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Conceito de Pessoa

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O conceito de pessoa como base para o reconhecimento jurídico: a sua

formulação no IV e no V século.

Lino Rampazzo

Sumário: 1. O horizonte histórico em que surgiu a questão do homem como


pessoa. 2. A Patrística 3. A Igreja rumo à definição da sua doutrina.
4.Significados do termo “pessoa”.4.1 Na Antigüidade. 4.2 No cristianismo
primitivo. 4.3 “Prosopon”, “Persona” e “Hypóstasis” . 5. O Concílio de Nicéia
(325). 6. A contribuição dos Capadócios. 7. A questão cristológica. 8.
Agostinho: o homem é pessoa. Conclusão. Referências Bibliográficas.

Introdução

Um dos fundamentos da Constituição República Federativa do Brasil é a


“dignidade da pessoa humana” (Art. 1º). Esta fundamentação foi juridicamente
possível diante do fato que a dignidade da pessoa humana encontra uma tranqüila
receptividade na nossa cultura. Porém o valor que nós hoje damos à pessoa
humana precisou de séculos para ser reconhecido. Pode-se, pois, perguntar:
Quando e como foi formulado o conceito de “pessoa”? Quando e como este
conceito foi aplicado ao ser humano?
Neste capítulo, pretende-se analisar a primeira etapa da longa história do
conceito de pessoa: a correspondente ao período patrístico, que vai desde o início
do cristianismo até a definição clássica de Severino Boécio.

1. O horizonte histórico em que surgiu a questão do homem como


pessoa

O conceito de pessoa é estranho à filosofia grega, pois, nesta, o homem


aparece como indivíduo representante de uma espécie; e a vida terrestre é
considerada como uma decadência ou a passagem para a existência pura do
espírito. Acrescente-se a isso a convicção grega da importância absoluta
insuperável da ordem política e da cidade, em que o indivíduo era “situado” e
visto em sua relação com o Estado, com o coletivo.
Neste pano de fundo não podia nascer uma problemática que se
interessasse no ser humano como pessoa. De fato, este conceito acentua o
singular, o indivíduo, enquanto a filosofia grega dá importância só ao universal,
ao ideal, ao abstrato.
O valor absoluto do indivíduo é um dado da revelação judaico-cristã, onde
aparece a parceria divino-humana que se destina primeiramente ao homem como
pessoa e só mediante certas pessoas (profetas, Jesus Cristo, apóstolos) atinge o
homem como tal, universalmente.
Devido à liberdade, cada homem pode aceitar ou recusar a parceria que
Deus lhe oferece; e a morte vai fixar definitivamente a opção da pessoa numa
situação de comunhão com Deus ou de recusa.
O ponto mais alto da parceria divino-humana se encontra em Jesus de
Nazaré Deus-homem, homem-Deus.
A revelação cristã, pois, não está voltada ao gênero humano de modo
abstrato, não diz respeito ao universal, mas é dirigida a todos os homens tomados
individualmente, enquanto cada um deles é filho de Deus, chamado à plena
comunhão com Ele.
Com este horizonte, diferente daquele do mundo grego, estava colocada a
premissa, a possibilidade e a necessidade da origem e do desenvolvimento do
conceito de pessoa. O impulso imediato para esse processo, porém, exigiu tempo.
Para entender, pois, como apareceu o conceito de pessoa é preciso estudar
o período da Patrística, em que nasceram as disputas teológicas que formularam
este conceito aplicado primeiro à Trindade, depois a Cristo e, por fim, ao homem.

