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Agradecimentos
Capítulo 2
Capítulo 8
Pelo menos era uma resposta, mas eu não sabia o que o SUSTAIN
podia fazer. Mesmo que tivessem alimentos de emergência, não teriam
dinheiro para enviar os alimentos para cá, e
acabaríamos simplesmente esperando outro embarque ser or- mos tratar da perna dele. Está em estado avançado demais.
ganizado. Eu estava empacada de novo. Não ia chegar a lugar Oferecemos carona até o hospital de Sidra, mas ele não quer ir,
nenhum. acha que vão amputar a perna dele.
Sentei-me e redigi o relatório para enviar a Gunter. Pedi a — Eu vou amputar a perna dele com uma faca de cozinha se
Malcolm para levá-lo à ONU e fazê-los se comunicarem com o ele continuar agindo assim — disse O’Rourke. — Betty, acabei
SUSTAIN Reino Unido. Eu precisava voltar a Safila. de ter uma ótima idéia para o recheio.
— Robert, tenha modos — ralhou Linda. — Não estou gos-
tando dessas suas piadinhas sobre os africanos.
Betty adorou saber que o SUSTAIN queria que ela continuasse Linda tendia a levar as coisas muito a sério, mesmo. Era uma
por lá. Quando nos sentamos para jantar naquela noite, ela havia jovem magra e tensa, com as costas muito retas e ar de quem foi
se tornado a recreadora-mor de Safila, decidida a alegrar todo campeã de hóquei na escola.
mundo. O’Rourke acendeu um cigarro e olhou diretamente para a
— Olha só. O que vamos preparar para a ceia de Natal? frente.
Acho que devíamos ter uma ceia típica esse ano — dizia ela, Muhammad apareceu no nosso conjunto, e eu girei quando o
animada, aos ouvintes indrédulos de olhos arregalados, reunidos vi. As faces dele estavam encovadas, a pele estava esticada ao
quando entrei na cabana. redor dos olhos.
— Podemos trazer um peru do mercado, como no ano pas- — Muhammad, você está com uma cara péssima.
sado, contanto que não tenha que matá-lo! Há, há, há! Depois — Cortamos as rações pela metade, Rosie.
usamos uma receita ótima de recheio que eu tenho, com miga- Passou-me pela cabeça a idéia de que Muhammad talvez
lhas de pão, tomates e alho, um pouco de ovo e suco de limão. tivesse emagrecido de propósito, para nos obrigar a agir. Quando
Mas gostaria que tivéssemos um pouco de cogumelos. E será que desci ao acampamento com ele, olhei todos bem de perto. Será
alguém se lembrou de pedir à família para mandar um pudim de que eles já estavam mais magros e fracos, ou era impressão
Natal? Vamos precisar de dois ou três, acho. minha?
O’Rourke estava com a cabeça apoiada nas mãos. Fui ao centro de alimentação para pegar as tabelas peso-
— Podemos conseguir milho verde. Lingüiça no Hilton. Ah, altura, e as levei à morada de Muhammad para debatê-las com
mas e as couves-de-bruxelas? Não podemos passar o Natal sem ele. Em vez dele, porém, encontrei O’Rourke por lá, fervendo
couves-de-bruxelas. água para o chá. Disse que Muhammad voltaria em breve.
— Quem sabe a gente pode montá-las com umas folhas e Sentei-me em uma das camas e comecei a examinar as tabe-
cola — sugeriu O’Rourke. las. O’Rourke veio e ficou de pé atrás de mim, olhando-as por
A outra situação óbvia foi um homem com uma micose na sobre meu ombro.
perna, que havia passado a morar diante da cabana. Sempre que — Quem fez essas tabelas? — indagou. — Isso não é possível.
alguém passava, ele berrava e indicava a micose acusadoramente. Ele apontou uma figura, a mão dele roçou na minha.
— Vivemos mandando esse homem embora, mas ele sem- — As coisas não estão tão ruins assim. Acho que estão exa
pre volta. É da aldeia de Safila — explicou Sian. — Não pode- gerando.
Virei-me para olhá-lo. Ele estava olhando direto para mim. — Estão dizendo que podem nos levar até os gafanhotos e
Seus olhos estavam cor de avelã naquele dia. Perturbada, voltei para ver as pessoas que estão viajando até nós sem comida.
a examinar a tabela. Podem nos encontrar na fronteira com os veículos deles.
— Então a ONU nos mandou esperar, hein, que novidade! — Quanto tempo vai demorar isso? — perguntei. Houve
O que o Malcolm acha disso tudo? um certo debate.
— Ele também está cauteloso. Acha que estou exagerando. — Talvez um ou dois dias.
O’Rourke sacudiu a cabeça. Multipliquei o prazo mentalmente por três.
— Aquele cara é o rei dos enroladores. — Se vamos fazer isso — disse eu —, precisamos ser rápi-
Muhammad voltou e disse: dos, ou amanhã ou no dia seguinte, tirar algumas fotos e mandá-
— Precisamos pôr as mãos na massa. las para a ONU em El Daman.
Camadas de informações equivocadas pairavam sobre a — Vou ver se eles podem nos levar amanhã — disse Mu-
questão. Eu não sabia o que pensar. Os keftianos estavam defi- hammad.
nitivamente nos superestimando, a ONU estava subestimando a — Espere aí, estamos falando de uma guerra — disse
situação. O’Rourke. — Será que esse é um risco aceitável? Onde estamos
— André diz que alguém devia ir a Kefti e verificar como nos metendo?
andam as coisas por lá — disse eu. — Só temos três problemas — disse Muhammad. — As
minas, os ataques aéreos e as emboscadas dos soldados
aboutianos.
Muhammad saiu para encontrar alguns soldados da FLPK para — Ah, bom, nesse caso, o que estamos esperando? — disse
debater a idéia conosco. Oficialmente, a Frente de Libertação do O’Rourke.
Povo Keftiano não tinha permissão para entrar no acampamento — Até que ponto isso é perigoso?—perguntei a Muhammad.
sem uniforme, mas como nós iríamos saber quem era soldado ou Mais indagações.
não? O’Rourke tinha ido até o outro lado e estava de pé diante de — Vamos precisar atravessar os sopés dos morros até o des-
mim, no outro extremo do aposento. Eu não sabia bem por que filadeiro, depois a planície, até as montanhas. Essa estrada da
ele estava ali. Parecia sempre estar por perto quando alguma fronteira até o desfiladeiro foi minada, mas as minas agora já
coisa importante estava acontecendo. Era bom ele estar ali. estão desativadas. Está sendo usada regularmente pelos veículos
Muhammad voltou depois de alguns momentos. Havia qua- da FLPK e há meses não se descobrem minas. Eles vão enviar um
tro camas no abrigo dele, feitas de troncos e corda, dispostas veículo à nossa frente, e podemos ir seguindo o carro deles, de
como uma ferradura. Os soldados se enfileiraram e se puseram forma que, se houver mina, eles a detonarão primeiro, e es-
em vários pontos da sala, alguns nas camas, alguns de pé atrás taremos a salvo.
dos outros. — Meio perigoso para os caras da frente — observou
Muhammad começou a falar com os homens e traduziu as O’Rourke.
respostas para nós. — Eles são soldados, estamos em guerra—disse Muhammad.
— E os ataques aéreos? — indaguei.
— Eles não vêm até a fronteira, pois há um acordo com Durante o jantar houve muita indignação em relação às ati-
Nambula nesse sentido. Além do desfiladeiro viajaremos à noite. tudes em El Daman. O plano para ir a Kefti gerou uma reação
Eles não bombardeiam à noite. mais controvertida.
— E as emboscadas? — Se forem feridos, alguém vai ter que ir lá para trazê-los
Muhammad conversou com os homens, e eles riram. de volta — disse Linda. — E não vai parecer muito bom aos
— Eles disseram que não há emboscadas. A estrada está bem olhos do SUSTAIN isso acabar nos jornais, os funcionários deles
vigiada. viajando com inimigos rebeldes do governo Abouti.
— Será que a informação é confiável? — indaguei. — Eles — Mas não vai pegar bem para o SUSTAIN também se aca-
querem que a gente vá, não é? barmos mostrando Safila sem alimentos na BBC, vai? — disse
— Eu não os deixaria metê-la numa entalada dessas — disse O’Rourke.
Muhammad. — Não tem nem comparação — disse Linda.
— Então acha que é seguro? — perguntei. — Vai dar muito mais trabalho conseguir milhares de libras
— Já lhe disse o que acho da situação. Não creio que o risco em alimentos suplementares do que ir buscar três cadáveres em
seja grande, mas não acho que deva ir. Eu mesmo vou. Kefti.
— Mas não precisa ir sozinho. É um refugiado, eles não vão — Ora, pelo amor de Deus, Robert — disse Linda.
ouvi-lo. E preciso que um de nós vá também. — Porcaria, parece que todo mundo aqui está estressado de-
— Vou eu — disse O’Rourke. mais para o meu gosto, vou me enfiar debaixo da cama com um
— Não. Eu vou — disse eu. colete a prova de balas — disse Henry, saindo.
Nós dois queríamos ir. O fim justificava o risco, tínhamos — E que eu não quero que o matem — disse Sharon. — Não
que saber o que estava nos esperando lá por Safila. Mas no vale a pena correr esse risco, não é?
mundo moderno não há muitas aventuras de verdade, e essa era — Ninguém vai nos matar — disse eu. — Já conversamos
uma aventura de verdade. Nossa decisão se baseava tanto em com o Muhammad e a FLPK.
coragem quanto em empolgação. — Acho que o risco é razoável, dado o fim para o qual va-
— Não há motivo para você ir, Rosie — disse Muhammad. mos lá — disse O’Rourke.
— É melhor levarmos um médico ocidental para analisar a situa- — Bom, queridos, vocês é que sabem, está tudo muito bem.
ção também para o caso de acidente ou doença. Eu farei as tra- Mas lembrem-se, estão em guerra — disse Betty.
duções para o dr. O’Rourke. Henry reapareceu com uma garrafa de brandy. Ele devia tê-
— Sou eu quem vai negociar com a ONU. Para convencê- la guardado. Houve muito papo-furado enquanto todos se ser-
los, vou precisar ver tudo com meus próprios olhos e tirar fotos. viam em canecas de plástico cor de laranja. Todos tomaram um
— É melhor levarmos um homem. pouco. Até Linda, e até mesmo Betty.
— Por quê? Depois de algum tempo, O’Rourke disse:
— Então vamos depois de amanhã — disse o dr. O’Rourke, — É um plano perigoso, temerário, irresponsável,
afinal. — Todos os três. desobediente, maroto.
— Sim, completamente irresponsável — atalhou Linda.
— É um plano precipitado, imprudente, teimoso, irrefletido, — Adoro depositar uma confiança absoluta em suas opi-
pérfido — disse eu. niões, velhinha, simplesmente adoro. Mas essa sua escolha de
— Acho que devemos ir — disse O’Rourke. companheiros de viagem me preocupa, devo dizer.
— Mas o Muhammad é uma pessoa fantástica.
— Não estou falando do Muhammad. Estou falando do
A porta da minha choça chacoalhou. maldito Cedric, o deus do Sexo.
— Com mil diabos, o que está rolando aqui? Tem algum — Quem?
preto por aqui? — Henry entrou, trazendo uma garrafa de gim — Dr. Cedric, o Deus do Sexo.
e um pacote de suco de laranja desidratado. — Caramba, será Então ele sentia ciúme do dr. O’Rourke.
que não tem uma garrafa de água? — disse ele. — Pensei que a — O O’Rourke não é um deus do sexo — era apenas uma
meia verdade. — É um homem gentil, sensível, responsável, sério,
gente poderia tomar um último drinque juntos enquanto vocês
um médico extremamente útil, meio mandão. E você sabe por
ainda estão aqui no pedaço, com todos os membros inteirinhos
que ele precisa ir.
ainda grudados no corpo, por assim dizer.
— Ah, sei sim, sei sim. Precisa de homem. Precisa de médi-
Eu de repente senti uma ternura imensa, possivelmente
co para costurar as pernas de volta em você. Não pode me levar.
porque estava com medo, e o abracei.
Precisa deixar um substituto tomando conta do pedaço aqui,
— Olha só, segura a onda, minha velhinha. Não quer que afinal, não médico. Não pode levar a Betty. Betty médica, não
eu, O Paulo Pau-Duro, pinte na festa agora, quer, se não onde homem. Além disso, doida.
vamos parar?? Todas as lembranças dos artigos, verbos de ligação e prepo-
Henry já havia bebido umas quando entrou. Depois de tomar sições haviam sumido daquele cérebro de Montague.
mais umas tantas, começou a ficar anormalmente sério. — Isso mesmo. É por isso que ele tem que vir.
— Tem certeza de que quer fazer essa excursão totalmente — Sedutor perverso.
maluca, imprudente, irresponsável, porra louca, tipo corrida da — Não seja ridículo. Não há nada entre mim e O’Rourke, e
misericórdia? ele não é um sedutor perverso. E além disso, você não está em
Naquele momento estávamos com a propensão de usar lon- posição de jogar pedra no telhado dos outros, com seu telhado de
gas seqüências de adjetivos. vidro romântico impressionante.
— Não poupe palavras, Henry. Sinta-se à vontade para ex- Ele deu uma risadinha espremida.
pressar seus pensamentos. — É diferente.
— Estrada minada. Ataques aéreos. Emprego em perigo se — Não é diferente.
for pego com a boca na botija. Acampamento abandonado outra — Acho melhor eu ir, em vez de você.
vez à sua própria sorte durante quatro dias. Será que vale a pena, Eu nunca tinha visto Henry de porre pra valer antes. Havia
velhinha? me esquecido de que ele era muito jovem. Parecia apavorado.
— Eu não iria se não achasse que vale. Talvez o problema fosse o fato de que ia ficar encarregado de
Ele agora bebia no gargalo da garrafa. administrar o acampamento.
