3 Movimentos TCC Rubens Lopes
3 Movimentos TCC Rubens Lopes
3 Movimentos TCC Rubens Lopes
Três movimentos:
uma proposta de ensino/aprendizagem em dança negra contemporânea
FORTALEZA 2018
Francisco Rubéns Lopes dos Santos
Três movimentos:
uma proposta de ensino/aprendizagem em dança negra contemporânea
FORTALEZA 2018
AGRADECIMENTOS
Aos meus ancestrais, aquelas e aqueles que vieram antes de mim, que ainda estão
em mim e que comigo trilham essa caminhada terrena também com/na/pela dança.
À Companhia dos Pés Grandes, que me ensinou com os homens da minha vida
que felicidade também é possível e que independente de onde estejamos, seremos sempre
amores/amados e partícipes desse projeto que é tão nosso. Com vocês eu aprendi qual o
tipo de grupo se mantem vivo e junto por muito tempo.
À Companhia Anagrama, cada pessoa que já passou por ela e que esteve comigo
nesses anos de caminhada na história da dança cearense. Mas recentemente ao Carlinhos
Freitas (que também é Karlota), ao Junior Meireles, à Nayana de Castro, à Raquel Maria,
ao Souza Frota. Antes deles e também com eles, à Gabrielle Dantas, ao Igor Lira. Vocês
são tão importantes na minha vida e na minha dança que esse trabalho só foi possível
graças aos nossos esforços coletivos. Amo vocês especialmente.
Aos meus alunos da vida, que também são parte importante nessa minha
caminhada. Vocês me enconrajam a não desistir tão cedo e a sempre é uma delícia poder
trocar com vocês.
Às pessoas negras que encontrei na minha vida, sem as quais este trabalho não
faria o menor sentido. Vocês foram e continuam sendo essenciais na minha vida/dança e
esse trabalho é pra vocês, ele é nosso, ele é conosco!
Aos meus amigos, que também são meus amores e que estão sempre comigo
escutando meus lamentos e meus gozos, e nuca desistem de mim. Que nossos caminhos
permaneçam sempre em cruza, que nossos corpos permaneçam vivos e que sejamos
resistência onde quer que estejamos.
SUMÁRIO
Resumo............................................................................................................................03
Introdução........................................................................................................................04
Primeiro movimento: Situando-se ..................................................................................08
Segundo movimento: Questionando-se...........................................................................19
2.1: Aprendizagem, memórias, passos de dança e sensações à baila...........................19
2.2: Interculturalidade crítica e decolonialidade em diálogos com danças negras.......24
Terceiro movimento: (Com)pondo-se.............................................................................32
Considerando algo mais...................................................................................................43
Referências......................................................................................................................45
FORTALEZA 2018
RESUMO
Muitas vezes me perguntei sobre qual o meu papel na dança cearense e em que
circunstâncias a dança que me era apresentada me servia como existência ou apenas como
um caminho pelo qual eu precisava passar para encontrar a minha forma de existir
na/com/em dança. Olhando para as minhas vivências como homem negro, periférico e
artista me deparo com um modo de viver a dança – de aprendê-la, de ensiná-la e de
abordá-la – diferente de muitos outros modos ensinados em Fortaleza e no Ceará. Assim,
este escrito tem como objetivo engendrar uma proposição de ensino/aprendizagem1 em
dança negra2 contemporânea, apostando na movimentação do torso e no processo em que
cada participante dessas aulas percebe-se dançante, dançando. Para isso, utilizo da minha
experiência com danças negras africanas ancestrais e danças negras afrodiaspóricas, das
quais cito aqui o dancehall, o jazz, a swingueira e o funk, que junto a experiências com
outras técnicas de dança, que estudei ao longo da minha jornada dançante, constituem a
carne deste estudo em dança.
Na proposição metodológica de ensino/aprendizagem em dança negra
contemporânea, utilizo o torso como ativador de memórias que se materializam em
corpos, intensidades e modos de expressão conectados às ancestralidades africanas que,
em danças, articulam temporalidades e afirmam uma interculturalidade crítica a processos
de apagamento, de invisibilização, de marginalização e de desarticulação com as histórias
e contextos tecidos com essas danças. Danças que, por estarem atreladas a culturas tão
estigmatizadas e tão marginalizadas quanto são as culturas negras, se fazem justo e
imprescindível que as abordemos nos âmbitos da educação e da arte, para que os mesmos
não reproduzam o racismo ainda tão contundente na sociedade. Além de se fazer
1
Escrevemos ensino/aprendizagem com essa barra inclinada entre os termos, para provocar que pensemos
ensino e aprendizagem de modo intrincado, sendo constituídos mutuamente na relação.