2. A Patrística

A obra de apresentação do Evangelho às novas culturas, diferentes


daquela judaica, foi realizada pelos “Padres da Igreja”, quer dizer, por aqueles
que, ao mesmo tempo, puseram as bases da dogmática cristã e do edifício
organizacional da Igreja. A sua obra chegou até nós por meio dos escritos que
eles nos deixaram, nas línguas grega, latina, siríaca, copta e armênia.
Do ponto de vista terminológico, o termo “patrologia” indica o estudo dos
padres; e “patrística” é adjetivo e se refere à teologia, ou doutrina dos Padres.
Do ponto de vista histórico, consideram-se três fases:
a) Das origens até o Concílio de Nicéia de 325: é o período dos Padres
Apostólicos (século I-II), dos Apologistas e dos primeiros sistematizadores da
doutrina cristã.
b) A “idade áurea”: do Concílio de Nicéia (325) até o Concílio de Calcedônia
(451). De fato, neste período são formuladas as principais definições
dogmáticas do primeiro milênio do Cristianismo, particularmente graças às
obras dos padres gregos (Atanásio, Basílio, Gregório de Nissa, Gregório de
Nazianzo e João Crisóstomo) e latinos (Hilário, Ambrósio, Jerônimo,
Agostinho e Leão Magno). Veremos que neste período se formula, pela
primeira vez, o conceito de “pessoa”.
c) O declínio: do Concílio de Calecedônia até o século VIII. O termo declínio se
refere mais ao fato que os padres deste período são menos numerosos que os
anteriores. Eles estabelecem um traço de união entre o mundo antigo greco-
romano e a cristandade derivada dos povos bárbaros.
 
3. A Igreja rumo à definição da sua doutrina

Diante da necessidade de definir sua doutrina, a Igreja precisou se


defender deárias “forças contrárias” opostas ao dogma da Trindade: antes de tudo
o judaísmo e o paganismo. O monoteísmo judaico se teria afirmado no ambiente
cristão sob a forma de monarquianismo; e o politeísmo sob a forma de arianismo
e suas variantes.
No ambiente cristão, a influência judaica encontrou duas expressões entre
o século II e III: os “dinamistas” afirmavam que o poder (dynamis) de Deus
tomara posse do homem Jesus; e os “modalistas” ou “patripassianos”
acreditavam que a única pessoa do “Pai” se revelava de “modos” diversos, de tal
maneira que o “Pai” teria sofrido na cruz. Neste sentido, o poder divino ter-se-ia
manifestado apenas numa única pessoa.
O politeísmo pagão, por sua vez, influenciou o surgimento do arianismo.
Ario, presbítero da Igreja de Alexandria, que atuou no século IV d. C. o Filho de
Deus, o “Logos” (= a Palavra), como a primeira “criatura” do Pai. Não o
colocava inteiramente ao lado das criaturas, mas o situava numa posição
intermédiaria entre Deus e o mundo. Negavam-se, com isso, a divindade do
“Logos”, sua igualdade de natureza com o Pai e sua eternidade. Daí o termo de
subordinacionismo aplicado à doutrina de Ario: quer dizer, o Filho é inferior e
subordinado ao Pai.
Havia também a influência da gnose sincretística, segundo a qual se
encarava o deus supremo como um ser que se encontra no mais perfeito
isolamento e distância do mundo. O Logos, a quem o Pai faz proceder de si
mesmo como nous (= inteligência), não é superior às emanações do ser divino
que se lhe seguem. Ao contrário, trata-se de um ser intermediário, destinado a
mostrar a distância infinita entre Deus e o mundo e a estabelecer uma ponte entre
ambos.
A oposição contra o gnosticismo foi expressamente apontada pelos Padres
do século III e formulada por eles doutrinariamente. Desta forma, a teologia
eclesiástica, por força da controversia com a gnose, foi levada a desenvolver
com maior exatidão doutrinária seu próprio conceito de Deus.
Podem-se considerar também outras raízes do subordinacionismo ariano,
como a filosofia de Fílon e o neoplatonismo de Plotino. O primeiro apresenta
uma estrutura piramidal do universo que parte de Deus e desce, passando pelo
Logos (a razão), as Potências e as Idéias até chegar ao homem e, por fim, às
coisas corpóreas. Nesta visão, Deus cria imediatamente os seres espirituais; e,
depois, mediante estes, o mundo. E, em Plotino, o Deus Uno é a origem de uma
série de emanações da qual se origina o mundo: a primeira delas é o Nous
(Inteligência), única realidade que tem origem imediata do “Uno”.