— São só quatro dias. Você vai se sair bem. Vamos relembrar de frescor. O veículo da FLPK havia sumido da nossa vista, des-
tudo. Você vai saber exatamente o que fazer. crevendo uma curva na estrada. O que ouvimos foi um estouro
De repente ele se jogou e enlaçou meu pescoço com os bra- baixo. O’Rourke pisou nos freios. Vimos fumaça negra
ços, esfregando a cabeça em mim, como se fosse uma criancinha avolumando-se acima das árvores. Os dois soldados atrás de nós
de colo. gritaram e saltaram da traseira, correndo para os arbustos à nossa
— Estou morrendo de medo, Rosie. Tudo está descontro- esquerda.
lado. Não quero que te explodam com uma bomba. Não quero Procurei a maçaneta da porta.
ver tudo isso destruído, as pessoas mortas de fome por todo — Fique no carro — disse O'Rourke, baixinho.
lado. — Pode ser uma emboscada. Precisamos sair — disse eu,
Até que Henry não era tão calafetado e envernizado quanto sussurrando também.
eu havia pensado. Gostei ainda mais dele por isso. Acariciei-lhe — Espere.
a cabeça e o acalentei como a um bebê. — Precisamos prosseguir, Muhammad está...
— Espere.
E então ouviu-se uma segunda explosão lá adiante. O ar
Já fazia cerca de quarenta minutos que tínhamos atravessado a diante de nós tremeu como o ar acima do asfalto quente. Espe-
fronteira entre Nambula e Kefti. Eu sabia que O'Rourke estava ramos de novo, lutando contra a tensão. Parecia inacreditável
tenso porque estava segurando o volante na posição dez para as aquilo estar acontecendo tão rápido.
duas, agarrando-o com toda a força, em vez de segurar na parte — Ok — disse O'Rourke, depois de algum tempo. Engrenou
de baixo e apoiar um cotovelo na janela, como sempre. Olhava os o carro e começou a subir. Seguimos as trilhas dos pneus
joelhos dele, cobertos pelo jeans, junto aos meus, cobertos por vagarosamente, com medo de ouvir mais alguma explosão antes
calças de algodão. Fazia aquilo para evitar pensar no que estava de fazermos a curva.
acontecendo. Estávamos seguindo o carro da FLPK a uma — Ai, meu Jesus.
distância de 200 metros, mantendo-nos na trilha dos pneus. Havia A cabine havia sido lançada a 15 metros do resto do veículo.
três soldados no veículo da FLPK, e mais Muhammad, que quis Ao lado da trilha, à esquerda, vi a parte de baixo de uma perna ao
ir com eles até chegarmos à zona de perigo, de forma que lado da estrada. A parte traseira do veículo estava de pé, com um
pudessem conversar. Havia dois soldados no Toyota conosco, no buraco na lateral, e o djelaba de Muhammad estava pendurado
banco de trás. Quando chegássemos à zona de perigo, íamos para fora, empapado de vermelho vivo de sangue. Uma das
parar até escurecer, depois Muhammad ia seguir conosco outra pernas dele estava pendurada sobre a lateral do buraco, e o toco
vez e prosseguiríamos com capas sobre os faróis. Agora eram da outra, abaixo do joelho, estava sangrando horrivelmente.
cerca de três horas da tarde, e o sol ainda estava alto. O’Rourke já estava saindo do veículo com a mala na mão.
A estrada estava começando a se inclinar, nós havíamos saí- Comecei a abrir a porta do meu lado.
do do deserto, e havia arbustos e árvores dos dois lados da es- — Saia por esse lado e me siga.
trada. O clima era úmido e mais fresco, e o ar tinha um aroma Obedeci. Fomos até Muhammad, que estava consciente,
porém não dizia coisa com coisa.
O’Rourke amarrou um torniquete acima do joelho de Encontramos o terceiro soldado em um capão de mato um
Muhammad. O sangue arterial vermelho vivo ainda jorrava, pouco adiante. O homem estava com um pedaço de metal da
pulsante, do toco da perna. Eu me virei e vomitei. Havia lateral do caminhão cravado no estômago. Ajudei O’Rourke a
manchas na minha visão. Achei que ia desmaiar. cuidar do soldado, pegando as coisas de que ele precisava na
— Sente-se onde está. Não olhe para nada. mala. Estava começando a escurecer. Juntos carregamos o sol-
— Vou ver a cabine — disse eu, e comecei a passar pela parte dado de volta para o veículo, eu levando os pés. O’Rourke dei-
traseira do carro, na direção da trilha, adiante. xou o pedaço de metal no estômago dele. A mancha de sangue
— Espere — disse O’Rourke. Eu prossegui. Achei que esta- no uniforme cresceu como tinta em mata-borrão, mais escura em
va me comportando normalmente. Senti a mão dele no meu torno das margens. Deitamos o soldado no chão, na traseira do
braço. Ele me virou e pôs as mãos nos meus ombros. Olhou-me caminhão, e eu sustentei as pernas dele enquanto O’Rourke
de forma muito calma. — Espere um pouco — disse ele. — Fi- subia. Depois também subi, e o colocamos ao comprido no
que aqui uns dois minutos. Fique aí me olhando. banco, em frente a Muhammad, que O’Rourke havia coberto
Voltou, e o vi tirar alguma coisa da mala e dar uma injeção com um cobertor. Ele ainda estava inconsciente por causa do
em Muhammad, que estava deitado com a parte superior do analgésico.
corpo no assento da picape, a parte inferior ainda pendendo da — Acha que ele vai se recuperar? — indaguei.
brecha na lateral do caminhão. Depois O’Rourke ergueu o resto — Talvez — murmurou O’Rourke.
das pernas de Muhammad e o deitou no assento. Vi que as cos- Ocorreu-me então que tinha sido eu quem havia sugerido a
tas da camisa de O’Rourke estavam com uma enorme mancha viagem, então era culpa minha ter acontecido aquilo, Muham-
escura de suor e os braços estavam cobertos de sangue até os mad ter perdido a perna. Minha visão ficou embaçada, e então,
cotovelos. Ele limpou as mãos no jeans e depois olhou para mim. muito tempo depois, ouvi O’Rourke dizer: "Tudo bem, agora,
— Ok. — Ele me deu um sorriso de incentivo, como se en- está tudo bem." Estava deitada em algum lugar escuro, coberta
frentássemos alguma espécie de desafio e estivéssemos nos sain- com um cobertor, só podia enxergar O’Rourke à luz de uma lan-
do muito bem. Dessa vez, quando se aproximou, colocou a mão terna, e me lembrei do que havia acontecido. Ele estava ajoe-
nas minhas costas e me levou na direção da cabine. lhado ao meu lado, oferecendo-me um pouco de água.
— Olha, não espie lá dentro antes de eu ter visto o que acon- — Não é melhor levarmos Muhammad de volta a Safila? —
teceu. perguntei. — Podemos transportá-lo?
As rodas haviam sido arrancadas, de forma que a cabine esta- — Shh. Relaxe durante algum tempo.
va apoiada nos pára-lamas. O’Rourke abriu a porta e entrou. Por — Não acha que devíamos voltar para o acampamento?
cima das costas dele vi a cabeça do motorista esmagada contra o — Estou com a impressão de que estamos a apenas alguns
painel, um fluido claro e sangue escorrendo de dentro dela. O san- quilômetros de Adi Wari. Acho que devíamos levá-lo até lá e
gue estava se coagulando sobre os cabelos. O soldado mais velho torcer para encontrar um hospital, caso não encontremos, ar-
parecia estar dobrado ao meio. Tornei a olhar para outro lado. ranjar acompanhantes para voltar a Safila.
— Estão mortos, os dois — disse O’Rourke, saindo da cabi- — Acha que devemos ir de carro?
ne. — Onde está o outro? — Não.
— Então devemos esperar o dia amanhecer e ir andando?
— Acho que sim. Levar o Muhammad.
— E o soldado?
— Ele vai estar morto amanhã. Se eu retirar o metal, vai
morrer agora, se não retirar, vai morrer amanhã.
Do caminhão vinha o cheiro metálico de sangue, e não po-
díamos fumar, porque havia querosene espalhado por todo lado. Capítulo 14
Então saímos um pouco para fumar. Podíamos ter feito uma
fogueira e preparado um chá, mas não queríamos nos arriscar a
sermos vistos do alto. Em vez disso comemos um pãozinho e
bebemos um pouco de água. Voltamos ao caminhão, sentamo-
nos lado a lado no assento, ao lado de Muhammad, e nos enro-
lamos nos cobertores. Todos estaríamos mais confortáveis no
Toyota, mas não queríamos mexer muito nos feridos. Muha- ACORDEI COM a luz cinzenta da aurora filtrando-se através da
mmad estava calado, mas o soldado estava delirando e gritando lona da traseira do caminhão. Quando alguma coisa terrível
de vez em quando. aconteceu, o segundo momento depois do despertar é o mais
Examinando o mapa, descobrimos que Adi Wari estava a insuportável. A gente começa com a mente lavada pelo sono,
apenas sete quilômetros de distância. O’Rourke me ofereceu um depois se lembra.
tranqüilizante, mas eu quis ficar acordada. Mesmo assim, deve Muhammad estava em coma. O soldado também. O’Rourke
ter posto alguma coisa na minha bebida, porque a última coisa de não estava ali. Eu saí do caminhão e entrei no meio dos arbustos
que me lembro antes de acordar na manhã seguinte é que estava para urinar. Estava começando a ficar paranóica. Estava achando
sentada, envolta no cobertor, encostada nele, seu braço que tudo aquilo era culpa minha e que eu era uma pessoa
envolvendo meus ombros com força, até com força demais. Senti horrível.
um misto de emoção, choque, culpa, medo, mas ao mesmo tem- Voltei ao caminhão. O’Rourke estava de pé, esfregando a nuca.
po, senti uma estranha forma de exaltação, simplesmente por Os cabelos estavam levantados de um lado, como a cauda de um
estar viva. pato, e ele precisava fazer a barba, mas estava com uma camisa
limpa. Parecia estar com as coisas sob controle, de forma que dava
a impressão de que a civilização não tinha acabado.
Quando cheguei perto dele, me abraçou e me balançou um
pouco, suavemente.
— Está bem, soldado?
Não respondi. Ele me levou para me sentar na cabine do
Toyota e conversou comigo. Foi muito legal comigo naquela
manhã. Acho que o infortúnio é a coisa pior do mundo para
se encarar quando a gente sente culpa ou vergonha dele. Tira a — Rosie. — Ele estendeu a mão para mim. — Eu me tornei
opção de uma fantasia que corrobore o heroísmo da gente. Não um dos feridos de guerra. Vai me amar mais por causa disso?
sei como as pessoas conseguem assimilar acidentes que são Peguei a mão dele, mas não consegui falar.
definitivamente culpa delas. Mas sei que as pessoas podem sair — Não fique triste. Por favor, não fique assim. Devia estar
mais ou menos intactas das situações mais ultrajantes se feliz porque ainda estou por aqui. Sabe, eu ainda estou aqui,
aprenderem a pensar da forma certa. Tive muita sorte de ter embora não tenha mais uma das pernas.
O’Rourke ao meu lado naquele momento. Ele me fez lembrar — Cale-se. Silêncio.
que todos haviam decidido vir por sua própria vontade; que Achei que isso foi bem grosseiro da parte de O’Rourke num
tínhamos todos pesado os prós e contras, e decidido que os fins momento tão sensível, até que ouvi o avião. Era um zunido dis-
justificam os meios. Disse-me que sabíamos que acontecem tante a leste. Dentro de segundos se transformou num ronco,
coisas horríveis o tempo inteiro, e que quando acontece uma a aumentando até o som ser inacreditável, como se o avião esti-
você ou a alguém próximo de você, você não deve deixar isso vesse dentro do caminhão conosco. Fiquei completamente rígi-
abalar sua confiança no mundo, porque o mundo continua sendo da. Estava pensando: É claro, é isso que vai acontecer, vamos ser
o mesmo. A gente só estava começando a entender isso melhor. bombardeados, vamos morrer agora. O soldado, que antes estava
— Não vou conseguir encarar Muhammad — disse eu. em coma, se mexeu, depois berrou de dor por causa do metal.
— Sim, vai — disse ele. — Vai ver só. Ele vai se sair melhor O’Rourke se inclinou e segurou-o, para mantê-lo quieto.
do que nós. Vai transformar isso numa vantagem. Muhammad estava sentado de olhos fechados, braços cruzados
O’Rourke estava certo, conforme viemos constatar depois. sobre a barriga. Estávamos tensos, esperando a explosão. Mas o
Ali, o comportamento em relação à perda de um membro era barulho diminuiu e o avião pareceu afastar-se, o som diminuindo
totalmente diferente do Ocidente. Certa vez ouvi um protético da até não se fazer ouvir mais.
Cruz Vermelha descrever como, na Suíça, seus pacientes se — Achei que eles não se aproximariam tanto da fronteira —
desesperavam, loucos para que sua perna artificial parecesse real, disse O’Rourke, com uma calma ridícula.
de forma que ninguém notasse quando estivessem vestidos, ao — Eles devem saber que estamos aqui — disse Muhammad.
passo que quando experimentava a primeira versão de uma — Certo, é melhor irmos em frente — disse O’Rourke.
prótese em um keftiano, provavelmente nunca mais o veria. — Mas como, e o soldado? — disse eu. Ele estava quieto
Contanto que funcionasse, eles só queriam seguir adiante. Não agora, mas os olhos estavam desvairados. Estava aterrorizado.
se preocupavam muito em esconder esse tipo de coisa. Talvez — Deixe-o, deixe-o, ele vai morrer — disse Muhammad.
fosse por causa da guerra e de proliferação de minas. Desconfio O soldado não entendia inglês, mas o olhar dele era assus-
de que tinha mais a ver com a escala de valores deles. tador.
Quando subi na traseira do caminhão, Muhammad estava — Não podemos deixá-lo nesse estado, é desumano — disse
consciente e sentado. Foi um choque vê-lo assim de djelaba sujo O’Rourke.
à luz do dia. Estava cinzento de fumaça e coberto de grandes — Não está entendendo a morte na África. Estamos em
manchas de sangue coagulado. guerra. Ele é soldado — disse Muhammad.
— Mas está com muita dor — disse eu.
— Pode dar um fim nisso de uma vez, para ele não sofrer O’Rourke voltou para pegar uma padiola, e foi assim que o le-
tanto — disse Muhammad. vamos. Ele estava alarmantemente leve.
O’Rourke nada disse. Obviamente, tinha os medicamentos Estávamos numa área de floresta, com árvores baixas e
necessários. retorcidas. O sol estava fraco, brilhando através da vegetação,
— Não pode matá-lo — disse eu. salpicando a grama. Aquilo não parecia real. Não parecia que
— Estaremos apenas acelerando um processo natural — estávamos numa guerra. Mais ou menos depois de andarmos uns
disse Muhammad. oitocentos metros, chegamos a uma grande árvore arredondada,
— Vamos aguardar — disse O’Rourke. que parecia uma amoreira, com uma frondosa sombra. Deixamos
— Doutor, sem seus remédios esse homem já estaria morto. Muhammad ali, com um pouco de água, e regressamos ao
caminhão.
