Livro Ilustrado
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Resumo: Este trabalho tem como propósito conhecer o processo de criação de livros em literatura infantil pela
visão do autor e ilustrador Odilon Moraes com o intuito de estabelecermos relações com as ações do pequeno
leitor na instituição escolar. O corpus desta pesquisa é constituído por três livros do referido autor publicados
pela Editora Cosac Naify, sendo: “A Princesinha Medrosa” (2002 e 2008), “Pedro e Lua” (2004) e “O Presente”
(2010) que trazem singularidade em seus modos de criação, e rompem paradigmas da literatura infantil. Os
procedimentos metodológicos envolvem estudo bibliográfico, levantamento de pesquisas sobre o assunto através
da leitura de títulos e resumos de teses e dissertações, bem como análise das entrevistas com autor e editor.
Algumas contribuições que vieram no movimento da História Cultural com Chartier (2001) auxiliam no olhar
para os modos de criação do autor. Certeau (2007) nos ajudará nas maneiras de pesquisar. Já Scott e Nikolajeva
(2011), Hunt (2010), Linden (2011) trazem contribuições sobre a especificidade do livro ilustrado (picturebook)
que, segundo Moraes, estão presentes em suas obras. Arroyo (1988), Coelho (2010), Lajolo e Zilberman (2007)
situam esta pesquisa no tempo e espaço a partir de um panorama histórico.
Introdução
nasce junto das coisas. A fala da criança está impregnada de licenças sábias, como
“o avestruz é a girafa dos passarinhos”. Alguém consegue melhor definição? Por
isso vejo o universo infantil como uma tentativa de compreensão das coisas, e que
dá lugar à construção do imaginário (Moraes, entrevista, 2009)1.
Contudo, tal visão não é e nem foi sempre a mesma nos diferentes tempos e lugares.
Mas quais são os ideários deste pensamento contemporâneo dos anos 1990 a 2009? Qual a
influência dos livros produzidos a partir de outra concepção que envolve a relação entre
textos, imagens e suportes no processo de leitura das crianças?
Investigar as operações inscritas na criação de livros sempre foi objeto desta pesquisa
e, neste ínterim, muitas foram às interrogações iniciais, tais como: no caso de produções em
literatura infantil, como os autores pensam as crianças ao criarem suas obras? Aliás, pensa-se
na criança ou no adulto que será o primeiro interlocutor entre o livro e a criança? O projeto
editorial leva em conta uma determinada concepção de criança, leitor e literatura infantil?
Ao entrarmos em contato com esta ideia, notamos a importância deste estudo, pois
quem opera no pólo da produção, sabe que o livro precisa agradar os pequenos leitores e,
ainda, atender às expectativas dos adultos responsáveis pela formação deste público. No
entanto, as representações dos leitores são alteradas no tempo e no espaço devido a novos
olhares que transformam e constituem a literatura infantil.
Assim, alguns caminhos foram traçados rumo a esta busca; caminhos esses que
envolvem os modos como realizamos as práticas de investigação em um tempo que não é
cronológico, não é determinado por uma ordenação causal e não é o tempo do relógio. De
acordo com Corazza (2002, p. 105), “[...] para que este tempo se constitua – na
descontinuidade que lhe é própria – é preciso que necessidades específicas tenham sido
criadas”.
No contexto deste trabalho, a necessidade criada envolve o pensar sobre o movimento
de pesquisa capaz de estabelecer coordenadas, reordenar percursos e manter os cursos,
estabelecer e conservar alguns focos e mapear o terreno para conhecermos as linhas de
trabalho nele realizadas.
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Entrevista realizada com Odilon Moraes em janeiro/2009 por Livia Deorsola intitulada de: Entre o texto e a
ilustração, um autor completo.
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Precisamos ter um novo olhar para a literatura, pois a ilustração possui característica
própria, vista enquanto algo que escreve, independente do texto. A crítica literária
não foca essa questão e esse novo olhar precisa existir, pois a literatura infantil não é
mais vista como texto apenas. Daí a importância de buscar auxílio no cinema e na
arte que também estudam a imagem (MORAES, entrevista, 2011).
