas desempenham o papel que elas têm na produção e reprodução
da ordem social e da ordem moral a qual legitimam. Na visão de Heller (2010), o
recente interesse pela linguagem como commodities aponta para uma explicação do
valor de troca em dois níveis: um nível relaciona-se às questões discursivas, como
questões de reprodução, de gosto, de competência intelectual, de boa escolaridade,
de pensamento racional, como sendo diretamente permutáveis por bens materiais; o
outro nível diz respeito à circulação de mercadorias utilizadas sobre a implantação de

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recursos linguísticos; por exemplo, a substituição do quesito físico pelo comunicativo
para conseguir um emprego, em algumas áreas do mercado de trabalho.
Signorini (2013) acrescenta que, em se tratando especificamente da
globalização linguística, o melhor exemplo é o da “comoditização/mercantilização do
inglês como bem de acesso ao mundo globalizado”, no sentido de garantir o “poder
em redes sociais transnacionais e cosmopolitas através do acesso à informação e ao
conhecimento” (SIGNORINI, 2013, p. 77).
213
Ao seu turno, Blommaert e Varis (2013) trazem um destaque para o papel
das culturas na promoção de significados e produções de identidades. As culturas são
perpetuamente sujeitas às práticas de aprendizagem. Assim, uma pessoa nunca é
preenchida pelo sistema cultural, uma vez que as configurações de características
culturais estão perpetuamente mudando, e a fluência de ontem não é precisamente
garantia da fluência de amanhã. As hegemonias robustas da modernidade foram
trocadas por uma mistura de várias micro-hegemonias dentro de um projeto de vida
de um indivíduo. A noção de identidade como uma noção singular é um conceito
ultrapassado, uma vez que as pessoas definem sua identidade em relação a um
grande número de nichos diferentes. Esses estudiosos depõem que isso pode ser
investigado empiricamente, por meio do uso de uma estrutura anti-essencialista, fora
da retórica da fragmentação, sob a tentativa de fornecer uma explicação realista das
práticas identitárias.
Para aprofundar ainda mais nessa discussão, Blommaert (2013) traz a
contribuição de Vertovec (2006, 2007, 2010), o qual conceitua um panorama mais
amplo da diversidade cultural, social e econômica, à qual o autor chama de
superdiversidade, isto é: a diversidade dentro da diversidade, como uma enorme
expansão na textura da diversidade em sociedades como a nossa. Ou como o próprio
Vertovec (2007) explica, a superdiversidade deve ser vista como uma transformadora
diversificação da diversidade, não apenas em termos de discussão étnica e de
nacionalidade, mas também no que diz respeito à multiplicação de variáveis
significativas que afetam onde, como e com quem as pessoas vivem. Vertovec (2007)
ainda afirma que uma gama de estruturas existentes, incluindo aquelas que incidem
sobre etnia como critério predominante ou mesmo única marcação de processos
sociais, deve ser reformulada e ampliada.
Em outra parceria intelectual acerca dessa discussão, Blommaert e
Rampton (2011) explicam que a globalização alterou o rosto da diversidade social,
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cultural e linguística nas sociedades em todo o mundo. Os autores defendem a
substituição da noção de multiculturalismo pelo conceito de superdiversidade. Em seu
texto, a superdiversidade é caracterizada por um gigantesco aumento nas categorias
de migrantes, não só em termos de nacionalidade, etnia, língua e religião, mas
também em termos de motivos, padrões e itinerários de migração, processos de
inserção no mercado de trabalho e de habitação das sociedades de acolhimento. Por
sua vez, Bush (2013) explica que, sob as condições de superdiversidade, os falantes
214
participam de variados espaços de comunicação que podem ser dispostos em
sequência, em paralelo, justapostos ou de forma sobreposta. Cada um destes
espaços tem o seu próprio regime de linguagem, suas regras, suas ordens de
discurso, e suas ideologias de linguagem, nos quais os recursos linguísticos são
avaliados diferentemente.
Nessa mesma direção, Blommaert (2013) destaca que a passagem de um
espaço físico a um espaço social e de uma sincronia a um espaço histórico não é
automática e auto evidente. Ela é compreendida em uma análise mais profunda da
paisagem linguística como indexação social, padrões culturais e políticos. O
diagnóstico sociolinguístico precisa tornar-se um diagnóstico das estruturas sociais,
culturais e políticas inscritas na paisagem linguística.
Blommaert e Rampton (2011) afirmam que os estudos pós-estruturalistas
e pós-modernistas da linguagem na sociedade têm participado das principais
mudanças intelectuais nas ciências humanas e sociais. Conforme eles ensinam, tem
