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Disputa Entre Discursos:: Jornalismo e A Violência Contra As Mulheres

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Mayra Rodrigues Gomes

A RTIGO
DISPUTA ENTRE
DISCURSOS:
jornalismo e a violência contra as
mulheres

Copyright © 2018 MAYRA RODRIGUES GOMES


SBPjor / Associação
Brasileira de Pesquisa- Universidade de São Paulo, São Paulo – SP, Brasil
dores em Jornalismo ORCID 0000-0001-7915-1618

DOI: 10.25200/BJR.v14n3.2018.1033

RESUMO - No presente artigo, trazemos parte dos resultados de pesquisa sobre o


tratamento dado, pela produção jornalística, à violência contra as mulheres. A pesquisa
dirige interrogações aos discursos que circulam sobre o assunto a cada eclosão de
brutalidade. Pretende apreender o papel do jornalismo em uma cultura onde é possível
sair em defesa do respeito às mulheres e, ao mesmo tempo, criminalizar a vítima pelos
abusos sofridos. Essa perspectiva de investigação demanda referenciais teóricos e
metodológicos sobre discursos, como, entre outros, os de Dominique Maingueneau,
Patrick Charaudeau e Eni Orlandi. Constatamos que a produção jornalística é pouco
cuidadosa quanto à depuração dos fatos relatados em matérias sobre os casos de abuso
das mulheres, assim corroborando antigos preconceitos.
Palavras chave: Jornalismo. Discursos. Violência. Estupro. Mulheres.

DISPUTES BETWEEN DISCOURSES:


journalism and violence against women

ABSTRACT - In this paper we will present partial results from a study on how
journalistic production treats violence against women. It questions the discourses
circulating around this subject for each outbreak of violence. We intend to grasp the
role of journalism in a culture that claims to defend women yet also criminalizes
the victims of abuse. This investigative perspective draws on theoretical and
methodological approaches of discourse such as those from works by Dominique
Maingueneau, Patrick Charaudeau and Eni Orlandi, among others. We found that
Journalistic production fails to clarify facts used in reports on violence against
women, thereby upholding old prejudices.
Key words: Journalism. Discourses. Violence. Rape. Women.

916 Licença Creative Commons Atribuição SemDerivações-SemDerivados 4.0 Internacional


(CC BY-NC-ND 4.0). DOI: 10.25200/BJR.v14n3.2018.1033
DISPUTA ENTRE DISCURSOS

DISPUTA ENTRE DISCURSOS:


periodismo y violencia contra las mujeres

RESUMEN - En el presente artículo, presentamos parte de los resultados de investigación


sobre el tratamiento dado, por la producción periodística, a la violencia contra las
mujeres. Ella dirige interrogantes a los discursos que circulan sobre el asunto a cada
eclosión de brutalidad. Se pretende aprehender el papel del periodismo en una cultura
donde es posible salir en defensa del respeto a las mujeres y al mismo tiempo criminalizar
a la víctima por los abusos sufridos. Tal perspectiva de investigación demanda los
referenciales teóricos y metodológicos escogidos, a saber, los de los discursos por la
óptica de Dominique Maingueneau, Patrick Charaudeau y Eni Orlandi. Como conclusión
central, se constató que la producción periodística es poco cuidadosa en cuanto a la
depuración de los hechos relatados en materias sobre casos de abusos de mujeres, de
forma a respaldar viejos preconceptos.
Palabras clave: Periodismo. Discursos. Violencia. Violación. Mujeres.

1. Introdução

Neste artigo, apresentamos parte dos resultados de ampla1


pesquisa sobre o tratamento dado, pela produção jornalística, à
violência contra as mulheres, sobretudo a de caráter sexual. Assim
sendo, ela se apoia tanto no relato dos casos de violência, pela mídia,
quanto no relato das manifestações públicas contra a violência.
A pesquisa é conduzida por interrogações dirigidas aos
discursos que circulam sobre o assunto, os quais afloram e
transitam na esfera pública a cada eclosão de brutalidade contra as
mulheres. Presumimos que tal estudo possa indicar o ponto em que
nos situamos em meio à ambiguidade de nossos dias: de um lado,
multiplicam-se as leis em defesa das mulheres, as prédicas pelos
seus direitos; de outro, há constantes agressões contra as mulheres
e há discursos que responsabilizam as vítimas pelo abuso sofrido.
A principal motivação para a pesquisa foi a constatação do
estado contraditório que brota do confronto entre legislação e prática
social, entre novos princípios e hábitos arraigados. Essa situação
paradoxal é constatável em nível mundial, consolidando a relevância
social do tema abordado.