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[...] Os livros não respeitam limites, [...] quando tratados como objetos de estudos,
também se recusam a ficar confinados dentro dos limites de uma única disciplina.
Nenhuma delas – a história, a literatura, a economia, a sociologia, a bibliografia é
capaz de fazer justiça a todos os aspectos de vida de um livro. Pela sua própria
natureza, portanto, a história dos livros deve operar em escala internacional e com
método interdisciplinar. Mas não precisa ser privada de coerência conceitual, porque
livros fazem parte de circuito de comunicação [...] (DARNTON, 1995, p. 131apud
FERREIRA, 2009, p. 9).
e criação do livro não é pensada para criança, mas esta não é excluída dos livros produzidos;
(7) a literatura é feita para perguntar e não para responder; (8) literatura e pedagogia: ensina,
forma, educa, enquanto que a literatura e poesia, espanta.
De toda esta gama de informações e concepções contidas nas entrevistas realizadas e
nos trabalhos levantados, finalmente definimos o foco desta pesquisa: conhecer o processo de
criação dos livros de literatura infantil pela visão do autor e ilustrador Odilon Moraes.
Sendo assim, o processo de análise dos três livros selecionados para este trabalho (“A
Princesinha Medrosa”, “Pedro e Lua”, “O Presente”), confrontado com os discursos
emanados das entrevistas e com as informações e estudos bibliográficos se constitui como
outro procedimento metodológico desta pesquisa. Ao confrontarmos cada uma dessas fontes,
é notamos as transformações ocorridas, a sensibilidade do autor, o cuidado com cada detalhe,
a importância da ilustração e a reinvenção do objeto livro.
Literatura infantil brasileira (1990 a 2009): um novo olhar para a constituição do objeto
livro
Livros interativos, arte gráfica moderna e exuberante, formatos não-convencionais;
materialidade do objeto livro constituída por panos, plástico, papéis nobres, reciclados;
figuras tridimensionais, livros com espelhos ou que emitem sons; livros em CDs Rom, e-
books. A diversidade se faz presente na materialidade do objeto livro e a transformação o
constitui na mais alta tecnologia para atrair e seduzir o público que consome esta mercadoria:
o livro de literatura.
Caça-se o leitor infantil, público rentável ao mercado editorial brasileiro que está
envolto por uma panóplia de estratégias editoriais capazes de conquistar o leitor. Diante disso,
mais uma vez afirmamos que o leitor muda, mas no encalço desta mudança, o livro muda
porque a visão da editora e suas estratégias que inscrevem, de um lado dispositivos de
produção de textos e, de outro, dispositivos de produção de livros (Chartier, 2001) também
mudam. E quanto à leitura na escola?
Nos anos 1990, Roger Mello, Marilda Castanha e Graça Lima foram à grande
exposição de ilustração no Salão do Livro de Bolonha, onde o Brasil fora homenageado.
Momento responsável por um choque de ideias e concepções que envolvem a qualidade dos
livros produzidos, tanto do ponto de vista gráfico como cultural, o Salão do Livro tornou-se o
propulsor para um novo olhar e uma nova maneira de pensar e fazer literatura infantil no
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Brasil. Moraes (2010) salienta que, ao verem os livros alemães, os autores brasileiros
exclamavam: “Nossa! O livro alemão traz a cultura alemã”. Tal característica faltava aos
livros brasileiros.
No que concerne à visão dos ilustradores brasileiros, Moraes (2010) acrescenta que
esta foi uma espécie de “Semana de Arte Moderna de 1922”, em que, com o intuito de
dialogar sobre a identidade nacional, compreender a cultura brasileira, bem como os rumos da
literatura, alguns ilustradores começaram a se reunir para pensar sobre o que seria o livro
ilustrado brasileiro. De acordo com Linden (2011), este foi o período em que se “assiste ao
surgimento de iniciativas editoriais inovadoras que concedem ao livro ilustrado
contemporâneo toda a sua amplitude”.
