O Que - Não - Dizer Sobre As Crianças
O Que - Não - Dizer Sobre As Crianças
O Que - Não - Dizer Sobre As Crianças
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Texto apresentado durante a IV Jornada de Psicanálise com Crianças de Americana, maio/2008, na
mesa Brincadeira de menino, brincadeira de menina: o brincar e a diferença sexual, sob o título “O
que as crianças (não) dizem”.
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Psicóloga com aperfeiçoamento em Psicanálise, Infância e Educação (USP), mestre e doutoranda
em Lingüística; Pesquisadora do Grupo SEMASOMa. Atualmente, é psicóloga no Ambulatório de
Especialidades do Hospital de Nova Odessa e Professora das Faculdades Network.
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Sabemos que a fala da criança não é revista do valor simbólico que tem a
palavra do adulto. Nesse sentido, é lícito supor priorizar a fala dos pais em
detrimento do brincar da criança, seria um avanço teórico para a psicanálise?
Estaria o palestrante resgatando a importância da fala e da linguagem a partir da
teoria lacaniana de forma que, em uma psicanálise, o que se oferece à escuta é
somente aquilo que é verbalizado?
como Françoise Dolto e Maud Mannoni não haverem se inquietado com a questão,
no Brasil, houve uma grande polêmica sobre o direito de cidadania de uma
psicanálise com crianças pois apesar de serem falantes, a fala não constitui um
modo privilegiado de as crianças se comunicarem, sendo “o brincar e o jogar as
formas básicas da comunicação infantil, com as quais as crianças inventam o
mundo e elaboram os impactos exercidos pelos outros”.(idem). A fala de Paulo
Schiller vai justamente nesse sentido.
LINGUAGEM
Uma chance, contudo, que se oferece para nós no que diz respeito ao
inconsciente, é que a ciência do qual ele depende é certamente a
lingüística, primeiro fato de estrutura. Digamos de preferência que ele
– o inconsciente – é estruturado porque é feito como uma linguagem,
que ele se desdobra nos efeitos da linguagem. (Jorge, loc.cit.)
BRINCAR
Freud aponta uma analogia entre o brincar e o fazer poético em seu artigo
Escritores criativos e devaneio, de 1907:
ocupação favorita e mais intensa da criança (Freud, EEB, Vol. IX, s/p).
Reconhecendo tal fato, parece ser lícito afirmar que ao brincar, a criança interpreta
a realidade; o termo interpretação é adotado aqui em seu sentido cênico que
convoca o espectador – o adulto – a produzir teorias sobre a criança na medida em
que o brincar re-vela e recoloca a sua opacidade real (Leite, 2005, p.1).
O brincar, como vimos, tem sido abordado como uma atividade – ou como
sugerem alguns autores, um trabalho – inerente à criança. No entanto, sabemos que
o brincar não é exclusividade delas, ainda que possamos reconhecer diferenças da
sua condição daquela do adulto.
Para alguns dos mais importantes artistas do século XX, como Klee,
Kandinsky, Miró e Calder, o impulso lúdico - ou impulso para o jogo -
não era apenas característico da infância. Seguindo as reflexões do
poeta e filósofo romântico alemão Friedrich Schiller, esse impulso
também seria jogo estético e, portanto, artístico; seria atributo do
homem e, mais do que isso, o definiria enquanto ser livre e
espiritual. Para boa parte dos artistas modernos, portanto, a arte
tornou-se sinônimo de espaço lúdico, compartilhando com o universo
infantil o território da livre expressão (Cerón, 2004).
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Princípio segundo o qual o funcionamento do aparelho psíquico se dirige no sentido de manter baixa
a quantidade de excitação. Nesse sentido, qualquer coisa que aumente essa quantidade está
destinada a ser sentida como adversa ao funcionamento do aparelho, ou seja, como desagradável.
