Deleuze Os Intercessores
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Conversaçôes 151
eternos. É o estado de direito e outras noçôes, que, todos sa- uma reflexào sobre, e sim tomar o dominio onde se efetua
bem, sào muito abstratas. E é em nome disso que se breca todo realmente o que me interessa: em que condiçôes pode haver
pensamento, que todas as analises em termos de movimen- um automovimento ou uma autotemporalizaçào da imagem,
tos sào bloqueadas. Contudo, se as opressôes sâ.o tào terri- e quai foi a evoluçào desses dois fatores desde o fim do sé-
veis é porque impedem os movimentos, e nâ.o porque ofen- culo XIX. Pois quando se faz um cinema fundado sobre o tem-
dem o eterno. Sempre que se esta numa época pobre, a filo- po, e nao mais sobre o movimento, é evidente que ha mudança
sofia se refugia na reflexâ.o "sobre" ... Se ela mesma nada cria, de natureza em relaçao à primeira época. E sô o cinema pode
o que poderia fazer, senào refletir sobre? Entâ.o reflete sobre ser o laboratôrio que nos torna isso sensivel, na medida em
o eterno, ou sobre o histôrico, mas ja nâ.o consegue ela pro- que, precisa mente, o movimento e o tempo tornaram-se cons-
pria fazer o movimento. titutivos da prôpria imagem.
0 primeiro estagio do cinema, portanto, é o automovi-
0 fil6sofo nao é reflexivo, é um criador mento da imagem. Aconteceu de isso se realizar num cinema
de narraçao. Mas nào era obrigatôrio. Ha um manuscrito d.e
De fato, o que importa é retirar do filôsofo o direito à Noel Burch essencial sobre este ponto: a narraçao nao esta-
reflexao "sobre". 0 filôsofo é criador, ele nao é reflexivo. va compreendida no cinema desde o inicio. 0 que levou a
Censuram-me por retomar analises de Bergson. Corn efei- imagem-movimento, isto é, o automovimento da imagem a
to, é um recorte muito novo que Bergson faz, ao distinguir a produzir narraçào, foi o esquema sensôrio-motor. 0 cinema
percepçào, a afecçào e a açao como três espécies do movimen- • nao é narrativo por natureza: ele torna-se narrativo quando
to. É sempre novo porque me parece que isto nunca foi bem toma por objeto o esquema sensôrio-motor. A saber: um per-
assimilado, e faz parte do que é mais dificil e mais belo no sonagem na tela percebe, sente, reage. Isto supôe muitas cren-
pensamento de Bergson. Ora, a aplicaçao desta analise ao ças: o herôi esta em tai situaçao, ele reage, o herôi sempre
cinema se faz por si sô: é ao mesmo tempo que o cinema se , sabera como reagir. Isso supôe uma certa concepçào do ci-
inventa e que o pensamento de Bergson se forma. A introdu- nema. Porque ele tornou-se americano, hollywoodiano? Por
çao do movimento no conceito se faz exatamente na mesma uma razào simples: era a América que tinha a propriedade
época em que se introduz o movimento na imagem. Bergson desse esquema. Tudo isso terminou corn a Segunda Guerra.
é um dos primeiros casos de automovimento do pensamen- De repente, as pessoas ja nào acreditam tanto que se possa
1 to. Porque nào basta dizer: os conceitos se movem. É preciso reagir a essas situaçôes. 0 pôs-guerra os ultrapassa. E vern o
ainda construir conceitos capazes de movimentos intelectu- neo-realismo italiano, que apresenta pessoas colocadas em
ais. Do mesmo modo, nào basta fazer sombras chinesas, é situaçôes que ja nâ.o podem mais se prolongar em reaçôes, em
preciso construir imagens capazes de automovimento. açôes. Nenhuma reaçao possivel, sera que isso quer dizer que
1 L
Em meu primeiro livro sobre cinema, tinha considerado tudo vai ser neutro? Nao, de modo algum. Havera situaçôes
a imagem cinematografica como essa imagem que adquire um ôpticas e sonoras puras, que engendrarao modos de compre-
automovimento. No segundo livro, considero a imagem ci- ensào e de resistência de um tipo inteiramente novo. E isto
nematografica na sua aquisiçao de uma autotemporalidade. sera o neo-realismo, a nouvelle vague, o cinema americano
Nào significa de modo algum tomar o cinema no sentido de que rompe corn Hollywood.
