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O Amor - Segundo Clarice Lispector

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O Amor – segundo Clarice Lispector

Article  in  Navegações · March 2016


DOI: 10.15448/1983-4276.2015.2.23300

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José Paulo Pereira

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Ensaios Navegações
v. 8, n. 2, p. 134-145, jul.-dez. 2015

http://dx.doi.org/10.15448/1983-4276.2015.2.XXxxx

O Amor – segundo Clarice Lispector


Love – according to Clarice Lispector

José Paulo Cruz Pereira


Universidade do Algarve – Algarve – Portugal

Resumo: Em “Amor”, de Clarice Lispector, lemos a forma como a vida e a escrita se cruzam,
enquanto modalidades de um encontro com o Outro no qual se suspendem os limites que separam
a lei da exceção, o saber da alteridade, o real da ficção. A sua premissa é a de uma cegueira
concebida como experiência, não apenas da insularidade e do aban-dono, do sepultamento
vivo – tal como ela é frequentemente pensada na tradição literária do Ocidente: “eu próprio o
meu sepulcro, o meu túmulo, enterrado...”, diz John Milton, no seu Samson Agonistes – mas
também, como em “Amor”, da alteridade e da transcendência, na indecisão limítrofe que marca
toda a relação imaginária. Em Água viva, essa “cegueira” expressa-se pelo sentido de um
“figurativo do inominável”. Em “Amor” é assumida na relação de identificação da personagem
principal com a figura de um cego.
Palavras-chave: Lei; Exceção; Sujeito; Alteridade; Visão; Cegueira

Abstract: In “Amor”, a short-story by the Brazilian writer Clarice Lispector, our paper reads
the way life and writing intersect, as different modalities of an encounter with the Other,
suspending the limits between law and exception, knowledge and otherness, fact and fiction.
Its premise is a state of blindness conceived not only as an experience of abandonment and
insularity, of a sepulchral livin, – often described in the Western literary tradition: “myself my
sepulchre, a moving grave, buried...”, says John Milton, in Samson Agonistes... – but also, as
in the case of “Amor”, of an otherness and transcendance which suppose the impossibility of
a clear distinction, and are also proper of all imaginary relationship. In Água Viva, that state of
blindness expresses itself in a “figuration of the unnamable”. In “Amor” it is presented by the
allegorical figure of a blind man the main character identifies with.
Keywords: Law; Exception; Subject; Alterity; Vision; Blindness

Em “Amor” – conto de Clarice Lispector em Laços se excluíam mais” (2001, p. 9-12). E porquê? Porque
de família – as fronteiras entre o sujeito e o real vacilam. haveria, então:
Um entra pelo outro adentro, para nele incorporar um
exterior que de si mesmo o descentra. Movimento de dupla Miopia mestra de erro e de inquietude. Mas ela reina
também sobre outrem, sobre vós que não sois míopes e
inscrição pelo qual se instaura, por um lado, no sujeito, sobre vós que o sois, também a vós ela apanha, vós que
uma certa alteridade pré-originária e, por outro lado, se nunca a vistes, que nunca soubésteis que ela estendia os
desloca o mundo da sua própria autoconsistência, assim seus véus ambíguos entre a mulher e vós. Ela estava ali
o subtraindo a qualquer visibilidade própria. Nos seus a invisível que separava para sempre a mulher. Como
respetivos desdobramento interno e relativa (in)decisão se fosse o próprio génio da separação. Esta mulher era
limítrofe, não é apenas a visão que – condicionada por uma outra e vós não o sabíeis. [...] O que os videntes
uma certa ficção que a cega… – de si mesma se desfasa. nunca viram: a presença-antes-do-mundo. Mas ‘antes’,
não sabendo ela que via isso, vê-lo-ia? Os videntes,
É também a lei que, na exceção em que tais limites se saberão eles que vêem? E os não-videntes, saberão eles
suspendem, se vê deslocada pela interrogação ontológica que vêem diferentemente? Os olhos, verão eles que
que eles trazem consigo. Poder-se-ia então dizer – como vêem? (Ibidem, p. 12-16)
o fará Hélène Cixous, em “Saber ver”, texto em que se
cruzam a autobiografia, a ficção e a reflexão teórica – Em “Amor”, contudo, a esta “miopia” corresponde
que “ver era [então] um crer vacilante. Tudo era talvez. uma certa “cegueira”, uma determinada figura de cego,
Viver estava em estado de alerta. [...] Ser e não ser não também presente em outros lugares da sua obra. Em Água
Exceto onde especificado diferentemente, a matéria publicada neste periódico é licenciada
sob forma de uma licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.
http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
O Amor – segundo Clarice Lispector 135

viva, por exemplo, a referência a essa cegueira resultaria nome, e então sou o mundo” (1980, p. 49). “A impressão
em fórmulas como esta: é que se não vou mais até às coisas é para não me deixar
ultrapassar” (ibidem, p. 34). Dir-nos-ia Hélène Cixous:
Estou me criando. E andar na escuridão completa à
procura de nós mesmos é o que fazemos. [...] Atrás do Elle est allée hors frontières, où le moi n’est moi que
pensamento atinjo um estado. [...] Perco a identidade comme pensée du monde et le monde n’est monde
do mundo em mim e existo sem garantias. Realizo o qu’à l’exception brillante du moi. [...] Elle a eu les
irrealizável mas o irrealizável eu vivo e o significado deux courages: celui d’aller aux sources – à l’étranger
de mim e do mundo e de ti não é evidente. [...] Minhas du moi. Celui de revenir, à elle, presque sans moi, sans
raízes estão nas trevas divinas. Raízes sonolentas. renier l’aller. Elle s’est glissée hors du moi, elle a eu
Vacilando nas escuridões. [...] Minha história é de uma cette sévérité, cette patience violente, elle est sortie
escuridão tranquila, de raiz adormecida na sua força, par décollement, par rayonnement, par dépouillement
de odor que não tem perfume. E em nada disso existe o des sens, il faut dévêtir la vue, jusqu’à la vue nue, il
abstrato. É o figurativo do inominável. (Lispector, faut ôter des yeux les regards qui demandent, comme
1980, p. 72-73, 82; sublinhados nossos) des larmes, dé-regarder jusqu’à la vue sans projet, la
contemplation. (CIXOUS, 1989, p. 27-29)
A cegueira é, aqui, o correlato de uma perda de
identidade do mundo. Se “em nada disso existe o abstrato” O que se passará, então, em “Amor”?
e se “existo sem garantias” é porque o que se vive não é o
que acede à evidência, mas antes o que lhe escapa: “hoje 1 Uma estranha “doença da vida” ...
é noite de muita estrela no céu. Parou de chover. Eu estou
cega. Abro bem os olhos e apenas vejo” (ibidem, p. 86; É “Ana”, o nome da personagem que aqui nos
sublinhado nosso). É portanto na “escuridão completa” – chega, num confronto que, consigo mesma, a projetará
ali onde nos buscamos a “nós mesmos”... – no entre-dois na forma especular do seu duplo... Ela nos surgirá,
desse “figurativo do inominável”, que se transpõem os então, na iminência de uma dispersão que – em torno da
limites do “realizável”. É, então, que “o significado” do voragem de um certo vazio, de um certo informe... – se
mundo recua e se perde da sua presença plena: se afasta diria potenciada pela fragilidade da sua ligação com o
da sua “identidade em mim”. E das sonolentas “raízes” mundo. E do primeiro dos seus perfis resultaria já, com
desta voz – que pertencem às “trevas divinas” e que, ao efeito, um primeiro sinal: o de “uma estranha doença da
mesmo tempo, “vacilam nas escuridões” – se expande vida”, associada à sua juventude...
essa espécie de cegueira criadora:
No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a
Um mundo fantástico me rodeia e me é. [...] Exorbito- raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe
me então para ser. Sou em transe. Penetro no ar dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino
circundante. Que febre: não consigo parar de viver. de mulher, com a surpresa de nele caber como se o
[...] Eis que de repente vejo que não sei nada. O gume tivesse inventado. O homem com quem casara era
da minha faca está ficando cego? Parece-me que o um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram
mais provável é que não entendo porque o que vejo filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe
agora é difícil: estou sorrateiramente entrando em estranha como uma doença da vida. (LISPECTOR,
contacto com uma realidade nova para mim e que s.d.: p. 18; grifos nossos)
ainda não tem pensamentos correspondentes, e muito
menos ainda alguma palavra que a signifique. É mais A passagem do passado ao presente supõe já a
uma sensação atrás do pensamento. (Ibidem, p. 68-70; dimensão de um certo inantecipável: “perplexamente, [...]
grifos nossos) por caminhos tortos”, ela cai num “destino de mulher”.
A surpresa de vir a caber nesse destino “como se o
Este encontro com o outro é, pois, a perder de tivesse inventado” abre, aí, para uma insuturável cisão
vista... Ele pressupõe a sensação “atrás do pensamento”. do sujeito. Entre a exterioridade que a surpresa supõe e
E o silêncio que, portanto, lhe corresponde. Ou ainda, a interioridade da sua coimplicação, na suscitação desse
como nos diria Emmanuel Lévinas, em “Linguagem e destino... Margem de incalculável que nos lembra, em
proximidade”: “o visível acaricia o olho. Vê-se e entende- Água Viva, passagens como esta:
se como se toca” (1997, p. 278). Ver não é, portanto, o
exercício de uma distância, mas o limite de todo o limite. Tenho um pouco de medo: medo ainda de me
É, em suma, nesse encontro com o outro que, em Clarice entregar pois o próximo instante é desconhecido. O
Lispector, o que aqui designamos por alteridade pré- próximo instante é feito por mim? Ou se faz sozinho?
originária se afirma: “eu me ultrapasso abdicando de meu Fazemo-los juntos com a respiração. [...] Quando ao