O senhor está no coração da África, não pode aplicar seus
Era totalmente imprudente voltar ao ponto onde se encon-
padrões de medicina ocidental aqui.
travam os veículos. Parecia ainda mais perigoso do que qualquer
— Se eu tivesse seguido esse raciocínio, você teria morrido.
coisa antes. Estava extremamente assustada. Não dizia uma pa-
— Isso não tem nada a ver com o que estou falando.
lavra. Quando já estávamos a meio caminho do nosso objetivo,
— Como pode dizer isso? —Agora O’Rourke estava
ouvimos zunido de aviões outra vez. O barulho aumentou, pas-
danado. — Isso é uma lógica completamente cínica. saram dois aviões, bem baixo. Passaram diretamente acima de nós,
— Desculpe, mas não acho. roncando. A área inteira estava vibrando com o ruído. Eu agarrei
— Foda-se, Muhammad — berrou O’Rourke. — Você está o ombro de O’Rourke, enterrando as unhas na carne dele. Olhei
amoldando os argumentos de acordo com nossos interesses. Isso para cima e vi a parte inferior cinzenta do avião, enchendo o céu.
não é inteligente. Depois ouvimos uma explosão, e enterramos as cabeças no ca-
— O que está em questão é a vida desse homem. Estou fa- pim, sentindo o mundo inteiro se despedaçar-se, tremer, estre-
lando dele. Meu caso é irrelevante para essa discussão, assim mecer, ricochetear.
como qualquer outra emergência médica.
— Você está contornando completamente qualquer argu-
mento lógico. Estávamos inteiros. Ainda estávamos vivos. Não restou nada dos
— Mas certamente devemos nos concentrar na nossa lógica, veículos, exceto pedaços de metal retorcido numa cratera de
certo? cinqüenta metros de diâmetro. Estranho como a gente tem pen-
— Pelo amor de Deus — berrei para os dois. —Vocês estão samentos egoístas. Pensei que podíamos arranjar encrenca por
andando em círculos. Dêem um tempo! entrar com um Toyota do SUSTAIN em Kefti e deixá-lo ser bom-
Resolvemos levar Muhammad um pouco adiante e voltar bardeado.
para pegar o soldado. O’Rourke sedou o homem antes de sair- — Bom, isso resolve nosso pequeno dilema moral — disse
mos, e partimos com Muhammad entre nós, com um braço em O’Rourke.
torno de cada ombro nosso. Aquilo não funcionou; a perna Não restou nada do soldado. Procuramos pedaços do corpo
restante estava doendo muito para agüentar o peso. Então em toda parte, mas não achamos nada. O’Rourke havia enter-
rado os outros dois em covas rasas na floresta bem cedo, pela entregues, de forma que O’Rourke e eu fomos obrigados a
manhã. As covas estavam intactas. deixar a maca no chão, sentar e nos dobrar ao meio, chorando de
Eu nunca tinha visto Muhammad sorrir tanto como quando tanto rir. E aí se ouviu uma rajada de metralhadora uns cem
nos viu voltar. Parecia até que o rosto dele ia se partir ao meio de metros adiante.
tanto sorrir. Abraçou nós dois e até enxugou as lágrimas. Eram soldados keftianos de Adi Wari, à nossa procura. Oito
— Acho que talvez Alá esteja nos dando uma resposta — deles. Levaram-nos para uma trilha boa e carregaram a maca de
disse. Muhammad. Ele estava começando a parecer muito doente e
— Ah é? E que resposta? — perguntou O'Rourke. cansado. A terra agora se elevava mais íngreme, caminhamos
— A de que a lógica estava do meu lado. durante duas horas, depois voltamos à trilha principal, aquela
Agora estávamos sem suprimentos, só haviam restado a água, pela qual havíamos vindo de carro. Descrevia uma curva, con-
a mala de O’Rourke e um pedaço de queijo. Eram nove horas. tornava um morro com pedras arredondadas e lisas brotando
Sabíamos que tínhamos que prosseguir enquanto o sol ainda através das árvores, e pela primeira vez pudemos enxergar a
estava baixo. Eu me senti mal por ir simplesmente embora daque- paisagem que havia adiante: ondulante, coberta pela mata, escura
le jeito. Achei que devíamos fazer algo para marcar as mortes e cortada por um profundo desfiladeiro vermelho, tendo as
daqueles soldados. Muhammad e O'Rourke disseram que eu montanhas em segundo plano. Na beirada do desfiladeiro, via-se
estava maluca. Eu os obriguei a rezar o Pai-Nosso comigo. De- um pequeno conjunto de telhados que formavam Adi Wari, com
pois procurei palavras meio esquecidas e disse: "O Senhor, que luzes nos telhados de zinco que refletiam o sol.
Teus servos descansem em paz." Fomos recepcionados por um caminhão da FLPK, que nos
Caminhamos até avistar o planalto de Kefti, azul-escuro e levou direto para o hospital. O hospital era mais limpo e mais
maciço, erguer-se diante de nós. Estávamos passando por uma organizado do que os hospitais de Nambula, construídos em
vereda margeada por árvores, o sol estava quente, pássaros can- forma de quadrado em torno de um enorme pátio gramado. Os
tavam, e de repente nos pareceu que estávamos dando um pas- keftianos eram organizados e bem-educados. O’Rourke estava
seio agradável numa tarde de domingo. Acho que todos sentimos conversando com os médicos sobre Muhammad. Assim que
a mesma sensação de liberdade, como se a gravidade não exis- soubemos que ficaria bem instalado, eu disse a O’Rourke que
tisse e fôssemos flutuar até o céu. desejava ir falar com os representantes da FLPK sobre os gafa-
Aí O’Rourke começou a se contorcer todo de tanto rir. nhotos. Me perguntou se tinha certeza de que não queria des-
— Aqueles ritos de extrema-unção — disse ele. — "Ó Se- cansar um pouco, mas eu disse que estava bem. Graças a Deus,
nhor, que Teus servos descansem em paz." Está errado. Eles me deixou ir em paz.
deviam estar chegando. "Ó Senhor, que Teus servos cheguem Quando estava saindo, uma das enfermeiras me seguiu e
em paz."—Aquilo de repente me pareceu a coisa mais ridícu- disse que Muhammad queria dar uma palavrinha comigo. Ele
la que já havíamos ouvido, e aí Muhammad e eu começamos a estava num quarto particular, deitado no colchão de barriga para
rir também, histericamente, dizendo: "Senhor, que Teus ser cima. Viam-se buracos de balas em uma das paredes, além de
vos cheguem em paz." Já estávamos caindo, completamente um buraco quadrado que dava para o exterior, com uma grade
pendendo sobre ele.
— Preciso falar com você — disse ele, furtivamente. — Vou trazê-la de volta — disse eu. Era catedrática em
Sentei-me na cama. matéria de fantasias.
— Conheço uma mulher — murmurou ele — chamada Huda — Obrigado.
Letay. Vai se lembrar? Huda Letay. — Agora ele parecia febril. Parecia tão diferente do normal... Toda a animação do cos-
—Achei que... que talvez... tume havia desaparecido. Ele precisava se lembrar de sua per-
— O quê? — indaguei. sonalidade, se não sucumbiria.
— Quero que pergunte seu paradeiro e a procure quando — Não quer lhe mandar um poema? — sugeri.
estiver no planalto. Um brilho promissor faiscou-lhe os olhos.
— Claro. Quem é Huda? — "Gafanhotos à nossa direita, gafanhotos à nossa esquer-
— E uma mulher... da"? — comecei. Era uma brincadeira de que gostávamos.
— Sim? — Quando saí uma tarde, descendo a rua Bristol — disse
Muhammad fechou os olhos. ele, fatuamente. —As multidões na calçada eram campos de...
— Não se preocupe, vou procurá-la. — Gafanhotos — terminei. Ele começou a sorrir. — "Devo
— O nome dela é Huda Letay. E é doutora em economia. te comparar a uma..."
— Onde posso encontrá-la? — Gafanhoto. Tu ainda pura...
— Achei que talvez ela pudesse estar entre os refugiados das — Gafanhoto. Eu perambulava, só como uma...
montanhas. Achei que a encontraria. — Gafanhoto.
— Não se preocupe. Vou procurá-la. Não foi a gargalhada sonora que eu esperava, mas quase.
— Estudou comigo na Universidade de Esareb. — Outubro é o mês mais cruel — começou ele — Trazendo...
— E por que quer que a encontre? — Gafanhotos da terra morta — terminei. Não era mais en-
Ele desviou o olhar, como se estivesse envergonhado. graçado. Segurei a mão dele com força um momento, depois o
— Era com essa mulher que eu queria me casar. Queria se deixei ali, e saí com os soldados para ir ao quartel-general da FLPK.
casar. Eu sabia como ele detestava humilhação.
— E por que não se casou?
— Os pais arranjaram outro partido melhor para ela. Um Estava diante do comandante militar da região, que não podia ter
homem que já era rico. E ela não conseguiu se opor à vontade deles. mais de 26 anos. Ele havia vindo à cidade especialmente para
— Como vou encontrá-la? nos receber. A sala era comprida, estreita e nada continha além
— Ela é lindíssima. de uma escrivaninha, à qual o comandante se sentava de um lado
— Pode me dar mais informações? e eu do outro, uma estante repleta de panfletos gastos e finos e
— Letay é o sobrenome de solteira dela. O nome de casada uma mesa nos fundos. Havia na sala meia dúzia de soldados
é Imlahi. Se a encontrar, eu só desejo saber se ela está a salvo. além de nós, dois de pé atrás do comandante, o restante
Ela é de Esareb. Tem cabelos negros e compridos, excepcional- descansando em torno da mesa. Eu me senti ligeiramente ridícula
mente brilhantes, e vive rindo. Se a encontrar, talvez, se ela es- numa sala cheia de homens armados de uniforme e ines-
tiver doente ou sozinha... pode... peradamente vulnerável. O comandante tinha um rosto fino e
inteligente, barbado, e o mesmo jeito elegante de se expressar de dia fazer a travessia, depois desceríamos o desfiladeiro, subiría-
Muhammad. mos pelo outro lado, e iríamos ainda mais para o norte, para
Ele pediu muitas desculpas pela mina e pelo ataque aéreo. outro leito de rio, este seco, onde os gafanhotos estavam se re-
Frisou como a operação de retirada de minas da estrada havia produzindo. Depois, se quiséssemos prosseguir, poderíamos do-
sido cuidadosa; que eles já não recebiam notícia de incidente brar para leste e subir as montanhas. Eu comecei a perguntar
com minas entre Nambula e as montanhas havia seis meses; que qual a extensão da área das locustas e qual o dano às plantações,
a nossa havia sido um incidente inesperado e totalmente infeliz. e também tentar confirmar os relatos sobre o cólera, mas o
Os aviões dos aboutis deviam ter sido alertados pela fumaça; não comandante disse que seria melhor eu conversar com o RESOK, a
costumavam se aproximar das fronteiras de Nambula. Ele sabia sociedade de assistência keftiana. Respondi que prosseguiríamos
tudo a respeito de nossa missão e estava profundamente com eles, eu iria ao hospital depois de ir ao RESOK, e que nos
interessado no seu sucesso. encontraríamos ali outra vez às quatro ou às cinco. Naquele
Expliquei que não podíamos nos arriscar a ir além, mas ele momento eram duas horas.
garantiu que nos daria dois veículos para seguir à nossa frente, Do lado de fora, o calor do meio-dia era diferente do de
um caminhão para viajarmos com uma escolta fortemente ar- Nambula. O sol ainda queimava a pele, mas o ar estava fresco, e
mada, e que nos deslocaríamos somente à noite. Os veículos à sombra se sentia a friagem. Adi Wari havia sido construída em
passavam constantemente por aquele caminho, ao passo que a uma encosta que se inclinava para a beira do desfiladeiro. Uma
estrada onde havíamos sido atingidos pela mina não era muito ampla rua calçada com pedras descia ladeira abaixo, fazendo as
utilizada. A área onde as nuvens de gafanhotos se formavam vezes de rua principal, e os prédios eram de pedras rústicas e
estava a apenas quatro horas de distância. Se fôssemos um pouco concreto, com telhados de zinco. Havia pessoas, cães e cabras na
mais adiante, até Tessalay, poderíamos ver os refugiados come- rua e soldados por perto, reunidos em pequenos grupos. A cena
çando a descer as montanhas. Era uma questão de mais uma parecia muito diferente de uma cidade nambulana porque
noite de viagem. Certamente, depois de irmos até ali, valia a ninguém trajava djelaba. Os civis estavam de roupas ocidentais
pena atingir o objetivo da missão, não? Eu respondi que teria que baratas, ou de túnicas de cores escuras. Não havia guarnição em
voltar ao hospital e debater a questão com O’Rourke. O Adi Wari: era um alvo óbvio demais. Todas as instalações
comandante pediu licença e saiu da sala. militares e hospitais dos keftianos eram subterrâneos.
Depois que saiu, percebi que eu ia prosseguir, mesmo que Descemos o morro a pé e paramos num prédio que estava
O’Rourke não quisesse me acompanhar. Parecia inútil voltar enegrecido por dentro por causa do fogo que ardia. O homem na
depois de toda aquela desgraça, sem nenhum resultado concreto. entrada inclinou-se para a fornalha e tirou quatro bandejas de
O comandante voltou com uma mulher, também soldado, Belay pão semi-enegrecido. Fazia muito tempo que não punha nada na
Abrahet, que seria minha guia em Adi Wari. Ela parecia boca, e o alimento caiu muito bem: estava quentinho,
ligeiramente chateada, e não sorriu. acalentador e inofensivo. Me senti absolutamente bem — quase
Eu fiz algumas perguntas sobre a rota e os riscos. Todas as melhor do que o normal, em um estado de exacerbação da
pontes que cruzavam o desfiladeiro haviam sido destruídas, energia. Acho que foi uma espécie de choque preservador.
portanto seguiríamos para o norte, para um ponto onde se po-
Belay se animou enquanto íamos para o RESOK. Ofereci-lhe Land-Rovers estacionados. No interior, as paredes estavam co-
um pouco do pão queimado e ela riu. Tinha 24 anos, falava um bertas de quadros keftianos, desenhos primitivos retratando a
pouco de inglês. Ergueu a mão até meu rosto, tocou um dos meus guerra. Já havia visto aquelas pinturas antes. Às vezes havia
brincos e me perguntou se podia ficar com eles. Acostumada, lhe exposições de quadros keftianos em um salão comunitário em
dei os brincos. Perguntei-lhe se havia participado de alguma Sidra, o qual havia sido construído na década de sessenta pelos
batalha e ela respondeu: "Um pouco", e olhou diretamente para a japoneses.
frente, como se não quisesse falar no assunto. Havia alguns O homem que eu precisava encontrar era o chefe do RESOK
soldados em torno, que a cumprimentaram quando passamos, para a região de Adi Wari, Hagose Woldu, cujo nome aparecia
como se fossem colegas de escola. muitas vezes nos debates no acampamento. Descobri que havia
A guerra não era como eu esperava. Em casa, vagamente acabado de sair para ir ao escritório da FLPK, de forma que
imaginava, sem pensar muito, que numa guerra se combatia o voltamos e descobrimos que havia voltado para se reunir conosco
tempo todo, como nas trincheiras da Primeira Guerra, e que se a no RESOK. Saímos outra vez. Quando voltamos ao RESOK, ele
gente fosse a uma zona de combate, provavelmente enfrentaria nos acolheu de forma entusiástica e gratificante.
constantes rajadas de balas. Isso foi provavelmente porque as — Srta. Rosie, é uma grande honra para mim recebê-la.