havido uma contínua revisão no curso das ideias fundamentais sobre as línguas,
grupos e falantes de línguas, e sobre comunicação. A mudança é significativa à
medida que, ao invés de trabalhar com homogeneidade, estabilidade e delimitação,
passam a atuar como premissas, a mobilidade, a mistura, a dinâmica política e a
incorporação histórica, como preocupações centrais no estudo de línguas, grupos de
linguagem e de comunicação. Busch (2012) coopera nessa questão e acentua que na
proposta pós-estruturalista as escolhas linguísticas não são determinadas somente
pelo caráter situacional da interação, ou por regras e convenções gramaticais e
sociais, mas enxerga as práticas de linguagem também sujeitas às dimensões do
espaço-tempo da história. Pinto (2013) salienta que a metáfora da rede é o melhor
entendimento de como se constitui a realidade linguística brasileira, na qual cada um
de nós compõe os pontos de contato das partes, formando uma coletividade em
movimento. Na compreensão dessa autora, devemos voltar o nosso olhar para “aquilo
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que permaneceu como ‘exceção’,” no sentido de deixar falar a voz das “práticas
linguísticas tecidas por falantes nas contradições e surpresas do mundo, atos
linguísticos de submissão, dominação e resistência” (PINTO, 2013, p. 143, grifos da
autora).
Busch (2012) corrobora essa opinião e acrescenta que os significados que
os falantes atribuem às línguas, aos códigos, e às práticas linguísticas estão
relacionados às experiências pessoais e trajetórias de vida, especialmente com a
215
maneira em que os recursos linguísticos são experimentados no contexto das
construções discursivas. Busch (2012) postula que o repertório pode assim ser visto
como uma estrutura hipotética, que evolui pela linguagem experimentada na
interação, sobre um nível cognitivo e emocional, e que é inscrito no interior da memória
corporal e incorporada como hábitos linguísticos que incluem traços de discursos
hegemônicos. Estes discursos estão expressos em categorizações que são apoiados
por ideologias inclusivas e exclusivas de linguagem. O repertório linguístico forma um
espaço heteroglóssico e contingente de potencialidades que incluem imaginação e
desejo, as quais os falantes revertem em situações específicas. De acordo com o que
explicam Makoni e Mashiri (2007), a noção de repertório postula a possibilidade que
tem o falante de poder controlar formas linguísticas associadas a diferentes línguas,
mas isso não necessariamente significa que o falante tenha a plena competência na
língua em que as formas de fala são desempenhadas. Nesse sentido, o repertório
captura a totalidade das formas linguísticas empregadas regularmente no curso da
interação socialmente significante.
Nesse entendimento, Duranti (2005) propõe como método a primazia da
interação, uma vez que a interação é o ingrediente pressuposto e produto de qualquer
caso humano. Em outras palavras, precisamos da interação para ser quem somos e,
por sua vez, nossas formas de ser produzem ainda mais interações. Para Duranti
(2005), uma questão importante a abordar é se podemos distinguir entre interação e
comunicação como um todo, independentemente do quanto esses conceitos foram
definidos no passado.
Nesse viés da discussão metodológica, Irvine (1996) defende que a melhor
abordagem para mapear o problema é resistir à tentação de tentar chegar à
singularidade, solução que empurra o problema para o fundo como meramente uma
justificativa para um esquema de cada papel participante. Em vez disso, o problema
mapeado em si mesmo é o que deve vir à tona. Como defende Pennycook (2010), as
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práticas de linguagem são práticas sociais nas quais outras práticas sociais têm sido
recontextualizadas. Com base nisso, as coisas que fazemos socialmente são
recontextualizadas como discurso quando nós as transformamos em linguagem ou,
mais amplamente, como parte de uma semiótica social. Nesse sentido, Pennycook
(2010) destaca a importância de considerar a noção de linguagem como prática local.
Para o referido autor, um modo de pensar a respeito da linguagem como prática local
afasta a noção de língua como uma estrutura pré-dada e, em vez disso, passa a
216
considerar a língua como produto da prática, da atividade social repetida; bem como
desenvolve a noção de localidade, a qual leva em consideração o sentido de tempo e
movimento. As práticas de linguagem não podem acontecer fora da localidade, mas
também não são definidas por ela. Pennycook (2010) destaca a necessidade da
abertura de modos alternativos para a reflexão acerca das noções de tempo, de
espaço, de diferença e de repetição.

