D - Soares
D - Soares
D - Soares
CURITIBA
2003
BANCA EXAMINADORA
PARECER
Prof Dr3 (K U-
Presidente m
Prof. Dr*!.
I o Examinador
uidolin
Este trabalho é fruto de uma reflexão para qual muitas pessoas e Instituições
contribuíram. Quando comecei a me interessar pela pintura moderna brasileira, estava no
penúltimo ano de graduação e pude contar com o apoio e orientação do professor Marcos
Napolitano, em princípio para buscar a definição de um tema a ser trabalhado, depois na
realização de um projeto de pesquisa que resultou numa monografia de final do curso. Ao
professor Marcos registro aqui minha admiração pela sua dedicação e competência como
professor, e meu carinho pelo amigo, sempre incentivador e divertido.
Desse diálogo acadêmico surgiram também grandes amizades. Entre eles destaco
Viviane, sempre disponível e dedicada, hoje é para mim uma irmã com quem posso contar
todas as horas (inclusive nas madrugadas de insônia), Nádia, Andréia, Arthur, Mara e
Márcia. Agradeço a profa. Judite, que me emprestou grande parte da bibliografia e me deu
apoio moral nos momentos difíceis e a profa. Ana Paula, que apesar de pertencer a outra
linha de pesquisa acabou se tornando uma cúmplice nos assuntos caninos. Agradeço a
Dóris e Luci, secretárias da pós-graduação, e a Rosemar e Judite, secretárias da graduação,
sempre acessíveis e dispostas a ajudar nos obscuros assuntos burocráticos.
Aos meus amigos, Cristina, Verônica, Jô, Aldo, Carminha, Beto, Eliana, José
Renato, Wilca, Nilton, Crespo, Zé Luís, Consuelo, Maria Luíza, Marcelo, Aparecida,
Priscila e Adão pela convivência cotidiana e pelo apoio incondicional nos momentos de
tristeza e insegurança.
A todo o "clã" dos Alcantara Soares, especialmente minha tia-mãe Anive, meu tio
Antônio, que embarca incondicionalmente nas minhas "invenções de moda", tio Wilson,
grande incentivador dos assuntos acadêmicos e contador de piadas.
A Orlando, meu pai que, embora sempre perdido no mundo das idéias, conseguiu
me fazer acreditar que o mais importante é "fazer o que gosta" e me apresentou um mundo
repleto de livros, canetas, pincéis, tintas, colas-coloridas, papel de carta, viagens, etc.
A minha Nina querida, companheirinha canina, que durante muito tempo esquentou
meus pés nas tardes frias em frente ao computador e encheu minha vida de alegria.
Por fim, a Helenice Rodrigues da Silva, por quem nutro um carinho especial. Sua
paciência, simpatia, disponibilidade, delicadeza e sobretudo a liberdade de ação que me
concedeu até o momento da defesa.
SUMÁRIO
LISTA DE IMAGENS iv
LISTA DE SIGLAS v
RESUMO E ABSTRACT vi
1 INTRODUÇÃO 1
5 REFLEXÕES FINAIS 97
FONTES 102
LISTA DE IMAGENS
MESTIÇO 5
PRETO DA ENXADA 6
BAILE NA ROÇA 74
PALAN IN HO 78
CAFÉ 91
DESCOBRIMENTO 94
IV
LISTA DE SIGLAS
Este estudo pretende problematizar uma faceta da relação entre intelectual dissidente, artista e Estado
Novo (1937-1945), expressa aqui nas figuras do crítico de arte Mario Pedrosa e do pintor Cândido
Portinari. O Estado recém saído da Revolução de 1930, preocupava-se sobretudo com o problema da
criação de uma identidade nacional. O Estado Novo buscou legitimar seu regime autoritário através da
criação de sofisticados aparatos culturais (DIP e Ministério da Educação) e da mobilização de amplos
setores da intelectualidade brasileira ligados ao movimento modernista. Assim, intelectuais de direita e
esquerda, provenientes muitas vezes de correntes de pensamento distintas, passaram a integrar os
setores culturais estadonovistas, motivados pelo ambicioso projeto de construção da identidade
cultural brasileira. Tal integração não significou uma flexibilidade do regime frente a pluralidade de
idéias, haja vista que seus opositores, notadamente no caso de Mario Pedrosa, foram banidos do
Estado gradativamente, ao longo do governo provisório que antecedeu ao Golpe. Dessa forma, a
coerção e a marginalidade imprimiram a marca do projeto político cultural estadonovista. Com o
objetivo de mostrar esta tensa relação entre intelectuais, artista e Estado é que resgatamos aqui Mario
Pedrosa e Cândido Portinari.
ABSTRACT
This dissertation attempts to problematize one of the facets of the relationship between dissident
intellectuals, artists and the Estado Novo (1937-1945), as it materializes in the figures of, both the art
critic, Mario Pedrosa, and the painter, Cândido Portinari. The State, which had just gotten out of the
1930 Revolution, was most concerned about the creation of a national identity. The Estado Novo tried
to legitimate its rather authoritarian regime through the creation of a sophisticated and ostentatious
array of cultural projects, such as the DIP and the Ministry of Education, as well as the mobilization of
ample sectors of the Brazilian intelligentsia related to the modernist movement. Thus, left and right
wing intellectuals, often originating from different philosophical trends, started to join the cultural
sectors of the Estado Novo, driven by the ambitious project of constructing a Brazilian cultural
identity. However, such an adhesion did not mean that the regime became less rigid in relation to the
plurality of ideas, given that its opponents had been gradually banished from the State - and more
especially Mario Pedrosa - throughout the provisional government preceding the Coup d'Etat.
Therefore, coercion and delinquency left their marks on the political and cultural project of the Estado
Novo. Our objective here is to show this tense relationship between intellectuals, artists and the State
by taking the examples of Mario Pedrosa and Cândido Portinari.
vi
1
1 INTRODUÇÃO
1
CASTILHO, J (org.). Mário Pedrosa e o Brasil. Ia ed. SP: Fundação Perseu Abramo, 2001. p.15.
2
CASTRO, R. Os intelectuais trotskistas nos anos 30. In: AARÃO, D (org.). Intelectuais, história e
política (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000. p. 137.
2
O impacto gerado pela Primeira Grande Guerra, assim como o Caso Dreyfus,
inaugurou uma nova visão de mundo no universo intelectual: o pacifismo. O Surrealismo,
movimento artístico que teve origem em um movimento literário promovido por André Breton,
demarcou uma reação pacífica contra as loucuras da guerra. A Revolução Russa de 1917 também
entusiasmou a intelectualidade ocidental, especialmente a francesa, que aderira ao marxismo com
i
a mesma fidelidade com que abraçara os ideais dreyfusistas .
O objeto desse estudo se insere nesta questão mais ampla: a relação entre
intelectuais "revolucionários" e os intelectuais e artistas vinculados ao poder político no
Estado Novo. Nessa perspectiva, pretendemos entender a relação estruturada entre Mário
Pedrosa, um intelectual trotskista, exilado e marginalizado por não compactuar com os
preceitos do Estado Novo, e o pintor Cândido Portinari, artista que realizou grande parte de
sua produção, especialmente as pinturas históricas, sob encomenda do Estado autoritário de
Vargas e de suas instituições.
3
LÉVY, B. H. As aventuras da liberdade: uma história subjetiva dos intelectuais. SP: Cia das Letras, 1992.
3
"(...) É na índia e Mulata, em que mais se apparece esse elemento esculptural, sobretudo
na figura da mulata. A posição das figuras, a immobilidade geral dos corpos, aquella
impressionante mão espalmada, semi-erguida, da figura da índia, como o gesto final de
quem constata um estado definitivo de fatalidade, tudo nesse grupo indica a estatica da
estatuaria. Esboça-se também uma nova orientação na arte do pintor: a tendência ao
monumental. Com esta obra, Portinari consegue integrar o homem, como espécie, na sua
arte, mas pela brecha por onde penetrou o animal homem, na sua pura corporeidade,
entram também as relações do homem, o homem social. Começa aqui a reacção do artista
sobre a natureza, sobre os themas e motivos incontrolados da matéria e da vida. Elle
chegou aos extremos limites da unidade estructural do quadro, da esthetica particular do
quadro de cavalete. Aprofunda-se a sua reacção sobre a matéria social. Portinari se
encontra assim diante de uma contradicção dialéctica fundamental da maior
transcendencia: as exigências da materia social em sua dynamica complexidade, e os
limites naturais da arte pictórica especificamente burgueza - a pintura a óleo e o quadro
de cavalete. É agora, o maior de seus problemas. Que elle não é, no fundo de sua
personalidade, o vulgar retratista a que o querem reduzir (e que o succeso do seu metier
nesse gênero poderia confirmar), demonstra-o esse desrespeito pelo quadro, característico
de toda esta phase final. A composição não respeita a unidade abstrata e desconhece que
existe um fundo de quadro que é preciso considerar".
"Mestiço não passaria de um retrato, se Portinari quizesse restringir-se aos limites estheticos
do cavalete, mas elle é solicitado agora, não pela figura de um mestiço, mas pela realidade
social e material da vida do mestiço, representada pelos panos de fundo. Suas figuras
projectam-se bruptalmente para fora, enquanto o fundo do quadro se enche de amplidão,
perspectivas, horizontes, uma vida intensa de planos e cores, significando a natureza, na sua
expressão concreta e social, a terra e o trabalho. É o que há de mais contrário à thechinica e
esthetica do retrato. Essa contradição, porém, é inevitável, isto é, dialéctica È preciso toda
techinica pictórica, a sciencia de composição, do artista, para ainda assim conseguir dentro
desses limites aquella admiravel creação que é Preto da Enxada".
4
ARANTES, Otilia. Mário Pedrosa: itinerário crítico. São Paulo: Página Aberta, 1991. p.IX.
4
5
LIPPI, L. Os intelectuais e o nacionalismo, p. 69 In: Seminário de Folclore e cultura popular: as
várias faces de um debate / Instituto Nacional do Folclore, Coordenadoria de Estudos e Pesquisas. RJ:
IB AC, 1992.
MESTIÇO
PRETO DA ENXADA
7
6
Conforme Boris Fausto, a Primeira República pode ser designada de "liberal", tendo em vista a
Constituição que ela adotou e a ideologia dos setores que prevaleceram na sua organização. A Primeira
Constituição da República, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, foi inspirada no modelo norte-
americano. Em linhas gerais, a Constituição atendeu aos interesses dos grandes proprietários rurais e
garantiu autonomia aos Estados. FAUSTO, B. História do Brasil. 6a ed São Paulo: Edusp, 1998. p. 332.
7
Importantes medidas foram implantadas pelo DNC para beneficiar os negócios cafeeiros. A primeira
foi a elaboração de um decreto, em fevereiro de 1931, estabelecendo que o governo federal deveria
comprar todos os estoques existentes no país em 30 de junho de 1930, de maneira que os principais
beneficiados foram os banqueiros que haviam financiado parte do estoque. A segunda medida foi
tomada em julho de 1931, para resolver o problema dos estoques de café, atuais e futuros, que não
encontravam colocação no mercado. A solução encontrada pelo governo foi a compra do café com
uma parcela da receita das exportações e destruição de outra parcela do produto, de forma que a oferta
do produto era reduzida para sustentar o preço do produto. Esta situação permaneceu até julho de
1944. Ao longo desses 13 anos, cerca de 78,2 milhões de sacas foram eliminadas, isto é, uma
quantidade equivalente ao consumo mundial de três anos. FAUSTO. Op. cit. p.334.
8
Outra faceta do governo provisório de Getúlio foi a política trabalhista. Foram criados
órgão federais, como o Ministério do Trabalho, da Indústria e do Comércio, fundado em novembro
de 1930, e leis de proteção ao trabalhador. Essas medidas visavam, sobretudo, reprimir as
organizações trabalhistas urbanas e atraí-las para o apoio do governo.
Além das ações estatais que fortaleciam o vínculo entre educadores, intelectuais e
sociedade, outro aspecto envolveu os intelectuais do período: o apoio, por parte do governo, às
atividades literárias. As atividades intelectuais e artísticas no Estado Novo, assim como as demais
atividades, deveriam exercer uma função social. Num país ainda "subdesenvolvido", com grandes
taxas de analfabetismo, os "homens de idéias" deveriam ter uma função coletiva na sociedade.
Tal sintonia entre Estado e camadas intelectuais não significa a integração indiferenciada desse
grupo, mas o chamamento daqueles mais afinados às delimitações do próprio Estado. Aí se insere
um aspecto pouco explorado do regime: a coerção e a marginalidade a que foram relegados os
intelectuais que não pactuavam com os preceitos estadonovistas.
9
Nesta perspectiva, partiremos do pressuposto de que, tanto o crítico de arte como o pintor,
independentemente de sua categoria (revolucionário banido ou artista "cooptado") - em termos de
ação e contribuição - exercem importante papel no debate sobre a cultura brasileira. Para levarmos a
cabo esta tarefa, procuraremos situar os dois personagens frente a seu tempo, procurando resgatar a
trajetória de cada um, à luz do contexto de suas condições concretas, isto é, demonstrando que, por
mais ou menos brilhante que pareça produção - artística e intelectual - de ambos9, estas não pairam na
história, mas correspondem sobretudo ao contexto da sociedade das gerações em que viveram10.
E importante ressaltar que a formação crítica de Mário Pedrosa emergiu não somente
da inter-relação com os movimentos de esquerda, mas sobretudo do contato com o movimento
Modernista, brasileiro e europeu. A partir dessa interação, Pedrosa procurou sistematizar e
fundamentar a produção artística, contribuindo assim, ao observar, comentar, analisar e publicar
suas críticas11, para a formulação do gosto nas artes plásticas brasileira, à proporção que: tornou-
se um mediador12 da produção artística para o restante da sociedade, reforçando assim o papel,
8
VELLOSO, M. Os intelectuais e a política cultural no Estado Novo. Revista de Sociologia e
Política, UFPR, Curitiba, n° 9, 1997. p.57.
9
No decorrer da pesquisa de monografía de final de curso, deparamos com um polêmico debate sobre
a figura de Cândido Portinari e de suas obras, onde intelectuais de diversos matizes, especialmente
advindos da Historia da Arte, tendem a reduzir a produção artística do pintor à mera ilustração de uma
ideologia foijada pelo Estado Novo. Essa mesma vertente também desconsidera o aspecto formal da
obra de Portinari, considerando-a tradicional e conservadora, pela temática figurativa e pela escolha
dos temas nacionalistas, sem levar em conta o contexto em que o pintor estava circunscrito.
10
A noção de geração será utilizada como um "instrumento conceituai importante na apreensão da
história das representações coletivas, ou seja, da conjuntura intelectual e moral de uma época, dos
sistemas de valores e das sensibilidades coletivas". In: RODRIGUES DA SILVA. H. Op.cit., p.69.
Assim, a noção de geração pode ser utilizada para resgatar a memória comum de um grupo,
incorporando a idéia de um "tempo exterior - o dos movimentos de conjuntura e eventos da história de
um país, região ou grupo local - quanto de um tempo "interior", expresso pela forma como tais
acontecimentos foram experimentados por um grupo, construindo-se um sentido de união, de
pertencimento". In: GOMES. Op. cit., p.41.
11
Vale lembrar que grande parte da produção intelectual de Pedrosa foi publicada em formato de livros e
artigos veiculados em jornal. Muitos deles reeditados recentemente pela Edusp entre os anos de 1995-2000.
12
Contemporáneamente os antropólogos Gilberto Velho e Karina Kuschnir desenvolveram o conceito
de "mediador cultural", entendido como elo de ligação entre determinado grupo local e o mundo de
10
A imprensa, nesta perspectiva, foi utilizada como um veículo, à medida que interveio
na vida social, registrou e comentou os acontecimentos, configurando-se assim como um espaço de
representação simbólica de momentos particulares da realidade14. O discurso jornalístico impresso
atuou na ordem do cotidiano, agendando campos de assuntos sobre os quais os leitores podiam e
Assim sendo, poderíamos pensar que a imprensa foi um instrumento utilizado por
Mário Pedrosa para veicular sua ideologia, tendo em vista seu afastamento do país e
desprestígio nos debates políticos do período. O corpo documental é também constituído por
correspondências do crítico e do pintor com outros intelectuais da época. Tais documentos
foram compilados na bibliografia sobre Mário Pedrosa e Portinari e no acervo da Fundação
Portinari, localizada no campo da PUC-RJ.
Para entendermos melhor essa tensa relação entre artista, intelectual e poder
político no Estado Novo, personificada aqui nas figuras de Mário Pedrosa e Cândido
Portinari, estruturamos a pesquisa da seguinte maneira: no primeiro capítulo, procuramos
demonstrar o contexto político que gerou a polarização ideológica dos intelectuais ocidentais
entre fascistas (ligados a movimentos autoritários de direita) e não fascistas (mobilizados em
organizações da esquerda). Nesse primeiro capítulo, pretendemos também explorar as
circunstâncias que propiciaram a implantação do Estado Novo e a função do intelectual para a
legitimação desse regime autoritário.
15
MARLANI, Bethania O PCB e a imprensa. Os comunistas no imaginário dos jornais, 1922-1989.
Campinas: Unicamp, 1998. p. 60.
12
16
O termo liberalismo é aqui utilizado na perspectiva de Hobsbawm, em A era dos extremos, no
sentido de valores liberais, já solidificados no século XIX, que preconizam sobretudo "a desconfiança
da ditadura e do governo absoluto; o compromisso com um governo constitucional com ou sob
governos e assembléias representativas livremente eleitos, que garantissem o domínio da lei; e um
conjunto aceito de direitos e liberdades dos cidadãos, incluindo a liberdade de expressão, pubücação e
reunião. O Estado e a sociedade deveriam ser informados pelos valores da razão, do debate público, da
educação, da ciência e da capacidade de melhoria (embora não necessariamente a perfeição) da
condição humana". HOBSBAWM, E. A era dos extremos - o breve século XX - 1914-1991. São
Paulo: Cia das Letras, 1995. p. 114.
17
Entre esses países, o Brasil foi um dos mais afetados. Com a crise, houve uma redução imediata das
importações americanas do café brasileiro, principal produto de exportação. A mais severa
conseqüência desta redução foi o desequilíbrio da balança comercial do país, que dependia das
exportações. Além do café foram afetadas também as indústrias ligadas à sua produção, como por
exemplo as fábricas de sacos de aniagem e fazendas produtoras de primeira necessidade. Por outro
lado, a indústria brasileira foi beneficiada, já que os fazendeiros de café redirecionaram seus
investimentos a empreendimentos industriais, além de que com a desvalorização da moeda nacional, o
poder de compra foi reduzido, tomando os produtos importados mais caros, o que estimulou a
produção de similares no país. ARRUDA J- A crise do capitalismo liberal, p.29. In: Aarão, D. (org.).
O século XX: o tempo das crises: revoluções, fascismos e guerras. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000.
13
18
HOBSBAWM. Op.cit., p.98.
19
HOBSBAWM. Op.cit., p.100.
20
Segundo Konder, os termos direita e esquerda foram adotados a partir da Revolução Francesa.