Nelson Cruz começa a pensar na história de Minas Gerais e produz uma coleção
intitulada de “Histórias para contar histórias” pela Editora Cosac Naify; Marilda Castanha
realiza uma pesquisa sobre linguagem e investiga a maneira de desenhar dos índios, enquanto
Roger Mello começa a produzir livros como Carranca de São Francisco e Cavalhada de
Pirenópolis. As transformações ocorridas quanto à materialidade do livro e à sua forma e
conteúdo, se dão devido ao efeito colateral da depressão bolonhesa, principal responsável
pelas mudanças na perspectiva criativa dessa geração.
Toda essa mudança coloca o leitor em contato com livros que delineiam a cultura
brasileira e sua história, o que requer novos olhares, horizontes e conhecimentos diante da
leitura. A inventividade e a complexidade do ato leitor se transformam, pois além de
decodificar palavras, ler com fluência e/ou ler imagens descoladas da escrita, torna-se
necessário estabelecer relações com outros conhecimentos para que se compreenda o lido em
sua essência.
As transformações que o Salão do Livro de Bolonha provocou nos autores e
ilustradores da geração dos anos 1990, desde a maneira de pensar o objeto livro, até a
organização do projeto gráfico, alteram a maneira como os conhecimentos são mobilizados
pelo leitor no ato de leitura.
Uma nova década surge, a primeira do século XXI, compreendida de 2000 a 2009,
com acontecimentos mundiais que transformam a vida do homem, assim como seus hábitos,
costumes, valores e crenças. Período repleto de ataques e atentados terroristas devido à
política ou religião, conflitos militares, crise do crédito hipotecário que coloca em risco a
economia de vários países, alterações no clima que causam grandes catástrofes naturais, como
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terremotos, tsunamis, grandes enchentes, sem mencionar o aquecimento global, que faz com
que as calotas polares estejam no limite da resistência.
Nesta década, a Internet se consolida como veículo de comunicação em massa e
armazenagem de informações, principalmente após a fase da World Wide Web, e a
globalização da informação, atinge um nível sem precedentes históricos. Recursos da Internet,
como as redes sociais, a comunicação por mensagens instantâneas, modificaram em grande
extensão a maneira como as pessoas se relacionam, tanto em nível pessoal quanto em nível
profissional. É a era do Orkut, Facebook, MSN, Skype, dentre outros.
No cinema, a literatura vem sendo trazida com enorme frequência nas continuações de
Harry Potter, A Saga Crepúsculo, Marley & Eu, O menino do pijama listrado, O Senhor dos
Anéis, considerados grandes sucessos cinematográficos da história, acumulando bilhões de
dólares em todo o mundo. É a literatura nas telas, abarcando milhares de pessoas em suas
imagens com movimento, som, música e tons. Enquanto isso, em 2001, Ziraldo comemora 40
anos de “A turma do Pererê”, 30 anos de “Flicts” e 20 anos do “Menino Maluquinho”; em
2002, a literatura foi marcada pelas comemorações do centenário do poeta Carlos Drummond
de Andrade.
Todos os episódios citados modificaram a cultura, as ideias, os valores, os desejos, os
hábitos. A vida dos seres humanos passa a acontecer em um mundo altamente globalizado,
interativo e tecnológico. É nesta configuração política, econômica, religiosa, natural,
tecnológica e cultural, que se inscreve a literatura infantil desta década.
Década de grandes mudanças quanto aos ideários que movimentam a produção de
livros em literatura infantil, muitos foram os trabalhos realizados e os prêmios internacionais
recebidos que permitiram a expansão da literatura infantil brasileira para o mundo.
Internacionalmente, em 2000, a Feira de Livros Infantis de Bolonha teve como tema
os 500 anos do Brasil e, no ano seguinte, o Brasil apresenta 149 títulos a partir da produção
editorial do ano 2000. Foi o ano em que novas conquistas foram obtidas por escritores e
editores brasileiros: a Editora Companhia das Letrinhas recebeu o Prêmio New Horizons, com
o livro Nas ruas do Brás, de Dráuzio Varella, com ilustrações de Maria Eugênia.