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Mayra Rodrigues Gomes

Em termos de legislações que procuram resguardar as


mulheres, constituem marcos, em nível internacional, a Primeira
Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada no México em 1975, da
qual se irradiaram medidas de contenção das formas de discriminação
das mulheres e, posteriormente, a convenção da Organização dos
Estados Americanos (OEA) de 1994, donde brotaram medidas para
prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher.
O Brasil esteve acompanhando e apoiando esses passos,
ainda que timidamente, tendo criado, em 1985, as Delegacias da
Mulher que foram gradativamente ampliadas. Aprovou, em 2006, lei
especial para conter e prevenir a violência familiar e doméstica contra
a mulher. Trata-se da lei nº 11.340/2006, popularmente conhecida
como Lei Maria da Penha2, um marco em defesa das mulheres.
Mais recentemente, algumas leis vieram corresponder ao
propósito de defender as mulheres no que tange a violência mais
comum em nosso quadro social, a saber, o estupro3.
Um passo de grande importância foi dado com a lei nº
13.104, de 9 de março de 2015. Ela “Altera o art. 121 do Decreto-Lei
nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para prever o
feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio,
e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o
feminicídio no rol dos crimes hediondos” (Presidência da República,
Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/L13104.htm).
Contudo, os casos de violência sexual em nossa
contemporaneidade de certa forma desmentem a progressão que
as leis prometem. Casos, em todos os graus de desrespeito, têm
ocorrido e suscitado disputas nas redes sociais, manifestações
públicas em passeatas, tensões entre os que argumentam a favor ou
contra as mulheres etc.
Em relação aos casos brasileiros de violência contra as
mulheres, recorremos aos dados do Sistema de Informações sobre
Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde (www.sim.saude.gov.br),
que apontam o índice de 13 assassinatos de mulheres por dia, e aos
dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea – www.ipea.
gov.br), que mostram panorama em que uma mulher é violentada
a cada 11 minutos. O levantamento do 10º Anuário Brasileiro de
Segurança Pública (www.forumseguranca.org.br/publicacoes/10o-
anuario-brasileiro-de-seguranca-publica) confirma esse quadro ao
revelar a cifra de cinco estupros por hora em 2016.

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Sintomaticamente, adota-se, genericamente, a terminologia


“cultura do estupro” para designar a condição brasileira. Tomamos,
neste trabalho, a definição da doutora em direito, ativista de direitos
humanos e historiadora dos direitos das mulheres, Cynthia Semíramis
Machado Vianna:

Uma expressão que vem se tornando bastante frequente


quando se fala em violência contra mulheres é que vivemos
em uma ‘cultura do estupro’, na qual a sociedade incentiva a
violência sexual contra mulheres. Porém, essa visão é bastante
restrita para os dias atuais, embora fosse perfeitamente
compreensível na época de sua criação, que ocorreu nos
grupos de sensibilização das décadas de 1960 e 1970 (Vianna,
2013, para. 1).

E a autora se estende na referência aos trabalhos que dão


origem ao termo:

O grupo New York Radical Feminists destacou-se nessa área,


produzindo palestras e conteúdo que inspiraram cineastas e
escritoras. Dentre os trabalhos produzidos merecem destaque
o documentário Rape Culture (Cultura do estupro), de Margaret
Lazarus e Renner Wunderlich, e o livro de Susan Brownmiller
Against Our Will: Men, Women and Rape (Contra a nossa
vontade: homens, mulheres e estupro), ambos de 1975 (Vianna,
2013, para. 5).

Tanto no passado como atualmente, o uso da terminologia


é perturbador porque remete a certa constância, a uma situação de
fato, aparentemente insuperável. A própria expressão é causa de
inquietação, pois alude a uma naturalização dos estupros.
Interessa, pois, mapear a situação de abuso, enquanto
assunto circulante nos dispositivos de informação. Supomos que com
esse mapeamento estaríamos no rastro de ideários que se cruzam e
se chocam, de fato, em uma cultura.
Assim, chegamos a um tema de pesquisa relevante do ponto de
vista social, pois transita pelo centro de lutas por respeito e equidade,
e porque acena com a possibilidade de dados que contribuam para
a superação de conflitos. Por outro lado, ele é igualmente relevante
em termos da observação do que se passa especificamente no
jornalismo – nosso ponto de inflexão a ser exposto mais adiante. Tal
observação promete a aquisição de conhecimento sobre o próprio
jornalismo e sobre seu papel social por meio do exame dos seus
modos de exercício.
Uma questão paira sobre o conjunto das investigações. É
possível que novos discursos sejam constrangidos pelos antigos

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e culturalmente consolidados? Supomos que não haja hegemonia


e as assertivas a respeito da violência contra as mulheres sejam
atravessadas por várias, ou muitas, perspectivas éticas. Contudo,
suspeitamos que concepções afeitas a destituir as mulheres tenham,
inconfessavelmente, forte presença na cultura brasileira. Interessa,
pois, no estudo que desenvolvemos, um levantamento das diversas
falas sobre o tema, falas que transitam por nossas redes de informação
e ecoam o espírito de uma comunidade.

2. Aporte teórico, metodologia e corpus

No Brasil, ao final de 2016, houve chocante matança,


na cidade de Campinas, de toda uma família pelo pai/ex-marido
que em seguida se suicidou. Detalhes do caso podem ser
acompanhados no G1, portal de notícias da Globo. Sítio: g1.globo.
com/sp/campinas-regiao/noticia/2017/01/familia-e-morta-em-
chacina-durante-festa-de-reveillon-em-campinas.html, 1º jan.
2017, acesso em 2 jan. 2017.
O assassino deixou carta em que, ao expor seus motivos,
expõe também intenso ódio às mulheres. Houve quem achasse, fato
mencionado pela matéria supracitada, que ele tinha razões para seu
procedimento, em virtude de trâmites do processo de separação que
o impedia de visitar o filho.
A responsabilização das mulheres pelos crimes contra elas
é um traço constante nas mídias em geral, ou melhor, em nossa
cultura. Esse fato, tantas vezes discutido, reconhecido ou contestado,
exemplificado pelo massacre de Campinas e as reportagens sobre
esse acontecimento, estimula a presente investigação. Confirma a
necessidade de averiguar, sempre, como anda, afinal, o respeito a
que as mulheres fazem jus e que as leis cobram.
Essa responsabilização é assunto central do presente artigo4,
orientado, assim, pelo tipo de investigação proposta em estudos
de caso, com atenção a dimensões qualitativas, quantitativas,
comparativas e avaliativas. Ao mesmo tempo, é norteado por
universos conceituais, próprios às reflexões sobre o relato dos
acontecimentos a partir de uma perspectiva discursiva.
A escolha de manter o foco em discursos e, assim,
privilegiando a análise de discurso, se faz porque, tomados nos
sentidos consagrados por Dominique Maingueneau e Patrick