Embora sejam conceitos questionáveis por autores recentes, geralmente são utilizados para
caracterizar as forças favoráveis e as forças contrárias a transformações profundas na estrutura socio-
económica e política dos países. Konder considera que embora tradicionalmente a direita, desde a
Revolução Francesa, se opunha à participação das massas populares na vida política, no final da
Primeira Guerra assumirá outro caráter. A "direita moderna" vai assimilar alguns elementos da
esquerda revolucionária: mobilização dos setores de massa de cima para baixo através de um discurso
14
enérgico, chefes inovadores e próximos de seus povos. KONDER, L. Cultura e política nos anos
críticos, p.64. In: AARÃO, D. Op. cit.
21
HOBSBAWM. Op.cit., p.117.
22
Idem.
23
Em linhas gerais, Keynes, já em 1926, preconizava uma "nova mentalidade", menos confiante no
mercado liberal. Defendia a idéia da intervenção do Estado liberal na economia para evitar tensões e
fortalecimento das idéias socialistas e comunistas. KONDER, L. Cultura e política nos anos críticos.
p.64. In: AARÃO, D. Op. cit.
24
O Plano econômico que introduziu mudanças significativas no modelo tradicional da economia de
mercado norte-americana. Foi pautado em três direções: medidas financeiras; combate ao desemprego;
política agrícola, industrial e de comércio exterior. ARRUDA J- Op.cit., p.31.
15
Isso não facilitou muito as coisas para a União Soviética, que amargou anos de
crise, fome, desagregação, manobras contra-revolucionárias e caos econômico. O Estado
ainda assim conseguiu sobreviver, graças à sólida estrutura do Partido Comunista, ao apoio
cedido a esse por grupos não comunistas que viam nele a última força capaz de evitar a
destruição da União Soviética e a sintonia entre comunistas e camponeses, base da sociedade
e do exército russos.
25
D'ARAÚJO, M. O Estado Novo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p.8.
26
FAUSTO, B. História do Brasü. 6a ed. São Paulo: Edusp, 1998. p. 353.
16
forças liberais, materializada nos catorze pontos de Wilson , em que o apelo ao sentimento nacional
busca contrapor-se ao internacionalismo soviético. Assim, diversos Estados-nação foram criados,
como uma barreira entre a União Soviética revolucionária e as potências liberais da Europa.
Em 1920, os bolcheviques decidiram moldar seus correligionários em todo o mundo,
de acordo com o padrão Leninista de disciplinados revolucionários profissionais em tempo
integral. Isso imediatamente levou outros grupos de esquerda a se afastar, recusando-se a uma tão
completa submissão aos princípios e táticas de Lênin. Esses viriam a construir uma frente de
oposição aos comunistas no interior da esquerda mundial, tendo à sua frente os sociais-
democratas. Após banir os dissidentes (sobretudo Trotski e Bukharin), a URSS, sob o comando de
Stálin, concentrou-se cada vez mais em sua condição de país coexistente com outros países, e
30
cada vez menos em sua missão universalista como destruidora do poder burguês .
27
ARAÚJO, M. Op.cit., p.8.
28
Hobsbawm. Op. cit., p. 72-3.
29
O presidente dos Estados Unidos Woodrow Wilson apresentou ainda durante a Primeira Guerra
(1918) os seus Catorze Pontos, que resumidamente propunham a auto determinação dos diversos
povos europeus, a redução dos armamentos e a criação da Liga das Nações. Um desses pontos enfatiza
o "princípio das nacionalidades", que defende a coincidência entre a Nação e o Estado.
30
Moscou - melhor seria dizer Stálin - passou até mesmo a desencorajar manobras revolucionárias,
mesmo quando estas davam certo, como na Iugoslávia e na China. HOBSBAWM. Op.cit., p.78.
31
Segundo Ferreira, Stálin estava obcecado pela idéia de mudar o país, e para tal impôs aos
camponeses a coletivização do campo, obrigou mais de 100 milhões de pessoas a abandonarem suas
terras e se fixarem nas fazendas coletivas, numa espécie de servidão estatal. FERREIRA, J. O
socialismo soviético, p.87. In: AARAO, D. Op. cit., p.86.
32
HOBSBAWM. Op.cit., p.100.
17
Os países mais afetados pela Primeira Guerra, atingidos diretamente pela intensa
crise econômica e social, identificaram-se de imediato com as doutrinas de direita e Estados
Novos, autoritários politicamente e nacionalistas ideologicamente. Na Itália, o novo foi o
fascismo34; na Alemanha foi o nazismo35, na Turquia um movimento conhecido como "jovens
turcos" tomam o poder em 1922 com o objetivo de modernizar o país. Na península ibérica o
^ "5 «i
novo também foi instaurado pelo franquismo na Espanha e pelo salazarismo em Portugal .
33
ARAÚJO. Op. cit., p. 10.
34
O fascismo nasceu na Itália sob a liderança carismática - e, para nós, freqüentemente histriônica -
de Benito Mussolini. Embora o movimento não tenha obtido grande repercussão internacional quanto
o nazismo de Hitler, o Führer nunca deixou de reconhecer-se em débito intelectual/doutrinário para
com o Duce. HOBSBAWM. Op. cit., p. 119.
Em 1933, Hitler, do mesmo modo que Mussolini, ascendeu legalmente ao poder na Alemanha.
Quase que simultaneamente, eclodiram movimentos fascistas no mundo, chegando a desenvolver a
idéia de um "fascismo ocidental", como um combate à altura do comunismo internacional. Contudo,
ao contrário da ideologia comunista, notável por seu rigor (para não dizer dogmatismo) e coerência, a
ideologia fascista pautava-se pela nebulosidade e imprecisão. Nela misturavam-se elementos arcaicos
não-cristãos, fantasias medievalizantes, romantismo irracional, crenças pseudo-científicas e um
elaborado culto à violência como virtude. O fascismo, até sua tomada de poder, apoiava-se
basicamente em dois segmentos sociais, ambos provindos das classes média e média baixa: estudantes,
universitários e professores e os veteranos da Primeira Guerra. Esses últimos eram bastante
importantes, uma vez que no cenário político da época (antes da ascensão do fascismo) eram
consideravelmente freqüentes verdadeiras batalhas campais entre adeptos de diferentes partidos.
Posteriormente, as bases de sustentação do partido nazista forneceriam ao III Reich teóricos rigorosos,
burocratas dedicados e assassinos de grande eficiência. HOBSBAWM. Op. cit., p. 120-23.
36
A ditadura fascista do Gal. Francisco Franco instaurou-se em 31 de março de 1939 e durou 36 anos
até quando Franco morreu.
37
Antonio Oliveira Salazar governou sob regime ditatorial de 28 de maio de 1926 até 25 de abril de
1974, quando a "Revolução dos Cravos" decretou o fim da ditadura do Estado Novo de Portugal.
18
"sujeitar a sociedade nos moldes de um Partido-Estalo, cujo chefe é fundamental, seja no sentido da
referida constituição do Partido-Estado, seja no estabelecimento de laços emotivos com as massas, a
partir de umafiguracarismática Daí a afirmação de que os regimes totalitários têm características
revolucionárias, ao contrário do tradicionalismo, ou das várias formas despóticas"38.
"caracteriza-se, negativamente, por menor investimento em todas as esferas da vida social, pela
inexistência de uma simbiose entre Partido e Estado (...); pelas restrições à mobilização das
massas. Um dos traços básicos do autoritarismo consiste na relativa independência que preserva
a sociedade ran relação ao Estado: a autonomia de algumas instituições, em especial as
religiosas, e de uma esfera privada de pensamento e de crença, embora apenas tolerada"39.
38
FAUSTO, B. O pensamento nacionalista autoritário. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p.7.
39
Idem.
40
FAUSTO. O pensamento nacionalista autoritário, p.9.
41
Cabe aqui ressaltar o conceito de totalitarismo segundo a visão de Hannah Arendt,filosofejudia e alemã, vítima
do nazismo. Segundo Rodrigues da Silva, o conceito de totalitarismo tal qual desenvolvido por Arendt
"circunscreve-se unicamente a uma dimensão dafilosofiapolítica Dentro dessa perspectiva, alguns traços são,
assim, definidos. O primeiro é a atomização da sociedade civil. O totalitarismo seria a dissolução das estruturas
estáveis por meio das quais o homem perderia a tradição. Esse agregado de homens, doravante, sem qualidade se
fimde an um homem único com dimensões gigantescas. Essa multidão transforma-se,finalmente,em uma
comunidade indivisível. O segundo traço do totalitarismo corresponde ao papel do chefe que encarna a essência do
movimento. A existência de uma organizaçãofluidaprivilegia a absoluta primazia desse movimento sobretodaa
estrutura estável: o partido prevalece em relação ao Estado, a polícia em relação à administração. O culto ao chefe é
indissociável do último elemento; a ideologia, ou seja, da lógica de uma idéia, que perpetuamente remodela a
realidade epermite isentar o cumprimento da lei de toda ação e vontade humana". In: RODRIGUES DA SILVA
K Fragmentos da história intelectual - entre questionamentos e perspectivas São Paulo: Papirus, 2002. p.58.
42
ARAÚJO. Op. cit., p. 12.
43
FAUSTO. História do BrasU. p.353.
19
"O Estado autoritário não é, como se poderia julgar à primeira vista, aquele em que a
organização estatal abrange na sua esfera de atuação o conjunto da vida coletiva da Nação
(...) o que define o totalitarismo, no sentido peculiar que a essa expressão lhe deu o
fascismo, não é portanto a extensão do poder estatal, mas a natureza compreensiva,
absorvente, aniquiladora da personalidade humana, que imprime às instituições fascistas
um aspecto repelente, tornando-as tão incompatíveis com todos que prezam a dignidade
do espírito. (...) O Estado autoritário baseia-se na demarcação nítida entre aquilo que a
coletividade social tem o direito de impor ao indivíduo, pela pressão da maquinaria
estatal, e o que forma a esfera intangível de prerrogativas inalienáveis de cada ser
humano"46.
44
FAUSTO. Op. cit., p.357.
45
FAUSTO. Idem.
46
VIANA, O. Apud FAUSTO. Op. cit., p.10.
47
CAPELATO, M.H. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no peronismo. São
Paulo: Papirus. p.52.
o
9
9 20
9
9
9 A ameaça que a Revolução Mexicana e Russa representavam contribuía para que
9 o comunismo e os comunistas fossem vistos como inimigos reais da Nação, mas podemos
9 dizer que o levante comunista de 1935, também conhecido como Intentona Comunista (nome
9
9
atribuído pelas forças armadas significando intento louco, plano insensato), pode ser
9 considerado o marco inicial para explicar o Golpe de 1937. Ocorreu em quartéis do exército
9 em três cidades simultaneamente: Rio de Janeiro, Natal e Recife, liderado por comunistas
9 reunidos em torno da Aliança Nacional Libertadora (ANL)48 O Levante pretendia ser um
9 Golpe militar, e, embora tenha sido um fracasso, representou para o governo de Vargas uma
9
9 ameaça real e não somente um pretexto para o Golpe de 1937.
9
9 A grande dimensão dada ao levante aguçou o medo do comunismo e favoreceu a
9 implantação de medidas repressivas rigorosas. Nos dois anos anteriores ao golpe, o Brasil
9 juridicamente encontrava-se sob o estado de guerra e a constituição estava suspensa49. O país
9 contava apenas com o Tribunal de Segurança Nacional, fundado em 1936 como uma instância
9 da Justiça Militar, concebida para julgar em princípio os dissidentes do Levante de 1935, mas
9
9 que acabou transformando-se em um órgão permanente até o final do Estado Novo; e com a
9 Comissão Executora do Estado, criada em outubro de 1937, um mês antes do golpe. Essa
9 comissão nos dá a medida da radicalização que o país chegara na véspera do golpe.
9
9 As resoluções do plano de ação da Comissão previam a prisão imediata de todos os
9 suspeitos de atividades comunistas e medidas de caráter preventivo, entre elas colônias agrícolas de
9
reeducação dos comunistas não perigosos, prisões especiais para chefes e líderes marxistas, campos
9
9 de concentração para os filhos dos comunistas e comissões de ensino para combater o comunismo
9 na escola50. Embora algumas medidas, como os campos de concentração, não tenham sido
9 implementadas, já estava impresso o caráter autoritário da política estatal após o Golpe. Esses
9 instrumentos de repressão garantiram a Getúlio e seu grupo de apoio civil e militar o poder de
9
9 interditar todos os opositores do governo.
9
9 48
A ANL, presidida por Luís Carlos Prestes, foi criada em março de 1935 como umafrentede esquerda
9 liderada pelo Partido Comunista Brasileiro. A ANL procurava se ajustar às delimitações da Internacional
Comunista (IC), organização de Moscou que determinava a linha do movimento comunista Em linhas
m
gerais visava combater os fascistas, o imperialismo e o governo de Vargas e pregava a tomada do poder por
9 um governo popular, nacional e revolucionário. Em julho de 1935 foi posta na ilegalidade mas não
9 interrompeu suas atividades políticas, exercendo forte influência sobre oficiais militares.
49
9 Em 25 de novembro de 1935, o governo pedira a decretação do estado de sítio por sessenta dias. O
9 estado de sítio, equiparado ao estado de guerra, foi prorrogado até junho de 1937.
9
9
9
<»
9
9
9 21
9
Esse plano fictício foi redigido para ser publicado em um boletim da Ação
Integralista Brasileira (AIB), com o objetivo de demonstrar como seria uma insurreição comunista
e como reagiriam os integralistas nessas circunstâncias55. Entretanto, o plano não passou pelo
crivo de Plínio Salgado, presidente do AIB, que o considerou fantasioso demais e irrealista na
imagem que se fazia dos comunistas56. Atualmente é comprovada a tese de que o plano foi
foijado não pelos integralistas, mas pelos chefes militares com a intenção de justificar o Golpe de
novembro de 1937, contrariando as expectativas de eleição do sucessor de Vargas , prevista para
o ano seguinte. A ameaça de uma insurreição comunista, da forma como foi apresentada pelas
Forças Armadas, legitimou a instauração da ditadura do Estado Novo.
53
Veja o plano na integra em anexo 1.
54
Fundação Getúlio Vargas - FGV / Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea
do Brasil - CPDOC. Disponível em :<http://www.cpdoc.fgv.Brasil/nav_historia /htm/anos30- 37/ ev_
plano _ cohen .htm > acessado em jan. 2003.
55
FAUSTO. Op. cit., p.363.
56
ARAÚJO. Op. cit., p. 19.
o
O
O 23
O
9
9 Outro aspecto que merece destaque é o fato de que Getúlio habilmente preparou a
9 prorrogação de seu mandato no governo central, previsto para encerrar em 3 de maio de 1938.
9
Segundo Carone, Getúlio preparou sua continuação "utilizando-se de recursos extremos
9
9 fornecidos pela própria burguesia"58, isto é, conservou-se no poder pelas ligações
9 estabelecidas com os grupos que no começo de seu mandato encontravam-se enfraquecidos:
9
9 "Quando os tenentistas ocupavam os Estados, ele aproxima-se, promete e oferece,
9
discretamente, posições às oligarquias citadinas das Frentes Únicas, logo depois recuando
diante da reação que estas manobras suscitam. Depois de 1932, quando estas mesmas
9 oligarquias se impõem, simula apoiá-las, quando na verdade continua a ligar-se
9 discretamente aos tenentes e à oligarquia agrária vencida em 1930. Com a bandeira do
anticomunismo, consegue a união de todas estas forças, que nele viam personagem
9 essencial para o momento. A disputa eleitoral e a divisão de forças facultaram-lhe, com
9 auxílio das armas legais fornecidas pela própria oligarquia, vagarosamente articular os
9 grupos prejudicados pela situação e tentar o Estado Novo. Assim, aproveita-se do
descontentamento das forças armadas, que se viam anarquizadas e lutavam contra a
9 indisciplina tenentista; dos elementos das oligarquias agrárias e citadinas, como o Partido
9 Republicano Paulista, a Frente Única Gaúcha, o Partido Social Nacionalista, que não
9 nutriam ilusões de vitória eleitoral; dos integralistas, que esperavam partilhar do poder e
dominar mais facilmente com a ditadura; e de parte da classe média e da burguesia,
9 aterrorizadas ante a constante ameaça comunista de greves, de desassossego púbüco e
9 revoluções. Fácil tornou-se esmagar a União Democrática Brasileira, as forças tenentistas
9 e populares (...), pois o movimento operário estava controlado pelos "pelegos" ou
esmagado pela reação posterior à Revolução da Aliança Nacional Libertadora"59.
9
9 Em 10 de novembro de 1937, o golpe que instaurou o Estado Novo ocorreu
9 tranqüilamente. Algumas horas antes do pronunciamento de Vargas, o Congresso Nacional foi
9 interditado e fechado por tropas da Polícia Militar60. À noite, Getúlio anunciou pelo rádio a
9
9 nova fase política, pautada por uma Carta Constitucional elaborada por Francisco Campos.
9 Segundo Araújo, Getúlio declarou em seu discurso que "a organização constitucional de
9 1934, vazada nos moldes claros do liberalismo e do sistema representativo, evidenciara falhas
9 lamentáveis" e "estava evidentemente antedatada em relação ao espírito do tempo. Destinava-
9 se a uma realidade que deixara de existir"61.
9
9
9
• 57
É importante lembrar que o mandato de Getúlio Vargas teve início em 15 de julho de 1934, quando
9 foi eleito presidente da República pelo voto indireto da Assembléia Nacional Constituinte.
9 58
CARONE, E. Revoluções do Brasil contemporâneo: 1922/1938. São Paulo: Ática, 1989. p. 109.
9
•
59
CARONE. Op. cit., p. 124.
60
Segundo Fausto, o General Dutra (ministro da Guerra) não autorizou que a intervenção do exército.
9 FAUSTO. Op. cit., p.364.
9 61
ARAÚJO. Op. cit., p.24.
9
9
9
9
9
9
9 24
9
9
9 Para melhor entendermos em que medida a Carta Constitucional de 1937
9 representou realmente uma ruptura com o passado, cabe discorrer brevemente sobre a
9
9 Constituição que vigorara até o dia do Golpe.
9
A Constituição de 1934 foi promulgada pela Assembléia Nacional Constituinte com o
9
9 objetivo de substituir a anterior, datada de 1891. Atendendo a interesses de um grupo heterogêneo
9 (governo, lideranças tenentistas, oligarquia, Igreja Católica), a Constituição aprovou no plano da
9 política social, uma série de medidas que beneficiaram os trabalhadores e a família. Foi criada a
9 Justiça do Trabalho, que garantiu, entre outros benefícios, a instauração do salário mínimo, a
9
9
jornada de trabalho de oito horas, o direito a férias remuneradas e ao descanso semanal, a
9 nitidamente corpo rati vista e fascista, apoiada no exemplo da Polônia"63. Fausto considera que a nova
9 Carta não representou efetivamente uma ruptura com o passado, mas legitimou e deu coerência à
9 instituições e práticas que vinham tomando forma desde 193064. Assim que entrou em vigor, a nova
9
Constituição, em princípio, deveria ser submetida a um plebiscito nacional, para a posterior realização
9
9 de eleição para o Parlamento. Porém estas medidas jamais aconteceram durante o Estado Novo.
9
9 Getúlio, estrategicamente, pautou-se no artigo 186 das "disposições finais e
67
Putsch em língua alemã quer dizer golpe de Estado. Veja a cobertura da imprensa da época sobre o putsch
no anexo 1.