únicas partes da guerra relatadas nos jornais eram os tiroteios. Estamos profundamente gratos pelo seu trabalho junto ao nosso
Ali, era como se a vida fosse mais ou menos normal, a não ser povo em Safila.
pelas zonas perigosas, lugares aos quais não se devia ir, coisas Hagose era um homem de estatura excepcional, vestido com
que não se devia saber — como brincar nas estradas. Natural- calça de prega marrom, curtas demais para ele, e uma camisa
mente, era o inesperado, a explosão vinda do nada, que tornava bem surrada de imitação de jeans, com punhos e colarinho es-
isso letal. Mas, entrementes, a gente simplesmente levava a vida tampados com motivos florais.
como sempre, e se comprava pão. Conduziu-me até uma sala onde havia uma maquete de Kefti
Seguimos pela rua principal direto para a beirada do preci- sobre uma grande mesa, as montanhas em formato de rosca, o
pício e ali vi os escombros da ponte bombardeada, uma coluna deserto no centro, e as planícies do lado externo, atravessadas
grossa de concreto fixa nas rochas lá embaixo, com um monte de pelos leitos dos rios. O planalto apresentava grandes fissuras.
ferros retorcidos enferrujados saindo dela. O penhasco não era Um extraordinário platô oval se encontrava cercado por penhas-
íngreme; havia uma picada até o fundo, duzentos metros abaixo, cos de todos os lados.
que ziguezagueava pelas rochas avermelhadas como uma Hagose havia colocado choças de diversos tamanhos, seme-
minipassagem entre as montanhas. O rio era uma fita espumante, lhantes a casinhas de jogo de monopólio, sobre as montanhas e
serpenteando entre praias de seixos e faixas largas cobertas de planícies, para mostrar a distribuição da população; bandeiras
capim. Pensei, por um milésimo de segundo, que aquele seria um vermelhas indicavam as áreas de combate no momento, ban-
lugar aprazível para se acampar. deiras verdes indicavam os pontos onde os gafanhotos estavam
Dobramos à esquerda, acompanhando a beirada, depois se reproduzindo. Viam-se bandeiras verdes em todo o deserto do
voltamos a subir a encosta outra vez, entrando em um conjunto meio e nas planícies que cercavam as montanhas. Havia con-
de edifícios diante do qual vi a tabuleta do RESOK e dois centrações ao longo do litoral, na foz dos rios, e ao longo do
leito do rio na planície além da garganta. Perguntei-lhe como cura. Foi uma tarde tipicamente confusa. Deixei recado de que
havia conseguido todas aquelas informações sem levantamento iria até a FLPK, pronta para partir, entre quatro e cinco horas. E
aéreo. Hagose alegou que tinha perguntado às pessoas. Disse que fui comprar mantimentos.
as locustas do centro do deserto estavam formando nuvens e se Comprei pão, tomates, toranjas e queijo enlatado. Agora o
deslocando para oeste, e as lavouras das montanhas já estavam tempo estava nublado e o céu, cinzento. Uma rajada de vento me
desaparecendo. Disse que a população já estava começando a se fez tremer. Comprei alguns cobertores também. Belay se afastou
deslocar em todo o país. para visitar um parente. Quando fui para o FLPK, vi O’Rourke
Era difícil saber até que ponto eu devia acreditar naquilo, com um grupo de soldados, espiando debaixo do veículo,
porque ele tinha muito a ganhar se eu voltasse desesperada, verificando algo.
dando o alerta geral. Pensei no que Gunter havia dito na festa da — Então, acham que podem conseguir outro caminhão? —
embaixada, imaginando se ele não estaria certo. Mas só pre- estava dizendo O’Rourke a um dos soldados quando nos apro-
cisava obter informações sobre a área de onde vinham as pessoas ximamos.
que chegavam a Safila. Se visse refugiados se dirigindo para lá — Sim, podemos.
nas rotas que chegavam ao nosso acampamento, saberia o que — Quanto tempo leva isso?
tinha nas mãos. — Acho que encontraremos um em Gof.
Diretamente a leste de Safila havia uma brecha na primeira — Não. Em Gof, não. Estou lhe dizendo que não quero usar
cadeia de montanhas — a passagem de Tessalay. Haviam sido esse veículo. O eixo traseiro está ferrado. Por acaso existe algum
filmadas ali algumas das mais dramáticas cenas do êxodo de outro veículo em Adi Wari?
meados dos anos oitenta. — É possível.
Hagose falou muito da falta de recursos para enfrentar as O’Rourke me viu e fez sinal com a cabeça. A paciência dele
infestações. Os keftianos não dispunham de pesticidas, e, mesmo parecia estar se esgotando. Houve uma discussão acalorada em
que tivessem aviões, seria muito arriscado usá-los. No momento keftiano entre os soldados. Todos se inclinaram e espiaram o
estavam tentando enfrentar as nuvens espantando os gafanhotos eixo traseiro. Nós nos afastamos para podermos conversar sem
com gravetos, cavando trincheiras entre as lavouras e acendendo sermos ouvidos.
fogueiras nelas. Aparentemente, os aboutianos haviam — Voltei para procurá-lo no hospital — disse eu. — O que
bombardeado duas aldeias que estavam enfrentando o problema acha de seguir adiante? Eles dizem que estamos apenas a qua-
dessa maneira. Hagose queria que se declarasse uma trégua e que
tro horas do ponto onde se encontram os gafanhotos. Se não
a ONU viesse aplicar pesticidas. Tarde demais, tarde demais, pen-
quiser, não precisa vir...
sei. Seriam necessários três meses para conseguir isso.
— Não, não, está ótimo — disse ele. — Já conversei com
Hagose ia enviar um funcionário do RESOK para as monta-
eles. Parece que está tudo bem, mas só vou acreditar nesse ne-
nhas conosco e avisar as aldeias que íamos lá. Disse que iria até
gócio de quatro horas vendo. Escute, você está bem? — Tocou
a FLPK e conversaria com eles sobre o roteiro a seguir.
meu braço, esfregando-o. — Você está gelada. Olha, vista isso
Belay e eu fomos até o hospital. Muhammad estava dormin-
— tirou o blusão.
do, segundo me disseram, e O’Rourke havia saído à nossa pro-
— E você?
— Estou legal. tei o rio à nossa direita. Parecia raso, como um regato. Sentia
— Mas... fortes pontadas nas pernas, mal conseguindo movê-las. Estava
— Vista, você está tremendo. muito rígida. Minha nuca estava rígida, e tinha um gosto ruim na
Era um blusão cinzento e macio de lã. Eu o vesti. Estava boca. Voltei à cabine e comi um pouco de toranja e pão, bebi um
impregnado com o cheiro dele. Adorei. pouco de água e tremi. Partimos outra vez em comboio,
— Qual é o problema com o caminhão? atravessamos o rio e subimos pelo outro lado do desfiladeiro.
— E uma lata velha. Vai encrencar em menos de dez quilô- Quando terminamos de subir, caí no sono outra vez.
metros. Vamos ter que esperar outro. Às quatro da manhã, chegamos ao leito seco do rio onde os
Parecia que Muhammad estava bem. O’Rourke havia lhe bandos de gafanhotos deviam estar. Ainda estava escuro como
operado a perna naquela tarde. Tinha conseguido preservar o breu. Estacionamos e aguardamos. Preparei a câmera fotográfica.
joelho. Só por um momento eu pensei, ai, meu Deus, será que A escuridão estava desaparecendo. Um trecho cinzento apa-
estamos cometendo uma loucura ao seguirmos adiante? Será que receu acima de nós no horizonte. Estávamos na beira de uma
vai acontecer o mesmo comigo? pequena elevação, a bacia rasa do rio espraiva-se diante de nós, e
Já estava escuro quando o outro caminhão chegou. O’Rourke uma escarpa ampla, com cerca de 15 metros, situava-se a uma
inspecionou-o por completo com uma lanterna, mandou-os trocar distância de oitocentos metros.
um dos pneus. Estava se saindo muito bem. Vagarosamente, os detalhes começaram a se delinear, emer-
gindo da escuridão, descoloridos. Forcei a vista, para ver o que
havia adiante, e recuei, zonza. A bacia inteira estava viva,
Naturalmente, estávamos a apenas quatro horas dos gafanhotos. ondulante. Um tapete de insetos de oitocentos metros de largura
Dirigimos a passo de tartaruga, com tampas sobre os faróis para cobria a terra e a estrada à nossa frente. Parecia até uma cena de
que só se visse um brilho fraco sobre o chão diretamente à frente, filme de terror, cintilando à luz que se intensificava.
e dois brilhos vermelhos abaixo das luzes de ré dos caminhões à Apareceu uma nesga fina e alaranjada no horizonte. E à
frente. Estava extremamente frio. O’Rourke e eu ocupávamos a medida que ela se elevava, as nuvens se afastaram, inundando a
cabina do terceiro caminhão. Eu no meio, entre ele e o motorista. paisagem de cor. Quando os primeiros raios solares atingiram o
Colocamos os cobertores em volta de nós, e eu tentei dormir tapete, uma chusma de insetos subiu, vinda de toda a superfície,
descansando a cabeça contra o encosto. Ele disse: dançando na luz como uma nevasca.
— Pode se apoiar em mim. — Tentei apoiar a cabeça no
ombro dele, mas não era confortável, de forma que ele se endi-
reitou e me envolveu com o braço, e foi assim que consegui pegar
no sono.
Despertei quando chegamos ao ponto de travessia. A estrada
era extremamente íngreme, forçando a embreagem e o motor.
Paramos lá embaixo e saímos. Não havia luar. Estava gelado e
úmido, os penhascos enormes erguiam-se acima de nós. Escu-
vamente grande: um aglomerado de cerca de duzentas choças
num pequeno vale abaixo de nós, as hastes secas da lavoura
aparecendo nos terraços em torno. O povo havia começado a
colheita antes do tempo, mesmo que a safra ainda não estivesse
boa para ser colhida, porque assim que os enxames de gafanho-
tos começassem a se deslocar, o vento os traria para lá.
Capítulo 15 Estavam todos trabalhando freneticamente. A aldeia inteira
estava nos campos. A distância, as costas curvadas se erguiam e
abaixavam na lavoura, como larvas de insetos. Estavam fazendo
a colheita em faixas de cada campo, começando a cavar
trincheiras nas partes vagas de trás e enchendo-as de palha, para
que, se os gafanhotos viessem, os camponeses pudessem acender
fogueiras para proteger o resto da lavoura. Os sons da aldeia
DESLOCAMO-NOS nos dois sentidos ao longo da margem da chegaram até nós, à medida que nos aproximávamos: um
escarpa, examinando o tapete de insetos. Tinha o comprimento vozerio, sons de animais, gritos estridentes de crianças, galos
de cinco quilômetros. Em certo ponto, descemos e andamos cantando a alvorada. Tudo parecia frágil e destituído de espe-
entre eles. O mais enervante era que os gafanhotos não reagiam. rança, quando se pensava no que estavam combatendo. Umas
Ficavam quietos, obstinadamente colados à terra, mesmo que duas horas de pulverização de pesticida com um monomotor
pisássemos neles. Eram como alienígenas com um objetivo co- qualquer teria resolvido o problema.
mum e secreto. Ocasionalmente, à medida que o sol subia, uma Estávamos descansando no complexo da FLPK, tomando chá
área inteira deles se ondulava e mudava de lugar sem nenhum na sombra, quando uma nuvem escureceu o sol. E de repente um
motivo claro. O homem do RESOK pegou alguns e nos mostrou grande grito se fez ouvir lá fora, o alto brado que os keftianos
as asas deles. Estavam prontos para voar. produziam quando alguém morre, e logo vimos que só podiam
Eu estava começando a me preocupar com a forma pela qual ser os gafanhotos. Cruzando a cerca, vimos que uma sombra se
tudo aquilo se traduziria em fatos e dados. Imaginava se nossa insinuava sobre toda a área.
descrição e algumas fotos esquisitas iriam ser suficientes — um Todos correram para a lavoura. A nuvem cercou-nos quando
tapete de insetos não é exatamente um assunto ideal para fotos. chegamos lá. As locustas pareciam lascas de madeira, batendo
Colocamos alguns num saco de polietileno para levar conosco. no rosto e em todas as partes expostas das pessoas. Subiram
Resolvi levar também algumas declarações assinadas. O ideal é chamas da trincheira diretamente à frente, e uma fumaça grossa
que fossem de partes isentas. O problema era que inexistiam se seguiu, quando alguém jogou palha úmida por cima do fogo.
partes isentas. Ficou tudo quase completamente escuro. Deixei de lado as fotos,
Os soldados estavam começando a ficar com medo dos ata- puxei o xale azul sobre a cabeça, e corri para dentro do campo.
ques aéreos, portanto fomos para uma aldeia que ficava a cinco Viam-se silhuetas em toda parte, agitando o ar com abanos feitos
quilômetros dali, onde havia um abrigo subterrâneo. Era relati- de longas varas com um punhado de gravetos
amarrados na ponta. Alguém meteu uma vara entre minhas mãos. cados por altos picos montanhosos. O ar parecia alpino. Subimos
Parei para olhar uma planta diante de mim. Cada uma das folhas muito tempo, depois chegamos ao alto de um pico, e descemos
estreitas e amareladas e a vagem de grão tinha sete ou oito outra vez, para um vale estreito, que era perpendicular à estrada.