A Feira do Livro de Bolonha de 2007 significou uma grande comemoração para os
brasileiros, pois entre os livros premiados, estava o brasileiro Lampião e Lancelote, com texto
e ilustrações de Fernando Vilela, publicado pela Editora Cosac Naify, que recebeu a Menção
Honrosa na categoria New Horizons.
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Nos anos 2000 surge o e-book, que provoca discussões acirradas, sem muitas vezes
delimitar aspectos inerentes ao conteúdo e ao suporte. A linearidade é rompida no livro
eletrônico e, portanto, a leitura muda. Segundo Moraes (2010), talvez “surja outro tipo de
escritor, ilustrador, editor, tudo diferente”, para um livro que se constitui em sua materialidade
como distinto dos livros impressos. Contudo, inovar no suporte não significa inovar no
conteúdo.
Nessa ótica, Chartier (2009, p. 63) afirma que há uma pendência quando pensamos na
edição eletrônica de livros, que é “[...] a capacidade desse livro novo de encontrar ou produzir
seus leitores”, visto que “as mudanças na ordem das práticas costumam ser mais lentas que as
revoluções das técnicas [...]” e a textualidade eletrônica de fato modifica a maneira de
organizar as argumentações, bem como os critérios que podem mobilizar um leitor para
aceitá-las ou rejeitá-las.
Sobre o livro ilustrado e livro-imagem, a transformação do consumo interno à ação do
leitor se dá tanto no aspecto da palavra como na força da ilustração que transcende a
linearidade do olhar. Corroborando esta questão, Moraes (entrevista, 2011) aponta que é
preciso compreender a diferença de tais livros para “o bem do livro, da editora, da crítica, do
editor, pois compreender essa diferença é fundamental, já que o livro é diferente, é lido
diferente e precisa ser feito diferente”.
Segundo Colomer (2011), a imagem está presente na literatura infantil desde seu
surgimento, mas agora se encontra enormemente potencializada por sua presença na
comunicação social, nas novas possibilidades técnicas, nas estratégias de venda consumista e
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nas tendências a fusões de códigos da arte atual. Sendo assim, a literatura infantil contribuiu,
inclusive, com uma forma artística inovadora neste campo: o livro ilustrado. Esta conquista
provocou o entusiasmo de todos os setores e, agora, há uma nova força referente aos usos da
imagem, mas com a “tarefa” de sustentar o desafio apresentado à palavra.
escreve e o ilustrador que transforma o texto em livro, tornando-se, nas palavras de Moraes
(2010), “um fazedor de livros”.
Segundo Moraes (2011), discorrer sobre este processo criativo que recria histórias
vividas, talvez seja o mais difícil, pois a fase em que se têm os saltos de criação não se
encontra apenas na mão do artista, no saber desenhar e escrever, no ser poético ou fictício, no
ser criativo ou ter inspiração. Para alguns, isso pode ocorrer no cérebro, para outros, é como
se houvesse um local interior do ser humano em que as situações caminham, desabrocham,
revelam e fazem com que o processo de falar sobre uma situação capaz de desencadear uma
criação torne o artista um espectador do seu próprio processo de criar (Moraes, entrevista,
2011).
Nesse sentido, narrar o processo de criação de um livro envolve, para além do aspecto
material, da foto que trouxe inspiração e do rascunho produzido, à reelaboração de um evento
entremeado por outros acontecimentos, pois conforme Moraes (2011), toda e qualquer
experiência humana é singular, se entrecruza com a evolução de sua espécie e aflora situações
vividas que farão parte da criação.
O processo de criação do livro “Pedro e Lua” traz, em sua essência, episódios nos
quais alguns “acasos” foram determinantes tanto na construção como no produto final do
livro. Dialogar com esses fatos é condição para entrarmos em contato com mais um elemento
constituinte da criação. O trecho abaixo, extraído da entrevista com Moraes (2011) referente
ao processo de criação do livro “Pedro e Lua”, oferece exemplos concretos de “acasos” que
permeiam a construção do enredo.
A primeira frase dele: “Pedro queria dizer pedra, mas tinha cabeça na Lua”. [...]