68
CARONE. Op.cit., p. 125.
o
9
d 27
9
9
9 A questão da cultura no Estado Novo foi redimensionada nesta perspectiva, e passou
9 a ser configurada em termos de organização política69. O regime passou a produzir e difundir sua
9
9
ideologia para os diversos setores da sociedade através de aparatos culturais sofisticados.
9 Entretanto, é importante lembrar que esta preocupação já estava presente desde os primeiros
9 tempos, quando Vargas, na chefia do governo provisório, fundou o Departamento Oficial de
9 Publicidade (DOP), em 2 de julho de 1931, com o objetivo de fornecer informações oficiais à
9
imprensa por meio de radiodifusão.
9
9 Em 10 de julho de 1934 foi criado o Departamento de Propaganda e Difusão
9
9 Cultural (DPDC), através do decreto-lei n° 24.651, que extinguiu o DOP. Funcionando como
9 uma instância do Ministério da Justiça, foi dirigido por Lourival Fontes, jornalista sergipano
9 admirador do fascismo italiano. O DPDC, além de reafirmar seu predomínio no setor de
9 radiodifusão, englobou a Imprensa Nacional e os setores de cultura e cinema, estimulando-os
9 por meio de premiações à produção de filmes educativos. Após o Golpe, o DPDC passou a
9
9 ocupar as instalações do Palácio Tiradentes, antiga sede da Câmara dos Deputados, no Rio de
A imprensa, que até então era uma instância privada, passou a ser subordinada ao
poder público por um dos dispositivos da constituição de 1937. Constituída como um setor
eficiente do DIP, a imprensa foi orientada prioritariamente para o exercício da censura e
propaganda73. Em nome da preservação da organização do Estado, a imprensa passou também
a exercer uma função pública, conforme argumentou Francisco Campos: "Condensando e
interpretando perante o governo, o sentimento do povo, ela (a imprensa) ao mesmo tempo
esclarece, para o povo, o pensamento e a ação do governo, mantendo por esse meio aquela
perfeita comunidade espiritual que é condição elementar na vida de uma nação"74.
Assim, o controle do Estado sobre a imprensa é que vai garantir esta comunicação
direta entre o governo e a sociedade, evitando qualquer interferência nociva ao regime. Os
jornais estavam subjugados às medidas impostas pelo DIP; entre elas, os jornais e jornalistas
deveriam ser credenciados no próprio departamento. A partir de 1940, 420 jornais e 346
ir
revistas não conseguiram se registrar junto ao DIP e aqueles que insistiram em manter sua
7f t
independência ou se atreveram fazer críticas ao governo tiveram sua licença cassada .
72
CAPELATO. Op. cit., p.36.
73
VELLOSO. Op. cit., p.6.
74
CAMPOS, F. A função social da imprensa. A manhã. Rio de Janeiro, 9 de agosto de 1941. p.2.
Apud: VELLOSO, Op. cit., p.7.
75
CAPELATO. Op. cit., p.70.
76
Capelato Considera que em São Paulo, os importantes jornais liberais foram praticamente
silenciados e tiveram que aceitar em suas redações elementos nomeados pelo governo para vigiá-los.
o
o
o 29
®
o
É importante grifàr que durante o Estado Novo que a prática de divulgação do governo foi
<» legitimada Justamente na qualidade da argumentação política pública que reside a principal distinção
entre a doutrina dos anos 30 e a do Estado Novo. Enquanto a primeira se constituiu numa espécie de
obrigação política para a sociedade, o novo regime se distinguiu pela legitimidade conquistada nas
o
<1 esferas da sociedade civil. Dessa forma, no projeto político-ideológico estadonovista, a cidadania foi
77
o redimensionada na perspectiva de envolver os diferentes atores sociais na política do Estado .
<ft uma forma de fazer parecer que a opinião pública era importante e tinha repercussão78.
<»
Além da imprensa escrita, outro meio de comunicação foi incorporado pelo
O
<ft regime: a Rádio Nacional, reinaugurada em 19 de abril de 1942, por ocasião do aniversário de
<» Getúlio. Segundo Capelato, o controle sobre o rádio foi mais ameno do que o da imprensa,
apesar de aquela ser considerado um veículo de grande importância para o regime79. Os
m
ideólogos do Estado Novo utilizavam o rádio sobretudo para veicular propaganda política do
#
regime, mesclando discursos e notícias oficiais aos programas de grande alcance nas camadas
populares, como programas humorísticos, musicais, transmissões esportivas e radionovelas.
# "Os proprietários do Estado de São Paulo tentaram reagir e o resultado foi a expropriação do jornal, on 1940, por
representantes do Estafo Novo que o converteram an órgão oficioso. O ESP, A noite de São Paulo e O Dia do Rio
de Janeiro tomaram-se os principais órgãos de propaganda do regime". CAPELATO. Op. cit, p.75.
77
# Lamounier considera que uma parcela significativa de estudos sobre o período tende a minimizar o papel da
ideologia estadonovista, reduzindo-a muitas vezes a uma caricatura cabocla do fascismo europeu Dentro desta
# perspectiva, assinala Lamounier, é comum perceber os regimes autoritários como "manifestações imperfeitas dos
# pólos autoritários e democráticos", quando se elegem como parâmetros de análise as expressões ideológico-
culturais dos centros tidos como os mais avançados. Nessa perspectiva, a produção intelectual é relegada a puro
mimetismo ou simboliano destituído de maiores significados. LAMOUNIER, B. Ideologia em regimes
autoritários: uma crítica a Juan Linz. Estudos Cebrap, n°7, janeiro/março, 1974. p.67-92.
78
VELLOSO, M. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. Revista de Sociologia e
# Política, UFPR, Curitiba, n°9, 1997.
79
CAPELATO. Op. cit, p.76.
m
30
O controle dos meios de comunicação foi uma estratégia de poder essencial para a
instauração do regime. Através do rígido controle desses veículos culturais, o Estado Novo
elaborou, produziu e difundiu sua ideologia com o objetivo de homogeneizar ideologicamente
grupos sociais distintos em torno de uma nova ordem.
80
RODRIGUES DA SILVA H. Fragmentos da história intelectual; entre questionamentos e
perspectivas. Campinas, São Paulo: Papirus, 2002.
81
Idéia desenvolvida por Carlo Marletti. In: BOBBIO, N.; MATEUCCI, N.; PASQUINO, G.
Dicionário de política. 5ae. Brasília: Edunb, 1993. p.637.
o
o
O 31
o
9
^ A relação dos intelectuais com a política no período do Estado Novo é tratada por
O Pécaut82 em seu estudo sobre um grupo de intelectuais brasileiros - em especial os instalados
® no Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte - e a ligação desses com seus governantes.
^ Pécaut aventa a hipótese de que os grupos não eram homogêneos, mas se posicionavam -
0 entre outras categorias - ao lado do Estado ou contra ele; ainda ressaltando as diferenças
O desse grupo, Pécaut explora a diversidade de convicções políticas entre eles. O único ponto de
® coesão do diluído grupo, segundo Pécaut, era de que todos reivindicavam "um status de elite
® dirigente, em defesa da idéia de que não há outro caminho para o progresso senão o que
0 consiste em agir de cima e dar forma à sociedade"83.
9
^ A hipótese de Pécaut, sobre essa vocação dos intelectuais de integrar a elite
H dirigente como grupo responsável por educar a sociedade, instiga a verificar, no discurso de
d Mário Pedrosa, se existem elementos que indiquem a possível preocupação pedagógica em
® relação à obra de arte. Nesse sentido, podemos perguntar: o crítico, ao elogiar com tanta
® veemência a forma e o conteúdo das obras de Portinari, não o fará com a intenção de sugerir
^ (pois somente o crítico de arte tem prerrogativas para tal) e até mesmo reafirmar para o artista
H o bom gosto para a arte brasileira segundo a óptica de sua própria matriz intelectual?
® Poderíamos também refletir sobre o caráter heterogêneo do grupo intelectual brasileiro e a
9
® dificuldade em traçarmos uma definição latosensu para tal grupo no espaço brasileiro, devido
9
# nacionalidade brasileira".
82
J PÉCAUT, op. cit.
83
^ PÉCAUT, op. cit, p. 15.
84
a VELLOSO, Mônica. Os intelectuais e a política cultural no Estado Novo. Revista de Sociologia e
^ Política, Dep. de Ciências Sociais, UFPR, Curitiba, n° 9, 1997.
•
9
9
9
32
Dessa forma, o Estado Novo conferiu uma nova função ao intelectual, mais adequada
à nova realidade social. Em seu discurso de posse, Getúlio ressaltou a diferenças mais marcante
entre os intelectuais brasileiros do final do século XIX e os de seu governo. Segundo Vargas, os
intelectuais que os precederam tinham preocupações meramente literárias, e isolavam-se na
Academia como uma "torre de marfim", distantes das lutas sociais89. Ao criticar a atitude
isolacionista dos intelectuais, Getúlio reafirmou a necessidade da integração do intelectual ao
corpo do Estado para exercer efetivamente a função social de participação nos destinos da Nação.
O discurso de Vargas procurou selar o pacto entre intelectuais e Estado Novo: "A primeira fase de
vossa ilustre instituição (ABL) decorreu à margem das atividades gerais (...). Só no terceiro
declínio desse século operou-se a simbiose entre homens de pensamento e de ação"90.
85
VELLOSO, Op. cit., p.58.
86
Que até então, segundo Pécaut, estava marcada por duas experiências negativas: a dependência
perante o Império e o isolamento do início do século XX.
87
VELLOSO, Op. cit., p.60.
88
Idem.
89
"(...) a Academia Brasileira de Letras tem que ser o que são as instituições análogas: uma torre de
marfim (...)". Machado de Assis, 1897. Apud: VELLOSO. Op. cit., p.59.
90
VARGAS, 1943. Apud: VELLOSO. Idem.
9
II
9 33
9
9
Ci Se havia de fato um grande esforço de Getúlio em conciliar-se com os
9 intelectuais, podemos dizer que não era sem propósito, haja vista os inúmeros antagonistas ao
9 regime. Se o Estado mobilizou amplos setores da intelectualidade, isso não significa a
9
integração indiferenciada desse grupo, mas o chamamento daqueles mais afinados às
9
9 delimitações do próprio Estado. Desse modo, é interessante verificar na trajetória intelectual
9 de Mário Pedrosa e artística de Cândido Portinari como se deu o processo de exclusão e
9 assimilação desses dois personagens das esferas culturais do regime.
9
(i Na estratégia ideológica do regime, a cultura estava estreitamente vinculada ao
9 poder político e desempenhou papel fundamental na legitimação do discurso que estabeleceu
9
a função centralizadora e coordenadora do Estado sobre os diversos setores da sociedade. Os
9
9 intelectuais foram incorporados pelo Estado como intérpretes da vida social, "pois eram
9 capazes de transmitir as múltiplas manifestações sociais e trazê-las para o seio do Estado, que
9 deveria discipliná-las e coordená-las"91.
9
9 A doutrina política do regime buscou apresentar um Estado que correspondesse
9 aos anseios da sociedade e mostrou-se disposta a interpretar o interesse coletivo e representá-
9
9
lo. A cultura, nesse sentido, ocupou um lugar estratégico na organização do Estado, na
9 medida em que traduzia a verdadeira brasilidade. Dessa forma, a relação entre intelectuais e
9 poder político esseve ligada ao problema da construção da nacionalidade. O discurso oficial,
9 que atribui ao intelectual a função de falar em nome dos destituídos, foi prontamente
9 incorporado por uma parcela dos intelectuais brasileiros. Assim, poderíamos questionar: não
9
9 haveria interesses em jogo por parte dos intelectuais cooptados, uma vez que esse grupo,
transformar o país colonial em Nação. Nesse sentido, a identidade nacional foi pensada como
92
questão sine qua non para afirmar e identificar o país frente as outras Nações emergentes .
92
VELOSO, M. & MADEIRA, A. Século XIX: paisagens do Brasil. In: Leituras Brasileiras.
Itinerários no pensamento social e na literatura. SP: Paz e Terra, 1999. s/p.
93
Idem
94
VELLOSO. Op. cit., p.57.
95
VELLOSO. Op. cit., p.58.
o
o
o 35
0
o
<J> Imbuídos desse mesmo sentimento, os intelectuais na década de 1930 passaram a
9 atuar diretamente no âmbito do Estado, tendendo a identificá-lo como o maior representante da
idéia de Nação. Os intelectuais, que historicamente se constituíram como um grupo distinto,
9
9 encontraram nos postos e cargos oferecidos pelo novo regime um canal de acesso para ordenar e
9 coesão entre intelectuais e Estado denota o caráter autoritário dos projetos culturais
9 estadonovistas. A cultura foi elaborada e executada de cima para baixo, confirmando a grande
9 distância existente entre a elite detentora da cultura e as camadas populares.
9
9 A questão da cultura no Estado Novo foi enfatizada por Cassiano Ricardo97,
9 significativo ideólogo do regime. Nas suas argumentações, considerava que "a cultura era o
9
• único instrumento capaz de arregimentar as forças sociais, integrando-as ao Estado". Sob essa
9 óptica, foi por intermédio da ação do Estado que a cultura adquiriu um sentido positivo, na
9 medida em que contribuía para unificar o país e, consequentemente, extinguia os conflitos98.
9
<» Se, por um lado, o discurso de Cassiano Ricardo legitimava o controle dos
# aparatos culturais pelo Estado, por outro, desprezava qualquer canal não oficial de difusão
cultural, vistos como ameaça à harmonia do regime. A pluralidade de idéias era considerada
nociva pelo regime, pois poderia levar à desordem social. Dessa forma, os ideólogos do
Estado empenharam-se em banir do país intelectuais e políticos - sobretudo de esquerda - que
• não partilhavam da mesma ideologia.
9
9 96
FAUSTO. Op. cit., p.376.
9 97
Durante o Estado Novo (1937-1945) ocupou diversos postos importantes, dirigindo o Departamento
9 Estadual de Imprensa e Propaganda de São Paulo, o departamento cultural da Rádio Nacional e o
9 jornal A Manhã, porta-voz governamental.
9 http://wvw.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/biografias/ev_bio_cassianoricardo.htm.
9 98
VELLOSO. Op. cit., p. 10.
9
9
9
9
36
Outro aspecto que merece ser ressaltado é o fato de que o Estado Novo apropriou-
se do evento modernista de 1922 sem distinguir as diversas correntes de pensamento. A
presença de Cassiano Ricardo em um posto chave do aparelho do Estado dá a medida do
vínculo estabelecido entre a ideologia modernista e o regime103. Porém, no Estado Novo, a
questão da cultura popular, a busca das raízes da brasilidade ganharam outra dimensão. O
regime procurava, sobretudo, converter a cultura em instrumento de doutrina. Com esse
objetivo vai buscar a brasilidade na consagração da tradição, nos símbolos, nos heróis
nacionais. O regime vai se inspirar especialmente no verde-amarelismo, corrente modernista
idealizada por Plínio Salgado e Menotti dei Picchia.
99
LIPPI, Lúcia. Os intelectuais e o nacionalismo. In; Seminário folclore e cultura popular: as várias
faces de um debate / Instituto Nacional de Folclore, Coordenadoria de Estudos e Pesquisas. Rio de
Janeiro: IBAC, 1992. p.70.
100
GOMES, A. C. História e historiadores. 2aed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. p. 158.
101
LIPPI. Op. cit., p.70.
102
Graciliano Ramos foi preso pelo DIP por ter sido considerado simpatizante comunista quando
dirigia uma secretaria de governo em Alagoas.
103
VELLOSO. Op. cit, p.70.
104
VELLOSO. A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo paulista. Estudos
Históricos. FGV, Rio de Janeiro, 6/11, 1993. s/p.
0
0
0 37
0
0 Se num primeiro momento o movimento modernista indicava uma visão de
0 futuro, os verde-amarelos buscaram resgatar um passado mítico, idealizado. E importante
0
0
ressaltar que, da radicalização das posições verde-amarelas de Plínio Salgado, surgirá o Grupo
0 Anta, que na mesma perspectiva adotou uma extremada postura ultra-nacionalista. O Grupo
0 Anta, através de suas idéias veiculadas em revistas e livros, fundamentou o movimento
0 integralista, dirigido por Plínio Salgado.
0
0 Essas idéias conservadoras defendidas pelos verde-amarelos foram duramente
0 criticadas pelas demais correntes modernistas, particularmente pelas vertentes menos
0
0
conservadoras fundadas por Oswald de Andrade: os movimentos Pau-brasil e Antropofágico. Em
0 linhas gerais, a arte para o Pau-brasil deveria ser pautada pela pesquisa, tanto no plano temático,
0 quanto nas formas de expressão, que poderiam ser, sem reservas, tomadas de empréstimo das
0 vanguardas européias. O pitoresco nacional deveria ser tematizado, na busca de uma expressão
0
que retratasse a sociedade contemporânea. O movimento Antropofágico, por outro lado, defendia
0
um cultura brasileira em seu estado primitivo de pureza, anterior à ordem patriarcal e hierárquica,
0
0 das formas institucionalizadas da religião, longe da política e da economia. Propunha a pesquisa
0 de aspectos da cultura brasileira, suas tendências, seus costumes e usos. Pretendia devorar a
0 cultura européia para incorporar suas virtudes e reforçar o próprio organismo, a cultura brasileira.
0
0 Mas esta visão crítica da cultura, difundida pelas correntes modernistas menos
0 conservadoras, vai ser substituída pelo ufanismo. Personalidades como Caxias e Tiradentes
0
0 são resgatados como exemplos. No contexto estadonovista não há mais espaço para o anti-
regime não significou um corpo de doutrinas unificadas, mas se caracterizou pelo ecletismo
de idéias e tendências, haja vista a disparidade entre o DIP, composto por intelectuais da
vertente verde-amarela (Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia e Cândido Mota Filho) e do
Ministério da Educação, constituído por intelectuais das vertentes modernistas menos
conservadoras, entre eles Carlos Drummond de Andrade, Lúcio Costa e Cândido Portinari.
Em janeiro de 1927, Pedrosa foi nomeado agente fiscal da Paraíba, onde chegou a
se estabelecer, mas por pouco tempo. Meses depois, retomou a São Paulo e voltou a trabalhar
no Diário da Noite, onde escreveu diversos artigos políticos. Devido ao clima de insegurança
105
Foi na Faculdade de Direito que Mário Pedrosa conheceu o aluno Lívio Barreto Xavier. Também
nascido em Pernambuco no ano de 1900, Lívio tomara-se seu grande amigo, compartilhando com Pedrosa
as mesmas dúvidas e angústias quanto ao destino da esquerda brasileira. Xavier participou ativamente do
processo que organizou o movimento trotskista, cumprindo a função de mediador entre Mário Pedrosa, na
Europa e os dissidentes brasileiros. Junto com Pedrosa, também escreveu ensaios, traduziu, organizou e
apresentou textos de Trotsky. Após a década de 1930, abandonou a política partidária e passou a se dedicar
somente à advocacia e à atividade jornalística Convém ressaltar que o mentor intelectual do grupo de
alunos que Pedrosa e Lívio integravam era o professor Castro Rabello, que veio a ser paraninfo de sua
turma Foi nesse período também que fez outras amizades, entre as quais estão o poeta Murilo Mendes, o
pintor modernista Ismael Nery e Mary Houston, com quem se casaria mais tarde.
o
9
o 41
0
<1
II gerado pela Lei Aníbal Toledo106, Pedrosa se viu obrigado a, novamente, partir para o interior
0 do Estado. Lá permaneceu até outubro do mesmo ano (1927), quando a direção do PC decidiu
H 107
H mandá-lo para Moscou participar de um curso de formação militante da III Internacional .A
0 carta de indicação, remetida por Astrogildo Pereira à Escola Leninista, dá a medida do
0
prestígio de Pedrosa frente ao PCB:
0
Rio, 7 de novembro de 1927.