insetos em sua superfície. Vi uma folha desaparecer, e as Agora que estávamos nas montanhas, os faróis estavam acesos.
locustas caírem ou subirem quando terminou. Comecei a bater na Os aboutianos não se arriscariam a passar de avião ali à noite,
planta com a vara, vezes seguidas, fazendo-a tremer. Os insetos especialmente sem luar.
se agarraram a ela, não consegui espantá-los. Ouviu-se um Nosso motorista de repente ergueu a mão e disse,
grande clamor apressando as pessoas em toda parte. Imediata- melodramaticamente:
mente à frente, através da fumaça, chamas e escuridão, uma — Tessalay.
mulher magra e idosa batia nas plantas. O tecido marrom que lhe Diante de nós, vimos um paredão de rochas mais alto do que
envolvia o corpo havia deslizado para baixo, e seus seios tudo que já havíamos visto. Uma depressão nesta primeira cadeia
murchos sacudiam junto com a vibração dos golpes. Sob meu de picos formava o início da passagem de Tessalay — um
olhar, ela deixou a vara cair das mãos. Levantou uma das mãos, corredor de sete quilômetros através da parte mais alta das
formou um punho frouxo, e o ergueu. Depois, as pernas se do- montanhas a oeste. Nesta extremidade, o corredor rochoso estava
braram como que numa reverência, ela se deixou cair e rolou a fechado por uma serra baixa que formava a depressão na cadeia.
cabeça no solo. A estrada serpenteava, subindo por ela, e descia pelo outro lado,
Quatro horas depois, não havia restado nada da lavoura. As penetrando-a.
pessoas estavam nos campos berrando, gemendo, arrancando os Antes mesmo de começarmos a subir, vimos vultos se movi-
cabelos, batendo com as cabeças, erguendo as mãos para o alto e mentando ao longo da beira da estrada. Os faróis iluminaram um
caindo ao chão num luto público histriônico tradicional. E à pequeno grupo, um dos componentes inclinando-se na estrada,
medida que o sol banhava a terra em seu calor branco do meio- com a mão erguida, tentando fazer-nos parar. Eles não pareciam
dia, escorchando o solo árido, tremendo no horizonte em uma esperar que parássemos, pois viram que se tratavam de
miragem maléfica que parecia água, era possível entender o caminhões da FLPK. Os militares nada tinham a lhes oferecer. À
terror que todos sentiam. A terra agora ficaria árida durante seis medida que íamos descrevendo as curvas da passagem, o número
meses. A comida terminara. de pessoas crescia, até haver um grupo a cada 15 metros, mais ou
Estávamos ali para prestar assistência, mas de pés e mãos menos, de ambos os lados da estrada. Todos fizeram o mesmo
atados. Arrastando-nos na superfície daquelas terras secas, vía- gesto ao passarmos, endireitando-se e erguendo uma das mãos,
mos todos os alimentos de uma nação serem consumidos. O que sem entusiasmo, para nos parar.
podíamos fazer? O’Rourke tratou de alguns casos de queima- No alto da passagem, os veículos pararam. Desejei que hou-
duras e estafa. Tirei mais algumas fotos, me sentindo uma voyeur. vesse lua, então, porque teria sido uma visão extraordinária di-
Só podíamos avisar que havia muito pouco alimento em Safila. visar toda a passagem estendendo-se aos nossos pés, e queria ver
Dormimos no abrigo subterrâneo e prosseguimos quando a proporção do êxodo. Os motoristas tentaram dirigir os faróis de
escureceu. Agora eu detestava a escuridão. Além do sopé das forma que pudéssemos ver os vultos que vinham escalando desde
montanhas, a estrada começou a subir, íngreme. Estávamos cer- lá debaixo. As pessoas por quem estávamos pas-
sando não estavam tão mal como eu temia. Estavam magras, mas eu, anjos da guarda do Ocidente, estávamos nos expondo através
não morrendo de fome, e traziam consigo seus pertences. Achei da multidão para salvar os famintos, enquanto nossa escolta,
que talvez tivessem escaldados por causa das últimas carestias e composta por soldados, abria caminho dando porretadas em
tivessem resolvido se mudar enquanto ainda estavam fortes o homens e mulheres subnutridos. Depois de quinze segundos,
bastante para caminharem — mas iriam precisar andar muito O’Rourke parou e berrou a plenos pulmões, com aquela voz
para chegar a Safila. Tessalay era um local perigoso, porque os grossa:
aboutianos sabiam do deslocamento de refugiados, e havia — CHEGA... DE... PORRADA!!!!!
bombardeios aéreos por lá quase todos os dias. A estrada agora Fez-se um silêncio surpreso, e a multidão imediatamente se
não permitia mais a passagem de veículos, porque tinha sido desfez em torno dele.
esburacada pelos bombardeios. Os refugiados viajavam até onde — Abaixem esses porretes — disse ele, gesticulando para os
fosse possível à noite e entravam nos abrigos subterrâneos nos soldados. —Abaixem-nos.
vales ao longo da passagem bem antes do alvorecer. Olharam-no como se ele fosse louco e seguraram os porretes
Agora faltava pouco para a aurora. Achamos que devíamos ao lado do corpo.
entrar em um dos abrigos e fazer um levantamento. Encontramos — Agora abram caminho — disse ele, gesticulando diante
um logo depois do cume da cordilheira. Era cavernoso, com de si para a multidão. — Abram caminho aqui, olhem — e a
espaço para os três veículos. O solo na entrada estava empapado multidão se abriu como o mar Vermelho de forma que pudesse
de óleo lubrificante de motores, juncado de peças, e havia mos passar. Enquanto caminhávamos, virei-me para ver que, de
veículos militares em toda parte. Parecia mais uma oficina do fato, os soldados haviam retomado a pancadaria às nossas cos
que um abrigo antiaéreo. As pessoas fumavam mesmo no meio tas, e alguns componentes da multidão estavam rindo.
de todo aquele óleo. Achei aquele lugar uma verdadeira arma- O abrigo para o qual nos conduziram era como um túnel
dilha. Não quis ficar ali. Falei com O’Rourke e ele concordou. largo cavado na encosta do morro, com o interior bem organi-
Acabamos indo até onde podíamos do outro lado da crista, zado, as pessoas dormindo enfileiradas sobre esteiras ou em
até chegarmos a uma cratera. Então saímos, para andar até o camas baixas de madeira. Havia no centro uma área aberta onde
próximo abrigo, e deixamos os motoristas levarem os caminhões aqueles que ainda estavam acordados se encontravam. Sentamo-
para outro lugar, e escondê-los. De certa forma, foi ruim termos nos a uma mesa, pesamos e medimos as crianças, e fizemos
andado, pois assim que as pessoas viram que éramos es- perguntas. A proporção peso-altura era de cerca de 85% em
trangeiros, que poderíamos ter dinheiro ou alimentos, fomos média, o que não era ruim; 80% era o ponto crítico. Isso signi-
atacados. Uma multidão se reuniu em torno de nós rapidamente: ficava que as pessoas estariam mal quando chegassem ao acam-
mãos ávidas me apalparam e as pessoas indicavam as bocas pamento, mas não tão mal como da última vez.
agressivamente. Não senti medo porque já tinha visto aquilo Os refugiados estavam vindo de uma área relativamente li-
antes e ninguém queria nos fazer mal. Era apenas uma mitada da região ocidental das montanhas, dentro de uma faixa
pantomima elaborada. de cerca de oitenta quilômetros de cada lado de onde estávamos,
Os soldados começaram a espancar a multidão com paus. no corredor de Tessalay. Até ali, as quebras de safra pareciam
Não bateram com força, mas isso significava que O’Rourke e concentrar-se nessa faixa. Aquilo combinava com o que Gunter
havia me dito na festa da embaixada. Mas estávamos apenas no Mas ele me lançou um olhar familiar que dizia: "Não me diga
início da estação de gafanhotos, e era difícil saber o que estava que o Ocidente não pode nos dar alimentos quando quer. Sabe-
acontecendo em outros pontos de Kefti. Pelo que estávamos mos sobre os lagos de vinho e montanhas de grãos." Quando
observando, estimávamos que entre cinco e sete mil refugiados voltei à FLPK, O’Rourke já havia encontrado um Land-Rover,
estavam rumando para Safila. que poderíamos levar para Safila, e um caminhão que nos es-
Perguntei a todos por Huda Letay, mas eles disseram que coltasse até a fronteira. Dali prosseguiríamos sozinhos.
ninguém ali era de Esareb, porque era uma cidade grande, e a O ar estava se aquecendo e o cheiro suave de terra de Nam-
crise ainda não havia afetado as cidades grandes. bula penetrava pelas janelas abertas. O caminhão que ia na frente
O’Rourke se instalou num canto, examinando pessoas doen- parou, e O’Rourke pisou no freio também. Depois de alguns
tes. Viam-se as doenças mais comuns, que acompanham a fome: momentos, o caminhão arrancou de novo, desviando-se da es-
diarréias, disenterias, problemas respiratórios, alguns casos de trada onde estávamos. Estava claro que devíamos estar perto da
sarampo, mas nada inesperado, e nenhum caso de meningite. fronteira. A FLPK sabia onde era a divisa. Meia hora depois, o
Mesmo assim, se não tivéssemos os medicamentos dos quais caminhão parou outra vez, e aí os soldados desceram. Saímos
necessitávamos, em breve essas pessoas transformariam Safila também e nos despedimos de forma bem exagerada, apertando
em um cemitério outra vez. as mãos deles, abraçando-os, bem efusivos, como se houvésse-
Pedimos ao RESOK para dar um aviso sobre a falta de ali- mos nos conhecido durante as férias e fosse hora de voltarmos
mentos em Nambula, dizendo que seria melhor ficarem, mas as para casa.
pessoas só deram de ombros ou riram. Para eles, era óbvio que, — Agora, a qualquer momento vamos trocar endereços —
com os organismos ocidentais e a ONU, tinham mais chance de sussurrou O’Rourke para mim quando conseguiu se livrar do
conseguir comida do que ali. Lembro-me de ter olhado as segundo abraço efusivo de um mesmo soldado. — Se isso durar
pessoas, enquanto o RESOK dava o aviso, e pensado — sim, vou mais um pouco, vou engravidar desse homem e lavar as meias
ver todos vocês de novo lá em Safila, com a pele esticada sobre dele.
os ossos, de forma que sua boca seja transformada em um sorriso Quando o som do motor do veículo deles não se fez mais
permanente, seus cabelos ficarão ralos, vocês não conseguirão ouvir, ficamos um pouco de pé ali em pleno deserto. O céu era
andar, e seus filhos poderão morrer, e nenhum de nós vai poder um imenso arco de estrelas, explodindo luminoso.
fazer nada para impedir isso. É horrível sentir-se responsável e — Você se saiu muito bem lá — elogiou ele, indicando Kefti
não ter poder. Partimos de volta para Adi Wari no fim daquele com a cabeça.
dia, quando escureceu. — Não tanto quanto você.
Quando chegamos ao hospital, soubemos que Muhammad já O ar nos embriagava. Estávamos de pé sobre a areia, que
havia sido mandado de volta a Safila. O’Rourke ficou para parecia fria sob meus pés. Estávamos muito próximos um do
examinar alguns casos no hospital, e eu fui ao escritório do outro, entreolhando-nos.
RESOK. Expliquei a Hagose que os estoques de mantimentos no — Devemos continuar? — disse ele.
leste de Nambula estavam se esgotando. Sugeri que tentassem Ele estava certo em sugerir que nos afastássemos da frontei-
dispersar os refugiados pelas aldeias que ainda tinham comida. ra, pois não era muito seguro ficar por ali. Além disso já eram
dez horas, e estávamos a umas boas cinco horas de Sidra. Dirigi Ele ficou calado durante algum tempo e depois disse:
durante algum tempo. Depois nos revezamos. Estávamos ambos — Não quero falar sobre isso... se não se importa.
muito cansados. Acho que foi o alívio de termos saído de Kefti — Tudo bem.
que nos fez sentir aquele cansaço. Eu mal conseguia distingui-lo — Diga-me por que veio para cá — pediu ele.
à luz fraca do painel de instrumentos. As mangas da camisa Contei uma parte da história porque estava viajando. Mas
estavam enroladas. Os braços e pulsos eram fortes, de homem não falei de Oliver. Voltamos a nos calar. Ele me passou o baseado
feito. Eu nunca havia parado para pensar em pulsos antes, mas e nossas mãos se tocaram outra vez. Estávamos a sós. Tão ten-
de repente aqueles me pareceram os pulsos mais bonitos que eu tadoramente próximos. Não podíamos fazer aquilo, pensei.
já havia visto, tão fortes, tão viris, tão corajosos, tão Pensei em Linda. Pensei na volta a Safila. Deitada no encerado,
maravilhosos! fitei as estrelas, sentindo meu cérebro oscilar devido à erva. Dei
— Até onde acha que devemos ir esta noite? — disse ele, outra tragada e comecei a pensar se iria ter mesmo essa impor-
depois pareceu ligeiramente constrangido, percebendo o que tância toda o que fizéssemos naquela noite.
havia acabado de dizer. — Olha lá — disse eu, depois de alguns instantes. — Olha
— Você é que é o motorista. aquelas estrelas. Fazem a gente se sentir tão pequenininha, tão
Um pouco depois, ele freou o carro e desligou o motor. impotente. Minúscula, debaixo das estrelas. — Umedeci os lá-
Acendemos uma fogueira e nos sentamos num encerado ao lado bios. — Para que acha que estamos aqui na terra, O’Rourke?
dela. O’Rourke exibiu uma garrafa de uísque. — Está viajando com as fadinhas, não está?
— Onde conseguiu isso? — disse eu, surpresa. — Sou uma fadinha — disse eu, entregando-lhe o baseado.