O ensino de português: uma nova agenda

Uma nova agenda para o estudo da linguagem e o ensino da língua


portuguesa é fundamental para uma mudança dos rumos dessas práticas. A
universidade e a escola têm sofrido duras críticas aos seus modelos de atuação, de
formação docente e de atuação discente por diversos pesquisadores estudiosos
dessas práticas, em diversas áreas da educação. Merece destaque nessa a
fragmentação dos saberes, do currículo, constituindo disciplinas estanques, sobretudo
na base de um distanciamento das vidas das pessoas que à escola têm acesso. Para
Morin (2003, p. 14), esse “retalhamento das disciplinas torna impossível apreender “o
que é tecido junto”, isto é, o complexo, segundo o sentido original do termo” (MORIN,
2003, p.14, grifos do autor).
É necessário olhar para além das aparências, enxergar a colossal trama
ideológica que tem ditado as normas e os acontecimentos na educação, operada por
uma rede de poderosas correntes ideológicas que cooperam para estabelecer e
manter a hegemonia do modelo de pensamento ocidentalista, já posto sob crítica
neste texto.
Como expressa Moita Lopes (2006), temos emergência para compor uma
agenda anti-hegemônica para os estudos da linguagem no Brasil, no sentido de “dar
conta da complexidade dos fatos envolvidos com a linguagem em sala de aula [...] na
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direção de um arcabouço teórico interdisciplinar” (MOITA LOPES, 2006, p. 19). Essa
agenda apresenta uma “alternativa para entender o mundo contemporâneo”, “um
mundo globalizado, ao mesmo tempo em que redescreve a vida social e as formas de
conhecê-la” (MOITA LOPES, 2006, p. 27). Ainda, para tratar de questões referentes
à Língua Portuguesa, num “mundo no qual a linguagem ocupa um espaço privilegiado
[...], no qual nada de relevante se faz sem discurso” (MOITA LOPES, 2013, p. 19). Há
uma franca necessidade de “rever compreensões do português, influenciando
217
políticas públicas e práticas escolares” (MOITA LOPES, 2013, p. 22). Portanto, são
inerentes a essa agenda o posicionamento político e a postura ética frente às
demandas do mundo real, da vida, sobretudo questões que ficaram de fora dos
estudos linguísticos por muito tempo; tais como as questões de sexualidade; de
classe; de raça; de ideologia; de gênero; de cultura; de políticas; de discurso etc. Isso
é possível na medida em que passamos a questionar “uma série de pressupostos
teóricos que têm orientado o que chamamos de português” (MOITA LOPES, 2013, p.
30).
As ideologias discutidas nas duas seções anteriores deste texto impõem
marcas severas ao trabalho escolar com a linguagem: a língua tende a ser vista de
forma fragmentada nos elementos da gramática normativa, na segmentação textual,
na cristalização de textos, na leitura decodificativa, na escrita como tarefa, ao passo
que são ignoradas questões fundamentais existentes nas esferas históricas, sociais,
culturais, econômicas, políticas, ideológicas e discursivas. Por todos esses motivos, a
educação deve ser liberta dessas concepções ideológicas se ela pretende cumprir
seu papel. Para isso, desde a universidade, na formação inicial docente, é importante
que professoras e professores recebam uma formação crítica quanto às ideologias
que estão em confronto paradigmático e que, depois, em sua formação continuada
esse conhecimento e essa postura sejam consolidados.
Outro aspecto importante a ser destacado é o fato de que o conhecimento
agora é global, os/as aprendizes são informados/as a todo tempo do que ocorre ao
redor do mundo via televisão e internet. E não há como o/a professor/a se comportar
de forma neutra às mudanças do mundo ou se posicionar como a/o única/o
detentora/or do saber. Não adiantará trazer a discussão pronta, pois as/os alunas/os
querem e muito têm a dizer sobre esse mundo. Por isso, o caminho é a discussão do
que realmente importa à vida das pessoas. Também não pode mais ser ignorada a