Estava uma noite com uma lua linda e tinha uma calçada cheia de pedra e cada vez
que olhava na lua sempre tropeçava na pedra. [...] E nesse dia, não sei por que, ligou
na minha cabeça essa coisa de pedra com lua e o nome Pedro e eu escrevi essa frase
(MORAES, entrevista, 2011).
Diferente de “Pedro e Lua” em que as ideias germinaram durante anos até sua
concretização, o livro “O Presente” nasceu quase como um “soluço” e, literalmente, foi criado
de um dia para outro. Segundo Moraes (entrevista, 2011), “[...] O Presente nasceu de uma
época que eu pensei muito no meu passado; nasceu a partir de várias memórias reais vividas
que se misturaram e que foram meio o que deu munição a essas memórias, aí de novo, são
fatos da vida”.
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Primeira história escrita e ilustrada por Odilon, “A Princesinha Medrosa”, não contava
com um final. Mas como surgem os grandes finais das histórias? A atitude de Catarina – filha
de um casal amigo – trouxe ternura e acolhimento ao autor sendo uma ação determinante para
um final feliz da obra na qual o menino, ao pegar na mão da princesa, descobre que o outro
acode, fortalece e inscreve atos como coragem, determinação e ousadia.
Sendo assim, transpor a experiência vivida e recriar o passado para uma história, faz
parte do processo de criação, pois de acordo com Moraes (entrevista, 2011) “[...] se eu tivesse
sentado pra fazer essa história, não faria. Precisou esfriar a cabeça, dar a mão pra menina,
sentir o quanto estava desamparado e o quanto a mão dela me amparou”.
Além dos “acasos” e do passado recriado que podem estar inscritos nos enredos dos
livros, vivemos impregnados de referências e imersos a múltiplas informações que nos
alimentam constantemente. O repertório imagético de Moraes decorre das experiências
vividas, de leituras diversas, sejam conceituais, informativas, literárias e de uma consistente
formação cultural e acadêmica entrecruzada ao conhecimento de mundo.
imagem não é redundante ao texto e propõe uma significação articulada, o processo de criação
solicita apreensão conjunta do que será escrito e do que será mostrado, aspecto este que
requer do autor, no ato da escrita, a não ignorância das imagens. O mesmo se dá com o leitor.
A descoberta sobre como se estabelece o diálogo entre texto e ilustração começou a
fazer parte da concepção das obras de Moraes que, na inventividade do ato de criar,
dispositivos começam a ser redimensionados no intuito de demonstrar a especificidade do
livro ilustrado. Conforme Linden (2011, p. 9) o livro ilustrado é considerado “[...] não apenas
um objeto cujas mensagens contribuem para produção de sentido, mas um conjunto coerente
de interações entre textos, imagens e suportes”.
Pensar o livro na perspectiva do livro ilustrado significa romper paradigmas no ato de
criar, pois as inovações relacionadas à materialidade ampliam a concepção tradicional do
objeto.
Assim, ler um livro ilustrado não se resume a ler texto e imagem. É isso, e muito
mais. Ler um livro ilustrado é também apreciar o uso de um formato, de
enquadramentos, da relação entre capa e guardas com seu conteúdo; é também
associar representações, optar por uma ordem de leitura no espaço da página, afinar
a poesia do texto com a poesia da imagem, apreciar os silêncios de uma em relação à
outra... Ler um livro ilustrado depende certamente da formação do leitor (LINDEN,
2011, pp. 8 - 9).
evidenciar tais relações entre texto e imagem, pois na maioria das vezes isso se faz presente
apenas nas palavras.
Neste conjunto de elementos que constitui o processo criativo, outra característica
determinante envolve a concepção de literatura infantil, pois há os que escrevem para
responder, enquanto que outros escrevem para perguntar. A definição deste aspecto é
responsável pelo processo de elaboração da escrita pela ilustração e pelo texto.
Escrever para perguntar tornou-se a essência do texto na obra de “Pedro e Lua” sendo
que a literatura surge para interrogar a dor pela ausência dos amigos que sempre permeou os
sentimentos de Moraes. Tal concepção significa romper paradigmas ditos da literatura infantil
que, muitas vezes, ensina, educa e moraliza. Criar obras consideradas infantis por instâncias
avaliadoras que interrogam e discutem temas inimagináveis entre os pequenos é uma grande
mudança e altera todo processo de criação.