— FLPK. Depois de algum tempo, ele disse:
Também tinha um pouco de maconha. Ficamos olhando o — Para vivermos como devemos, acho eu.
fogo. Havia uma acha de lenha grande e negra, que estava se Mais tarde, ele se ergueu e foi até o carro. A porta se abriu.
tornando branca, com depressões por baixo, desfazendo-se nas Ocupou-se de alguma coisa. A porta se fechou. Voltou com len-
cinzas. Quando ele me passou o baseado, nossas mãos roçaram çóis e me entregou uma trouxa, curvando-se sobre mim. Me
uma na outra. A princípio ficamos calados, depois eu me deitei beijou de leve, como que para dar boa-noite. Tornou a me beijar.
no encerado, ele também, longe de mim, e conversamos. Quando me beijou pela terceira vez, foi de um jeito bem
Me contou que o pai havia sido diplomata. Havia sido criado sugestivo.
em várias partes da África e do Extremo Oriente, e trabalhado no — Vou dormir ali—disse ele.—Se precisar de alguma coisa,
Corpo da Paz quando saiu da faculdade de medicina. O pai dê um assobio.
morrera, e a mãe morava em Boston. Havia se decepcionado Despertei de novo às duas da manhã. De alguma forma,
com a medicina e trabalhado durante muito tempo em Nova havia me aproximado dele. Sentei-me e olhei em volta. A fo-
York produzindo filmes promocionais para empresas e comer- gueira havia se apagado, de forma que estava quase toda branca,
ciais de produtos farmacêuticos e ganhara dinheiro a rodo. uma parte da acha grande ainda negra no meio, vermelha
— Depois tudo foi por água abaixo. embaixo. Dava para ver plantas à luz da brasa, com folhas gran-
— Como? des e redondas, como as de Safila. O’Rourke estava dormindo,
respirando pesadamente, com um dos braços sobre a cabeça,
cobrindo o rosto. Deitei-me outra vez e fiquei olhando as estrelas
durante algum tempo. Ainda estava quente, apenas uma brisa
levíssima soprava de quando em quando. Puxei a coberta e me
virei para ficar de frente para as costas dele. Ele estava com uma
camisa cáqui fina. Meu rosto estava tão perto que quase o tocava.
Ele rolou, ajeitando a cabeça e os braços. Quando se aquietou, a
respiração mudou, indicando que havia acordado. Fiquei quieta,
o coração batendo com força. Olhei para o perfil do queixo dele.
Depois vi um olho se abrir, olhar para mim e se fechar de novo.
Virou-se lentamente de frente para mim. Estendendo o braço,
pousou a mão nas minhas costas, os dedos tocando-me a cintura.
Prendi a respiração. Nossas bocas estavam tão próximas que
quase se tocavam. Em seguida, com a palma da mão, ele me
aproximou de si, apertando-me de encontro ao jeans, contra o
pênis duro. Deslocou a boca apenas um pouco mais para perto,
os lábios roçaram os meus, e não deu mais para resistir, à luz das
brasas, ali tão próximos, depois de todos aqueles horrores.
Capítulo 16
ANTES DE sair, Gunter deu uma olhada nas fotos de Kefti e ouviu
o que tínhamos a lhe dizer com uma gravidade manifesta. Eu
tinha esperança de que ele houvesse se convencido e prometesse
tomar alguma providência. Em vez disso, ele nos tranqüilizou
dizendo que a ONU, em Abouti, estava a par da situação, e não a
considerava grave. Não havia nada com o que não pudéssemos
lidar em Nambula, disse ele, pois o navio devia chegar a
qualquer momento. Fiquei frenética. Argumentei que se o navio
não viesse, seria uma calamidade e que precisávamos de
suprimentos extras de qualquer forma. Gunter prometeu estudar
o assunto. Henry e eu passamos a tarde reorganizando o centro
de recebimento de refugiados e criando um novo cemitério.
Às cinco horas, Sian veio me procurar. Não conseguiu olhar
para mim.
— Acho que você devia vir ao hospital. Hazawi e Liben
Alye estão lá.
Eu me xinguei por não tê-los tratado como um caso à parte e
pedido a alguém que tomasse conta deles enquanto estava fora.
Hazawi era um monte de pele e ossos no colo de Liben. Ti-
nha diarréia grave, vômitos e febre. Ele estava limpando a bun-
dinha dela com um pedaço de trapo. Duas marcas de lágrimas telhado, mas parecia que estavam no chão. Eu me levantei e
desciam pelas covas do rosto dele. Erguendo os olhos, ele me acendi o lampião, me deitei outra vez no travesseiro e pensei no
viu, e por um segundo seu olhar foi acusador. Foi o suficiente. sonho. Pensei no que Jacob Stone havia sugerido, depois da festa
Hazawi morreu às oito horas. Liben não aceitou a morte na embaixada em El Daman.
dela. Fechou-se a tudo em torno de si. Lavou o corpinho dela, Fiquei ali sentada o resto da noite, pensando.
vestiu-a com a roupa verde que ela sempre usava. Depois co- Assim que amanheceu, peguei o carro e desci ao acampa-
locou-a sobre o ombro e saiu bem devagar do hospital, brincando mento. A bruma ainda cobria o rio. Um galo cantava. As pessoas
com a bochecha dela, como sempre. Eu o acompanhei, mas não estavam começando a sair das choças, mulheres de branco, com
sabia que eu estava ali. Estava escuro, ouviam-se altos lamentos cabelos desgrenhados, crianças agarradas às pernas, esfregando
vindos do hospital. Liben de repente se agachou ao lado do os olhos, aturdidas.
caminho e a colocou na dobra do braço como um bebê, Muhammad estava deitado na cama, lendo.
ajeitando-lhe o vestido, alisando o que restava dos seus cabelos. — Então, enfim podemos conversar.
Sentei-me ao lado dele e peguei-lhe a mão, mas estava mole — Sinto muitíssimo. Eu...
e fria. Fiquei ali sentada durante muito tempo. Acabei indo atrás — Não, mas não se desculpe, é claro.
da assistente social visitadora da aldeia do Liben, que trouxe — Não se levante.
alguns keftianos que o conheciam. Eles o ergueram, pondo-o de — Mas preciso fazer chá.
pé, e o levaram para a choça. Liben teria que ser obrigado a Ele já se movimentava bem com a bengala.
enterrar Hazawi no dia seguinte. — Vai ver que o chá está demorando mais do que nunca,
Não houve confraternização da equipe naquela noite. Todos agora — disse ele, virando com um sorriso malicioso. — Mas
voltamos do acampamento em horários diferentes, tarde, sabe, não pode reclamar, porque eu sou deficiente.
comemos o que pudemos das panelas da cozinha e fomos direto O chá estava ainda pior do que de costume.
para a cama. O’Rourke ainda estava no hospital. Todos os outros — Vim lhe dizer que vou voltar a Londres — disse eu. Ele
já estavam dormindo. Eu me deitei de bruços, insone, estirada, não reagiu.
crucificada, me sentindo como se estivesse sendo empalada. Já — Vou embora do acampamento esta tarde.
havia percebido o que estava para acontecer, e não podia fazer — Vai mesmo? — disse ele, em tom indiferente, após uma
nada para evitar. Senti-me como se estivéssemos emparedados. pausa.
Aquela foi a pior noite. — Sim — fez-se nova pausa.
Quando finalmente peguei no sono, sonhei com montanhas — Posso lhe perguntar por quê?
altas e escuras em torno de mim, Jacob Stone lançando uma Contei-lhe o meu plano: saía um vôo de El Daman na manhã
grande luz dourada, como se vê nos sets de filmagem, sobre as seguinte. Eu ia voltar, tentar fazer com que a imprensa
montanhas, e uma escadaria de vidro com luzes laterais, depois publicasse a história e persuadir alguns famosos a fazer um apelo.
acordei. Acendi a lanterna e consultei o relógio. Eram quatro Planejava conseguir um tempo na televisão. Dessa forma, po-
horas. Os camundongos estavam se movimentando. Estavam no deria levantar dinheiro suficiente ou encontrar patrocinadores
para enviar alimentos imediatamente.
— E acha mesmo que é possível fazer isso em tão pouco — Disseram que não havia ninguém de Esareb entre os re-
tempo? As celebridades vão te atender assim? fugiados. Dizem que os gafanhotos ainda não estão afetando as
— Ah, eu não sei. — Fitei o meu chá, tristemente. — Eu cidades. Sinto muito.
conhecia alguns deles. Isso acontece às vezes. É a única forma — Não. Isso é bom. — Ele se virou, o rosto refeito agora. —
que consegui imaginar de trazer a comida rapidamente. O que Ela vai ficar segura. E agora deve se concentrar no seu plano.
tenho a perder? — Gostaria que eu lhe trouxesse alguma coisa?
— Perdoe todas as perguntas que estou fazendo. Será pru- — Sim, umas quinhentas toneladas de comida.
dente sair do acampamento agora? — Quis dizer alguma coisa para você.
Eu seria demitida, é claro, se fizesse isso. Então lhe disse Ele refletiu um instante.
que, em vez disso, pediria demissão. Se o plano funcionasse, — Gostaria que me trouxesse um exemplar de Hamlet.
talvez o SUSTAIN me aceitasse de volta. Tínhamos talvez três — Está planejando se apresentar nesse programa de televi-
semanas até chegar o grande influxo. O acampamento agora são?
estava organizado e eu achava que Henry podia segurar a barra Lá veio a gargalhada estrondosa.
se Muhammad o ajudasse. Se conseguisse divulgar o apelo em — Talvez. Preciso pensar no meu público.
Londres, poderia voltar a tempo com os alimentos.
Muhammad ficou contemplando as brasas, pensativo.
— O que está pensando? Todos estavam reunidos para o café, parecendo pálidos e abala-
— Esse navio não vai chegar em dez dias — disse ele. dos. Contei-lhes o que pretendia fazer.
— Não. — É a ONU que tem de resolver essa parada—disse Sharon.
Ele refletiu mais um pouco. As faces agora estavam bem — É bom você estar tentando, mas não vai poder colaborar
encovadas. muito, se trouxer apenas alguns sacos de grãos e mostrar uns
— Acho que está certa, deve tentar. artistas segurando bebês no colo.
Relaxei. — Vão morrer menos pessoas se conseguirmos comida rá-
— Obrigada. pido — argumentei.
Mas Muhammad continuou fitando o fogo, e de repente me — Não podemos permitir a presença de celebridades andan-
lembrei da amiga dele, Huda Letay. Eu devia ter encontrado do pelo acampamento numa hora dessas — disse Sharon, fa-
tempo para conversarmos sobre o assunto antes. zendo careta. — Imagine só como vai ser. Vai ser um tremendo
pesadelo.
— Lembra-se de que me pediu para encontrar a Huda quan-
do estava doente? — disse eu. — Acho que vale a pena tentar — disse Linda.
— O que tenho a perder?
— Você não a encontrou.
— Precisamos de você aqui — disse Sian.
— Não.
— Quanto tempo vai se ausentar? — indagou Linda, an-
Ele se ergueu, arrasado, e levou o açúcar de volta às prate-
siosa.
leiras.
— Talvez três semanas. Vocês podem se virar sem mim, não?
— Claro que podemos, velhinha — disse Henry. — Não se
— Por quê?
preocupe com isso. Vamos cuidar bem deles para que morram
— Olha, não que eu ache você irresponsável. Entendo seu
de uma forma organizada.
modo de pensar. Organizou tudo aqui muito bem. Eles vão con-
Foi um comentário inesperadamente lúgubre da parte de
Henry. seguir dar conta durante duas semanas.
— Bom, é isso que vai acontecer se ficarmos sem alimentos — Então, por quê?
e medicamentos — disse ele. Ele esfregou a nuca.
— Exato — concordei. — Não faz muito mais sentido ao _ Acha que assim vou estar botando a ONU e os doadores
para escanteio? — disse eu.
menos experimentar conseguir mais suprimentos?
_ Não, o que vai acontecer é o contrário. Eles vão ficar de
— E o que o SUSTAIN vai dizer? — disse Sharon. — Vai
cara no chão.
perder o emprego, e aí, se as celebridades nem quiserem saber de
— Então, pela minha bunda, o que é?
você?
Ele deu um rápido sorriso, depois tornou a ficar sério.
— Vou ter que arriscar.
_ Acho que esses astros da mídia não devem se envolver
O’Rourke ficou conspicuamente calado, fitando o chá.
nisso. Certamente não acho recomendável a presença de cele-
— Bom, se conseguir, velhinha, vai ser superfantástico —
disse Henry. — Se não, aí, vai ficar com cara de bundona. bridades à solta em Safila.
— Bem, eu acho a idéia maravilhosa, minha querida Rosie — Por que não?
— disse Betty. — Absolutamente divina. Quando em dúvida, _ Porque acho que a idéia de celebridade é completamen-
faça alguma coisa em vez de coisa nenhuma, é o que sempre te absurda. Só prova o quanto as pessoas são facilmente enga-
digo. Além do mais, lembro da Marjorie Kemp, de Wollo, em nadas.
1984. Eles já estavam alertando sobre a escassez de comida havia — Não é culpa das celebridades.
seis meses, e que ajuda conseguiram? Nenhuma. Foi só quando a _ Certo. É o mundo inteiro que é louco. Todos gostam de
BBC se meteu que as coisas começaram a funcionar. Se as ce- imaginar que é possível enriquecer e ficar poderoso sem que isso
lebridades vierem mesmo aqui, bom, tenho certeza de que vamos guarde qualquer proporção com o que fazem. Então pagam para
conseguir recebê-las muito bem. Tenho certeza de que também ver e ler sobre estrelas que conseguiram chegar lá. Mas o motivo
vão nos trazer uns presentinhos. Peça para trazerem couve-de- pelo qual as estrelas conseguiram isso é que as pessoas pagam
bruxelas. para vê-los e ler sobre a vida deles. Não faz sentido nenhum!
Essa não. A Betty recebendo celebridades. Quase mudei de _ Não é bom eles quererem abrir mão de alguma coisa?
idéia. _ Ora, vamos. Quem estará ajudando quem? A beneme-
rência faz parte da construção da imagem hoje em dia, para as
celebridades.
O’Rourke entrou na minha choça enquanto eu fazia as malas. Estávamos de pé em pontos opostos da choça, de frente um
— Acho que não deve ir — disse. para o outro. Eu esperava que ele me apoiasse.
Olhei para ele. — Acha que não pensei nisso?
— Então, o que pensou?
— Acho que existe uma linha muito tênue — disse eu. — De — Por que não consegue simplesmente um patrocinador para
um lado ficam os famosos que ajudam a causa mais do que a si enviar os alimentos? Não precisa se envolver com o showbiz.
mesmos, do outro lado estão os famosos que se ajudam mais do — Porque não é só Safila que precisa de alimentos. E os
que ajudam a causa. outros acampamentos? Se conseguirmos chamar a atenção da
— Não pode fazer distinções simples como essa no campo mídia para o que está acontecendo aqui, os governos se verão
da assistência. Olha só a mistura de motivos que a gente tem obrigados a reagir.
neste mesmo lugar. De qualquer forma não vai conseguir en- Ele sacudiu a cabeça.
contrar tantas celebridades assim num prazo tão curto. Eu me virei outra vez para a cama e continuei a fazer as
Ele provavelmente estava certo naquele ponto. malas. Ele estava me deixando confusa.