9 Ao Reitor da E.L.I. (Escola Lêninista Internacional)
0 O camarada Mário Pedrosa, que embarcou no Rio a 7 do corrente com destino a Moscou, é
0 o 2o candidato do PCB para a ELI. Ele é um intelectual, mas militante dedicado ao Partido e
o curso da Escola muito bem lhe poderá fazer, quer do ponto de vista político, quer do
II ponto de vista moral. Mário Pedrosa tem atualmente 27 anos de idade. Aderiu ao Partido há
II mais de 2 anos. Editou em São Paulo uma pequena revista marxista - Revista Proletária
0 Natural do Estado de Pernambuco, isto é, da zona açucareira Seu pai é alto funcionário
público. Estudou em Pernambuco e no Rio. Bacharel em direito. Faz a vida de jornalista,
0 não advoga Durante o curso jurídico lia e admirava Romain Rolland e por intermédio desse
0 foi até Clarté. Um dos seus mestres na academia foi Castro Rebello, marxista notório.
0 Tendo aderido, em 1925, à organização do PCB de São Paulo, aí militou, transferindo-se
depois para o Rio, onde militou não só na organização do Partido (fazendo parte de um
0 comitê rayon) como também no Socorro Vermelho Internacional (Socorro Proletário). Tais
<1 as características sociais, intelectuais e políticas do camarada Mário Pedrosa
Pelo CC do PCB. Astrogildo Pereira10 .
O
II
<1
Em 7 de novembro de 1927, Pedrosa partiu com destino à URSS, mas em escala
II
na Alemanha adoeceu e interrompeu o curso da viagem. Aproveitou a estada para fazer um
9
0 estágio em Berlim, experiência que o levou a atuar como militante comunista do PC alemão,
0 chegando até mesmo a ter participado das lutas de rua contra os nazistas.
0
0
9
II 106
Convém precisar que o PCB atravessou um breve período de legalidade durante o governo de
II Washington Luís (encontrava-se na ilegalidade desde junho de 1922, quatro meses após sua
9 fundação), foi recolocado na ilegalidade em janeiro de 1927, pela Lei Aníbal Toledo, também
conhecida como a "Lei Celerada". A Lei instaurou rigorosas medidas repressivas para cercear a
9 liberdade de expressão, especialmente na imprensa, atingindo diretamente Mário Pedrosa, que atuava
9 como jornalista e militante comunista
107
(I A Internacional Comunista, ou Comintern, foi fundada em Moscou por Lênin e pelos bolcheviques
9 em 1919 para orientar os recém-nascidos partidos comunistas e todos os sucessores revolucionários da
Segunda Internacional. Enquanto Lênin ainda estava vivo, o Comintern realizava seus congressos
9 internacionais anualmente. Com a ascensão de Stálin ao poder soviético, depois da morte de Lênin,
9 aquele anulou a perspectiva internacionalista, dissolvendo o movimento em 1934. Stálin assumiu o
9 controle sobre as atividades dos partidos comunistas em todo o mundo e em 1943 dissolveu o
Comintern como gesto de amizade em relação aos aliados da Segunda Grande Guerra.
<1 108
Documento publicado em: CASTILHO, J. (org.) Mário Pedrosa e o Brasil. laed. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2001. p.214.
<1
<1
#
42
Em 1928, Mário Pedrosa viajou a Paris para o casamento da cunhada com Benjamin
Peret, poeta francês ligado ao movimento surrealista Lá passou a freqüentar o grupo dos surrealistas,
composto por alguns escritores, entre eles Aragon, Breton e Naville, esse líder trotskista que dirigia a
revista comunista Clarté (chamada depois Lutte de Classes) e com quem Mário já havia se
correspondido. Esse contato despertou em Pedrosa o interesse pelas artes plásticas, mas esse aspecto
será melhor explorado no decorrer da pesquisa, quando trataremos da formação do crítico de arte.
"Agora, aqui pra nós. Desanimei duma vez de ir, hoje mesmo que te escrevo. O Congresso
Bolchevique do Pan Russo expulsou Trotski e a oposição do partido! Acabou assim a
oposição (...) quando vi no L'Humanité a resolução publicada ontem - não foi surpresa,
pelo contrário - foi como uma desgraça que já se estava esperando. (...) os grandes
problemas que estavam no ar não foram resolvidos, mas suprimidos. Que é também uma
maneira de resolvê-los, afinal. A hora é dura e a gente tem de ser lúcido, disciplinado e
coerente. Do meu ponto de vista pessoal, uma desolação. Saí tão acabrunhado quando vi
tudo consumado que, no restaurante onde como, um russo qualquer também come lá, e me
perguntou por que eu estava muito triste pois minhafisionomiadenotava que alguma coisa
me tinha acontecido ou estava sentindo. E como é que eu vou para a Rússia assim ?"109.
Logo em seguida Pedrosa renunciou à missão, rompeu com o partido e aderiu aos
posicionamentos defendidos por Trotsky110. Ainda na Alemanha, cursou Filosofia e
Sociologia na Universidade de Berlim. Oportunamente conviveu intensamente com Naville,
com quem debatia não somente questões políticas, mas também estéticas, entre elas a
psicologia da forma, a Gestalt, que conhecera em Berlim.
109
Documento publicado em: CASTILHO, José (org.). Op. cit., p. 92.
110
Lev Davidovitch Bronstein, reconhecido como Leon Trotsky, nasceu na Ucrânia em 1879, em uma
família judaica abastada. Ao lado de Lênin, liderou os bolcheviques na Revolução de outubro de 1917,
derrubando o governo provisório e instaurando o primeiro Estado Operário da história Trotsky foi
responsável pela organização do exército vermelho (milícia formada principalmente por operários), que foi
fundamental para a tomada de poder e por sua manutenção na luta contra os "brancos". De 1918 a 1921
exerceu o cargo de Comissário do Povo para a Gueixa Em 1923 aprofunda-se a cisão entre Stálin e
Trotsky, provocada pela crescente burocratização de Stálin. Lênin morre em 21 de janeiro de 1924, no
mesmo ano começa no Comitê Central do Partido Bolchevique o processo de calúnia e difamação de
Trotsky promovido por Stálin e seus dois principais aliados: Kamenev e Zinoviev. A disputa entre Trotsky
e Stálin é travada sobretudo pela divergência de fundamentos políticos, envolvendo o ideal de "Revolução
Permanente" de Trotsky, e a defesa da política do "socialismo em um só país" de Stálin. Em 1925 Trotsky é
proibido de falar em público, em 1929 é banido da União Soviética, por ordem de Stálin.
H
<1
9 43
9
9
9 Nesse mesmo ano de 1928, manteve também contato com o Expressionismo
9 alemão, através de Piscator111 e Grosz112. Escreveu Sinal de Partida, livro posteriormente
9 apreendido pela polícia. Retornou ao Brasil em 1929; foi imediatamente expulso do PCB,
9
9 devido a sua simpatia por Trotsky. Ainda em 1929, formou o primeiro grupo oposicionista de
9 uma ameaça interna, pelo seu caráter internacional e pelo apoio que recebia de suas grandes potências.
9
O Em segundo lugar, a ameaça do fascismo não se restringia à esfera política. O
9 fascismo se opunha com a mesma força ao liberalismo, ao comunismo e ao socialismo, recusando
9 assim toda a herança revolucionária do Iluminismo setecentista e de todos os regimes nascidos da
O
9
Revolução Americana e da Francesa, bem como o nascido da Revolução Russa.
O
9 111
Erwin Piscator, militante do PC alemão, elaborou uma vasta produção teatral de caráter
9 propagandístico, visando veicular a ideologia revolucionária do partido. O Partido Comunista porém
9 não concordava com o uso que Piscator fazia do teatro e fez oposição à sua produção.
112
O George Grosz foi um dos principais artistas do Expressionismo alemão, também era militante do
<1 PC alemão. Em 1932 muda-se para Nova Iorque, fugindo da perseguição do governo alemão, devido
9
ao conteúdo crítico-satírico de sua produção artística.
9
113
Com a ascensão de Hitler na Alemanha em 1933, quando esse derrota o PC alemão, Trotsky
declara a falência da III Internacional e a necessidade da construção da IV Internacional, alegando que
O a política da IC orientada por Stálin não era mais passível de reorientação às suas origens. Militantes
II de várias partes do planeta aderiram ao combate de Trotsky, entre eles Mário Pedrosa, que, como
veremos a seguir, dedicou-se inteiramente ao combate pela reorientação da IC. A IV Internacional
O
seria fundada por Trotsky somente em 1938, como a sucessora do Comintern, com a proposta de
9 tornar-se um movimento de massas de abrangência internacional.
9
9
O
O
44
114
Hobsbawm, E. Os intelectuais e o antifascismo. In: Hobsbawm (org.) História do marxismo na
época da terceira internacional: problemas da cultura e da ideologia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
p.267.
115
CASTILHO, J. O jovem intelectual e os primeiros anos... IN: CASTILHO. Op.cit., p.85.
45
116
CASTILHO. Op. cit., p.94.
117
Movimento liderado por Joaquim Barbosa e João da Costa Pimenta, antigos militantes do PCB e
dirigentes da Federação Sindical Regional do Rio de Janeiro. A crítica que esses faziam ao PCB era
direcionada à política sindical adotada pelo partido e à utilização desta como instrumento político. Na
visão desses dirigentes, os sindicatos tornaram-se meros órgãos de expressão legal de sua política,
tendo em vista a ilegalidade em que se encontrava o PCB.
118
Como relata Hílcar Leite, antigo militante do PCB e da Oposição de esquerda, a 4R "foi uma célula
dos gráficos estabelecida no jornal governista O Paiz, que era conhecida como 4R. Antigamente as
células tinham um número e um indicativo: havia células residenciais e de empresas. Como não havia
gente suficiente em O Paiz para formar uma célula, eles a transformaram em residencial para poder
agrupar gente de outras oficinas próximas. Daí 4R - 4 Residencial". A célula 4R foi expulsa do
partido porque representou "atividades direitistas nos sindicatos", isto é, porque efetuou uma política
de alianças com elementos da pequena burguesia, subordinando assim o Partido a acordos que
prejudicariam a independência desse como condutor da classe operária. In: CASTILHO, J. Solidão
Revolucionária: Mário Pedrosa e as origens do trotskismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1993.
p.124.
119
Disponível em <http://www.sintese-se.com.br/textos/trotskismo.htm> Acesso em jan. 2003.
120
CASTILHO. Op. cit., p.94.
46
Em 21 de janeiro de 1931, dia lembrado pela morte de Lênin (1924), foi fundada a
Liga Comunista (LC), seção brasileira da Oposição de Esquerda Internacional, associada à
Oposição Internacional de Esquerda de orientação trotskista (criada em 1930 em Paris). É
interessante observar que, tanto o GCL, como a LC, possuíam vocação internacionalista,
devido a sua familiaridade com a Oposição de Esquerda Francesa, que aconselhava aos
brasileiros "tomarem a crise russa como referência teórica e procurarem encontrar estratégias
de luta baseadas em problemas brasileiros"121. Seguindo essas orientações, Mário Pedrosa se
auto-atribuiu a tarefa de modelar a - por ele designada - "homogeneidade ideológica do
grupo". Dessa forma, a plataforma geral da LC foi fundamentada em um texto escrito por
Mário Pedrosa e Lívio Xavier no ano anterior, intitulado "Esboço de Análise da Situação
Nacional". Esse texto, posteriormente publicado na revista Luta de Classe / n°6 / fevereiro-
março foi simultaneamente veiculado pelo Secretariado Internacional, na revista de
Naville122.
121
CASTILHO. Op. cit., p.95.
122
ARANTES. Otilia (org.). Política das artes / Mário Pedrosa. São Paulo: Edusp, 1995. p.352.
123
CASTRO. Os intelectuais trotskistas nos anos 30. In: AARÃO. Op. cit., p. 141.
124
CASTRO. Op. cit., p. 142.
o
o
o 47
o
9
9 O grupo de intelectuais trotskistas da década de 1930 - personificado aqui na
«I
figura de Mário Pedrosa - tinha o cerne de sua identidade intelectual na luta político-
o ideológica travada pela LCI contra o stalinismo. A atuação política de Mário Pedrosa, assim
o
9 como a dos outros poucos militantes, ocorria no âmbito das entidades sindicais, haja vista sua
9 filiação a um dos mais combativos e intelectualizados sindicatos da época, o sindicato dos
o gráficos.
o
9 É importante assinalar que outras divergências políticas acirravam os antagonismos
o
entre comunistas e trotskistas. Para os intelectuais trotskistas, o integralismo e o governo Vargas
9 1 *) ^
4»
eram encarados como inimigos que deveriam ser combatidos separadamente . Por outro lado, para
o
os militantes do PCB, a luta contra o fascismo e contra a política estadonovista tinha o mesmo
d
d significado, particularmente no que se referia à questão sindical e aos direitos civis, ameaçados com
a promulgação da Lei de Segurança Nacional, promulgada por Vargas com o decreto-lei n°38.
9 A Lei de Segurança Nacional atingia diretamente os militantes de esquerda, à medida
9 que constituía uma espécie de código penal para julgar os crimes considerados prejudiciais à
O
segurança do país; visava reprimir qualquer organização política de oposição ao governo,
(i
9 principalmente a ANL (ver cap. 1). De acordo com a LSN, eram crimes contra a ordem pública:
9 Capítulo I : Artigo I o - Tentar diretamente e por fato, mudar, por meio violentos, a
9 Constituição da República, no todo ou em parte, ou a forma de governo por ela
9 estabelecida. Pena - reclusão por 6 a 10 anos aos cabeças e por cinco a oito anos aos co-
réus. / Artigo 4o - Será punido (...) aquele que (...) aliciar ou articular pessoas (...). / Artigo
9 9o - Instigar a desobediência coletiva ao cumprimento da ordem pública. / Artigo 10 -
9 Incitar militares, inclusive os que pertencem a polícias, a desobedecer à lei, ou a infringir
9 de qualquer forma a disciplina, a rebelar-se ou desertar. Pena - 1 a 4 anos de prisão. /
9
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorrerá quem: a) Distribuir ou procurar distribuir
entre soldados e marinheiros quaisquer papéis, impressos, manuscritos (...) em que se
9 contenha incitamento direto à indisciplina.
9 Capítulo II : São crimes contra a ordem social: Artigo 14 - Incitar diretamente o ódio
9
dentre as classes sociais. Pena - 6 meses a dois anos de prisão.
Capítulo III : Artigo 2o - Não será tolerada a propaganda de guerra ou de processos
9 violentos para subverter a ordem pública. / Artigo 30 - É proibida a existência de partidos,
9 centros, agremiações ou juntas de qualquer espécie que visem à subversão, pela ameaça
9
ou violência, da ordem política ou social. / Artigo 33 - O oficial das forças armadas que
praticar qualquer dos atos definidos como crimes nesta lei, ou se filiar, ostensiva ou
9 clandestinamente a partido, centro, agremiação ou junta proibida de existência no artigo
9 30 será, igualmente, afastado do cargo, comando ou função militar que exercer.
Capítulo IV : Artigo 40 - São inafiançáveis os crimes punidos nesta lei, cujo máximo de
9 pena foi prisão celular ou reclusão superior a um ano12 .
9
9 125
CASTRO, R. F. Os intelectuais Trotskystas nos anos 30. In: AARÃO. Op. cit., p. 138.
9 126
Disponível em: <http://www.ceveh.com.brA)ibhoteca/teses/ta/ta-t-05.htm> acesso em jan. de 2003.
9
9
9
9
48
Dessa forma, essa manifestação das esquerdas marcou uma reação efetiva contra a
reunião convocada pelos integralistas, seguindo a tendência das organizações da esquerda
européia de organização antifascista. Os meses que precederam o movimento contra os
integralistas na Praça da Sé foram marcados, em nível mundial, por graves agitações de rua,
desta vez desencadeadas pelas organizações fascistas.
127
Entrevista concedida por Herminio Saccheta para a Revista Isto É em 10 de outubro de 1979, na
reportagem "Surpresa: a PM apoia a esquerda". In: PINHEIRO, P. S.; ZIROLDO, Angela. Um dia de
49
"(...) os comunistas queriam fazer guerra aos fascistas sozinhos. Depois de algum tempo
de luta, encontramos uma certa disposição do Comitê Regional de São Paulo em não
obedecer à orientação que vinha do Comitê Central, que não queria permitir que o Partido
Comunista entrasse na frente única das organizações. Depois de I o de maio de 1934 é que
a necessidade dessa frente única se tornou patente, porque havia uma ofensiva dos
integralistas ocupando as posições oficiais, colocando homens-chave nos ministérios, nos
partidos, na polícia, influindo nos jornais, ditando posições cada vez mais ameaçadoras,
na tentativa de tomar o poder. É diante do governo de Getúlio Vargas, sumamente
oportunista, que em determinado momento poderia entregar o poder aos integralistas ou
chamar os integralistas para o poder, para trabalhar com eles, é que a necessidade de luta
contra o fascismo tornou inevitável a adesão do Partido Comunista"129.
luta e união. [Entrevista com Fúlvio Abramo, Mário Pedrosa e Herminio Saccheta]. Revista Isto É.
n°146. p.80-82. Acervo da Biblioteca Pública do Paraná.
128
Fúlvio Abramo é presidente do CEMAP - Centro de Documentação Mário Pedrosa, fundado em
1981. Em 1934 era da Liga Comunista Intemacionalista (de oposição ao PC e de tendência trotskista).
129
Entrevista concedida por Fúlvio Abramo à Revista Isto É em 10 de out. de 1979, na reportagem "A
revoada das galinhas verdes".
50
Por outro lado, a adesão do Partido Comunista ao movimento foi considerada uma
verdadeira heresia, uma vez que no período não era permitido aos comunistas nem sequer um
breve cumprimento aos trotskistas, como previa o artigo 13 dos estatutos do PC. Do ponto de
vista dos comunistas, foi o PC que tomou a iniciativa do movimento, como registra Herminio
Sacchetta, que em 1934 era integrante do Comitê Regional do PC em São Paulo:
"O Comitê Central do PC era contra a fiente única Mas eu ia lá obedecer àqueles cretinos
burocratas? Ao fazer esta reunião com outras organizações eu cometi uma verdadeira heresia (...)
Mas eu não dei confiança para eles e o PC é quem tomou a iniciativa de convocar esta reunião.