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Charaudeau, referenciais teóricos e metodológicos, os discursos


constituem o lugar onde se materializam as ideias que fundamentam
uma cultura, ideias que procuramos resgatar aqui.
“O discurso circulante é uma soma empírica de enunciados
com visada definicional sobre o que são os seres, as ações, os
acontecimentos, suas características, seus comportamentos e os
julgamentos a eles ligados” (Charaudeau, 2006, p. 118).
Os discursos circulantes, sempre em mutação numa cultura,
constituem aquilo de que se alimentam as conversações, assim como
as mídias e sua produção, uma vez que dão o tom do que interessa a
uma comunidade e o modo de falar sobre esses interesses.
Essa compreensão do papel dos discursos na formação dos
indivíduos e, portanto, na atualização dos processos comunicacionais
norteia nossa leitura e interpretação dos produtos midiáticos
relacionados ao tema da pesquisa.
Segundo essa concepção, para efeitos de análise discursiva é
preciso dar atenção a marcas específicas, manifestas em vocabulários
que evocam ideias preconcebidas e frases que induzem a sentidos
implícitos, carregando o tom e as idiossincrasias de um ideário.
Por isso, a investigação é conduzida pela concepção de
Dominique Maingueneau segundo a qual uma simples palavra não
pode pesar, para análise de discurso, como unidade suficiente.
Contudo, como ponto de cristalização semântica de um discurso ela
tem inequívoco valor.

Mas seria errado pensar que, em um discurso, as palavras não


são empregadas a não ser em razão de suas virtualidades de
sentido em língua. Porque, além de seu estrito valor semântico,
as unidades lexicais tendem a adquirir o estatuto de signos
de pertencimento. Entre vários termos a priori equivalentes,
os enunciadores serão levados a utilizar aqueles que marcam
sua posição no campo discursivo. Conhecemos, por exemplo,
a voga extraordinária que teve uma palavra como estrutura na
crítica literária dos anos 1960 em contextos em que sistema,
organização, totalidade, ou, mais trivialmente, plano, teriam
dito a mesma coisa. É que a restrição do universo lexical é
inseparável da constituição de um território de conivência
(Maingueneau, 2008, p. 81).

Ao mesmo tempo, somos instigados e amparados pelas


palavras de Eni Orlandi (2007):
“Há um modo de estar em silêncio que corresponde a um
modo de estar no sentido e, de certa maneira, as próprias palavras
transpiram silêncio” (Orlandi, 2007, p. 11).
As reflexões teóricas de Orlandi mostram-nos um silêncio

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fundador, base lógica da produção de significação, pano de fundo


para as significâncias, e a política do silêncio, que abriga dois outros
tipos: o silêncio constitutivo e o silêncio local.
O silêncio local diz respeito a interdições, como a da
censura, vindas do espaço social, a um tempo e lugar e a serviço das
articulações de poder.
Já o silêncio constitutivo remete ao fato de que um dito,
necessariamente, faz apagamento de possíveis ditos não realizados.
Na realidade, um dito camufla outros dizeres, ou sentidos, que
poderiam emergir, mas permanecem silenciados. Esse silêncio deve
ser pensado a partir do que ele evoca, ou convoca, uma vez que não
deixa marcas específicas no texto, não deixa palavras documentais.
Com essa bagagem, encetamos a aventura de procurar frases,
expressões, palavras significantes em relação ao tema escolhido e às
hipóteses conjecturadas, dentro do espaço constituído no corpus,
como objeto de escrutínio.
A fim de constituir fonte segura para a pesquisa, é preciso
que o corpus apresente um conjunto estável de produtos a serem
examinados, que sejam, ao mesmo tempo, socialmente relevantes
pelo seu peso na esfera pública. Para responder a essas exigências,
evitando o intercâmbio fluido, muitas vezes transitório, das
produções nas redes sociais e no universo online, elegemos o
jornalismo impresso e suas matérias como ponto de ancoragem. Uma
vez que o concebemos como lugar de registro e memória dos fatos,
lugar de embate e negociação de ideias, ele se mostra como espaço
adequado aos nossos propósitos.
Ainda no desenho do corpus, procurando focar a investigação,
constituímos uma amostragem da produção jornalística, por duas
escolhas. Uma escolha, relacionada ao veículo e balizada pela mais
expressiva tiragem, nos endereçou aos discursos sobre o tema de
pesquisa veiculados pelo jornal Folha de S. Paulo. Outra escolha,
orientada por casos notórios que transitam com certa controvérsia e
persistência nas mídias, ocupando diversos espaços de comunicação
e informação, nos direcionou para algumas ocorrências em destaque.
Assim, no presente artigo, focamos os relatos, por meio das
matérias da Folha de S. Paulo, sobre o caso do estupro coletivo de
jovem de 16 anos em uma comunidade da zona oeste da cidade do Rio
de Janeiro, em 21 de maio de 2016, como ponto de convergência de
nossas investigações. Tomamos esses relatos na duração relacionada
à sua maior constância nos jornais, a saber, entre 27 de maio, data da

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primeira matéria veiculada, e 18 de junho, data de matéria referente


ao encerramento dos trabalhos investigativos da polícia.
Além das matérias a serem analisadas, elaboramos
levantamento das opiniões, também sobre o referido caso, que
surgiram na seção Painel do Leitor, no mesmo espaço de tempo.
Consideramos que as cartas direcionadas ao jornal assinalam
discursos circulantes sobre o caso. Ainda que o veículo possa interferir
na expressividade desses, por fazer uma escolha dentre o grande
número de cartas que recebe, um índice dos quadros discursivos
acaba, automaticamente, por emergir.