4. Significados do termo “pessoa”


4.1 Na Antigüidade
Na antiga Roma o culto etrusco da deusa Perséfone comportava uns rituais
em que se carregava uma máscara (phersu). Os romanos, mais tarde, vão adotar
o termo, usando a palavra persona (de per-sonare, quer dizer, “falar através”)
para indicar a máscara utilizada habitualmente pelos atores; e, por extensão,
designava o papel que eles interpretavam.
No século III a. C. o termo foi utilizado para indicar as pessoas
gramaticais. Mais tarde apareceu no sentido de “pessoa jurídica”, enquanto fonte
de direito. No século I antes da nossa era, o mesmo homem podia ter diferentes
personae, quer dizer, diferentes papéis sociais ou “jurídicos”. A personalidade
era algo mutável e não algo essencial.
Na Grécia o termo prosopon significa “rosto”; e também este termo foi
utilizado para indicar a máscara de teatro.

4.2 No cristianismo primitivo

Os primeiros teólogos cristãos, por exemplo Justino (II século),


individuaram, assim, na Escritura muitas passagens onde Deus dialoga consigo
mesmo (por exemplo, Gn 1,26; 3,22); mas, no lugar de interpretá-las como
ficções literárias, eles viram nisso uma maneira para indicar verdadeiras
distinções. Por exemplo, na primeira destas citações, nós lemos:

Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa


semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do
céus, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que
rastejam pela terra” (grifo nosso).

Prova disso é um interessante texto de Tertuliano (Adv. Prax. 12), que


podemos ler, a seguir:

Interrogo-te como é possível que um só fale no plural: “Façamos o


homem...” (Gen 2,26)...Se falou no plural é porque já tinha junto a
si o Filho, uma Segunda pessoa, seu Verbo, e uma terceira pessoa,
o Espírito no Verbo (grifo nosso).

Assim, para dar um nome a estas distinções dentro do mesmo Deus uno,
Tertuliano (início do III século) falou de “uma substância” e de “três pessoas”; e,
para unir em Cristo o divino e o humano, falou de uma só pessoa, ao mesmo
tempo homem e Deus (PL 2,191): dessa maneira, pela primeira vez, o termo
latino persona recebia todo o seu peso.
Hipólito (início do III século), por sua vez, foi o primeiro a utilizar o
termo prosopon para falar da Trindade.

4.3 “Prosopon”, “Persona” e “Hypóstasis”

Desde o início do século III as palavras prósopon e persona tentam


designar aquilo que distingue os Três (Pai, Filho e Espírito Santo). Pouco depois
começa o uso de hypóstasis, no Oriente.
Temos um exemplo disso em Hipólito. Vejamos um texto dele.

Cristo não disse: “eu e o Pai sou um só”, mas “somos um”.
Com efeito “somos” não se diz de um, mas de dois: ele indicou dois
prósopa (pessoas) e uma só dynamis (força). (Grifo nosso).
Quanto a Tertuliano, nós encontramos uma teologia mais rica e mais
desenvolvida. Entre outras coisas são suas as expressões trinitas (trindade), una
substantia, tres personae (uma única substância, três pessoas); e, sobretudo, a
contribuição de projetar o mistério trinitário no primeiro plano da reflexão
teológica.
Vamos considerar um texto dele, a respeito. Refere-se a Salmos 2,7: Vou
proclamar o decreto de Iahweh: Ele me disse: “Tu és meu filho, eu hoje te
gerei...”