— Talvez não seja a solução ideal, mas que mal pode fazer, — Preciso ir em frente.
se conseguirmos alimentos? — Ótimo — disse ele, e depois saiu.
— É uma questão de dignidade humana. — Ele esfregou a Depois que se foi, eu me sentei e fiquei refletindo. Sabia que
nuca. — "Você sabe e eu também sei que a divisão norte/sul devia ele estava racionando de modo lógico, mas era a única solução
estar desaparecendo e não está. Mostrar imagens de celebridades na qual pude pensar para fazer os alimentos chegarem a tempo, e
perambulando em campos de refugiados é um símbolo obsceno isso parecia o mais importante. Porém, fiquei preocupada ao ver
dessa divisão. É o mesmo que dizer: "Olha, o status quo é aceitável. que achava que eu não devia ir.
Só precisamos estender a mão para ajudar de vez em quando e Ouvi a porta chacoalhar. Era O’Rourke outra vez, trazendo
teremos feito a nossa parte." E um paliativo. É uma mentira. as fotos de Kefti e as anotações que tínhamos feito.
— Não é melhor do que não fazer nada? — Não parta sem isso.
— Talvez sim, talvez não — se fizer as pessoas pensarem — Obrigada. Vou deixar uma fotocópia com Malcolm. Ele
que alguma coisa está sendo feita quando nada está mesmo sendo se sentou na cadeira.
feito. — Se está mesmo decidida a fazer isso, então eu a apoiarei.
— Pode salvar a vida de Liben Alye. — Obrigada.
— Mas o que a vida dele significa sem Hazawi? — Ele per- — Precisa de dinheiro?
cebeu o olhar que lancei. — Sinto muito. Mas as campanhas — Não.
feitas por famosos sempre acontecem, devido à própria natureza — Pense só, vôos, roupas, táxis, Londres. Tem certeza?
delas, tarde demais. Eles são reativos. Você sabe disso. — Tenho, mas mesmo assim, obrigada.
— Não o tempo todo. Talvez não dessa vez. Temos três se- Ele me olhou. Seus olhos eram cor de avelã, penetrantes.
manas. E talvez possamos divulgar este alerta, dizer que já pode — Você está bem?
ser tarde demais. É só alguém ser bondoso com a gente que sentimos vontade
Ele sacudiu a cabeça, me olhando. de chorar. De repente só queria me apoiar nele e sentir seus
— Você às vezes é muito ingênua. braços em torno de mim. Mas ele não havia me dado nenhum
— Você é que é ingênuo. O mundo é assim. Não podemos sinal, desde aquela noite, de que queria isso.
mudá-lo. O público presta atenção nas celebridades. — Estou bem — menti.
— Eu queria lhe dizer... Aquela noite no deserto, aquela
conversa absurda com a Linda. Está tudo bem? Não está zan-
gada, nem triste?
Não desabafe, disse a mim mesma. Não arrisque, não agora.
— Não. Estou bem.
— Eu simplesmente não queria que você fosse para Londres
sentindo... Capítulo 18
— Você está envolvido com a Lin...
— Não. Tivemos um romance rápido há três anos. Mas fi-
camos afastados desde aquela época, a não ser...
— Não tem prob...
— ... a não ser pelo fato de que desde que eu cheguei ela
vem pegando no meu pé. Nem mesmo sabia que ela estava aqui
quando aceitei o posto. — Pareceu perturbado. — Mas eu... GELDENKRAIS, ARIMACIA, Beth-Luis, penetrem agora no buraco da
— Escuta, está tudo bem. Esqueça isso. — Eu não queria aura e curem-se. Deixem-se guiar pelo Guerreiro de Jade. Ve-
escutar aquilo. Sabia que ele ia dizer: "Não quero me envolver jam... sintam... experimentem.
com mais ninguém, também." Se referindo a mim. Senti que Bill Bonham estava flutuando em um tanque de água fraca-
estava a ponto de cair no choro. mente iluminado debaixo de uma pirâmide turquesa enfeitada
Tornei a me levantar. com algas marinhas, "o TRANSE DO XAMÃ TANTRA!", anunciou
— Se não se importa, eu preciso mesmo terminar de fazer ele, solenemente. Sua silhueta corpulenta se ergueu do tanque, as
as malas, do contrário não vou poder viajar nunca. vestes brancas pingando: "ONDE? ONDE ESTÃO OS HOPI?"
Virei-me para a cama e comecei a dobrar as roupas, porque Eu já estava começando a questionar a minha decisão. Era a
não queria que visse minha expressão. primeira noite de um insólito one-man show intitulado A Cura
Ele ficou onde estava e eu continuei a pôr as coisas na mala. das Energias dos Chakras, descrito como "Uma encenação teatral
Depois de algum tempo, ele disse, de mansinho: pioneira feita para os anos 90 e a Nova Era. Uma exploração do
— Você parece que se defende muito. Eu potencial espiritual do homem através da arte performática".
não respondi. Lembrava-me de Bill como um amigo cético de Oliver, que vivia
— Alguém te magoou? — indagou ele. de blusão de couro e se gabava de não aturar otários de boa
Enxuguei o olho com as costas da mão e continuei a fazer as vontade, além de desaparecer nos banheiros para cheirar cocaína.
malas. — Preciso terminar isso — disse. — Vou lá me despedir Aparentemente, entre o momento em que assinou contrato para
de você antes de sair. aquele espetáculo e a criação do script, ele tinha ficado louco de
Ele hesitou um momento, depois saiu, erguendo a chapa de pedra. Agora acreditava que descendia dos astecas e estava
ferro corrugado e recolocando-a de volta no lugar. destinado a revelar o Caminho do Êxtase através do uso da cor
turquesa.
Beleza, disse a mim mesma, excelente forma de se aproveitar — Droga! — sussurrou Julian. — Meu celular. Porcaria. —
o tempo. O Clube dos Famosos estava ali em peso, a busca dos Ele revirou o bolso do casaco e puxou o telefone, as luzes verdes
Hopi parecia apenas o preço a pagar. A quatro assentos de dis- piscando. — Alô, é Julian Alman falando.
tância, Kate Fortune, vestida com trajes ridiculamente ornamen- — Shh — sibilou Kate Fortune, sem tirar os olhos do palco.
tados, como sempre, fitava arrebatada o palco, os lábios brilhantes — Desligue o telefone — sussurrei.
refletindo as luzes roxas dançantes, jogando os cabelos negros para — Shh — disse uma voz atrás de nós.
trás de vez em quando. O diretor mignon, mirrado e semelhante a — Janey, olha, não podemos continuar... — Julian sussurrou
um duende, Richard Jenner, estava ao lado da namorada adoles- no receptor.
cente Annalene. Eu já não os via desde o vexame do vômito no — O ESPÍRITO DO CAVALO CHEGOU.
jantar deles. Corinna Borghese, a mulher azeda que apresentava o Kate Fortune fuzilou Julian com as sobrancelhas erguidas,
Soft Focus com Oliver, estava se remexendo na poltrona e revi- depois se voltou outra vez rapidamente para olhar o palco, jo-
rando os olhos, o cabelo tingido com hena tão curto que parecia gando o cabelo para trás do ombro.
que tinha raspado a cabeça. Estava de óculos escuros. Eu não podia — Olha, eu já lhe disse, preciso unificar a minha personali-
culpá-la. Do outro lado do corredor, os perfis famosos de Dinsdale dade antes...
Warburton e Barry Rhys pareciam impassivelmente atentos, como Tirei o telefone do Julian.
se assistissem um Lear da RSC. Ao meu lado, Julian Alman digitava — Janey, é Rosie. Julian está no teatro. Ele vai te ligar da-
desesperado o teclado da agenda eletrônica. qui a meia hora. — Desliguei o aparelho e o pus na minha bol-
Havia chegado a Heathrow nas primeiras horas daquela sa. Julian me olhou, angustiado.
manhã, ido para a casa de Shirley e passado a maior parte do dia Onde estava Oliver?
dormindo. À tarde, liguei para Julian Alman. Julian e Janey: de Bill Bonham reapareceu, agora vestido com jeans e blusão de
todos os amigos de Oliver, eram os mais íntimos meus. Julian, o couro. Iluminado por um refletor, na frente do palco, sentou-se
comediante mais feliz do país, agora estava chafurdando em mau numa pilha de ossos.
humor, sofrendo com a separação de Janey, e me convidou para — Vocês riem, é claro, chakras, linguagem afetada, besteira.
acompanhá-lo naquela noite. Era a oportunidade perfeita. Mas depois pensam, meu Deus, quem está rindo? Será que sou
O som das ondas, gaivotas e baleias enchia o auditório. Bill eu? Ou será a criança magoada no meu interior?
Bonham estava prostrado na frente do palco. Vi os ombros de Dinsdale começarem a tremer, tranqüilizadores,
— O Espírito do Cavalo! — bradou ele. — Onde, onde está do outro lado do corredor. Tudo ficou escuro.
o espírito do Cavalo? — LIBERTEM-SE DOS BLOQUEIOS.
Cachos úmidos de cabelos emolduravam a calva acima do A iluminação do palco ficou cor-de-rosa.
rosto intrigado. A Pirâmide e a plataforma estavam vibrando, e de repente,
— Buscai, buscai, buscai — entoou um coro asteca pelos Bill Bonham apareceu sobre a plataforma, com as mãos dos la-
alto-falantes. dos do corpo, as palmas voltadas para cima.
Fez-se silêncio. Depois, soou um gongo, e um trinado alto e — Abram-se para a Canalização.
insistente fez vibrar o ar em torno de mim.
Uma nuvem de gelo seco subiu ao redor do tanque de me convida para a porra da festa. Cara mais filho da mãe,
flutuação. As pessoas da primeira fila começaram a tossir. preconceituoso, manipulador, não tinha a menor necessidade...
— Fertilizando a Semente da Estrela! — Mas meu querido, não se estresse! Você pode vir como
A plataforma e os braços de Bill estavam subindo. meu acompanhante. O que poderia ser mais encantador nesse
Viu-se um lampejo de luz vermelha, e, do outro lado da mundo?
platéia, acima de nós, num camarote, o rosto de Oliver se ilu- Dinsdale fingiu surpresa quando uma dupla de senhoras
minou um segundo, sorrindo largamente para o palco, antes de idosas lhe pediu um autógrafo.
voltar a desaparecer nas trevas. — Meu autógrafo? Mas ficaria muito honrado, ficaria ma-
Quando as luzes do teatro se acenderam, o camarote estava ravilhado, ficaria encantado. Deus as abençoe, queridas. Mas
vazio. certamente vão querer também pedir um ao meu ilustre amigo e
colega de profissão aqui, não é? Barry Rhys?
— Ai, pelo amor de Deus, seu cretino—urrou Barry, furioso.
Saía gente aos magotes do teatro, dando de cara com o barulho, — Há quarenta anos que você me vem com essa! E nunca teve
a correria, as luzes e o frio assustadores do Picadilly Circus. a menor graça, nem da primeira vez nem agora. Vou para a
Dinsdale e Barry, possivelmente os dois mais famosos atores dos porcaria da festa.
palcos ingleses, estavam de pé bem no meio da calçada, proje- — Olá, Dinsdale! Como vai? — disse eu, depois que as se-
tando-se um no outro, alheios à multidão que estava se formando nhoras se foram.
em torno deles. — Olá, querida, o que posso fazer por você? — Ele se vol-
— Uma verdadeira bosta — urrou Barry. — Sem objetivo, tou para mim, esperando que lhe pedisse um autógrafo.
vazio, autocentrado e mal representado. Uma coisa totalmente — Rosie Richardson — disse eu.
maluca. Ele me olhou, sem me reconhecer, por um segundo.
— Oh não, meu caro, não — disse Dinsdale. — Eu simples- — Rosie Richardson. Ah, ãh... Eu fazia divulgação para você
mente não consigo suporrrtarrr quando você fica assim. O garoto na Ginsberg and Fink, lembra?
estava absolutamente divino, e você sabe disso. Aquelas Ele abriu os braços e me apertou, dando-me um abraço
silhuetas de coxinhas rrrobustas se rrrrrevelando através de teatral.
trrrajes encharcados, colantes, celestiais. Oh, olha, e aí vem — Minha querida, como é maaaaaaravilhoso revê-la! Você
aquele rapaz indiano divino, que é poeta — disse Dinsdale, divi- está divina! — Ele ainda não tinha se lembrado. — E já conhe-
sando Rajiv Sastry, que vinha pisando duro na direção deles, os ceu o rapaz mais encantador, mais talentoso do mundo inteiro?
ombros encolhidos sob o sobretudo comprado num brechó da — disse, gesticulando vagamente para indicar Rajiv.
Oxfam. — Como vai, Rajiv? — disse eu.
— Como vai, meu querido? — berrou Dinsdale, em tom de — Ótimo. Beleza. Estamos indo muito bem. Vamos fazer a
flerte. primeira leitura na quinta.
— Para dizer a verdade, estou puto da vida — respondeu — O que acharam desse espetáculo maaaaaravilhoso? Não
Rajiv. — Ele me manda entradas para o espetáculo, depois não foi simplesmente a coisa mais divinamente, requintadamente
ultrrrrrajante que já viram? É claro, meus queridos, Deus os Junto às paredes do salão de festas do Café Royal viam-se
abençoe. Para quem é? inúmeras bancas vendendo artigos esotéricos, cristais, runas,
Uma outra senhora idosa estava lhe pedindo um autógrafo. artesanato de penas. Uma pirâmide de fibra estava suspensa por
— Que prazer tive em revê-la, minha linda — disse ele, arames acima da mais espetacular multidão que eu já havia
dispensando-me discretamente, por cima do ombro da senhora. — presenciado no Clube dos Famosos.
Vá com Deus. — Não sei por onde começar—disse a Julian.—Com quem
— Tchau — disse eu, obediente, com o coração partido. acha que devo falar primeiro?
Dinsdale era uma das minhas grandes esperanças. Fui até onde — O problema é que é muito gratificante estarmos juntos —
estava Julian, o qual se encontrava ainda na entrada do teatro, respondeu Julian. — Muito gratificante. Mas eu me pergunto por
esfregando nervosamente o celular contra o queixo. Uma jovem que eu preciso desse apoio na vida?
de polainas e blusão de piloto da Segunda Guerra estava a ponto Estávamos falando sobre Janey desde que ele tocou minha
campainha, interrompidos apenas pela Cura das Energias dos
de abordá-lo, estendendo um bloquinho.