3. Panorama do corpus e os dados obtidos

Tendo em mente os dados estatísticos até aqui visitados e o


instrumental teórico que nos respalda, avançamos com a descrição, passo
a passo, das matérias jornalísticas e das cartas que compõem o corpus.
Fizemos levantamento de matérias jornalísticas e das cartas
desde 21 de maio, data da ocorrência do estupro, até final de junho,
após o indiciamento dos culpados no dia 17, com as palavras chave:
estupro, violência, mulher e mulheres. As matérias só começaram a
ser veiculadas depois que vídeo do estupro foi divulgado nas redes
sociais, no dia 24 de maio, e depois que a vítima deu queixa no dia
26 de maio. Assim, a primeira matéria data do dia 27 de maio.
Chegamos a um total de 56 matérias, das quais 30 pertencem
ao Primeiro Caderno, nove na primeira página. No caderno Cotidiano
encontramos nove, no Caderno Ilustrada, 15 e mais uma matéria no
Ilustríssima. O The New York Times, caderno de circulação semanal
da Folha, veiculou uma matéria contendo os termos do levantamento.
Algumas matérias, embora tenham emergido da busca pelas
palavras chave enunciadas, não têm relação direta com o caso de
estupro assinalado. As matérias do Caderno Ilustrada e do Caderno
Ilustríssima não tratam do caso estudado, mas da ocorrência de
estupro em geral, com ênfase na violência contra a mulher. Uma
delas trata de um filme argentino, então em cartaz, que gira em torno
do estupro de uma professora.
Entretanto, todas elas frisam o prejuízo para as vítimas, a
falta de apoio, a precariedade de leis, de recursos punitivos e uma
delas, no dia 5 de junho, critica, brevemente, a posição do delegado
que encabeçou a investigação no início dos trabalhos. Certamente

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essas matérias foram motivadas pela ocorrência de 21 de maio,


embora não a descrevam ou comentem especificamente.
O caderno The New York Times trata de casos de estupro nos
Estados Unidos, em especial de um estupro no meio universitário. Foi
mera coincidência a ocorrência desse abuso na mesma ocasião do
estupro coletivo no Brasil.
Uma matéria de 29 de maio (“Tráfico, tiro e funk marcam
cenário de estupro no Rio”) contextualiza a ocorrência, descrevendo as
condições de violência, os hábitos culturais, o tráfico de droga e o estilo
próprio de vida em muitas comunidades. Clama por medidas sociais.
No dia 1º de junho surge artigo (“Temer lança plano sem
prazo nem custo para proteção de mulheres”) motivado pelo caso em
estudo, sem tratar diretamente dele.
No conjunto, essas matérias compõem uma proposta ao
mesmo tempo vigilante e disciplinar. Como exercício de vigilância,
pedem soluções aos órgãos governamentais, enquanto apontam
suas medidas ineficazes, paliativas ou demagógicas. Como princípio
disciplinar, elas discorrem sobre leis de proteção às mulheres,
atitudes a serem tomadas e medidas preventivas.
Ao final, concentradas na descrição dos fatos e dos processos
investigativos relacionados ao caso de estupro na zona oeste da
cidade do Rio de Janeiro firmaram-se 39 matérias, incluindo nove
chamadas, na página A1, que só apresentam pequeno trecho repetido
nas matérias centrais.
A primeira matéria, em 27 de maio (“Polícia do Rio pede
prisão de quatro suspeitos”), relata que a vítima de estupro depôs à
polícia, no dia 26, após vídeo – postado no dia 24, e que a mostrava
desacordada, seminua, manuseada por homens cujas vozes
mencionavam estupro – ser divulgado nas redes. Após deposição, a
vítima fez exame de corpo de delito e tomou coquetel de remédios
contra doenças sexualmente transmissíveis.
No depoimento transcrito pela matéria, a vítima conta que
saiu de casa, no sábado à noite, para encontrar-se com um conhecido
que estava namorando. Depois do encontro não se lembrava de
mais nada até acordar no dia seguinte, em outra casa, rodeada por
33 homens armados. Quando foi deixada sozinha, vestiu roupas
masculinas que estavam por perto, pegou um táxi e voltou para casa.
As investigações da polícia avançaram a partir do vídeo que
traz rostos e vozes dos envolvidos. Com isso pode apontar, já de
início, quatro suspeitos.