Sobre isso, Tertuliano faz o seguinte comentário:

Far-se-ia Deus ser mentiroso se, sendo ele próprio o Filho


atribuísse (em Salmos 2,7) a outro a pessoa do Filho. Na verdade
todas as Escrituras atestam a distinção trinitária, e delas deriva
nossa prescrição: a de que não pode ser um e o mesmo o que fala,
aquele de quem se fala e aquele a quem fala.

Vamos, agora, considerar o uso e o significado do termo grego hypóstasis.


Do ponto de vista etimológico, o termo deriva do verbo hyphístamai que
significa sub-jazer. Significa, pois, o que está debaixo: apoio, sedimento,
fundamento etc.: um significado que adquire determinações ulteriores segundo o
contexto.
No uso pré-filosófico e bíblico (per exemplo Heb 1,3; 3,14; 11,1) o
sentido, em geral, é o mesmo, o da realidade que jaz sob as manifestações (a
coragem, que se exterioriza no vigor; o plano, que resulta na construção etc.), ou
também o da realidade em oposição à sombra e à imagem.
Por exemplo, em Hebreus 1,3, nós lemos; “Ele (o Filho) é o resplendor de
sua glória e a expressão do seu ser (hypostáseos)”.
Neste caso, hypostáseos (genitivo de hypóstasis) indica a “realidade”
divina expressa no Filho.
Como termo filosófico, a palavra entra na filosofia por meio dos estóicos,
que a empregavam como sinônimo de ousia: o ser primitivo, a essência enquanto
emerge e se manifesta nas coisas. No plotinismo o termo indicava as verdadeiras
e perfeitas realidades (o espírito, a alma, o Um); e era traduzido com o termo
latino substantia.
O primeiro ensaio de diferenciação entre ousia e hypóstasis se deve, na
área da teologia, a Orígenes (metade do III século). Na sua obra Contra Celso, as
Pessoas da Trindade foram chamadas pela primeira vez de hypostáseis. No
Comentário sobre João (2, 10, 75) fala de “três hypostáseis”, referindo-se, ao
Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.

5. O Concílio de Nicéia (325)


O Concílio de Nicéia condenou o arianismo no seu ponto central: a
negação da plena divindade de Jesus Cristo. Por esta razão não explicitou a
doutrina trinitária em toda a plenitude em que ela já emergia na consciência
cristã.
O Credo de Nicéia fala de Deus Pai todo-poderoso, do Senhor Jesus Cristo
e do Espírito Santo, propondo a Trindade a partir dos nomes e da perspectiva de
sua manifestação na “Economia” da salvação da humanidade. Desenvolve,
assim, o tema da homoousia (= da mesma substância) somente do Filho de Deus:
“gerado”, “não criado”, “da mesma substância” do Pai, mas acrescentando no
fim o anatematismo, quer dizer, a excomunhão, a quem, dissesse não ser ele
eterno, ou ser proveniente de outra hypóstasis ou ousia (SCHMAUS, 1977, p.
112-113).
Vê-se, então, que a palavra hypóstasis vem tomada como sinônimo de
ousia. Com efeito, até essa época, o termo não tinha adquirido o significado
técnico da teologia e doutrina posteriores.