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imprevisível – a próxima frase me é imprevisível. l’ordre de la parole, c’est-à-dire du père. Non pas le
No âmago onde estou, no âmago do É, não faço per- père naturel, mais de ce qui s’appelle le père. L’ordre
guntas. Porque quando é – é. Sou limitada apenas pela qui empêche la collision et l’éclatement de la situation
minha identidade. Eu, entidade elástica e separada de dans l’ensemble est fondé sur l’existence de ce nom
outros corpos. (LISPECTOR, 1980, p. 9, 28; grifos du père. J’insiste – l’ordre symbolique doit être conçu
nossos) comme quelque chose de superposé, et sans quoi il
n’y aurait pas de vie animale possible pour ce sujet
Essa queda nesta “minha identidade” – que aqui me biscornu, qu’est l’homme. (LACAN, 1981, p. 111)
limita – é, simultaneamente, uma urdidura que, apesar
de supor o meu protagonismo, me permanece exterior. É, portanto, por intermédio do simbólico que todo o
Precisamente por supor um espaço de vacilação do limite corte separador se opera. O que abre o objeto investido
entre dentro e fora é que ela não se enuncia, em “Amor”, à possibilidade da circulação – da significação – é
sem uma sua irónica inscrição no registo da ficção: também que o retira da sua imediatez: a lei sob a forma
naquele “como se” da sua invenção... A queda é, portanto, da injunção do nome. Mas é o facto de a ordem simbólica
um movimento complexo. Cair num “destino” é também ser “qualquer coisa de sobreposto” – qualquer coisa que
emergir de um estado de indeterminação: cai-se para “ultrapassa a existência vital”... – que, nesse nome, nos
cima e para fora de uma noite inicial. Como se, nessa antecipa a presença da morte:
anterior e inadvertida cegueira pressuposta pela queda
– nessa espécie de invisibilidade do mundo do qual se Il faut déjà pour cela qu’ait été instauré tout un ordre
emerge... – fosse ainda preciso inscrever a sua coautoria symbolique, qui comporte que le fait qu’un Monsieur
Untel dans l’ordre social nécessite qu’on l’indique
em alguma espécie de obscura sobrevisão:
sur la pierre des tombes. Le fait qu’il s’est appellé
Untel dépasse en soi son existence vitale. Cela ne
Dela [dessa sua anterior juventude, estranha como suppose nulle croyance à l’immortalité de l’âme, mais
uma doença de vida, Ana] havia aos poucos emergido simplement que son nom n’a rien à faire avec son
para descobrir que também sem a felicidade se vivia: existence vivante, la dépasse et se perpétue au-delà.
abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes (Ibidem)
invisíveis, que viviam como quem trabalha – com
persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a
Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu É precisamente aqui – entre o imaginário e o sim-
alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se bólico, entre a vida e a morte – que se situará o que, em
confundia com uma felicidade insuportável. Criara em “Amor”, de fundamental se joga... E porquê?
troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto.
Assim ela o quisera e escolhera. (LISPECTOR, s.d.: 1.1 A ficção do “real”: um “destino de mulher”
grifo nosso) Porque o acesso ao simbólico aí nos coloca já num
certo registo da ficção. Com efeito, nem o seu “destino de
Ana emerge, todavia, não apenas de uma certa au- mulher”, nem o da existência daquela “legião de pessoas
sência da visão – bem como de uma certa invisibilidade [que], antes invisíveis”, “viviam como quem trabalha –
– mas também de uma certa privação do nome, um com persistência, continuidade, alegria” – lhe escapam...
certo silêncio. Ora, o acesso ao simbólico faz-se, na O que é então que aí – nessa ficção do seu destino... – em
construção do sujeito, pela injunção do nome. A dobra de Ana se deixa de lado? Um dos ensaios de Hélène Cixous
uma certa (com)pulsão – de um certo “X”, de um certo – “Sunday, before falling asleep. A primal scene” – nos
“it” (LISPECTOR, 1980, p. 81) – o inscreverá, então, aproximaria de uma resposta:
como lei... Simplesmente – a lei é subtrativa. Ela oblitera,
pela imposição do nome, a singularidade do “objeto” Of course there is the trap ‘man’ and the trap ‘woman’.
libidinalmente investido; interrompe – adia e desloca – Those are denominations in language and on identity
o vínculo do desejo, na instância do objeto nomeado... cards. They are only social indicatives, part of our
Como nos diria Jacques Lacan: role playing. In every individual there is a whole
complex play of femininity, of masculinity. [...] One
Le complexe d’Oedipe veut dire que la rélation evaluates with the look. It procedes through narcisism.
imaginaire, conflictuelle, incestueuse même, est [...] What gives, establishes value? We are going
vouée au conflit et à la ruine. Pour que l’être humain to see now all the system of symbolic value. [...]
puisse établir la rélation la plus naturelle, celle du We are in a system of mirrors, [...]. The family
mâle à la femelle, il faut qu’intervient un tiers, qui soit looks on. [...] One has entered the world of shadows
l’image de quelque chose de reussi, le modèle d’une that does not exist. The little girl makes the
harmonie. Ce n’est pas assez dire – il y faut une loi, apprenticeship of the shadows. (CIXOUS, 1990, p. 4-9;
une chaîne, une ordre symbolique, l’intervention de grifos nossos)