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Em 28 de maio há pequena chamada na página A1 do Primeiro


Caderno, relacionada ao editorial, “Tragédia humilhante”, dedicado a
denunciar o descuido no tratamento dos casos de violência contra
as mulheres. O editorial manifesta-se, abertamente, em defesa dos
direitos das mulheres.
Nesse mesmo dia, em página interna do Primeiro Caderno,
o relato prossegue (“Polícia faz operação, mas ‘detalhe’ trava prisão
de suspeitos de estupro”) com a descrição dos acontecimentos e
a declaração de que nenhuma prisão foi feita por falta de melhor
fundamentação. Também traz depoimento da vítima que menciona
um segundo vídeo onde aparece repelindo os homens que a
estupraram.
Em 30 de maio o jornal noticiou que Alessandro Thiers,
delegado que cuidava do caso, foi substituído pela delegada Cristiana
Bento. Isto porque a defesa da vítima acusou o primeiro delegado de
tratamento machista do caso, uma vez que esse havia perguntando à
vítima se ela gostava de sexo grupal.
Um dia depois, em 31 de maio, a chamada “Delegada diz que
‘estupro está provado’ e pede prisão de 6” é seguida pela matéria, no
Primeiro Caderno, “’Estupro está provado’, diz delegada sobre crime
no Rio”. Nela é relatado o fato de que com o exame de corpo de
delito, feito somente no dia 26, não se constatou nenhuma lesão.
Contudo, Cristiana Bento afirma que não há necessidade de lesão
para comprovar estupro e que dois rapazes já tinham sido detidos,
dos seis cuja prisão fora solicitada.
Em 2 de junho, anuncia-se que o terceiro suspeito foi preso:
“Autor do selfie ao lado de adolescente estuprada é preso”.
Novamente um editorial, do dia 6 de junho, se ocupa do caso
(“Realidade brutal”). Desta vez o fato é revisitado de forma indireta,
ao criticar propostas governamentais apressadas que não “enfrentam
a inaceitável impunidade que cerca esse crime”.
No dia 7 de junho, relata-se o surgimento do segundo vídeo.
Nessa matéria, são destacadas as afirmações da delegada de que o
vídeo é prova indiscutível do estupro e de que o Estado foi negligente
com relação à vítima.
No dia 8 de junho, na matéria “Polícia do Rio tenta reconstituir
30 horas em estupro de garota”, monta-se encadeamento narrativo
dos fatos conhecidos, com pormenores sobre o trânsito dos vídeos
tirados com celulares.
O caso volta à cena em 18 de junho, “Polícia acusa 7 após estupro

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coletivo de adolescente no Rio”, quando se relata o encerramento das


investigações, em que dos sete acusados somente dois estão presos.
Com isso, encerra-se o conjunto de narrativas sobre o caso.
As matérias que relatam as etapas da investigação da
polícia não são opinativas e, apesar de, em vários momentos
trazerem declarações conflitantes, há um empenho descritivo
das situações a partir de depoimentos dos envolvidos: vítima,
violentadores e investigadores.
Malgrado os conflitos de informação – relatos de depoimentos
da vítima dizendo que acordou com 33 homens armados ao redor,
ou que acordou sem se lembrar de nada, ou que acordou com dois
homens segurando-a enquanto dois a estupravam, ou que estava
consciente e se defendeu dos agressores (o segundo vídeo mostra
imagens que confirmam essa afirmação); declaração, no primeiro
editorial, de que a jovem aparece nua e sangrando, quando o exame
de corpo delito não encontrou lesões – não há um posicionamento
comparativo dos dados. Entre a informação que se refere a órgãos
genitais feridos e a que fala sobre a ausência de lesões reside a
contradição mais gritante. Apesar disso, sequer há apontamento das
contradições e, portanto, as matérias não propõem esclarecimentos.
Na sequência de nossa pesquisa, tomamos como objeto de
observação as manifestações dos leitores na seção do jornal Folha
de S. Paulo intitulada Painel do Leitor, sempre na página A3 do
Primeiro Caderno. Com as mesmas palavras chave utilizadas em fase
anterior – a saber, estupro, violência, mulher e mulheres -, obtivemos
referências que vão de 29 de maio a 19 de junho de 2016.
Inegavelmente, as cartas são extração do que realmente
transita entre leitores, representando, ao menos parcialmente, fatias
de nosso ideário. Por outro lado, o Painel do Leitor, abriga um diálogo
constante entre leitores, jornal e seus jornalistas e/ou colunistas.
O jornal, em sua presença explícita nos editoriais e na expressão
do ombudsman, é elogiado e criticado pelos leitores. Os colunistas, por
sua vez, são objeto de escrutínio, tanto por fãs como por oponentes.
As cartas conversam com os conteúdos das colunas, respaldando,
desdizendo, corrigindo e demandando posições proativas.
Nesse diálogo amplo, nossas palavras chaves aparecem nos
dias 29 (por duas vezes) e 30 (uma vez) de maio. Em junho, obtivemos
a seguinte escala: no dia 1º, nossas palavras chave apareceram duas
vezes; no dia 2, duas vezes; no dia 3, uma vez; no dia 4, uma vez; no
dia 5, uma vez; no dia 6, uma vez; no dia 10, uma vez; no dia 13, duas

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vezes; e, finalmente, no dia 14, uma última e única manifestação.