Enquanto “A Princesinha Medrosa” e “Pedro e Lua” são considerados picturebooks, a
obra “O Presente” traz uma história escrita apenas com ilustração, sendo categorizado como
livro-imagem, porém, o fato deste tipo de livro não apresentar palavras, não implica em
ausência de discurso.
No processo de criar a escrita de imagem, há aspectos que são distintos dos livros que
contém palavras e imagens. Ao livro constituído apenas por ilustração, percebemos a
importância do tempo de cada acontecimento dentro de uma sequência clara de ações
delineadas pela imagem que comunica movimento e fluxo do tempo.
Ao unir, por meio da leitura, uma imagem à seguinte, o leitor se inscreve dentro de
uma continuidade e, conforme Linden (2011, p. 107), “mais que isso, imaginando o que
ocorre entre as duas, ele preenche o lapso temporal”. Orquestrando, junto ao autor, todo esse
processo, o editor é o primeiro leitor ao buscar marcas na criação que realmente tragam o
espaço de tempo entre as cenas, pois quando as duas imagens se relacionam, a possibilidade
de expressar uma progressão se consolida. É justamente este processo que as crianças vivem
ao ler um livro-imagem.
Destacamos que a necessidade de modificar o ritmo, o tempo e o momento da
ilustração, só é notada devido à atividade leitora, na qual tanto o leitor/autor como outros
leitores insinuam “as astúcias do prazer e de uma reapropriação no texto do outro: aí vai
caçar, ali é transportado, ali se faz plural [...]” (Certeau, 2007, p. 49). Pensar as imagens na
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literatura nos remete à necessidade de uma linguagem mais específica voltada a outras áreas
como, por exemplo, o cinema.
Conforme Moraes (2011), “a ideia de tempo está relacionada ao cinema, pois tempo é
cinema”. A cena do livro “chegada ao campinho” traz o enquadramento cinematográfico de
um plano geral, pois é possível ver os meninos chegando e, fazendo uso da profundidade, os
amigos aguardando para início do jogo. Outras cenas trazem a centralização das personagens
na composição das páginas e indica os protagonistas da narrativa. Contudo, pensar no
enquadramento, na profundidade, na centralização para compor a escrita da história com
imagens requer conhecimento do autor para ser utilizado em seu processo de criação.
Assim, a leitura que se faz de uma escrita feita com ilustração também é apropriação,
invenção e produção de sentidos, como afirma Chartier (2001), pois para além da intelecção, é
engajamento do corpo, inscrição no espaço e relação consigo mesmo.
Diante do exposto, o processo de criação do autor e ilustrador Odilon Moraes nos
revela esforços, sofrimentos, satisfações, desejos, recusas no ir e vir de um emaranhado de
ideias que se ordenaram, ganharam corpo, vida, seja pela palavra ou pela ilustração que
corresponde e estão intimamente ligadas ao processo criador.
De um lado temos as imagens, íntimas e únicas, de outro a materialidade do objeto
livro enquanto um produto resultante de uma criação que traz em seu bojo ideários de
literatura, ilustração, cultura, infância e um novo olhar à literatura infantil.
Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 5.ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2010.
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 13.ª ed. Trad. Ephraim Ferreira
Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
CORAZZA, S.M. Labirintos da pesquisa, diante dos ferrolhos. In. Caminhos investigativos:
novos olhares na pesquisa em educação. 2.ª ed. Rio de Janeiro: DR&A, 2002.
_____________________. Os livros brasileiros que aqui circulam, não circulam como lá.
Relatório de pós-doc realizada no Centro de Investigação em Artes e Comunicação - na
Universidade do Algarve, em Faro, Portugal, 2009.
HUNT, P. Crítica, teoria e literatura infantil. Título original: Criticism, Theory and
Children’s Literature. Trad. Cid Knipel. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
LAGO, A. O códice, o livro de imagem para criança e as novas mídias. Disponível em:
http://www.angela-lago.com.br/codice.html. Data de acesso: 16/01/2012.
LINDEN, S.V. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011.