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Intuição que poderíamos, no entanto, encontrar ab oculis, na origem de “aveugle”). Poderíamos discerni-
também formulada em Água viva: la aí: numa “certa má-vontade teria levado o homem a
fechar a si mesmo os olhos”. O que implicaria, portanto
Terei de morrer de novo para de novo nascer? Aceito. – naquela “estranha doença da vida” da “juventude” de
Vou voltar para o desconhecido de mim mesma e Ana – um certo não querer saber... Uma certa “violação
quando nascer falarei de ‘ele’ ou ‘ela’. Por enquanto das leis naturais”? Sim, também: na medida em que “a
o que me sustenta é o ‘aquilo’ que é um ‘it’. Criar de
natureza” – ou o que se entenda como “o curso natural
si próprio um ser é muito grave. Estou me criando. E
das coisas”... – se baliza a partir da “cultura”. Ou ainda:
andar na escuridão completa à procura de nós mesmos
é o que fazemos. Dói. Mas é dor de parto: nasce uma na medida em que é impossível defini-la senão com
coisa que é. É-se. É duro como uma pedra seca. Mas o base nessa ficção sócio-histórico-ontológica que todo o
âmago é it mole e vivo, perecível, periclitante. Vida de simbólico pressupõe já... Hélène Cixous:
matéria elementar. (LISPECTOR, 1980, p. 46; grifos
nossos) But as poets know and keep repeating, the law holds
only to its name and by its name. [...] Elsewhere I have
O “ser” é portanto apenas a forma endurecida, said that the system that puts a keeper before the law,
mineralizada da camada exterior de uma existência ao the secret of which life (the secret of which is that
mesmo tempo perecível, periclitante. Cair num “destino there is no secret), is symbolized perfectly in the scene
where there is a sentence, like a legend or a vignette,
de mulher” significaria, assim, endurecer: entrar na lógica
a sign in front of the biblical apple that says: “Thou
da coerção exercida por este “sistema de espelhos” que a shalt not enter”. That is the other side of the law. But
família é: the family looks on. A família e, para além dela, if we do touch, we will discover that the apple has an
aquela legião de pessoas antes invisíveis. Mas significaria inside and that it tastes good. [...] That is the path I
também perder o contacto com esse âmago do ser em take in my reading of Água Viva. I could have taken
que as transformações se marcam. Entrar, em suma, it in any other text by Clarice Lispector. She says the
num mundo em que as sombras se multiplicam e a força same thing everywhere. The question of the law comes
injuntiva dos espectros intervém. Expor-se ao campo de up everywhere. (CIXOUS, 1990, p. 11-12; grifo nosso)
forças no qual o simbólico se sobrepõe... “No fundo, Ana
sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. O que se verificará, também, em “Amor”. Mas – se o
[...] Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida que aí se alcança, logo na sua abertura, é o chão de “uma
de adulto. Assim ela o quisera e escolhera” (LISPECTOR, vida de adulto”, “a raiz firme das coisas”: um “destino
s.d., p. 18). de mulher” – como é, mais exactamente, que a cegueira
No entanto, o passado de “antes de ter o lar”, afastar- e a lei se cruzam? É que, entre o passado e o presente de
se-ia ele definitivamente dessa sua “vida de adulto”? O Ana, essa cegueira que a queda indicia se reinscreve, por
movimento da queda, não transmitirá ele as condições outro lado, como Forma. Cair num destino é tropeçar no
que, na sua “juventude”, o teriam já determinado? confinamen-to, na estreiteza do visível. A ser assim, no
Diz-nos Jacques Derrida, em Memórias de Cego: entanto, por onde se deveria então fazer passar a fronteira
entre passado e presente de Ana? Como distinguir aí entre
Pecado, falta ou erro, a queda significa também que invisível e visível? Ou isentar aí a norma de uma excepção
a cegueira viola aquilo que se pode chamar aqui a a que ela se deveria opor? Como encontrar, então, o limite
Natureza. É um acidente que interrompe o curso das entre o movimento da linha que então se traça e a figura
coisas ou transgride as leis naturais. E deixa pensar, desse destino em que ela, finalmente, se fecha e detém?
por vezes, que o mal afecta, ao mesmo tempo que a De novo Derrida:
Natureza, uma natureza da vontade – a vontade de
saber [savoir] como vontade de ver [voir]. Uma má
Eis uma primeira hipótese: o desenho é cego, senão
vontade teria levado o homem a fechar a si mesmo os
mesmo o desenhador ou a desenhadora. Enquanto tal
olhos. O cego não quer saber ou antes gostaria de não
e no seu momento próprio, a operação do desenho teria
saber [voudrait ne pas savoir]: Idein, eidos, idea: toda
qualquer coisa a ver com a cegueira [aveuglement].
a história, toda a semântica da ideia europeia, na sua
Nesta hipótese abocular (aveugle vem de ab oculis),
genealogia grega, sabemo-lo, vemo-lo, consigna o ver
não tanto a partir ou pelos olhos mas sem olhos), há
ao saber. (DERRIDA, 2010, p. 20)
que entender isto: o cego pode ser um vidente, tem
por vezes vocação de visionário. (DERRIDA, 2010,
A queda indiciaria, portanto, uma certa cegueira. Em p. 10-11)
“Amor”, contudo, ela não é – ao menos literalmente –
uma privação dos olhos. Releva, antes, do que Derrida, Movimento que poderíamos reencontrar em Clarice
mais adiante, designará por uma certa abocularidade (de Lispector:

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Estou consciente de que tudo o que sei não posso do nome ou do simbólico. E, com ele, a injunção de um
dizer, só sei pintando ou pronunciando, sílabas cegas infindável recuo, diante de todo o presente pleno, induzido
de sentido. [...] Não sei o que estou escrevendo: sou pelos registos do “como se” – ou do “como quem” – nos
obscura para mim mesma. [...] Tenho uma voz. Assim
quais uma ficção real intervém. O que se passa, agora, na
como me lanço no traço de meu desenho, este é um
exercício de vida sem planejamento. O mundo não tem
vida de Ana? Que sinais haveria, dessa outra espécie de
ordem visível e eu só tenho a ordem da respiração. cegueira?
Deixo-me acontecer. (LISPECTOR, 1980, p. 11, 24;
grifos nossos) Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e
sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para
E se “o desenho” se constituisse, portanto, como o si, malcriados, instantes cada vez mais completos.
A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado
referente alegórico do movimento pelo qual, em “Amor”,
dava estouros. O calor era forte no apartamento que
Ana “se deixa acontecer”? Provinda daquela “estranha estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo
doença da vida” da sua juventude, uma certa des-look- nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que
ação – um certo não querer saber, fechando a si mesma os se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o
olhos... – nela abriria espaço a uma espécie de enxertia, à calmo horizonte. (Ibidem, p. 17; grifo nosso)
inscrição suplementar de um olhar do outro a que, naquela
“legião de pessoas, antes invisíveis”, ela se expõe agora. O que Ana nunca fará... Na sua recusa da con-
O movimento da queda implicaria, então, a necessidade templação desse calmo horizonte – desse horizonte
de uma outra “hipótese da vista”: a de uma visão com velado: situado para além das “cortinas que ela mesma
outrem... cortara”... – não será já o seu espectral pressentimento da
presença desse inominado que aí atua? Aquela privação
Segunda hipótese, enxertia do olho, enxertia de um do nome que, no seu “destino de mulher”, ela supusera,
ponto de vista [greffe d’un point de vue sur l’autre] afinal, “para sempre fora do seu alcance”? Se, abolindo a
no outro. Um desenho de cego é um desenho de cego. felicidade, ela “encontrara uma legião de pessoas, antes
Duplo genitivo. Não há aqui nenhuma tautologia
invisíveis” que “viviam como quem trabalha” é já essa
mas uma fatalidade do auto-retrato. De cada vez que
um desenhador se deixa fascinar pelo cego, de cada dimensão do “como se” – ou do “como quem” – que
vez que ele faz do cego um tema do seu desenho, aí induz uma inquietante margem de indecidibilidade.
projecta, sonha ou alucina uma figura do desenhador A sua entrada na articulação entre ver e saber dir-se-ia,
ou, mais precisamente por vezes, de alguma potência assim, acompanhada por algum inquietante pré-sentido.
desenhadora. (DERRIDA, 2010, p. 10) O da intromis-são de um certo invisível que, tanto no
ver quanto no saber, então, se deveria reinscrever...
Uma certa transitividade suspenderia aí qualquer Mantendo-se afastado desse “calmo horizonte”, o seu
diferença pretensamente estanque. Entre o fechar a si olhar dir-se-ia que evita – a fórmula é de Michel Foucault,
mesmo os olhos e a enxertia pela qual o olhar cindido em O Pensamento do Exterior – um “exterior [que] nunca
se desloca de si mesmo, se vislumbraria uma trémula se entrega na sua essência” (2001, p. 25). Uma vez que: “o
passagem. Estas “hipóteses da vista” cruzam-se, diz- exterior da lei é tão inacessível que ao querermos vencê-
nos Derrida, “sem jamais se confirmarem uma à outra, lo e penetrar nele somos votados [...] ao exterior desse
sem a menor certeza, numa conjectura ao mesmo tempo próprio exterior” (ibidem, p. 33-34). Que deslocamento
singular e geral” (ibidem, p. 9). O que aí se joga é toda então se adivinharia já? Na sua diferença consigo, uma
“a hipótese da vista, nem mais nem menos” (ibidem). série de rastos o irão prenunciando. Por exemplo:
Cruzá-las significa, portanto, a necessidade de pensar
que todo o ver é “com” outrem... Sê-lo-ia já e, desde Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha
sempre, em qualquer sua articulação com o saber.... na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam
Não há, com efeito, visão pura. Nenhuma visão plena, árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador
da luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam
ou qualquer espécie de imaculada perceção... Se o olhar
seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido
supõe a presença do outro, é já na diferença consigo que chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto
esse outro intervém. importuno das empregadas do edifício. Ana dava a
tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua
1.2 A hipótese da vista: a questão da lei... corrente de vida. (LISPECTOR, s.d., p. 17)
Emergindo de um certo ab oculis, a visão a que Ana
acede confina-a à estreiteza do visível, às limitações de Ana estende as mãos para diante: avança-as para / no
todo o “point de vue”, às prescrições de toda a enxertia. seu espaço vital. Fá-lo num gesto que veremos reinscrito,
Um certo a perder de vista se investiria, então, na instância mais adiante, na figura de um cego: “o cego interrompera

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O Amor – segundo Clarice Lispector 139

a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando – formas substitutas – àquele seu desejo “vagamente
inutilmente pegar o que acontecia” (LISPECTOR, p. 20). artístico” de outrora. O movimento do corte é, portanto,
Gesto próprio de toda a cegueira – “os cegos são seres da o de uma conformação: o de um cerceamento regulador.
queda, sempre a expressão daquilo que ameaça a ereção Mas a reversora potência de uma ameaçadora dissipação
ou a postura de pé” (DERRIDA, 2010, p. 29) – todo o instala-se. E será na vertigem de um certo vazio, no
“auto-retrato”: silêncio e no mistério de um certo inominável, que tudo
se desencadeará:
O tema dos desenhos de cego é antes de mais a mão.
Esta aventura [a sua] precipita-se, é certo, mas desta Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da
vez nas vezes da cabeça, como que para a preceder, tarde, em que as árvores que plantara se riam dela.
prevenir e proteger. Parapeito. A antecipação protege Quando nada mais precisava da sua força, inquie-
da precipitação, adianta-se ao espaço para ser a tava-se. [...] Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado
primeira a agarrar, para se lançar para diante no na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia
movimento da preensão, do contacto e da apreensão: sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da
de pé, um cego explora às apalpadelas a extensão que família distribuído nas suas funções. (Ibidem)
deve reconhecer sem ainda a conhecer – e o que na
verdade ele apreende é o precipício, a queda – e ter já Como se a contenção do seu olhar – ali confinado
franqueado alguma linha fatal, com a mão desprotegida
aos limites impostos pelos seus afazeres, pelo espaço
ou armada (a unha, a bengala, o lápis). Se desenhar um
cego é, em primeiro lugar, mostrar mãos, é dar assim doméstico ou pelo “sistema de espelhos” em que se move,
a observar o que se desenha com a ajuda daquilo com agora, o olhar do seu corpo habitante – a tivesse por um
que se desenha [...]. (Ibidem, p. 12) lado, confirmado – à medida em que iam crescendo
“árvores” – e, por outro lado, desmentido – sempre que
Ora, Ana “planta” – como vimos – apenas as sementes as árvores se riam dela... E ela fosse movida pelo espanto
que tem na mão, e não outras... E “plantar” supõe também que a ela regressa:
abrir, inserir, inscrever. Tudo se diria procedente, nesse
gesto, dessa energia de vida que lhe vem do passado – do Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava
tempo de “antes de ter o lar”... Energia que ela a tudo de espanto. Mas na sua vida não havia lugar para
comunica, com a sua mão pequena e forte... Das linhas que sentisse ternura pelo seu espanto – ela o abafava
com a mesma habilidade que as lides da casa lhe
da sua mão crescem, então, “árvores” – surge, portanto,
haviam transmitido. [...] Quanto a ela mesma, fazia
a defluente expansão das linhas com que se povoa, se obscuramente parte das raízes negras e suaves
organiza e estabiliza o seu espaço vital. O que nos faz do mundo. E alimentava anonimamente a vida.
adivinhar, na tranquilizante ancoragem trazida pelo Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.
seu destino de mulher, a subsistência de alguma íntima (Ibidem, p. 19)
desordem. É isso, no harmónico e decorativo recorte
dos dias, na sua tentativa de aperfeiçoamento e de Fazendo obscuramente parte das raízes negras e
embelezamento, que Ana vai tentando “suplantar”: suaves do mundo dir-se-ia ser, ainda, de um inominado
“mal de raiz” que se trata. Que implicações terá ele,
[...] sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo na relação de Ana com o espaço da cidade? Como se
engrossara um pouco e era de se ver o modo como inscrevem essas raízes, na diferença de Ana consigo
cortava as blusas para os meninos, a grande tesoura mesma?
dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo
vagamente artístico encaminhara-se há muito no
sentido de tornar os dias realizados e belos; com o 2 O recomeço do mundo: a sua estranha música...
tempo, o seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e
suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto É precisamente nessa “hora instável” que o
que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa inantecipável se desencadeia: Ana “saía então para fazer
se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida compras ou levar objectos para consertar, cuidando do lar
podia ser feita pela mão do homem. (LISPECTOR, e da família à revelia deles” (ibidem, p. 18; grifo nosso).
s.d., p. 18) No trajeto do bonde, é repentinamente colhida pela mais
inquietante das visões:
O movimento da “grande tesoura” com que, nas suas
mãos – tal como na “mão do homem” – ela vai moldando, Foi então que olhou para o homem parado no ponto. A
útil e decorativamente, as roupas e os dias reúne-se, assim, diferença entre ele e os outros é que estava realmente
à sua recusa da contemplação daquele calmo horizonte parado. De pé, suas mãos mantinham-se avançadas.
que os cortinados vêm a recobrir... Ambos se impõem Era um cego. O que havia mais que fizesse Ana se