Cabe notar que não há manifestações no Painel do Leitor até o último
dia de nosso rastreamento, no fim de junho.
Como costuma fazer no domingo, o Painel do Leitor apresenta
um quadro dos temas mais visitados pelas cartas. Assim, no dia 5
de junho, aparecem os temas: Michel Temer (16%), Dilma Rousseff
(14%) e violência contra a mulher (6%), dentre um total de 1.178
mensagens recebidas pelo jornal. Portanto, houve cerca de 70 cartas
sobre violência contra a mulher naquela semana. Apesar da intensa
crise política que abalava o Brasil, e se mostra nesse quadro, o tema
da violência contra a mulher não deixou de comparecer.
No dia 12 de junho, no entanto, temos um quadro em que
o interesse pela violência cai, pois não comparece entre os tópicos
privilegiados: Dilma Rousseff (14%), Michel Temer (12%) e Eduardo
Cunha (7%), de um total de 1.195 mensagens. Algo semelhante se
repete no Painel do Leitor do dia 19 de junho, quando os temas mais
comentados nas cartas foram: Michel Temer (15%), Lula (9%) e Eduardo
Cunha (8%), de um total de 2.853 mensagens recebidas pelo jornal.
Quanto à natureza e conteúdo das missivas, observamos, num
total de 15 mensagens, a presença de oito autores e sete autoras, fato
que assinala a presença masculina em defesa das mulheres. Por sua
vez, o tema do estupro e do abuso de mulheres aparece em subtemas.
Elencamos, por ordem de surgimento, os tópicos privilegiados.
Há superposição, ou seja, uma carta pode colocar em circulação mais
de um assunto ao mesmo tempo:
1 – Necessidade de combate ao machismo e à cultura do
estupro que leva ao abuso de mulheres: seis cartas;
2 – Espanto por ninguém ainda ter sido preso (em 28 de
maio): uma carta;
3 – Espanto pela atitude do delegado: uma carta;
4 – Alerta em relação ao medo em que vivem as mulheres:
uma carta;
5 – Em vez de novas leis, é antes necessário o cumprimento
das leis existentes: uma carta;
6 – Manifestação contra artigo de Reinaldo Azevedo: três cartas;
7 – Manifestação a favor de artigo de Reinaldo Azevedo: uma carta;
8 – Posição contra responsabilizar a situação crítica do país
pela violência: uma carta;
9 – Falta de amparo das instituições: uma carta;
10 – Manifestações contra artigo de Marcelo Coelho: uma carta.

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Mayra Rodrigues Gomes

Como se vê, são claras as posições contra a violência exercida


sobre as mulheres, em particular contra a violência sexual.
Não obstante, com o exame das cartas dos leitores, fomos
direcionados para matérias que deixamos de lado na primeira
parte deste estudo porque não tratavam, descreviam ou opinavam
sobre o estupro coletivo focalizado na pesquisa. No entanto, elas
nos interessam por também fazerem circular, ou por mobilizarem
discursos sobre a violência contra as mulheres.
Este é o caso do artigo de Reinaldo Azevedo, intitulado “O
Estupro como estandarte”, em que o autor critica comentários sobre
a cultura do estupro. Segundo ele, posições em defesa das mulheres
geram uma condição em que quase todas as atitudes de apreciação
masculina, em relação às mulheres e sua aparência, tornam-se
acintosas. Critica, também, as manifestações nas ruas que teriam se
aproveitado do caso de 21 de maio para defender inúmeras outras
bandeiras. O colunista afirma que, com esse entorno, a vítima teria
desaparecido, tornando-se pretexto para uso político. É somente com
essa última notação que Azevedo se liga ao caso de estupro coletivo,
pois seu artigo é, basicamente, sobre o corrente viés político das
manifestações, não obstante o teor da motivação (Azevedo, 2016).
Marcelo Coelho, por sua vez, é criticado pelo seu artigo “Corpos
expostos”, em que, segundo carta do leitor, ele faria colocações
preconceituosas em relação às mulheres das danças funk. O colunista, a
propósito de vídeos em que moças dançam funk, comenta, entre outras
coisas, que as moças vão “preparadas”, ou seja, sem calcinha, para os
bailes funk (Coelho, 2016). É importante notar esse núcleo central do
artigo para compreender o protesto do leitor e entender, também, que
o artigo, de certa forma, responsabiliza esses modos de ser como um
convite ao desrespeito, à desvalorização ou abuso da mulher.

4. Ponderações: uma investigação veiada de suposições

Retornando às questões que orientam nossa pesquisa, quanto à


hipótese de um ideário de criminalização que prevalece em tempos modernos,
recuperamos matéria jornalística, encontrada ao fazermos levantamento
no jornal Folha de S. Paulo, que traz dados bastante específicos, alguns
anteriormente citados, e que, de certa forma, fala por nós:

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(CC BY-NC-ND 4.0). DOI: 10.25200/BJR.v14n3.2018.1033
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‘A mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se


for estuprada’. A frase, capaz de provocar calafrios, é alvo de
concordância de um a cada três brasileiros, segundo pesquisa
inédita Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de
Segurança Pública (FBSP).
Mesmo entre as mulheres, 30% concorda com este raciocínio, que
culpa a vítima pela violência sexual sofrida.
No Brasil, uma mulher é estuprada a cada 11 minutos, segundo
registros oficiais, totalizando quase 50 mil crimes do tipo ao ano.
Estimativas apontam, no entanto, que apenas 10% dessas agressões
sexuais sejam registradas, o que sugere uma cifra oculta de até 500
mil estupros anuais.
(...) O índice de concordância com a frase que relaciona uso
de roupas provocativas com estupro sobe entre moradores de
cidades de até 50 mil habitantes (37%), pessoas apenas com
o ensino fundamental completo (41%) e com mais de 60 anos
(44%).
O índice cai entre aqueles com até 34 anos (23%) e com ensino
superior (16%).
O papel da educação no combate às agressões sexuais é
reconhecido por 91% dos entrevistados, que dizem ser possível
“ensinar meninos a não estuprar (Mena, 2016, p. 3, excerto).