6. A contribuição dos Capadócios

Do ponto de vista teológico, o período entre o Concílio de Niceia (325) e


o de Constantinopla (381) foi caracterizado pelos debates em torno das palavras
homoúsios e hypóstasis, e em torno da equivalência entre hypóstasis e prósopon,
ou persona.
Assim, em 382, no Sínodo de Alexandria, sob a direção de Atanásio, foi
considerada legítima a fórmula “três hypostaseis”, desde que não significasse
“três princípios, ou três deuses”, isto é três ousiai. Mas, ao mesmo tempo, era
aprovada a fórmula “uma hypóstasis”, se entendida como equivalente a “uma
ousia” (GOMES, 1979a, p. 260).
Além desta questão terminológica, desenvolve-se no mesmo período, a
doutrina sobre o Espírito Santo. Havia obscuridade a respeito. O termo “Espírito
Santo” designava, não raramente, a natureza divina, ou o dom da graça. Nem nos
autores ocidentais (Novaciano), nem nos orientais (Orígenes) havia noções
bastante claras quanto à personalidade divina do Espírito Santo e sua
consubstancialidade com o Pai e o Filho.
Aos Padres Capadócios coube realizar a elaboração filosófica e doutrinária
desses conceitos. Chamam-se “Capadócios” pela região onde eles nasceram (a
“Capadócia”, situada na atual Turquia) e atuaram, no século IV: e correspondem
aos nomes de S. Basílio, S. Gregório de Nissa e S. Gregório Nazianzeno.
Basílio define ousia como “o que é comum a todos os indivíduos da mesma
espécie”. Mas esta ousia, para existir realmente, precisa possuir os caracteres
individuantes (idiotetes) que a determinam. Acrescentando à ousia estes
caracteres, tem-se a hypóstasis, a saber, o indivíduo determinado existente a parte
(to kath’exaston).
Em Deus há uma única substância (ousia) em três hypostáseis (pessoas),
que possuem em comum a substância mas se distinguem pelos caracteres
individuantes: mya ousia, tréis hypostáseis é a expressão característica de São
Basílio.
Além disso, Basílio ensinou resolutamente em seus escritos a divindade e
consubstancialidade do Espírito Santo.
Gregório Nazianzeno, por sua vez, usa esta outra expressão: Mya fysis en
trisin idiótesin (uma natureza em três individualidades” (Orat. XXXIII, 16).
Basílio e Gregório Nazianzeno preferem evitar o termo prosopon pelo seu
significado habitual de “máscara”, “aspecto externo”.
Caráter próprio do Pai é a agennesia (não geração); do Filho a gennesia (a
geração) e do Espírito Santo a expouresis (procissão) ou expempsis (envio,
emissão). Gregório Nazianzeno é o primeiro a designar as diferenças entre as três
Pessoas Divinas com esta terminologia (Orat. 25.16). Além disso, professa clara
e formalmente a divindade do Espírito Santo: dele é, pois a expressão “Espírito
Santo e Deus” (apud BOSIO, 1964, p. 73. 149).
Quanto a Gregório Nisseno (335-394), na mesma linha de interpretação.
Os Capadócios admitem, pois, um só Deus, em três pessoas distintas,
consubstanciais entre elas. Elas possuem unidade de substância, de operações, de
vontade e de ação. Para distinguir as “três” (Pai, Filho e Espírito Santo), eles
utilizam o termo hypóstasis; e, para afirmar sua unidade, servem-se do termo
ousia. Eles, pois, definem ousia como natureza, ou substância comum; e
hypóstasis como o aspecto individual de determinação e de distinção. Dessa
maneira, o Pai é afirmado na sua característica de princípio, não gerado; o Filho
como o gerado e o Espírito Santo como aquele que procede do Pai através do
Filho. Daí nasce a fórmula mya ousia, tréis hypostáseis (uma substancia, três
hipóstases.
As intenções do Concílio de Nicéia foram, assim, expressas de forma melhor,
chegando a aplicar a noção de “consubstancialidade” à terceira hypóstasis divina
(o Espírito Santo) contra os assim-chamados “pneumatômacos”
(etimologicamente “inimigos do espírito”), os arianos que negavam a divindade
do Espírito Santo.
O Concílio de Constantinopla de 381, com a definição da divindade do
Espírito Santo, podia, assim, retomar e aperfeiçoar o símbolo de Nicéia, fixando
as estruturas fundamentais do dogma trinitário de maneira substancialmente
definitiva.
7. A questão cristológica