Nós tínhamos o maior número de militantes e éramos a organização mais forte. O PC an São
Paulo, se considerarmos os militantes, aparelhos, ativistas efraçõessindicais e de organização de
massa, tinha, falando honestamente, de 1.500 a 2 mil pessoas. Não mais que isso, ainda que fosse
uma organização altamente militante. Nesta reunião eurepresentavao PCB"130.
Por outro lado, Mário Pedrosa reafirmou que a iniciativa de propor uma frente única
antifascista foi mérito dos trotskistas, que fundamentavam a luta em tomo de dois objetivos:
defender a autonomia sindical, ameaçada pela legislação estabelecida por Lindolfo Collor131, e não
permitir que os integralistas ganhassem a rua e ocupassem espaço no movimento operário. Quanto à
atuação dos comunistas no movimento, segundo Pedrosa eles "em princípio, se recusaram a tomar
parte na Frente. Tentaram fazer várias manifestações para provar a auto-suficiência no combate ao
1
integralismo. Mas acabaram concordando com a nossa proposta de frente única"
130
Entrevista concedida por Herminio Sacchetta para a revista Isto É em 10 de out. de 1979, na
reportagem "Surpresa: a PM apoia a esquerda".
131
Lindolfo Collor, foi o primeiro dirigente do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, criado por Vargas
em 26 de novembro de 1930. O Ministério visava interferir nas questões relativas ao capital e ao trabalho, até
então tratadas pelo Ministério da Agricultura, ou seja, eram praticamente ignoradas pelo governo. A intensa
atividade legislativa caracterizou a gestão de Collor, referente sobretudo à organização sindical e aos direitos
trabalhistas. No que se refere à organização sindical, Collor declarava explicitamente que concebia os sindicatos
como um instrumento para mediar o conflito entre empregados e patrões. Seu objetivo era trazer as organizações
sindicais para a órbita do novo ministério, de forma que passassem a ser controladas pelo Estado. Por outro lado,
estimulava-se também a organização e reconhecimento de sindicatos patronais, na perspectiva de construir uma
organização social sobre bases corporativas. No que se refere à questão dos direitos trabalhistas, o regime
procurava atender algumas reivindicações históricas do proletariado, ao mesmo tempo em que construía todo
um discurso ideológico sustentado na idéia da outorga dos direitos dos trabalhadores pelo Estado. Esse projeto
foi intensamente criticado pelos grupos de esquerda, que denunciavam seu caráter corporativista e diluidor dos
conflitos entre capital e trabalho. Por conta disso, nos primeiros tempos somente os sindicatos das categorias
com menor tradição organizativa aceitaram se enquadrar nas condições exigidas pelo Ministério do Trabalho
para que fossem oficialmente reconhecidos. Disponível em < http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/anos30-
37/evjministerio_trabalho.htm>. Acessado em jan. 2003.
132
Entrevista concedida por Mário Pedrosa à Revista Isto É em 10 de out. de 1979, na reportagem
"Quatro Horas de ditadura do proletariado".
51
"Estamos aqui concordes que o Golpe [de] Getúlio abriu uma nova fase no
desenvolvimento da situação. Num certo sentido, comparável ao que se passou na
Alemanha com o advento de Hitler: isto é, é preciso começar tudo de novo. O PC, que já
estava em agonia, volatilizou-se, e aqui as perspectivas de renascimento são muito
menores, tendo em vista a situação geral do mundo e a decadência pronunciada da IC.
Não há tradições teóricas e organizatórias ponderáveis. Nós poderemos assim nos manter,
e aproveitar o tempo para criarmos os primeiros quadros, isto é, tarefa propagandística
e educadora em primeiro lugar. A fase de estabilização relativa, diante de nós, e a
profunda derrota e depressão sofridas impõem a todos nós começar tudo outra vez do
começo. Mas agora com maior experiência e maior concentração de esforços. Afinal no
Brasil chegamos, numa marcha-ré violenta, a uma época em que se abre na prática a
questão da imigração; quiseram os fados que fosse eu o primeiro a ser forçado realmente
a emigrar (não tome a emigração no sentido puramente geográfico, mas sobretudo no
133
ARANTES. Op. cit., p.353.
134
OfracassadoLevante de 1935, realizado pouco depois por dirigentes do PCB reunidos em tomo da
ANL foi um golpe aos partidos de esquerda, que estavam confiantes após a bem sucedida
manifestação antifascista.
135
KAREPOVS, D. Mário Pedrosa e a IV Internacional: 1938-1940. IN: CASTILHO, Op.cit.,
p.100.
9
9
9 52
9
9
9 sentido de atividade política, pois a emigração em si pode também ser para o interior do
9 próprio país).(...)Esta carta não é apenas uma carta particular minha, mas foi aconselhada
pelos companheiros de organização. Aproveito a oportunidade para fazer o [que] de há
9 muito andava querendo fazer: trocar idéias com você, principalmente agora em que sou
9 forçado a expatriar-me, sob a ameaça de 5 ou 8 anos de grade ou de ilha. Vou emigrar por
9 decisão organizatória e, com plano de trabalho a executar ou tentar executar. A primeira
tarefa é nos tirar do isolacionismo provinciano em que todos estamos confinados; a
9 segunda, é de ordem teórica; a terceira etc. Espero de você um endereço seguro para que
9 possa utilizar-me de lá de fora e nos correspondermos e outro endereço para envio do
9 material. Muito tinha ainda que conversarmos mas não há muito tempo. Abrace os
amigos. Não posso lhe dizer detalhes sobre a minha excursão"136.
9
9 Com "começar tudo de novo", Pedrosa referiu-se à fase inicial da construção do
9 primeiro grupo trotskista no Brasil, o GCL, quando houve maior destaque para a propaganda e
9 educação. Em sua estada em Paris, Mário trabalhou pela fundação da IV Internacional, que
9
acabou por ser realizada em 1938, durante o I o Congresso da IV Internacional. Devido à expansão
9
9 da guerra, o Secretariado da IV Internacional transferiu-se para os Estados Unidos, e Pedrosa foi
9 enviado para lá. Em fevereiro de 1940, Pedrosa publicou um artigo redigido no ano anterior,
9 posicionando-se contra o apoio incondicional à defesa da União Soviética, agravada pelo pacto
9
Hitler-Stálin.
9
9 Mário Pedrosa, desde 1935, quando a Internacional Socialista oficializou sua
9
9 oposição ao fascismo e conclamou todo leque político não-fascista a enfrentar aquela ameaça,
9 aderiu prontamente a essa posição, assim como grande parcela da intelectualidade ocidental, que,
O a partir de seu componente jornalístico, procurou alertar a sociedade civil e governantes sobre a
<1 natureza do nacional-socialismo alemão. Os Estados ocidentais não-fascistas desconfiaram
9
profundamente da URSS, que continuamente os chamava a um imprescindível acordo militar para
9
9 combater a ameaça fascista.
9
O Uma série de fatores protelaram a aliança antifascista na Europa e nos Estados
9 Unidos, entre eles a oposição do congresso americano à intenção de Roosevelt de envolver os
O Estados Unidos no conflito, a fraqueza financeira da França e da Inglaterra e, especialmente
O nesses dois países, as lembranças ainda vividas da Primeira Guerra. O pacifismo levou
9
9 considerável parcela da população e dos governantes a recusar-se terminantemente a sequer
137
In: HOBSBAWM. Op. cit,p. 145-177.
<1
9 54
9
9
m Desligado por Trotsky da IV Internacional, Mário Pedrosa voltou
9 clandestinamente ao Brasil em 1941, com a intenção de aqui organizar a esquerda
9
9
oposicionista. Porém, logo que chegou ao Rio de Janeiro, foi preso e reembarcado com a
9 fundação da União Socialista Popular (USP) - integrada por trotskistas da LCI, dissidentes do
9 PCB, socialistas independentes - cuja finalidade era de criar um partido socialista.
9
m Em uma entrevista ao Pasquim em 1978, Pedrosa discorreu sobre suas intenções em
9
m
relação à USP: "Foi nesse momento que abandonei a ortodoxia trotskista e quando voltei ao Brasil
queria provar uma série de idéias novas, inclusive a criação de um partido socialista independente
9
que não seguisse nem a UDN nem o stalinismo e propusesse uma política diferente ao PC"138
9
9
9
Evidencia-se na fala de Pedrosa a aproximação entre o final do Estado Novo e sua
9 necessidade de pôr em prática "idéias novas". Sua mudança de orientação política não esteve
9 desvinculada de uma mudança significativa na sua forma de interpretar a questão artística: "como
• político e revolucionário foi se dando conta do quanto a luta pela libertação da humanidade passa
• pela preservação e ampliação daquele mínimo de iniciativa de que ela pode dispor na sociedade
9 capitalista, ou seja, daquelas possibilidades que lhe sobram de exercício experimental da liberdade
9 (expressão predileta de Mário Pedrosa, especialmente na década de 1960, para caracterizar uma arte
9 que ele acreditava reatar com as fontes inovadoras das vanguardas históricas)"139.
9
9
• 138
Disponível em <http://www.nmp.hpg.ig.com.br/janela5b.html>. Acessado em fev. 2003.
139
ARANTES, O. Mário Pedrosa: itinerário critico. São Paulo: Página Aberta, 1991. p.XIII.
55
140
HARRISON, C. Movimentos da arte moderna - Modernismo. São Paulo: Cosac & Naif, 2000.
p. 18.
141
Idem.
9
<1
9 56
9
9
9 Essas tendências deram prioridade à imaginação e ratificaram o valor da
9 experiência direta. A partir daí, as idéias resistentes às mudanças passaram a ser vistas com
9
9 olhos críticos.
9
Estas transformações ocorridas na Europa incidiram sobretudo no campo social e
9
9 artístico. Movimentos como a Revolução Industrial (e a inerente instalação da burguesia no
9 poder) e o aparecimento do operariado como força social, repercutiram nas manifestações
9 revolucionárias ocorridas em meados do século XIX, tais como a Revolução Alemã de 1848 e
9 a Comuna de Paris (1871)142. No âmbito das artes plásticas, passou a existir um ceticismo e
9
9
cansaço em relação ao ato de retratar clássico e acadêmico (quando o domínio da técnica era
9 de aparências, mas dos meios de sua constituição. A obra de Courbet, embora ainda denotasse
9 a visão sentimentalista da academia (o campesinato francês e os pobres marginalizados das
9 capitais européias), possuía um estilo inovador em detrimento do decoro dos clássicos143.
9
9 A obsessiva preservação da autonomia individual em Cézanne e na postura ética
9 de Van Gogh e Gauguin também foi resultado das tendências supracitadas. Segundo o
9
historiador da arte Zílio, foi em Cézanne que a arte gradativamente se descomprometeu da
9
9 representatividade e do tema e passou a privilegiar a materialidade da tela, ou seja, a
9 organização por cores e formas144. Van Gogh e Gauguin também deixaram de lado o
9 compromisso com a representação em favor do tratamento das cores, de uma forma até mais
9 significativa que Cézanne145.
9
9
9
9 142
ZILIO, C. A querela do Brasil: a questão da identidade da arte brasileira: a obra de Tarsila,
9 Di Cavalcanti e Portinari/ 1922-1945. Rio de Janeiro: Funarte, 1982. p.25.
9 143
HARRISON, C. Op. cit., p.33.
9 144
ZILIO, Carlos. Op. cit., p.25.
9 145
ZÍLIO. Idem.
9
9
•
9
9
9
9 57
9
9
Cl A postura adotada por Cézanne, Van Gogh e Gauguin caracterizaram o
9 comportamento político dos artistas entre a linguagem transgressiva e a circulação da obra. A
9
9 situação de marginalidade econômica e social, impostas a esses artistas que não foram
<1 assimilados pelo sistema oficial em um primeiro momento, vai ser paulatinamente revertida
9 no final do século XIX, quando se pôde verificar o aparecimento de alguns marchands
9 interessados pelo Impressionismo. Somente no início do século XX a arte moderna constituiu
9
um próprio sistema de arte, mais favorecido pelo mercado, que passou a assimilar as novas
9
9 tendências artísticas146.
ti
9 O comportamento dos artistas impressionistas favoreceu o aparecimento dos
9 movimentos artísticos nas primeiras décadas do século XX, denominados vanguardas. Entre
9 esses destacamos o Futurismo (1909), o Expressionismo (1910), o Cubismo (1913), o
9 Dadaísmo (1916) e o Surrealismo (1923). Assim como o Impressionismo, essas correntes se
ti
9
recusaram ao império do figurativo, e problematizaram questões como a geometrização do
9 espaço, a independência da cor e a relação entre forma e cor. O expressionismo alemão somou
9 a preocupação social às questões estéticas. O Futurismo italiano acrescentara ao debate
9 artístico temas sobre a civilização industrial. O Cubismo voltou-se para a arte primitiva, por
9 considerá-la oposta à concepção renascentista147.
9
d No entanto, com o advento do primeiro e bem-sucedido Leilão de Arte Moderna
ti
9
de Paris (1914) e com o triunfo francês na Primeira Guerra, esse processo na arte moderna
ti sofreu um "retorno à ordem" 148. O Cubismo acabou por se situar como um prolongamento
ti histórico da glorificação da tradição classicista e racionalista que vigorara na França até o
9 momento. Zílio considera que as articulações abertas por Braque e Picasso com a arte
9 primitiva, que possibilitaram o surgimento de uma nova linguagem, foram reduzidas a uma
9
codificação de estilizações. Dessa forma, o Cubismo criou a possibilidade de efetivar um
9
9 compromisso entre arte moderna e nacionalismo (o estilo francês), alegoria e narração (o
9 moderno com prolongamento do clássico) e as culturas primitivas (tomadas
9 formalisticamente)149.
9
9
146
t» ZILIO, C. Idem. p.27.
147
ti Idem, p.28-29.
148
H ZILIO, C. A questão política no modernismo, p. 112.
9 149
ZILIO, C. Idem. p. 113.
9
9
9
9
9
9 58
9
9
9 Foi justamente com esse "pós-cubismo" de "retorno à ordem" que os modernistas
9 brasileiros da Semana de 1922 se relacionaram. Se por um lado os modernistas recém-chegados de
9
9
Paris adaptaram ao Brasil os modismos das vanguardas européias, por outro assimilaram uma
• atualização artística frente às vanguardas européias. O reconhecimento também era traduzido pelo
9 acesso às cobiçadas condições de crítico de literatura ou de arte152.
9
9 Embora esse cenário correspondesse em grande parte à realidade do Rio de
9 Janeiro e São Paulo, havia uma distinção fundamental entre as duas cidades. Na capital
9 Federal, o sistema de arte estava enraizado, por meio de suas instituições culturais, motivo
9
9 pelo qual eram-lhe destinados os principais recursos do governo federal para o
9 deu a Mário de Andrade (futuro chefe do movimento modernista), uma Cabeça de Cristo,
9 moldada em gesso, para que ele a passasse para bronze. O Cristo de trancinha foi considerado
9 uma afronta e causou um segundo escândalo às vésperas da Semana155.
9
9 Após a exposição de Malfatti em 1917 e a escultura de Brecheret Cabeça de Cristo, em
9 1920, ocorreu a Semana de 1922. O entusiasmo nacionalista e o clima de "derrubada de todos os
9
9 cânones"156 legitimaram o que mais tarde Mário de Andrade chamaria de "o direito permanente à
9 pesquisa estética, à atualização da inteligência artística brasileira e à estabilização de uma
9
9
9
9
9 153
Em 1889, do Porto de Santos exportavam-se 5.586 mil sacas de café; em 1901, esse número passava de
9 14.760 mil sacas. Quanto ao índice populacional, em 1890, a cidade de São Paulo tinha cerca de 65 mil
habitantes, em 1920 sua população atinge 580 mil. In: ZILIO, C. A querela do Brasil, p.40.
9 154
9
Entre eles o mais incisivo foi Monteiro Lobato, em sua crítica "Paranóia ou mistificação". A crítica de Lobato
teve um impacto tão grande, que algumas das obras adquiridas pela elite na exposição foram devolvidas. In:
9 LAMBERT, F. A semana de 22: a aventura modernista no Brasil. SP: Scipione, 1992. p.36.
9 155
LAMBERT, F. Op. cit., p.40.
9 156
AMARAL, A. Artes plásticas na semana de 1922. São Paulo: Editora 34, 1998. p.13.
9
9
9
9
d
9
o 60
9
9 consciência criadora nacional"157. A Semana, nesse sentido, manifestou um "estado de espírito
9 novo, universal e revolucionário", cujo grande líder, na óptica de Pedrosa, foi Mário de Andrade.
9
9 No entanto, Pedrosa discordava de Andrade quanto ao caráter mimético do
9 movimento frente à vanguarda européia. Segundo Mário de Andrade, a Semana foi um
9
acontecimento inevitável e até surgido com certo atraso, uma vez que esse fora importado das
9
9 vanguardas artísticas européias, mais especificamente parisiense, que despontara na primeira
9 década do século XX. Essa idéia de importação é explícita no texto redigido por Mário de
9 Andrade em 1928, quando esse considerou que
9
9 "nós brasileiros temos um dilúvio de motivos assim para as nossas decorações, café,
9 milho, borboletas, cobras, etc. No entanto, empregamos acanto, louro, óvulos, cabeças de
carneiro e outras macaquices que só têm de nacional serem macaqueações"158.
9
9 Na perspectiva de Mário de Andrade, o Modernismo brasileiro acontecera
9 tardiamente, com duas décadas de atraso. Pedrosa considerou essa visão exagerada, o que o
9
9 levou a escrever alguns anos mais tarde, em 1952 (para uma conferência realizada no
9 contagioso veio pelo contato direto dos intelectuais com a exposição de Anita Malfatti. Em
9 plena guerra, em 1917, a veterana modernista fazia em São Paulo uma mostra de quadros
9 expressionistas e cubistas"160.
9
9
9
9 157
Idem.
158
In: AMARAL. Op. cit., p.46.
159
Trecho do texto "Semana de arte moderna", apresentado na conferência realizada no Ministério da
Educação em 1952. In: ARANTES, O. (org.). Acadêmicos e modernos / Mário Pedrosa. São Paulo:
Edusp, 1995. p. 136.
9 160
Idem.
9
9
9
•
ti
9
9 61
9
9
9 Esta exposição foi, segundo Mário Pedrosa, a responsável pela difusão desse novo
9 estilo adotado pelos jovens artistas. A partir desse evento, o espírito (de vanguarda) ocorreria
9 não mais somente pela via da literatura, mas pela "experiência direta entre o jovem brasileiro
9
9 ingênuo, bárbaro, e os poderes mágicos de expressão, de agressão das formas pictóricas até
9 série de explosões individuais. Com os efeitos da Primeira Grande Guerra e dos anos revolucionários,
9 outros fatores passaram a determinar o aparecimento de diversos grupos de vanguardas, culturais e
9 políticas. Significativa parcela da sociedade, particularmente intelectuais e artistas, após estas
41 transformações, tiveram uma percepção mais apurada das novas possibilidades sociais e culturais e
41
9 passaram a ser influenciados por uma série de novas idéias em seu trabalho criador. O surgimento dos
9 aparatos culturais (ministérios, escritórios comerciais, teatros, editoras, etc), criados como um espaço
4» para implantar de cima para baixo um sistema oficial de ensino, acabou por trazer uma série de
ti vantagens materiais para intelectuais e artistas antes privados de apoio, e levou sua obra a um público
4i
mais amplo.
ti
ti
ti 161
Idem. p. 137.