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aprumar de desconfiança? Alguma coisa intranquila imposta pelo mundo visível em que entra? Unheimlich,
estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava diria Freud:
chicletes… Um homem cego mascava chicletes. Ana
ainda teve tempo de pensar por um segundo que os Esse ‘Unheimlich’ não é, na realidade, algo [de] novo
irmãos viriam jantar – o coração batia-lhe violento, ou desconhecido, mas sim algo há muito familiar da
espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, vida psíquica, que apenas dela ficou arredado através
como se olha o que não nos vê. (Ibidem; grifos nossos) do recalcamento. [...] Muitas pessoas seriam capazes
de considerar que o ponto culminante do sentimento
Que teria, no entanto, o cego de perturbador? Em de algo ameaçadoramente estranho é imaginar ser
primeiro lugar, ele estava “realmente parado”... Não só enterrado vivo. (FREUD, 1994, p. 228-330)
no espaço, portanto – como todos os que ali aguardavam
por transporte... – mas também no tempo. Como se, tendo A essa “fantasia assustadora”, a tradição literária
escapado ao tempo, ele ali ressurgisse, aos olhos de Ana, do Ocidente consagrara-a já como tema. Nela se
como que vindo de outrora: de um tempo que ela supusera assimilaria a cegueira à experiência da morte em vida:
“para sempre fora do seu alcance”. Não teria sido isso que de um sepultamento vivo. A que se juntaria, também, a
ali a teria feito aprumar-se de desconfiança? Que há de da insularidade e a da prisão: uma certa experiência do
insólito na intermitência do mordaz sorriso que alterna abandono. Lembra Derrida:
com a expressão ponderativa, abstratamente fita, da sua
seriedade? Não será o caráter informe da matéria elástica No que se poderia chamar a retórica da cegueira, esta [a
da “goma”? A expressão “um (homem) cego mascava do ‘emparedamento’] é uma das figuras típicas. A cega
chicletes” repete-se... O que se implica aí, nessa matéria de Rilke [...] diz os seus ‘olhos murados’ (vermauerten
Augen). Esses muros plúmbeos encerram na noite
informe que, incessantemente, na sua boca de cego, se
da cova (os fariseus cegos são ‘sepulcros caiados’
revolve e altera sem se fixar? O que impressiona Ana é [blanchis], o Sansão de Milton apresenta-se como um
que: morto-vivo, exilado da luz, enterrado em si mesmo
num túmulo em andamento: ‘Myself my sepulchre,
Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, a moving grave, burried...’), e enclausuram também
com os olhos abertos. O movimento da mastigação por detrás dos muros de uma prisão. (DERRIDA,
fazia‑o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir
2010, p. 47)
e deixar de sorrir – como se ele a tivesse insultado, Ana
olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma
mulher com ódio. (Ibidem; grifos nossos) Ao que se acrescentaria, também, “o isolamento
especular [que] apela então à insularidade da imagem ou
Que “desconfiança” e que “ódio” – que insulto – ainda, para reflectir o ‘abandono’ do cego e a sua solidão
a atingem, ali, naquele coração que lhe “bate violento, enlutada, a imagem da ilha: Die Blinde. Ich bin von allem
espaçado”, no peito? Que espécie de tumulto dela se verlassen. Ich bin ein Insel” (ibidem): “Fui abandonada
apodera, diante desse cego que mastigava goma na por todos./Sou uma ilha e só” – diz a cega de Rilke, na
escuridão? O que se implica, da impermanência e da sua enlutada solidão. Ou Hélène Cixous, em “Saber ver”:
incessante deformação da matéria elástica, nessa escuridão
em que o cego permanece, sorrindo sem sofrimento? Pois Estava tudo perdido. Cada passo aumentava a
não trocara ela a perturbada exaltação do seu “desejo desorientação. Ficou petreficada, priva-da da ajuda
vagamente artístico” – a “insuportável felicidade” outrora da sua estátua [a da praça, que agora deixara também
de ver]. Viu-se parada no seio do invisível. Via por
exigida pela estranha “doença da vida” da sua juventude?
todo o lado este nada pálido sem limites, era como se
Não as substituira ela pelo acerto – e pela privação – pelo
por um passo em falso tivesse entrado viva na morte.
cerceamento regulador que o “destino de mulher” em O aqui nada durava, não havia ninguém. Ela presa,
que cai lhe impõe? Não as rejeitara ela pela harmonia caída de pé na extensão insondável de um véu, e eis
e pelo aperfeiçoamento? Pelo cuidado e pela contenção tudo quanto restava da cidade e do tempo. A catástrofe
que tentara imprimir, à sua recente “vida de adulto”? tinha-se produzido em silêncio. E agora quem era ela?
Eis o “insulto”: o cego “mastigava goma na escuridão. (CIXOUS, 2001, p. 9)
Sem sofrimento, com os olhos abertos”... O que dele
fazia um signo de resistência: uma espécie de inquietante Mas o cego de Clarice é diferente: ele sorri – como
desmentido. Que seria ele senão a mais perturbadora das que acintosamente... Nenhuma enlutada solidão, nenhum
objeções à sua do destino em que coubera “como se o sentimento de perda do mundo... Se ele sorri é “sem
tivesse inventado”? Que poderia significar ele senão a sofrimento”. E se Ana “continuava a olhá-lo, cada vez
denúncia daquela ficção da sua “vida de adulto” – “ela mais inclinada [... e] uma expressão do rosto há muito
assim o quisera e escolhera”... – da abdicação que lhe é não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta,