O dado de um terço da população em apoio à criminalização


da vítima é suficiente para afirmarmos a concreta realidade de
uma “cultura do estupro”, ainda que não seja hegemônica. Em nossa
pesquisa, essa cultura aflora nos modos de condução da investigação
pelo delegado afastado, modos esses que supõem a responsabilidade
da vítima pela violência sofrida e são acompanhados pela resistência
ao apontamento de infratores e a prisões imediatas.
Por sua vez, a produção jornalística, nas matérias examinadas
que relatam o caso e o andamento das investigações, dá, indiretamente,
respaldo a essa cultura. Sem preocupar-se com pormenores das
apurações, ela supõe que tudo está sendo encaminhado como deve
ser, por parte dos órgãos oficiais, e que não há necessidade alguma
de oferecer à vítima, por meio do jornal, algum suporte ou defesa, no
mínimo na forma de esclarecimentos.
Contudo, esse quadro não passa despercebido e em matéria
de 6 de junho (“A cultura do estupro no jornal”) Paula Cesarino Costa,
ombudsman, fez duras críticas ao tratamento que o jornal deu ao caso.
Tais críticas mencionam leitores que reclamaram porque
as reportagens nomeiam a vítima como “a garota que diz ter sido
estuprada”. Para eles e para a ombudsman não há dúvidas de que
ela deve ser tratada como vítima de estupro. Embora do ponto de
vista jornalístico a expressão “que diz” seja recorrente como marca
de distanciamento e isenção, Paula Cesarino Costa considerou-a, no
caso, uma marca de “covardia” do jornal.
Por outro lado, a ombudsman nota e critica as inconsistências

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aqui mencionadas. Ela declara que o jornal não desenvolveu uma


abordagem em profundidade: deveria ter trazido dados mais claros para
explicar as contradições nas matérias, notas sobre as políticas públicas
possíveis, enfim, um quadro mais apurado da situação brasileira.
Ela julga que cabe ao jornal trazer outras vozes, vozes de
especialistas, para esclarecer questões que contribuam para a
superação da cultura do estupro, cultura da condenação da vítima
por princípio. Essa avaliação é colocada, certamente, em função do
bom jornalismo, de seu fazer e do compromisso ético.
Porém, o descuido com os dados, a falta de apuração,
o silêncio sobre as inconsistências no relato, como se elas não
existissem ou se existissem não merecessem atenção, não é, para
efeitos de nossa análise, um simples caso de mau jornalismo.
É procedimento da análise de discurso prestar atenção às
palavras, porque elas, para além de suas significações específicas,
imprimem sentidos interpretativos. Isto é o que notaram leitores e
ombudsman em relação à expressão reservada à vítima: “a garota que
diz ter sido estuprada”. Esse tratamento de antemão lança dúvidas
sobre a veracidade das declarações da vítima. No mesmo registro
situa-se a hesitação do jornal quanto à posição dela que ora chama
de menina, ora de moça ou jovem.
Contudo, ainda como procedimento de análise de discurso, é
preciso atentar para a ausência de palavras: para o que implica o silêncio
de uma abstenção ou para o silêncio que algumas presenças implicam,
marcando um campo de sentidos pelo descarte. Lembremos as palavras
de Orlandi sobre um modo de estar no silêncio que significa, sobre um
silêncio constitutivo que remete ao não dito pleno de sentidos.
Notamos que, em cada matéria observada, exerce-se
um jornalismo desejável – informativo, em oposição ao opinativo,
descritivo, em oposição à dramatização, objetivo, em oposição
à ficção, até mesmo com os habituais recursos discursivos para
tanto: terceira pessoa, citações entre aspas de falas dos envolvidos,
economia de adjetivos.
No entanto, para o leitor que segue, passo a passo, o
desenrolar da história pela apresentação dessas matérias, as
inconsistências vão, pouco a pouco, minando a credibilidade da
vítima, já que ela se diz e se desdiz, já que nenhum esclarecimento
sobre as discrepâncias é oferecido ao leitor.
Trata-se de uma abstenção que evoca sentidos. Pedaços de
informação incriminadora são oferecidos: ela tem 16 anos e já tem um

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filho de três anos que fica com seus pais; ela sai madrugada afora sem
compromisso de horário; ela já foi, segundo suas próprias palavras,
viciada em drogas, mas já não é mais. Para o leitor dessas lascas de dados,
ao lado das contradições não esclarecidas, há um clima que perpassa o
conjunto das matérias e o conduz à responsabilização da vítima.
Por um lado, o não esclarecimento das contradições revela
descaso típico de um posicionamento no ideário da cultura do
estupro: o veredito antes do julgamento, a desdenhar apurações. Por
outro lado, os traços de vida pessoal, jogados sem contextualização,
desenham a intenção de não adentrar pormenores da vida da vítima,
os quais a tornariam mais culpada, talvez, mas possivelmente menos
estereotipada (o tipo a levar vida pregressa, que mora nas entrelinhas
das matérias) e mais humanizada.
No que não foi dito, e fica por dizer, habitam significações
que previamente condenam essa moça, como se o abuso, qualquer
que seja, pudesse ser desculpável em algumas circunstâncias.
Contudo, nas matérias consideradas colaterais, não dedicadas
ao caso estudado, não se põe em dúvida a ocorrência de estupro nem
a condição da vítima. Elas dão como fato indiscutível uma ocorrência
em que se apoiam para reivindicações, legitimando, implicitamente,
as declarações da moça, sem atentar para contradições.
Ao mesmo tempo, com a observação dos dados da segunda
coleta, o silêncio das matérias jornalísticas é contrabalanceado pela
abordagem direta dos temas que se ligam ao caso. Em nenhuma das
cartas, ao menos dentre as divulgadas, os leitores põem em questão
a vítima e suas circunstâncias. Ao contrário, assumem que houve
uma infração a ser sanada e a ser fonte de medidas preventivas.
Essas cartas que rechaçam possíveis preconceitos, se
tomadas como representativas de nossa cultura, são um consistente
indício de mais respeito às mulheres. Verdade que talvez estejamos
lidando com a fatia, de faixa etária e educação superior, em que os
índices de concordância com a criminalização das mulheres caem.
Mesmo assim, nessa pesquisa, é nas cartas dos leitores que
mais podemos identificar discursos em disputa, sobretudo contra os
preconceitos. Uma consequência dos discursos proferidos pelo jornal,
essas cartas, ao abordarem diversas nuanças do caso, os subtemas,
arrolam os discursos que circulam e compõem nosso ideário e vêm,
ao mesmo tempo, reabilitar a integridade da vítima, redimindo-a do
silêncio com que foi retratada.