41 162
Trecho do texto "Semana de arte moderna", apresentado na conferência realizada no Ministério da
ti Educação em 1952. In: AMARAL. Op. cit., p.292.
ti
4i
9
9
9
9
9 62
0
0
9 Dessa forma, na Europa houve uma significativa evolução na produção artística.
9 Se inicialmente ela foi voltada para a propaganda e agitação, depois passou a atender a
9
empreendimentos sociais e industriais, com a finalidade básica de reconstruir a vida cotidiana.
9
9 Graças às transformações políticas ocorridas nas primeiras décadas do século XX,
9 propiciaram às vanguardas o acesso aos meios de comunicação popular, uma vez que os
9 novos meios de comunicação, como o cinema e o rádio, eram veículos mais adequados ao
9 trabalho coletivo, em detrimento do gênio do artista individual163.
9
9 É justamente com os integrantes dessas vanguardas européias, notadamente o movimento
9
Surrealista, que Mario Pedrosa vai dialogar. Sua ênfase à questão social deveu-se sobretudo ao contato
9
9 estabelecido com integrantes do grupo surrealista, em 1928, por ocasião de sua estada em Paris.
9
9 Importante ressaltar que o movimento Surrealista surgiu por volta de 1924, com a
4» publicação do "manifesto do surrealismo" (redigido pelo líder do grupo André Breton). O
<» primeiro manifesto foi basicamente um ensaio crítico em que se estabeleceram as bases do
9 programa surrealista. A significação do termo surrealismo foi definida pelo manifesto:
9
9 "SURREALISMO, n. m. Automatismo psíquico puro pelo qual se pretende exprimir,
9 verbalmente ou por escrito, ou de qualquer outra maneira, o funcionamento real do
pensamento. Ditado pelo pensamento, na ausência de qualquer vigilância exercida pela
O
razão, para além de qualquer preocupação estética ou moral.
9
9 ENCICL. Filos. O surrealismo assenta na crença da realidade superior de certas formas de
9 associação, negligenciadas até aqui, no sonho todo-poderoso, no jogo desinteressado do
pensamento. Tende a arruinar definitivamente todos os outros mecanismos [psíquicos] e a
9 substituir-se a eles na resolução dos principais problemas da vida164.
9
9 A vanguarda surrealista respondeu às condições históricas do imediato pós-guerra,
41 foi através do segundo manifesto que o movimento estabeleceu seu programa político,
9 acentuadamente marxista. Essa nova tendência, visivilmente mais preocupada com as
9 questões relativas ao engajamento político-doutrinário, desagradou à vertente do movimento,
9
que pregava a plena liberdade de idéias e dedicava-se às questões filosóficas-literárias. O
41
embate quanto à natureza do movimento, se esse deveria ser político ou literário, levou o
O
4» grupo a dissidências: Artaud e Soupault se afastaram, enquanto Breton fez aliança com dois
9 novos membros, Luis Buñuel e Salvador Dali.
9
O A terceira fase, denominada "o período da autonomia" (1930-1939), seccionou o
41 grupo em duas vertentes: um grupo mais afinado à idéia de revolução política (Aragon), e
41
outro que preocupava-se com o aprofundamento das pesquisas sobre o inconsciente (Breton).
9
9 Essa divisão levou Aragon a romper com o movimento e optar pelo comunismo. Breton foi
9 para o México e lançou com o pintor Diego Rivera e Trotsky, o manifesto "por uma arte
9 revolucionária independente".
9
41 Mário Pedrosa, que desde seu primeiro contato com o grupo surrealista manteve-
O se ligado a Breton, chegou a participar da elaboração do manifesto, num verbete sobre Arte e
9
Magia, chegando a traduzi-lo para o português. Foi sob influência do Surrealismo que Mário
9
9 Pedrosa retornou ao Brasil em 1929. Esta experiência foi fundamental para que o militante
9 político deslocasse sua atuação quase que totalmente para o campo das artes.
O
O Dessa forma, foi através de sua militância política que Pedrosa aproximou-se das
4» vanguardas artísticas européias e manteve-se antenado ao clima de inovação despertado pela
41 Semana de 1922. A estréia de Pedrosa como crítico de arte moderna ocorreu em 1933, com a
O
41
redação de seu primeiro texto de teoria da arte, por ocasião da exposição da gravadora alemã
9 Käthe Kollwitz.
41
9
4»
O
9
9
9
9
4»
64
Podemos dizer que a crítica de arte brasileira, até a estréia de Mário Pedrosa (com
o artigo dedicado a Käthe Kollwitz), trilhava um caminho convencional, acadêmico ou
impressionista. Pautava-se sobre duas tendências européias que haviam se intensificado na
passagem do século XIX para o XX: a historicista (predominante na França e na Itália), que
essencialmente procurava reconstituir personalidades históricas, e a científica (notável na
Alemanha), que considerava a arte um puro fenômeno e documento visual, da qual é
relativamente pouco importante estabelecer a paternidade e a qualidade artística. Enfim, estas
duas tendências, predominantes na Europa, acabavam por influenciar a crítica de arte
brasileira166.
166
É importante observar que a crítica de arte surgiu na Grécia, entre os séculos IV e V a.C. Nessa
época, a preocupação dos artistas era de realizar a cópia perfeita do modelo, cujo critério era regido
pela semelhança. Nessa perspectiva, os teóricos restringiam sua análise não a exemplaridade alcançada
pelo artista, mas ao tratamento e rigor técnico desenvolvido por cada um. Na Idade Média, o valor da
imitação ou semelhança passa a ser combatido - devido à influência religiosa - provocando um
distanciamento da natureza e a busca incessante da representação espiritual ou sobrenatural. Teófilo,
monge medieval, sugere que essa distância da imitação tem a sua razão de ser, já que o que se deseja
pela arte é a aproximação de Deus. Essa idéia será suplantada apenas com Giotto e Cimabue, quando a
representação naturalista volta a ser habitual. Cennini, em 1437, afirma ser a natureza o modelo ideal
do desenho. Com os posteriores avanços da técnica, como a pintura a óleo e a perspectiva, intensifica-
se essa busca pelo ideal na representação. Em 1453, Alberti escreve o Tratado de Pintura-, a partir de
então, a produção teórica sobre as artes conquista o seu espaço, especializando-se cada vez mais. Em
1832, Théophile Thoré escreveu o primeiro Salon (relatório sobre os salões de arte); esse artigo
estabeleceu o papel da critica de arte como análise das produções artísticas em si, ao invés de um
relato sobre os artistas e suas obras. Ainda no século XIX, é fundada a Escola de Viena de História da
Arte, com o objetivo inicial de trabalhar com a classificação e manutenção do patrimônio artístico, e
publicar ensaios e livros, entre eles Cicerone (1855) e a Cultura do Renascimento na Itália (1860),
ambos de Burckhardt. ARGAN. Arte e crítica de arte. laed. Lisboa: Editorial Estampa, 1988.
65
"A arte não goza de imunidades especiais contra as taras da sociedade, nem no seu
pórtico, sem transpô-lo, os prejuízos e as contingências mesquinhas ou trágicas do
egoísmo de classe. Como outra qualquer manifestação social, ela é corroída interiormente
pelo determinismo histórico da luta entre os diversos grupos sociais. Sendo o fenômeno
estético uma atividade social como outra qualquer, está por isso mesmo situado pelo
conjunto de todas as outras manifestações da sociedade, isto é, por uma determinada
civilização"167.
Enquanto para seu colega Mário de Andrade o significado da arte, ou melhor, o fato de a
arte ser a base da vida social do homem perdeu-se com a exacerbação do formalismo em todos os
campos artísticos, para Mário Pedrosa foi justamente essa formalização que inaugurou o espírito de
contestação para se instaurar uma nova fase na produção artística. Nesse sentido, a geometrização
respondia a essa necessidade de criar uma linguagem universal, mais acessível a todas as esferas
sociais e culturais. Assim, Pedrosa, ao se referir ao significado social da obra de arte, afirmou a
capacidade desta de ser transformadora, um canal poderoso de comunicação na sociedade.
Vale ressaltar que o criticismo de Pedrosa oscilou, ao longo de sua vida, entre a
crítica histórica e a crítica formal. "A crítica histórica esclarece um documento (a obra de
arte) através de outros documentos concernentes ao meio cultural ou social. Tende a descobrir
um estado de espírito através do símbolo sensível"168, enquanto a crítica formal, oriunda da
arte moderna, se emancipou da literatura, prendendo-se mais à originalidade da forma da obra
do que à temática adotada, minimizando assim o aspecto histórico em proveito dos elementos,
da composição e da técnica adotada.
167
Trecho da conferência pronunciada no Clube dos Artistas Modernos de São Paulo (CAM) em 16 de
junho de 1933, sob o título "Käthe Kollwitz e o seu modo vermelho de perceber a vida". In:
ARANTES, Otilia (org.). Política das artes / Mário Pedrosa. São Paulo: Edusp, 1995. p.35.
168
RICHARD, A. A crítica de arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p.75.
o
o
o 66
o
9
9 No período a que se refere esta pesquisa, Mário Pedrosa recorreu à crítica
<1 histórica - especialmente nos artigos dedicados à pintura mural de Cândido Portinari - para
9
defender a idéia de processo na arte. Procurou salientar mais do que os aspectos formais da
<1
9 obra, elogiando sobretudo as escolhas temáticas do artista e seu posicionamento perante a
9 sociedade. Assim, Pedrosa manteve em seus textos a articulação entre a crítica direta da
9 qualidade formal da obra e a análise do processo pelo qual o artista passava para a realização
<1 efetiva da obra.
9
O A crítica formal foi mais utilizada por Pedrosa posteriormente, no final da década
9
de 1940, quando voltou a se estabelecer no Brasil (após a temporada no exílio).
9
9 Paulatinamente, ele passou a integrar a geração de intelectuais que reavaliou a tradição
9 modernista brasileira da Semana de 1922; contribuindo assim para o nascimento da chamada
9 segunda fase modernista.
9
9 Em detrimento da primeira fase, Pedrosa passou a defender a arte abstrata, por
9 considerá-la mais adequada à expressão individual de cada artista, possibilitando uma
9 produção artística mais autônoma e independente da cópia da natureza. Para ele, a forma ou a
9
9 cor significaria um sentimento, pois "o impulso em direção à abstração é conseqüência de
9 cenário cultural brasileiro, ou seja, durante os anos que compreenderam o Estado Novo. A
9 escolha deve-se sobretudo ao fato de que no período em questão Mário Pedrosa mais
<» significava uma "ausência forte", no sentido de que não integrava o clã dos intelectuais que
m
9 aderiu ao Estado Getulista.
•
9
9
9
9
9
9
9
9
67
169
Esse artigo foi redigido com o objetivo de responder a interpelação do artista Nelson Leirner ao júri
do Salão de Brasília acerca da não aceitação de sua própria obra Porco Empalhado. In: PEDROSA,
M. Mundo, Homem, Arte em crise. 2aed. São Paulo: Perspectiva, 1986. p.231.
170
PEDROSA, M. Do porco empalhado ou os critérios da crítica. In: Mundo, Homem, Arte em crise.
2aed. São Paulo: Perspectiva, 1986. p.233.
171
PEDROSA M. Atendendo ao apelo. Coluna de artes visuais do Jornal do Brasil. 8 de março de
1961.
68
Auto-afirmou seu papel quando, no mesmo artigo, considerou que "cada artista
faz, uma vez, sua revolução, mas o crítico é a testemunha sem repouso de cada revolução. Um
1T?
episódio revolucionário após o outro perfaz, numa só época, um processo" . Nas entrelinhas
de sua fala podemos notar a força explícita de sua ideologia política trotskista, que
permanecerá sempre presente em seus textos e discursos. No mesmo sentido, procurou
afirmar a relevância assumida por aquele que se propusesse a intermediar a obra e o público:
"O papel do crítico é definir em sua totalidade esse processo, ou o processo de uma só
revolução mas em permanência. O crítico, pelo estudo e conhecimento desse processo é o
único a saber que tudo é uma só revolução. Ora, com efeito, a revolução permanente é o
único conceito que abarca de um modo mais geral e profundo a nossa época. O crítico
1
T\
vive, pois, em revolução"
O crítico, sob a óptica de Pedrosa, deveria assumir uma visão livre de qualquer
cristalização, ou seja, deveria ser sincero e expor seu ponto de vista com a liberdade de mudá-
lo quando achasse conveniente. Entretanto, considerava que essa capacidade de mudança não
poderia ser gratuita, assim como o olhar do crítico não deveria ser imparcial frente a uma obra
de arte, mas investigativo e observador.
Assim como para Charles Baudelaire, a crítica para Mário Pedrosa não poderia ser
destituída de emoção nem pretender uma verdade absoluta. Pedrosa seguiu à risca a afirmação
do poeta francês, de que "para ser justa, quer dizer, para ter sua razão de ser, a crítica deve ser
parcial, apaixonada, política, isto é, feita de um ponto de vista que abra mais horizontes". Na
perspectiva de Baudelaire, a crítica de arte pode ser exercida com completa autonomia e
justiça para com a arte produzida.
172
PEDROSA M. Do porco empalhado ou os critérios da crítica. Op. cit., p.233.
173
Idem.
69
Para Pedrosa, a dúvida, tanto para o crítico como para o artista, deveria prevalecer
em detrimento do ecletismo. Considerava que a postura imparcial do olhar eclético seria um
sinal de impotência, uma vez que o ecletismo não permitiria o compromisso com um partido;
o eclético não teria um ideal, já que deseja abraçar os quatro pontos. Segundo Pedrosa, "nas
artes é onde o ecletismo é mais pernicioso"174.
Para entendermos a maneira como Pedrosa exerceu a sua crítica, não podemos
perder de vista sua formação marxista, via militância política no Brasil, sobretudo pelo
contato com intelectuais da vanguarda esquerdista européia, particularmente da vertente
surrealista mais ligada às causas sociais (de Breton).
Esse aspecto ressalta em seu primeiro texto crítico, ao propor que a arte, "como
outra qualquer manifestação social, é corroída interiormente pelo determinismo histórico da
luta entre os diversos grupos sociais"175. Nesse artigo, Pedrosa criticou duramente a postura
adotada pelas autoridades dos "setores poderosos, oficiais ou oficiosos" frente às questões
artísticas. As críticas dirigidas às esferas governamentais perduraram em seu discurso ao
longo dos anos, como podemos observar na afirmação feita em 1960: "certos cavalheiros,
autopromovidos e tutores das artes e artistas, resolvem tudo a portas fechadas"176.
174
PEDROSA, M. O ponto de vista do crítico. In: ARANTES, O. Op. cit., p. 163.
175
PEDROSA, M. As tendências sociais da arte e Käthe Kollwitz. In: ARANTES, Otilia (org.).
Política das artes / Mário Pedrosa. São Paulo: Edusp, 1995. p.35.
176
Esse artigo faz parte de um texto escrito como reclamação sobre a representação do Brasil na
Bienal de Veneza de 1960. Alegava que a escolha era mediocre já que os responsáveis eram cegos ao
que acontecia em território nacional, "indiferentes a certa coerência que já se vinha formando na arte
brasileira, (...) só pensaram os donos da Comissão em amoldar-se ao gosto internacional do
momento". Defendia a indicação de Ligia Clark que segundo ele, acabava "de nos dar a obra mais
revolucionária" que já se havia feito no Brasil, e por isso, se encontrava "na vanguarda da frente
mundial das artes plásticas", além de exigir "que a representação brasileira destinada a inaugurar o
nosso pavilhão em Veneza seja exposta, aqui (Rio de Janeiro) e São Paulo, antes de ser encaixotada. O
público precisa ver para avaliar a justeza da escolha". E termina o artigo-protesto, levantando a
bandeira do povo ao escrever que "chega desse absolutismo irresponsável com que os mandarins das
artes tudo decidem e, ainda assim numa intimidade clandestina e gostosa". In: PEDROSA, M. Chega
de clandestinidade. In: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 12 de março de 1960.
9
9
9 70
41
9
9 Em diversos artigos escritos na década de 1940 para o Correio da Manhã, é
9 177
9 evidente o tempero marxista. Em O destino funcional da pintura , incentivou os artistas a
9 adotarem uma postura crítica perante aqueles que na "Alemanha hitleriana" ou na "Rússia
9
9
stalinista" obedecem ao que o Estado dita, reconhecendo assim a submissão e a perda de
9 impulso criador do artista. Não é o homem que existe para a sociedade, mas o contrário. A
9 solicitação artística existe ou se faz sentir a despeito da sociedade".
9 No texto seguinte, redigido para o mesmo jornal, Mário Pedrosa publicou Ainda a
9
9 propósito do destino da pintura. Esse artigo foi uma réplica (prática comum em sua trajetória) a
9 uma crítica emitida por Agnès Claudius, a seu comentário anterior, sobre "o destino funcional da
9 pintura". Claudius havia declarado que Pedrosa, ao questionar a funcionalidade da pintura,
9 comprometia o futuro da produção artística nas artes plásticas. Em sua defesa argumentou: "eu
9
apenas reagia contra a tendência, já pronunciada demais, a considerar a arte simplesmente como
9
9 função, função disso ou daquilo".
9
9 Pedrosa acreditava que a revolução moderna na pintura se processou de forma
9 muito distinta da verificada na arquitetura. Considerava que, ao contrário da arquitetura, que
9 se modernizara através do acesso a novos materiais e pesquisa formais, o processo da pintura
9 acontecera dentro do próprio quadro:
9
9 "a descoberta de que a tela tem mais leis próprias. O pintor tem de respeitar a estrutura do
9 quadro, sua superfície, sua intrínseca bidimensionalidade. O pintor foge do trompe l'oeil
9 das ilusões da perspectiva, dos truques do convencionalismo realista. Todas as partes da
tela são boas. O pintor se espalha pelo quadro respeitando seus limites"178.
9
9 A respeito de sua afirmação sobre a questão da distância existente entre o povo e a
9 arte, Mário Pedrosa declarou num texto de 1947, "Divagações sem função":
9
9
9 177
9 PEDROSA M. O destino funcional da pintura. Republicado em Arte, necessidade vital. In:
ARANTES, Otilia (org.). Política das artes / Mário Pedrosa. São Paulo: Edusp, 1995. p.223-227.
9 178
PEDROSA M. Ainda a propósito da pintura. In: ARANTES, O. Op. cit., p.62.
9
9
9
9
9
o
9
9 71
9
9
"A arte depois de feita atrai o povo e se projeta de círculos em círculos, cada vez mais
9 vastos, como a famosa imagem da pedra que se joga no lago profundo e plácido. O
9 problema não é fazer arte para o povo; é traze-lo à arte, isto é, educa-lo espiritualmente,
para que compreenda e sinta cada vez melhor a arte"179.
9
9 Esse raciocínio e as expressões usadas nos artigos supracitados são recorrentes nos
9 textos críticos a que se refere esse estudo, principalmente, como veremos a seguir, nos dedicados
9
9 a Portinari. Não obstante, sua crítica foi eventualmente tachada de sectária, política, partidária, ou
9
9
9
9
9 179
9
PEDROSA M. Divagações sem função. In: ARANTES, O. Op. cit., p.65.