2
Uso o termo “negro” para enfatizar a relação não apenas com as construções sociais em torno da palavra
“afro”, mas como uma noção que transita em tempos e espaços históricos e sociais diferentes, bem como
em contextos de dança e que permanece sendo ressignificada, de modo a fortalecer a constituição de
identidades que passam a serem relacionadas à força da resistência, do orgulho de si, da história de luta e
da beleza de inúmeros de afrodescendentes que formam a população de diversos países (antigas colônias
europeias). Uso o termo também para me referir ao caráter ancestral das danças com as quais trabalho,
ancestralidades que também estão presentes em minhas práticas, nas danças que se situam no âmbito do
urbano e na hibridação constante.
necessário encontrar mecanismos que deem mais voz a essa grande parcela da população
que tem seus costumes e práticas inferiorizados, silenciados, e porque não dizer também
apagados da história brasileira, onde a cultura embraquecida é hegemônica e se faz
presente também em programas de formação em dança do Brasil, marcados por danças
eurocentradas.
Por se tratar de uma pesquisa baseada na experiência negra, fazemos questão de
realizar um diálogo também com autores negros e suas histórias de vida que foram, muitas
vezes, silenciadas e invisibilizadas. É certo afirmar que autores não negros são citados
aqui, mas com o intuito de diversificar uma fala que auxilie e que se interesse em dar voz
aos que foram e são colonizados ainda hoje, também em termos educacionais.
No texto, por vezes usamos a primeira pessoa do singular – quando abordamos
um trabalho muito particular meu – e, outras vezes, a primeira pessoa do plural – quando
abordamos um processo ou texto tecido junto com minha orientadora. Também
utilizamos o tempo presente e o passado, reafirmando algo que está em movimento, que
não está acabado e que continua em processo.
Figura 1: Rubens Lopes em meados dos anos de 1990, em desfile do dia da pátria. Arquivo pessoal.
Sou filho mais novo de seis, sendo os cinco anteriores mulheres. Nasci
numa família de mulheres, onde as decisões são tomadas por mulheres, onde elas são
protagonistas de suas histórias. Minha genitora, Maria Lúcia Lopes dos Santos – apelidada
de Míssia – , é irmã da mulher a quem chamo de mãe, chamada Maria Célia de Sousa
Lopes – apelidada por mim de ‘Mamífera’, e por minha irmã mais próxima de ‘Mamilis’.
Ela dedicou toda a sua vida a cuidar de minha vó, Maria Beliza de Sousa Lopes, de três
das minhas irmãs – Maurília, Elisangela, Fernanda, e de mim, abdicando de sua vida de
trabalho assalariado e inclusive de relacionamentos afetivos.
Minha família é daquelas que se reúne em torno da mesa na sala de jantar para
comer (antes almoçávamos, hoje em dia tomamos o café da manhã) e conversar, as vezes
decidir coisas que interferem na rotina da família. Como a casa onde morei durante boa
parte da minha vida foi a casa de minha vó, comumente a casa estava repleta de pessoas
indo, vindo, ficando, quer fossem primas ou primos, tias, sobrinhas, agregados em geral.
Minha vó completou, em agosto de dois mil e dezesseis, cento e dois anos e continuou
sendo o centro da casa até o seu último suspiro, em quatro de maio de dois mil e dezessete.
Como disse acima, na minha família é mais comum nascer mulheres, fui um
menino de poucas ou quase nenhuma referência masculina ao longo da infância e
adolescência. Não tenho indicadores de minha família paterna e mesmo da figura de meu
pai só me lembro vagarosamente... Precisei aprender coisas simples da vida masculina
como tirar a barba e outras questões de higiene com os poucos amigos meninos que tive
durante essa fase de minha vida. Sempre tive facilidade para aprender coisas, sempre tirei
notas boas. Lembro que minhas notas até o último ano do ensino fundamental rodeavam
entre nove e dez. Lembro também de sempre estar ligado a algum movimento da cultura
popular relacionado ao corpo, seja ele reisado, pastoril, axé ou swingueira. A sede por
aprendizado me levou a entrar na Igreja Católica logo após a minha primeira comunhão3
e me fez participar do grupo de coroinhas da igreja.
3
A Primeira Comunhão é o segundo sacramento de sete existentes na Igreja Católica, ela vem seguida do
sacramento do Batismo e se dá após o catecismo, onde a criança aprende as noções básicas de cristianismo
e suas orações segundo o catolicismo. O seu ápice é quando, após dois anos de estudo, a criança pode
receber a hóstia, que é o símbolo mais sagrado de todo o ritual católico.
4
A Teologia da Libertação é um movimento apartidário que engloba várias correntes de pensamento
interpretando os ensinamentos de Jesus Cristo como libertadores de injustas condições sociais, políticas e
econômicas. Surgida na década de 1960, no interior da Igreja Católica, recebeu influência de outras três
correntes de filosofia religiosa: o Evangelho Social, a Teologia da Esperança e a Teologia Antropo-política.