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Mayra Rodrigues Gomes

NOTAS

1 Refiro-me à pesquisa como ampla em virtude de sua


temporalidade, pois ela teve início em 2006 como eixo de um
projeto temático sobre censura apoiado pela FAPESP (Censura
em cena). Mas, também em virtude de sua abrangência, pois
tem mantido a preocupação central de rastrear processos de
supervisão, controle e exclusão, através de investigações sobre as
palavras e os discursos com que esses processos se firmam. Tal
preocupação se abre a muitas perspectivas, como a desenvolvida
no presente artigo. A bolsa Produtividade em Pesquisa, concedida
pelo CNPq, está vinculada a essa pesquisa.

2 O nome dado à lei homenageia Maria da Penha Maia Fernandes, vítima


de violência doméstica ao longo de 23 anos de casamento. O marido,
em 1983, tentou assassiná-la a tiros, deixando-a paraplégica. Maria
da Penha levou o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos
da OEA. Apesar da denúncia, o marido só foi julgado 19 anos depois.
Condenado a oito anos, ficou apenas dois anos em regime fechado.
A Lei Maria da Penha introduziu o parágrafo 9 no Artigo 129, que
dispõe sobre a criminalização de agressores de mulheres no espaço
doméstico. Com este artigo, eles podem ser presos, ter prisão
preventiva decretada e ter seu tempo de detenção ampliado.

3 A Lei nº 12.015 de sete de agosto de 2009 dispõe “Dos crimes


contra a dignidade sexual” e compreende o capítulo “Dos crimes
contra a liberdade sexual”. Em seu Art. 213, define estupro:
“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter
conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique
outro ato libidinoso” e estabelece penas correlatas. (Código Penal
Brasileiro, www4.planalto.gov.br/legislacao).

4 O artigo foi parcialmente apresentado no congresso da


International Association for Media and Communication Research,
IAMCR 2017.

REFERÊNCIAS

Azevedo, R. (2016, 3 junho). O Estupro como estandarte. Folha de


S. Paulo, São Paulo. Primeiro Caderno, p. 6. Recuperado de www1.
folha.uol.com.br/colunas/reinaldoazevedo/2016/06/1777766-o-
estupro-como-estandarte.shtml

932 Licença Creative Commons Atribuição SemDerivações-SemDerivados 4.0 Internacional


(CC BY-NC-ND 4.0). DOI: 10.25200/BJR.v14n3.2018.1033
DISPUTA ENTRE DISCURSOS

Charaudeau, P. (2006). Discurso das mídias. São Paulo: Contexto.

Coelho, M. (2016, 8 junho). Corpos expostos. Folha de S. Paulo,


São Paulo. Ilustrada, p. 8. Recuperado de www1.folha.uol.com.br/
colunas/marcelocoelho/2016/06/1779326-corpos-expostos.shtml

Maingueneau, D. (2008). Gênese dos discursos. São Paulo: Parábola


Editorial.

Mena, F. (2016. 21 setembro). Um terço dos brasileiros culpa mulheres


por estupros sofridos. Folha de S. Paulo, Cotidiano, p. 3. Recuperado
de www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/09/1815301-um-terco-
dos-brasileiros-culpa-mulheres-por-estupros-sofridos.shtml

Orlandi, E. (2007). As formas do silêncio: no movimento dos sentidos.


Campinas: Editora da Unicamp.

Vianna, C. S. M. (16 abr. 2013). Sobre a cultura do estupro.


Revista Forum [online]. Recuperado de www.revistaforum.com.
br/2013/04/16/cultura-do-estupro/.

Yin, R. K. (2001). Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto


Alegre: Bookman.

Mayra Rodrigues Gomes, doutora, é Professora


Titular do Departamento de Jornalismo e
Editoração e pesquisadora do CNPq, com Bolsa
de Produtividade em Pesquisa, PQ1. Uma
das líderes do Midiato, Grupo de Estudos de
Linguagem: Práticas Midiáticas, a professora tem
publicado livros e artigos voltados para o estudo
da produção jornalística do ponto de vista das
considerações sobre narrativa e discurso. Dentre
eles destaca-se o livro Poder no jornalismo:
discorrer, disciplinar, controlar, Edusp e Hacker
Editores. E-mail: mayragomes@usp.br

RECEBIDO EM: 22/10/2017 | ACEITO EM: 02/02/2018

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