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O Amor – segundo Clarice Lispector 141

incompreensível” (Lispector, s.d., p. 19), o que a Macabéa é, portanto, uma espécie de ausência, de
fascinará então, nesse cego que, entre sério e sorridente, quase transparente limiar: “Ela era quase impessoal,
ali se diria pressenti-la? Um cego-”vidente”, dotado de [... na] sua feiúra e anonimato total pois ela não é para
alguma secreta sobrevisão, que ali o anima ou ilumina? ninguém [...]: não tinha consciência de si e não reclamava
Porque sorri ele, no interior do seu muramento, da sua de nada, até pensava que era feliz” (ibidem, p. 25, 28).
ilha, da sua sepultura viva? Que significa ter ele “os olhos Razão pela qual – observaria Hélène Cixous:
abertos”?
Moi ‘Rodrigo S. M.’ je suis en vérité Clarice
2.1 A suspensão da lei: “à tona da escuridão”... Lispector mise entre parenthèses, et seule l’auteur
“(en vérité Clarice Lispector)” peut s’approcher de
Não representará o cego já a suspeita de que alguma ce commencement de femme. Cela est l’impossible
vertiginosa invisibilidade se inscreveria já, em todo o vérité. C’est l’indicible, l’indémontrable vérité [...].
visível? Não seria ele, enfim, a presença dessa “estranha (CIXOUS, 1989, p. 134)
doença de vida”, dessas raízes negras e suaves do mundo
às quais ela pertence? Não suporá ele o mais extremo Porquê impossível, indizível e indemonstrável?
impudor de algum obsceno autodesnudamento? De que Porque não poderia nunca haver, desse transitivismo,
movimento se trataria aqui, na aparente hesitação entre qualquer espécie de prova de existência:
homem e mulher, no transitivismo desta cena, no auge da
tensão conflitiva que marca, então, a sua vida? A julgar C’est la vérité, une femme bat comme un coeur,
dans la parentèse de la vie. Et c’est en ce point de
pelo que nos diz Hélène Cixous – em “L’auteur en vérité”,
douane où palpite indiciblement l’identité du je qui
a propósito de A Hora da Estrela, e do seu ficcionado ne peut répondre, que le monde humain se sépare en
autor “Rodrigo S. M. (na verdade Clarice Lispector)” – deux camps. Ou vous comprenez cela, ou vous ne le
ele não seria absolutamente inédito. Observa ela: comprenez pas. [...] On ne peut donner une preuve de
l’existence de ce qui est plus vrai. Le truc est de croire.
Pour arriver à parler au plus près de cette femme Croire en pleurant [...] et à ce moment-là on peut
qu’elle n’est pas, que nous ne sommes pas, que je ne habiter le monde où l’être feminin et l’être masculin se
suis pas, et que probablement, [...] l’auteur a dû trouver côtoient, s’echangent, se caressent, se respectent, sont
par hasard dans la rue ce qu’elle [“Clarice Lispector”] bien incapables de tenir le discours de la description
a fait – à moins que ce ne soit pas “elle” – c’est être le exacte des différences, [...]. (Ibidem, p. 134-135;
plus autre possible d’elle même, et cela a donné cette grifo nosso)
chose absolument remarquable: le plus autre possible
en ce cas, c’est passer au masculin, passer par homme. E porquê, uma vez mais? “Porque há masculino e
(CIXOUS, 1989, p. 129-130; grifo nosso) há feminino num e noutro” (ibidem, p. 135). Essa ideia
reforça-se em Jours de l’an. Com um elemento adicional:
Eis do que se trataria, então, em A Hora da Estrela: o da cegueira.
por um lado, de Macabéa. Quer dizer, de uma personagem
que “é antes de tudo vida primária que respira, respira, Qu’est que je vais devenir? L’auteur baissait. De
respira” (LISPECTOR, 1988, p. 19): pois ela “reduzia- moins en moins de lumière, de moi: d’elle, de lui? Plus
se a si” (ibidem, p. 6). “Uma jovem que nem pobreza personne ne pouvait le dire. Non, ce n’est pas facile
d’écrire quand la personne que l’on invite nous est
enfeitada tem” e em cuja “pobreza de corpo e espírito
extrêmement étrangère. [...] Pour se mettre à la basseur
eu [“o autor, Rodrigo S. M. (na verdade Clarice de Macabéa, Clarice Lispector avait dû se dépouiller
Lispector)”] toco a santidade, eu que quero sentir o presque jusqu’aux os – la barbe, les ongles, le souffle,
sopro do meu além. Para ser mais eu, pois tão pouco sou de vieux vêtements déchirés, c’est tout. Et la machine
eu” (ibidem, p. 27; sublinhado nosso). Por outro lado, à écrire. Il ne voyait plus personne. Le personnage,
da posição enunciativa capaz de dela nos dar conta. O l’auteur l’avait dans la peau [...]. (CIXOUS, 1990,
que impõe a Rodrigo S. M. um certo rigor: “não tenho p. 157; grifos nossos)
piedade do meu personagem principal” (ibidem, p. 19).
Pois é preciso evitar que qualquer espécie de piedade o Relação de inscrição suplementar do outro... “Rodrigo
eforme... S. M. (na verdade Clarice)” (LISPECTOR, 1988, p. 7) é,
portanto, o seu outro. Mas um outro na instância de um
O que escrevo um outro escritor escreveria. Um
certo imaginário, de um certo pré-simbólico já inscrito
outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque como exceção – como suspensão dos limites instaurados
escritora mulher pode lacrimejar piegas. [Mas] eu não pelo simbólico: deslocadora ruptura da lei de qualquer
inventei essa moça. Ela forçou de dentro de mim a sua diferença estanque: “a verdade é sempre um contato
exigência. [...] Só eu a amo. (Ibidem, p. 19, 11) interior inexplicável. A minha vida mais verdadeira é