9
9
9
72
Embora Portinari tenha estudado apenas até o terceiro ano primário, foi na escola
que o pintor recebeu o estímulo para desenvolver seu talento. Anos mais tarde, Portinari
relembraria, o frisson causado pelos seus primeiros desenhos infantis:
"... desenhei um leão e o desenho foi comentado pelos professores e pelos alunos. Não me
deixaram mais em paz, tive que desenhar as capas das provas a serem expostas nofimdo ano"180.
Seu primeiro desenho conhecido foi o retrato de Carlos Gomes, realizado quando
tinha 10 anos. Contudo, sua habilidade como pintor floresceu quando um grupo de pintores e
escultores italianos se estabeleceu em Brodósqui, para trabalhar no restauro da igreja matriz da
cidade. Não tardou para que Portinari, que já desfrutava certa fama entre os habitantes locais,
fosse chamado para ajudar na empreitada. Modesto Giordano, companheiro de infância também
chamado para o trabalho, descreve a intensidade com que Portinari entregara-se à tarefa:
"... eleficavalá trabalhando. Cedo, ele era o primeiro a chegar lá. Quase não ia comer em
casa. É..., doente para aprender a arte de pintar"181.
180
Entrevista de Portinari. s/d. In: Arquivo da Fundação Portinari - Rio de Janeiro.
181
Idem.
9
9
9 73
9
9
9 "... Ah, de era muito pequeno... nós estávamos tudo doente, com a gripe (espanhola). Tudo pobre, né ?
9 Então ele mefelou:eu não vou Falei: vai Cândinho. Se você não for agora não vai mais. Vai. Você vai ser
garção. Eu queria que ele fosse. (...) eufüem Batatais, vi eles de hrva, adiei que eles eram uns reis..."1 92.
9
9
Relembrando o momento, Portinari anotaria em seu diário:
9
9 "Quando se apresentou ocasião de ir para o Rio, passei noites em vigília, lutando com a indecisão -
9 paia an deixar meus pais emeus irmãos. Quanto mais próxima a partida mais aflitoficavaOlhava
o chão, as plantas, os animais, as aves e aquela luz... parecia que nunca mais iria ver tudo aquilo que
9 era parte de mim mesmo. Quantas lágrimas derramei às escondidas. Vi e revi mil vezestodosos
9 encantos. Saudade incontida queficavaAté os forasteiros que passavam, eu os sentia como irmãos.
9 (...) Não poderia despedir-me. Preferia não ir, mas necessitava ir, estava na idade. O sol, a lua, as
estrelas, as águas dorio,o vento, tudo istoficarialá e eu entraria no escuro. (...) A última imagan que
9 meficougravada na memória foi a de meu pai: levantara-se para se despedir. Ainda posso vê-lo: de
9 capote escuro, atravessando o largo da estação. Não teve tempo de me dizer nada.."18 .
9
9 Chegando ao Rio de Janeiro, ficou precariamente instalado na pensão da família
9 Toledo. No mesmo ano, inscreveu-se em cursos de desenho do Liceu de Artes e Ofícios. Em
9 1920 matriculou-se na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) onde cursou aulas de desenho
9
9
livre com Lucílio de Albuquerque, pintor vitralista de sólida formação acadêmica.
9
Em 1922, enquanto eclodiu a Semana em São Paulo, Portinari encontrava-se isolado
9
9 na Escola de Belas Artes, vista pelos conservadores e por ele mesmo então como templo do bom
9 gosto e do bom senso. Não se pode dizer que a falta de contato com o evento que inaugurou o
9 Modernismo brasileiro foi uma atitude crítica do pintor fiente às novas idéias. Portinari, com 18
9 anos, era pobre e dependeria da Escola. Encontrava em seus professores e na instituição a única
9
9
via de progredir na carreira. Ao contrário dos intelectuais modernistas, o único meio de Portinari
9 conquistar uma viagem de estudos à Europa era o prêmio concedido pelo Salão Anual da ENBA,
<• o que não lhe possibilitou grandes contestações.
9
9 Com esse objetivo, em 1923, Portinari enviou um retrato para concorrer ao Salão.
9 Recebeu com Medalha de Bronze, prêmio em dinheiro, e o Prêmio da Galeria Jorge. No ano
9 seguinte, submeteu-se ao júri do Salão novamente, com 7 retratos e Baile na Roça (ver imagem na
9
9 próxima pág.), sua primeira obra com temática brasileira, pintada durante as férias passadas em
9 Brodósqui. O Baile foi recusado, mas os retratos tiveram enorme repercussão na imprensa, que
9 passou a focalizá-lo individualmente, em artigos impressos. A almejada viagem à Europa era
9 finalmente conquistada no Salão de 1928, com a premiação do retrato de Olegário Mariano.
9
9
9
182
Idem.
9
9
9
9
BAILE NA ROÇA
9
<1
O 75
9
<»
9
Sergio Miceli, em Imagens Negociadas, menciona que grande parte da produção
9 artística de Portinari até esse momento consistia em retratos de pessoas ligadas à elite, e estava
9 condicionada ao "confinamento social aos espaços da prática profissional e as probabilidades
9 restritas de sua afirmação artística (...) junto à clientela abastada de outros retratistas"184. Nas
9 entrelinhas, Miceli sugere que o pintor, para comprovar suas habilidades de retratista, teria dado
9
9 tratamento esmerado aos rostos, em detrimento do pano de fundo. Essa tendência é observada
9 especialmente no premiado retrato de Olegário Mariano, com que Portinari conquistara o prêmio.
9
9 Miceli considera ainda que, provavelmente, essa atitude se atribui à aguda
9 percepção que o pintor tinha da concorrência acadêmica, o que o teria levado a lidar com esse
9 desafio retratando "a figura social e institucional mais adequada a lhe servir de modelo para o
9 envio apropriado numa tal competição"185. Miceli leva a crer que Portinari, desde o início de
9
9 sua carreira, comportou-se como um arrivista, buscando afirmar-se através de suas relações
9 sociais com a elite. Entretanto, como interpretar o fato de que grande parcela dos retratados,
9 como o próprio Miceli indica, eram pessoas de sua mesma condição social e profissional186?
9 Observa-se uma faceta menos arrivista e mais caipira de Portinari nas cartas escritas por
9 Mário de Andrade ao pintor.
9
9 Sua correspondência revela o excessivo zelo de Mário de Andrade em relação a Portinari.
9
9 Considerando-o "puro e dadivoso", assumiu o papel de irmão mais velho, sempre preocupado com as
9
186
Entre elas podemos citar: o escultor Mazzuchelli e os pintores Roberto Rodrigues, Paulo Gagarin,
Mário Túlio, Manuel Santiago
9 187
9
FABRIS, Annateresa (org.) Portinari, amico mio. Cartas de Mário de Andrade a Cândido
Portinari. Campinas, São Paulo: Mercado das Letras, 1995. p.23.
9
9
9
9
9
9
9 76
9
O
0 Paulo Duarte, em 1942, mais de meio século antes de Miceli, havia sugerido em
0 carta ao amigo Mário de Andrade que Portinari se tornara o retratista da alta sociedade. Mário
0
prontamente responde:
0
0 "Não gostei da sua... sugestão dele estar ficando o Medina do retratilismo grã-fino. Nem
0 por similaridade essa comparação está certa. Porque Portinari sabe o que está fazendo,
0 não se ilude nem se perde. E a verdade mais humana é que não se enriquece. Isso é de
uma pureza admirável nele. Ganha rios de dinheiro, gasta mares de dinheiro. E a grande
O água desse mar, com os outros"188.
O
0 É evidente a disparidade entre Miceli e Mário de Andrade em relação a Portinari.
9 O primeiro apresenta um jovem pintor talentoso, mas demasiado ambicioso e predisposto,
0 desde o início a atender à demanda de um mecenas, visando obter vantagens. Mário de
0 Andrade, em contraponto, revela um Portinari naturalmente talentoso, ingênuo, inábil diante
0
das oportunidades profissionais e indefeso diante das hostilidades de seu meio social.
O
O
Não se pretende aqui resgatar a trajetória de Portinari para situá-lo nem como
9
0 subserviente nem como gênio indómito. O fato de que Portinari foi aceito e promovido tanto
0 por intelectuais cooptados quanto por intelectuais menos favorecidos pelo regime Vargas, já é
9 indício de que não se pode reduzi-lo à condição de mero subordinado dos setores políticos que
9 recorriam a sua produção artística. Vê-lo sob esse ângulo seria menosprezar o olhar crítico de
9
9 intelectuais do porte de Mário Pedrosa e Mário de Andrade, que, por razões distintas,
"Vim conhecer aqui o Palaninho, depois de ter visto tantos museus, tantos castelos e tanta
gente civilizada... Aí no Brasil eu nunca pensei no Palaninho... Daqui fiquei vendo
melhor a minha terra - fiquei vendo Brodósqui como ela é. Aqui não tenho vontade de
fazer nada... Vou pintar o Palaninho, vou pintar aquela gente com aquela roupa e aquela
cor. Quando comecei a pintar senti que deveria fazer a minha gente e cheguei a fazer
Baile na Roça. Depois desviaram-me e comecei a tatear e a pintar tudo de cor - fiz um
montão de retratos... A paisagem onde a gente brincou a primeira vez e a gente com quem
a gente conversou a primeira vez não sai mais da gente... Quando eu voltar vou ver se
consigo fazer a minha terra Uso sapatos de verniz, calça larga e colarinho baixo e discuto
Wilde, mas, no fundo eu ando vestido como Palaninho e não compreendo Wilde"191.
189
Alfredo Galvão estudou na Escola de Belas Artes e foi discípulo de Lucílio de Albuquerque. Havia
conquistado o mesmo prêmio que Portinari em 1927, partindo para a França em 1928, um ano antes
que o pintor. Volta ao Brasil em 1933 e passa a trabalhar como professor na ENBA e chegou a exercer
a direção do Museu Nacional de Belas Artes.
190
FABRIS, Annateresa. Portinari, pintor social. São Paulo: Perspectiva, Ed. da USP, 1990. p.6.
191
Arquivo da Fundação Portinari - Rio de Janeiro.
PAL ANINHO
79
Importante ressaltar que a reforma do ensino da ENBA foi precedida por uma
intensa polêmica, travada no final do Século XIX entre modernos e positivistas, como conta
Frederico Barata:
" Os modernos das vésperas republicanas eram apenas um grupo que se rebelava contra
as normas do ensino, opondo-se aos positivistas que, mais radicais, chegaram a se bater
pela extinção da Academia. Os modernos queriam, através de uma reforma ampla, um
rejuvenescimento na direção da Academia e, principalmente, que se restabelecessem as
provas para a premiação de viagem à Europa. (...) Os modernos nada tinham de
revolucionários e inovadores, mesmo porque seu principal mentor, Amoedo, era
intransigentemente acadêmico e assim se manteve até a morte, [enquanto que os
positivistas] (...) pareciam diferentes, mas no fundo eram os mesmos depositários
fidelíssimos do espírito da Missão Francesa. Não estavam contra o ensino acadêmico,
mas sentindo-se deslocados na sociedade, sem destino útil e proveitoso, desejavam que o
Estado desse trabalho a todos num magistério que abrangeria o país inteiro e difundiria os
princípios acadêmicos"192.
192
Apud. MORAIS, Frederico. Panorama das artes plástica séculos XIX e XX. 2ed.rev. SP: Itaú
Cultural, 1991.In:http://wvm.itaucultural.org.br/ApUcExtemas/Enciclopedia/artesvisuais/index.cfin?fú
seaction=Detalhe & CD Verbete=3369.
80
Em 1932, pelo sucesso obtido no Salão, Portinari passou a ser notado por intelectuais
de diversas tendências, visto gradativamente pelos jovens intelectuais como digno representante
plástico do Modernismo brasileiro. O pintor apresentava o perfil adequado para tanto: trazia na
bagagem formação acadêmica, já provara que dominava a técnica tradicional de representação e,
por opção e não por desconhecimento do desenho (como poderiam dizer os passadistas), aderiu à
nova expressão plástica modernista, característica evidenciada por Mário Pedrosa:
"Cândido Portinari foi o aríete com que a arte tornou-se vitoriosa no Brasil. Houve um
tempo em que se afirmava que o artista se declarava moderno porque não sabia desenhar
nem pintar. Portinari foi o primeiro a levantar o grande prêmio de viagem à Europa e
obteve medalha de ouro na Escola de Belas Artes, quer dizer, do centro do academicismo
tradicional. Depois foi o primeiro artista moderno do Brasil a conseguir uma menção
honrosa na exposição individual de Carnegie. Nós todos intelectuais e críticos, que o
sustentávamos na sua luta e que o tínhamos como escudo da causa do modernismo contra
o academicismo, sempre vimos nele um porta-bandeira"193.
O pintor também era bem aceito pelos críticos acadêmicos, entre eles Frederico Barata:
"(...) em linhas gerais poderíamos dizer que já trilha um caminho definitivo; embora,
examinando os detalhes, se verifique de imediato que o dominam certas hesitações que,
não obstante, não diminuem o mérito incontestável de sua obra, em franca ascensão... já
contém elementos reveladores de uma personalidade que tanto se distancia da expressão
puramente literária da chamada arte ultramoderna, quanto ao academicismo decadente".
193
Depoimento de Mário Pedrosa concedido ao Estado de São Paulo. Cândido Portinari será sepultado
hoje no Rio de Janeiro com as honras oficiais. Citado por: FABRIS. Op. cit., p.7.
194
ZILI0. Op. cit., p.111.
81
Em 1934, Portinari realizou uma exposição que foi muito bem recebida pelos
críticos paulistas. Seu estilo foi considerado heterogêneo por Mário de Andrade, porém, isso
não significava que estava isento de unidade:
Por ter realizado um estilo considerado clássico-moderno, Portinari foi visto pelo
Estado de São Paulo como digno chefe da nossa futura geração artística:
"(...) Assim é que Portinari nos mostra, ao lado de figuras finas e super civilizadas da alta
sociedade, vistas com sutil psicologia e expressas em estilo puro e clássico - estampa
brutas de roceiros mestiços, tipos boçais, na sua força hercúlea, pintados com não menos
força de traço e brutalidade de concepção. E ainda há as cenas da vida das classes pobres,
em que o lado triste e doloroso é disfarçado pelo exagero do traço que as transforma
quase em criaturas cruéis"196.
"Sendo assim, o Brasil tem em Cândido Portinari o seu grande pintor. Mais do que a
escola, que faça exemplo. Pintor iniciado na criação plástica e na honestidade do ofício,
homem de seu tempo banhado das correntes ideológicas em furacão. Não admitindo a
arte neutra, construindo na tela as primeiras figuras do futuro titánico - os sofredores e os
explorados do capital"197.
"(...) E isso culmina nessa monumental figura do Mestiço, obra-prima, que aturde na sua
maravilhosa força expressiva, doloroso nos estigmas de bondade, de paciência e de
imbecilidade que leva, sofrido nessas mãos de trabalho em que a neue Sachlichkeit não
esqueceu de enegrecer as unhas, mas ao mesmo tempo obra de arte esplêndida em que o
óleo, sem desmentir a sua natureza, consegue no entanto um peso e uma eternidade de
bronze. E o Preto da enxada que não lhe fica nada atrás".
195
ANDRADE, Mário de. Portinari. Diário de São Paulo, 15 dez., 1934.
196
Apud. FABRIS. Portinari, pintor social. São Paulo: Perspectiva, Ed. da USP, 1990. p.9.
197
ANDRADE, Oswald. O pintor Portinari. Diário de São Paulo, 27 dez., 1934.
Reconhecido pela sua pintura mural, o artista foi convidado em 1935 para ensinar
no Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal - UDF. As críticas do período e o
oferecimento do cargo demonstram que o pintor correspondia plenamente à nova demanda
intelectual: a arte realista de temática social. Assim, Portinari fora apropriado pelos
intelectuais modernistas, que nele encontravam no pintor um veículo para suas idéias.
"(...) estou cheio, trabalhando com paixão, com violenta paixão, nesta primeira vida
minha em que tomo contacto burocrático com o povo e com a vida. Não recuso que a
burocracia e esse contato novo são horríveis, e experiências ferozes para mim, mas é a
vida! E a vida me apaixona mesmo em todas as suas formas de viver! Não sei portanto si
nesse novo Mário sem vagueza que sou agora você encontraria alegria propriamente, nem
mesmo imagino que você sentisse em mim qualquer felicidade. Positivamente não estou
alegre, e é certo que ainda não reachei a minha felicidade perdida nesse posto novo. Si
não consegui reencontrá-la no cargo, deixo a cargo. Mas seria ridículo que quem viveu
quarenta anos completamente livre e independente, esperasse num mês se adaptar a runa
existência por completo e absolutamente diversa da que possuía (,..)"199.
Em contraponto, não acreditamos que Cassiano Ricardo quando, do alto de seu posto
de diretor do DIP, afirmava que "a cultura é o único instrumento de arregimentar as forças sociais,
integrando-as ao Estado"200, o fazia no mesmo sentido de Mario de Andrade. Cassiano Ricardo,
assim como provavelmente Menotti del Picchia e Cândido Mota Filho, se enquadrara
201
ideologicamente no regime porque correspondia à noção de democracia autoritária e nacionalista
198
PRADO, A. 1922 - Itinerário de uma falsa vanguarda: os dissidentes, a semana e o
integralismo. SP: Brasiliense, 1983. p.8.
199
FABRIS, Annateresa (org.) Portinari, amico mio. Cartas de Mário de Andrade a Cândido
Portinari. Campinas, São Paulo: Mercado das Letras, 1995. p.51.
200
http://www.cpdoc.fgv.Brasiynav_historia/htm/biografias/ev_bio_cassianoricardo.htm.
201
CÂNDIDO, A. Prefácio de intelectuais e classe dirigente no Brasil. (1920-45) In: MICELI, S.
Intelectuais à brasileira. São Paulo: Cia das Letras, 2001. p.75.
as circunstâncias de encomenda das obras, verificamos que essa apropriação não denota
afinidade do pintor com o Estado de Getúlio Vargas, mas sim com intelectuais extremamente
inovadores frente ao tradicionalismo dominante.
"(...) Dei início às obras diante o espanto geral da cidade do Rio, que não compreendia aquela
audácia Por trás da opinião pública, estava a corrente da arquitetura velha muito numerosa e
muito poderosa Desde logo uma idéia ficou assentada no meu espírito: é que nós não íamos
fazer simplesmente um edifício funcional, mas devíamos empreender a construção de uma
grande obra de arte, o que queria dizer que devíamos convocar desde logo os nomes
modernos, verdadeiramente de primeira grandeza, que se encarregassem das obras da pintura,
arquitetura e jardinagem. O principal pintor que chamei foi Cândido Portinari, então no
princípio de sua carreira e muito combatido. Portinari executou todas as obras de pintura
planejada, mas no fim ainda chamei Pancetti e Guignard, para concorrerem com algumas
obras de sua autoria Como naquela época o combate ao comunismo era acirrado e
apaixonante, os inimigos da pintura e da escultura novas chamavam-nos de comunistas e
chegaram a inventar que o edifício obedecera a forma de um martelo. Ridicularizavam-nos,
chamando o prédio de Capanema Maru, ao se verificar que sua concepção lembrava um
navio, a partir do emprego de pilotis, novidade introduzida por Le Corbusier"202.