Chakras. Janey agora estava grávida. Havia descoberto a gravi-
— Você bota mesmo a gente pra cima, valeu? — estava di-
dez logo depois da separação. Julian insistia em dar o nome de
zendo ela. — Parece que, quando você aparece, valeu, tudo pa-
Ironia à criança. Meus esforços de trazer à baila a crise no leste
rece engraçado à vera, valeu? Como se ninguém tivesse que
de Nambula foram recebidos com olhares vagos.
esquentar a cabeça, valeu?...
— Oh, meu anjo!
Ele me avistou por cima do ombro dela. As cabeças se viraram quando Kate Fortune se jogou sobre
— Janey simplesmente não entende que eu preciso me re uma jovem que trazia no colo um bebê, jogou os cabelos para
compor antes de ter um relacionamento — gemeu. — Mas es- trás, agarrou o bebê e o aninhou nos braços. Espocaram flashes,
pere aí. — Fez menção de começar a discar outra vez. câmeras bateram fotos, os paparazzi a cercaram, acotovelando-se
Tirei o celular da mão dele. em torno dela.
— Vamos para a festa — disse. — É romena — comentou Julian. O telefone tocou. — Com
— Aí, valeu, tá? — disse a menina, com cara de intrigada. licença, só um instante. A gente se vê daqui a pouco — e correu
para um canto.
Vi Corinna Borghese arreganhando os dentes pelas costas de
— E assombroso ele se desnudar espiritualmente daquele jeito. Gloria Hunniford, passando a mão na cabeça raspada. Resolvi
Eu me senti humilhado, juro. deixar Corinna tentar bancar a condescendente comigo. Eu não
— Totalmente perdido... fim de carreira... mas eu simples- era mais apenas a namorada de Oliver. Já havia realizado um
mente adoro esse homem. montão de coisas.
— Muuuito, muuuito difícil ver esse tipo de coragem no Aproximei-me dela.
palco. — Oi, Corinna. Como vai? Ela
— Mas que babaca. me olhou de soslaio.
— Quero dizer, o que a gente diz ao cara? — Perdão? Já nos conhecemos?
— Rosie Richardson. Virei-me e vi Corinna me olhando fixamente. Aquilo ia ser
— Ah, sim. Sim. Oi! Já faz tempo que não a vejo. mais difícil do que eu tinha imaginado.
— E, eu ando lá por Nambula, trabalho num acampamento — Mmmmmmmmmm. Me abrace, querida. Me dê um abra-
de refugiados lá — disse, em tom despreocupado. ço bem forte. — O corpinho frágil e magricela de Richard Jenner
Corinna fez um trejeito com a cabeça. se jogou contra mim. — Minha querida, como é mesmo o seu
— Ah, não, meu Deus, não me venha com mais nome? Diga-me, refresque a minha memória...
neocolonialismo. Será que não entende que estamos à beira de — Rosie Richardson, eu o conheci quando era namorada de
uma terceira guerra por causa desse comportamento paternalista Oliver.
do Ocidente em relação aos países árabes? — Sim, claro, claro. Você era a moça que vomitou na mesa!
— Com licença, por favor? — Kate Fortune estava tentando Há, há, há! Vamos, vou lhe servir uma bebida. Não vomite hoje,
passar por mim, com a babá atrás, segurando o bebê. está bem? Há, há, há! O que achou do Bill? Não é simplesmente
— Olá. Como vai? — cumprimentei. espalhafatosamente trágico? Paul e Linda estão aqui. Já os viu?
— Desculpe, você é...? — Ela jogou os cabelos e me olhou, Olha lá. Não, lá. Ai, meu Deus, Neil e Glenys. Precisamos
espantada. cumprimentá-los. Venha.
— Rosie Richardson. Eu... era namorada de Oliver Marchant Agarrou minha mão.
— terminei, hesitante. — Preciso falar com você — disse eu. — Durante os últimos
— Oh, oh. Sim, claro — disse ela, em tom duvidoso. — Eu anos venho trabalhando num acampamento de refugiados na
sei, não é linda? Eu a trouxe da Romênia, como espero que você África e de uma hora para a outra estamos tendo que enfrentar
já tenha... Não sei lhe dizer como ela mudou minha vida. Como uma falta total de alimentos. Ninguém parece poder nos ajudar.
vai? Desculpe, eu só estou tentando encontrar o meu... — Ele estava me puxando na direção de Neil e Glenys.
— Vou bem. Escute, posso conversar com você um minuto? — Estou escutando, estou escutando, continue.
Gostaria de lhe perguntar se me ajudaria a fazer um apelo que — Não, pare um minuto.
estou tentando organizar para a África. Richard parou e virou-se.
— Claro. Se falar com minha agente ela lhe enviará um — É urgente. Foi por isso que voltei à Inglaterra. Preciso de
donativo... agora infelizmente preciso ir, preciso encontrar... ajuda... da sua ajuda, e das pessoas que conhece — terminei,
— Não, o problema é que eu trabalho num acampamento de meio sem jeito. Estava começando a me sentir meio idiota.
refugiados, estamos numa enrascada e quero reunir todos numa — Que tipo de ajuda? Está precisando de dinheiro, ou no
campanha de levantamento de fundos. Estava imaginando se... que precisa que a ajudemos? — Os olhos dele desviavam-se na
— Bom, eu agora estou me concentrando na Romênia, com direção de Neil e Glenys, que estavam se afastando.
o bebê, essas coisas, mas se conversar com minha agente... — Precisamos de dinheiro, mas acima de tudo, precisamos
— Mas trata-se de uma emergência mesmo... de publicidade. Quero fazer um apelo pela tevê, talvez levar
— Minha querida, liga para a minha agente de manhã, tenho algumas pessoas à África.
certeza de que sabe... Bom, de qualquer forma foi ótimo rever Ele pegou meu braço.
você. Foi mesmo maravilhoso te rever. Tchau!
— Olha só esse salão. Não, apenas olhe, querida. Olha o — Já viu que aquela moça voltou? — era a voz monótona e
salão.
convencida de Corinna.
Olhei.
— Ah, está se referindo à ex-namorada de Oliver — disse a
— Está vendo Kate Fortune ali com o bebê? voz açucarada de Kate Fortune. — Não é constrangedor,
Confirmei que estava. coitadinha?
— Romênia. Dave e Nikki Rufford? Florestas equatoriais. — Horrível. Quero dizer, qualquer pessoa pensaria que ela
Hughie? Terrence Higgins Trust. Show beneficente na sexta-feira. foi a primeira a ir trabalhar num acampamento de refugiados.
Vou lhe dar um cheque, querida. Com todo prazer. Ligue para — Ah, é um pesadelo mesmo. Sabe, a gente quer ajudar, mas
o meu escritório de manhã, que eles vão lhe fazer um donativo. não dá conta de tantos apelos.
Mas um espetáculo beneficente? Não, a não ser que disponha — Exato. E ainda por cima bancando a Roberta Geldof.
de vários meses para fazer a coisa como deve ser feita. Não. Isso Quero dizer, me poooooupe...
não vai colar. Não vai colar nunca. Não. Anneka! Me dê um Depois que elas saíram, fiquei ali sentada no vaso olhando a
abraço, querida. Mmmmm, mmmmmm. — Ele piscou para mim porta do cubículo durante um longo tempo, traumatizada. En-
sobre o ombro da Anneka. — Ligue para o meu escritório de tendia como elas se sentiam. Chegar a uma festa de estréia, e aí
manhã, querida. Vou prevenir o pessoal. uma perua da qual você mal se recorda aparece toda bronzeada e
Aquilo era horrível. Resolvi ir até as bancas que havia em começa a solicitar mudanças na sua agenda. Uma visão do acam-
torno do salão para dar a impressão de estar fazendo alguma pamento encheu-me a lembrança: o conselho de O’Rourke, os
coisa, depois tentar encontrar Julian. Estava quase chegando às refugiados a caminho. Sharon, Henry, Betty, Muhammad, espe-
bancas quando, através de uma brecha no mar de cabeças, meu rando para ver o que eu seria capaz de fazer. E ia ser um fracasso.
olhar encontrou o de Oliver. Saí me sentindo angustiada e burra, procurando Julian. Não
A cabeça dele voltou atrás bruscamente, como se ele hou- consegui encontrá-lo. Resolvi que era melhor voltar para casa.
vesse metido o pé no freio. Ficamos olhando um para o outro, Havia acabado de vestir o casaco e estava me encaminhando para
assustados, como coelhos surpreendidos por faróis de carro. a escada, quando Oliver surgiu, vindo do toalete masculino. Não
Depois, as pessoas se aglomeraram de novo e ele desapareceu. havia mudado — o rosto estava mais cheio, o cabelo estava um
Voltei-me para a banca ao meu lado, abalada, e fingi olhar os pouco mais comprido, mas era o mesmo de antes.
cristais, artigos de penas e folhetos. "Decoração de Interiores — Rosie! — Ele se aproximou de mim, sorrindo, equilibra
pelo FENG SHUI", dizia um. Peguei outro cujo título era: "AS do, encantador, sem nenhum sinal das perdas de compostura
CAMINHADAS EM JEJUM COMO MEIO DE DESEN- do passado. — Você está linda. — Ele se inclinou para me bei-
VOLVIMENTO PESSOAL". De repente, senti ímpetos de sair jar, e o cheiro familiar dele, a barba por fazer, os lábios que to-
daquele lugar. caram os meus de leve, fizeram o velho alerta químico funcionar.
Abri caminho em meio à multidão e entrei no toalete femi- Átomos e partículas começaram a correr: PERIGO! PERIGO! To
nino, que era fresco e silencioso. Entrei num dos cubículos, tran- dos os sistemas pulsando outra vez.
quei a porta, baixei o assento do vaso e me sentei nele. Depois Oh, não! pensei. Oh, não. Isso, não. Agora, não. Ainda não.
ouvi a porta se abrir lá fora e alguém entrar. Por favor, não.
Afastei-me um pouco. três semanas. E, francamente, ouvi dizer que você se comportou
— Olá. — Uma voz esganiçada, fora do normal. Pigarreei. de uma forma absolutamente ridícula esta noite.
— Olá — disse, agora num tom de voz bem grosso. — Como Mantenha a calma, disse a mim mesma. Não se altere.
vai? — Não se lembra das regras que lhe ensinei? — disse ele.
— Gostosinha — disse ele, abraçando-me. — Senti tantas — Hmmm? Amigos dos famosos? Você precisa reconhecer os
saudades suas! Como foi que se deu lá na África? limites. Precisa aceitar a desigualdade sem chamar atenção para
Ele era só ternura. Nós tratamos de pôr os assuntos em dia. isso. Não se comporte como o público. Não fique olhando as
Eu lhe contei o motivo da minha vinda. pessoas, não procure gente famosa pelo salão, para ir diretamente
— ... E aí no final não me restou mais nenhuma outra saí falar com eles, não os coloque em evidência, não exija favores a
da, tentei tudo que pude imaginar. Essa me pareceu a única eles, tranqüilize, não os repreenda. Você voltou e quebrou todas
opção que restou. as regras. Eu vi você, fez isso com todos. Estava numa posição
O olhar dele era carinhoso. Mordeu o lábio inferior e incli- perfeita para retomar sua posição, é uma velha amiga agora, e os
nou a cabeça para o lado, compreensivo. faz sentirem-se leais. Faz uma coisa que não tem nada a ver com
— Você tem razão — disse, com simplicidade. — Precisa a mídia, e os faz se sentirem profundos. Mas jogou tudo para o
mos fazer alguma coisa. alto. Esqueceu de tudo que lhe ensinei. — Aí os olhos dele se
Olhei-o atônita, a mente viajando. Ele devia estar mudado. fixaram em alguma coisa mais adiante. — Gostosinha
Se Oliver estivesse disposto a ajudar, então eu provavelmente — disse, mas não para mim.
conseguiria divulgar o apelo. Ele era exatamente a pessoa que Era Vicky Spankie, a atriz que tinha sido esposa do índio da
sabia que devia evitar, e talvez se revelasse minha melhor opção. floresta tropical. Seus cabelos negros e reluzentes estavam
— Do que precisa? cortados no estilo pajem. Estava usando o que se poderia chamar
— De um avião para levar as contribuições. Dois, três car- de túnica tropical.
regamentos se preciso, talvez mais. — Podemos ir agora, Olly? — disse ela, chegando perto dele
— Quanto tempo tem? — indagou, bondosamente. e apalpando-lhe a lapela.
— Três semanas — disse eu, e foi aí que o humor dele mu- — Vicky, lembra-se da Rosie, não? — disse ele, pegando a
dou por completo. mão dela como se tivesse cinco anos de idade. Perguntei-me o
— Três semanas? — disse. — Três semanas? que teria acontecido ao índio.
Naquele tom. Ele me deu a impressão de que eu era a pessoa — Rosie voltou da África com um plano meio surrealista,
mais odiosa, ridícula e desprezível que jamais havia pisado sobre infelizmente — disse ele, rindo. — Eu estava exatamente lhe
a terra. Já havia me esquecido de como era. explicando como é o horrível o mundo real em que vivemos.
— Devo lhe dizer que você está completamente louca — — Boa noite — disse eu, indo em direção às escadas.
prosseguiu ele, autoritário, desprezando-me, como se estivesse Aquele boa-noite tinha sido fraco demais. Enquanto o táxi
numa reunião de diretoria, destruindo os que se opunham a ele. passava pela Regent Street, eu piscava por causa das luzes e
— É uma coisa completamente absurda de se tentar fazer em pensava no que devia ter dito. — Boa noite, seu filho da puta.
Não, "babaca" era melhor. Quem tinha dito aquilo naquela
noite? "Se manda, seu babaca". Ainda tem essas mudanças de
humor, então? "Quer que te dê o telefone de um psiquiatra?"
Não. Eu devia ter mantido o nível mais alto. Devia ter dito,
depois daquele discurso sobre o comportamento dos amigos dos
famosos: "Acho que está sendo duro demais com seus amigos.
Acho essas pessoas melhores do que o que está descrevendo, não
acha?" Quando nos afastamos das luzes do West End e fomos em
direção do norte de Londres, me acalmei. Talvez fosse melhor
Capítulo 19
não me envolver numa confrontação. Melhor simplesmente me
afastar e deixá-lo em paz. Devia ter feito isso desde o início.