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irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só mesma se descobre na insularidade e na sobrevivência do
palavra que a signifique” (ibidem, p. 17). De facto, se “eu seu pleno abandono: “como que” sem olhos. O que por
também sou o escuro da noite” (ibidem, p. 24), a verdade seu intermédio lhe chega é a ruína do visível, o espectro
é que “quando escrevo não minto” (ibidem, p. 25), da (in)essência da polis. Uma fenda escura, agora, a
“sigo uma oculta linha fatal. Sou obrigado a procurar atravessa: uma espécie de raiz escura. Traz consigo, no seu
uma verdade que me ultrapassa” (ibidem). E se “a pessoa errático traçado, a inquietante intuição do que há de ficção
de quem falarei [...] não faz falta a ninguém” (ibidem, em toda a lei. A insidiosa suspeita, não apenas quanto à
p. 19-20) – “aliás – descubro eu agora – eu também não inevitabilidade do espaçamento de toda a percepção, mas
faço a menor falta” (ibidem: 20) – “tenho então que falar também quanto ao hiato que atravessa e cinde toda figura
simples para captar a sua delicada e vaga existência” do destino... Que acontece então?
(ibidem, p. 21): “tenho de tornar nítido o que está quase
apagado. Com mãos de dedos duros enlameados apalpar [Ela] continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada
– o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a
o invisível na própria lama” (ibidem, p. 25). Razão pela
desprevenida para trás, o pesado saco de tricot
qual: “a ação desta história terá como resultado minha despencou-se do colo, ruiu no chão – Ana deu um
transfiguração em outrem e minha materialização enfim grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber
em objeto” (ibidem, p. 27), pois “apesar de eu não ter nada do que se tratava – o bonde estacou, os passageiros
a ver com a moça, terei de me escrever todo através dela olharam assustados. Incapaz de se mover para apanhar
por entre espantos meus” (ibidem, p. 31). É isso que faz as suas compras, Ana se aprumava pálida. [...] O
passar o silêncio e o escuro pela sua história: “juro que este moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume.
Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de
é um livro feito sem palavras, [...] é um silêncio” (ibidem,
jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre
p. 23): “a procura da palavra no escuro” (ibidem, p. 28). os fios da rede. […] E como uma estranha música,
Porquê? Porque, quando a Macabéa: “ela é extremamente o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito.
muda”... Se isto se verifica em A Hora da Estrela, o que (LISPECTOR, s.d. p. 19-20; grifo nosso)
se passa em “Amor”?
Em presença do cego, Ana dir-se-ia comparecer Eis, então, “o mal” por onde, afinal, o mundo
diante de si. Mas de um “si” anterior a si própria e a incessantemente recomeça, como uma “estranha música”:
qualquer destino – o que seria indemonstrável: uma o informe da origem – a música enquanto mutação da
verdade impossível... E, nesse sentido, o cego com que forma em devir, fratura do futuro que de si mesmo se
ela se depara é também aquele outro cego de Rilke – de demarca. O mal de uma descontinuidade suspensa, de
quem Derrida apenas nos cita apenas o exemplo de uma uma incompletude definitiva, de uma inapelável vacilação
“cega”... Que nos diz então Rilke, em O Cego? de todas as fronteiras. O mal na sua inicial viscosidade,
simbolizada na goma que o cego mascava; o do exterior
Vede: Passa e interrompe a cidade, daquele calmo horizonte que o seu olhar prudentemente
que deixa de existir no escuro em que ele está, evitara. O mal, em suma, outrora velado pelas cortinas
como fenda escura passa pela alvura, que, a própria Ana, com “a grande tesoura”, cortara. O
duma chávena. E como numa folha mal presente nas suaves raízes negras do mundo:
está pintado sobre ele o reflexo,
das coisas, que não penetra nele. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana
(QUINTELA, 1998, p. 135; grifos nossos) se agarrou ao banco da frente, como se pudesse
cair do bonde, como se as coisas pudessem ser
revertidas com a mesma calma com que não o eram.
Imune ao reflexo das coisas, o cego de Ana interrompe (Ibidem, p. 20).
“a cidade”. Não apenas a cidade, mas o seu destino de
mulher. Masca pastilha elástica na escuri-dão, entre sério Sem o simbólico – e sem, por conseguinte, o limite
e sorridente: sem sofrimento... Suspende, em suma, toda a que ele pressupõe – o mundo perde a sua curvatura, o
lei em que a cidade se sustenta. A começar pela do género. limite pertensamente uno e nu da sua objectivação, a
Uma lei a que o cego se diria, assim, permanecer cego e bainha do seu em-si-mesmamento, a possibilidade do seu
que, com ele, se diria deixar de existir, no escuro em que conceito. Pois até:
se está... O que dele emerge é já essa espécie de fenda
O desejo é uma coisa que se articula. O mundo no
escura que – passando, em Rilke, pela luminosa alvura
qual ele entra e progride, este baixo mundo, não
da “chávena”... – aqui parece fender todo o signo... Essa é simplesmente um Umwelt no sentido de nele se
fratura, que abre necessariamente para o espaçamento da poderem encontrar meios de saciar as necessidades,
linguagem, induz à suspensão da lei em que a cidade se mas é um mundo onde impera a fala. [...] Nessa
sustenta. Contemplando-o, Ana dir-se-ia, assim, que a si medida, a criança, que constitui sua mãe como sujeito

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O Amor – segundo Clarice Lispector 143

com base na primeira simbolização, vê-se inteira- Apanhada por essa perigosa hora, na vertigem em
mente submetida ao que podemos chamar, mas que “através da piedade [agora] aparecia a Ana uma
unicamente por antecipação, de lei. (LACAN, 1999, vida cheia de náusea doce, até à boca” (ibidem, p. 21)
p. 194; grifo nosso)
– como se nela, agora, a si mesma sentisse, no sabor da
gema que verte dos ovos quebrados – ela perde a noção
Ora, em “Amor”, com a arrancada do bonde:
do seu ponto de paragem e, quando desce do autocarro...
A rede de tricot era [agora] áspera entre os dedos, não “Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter
íntima como quando a tricotara. A rede perdera o senti- saltado no meio da noite. Era uma rua comprida, com
do e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que muros altos, amarelos” (ibidem; grifos nossos).
fazer com as compras ao colo. (LISPECTOR, s.d., p. 20)
2.2 Um “meio-sonho”: o assassínio profundo...
Ou ainda... Reconhecendo-se na figura do cego – Esses “muros amarelos” – ela dar-se-á, por fim,
e na “cegueira” que ele, ao mesmo tempo, representa e conta de onde está... – cercam o Jardim Botânico. Onde
suspende... – Ana desprende-se então do que construira, ela entra e cuja...
ficcionalmente, não apenas o presente da sua vida real de
adulto, mas também “a figura” do seu destino de mulher. E [...] vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava a
sua respiração. Ela adormecia dentro de si. De longe
revê-se na sua própria “cegueira”. Olha-se de diante para
ela via a aleia onde a tarde era clara e redonda.
trás: a perder de vista... Recua para si, nessa sua incursão Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho. [...] De
pelo avesso de toda a visibilidade: até à escuridão que onde vinha o meio-sonho pelo qual estava rodeada?
agora envolve, igualmente, toda aquela legião de seres (Ibidem, p. 21-22; grifos nossos)
que viviam como quem trabalha: “Parecia-lhe [agora] que
as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham O jardim botânico, cercado de muros amarelos é,
por um mínimo equilíbrio, à tona da escuridão” (ibidem; na sua calma suave, não apenas a reduplicação da figura
grifo nosso). do ovo, mas também o silencioso espaço intramuros da
Eis a verdade, portanto. Ou a sua impossibilidade: reclusão que toda a cegueira supõe. O espaço de uma
“tranquilidade alta”, de uma morte e de uma metamorfose
Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam- sem mediação... O lugar de uma íntima desordem, uma
se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante
da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha
insularidade e um abandono que supõem um certo
vergonha? É que já não era mais piedade, não era só sepultamento em vida no limiar de toda a alteridade:
piedade: seu coração se enchera com a pior vontade
de viver. Já não sabia se estava do lado do cego ou As árvores eram pretas, doces como o mel. Havia no
das espessas plantas. O homem pouco a pouco se chão caroços secos cheios de circunvoluções, como
distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o pequenos cérebros apodrecidos [...] a crueza do mundo
lado dos que lhe haviam ferido os olhos. […] Um cego era tranquila. O assassinato era profundo. E a morte
me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. não era o que pensávamos. [...] A moral do jardim era
[...] Oh, mas ela amava o cego!, pensou, com os olhos outra. (Ibidem, p. 22; grifo nosso)
molhados. No entanto, não era com este sentimento
que se iria a uma igreja. (Ibidem, p. 24; grifos nossos) Qual seria, então, a moral do jardim? A moral da
gema ou da goma, da sua secreta e íntima desordem, da
Ei-la ciente, na sua insituabilidade, de fazer parte das exceção enfim? Que moral seria a do movediço mundo
obscuras forças que permanecem no limiar do mundo. No deste “Amor” cheio de piedade e, simultaneamente, de
despertar daquela “estranha música” em que “o mundo uma violência sem mediação?
recomeçava ao redor”, nessa sua já intuída “ausência de
lei” – “como se as coisas pudessem ser revertidas com a Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas
mesma calma com que o não eram” – a mão do cego é plantas. [...] O Jardim Botânico, tranquilo e alto, lhe
ainda um pouco da sua, como mão dada e guiada, e é na revelava. Com horror descobrira que pertencia à parte
sua que essa mão avança também: forte do mundo – e que nome dar à sua misericórdia
violenta? Seria obrigada a beijar o leproso, pois
O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos nunca seria apenas sua irmã. Um cego me revelou o
inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. pior de mim. Sentia-se banida porque nenhum pobre
[...] Um cego mascando chicletes mergulhara o beberia água nas suas mãos ardentes. [...] Humilhada,
mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E
havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas estremecendo, também sabia porquê. A vida do jardim
assustavam-na com o vigor que possuíam. (Ibidem, botânico chamava por ela como um lobisomem é
p. 20; grifos nossos) chamado pelo luar. (Ibidem, p. 24; grifos nossos)