Conversaçôes 159
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0 complô dos imitadores um publico entusiasta, persuadido de que participa deum em-
preendimento cultural ao ver dois homens rivalizando-se para
Como definir hoje uma crise da literatura? 0 regime dos formar uma palavra corn nove letras. Acontecem coisas estra-
best-sellers é a alta rotatividade. Muitos livreiros ja tendem a nhas, sobre as quais Rossellini, o cineasta, disse tudo. Escutem
imitar as lojas de discos, que s6 aceitam produtos repertoria- hem: "0 mundo de hoje é muito inutilmente cruel. Cruelda-
dos por um top-clube ou um hit parade. É este o sentido do de é violar a personalidade de alguém, é coloca-lo em uma con-
programa "Apostrophes". A alta rotatividade constitui neces- diçao tai que chegue a uma confissao totale gratuita. Se fos-
sariamente um mercado do esperado: mesmo o "audacioso", se uma confissao visando a um fim determinado eu o aceita-
0 "escandaloso", 0 estranho, etc., sao moldados segundo as ria, mas é o exercicio de um voyeur, de um torpe, reconheça-
formas previstas do mercado. As condiçoes da criaçao litera- mos, é cruel. Acredito firmemente que a crueldade é sempre
ria, que s6 podem se liberar no inesperado, na rotaçao lenta uma manifestaçao de infantilismo. Toda a arte de ho je toma-
e na difusao progressiva, sao frageis. Os Beckett ou os Kafka se a cada dia mais infantil. Cada um tem o desejo louco de ser
do futuro, que justamente nao se assemelham nem a Beckett o mais infantil possîvel. Nao digo ingênuo: infantil... Hoje a
nem a Kafka, correm o risco de nao encontrar editor, sem que arte é ou a queixa ou a crueldade. Nao ha outra medida: ou
ninguém o perceba por definiçao. Como diz Lindon, "nao se queixa-se, ou se faz um exercîcio absolutamente gratuito de
nota a ausência deum desconhecido". A URSS perdeu sua li- pequena cruel da de. Torne por exemplo esta especulaçao (é
teratura sem que ninguém o percebesse. Sera possîvel felicitar- precisa chama-la pelo nome) que se faz sobre a incomunica-
se pela progressao quantitativa do livro e pelo aumento das bilidade, sobre a alienaçao, nao encontro nela nenhuma ter-
tiragens: os jovens escritores serao moldados num espaço li- : nura, mas uma complacência enorme ... E isto, ja lhe disse, me
terario que nao lhes deixara a possibilidade de criar. Surge um . . levou a nao fazer mais cinema." Primeiro isto deveria leva-lo
romance padrao monstruoso, feito de uma imitaçao de Balzac, ·• a nao dar mais entrevistas. A crueldade e o infantilismo sao
de Stendhal, de Céline, de Beckett ou de Duras, pouco importa. :: uma prova de força mesmo para quem se compraz corn isso,
Ou melhor, Balzac mesmo é inimitavel, Célint> é inimitavel: sao e se impoem até mesmo a quem gostaria de lhes escapar.
novas sintaxes, "inesperados". 0 que se imita é ja sempre uma
copia. Os imitadores imitam-se entre si, de onde sua força de 0 casai transborda
propagaçao, e a impressao de que fazem melhor que o modelo,
pois conhecem a maneira ou a soluçao. As vezes se age como se as pessoas nao pudessem se ex-
É terrivel o que acontece em "Apostrophes". É um pro- primir. Mas de fato, elas nao param de se exprimir. Os ca-
grama de grande força técnica, a organizaçao, os enquadra- sais malditos sao aqueles em que a mulher nao pode estar
mentos. Mas é também o estado zero da crîtica literaria, a li- distraîda ou cansada sem que o homem diga: "0 que você
teratura tornada espetaculo de variedades. Pivot, seu apresen- tem? Fala ... ", e o homem sem que a mulher ... , etc. 0 radio, a
tador, nunca escondeu que aquilo de que realmente gostava televisao fizeram o casai transbordar, dispersaram-no por toda
era o futebol e a gastronomia. A literatura vira um jogo te- parte, e estamos trespassados de palavras inuteis, de uma
levisionado. 0 verdadeiro problema dos programas na tele- quantidade demente de falas e imagens. A besteira nunca é
visao é a invasao dos jogos. É inquietante, afinal, que exista muda nem cega. De modo que o problema nao é mais fazer
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zem. Nao se pode ir longe na literatura corn o sistema "Via-
jamos e vimos muito", onde o autor primeiro faz as coisas e SOBRE A FILOSOFIA
em seguida relata. 0 narcisismo dos autores é odioso porque
nao pode haver narcisismo de uma sombra. Entao a entrevista Magazine Littéraire, n° 257, setembro de 1988, entrevista a
Raymond Bellour e François Ewald.
acabou. 0 que é grave, nao é atravessar 0 deserto, tendo a
idade e a paciência para isto; grave é para os jovens escrito-
res que nascem no deserto, porque correm o risco de verem
sua empreitada anulada antes mesmo que aconteça. E no en-
tanto, é impossivel que nao nasça a nova raça de escritores
que ja estao ai para os trabalhos e os estilos.
- Você aca ba de publicar um nova livra: A dobra, Leibniz
e o barroco. Poderia retraçar o itinerario que, de um estudo
sobre Hume (Empirisme et subjectivité, 1953) o conduz ago-
ra a Leibniz? Seguindo a cronologia de seus livras, poderiamos
dizer que depois de uma primeira etapa dedicada a trabalhos
de historia da filosofia, que teria culminado com o Nietzsche
(1962), você elaborou, com Diferença e repetiçao (1968), depois
nos dois tomas de Capitalismo e esquizofrenia (1972 e 1980)
escritos com Félix Guattari, uma filosofia pr6pria, cujo estilo
é tu do menas universitario. Parece que hoje, depois de ter escrito
sobre pintura (Bacon) e cinema, você reata com um tratamento
mais classico da filosofia. Você se reconhece num ta/ percur-
so? Deve-se considerar sua obra camo um toda, uma unida-
de? Ou, ao contrario, você vê ne/a rupturas, transformaçoes?