Resolvida, em Constantinopla (381), a questão “trinitária”, aparecia, agora, a


questão cristológica. Em outros termos, era necessário responder como se
associavam em Cristo a humanidade e a divindade.
Na base das controvérsias cristológicas, encontram-se duas escolas de
tendências opostas: aquela de Alexandria ressalta a divindade e a unidade da
pessoa de Cristo. A preocupação pela unidade, nas suas afirmações mais ousadas,
irá desembocar no monofisismo (etimologicamente “uma só natureza” physis),
para o qual a humanidade de Cristo é “absorvida” na divindade. Representante
desta corrente é Êutiques, de Constantinopla.
A escola de Antioquia, por sua vez, ressalta a distinção das duas naturezas até
considerar o Verbo (Filho de Deus), por um lado, e o homem Jesus, por outro,
como duas pessoas distintas. Representante desta outra tendência será Nestório,
patriarca de Constantinopla, que tinha sido, antes, monge em Antioquia. A
doutrina por ele professada recebe, pois, o nome de “nestorianismo”. Nestório
afirmava que, na união entre o Verbo e Jesus, cada natureza (ousia, ou
hypóstasis) possui a própria pessoa (prosopon): e, dessa união, nasceu uma
terceira “pessoa” (prosopon), que é a pessoa de Jesus. Conseqüentemente, há
apenas uma união “moral” entre o Verbo e Jesus; não morreu o Deus encarnado,
mas apenas o homem Jesus. O prosopon da união não é o mesmo prosopon do
Verbo antes da Encarnação. As ações da pessoa de Cristo não podem ser
atribuídas ao Verbo. Maria não pode ser chamada de “mãe de Deus” (theotókos),
mas apenas “mãe de Cristo” (Xristotókos).
Como se vê, Nestório usava o termo prosopon para falar da “pessoa”; e
hypóstasis era, para ele, sinônimo de ousia (natureza). Nestório ressaltava a
humanidade plena de Jesus em face de todas as mutilações e reduções: ele via na
cristologia alexandrina um perigo desse tipo.
O interesse histórico-salvífico devia levar a uma formulação da doutrina em
que ficasse clara a união entre Deus e o homem, realizada em Cristo. De fato, se
Cristo não fosse homem, não representaria a humanidade; e, se não fosse Deus, a
salvação divina não aconteceria. Nesta formulação, se, por um lado, Nestório
ressaltava a distinção entre o humano e o divino em Cristo, Cirilo, por outro lado,
ressaltava a unidade que ele descreve mediante as expressões “uma única
natureza (physis, ou hypóstasis) do Verbo feita carne”.
Diante da rivalidade entre as duas escolas e os dois patriarcas, o Papa
Celestino encarregou Cirilo de aplicar as decisões de um Sínodo de Bispos
realizado em Roma em 430, em que foi declarada heterodoxa a doutrina de
Nestório e legítimo o título de “mãe de Deus” (theotókos), aplicado a Maria.
No ano seguinte, o nestorianismo foi novamente condenado no Concílio de
Éfeso (431), que confirmou o título de theotókos, aplicado a Maria, em
conformidade com uma carta (a segunda) de Cirilo a Nestório. Só no ano de 433,
porém, chegou-se a uma união real entre os teólogos antioquenos e alexandrinos,
graças aos esforços de João de Antioquia para restabelecer a paz. De fato, os
termos usados por Cirilo que falavam de “uma única natureza” em Cristo,
podiam ser interpretados como monofisismo, no sentido acima indicado. Além
disso, ele usava os termos physis e hypóstasis indiscriminadamente, tanto para
designar a natureza, quanto a pessoa. É verdade que Basílio havia forjado para a
Trindade a fórmula tréis hypostáseis, mya physis; e, no início, Cirilo também
dizia tria prosopa em Deus; quanto a Cristo, porém, não se ousava dizer mya
hypóstasis: isso vai acontecer só como Concílio de Calcedônia, em 451.
Como tinha acontecido em Nicéia com relação ao dogma da Trindade, no
Concílio de Calcedônia foi proclamado o dogma cristológico. O texto do
Concílio assim se expressa:

...é preciso confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo;


perfeito na divindade e perfeito na humanidade, verdadeiro Deus e
verdadeiro homem; de alma e de corpo racional; consubstancial ao Pai,
quanto à divindade, e consubstancial conosco quanto à
humanidade;...reconhecemos um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor,
unigênito em duas naturezas, inconfundível, imutável, indivisível,
inseparável; sem se suprimir jamais a diferença das naturezas por causa da
união, antes conservando cada natureza sua propriedade e concorrendo
numa só pessoa (prosopon) e numa só hypóstasis, não partida ou dividida
em suas pessoas, mas um só e o mesmo Filho unigênito, Deus Verbo,
Senhor Jesus Cristo ...

Quanto à técnica conceitual, o Concílio renunciou ao termo physis para


designar a união, como acontecia na teologia alexandrina. Com a palavra physis,
o Concílio designa a dualidade e não a unidade. Isto supôs uma mudança de
significado do termo. Enquanto Cirilo usava o termo para significar a natureza
concreta, subsistente por si mesma como indivíduo, na acepção conciliar a
palavra recebeu o significado de essência abstrata no sentido aristotélico. Ao
invés, os termos prosopon e hypóstasis foram usados para designar o princípio
pelo qual as duas naturezas existem na pessoa do Logos divino.

8. Agostinho: o homem é pessoa

Na teologia latina, Agostinho assumiu a terminologia que já tinha sido


adotada anteriormente por Tertuliano, ao falar de “uma só essência e três
pessoas” (una essentia – tres personae), com referência à Trindade. Além disso,
ele enriqueceu para sempre a doutrina sobre a Trindade na base de seus
esclarecimentos psicológicos. Ele via, na vida do espírito humano, diversas
analogias da existência trinitária de Deus: por exemplo, a tríade “memória,
inteligencia e amor” (memória, intelligentia et amor” . Segundo Agostinho, os
atos intradivinos da geração (o Pai gera o Filho) e da espiração (o Pai e o Filho
estão na origem do Espírito) devem ser entendidos como ações espirituais de
entender e de amar.
Esta comparação entre o divino e o humano se reflete, o que nos interessa
particularmente, na aplicação da palavra “pessoa” também ao homem.
Com a intenção de encontrar um termo que se possa aplicar distintamente ao
Pai, ao Filho e ao Espírito Santo sem correr, de uma parte, o risco de fazer deles
três deuses e, de outra parte, sem dissolver a sua individualidade, ele mostra que
os termos “essência” e “substancia” não têm essa dupla virtude. Ela, pelo
contrário, pertence ao termo grego hypóstasis e ao seu correlativo latino persona
(pessoa), o qual “não significa uma espécie, mas algo de singular e de individual
(De Trinitate VII, 6. 11). Analogamente este termo aplica-se também ao homem:
“Cada homem individualmente é uma pessoa” (singulus quisque homo una
persona est).
Vamos ver diretamente um texto de Agostinho, a respeito:

Estas três realidades (memória, entendimento e amor) estão no homem,


não são o homem...Uma pessoa, quer dizer cada homem singular tem em sua
alma estas três coisas...Porém podemos acaso dizer que a Trindade está em Deus,
como uma coisa de Deus, sem ser Deus?....Nada pertence à natureza de Deus que
não pertença à Trindade; e as Três Pessoas são uma essência, mas não à maneira
como o homem individual é uma pessoa (De Trinitate 15,7.12; grifo nosso).