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urgência em se refletir acerca da formação inicial e continuada de professoras/res,
assim como alternativas para o regime de trabalho desse/a profissional.
A escola tem trabalhado segundo um princípio de cumprimento de metas,
tal qual o campo empresarial e industrial, assumindo um projeto de produção em série,
no qual os/as aprendizes partem de uma mesma condição, todos/as devem realizar
suas tarefas ao mesmo tempo, para chegarem ao mesmo resultado final. Todos os
índices, no fim das contas, representam fundos ao setor educacional e,
218
principalmente, a gestão da escola pública atua para bater suas metas. Todavia, ficam
suprimidas outras questões humanas que também são inerentes à educação; tais
como: de classe social, de gênero, de racismo, de homofobia, de identidades, de
ideologias etc.; enfim, de que são seus/suas participantes.
Para enfrentar aos desafios contemporâneos a educação terá que estar
sempre aberta às realidades vividas por aqueles/as que a ela têm acesso. A sala de
aula é parte integrante da vida e deve ser um lugar de reflexão crítica acerca dela. O/a
professor/a necessita estar consciente das transformações pelas quais o mundo
passa. A escolha pela profissão é ideológica e, portanto, política. A sua conduta deve
ser ética, para não negligenciar-se da agência na vida de seus/suas aprendizes. Vista
por esse par de óculos, a atuação do/da professor/a ganha mais sentido, por refletir
os traços mais proximais de sua vida e da vida dos/das seus/suas aprendizes. Essa
posição exposta está afinada com a opinião expressa por Pessoa (2014), ao afirmar
que não podemos mais seguir vendo a educação como uma atividade neutra ou
autônoma. Para a autora, podemos escolher contribuir para a reprodução das
relações sociais; porém, também podemos acreditar em alternativas para o mundo
em que vivemos.

Considerações Finais

Toda essa exposição trazida até aqui, neste texto, nos convalida a pensar
na mudança dos rumos de nossas aulas. Isso impõe sobre nossa ação os desafios de
superarmos a tradição teórica e metodológica com que habituamos a exercer nosso
papel. Sob a luz da mesma base epistemológica com que temos legitimado nossa
prática docente não será possível a mudança desejada. Por ser assim, precisamos de
outro entendimento acerca de como a linguagem integra a vida das pessoas. Muito

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mais que uma estrutura estabilizada, a linguagem medeia as relações humanas e dá
a elas seus significados e sentidos.
Para desenvolver um empreendimento dessa magnitude e enfrentar os
desafios que a contemporaneidade se nos apresenta, será preciso um olhar crítico
para dentro das práticas de formação e de pesquisas que realizamos. A universidade
e a escola não poderão mais ser entendidas como instâncias extramundanas, como
se seus/suas aprendizes, no ensino superior e no ensino básico, vivessem numa
219
bolha que os/as protegesse das influências da história, da cultura, das ideologias;
enfim, da vida social. Ao contrário, quanto mais contextualizados forem postos os
desafios à educação, maiores serão as chances de compreendê-los e, por isso
mesmo, de encontrar as formas de enfrentamento. A universidade não pode ser um
livro de receitas para o fazer prático das escolas. A docência não se resume ao saber
técnico do conteúdo e à sua exposição didática. As vidas locais têm muito a ensinar
sobre si mesmas; as culturas locais expressam muito dos sentidos que a educação
precisará atender para o cumprimento democrático e ético do seu papel. Todas as
pessoas que vivem o quotidiano universitário e escolar vêm de espaços sociais reais,
e trazem para essas instituições suas bagagens de vida, nas quais são constituídas
suas identidades. Nenhuma existência pode ser vista como uma invenção
institucional, docência e discência são resultados de construtos sociológicos e
culturais, como resultado de um conjunto de dimensões da vida social, ao qual a
instituição integra e, ao mesmo tempo, responde.
A mudança a ser imprimida é uma mudança possível, mas que só será
efetivada na mudança dos modelos paradigmáticos que adotamos e na postura
engajada de muitas e muitos que atuam pela transformação da educação e da escola.
Como nos ensina Jordão (2013), para chegarmos a esse propósito, é necessário que,
como educadores/as, abandonemos “nossos privilégios como representantes do
pensamento legitimado”, para estarmos abertos/as a “perspectivas variadas, sem
deixar de reconhecer as relações de poder que nossa posição instaura – e o valor de
verdade que nossas opiniões podem ter em determinados contextos” (JORDÃO,
2013, p. 353). Nesse sentido, a atitude docente é a de quem compartilha com
suas/seus aprendizes os sonhos e projetos que têm para suas vidas, ajudando-os/as
a enfrentar os desafios que a vida lhes impõe.
Sei que para muitos/as estudiosos/as da educação essa é uma conquista
que está muito distante de ser efetivada. Todavia, nenhum longo caminho será
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percorrido de uma só vez e, mais do que isso, o que me motiva é o fato de que muitos
e muitas já deram os primeiros passos nessa jornada. Então, quem decidir trilhar essa
distância não estará sozinho/a. Enfim, qualquer transformação não será realizada em
escala global, mas, ao contrário, ela será exercida em contextos locais, em ações
situadas e caracterizadas pelas formais locais de existência. Todos os desafios à
educação trazem suas marcas de localidade.

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