Freud assevera que apesar dessa ser a tendência do aparelho psíquico, tal princípio não é dominante
em seu funcionamento. (Freud, 1920)
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Nesse momento, a teorização psicanalítica não dispunha dos conceitos de Real – Simbólico –
Imaginário, como propostos por Lacan e, desta maneira, o real apontado por Freud corresponde ao
termo realidade proposto por Lacan. Apenas muitos anos depois é que Lacan enfatizará que o aquilo
que se opõe à fantasia não é a realidade, mas o real. No entanto, já na Interpretação dos Sonhos
(1900), Freud abre caminho para a formulação lacaniana, diferenciando realidade psíquica de
realidade material.
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Por que será que elas nunca experimentam o bolo? As brincadeiras, não
raro, têm essa característica: a de nunca se consumar o que foi planejado. O jogo
cênico da brincadeira da criança assume a lógica de sua condição: existe uma festa
que acontece na vida dos adultos e que ela ainda não pode gozar. Estamos frente à
curiosidade sexual, portanto. Tal curiosidade engendra toda atividade da criança na
busca de respostas sobre o enigma da diferença sexual.
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Veras e Vorcaro (2006), no artigo “O brincar como operação de escrita”, apresentam uma distinção
bastante interessante entre o brincar e o sonho em seu artigo, problematizando os interstícios entre
apresentação e representação, discutindo a polissemia do termo figurabilidade, concluindo que o
brincar ultrapassa a representação do vivido (como nos sonhos) para tornar-se uma vivência de fato,
vivencia que escreve, ou seja, reinventa, cifrando, num voto de re-solver o afeto da angústia
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Assim, Freud pode conferir ao humor e a arte uma herança do brincar. Vale
ressaltar que Freud diz que é o poeta que faz como a criança e não o contrário.
desenvolvimentista – que não é tida como provisória, mas efetiva dentro dos
estágios de desenvolvimento pré-fixados – da qualidade do desenho da criança:
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A esse respeito, a brincadeira do fort-da é esclarecedora.
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e anotar, já que a discussão revelou-se surda.
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durante a III Jornada de Psicanálise com crianças: figuras da angústia na infância, em
Americana/SP, de 25 a 26/05/07.
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mais recentes e mesmo àquilo que o lúcido Johann Christoph Friedrich von Schiller ,
no final do século XVIII, já enunciava: “O que significa, entretanto, dizer mero jogo,
quando sabemos que, de todos os estados do homem, é o jogo e somente ele que
torna completo e desdobra de uma só vez sua natureza dupla?” [razão e
sensibilidade]. (Schiller, 1795, apud Santa Roza, 1993, p. 74).
É assim que J., de cinco anos – trazida à análise por que só veste roupas de
meninos – brincando comigo, desenha muitos rabiscos em uma folha de caderno e,
na sua borda, faz um buraco. No jogo com a analista, vai compondo uma história
para aquele desenho; trata-se de um labirinto. Um labirinto é um lugar que parece
não ter saída, enfatizo, ao que ela responde: “tem sim, é nesse buraco vazio”.
Buraco da falta que engendra o desejo. É assim que o brincar cumpre a função de
apreender esse vazio (PAVONE, 2004, p. 259), que as marcas do encontro sempre
faltoso com o real fazem borda; vazio inassimilável, uma vez eu o desejo é seu
representante não representativo (Lacan, 1985, p. 207), buraco deixado pelo objeto
desde sempre perdido, o qual, como no jogo do “Resta 1”, faz as peças se
movimentarem.
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Poeta pré-romântico alemão e filósofo que se aproximou da crítica kantiana objetivando legitimar a arte,
através da fundação de bases universais que, assim, promoveriam sua aceitação num mundo das ciências
emergentes. (Chuc, 1997)
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REFERÊNCIAS
_____. Uma nova metodologia de educação pré-escolar. 7ª ed. São Paulo: Pioneira,
1.993. 55p. p. 20.
LACAN, J. (1969). “Nota sobre a criança”. In: Outros escritos. Trad. Vera Ribeiro.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p.369-370, 2003
_____ Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.