Voltando à analogia de “memória, entendimento e amor”, podemos


perguntar qual é o lugar do homem onde se encontra essa imagem de Deus, para
S. Agostinho. Essa imagem não está nem no “homem exterior”, nem na
comunidade familiar, mas na natureza espiritual (secundum rationalem
mentem).De fato, o que dá originalidade ao pensamento de Agostinho é a
perspectiva essencialmente interior. Seu princípio inspirador é, pois, o seguinte:
“Não saias de ti, volta-se para ti mesmo, a verdade habita no homem interior”
(Noli foras ire, inteipsum redi: in interiore homine habitat veritas) (De Vera
religione, 39, 72).
Em suma, a contribuição de Agostinho é decisiva em dois pontos de vista:
a descoberta da interioridade e a passagem analógica do conceito de pessoa em
Deus à idéia de pessoa aplicada ao homem.
A descoberta da interioridade leva o pensamento cristão à certeza de que o
eu-pessoa é o centro de decisões livres.
Se compararmos a evolução do significado do termo “pessoa”, seja na
língua grega, como na latina, podemos concluir que se encontra um conteúdo
exatamente oposto. Antes “pessoa’ indicava as várias identidades que podiam ser
aplicadas a um ser humano, em diferentes situações. Mas, no vocabulário cristão,
o termo pessoa passa a indicar a irredutível identidade e unicidade de um
indivíduo. “Pessoa”, indica, pois aquele centro único de atribuição ao qual fazem
referência todas as ações do indivíduo que as unifica em sentido sincrônico,
permanecendo diacronicamente “na base”, no “substrato” delas. È interessante, a
esse respeito, considerar o sinônimo de pessoa: “subsistência”, que, ao pé da
letra, significa, pois “o que está debaixo”.
Isso aparece, de maneira mais clara, com a clássica definição que Boécio
fornecerá, nos termos de “substância individual de natureza racional” (naturae
rationalis individua substantia). A existência humana é, pois, uma existência
substancial, que existe em si e para si; e é ainda mais verdade que a racionalidade
é essencial ao homem. Mas esta definição não pode ser aplicada na teologia
trinitária porque ela coloca em primeiro plano o ser em si (aseidade) e não a
interrelação (o ser para, esse ad); nem pode ser utilizada na cristologia, pois não
permite pensar o ser-em-outro que é próprio da natureza humana de Cristo.
No fundo a definição de Boécio acaba levando o termo “pessoa” a ser
aplicado nos séculos sucessivos quase que exclusivamente ao homem.
Por outro lado, a matriz “teológica” do uso do termo levava a aplicar ao
homem, “imagem e semelhança” de Deus, algumas propriedades divinas: a
inteligência, o amor, a liberdade, a espiritualidade; e, particularmente, o
reconhecimento de uma sacralidade que é fundamental para reconhecer a
dignidade da pessoa humana.

Conclusão
As conseqüências destas afirmações atingem outras áreas, particularmente
a ética e o direito, e encontram contínuas, novas e inesperadas aplicações. Por
exemplo, a quem vamos aplicar o conceito de pessoa? A todos os homens?
Também aos índios, aos negros, às mulheres, às crianças, aos pacientes em
estado terminal, aos embriões?
Parece que os atuais desafios dizem respeito mais às aplicações da
biotecnologia. O problema é complexo e de não fácil solução, especialmente na
aplicação da cada caso. O Direito entra em tudo isso, particularmente no seu
ramo do Biodireito, cujos princípios são o respeito à vida, à dignidade da pessoa
humana, à liberdade individual, à segurança, à proteção da saúde etc. Para a
solução destes problemas, porém, não se pode esquecer a descoberta do valor da
pessoa humana em nossa cultura: o que foi objetivo deste estudo. O
esquecimento deste valor, com suas implicações também jurídicas, seria uma
volta ao passado, onde o homem era reconhecido apenas como espécie e não
como indivíduo: ou pior, considerando as atuais possibilidades tecnológicas,
colocaria em risco a mesma existência da espécie humana e até do planeta Terra.

Bibliografia

A BÍBLIA DE JERUSALÉM. Edição Revista. São Paulo: Paulinas, 1985.


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