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144 Pereira, J. P. C.

Ora, como nos diz Giorgio Agamben, em O Poder estranho êxtase: “por um instante a vida sadia que levava
Soberano e a Vida Nua: até agora pareceu-lhe um modo louco de viver” (ibidem).
Nessa sua perturbada exaltação...
O que haveria de permanecer no inconsciente colectivo
como um monstro híbrido, entre o humano e a fera, A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia,
dividido entre a selva e a cidade – o lobisomem – é, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. [...]
portanto, na origem, a figura daquele que foi banido Como se soubesse de um mal – o cego ou o Jardim
da comunidade. Que seja definido como homem‑lobo Botânico? – agarrava-se a ele [ao menino], a quem
e não simplesmente como lobo (a expressão caput queria acima de tudo. Fora atingida pelo demónio da
lupinum tem a forma de um estatuto jurídico) é aqui fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. (Ibidem)
decisivo. A vida do bandido – tal como a do homem
sagrado – não é de natureza selvagem sem nenhuma Que diferença haveria, entre o cego e o Jardim
relação com o direito e com a cidade; é, pelo contrário, botânico? Como se lê em Água viva:
um limiar de indiferença e de passagem entre o animal
e o homem, a physis e o nomos, a exclusão e a inclusão:
loup-garou, lobisomem, justamente, nem homem nem Entro lentamente na escrita assim como já entrei na
fera, que habita paradoxalmente em ambos os mundos pintura. É um mundo emaranhado de cipós, sílabas,
sem pertencer a nenhum. (AGAMBEN, 1998, p. 103) madressilvas, cores e palavras – limiar de entrada de
ancestral caverna que é útero do mundo e dele vou
nascer. [...] Para me refazer e te refazer volto ao meu
Eis, portanto, a sua “doença da vida” no limiar da
estado de jardim e sombra, fresca realidade, mal
lei: a de um certo inominável. Essa espécie de silenciosa existo e se existo é com delicado cuidado. Em redor
metamorfose que a vida supõe: ali onde tudo se desenvolve da sombra faz calor de suor abundante. Estou viva.
e dissolve na geração e no letal abraço de um amor voraz Mas sinto que ainda não alcancei os meus limites,
e macio: fronteiras com o quê? Sem fronteiras, a aventura da
liberdade perigosa. Mas arrisco, vivo arriscando.
Ao mesmo tempo que imaginário – era um mundo de se (LISPECTOR, 1980, p. 15, 18; grifos nossos)
comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias
e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas
folhudas, o abraço era macio, colado. (LISPECTOR, Ora, uma mesma implicação se desdobraria, em
s.d., p. 22) “Amor”:
O jardim é, assim, o vertiginoso espaço da
decomposição e da beleza, do nojo e da fascinação, A cidade estava adormecida e quente. O que o cego
da mais soberba impersonalidade e do mais terrível desencadeara caberia nos seus dias? Quanto anos
abandono. Mas também de uma certa alteridade pré- levaria a envelhecer de novo? Qualquer movimento
originária, de um pensamento do mundo sem o qual seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma
nenhuma subjetividade se poderia constituir... Espaço maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse
de exceção onde... o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro
lago. O cego pendia entre os frutos do jardim. [...] E
a decomposição era profunda, perfumada... Mas todas
se atravessara o amor e o inferno, penteava-se agora
as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um
diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo
enxame de insectos, enviados pela vida mais fina do
no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma
mundo [...]: o Jardim era tão bonito que ela teve medo
vela, soprou a última flama do dia. (Ibidem, p. 25-26;
do Inferno [...] (ibidem, p. 22-23) – Era fascinante, e
grifos nossos)
ela sentia nojo [...], via o Jardim em torno de si, com
uma impersonalidade soberba. (Ibidem, p. 23)
Eis a sua perigosa hora; eis a sua “doença da vida”:
Tal seria a voragem onde todo o limite vacila: o lugar a de uma ausência de mundo... Onde caberiam elas? Não
da repulsiva e fascinante “verdade”, entre as duas conchas seriam elas também as nossas?
de uma ostra aberta:
Referências
Ela amava o mundo, tudo o que fora criado – amava
com nojo. Do mesmo modo como sempre fora AGAMBEN, Giorgio. O poder soberano e a vida nua: homo
fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento sacer. Lisboa: Presença, 1998.
de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, CIXOUS, Hélène. L’heure de Clarice Lispector. Paris: Des
avisando-a. (Ibidem) femmes, 1989.
CIXOUS, Hélène. Jours de l’an. Paris: Des femmes, 1990.
Já de regresso a casa, “ao encontro do menino que CIXOUS, Hélène. Reading with Clarice Lispector. Mineapolis:
se aproximou correndo” – ainda no transporte desse seu Minnesota University Press, 1990.

Navegações, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 134-145, jul.-dez. 2015


O Amor – segundo Clarice Lispector 145

CIXOUS, Hélène. Véus... à vela. Coimbra: Quarteto, 2001. LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Nova
DERRIDA, Jacques. Memórias de cego: o auto-retrato e outras Fronteira, 1980.
ruínas. Lisboa: Gulbenkian, 2010. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Nova
FOUCAULT, Michel. O pensamento do exterior. [s.l.] Fim de Fronteira, 1988.
Século, 2001. LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Lisboa: Relógio
FREUD, Sigmund. Textos essenciais sobre literatura, arte e d’Água, [s.d.].
psicanálise. Lisboa: Europa-América,1994. RILKE, Rainer Maria. O cego. quintela, Paulo (Org.).
LACAN, Jacques. Le séminaire – III. Paris: Seuil, 1981 Obras Completas III: traduções II. Lisboa: Gulbenkian,
1998.
LACAN, Jacques. O Seminário – V: as formações do
inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
Recebido: 20 de outubro de 2015
LÉVINAS, Emmanuel. Descobrindo a existência com Husserl Aprovado: 18 de dezembro de 2015
e Heidegger. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. Contato: jpper@ualg.pt

Navegações, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 134-145, jul.-dez. 2015

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