Segundo Fabris, Getúlio Vargas, ao longo de seu governo, sempre se mostrara indiferente
às artes plásticas, haja vista a relativa independência atribuída a Gustavo Capanema. Segundo a
historiadora, "o presidente não faz nunca menção às artes plásticas, enquanto enfatiza com insistência
o papel a ser desempenhado pelo rádio e pelo cinema na consolidação da nacionalidade"203. Fabris
comenta que a "bíblia da estética getulista" era o livro de Oswaldo Teixeira "Getúlio Vargas e a arte
no Brasil", publicado pelo DIP em 1940. O trecho abaixo revela que o livro cumpria com louvor a
função de legitimar o governo Vargas, mas não propunha uma política artística:
202
Palácio da Cultura: 40 anos de arquitetura. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 31 maio, 1976.
203
FABRIS. Portinari, pintor social. São Paulo: Perspectiva, Ed. daUSP, 1990. p.32.
85
"Getülio Vargas, esse homem providencial que veio do Sul, pertence pelo seu ardoroso
nacionalismo a todo o Brasil. É sem dúvida run dos vultos mais impressionantes do
mundo atual. Estadista dos maiores, espírito à Colbert, sabe, como poucos, as
necessidades dos artistas no Brasil e lhes conhece perfeitamente a psicologia. As artes,
durante a década de seu admirável governo, têm conhecido os momentos mais notáveis, e
a sua proteção não em tido limites. Desde os primeiros anos de sua magnífica
administração, os artistas começaram a ter um maior incentivo e o povo a melhor
compreender a produção artística. Hoje, quase todas as casas e palácios possuem quadros
e decorações e o bom gosto está se desenvolvendo cada vez mais. Estátuas e outros
objetos estéticos são, comfreqüência,adquiridos e são comuns as exposições individuais
e mostras de arte estrangeira. Quando se tem um Chefe de Estado, um varão digno de
figurar nas páginas de Plutarco, como Getúlio Vargas, uma Pátria, como a brasileira, só
pode progredir em todos os setores a vida intelectual. Getúlio Vargas representa, para os
artistas brasileiros, uma lição de boa vontade e proteção. Nada tem negado às artes, tudo
tem dado em seu real propósito. Muitas de suas criações, notadamente aquelas que
surgiram com o Estado Novo, estão produzindo magníficamente bem e com pouco
dispêndio. Se Getúlio Vargas não tivesse surgido em dado e determinado período
histórico da vida brasileira, o nosso país, teria, por certo, caído no marasmo, na confusão,
na anarquia e na desolação".
Dessa forma, o estilo monumental de Portinari, que já havia sido promovido por
Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Mário Pedrosa, foi apropriado por Gustavo
Capanema. Em 1937, Portinari assinou o contrato para a pintura dos murais e passou a
trabalhar com os jovens arquitetos modernos do Ministério da Educação. As temáticas
escolhidas para esta empreitada foram: Corte do Pau-Brasil, Colheita da Cana-de-açúcar,
Criação de gado, Garimpagem do ouro, Lavoura de fumo, Algodão, Erva Mate, Café, Cacau,
Fundição de Ferro e Extração de Borracha.
"Portinari é um desses raros indivíduos com imaginação e talento. Ele não pode ser
classificado como surrealista, primitivo, expressionista ou pertence a qualquer dos
movimentos de arte de hoje. Ele pertence a todos e a nenhum. Seja muna cena direta ou
num vôo selvagem da fantasia, há sempre em suas figuras a qualidade e a profunda
humanidade que tem distinguido outros mestres anteriores, Van Gogh, por exemplo. E
também o desenho experimentado que deve haver no fundo de toda pintura"205.
204
Apud. A. VIDAL. Exposição de artes no Riverside Museum. In O Brasil na Feira Mundial de
Nova Yorque de 1940-Relatório Geral - Primeira Parte, 2 vols. Rio de Janeiro: 1942, 1, p.213.
205
Apud. FABRIS. Portinari, pintor social. São Paulo: Perspectiva, Ed. da USP, 1990. p.13.
87
"(...) Pintor oficial, Portinari só poderia mascarar a realidade social do pais. A miséria do nordeste
aparece na pintura de Portinari como distanciada da verdadeira realidade brasileira, algo irreal,
metafísico, como uma visão. Não sei se alguém já se apercebeu como alguns quadros de Portinari
do ciclo do nordeste têm muito de comum com a pintura metafísica de De Chineo, com os
quadros de Tanguy e de outros pintores surrealistas. O confronto, evidentemente não é qualidade.
Está visto. Na obra de Goya, por exemplo, está a contradição entre a realidade concreta do dia-a-
dia e o mundo fantasioso da corte sempre existiu e esta dicotomía, constitui, mesmo, a marca
principal de sua obra. Mas Goya foi um pintor excepcional"207.
As críticas de Oswald a Portinari foram mais do que um pretexto para atacar Mário de
Andrade, admirador inconteste do pintor e inimigo político de Oswald. Fabris considera que
Oswald tinha razão, em certa medida, quando atacava a "mística Portinari", isto é, quando
contestava o monopólio do pintor no cenário artístico nacional em detrimento dos demais
pintores. Segundo a historiadora, isso já se tornara patente em 1939, quando Robert Smith pedira
ao Ministério da Educação material sobre Portinari e Oswaldo Teixeira e Carlos Drummond de
206
FABRIS. Portinari, pintor social. São Paulo: Perspectiva, Ed. da USP, 1990. p.23.
207
MORAES, F. Contradições em Portinari. GAM (24), 1970,15. Citado por: FABRIS. Op. cit., p.26.
208
ANDRADE, O. De literatura: para comemorar Machado de Assis. Meio Dia (RJ), 10 maio 1939.
Citado por: FABRIS. Op. cit., p.26.
88
Andrade, secretário do Ministro Capanema, ao acrescentar alguns nomes à lista de Smith deixara
de lado pintores como Di Cavalcanti, Segall, Gomide, Tarsila, Flávio de Carvalho209.
209
FABRIS. Portinari, pintor social. São Paulo: Perspectiva, Ed. daUSP, 1990. p.27.
210
FABRIS. Idem.
89
O pai de Cândido Portinari, filho da Itália, veio para o Brasil aos treze anos de idade e a
mãe, também da Itália, aos cinco ou seis. (...) Dos doze filhos do casal, o pintor foi o
segundo, tendo nascido em 1903 na fazenda Santa Rosa. (...) Filho do povo, sua educação
foi feita ao ar livre, ao contato direto do duro trabalho do colono em meio aos cafezais da
terra roxa. (...) Ficou-lhe desta época, além das imagens infantis, o apego ao meio
familiar e a afeição pelos seus, a simpatia pelo homem do povo, pelo trabalhador braçal e
a rudeza de maneiras e um certo quê de manha e de sabedoria plebéia do caipira paulista.
O trecho acima inicia o artigo redigido por Mário Pedrosa em março de 1942 para o
Boletim da União Panamericana Como o próprio titulo nos indica, Portinari, de Brodósqui aos
murais de Washington, Pedrosa procurou traçar uma cronologia da trajetória artística e familiar de
Cândido Portinari. Observamos logo o esforço do crítico em apresentar o artista como homem
humilde e trabalhador braçal, camponês, filho do povo, criado no meio dos cafezais.
Fica explícita logo de início, a idéia de Pedrosa a respeito do homem brasileiro como
"homem do povo", um elemento que vai se repetir ao longo de todo o artigo. Nessas breves
linhas, Pedrosa já fornece algumas pistas de seu projeto ideológico (consciência que procurava
difundir de seu país), enquanto seu projeto estético só vai se revelando ao longo do texto.
"Já Portinari não se contenta com as representações luminosas das figuras de seus
primeiros marrons (...) O que ele quer agora é o homem concreto, em grupo ou em seu
meio social, no trabalho (...) Portinari abandonou então o idealismo abstrato a que havia
atingido, uma espécie de puro plasticismo transcendente, para entregar-se a uma luta
contra a matéria no afã de domina-la. E para isso encontrou o material mais duro, menos
amoldável, menos mundano que o óleo. Daí suas pesquisas e experiências com as
diversas técnicas de têmpera, do afresco, etc. Portinari não chegou ao afresco por um
simples incidente exterior, como poderia se pensar. Não foi o conhecimento dos murais
de Rivera ou de seus émulos no México que provocou no pintor brasileiro a idéia e a
vontade de fazer também a pintura mural. Muita gente estranha à sua obra poderá pensar
que o muralismo de Portinari foi apenas um eco retardado do formidável movimento
mexicano. Não o foi. Pela própria evolução interior de sua arte se pode ver que foi por
assim dizer orgánicamente, à medida que os problemas de técnica e estética iam
amadurecendo nele, que Portinari chegou diante do problema do mural".
"O Café de Portinari, tela vasta e de um forte sentimento de pintura mural, não somente é
o melhor quadro do grupo de expositores brasileiros, mas em nossa opinião, um dos mais
belos trabalhos entre todas as 365 telas expostas esse ano. Extraordinariamente bem
composto, tem colocada impreensivelmente, num arranjo coerente e equilibrado, cada
uma das suas trinta ou mais figuras, sendo isoladamente qualquer uma delas um retrato
dotado de vida, força e vigor"211.
O Café inaugura, de forma polêmica, uma nova fase na produção de Portinari, de
cunho social. A partir daí, o artista vai focalizar outras dimensões do Brasil, como a favela
carioca e o morro, temáticas que estimulam sua tendência muralista. De fato, é nítido em seus
murais a intenção nacionalista da fase heróica do Modernismo, evidente na temática
marcadamente brasileira, assim como é notável no estilo do pintor além da influência do
muralismo mexicano, outros traços que remetem aos artistas de Paris, ao quattrocento italiano
e à Escola de Belas Artes. Essa predominância de estilos caracterizará um certo ecletismo na
produção artística muralista de Portinari212. No entanto, sem se preocupar com o ecletismo de
seu estilo, Portinari notadamente apontava para um estilo figurativo, desviando-se assim do
academicismo.
211
Citado por; FABRIS. Op. cit., p.l 1.
212
ZILIO, C. A querela do BrasU. p.91.
93
Mário Pedrosa sempre era mais incisivo quando argumentava sobre a opção
ideológica do pintor, especialmente ao comentar os murais da Fundação Hispânica na
Biblioteca do Congresso, em Washington, no ano de 1941. Destacamos aqui a visão de
Pedrosa sobre a obra Descobrimento (ver imagem próxima p.):
"O tema desse quadro é em si cheio de seduções perigosas para um pintor menos
prevenido. A beleza natural das cenas marinhas, das caravelas, que as estampas
românticas já tanto convencionalizaram, é, para o artista, um escolho e um perigoso
convite à condescendência. Portinari pôs de lado qualquer concessão ao
convencionalismo histórico e no seu quadro não há grandes capitães nem lindas caravelas
(...) Assim essa utilização audaciosa do convencional, da inspiração literária produz um
contraste empolgante com a materialidade grave, objetiva e palpitante dos homens do
primeiro plano e a estrutura desinteressada de toda a composição (...) As deformações
plásticas das figuras são marcadas pela cadência preguiçosa das cordas pendentes. Parece
ouvir-se na cadência dos volumes e das linhas o ritmo de uma canção de trabalho que se
levanta para unamizar o esforço coletivo dos marujos. Tudo concorre para centralizar
sobre essas figuras todas as atenções, e atestar que o mérito da descoberta é delas".
213
Fala de Portinari. In: Cândido Portinari: coleção gênios da pintura. n°6.
DESCOBRIMENTO
95
Ao eleger a pintura mural de Portinari como sua fase mais primorosa, Mário acentua
que fazer arte também é uma árdua tarefa, que para ser cumprida exige um considerável período
de formação; especializada (pelo estudo das artes clássicas e formação acadêmica) e sobretudo
política (adquirida pelas vanguardas literárias). Segundo Mário Pedrosa, a sedimentação desses
dois fatores é fundamental para o artista reconhecer e assimilar as necessidades da arte moderna.
A pintura mural, por ser figurativa, pareceu, aos olhos do crítico, um profícuo instrumento de arte
social, o melhor meio de representar, para um grande número de pessoas, a idéia de brasilidade. A
preocupação, de contar uma história diferente, legível, esteticamente bem construída, permaneceu
na ideologia de Portinari, como mostra o pintor em uma Conferência em Montevidéu, cinco anos
após a edição da crítica de Pedrosa:
"Creio que ficou bem claro que um quadro, antes de tudo, deve possuir um valor
intrínseco, isto é, um valor artístico. Muitos acharão absurdo pedir mais do que isso a um
quadro. Um artista debate-se durante toda a sua vida com seus problemas artísticos e não
é justo que se lhe peça mais, posto que o tema só serve para desviá-lo de seu caminho.
Bem sei que esse problema é o problema fundamental para um artista, mas, quando se
pinta, sempre se representa algo alheio à questão plástica. Todos os pintores sabem que
não é o tema que conta; por isso mesmo, não é pedir muito ao pintor que incorpore a seu
quadro esse pormenor ao qual dedica tão pouca importância por algo extra-plástico. E
isso para o bem dos que lutam e sofrem na vida em todos os seus matizes. Estou certo de
que esse ato só beneficiará a obra de arte porque ela será acrescentada de algo útil. Os
temas de Goya, por exemplo, são verdadeiros gritos; são de uma visibilidade incrível e,
assim mesmo, o valor plástico permanece. Sem ser plásticamente inferior em nada a todo
o melhor que se faz na pintura abstrata. Todo artista, que meditar sobre os acontecimentos
que perturbam o mundo, chegará à conclusão de que, fazendo seu quadro mais legível,
sua arte, em vez de perder, ganhará e muito, porque receberá o estímulo do povo"214.
214
FABRIS, Annateresa Portinari, pintor sociaL São Paulo: Edusp, 1990. p.l 18.
96
5. REFLEXÕES FINAIS
No entanto, no caso brasileiro, essa polarização não foi tão demarcada, uma vez que
considerável parcela de intelectuais simpáticos à esquerda passaram a integrar as instâncias
culturais do regime autoritário de Vargas. Se, por um lado, o Estado baniu uma parcela dos
intelectuais de esquerda, especialmente os partidários do Partido Comunista e trotskistas,
como foi demonstrado na trajetória de Mário Pedrosa, por outro, mostrou-se extremamente
hábil em atrair para o regime os intelectuais e artistas das vanguardas modernistas, sendo que
muitos deles eram notadamente esquerdistas, entre eles Portinari e Mário de Andrade.
Procurando afirmar seu governo através de aparatos culturais, Getúlio Vargas, tão logo
assumira o governo provisório em novembro de 1930, mostrou-se receptivo a estas duas correntes
distintas de pensamento, procurando extrair de cada vertente estratégias para legitimar seu Estado
autoritário frente aos setores diferenciados da sociedade. Getúlio através de ações no setor
cultural, atribuiu uma função social coletiva aos intelectuais e artistas de ambas as vertentes,
resgatando assim uma tendência histórica dos homens de idéias, de pensar a sociedade brasileira,
ao mesmo tempo que possibilitou que esses pusessem em prática seus projetos culturais.
98
Sendo o homem visionário que era, Mário Pedrosa viu em Portinari somente o
artista, que, independente de seu mecenas, cumpria com louvor a função de difundir uma arte
social, convergente com as propostas modernistas de esquerda de resgatar as raízes da
brasilidade e pôr em foco o homem trabalhador, negro, genuinamente brasileiro através da
pintura mural. Enfim, as críticas de Mário Pedrosa sobretudo revelaram um crítico que,
mesmo sendo opositor ao regime, mostrou-se mais propenso a exaltar o caráter social das
obras de Portinari, associando-as à busca da brasilidade, do que a reduzi-la a uma estética
dirigente, à mera submissão à ideologia do governo.
a classe dos intelectuais como atuante na difusão da ideologia nacionalista do Estado Novo.
Mas se Mário Pedrosa não ajudou a construir a ponte entre o Movimento Modernista e o
regime Vargas, tampouco podemos dizer que o crítico foi o estereótipo de um socialista
radical, frente à habilidade, demonstrada em suas críticas, de transformar um pintor oficial em
crítico e revolucionário.
Pedrosa, como demonstraram suas críticas, viu em Portinari e nos seus murais mais do
que um artista engajado num projeto getulista, e sim um artista comprometido com a crítica
social, preocupado em introduzir nas artes plásticas uma temática nova: o povo genuinamente
brasileiro. Enfim, a afinidade entre Portinari e Mário Pedrosa deveu-se sobretudo a uma
identidade cultural e estética originada no movimento modernista, que naquele contexto
transcendia a esfera meramente política.
Na década de 1950, Pedrosa passou a defender outra estética para as artes plásticas: a
arte concreta. Essa arte, racional e geométricamente construída, parecia-lhe a um só tempo a
superação da arte modernista brasileira, voltada para os temas nacionais, e a possibilidade de
criar-se uma linguagem pictórica comum a todos os povos. Sem falar no fato de que, por ser
geométrica abstrata, essa arte tornaria possível a tão sonhada sínteses das artes, através de sua
integração na arquitetura.
100
No Brasil, uma dissidência da arte concreta gerou a arte neoconcreta, que queria levar
às últimas conseqüências as propostas da vanguarda, mas que no entanto não correspondia aos
princípios de Mário Pedrosa: os artistas abandonaram os pincéis, as telas, passaram a produzir
arte ambiental, arte corporal, happenings e performances, arte conceituai, etc. Mário Pedrosa,
sintonizado com o presente e aberto à modernidade, não se fechou a essas novas
manifestações, qualifícando-as como "o exercício experimental da liberdade".
Entretanto, com o Golpe em 1964 e a instauração da ditadura militar, Pedrosa foi mais
uma vez exilado, indo para o Chile de Salvador Allende. A situação de exilado fez com que
reavaliasse esse suposto "exercício experimental da liberdade" no campo das artes e passasse
a criticar o "estágio desagregador das vanguardas". Após essa experiência, Pedrosa passou a
defender o retorno às fontes primitivas da experiência estética: a arte indígena brasileira.
"Não sou apenas eu que estou passando; é toda pintura. Não é culpa de ninguém.
Acontece que a pintura não suportará a pressão dos meios de comunicação mais diretos,
simples e acessíveis. Um artista - isto é, uma pessoa dotada de sensibilidade intensa e de
uma necessidade igualmente intensa de exprimir-se - um artista dispõe hoje de meios de
comunicação mais eficientes e menos sofisticados. Em parte, a culpa está na alienação do
artista face à problemática do homem. Mas, por outro lado, os abstracionistas
impulsionam o processo de decadência da pintura. Por quê ? Porque o abstrato na pintura
carece de sentido: é uma comunicação deficiente"215.
215
GÊNIOS DA PINTURA (col). n°6. Cândido Portinari. São Paulo: Abril Cultural Ltda. [s/d], p.6.
101
Realizou uma série de estudos a carvão, bico-de-pena e têmpera; nessas obras, mais
uma vez, são relegadas as questões políticas, a temática social. Em 1960, com o nascimento
de sua neta Denise, Portinari passou a se dedicar a aquela que seria a última de suas coleções,
pintando sua neta numa série de retratos notadamente influenciados pelo Cubismo, até 1962,
ano de sua morte.
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