Em meio a essa associação de ideias, foi publicada uma obra em 1965 que seguia caminhos opostos do
venerado Santo Agostinho, argumentando que, no século XX, a dualidade mundo terreno/mundo espiritual
teria sido superada pela dualidade mundo proletário/mundo burguês. Apesar da internacionalização da
Teologia da Libertação, a América Latina reúne seus maiores representantes, como o padre
peruano Gustavo Gutiérrez, o brasileiro Leonardo Boff e o uruguaio Juan Luis Segundo.
civilização, a Civilização do Amor. Um projeto que nasce da equação “jovem
evangelizando jovem para um mundo de paridades”.
Foi a partir do Curso Técnico que comecei a estudar a técnica de Martha Graham6
e, atualmente, sou o único profissional no estado do Ceará que a desenvolve de forma
sistemática. Comecei estudando de forma autodidata, a partir de vídeos e leituras sobre a
técnica, depois conversava com pessoas que a praticaram por algum tempo em Fortaleza,
mas estavam paradas ou não queriam mais ensiná-la. Depois tive a oportunidade de fazer
um curso de aperfeiçoamento com a artista Penha de Souza, que estudou na Martha
Graham School e, na sequência, fui ao Congresso Nacional de Dança Moderna, que
acontece na cidade do Rio de Janeiro por dois anos consecutivos, 2013 e 2014, estudar
Graham Technique com os professores e ex-bailarinos da Martha Graham Company, que
acontecia na cidade do Rio de Janeiro. O congresso existe até hoje e traz para as cidades
5
Ser dançante ou apenas dançante é uma expressão criada pela comunidade da dança para denominar
pessoas que dançam sem obrigatoriamente ter ligação ao balé ou a alguma técnica de dança codificada,
com passos pré-estabelecidos. Parafraseia o termo “brincante” muito usado nas danças populares. Tornar
um cidadão dançante, a meu ver, tem relação direta entre dançar e se fazer político, ou dançar politicamente,
ou por meio da dança entender e atuar em processos coletivos e cidadãos.
6
É um vocabulário físico – de movimento – em dança, que antes do seu trabalho, não existia em qualquer
lugar. Em meados dos anos de 1920, Martha Graham criou um novo tipo de dança nos Estados Unidos. No
desenvolvimento de sua técnica, Graham experimentou incessantemente movimentos básicos, os mais
elementares movimentos da vida – contração e release. Usando esses princípios como o alicerce para a sua
técnica, Martha Graham construiu um vocabulário de movimento que "aumenta a atividade emocional do
corpo da bailarina". A dança de Graham e sua coreografia expõem as profundezas da emoção humana
através de movimentos que eram afiados, percussivos, angulares e diretos.
de São Paulo e Rio de Janeiro representantes das escolas de Martha Graham, José Limon
e Alvin Ailey para uma semana de vivências iniciantes, intermediárias e avançadas nas
técnicas criadas por esses três artistas.
Dentro de todas essas andanças eu me percebi negro, e me auto afirmei como tal.
Fiz parte do Curso de Liderança Juvenil (promovido pelo IJC), onde retomei o ativismo
juvenil e depois entrei no Projeto Camutuê – Comunicação Livre de Racismo. O Camutuê
7
“O Prouni reserva bolsas às pessoas com deficiência e aos autodeclarados indígenas, pardos ou pretos
[...] Vale lembrar que o candidato cotista também deve se enquadrar nos demais critérios de seleção do
Pronuni.” Disponível em: <http://prouniportal.mec.gov.br/informacoes-aos-candidatos/28-o-
prounireserva-cotas-para-afrodescendentes-indigenas-e-para-as-pessoas-com-deficiencia> Acesso em 02
fev. 2017.
visava à observação e questionamento de como a mídia pauta as questões do negro dentro
de seus campos de atuação e foi promovido para estudantes e profissionais de
Comunicação Social. Este projeto depois se tornou um curso de extensão em parceria com
a Universidade Estadual do Ceará.
8
A origem do discurso da invisibilade do negro no Ceará liga-se à historiografia tradicional cearense e foi
um dos primeiros e principais enfrentamentos para a articulação do movimento negro cearense. O conceito
de invisibilização, utilizado na sociologia, pode ser compreendido aqui como uma estratégia de resistência
social, onde seguimentos discriminados da população – em nosso caso, a população negra – agem de forma
a não serem percebidos como parte da sociedade, e, por outro ângulo, como estratégia pela qual as elites da
sociedade e o estado negam a presença de pessoas e práticas negras nesse estado, desobrigando-se de
políticas e ações voltadas para essa parte da população. Sobre o conceito veja as reflexões in casu propostas
por OLIVEIRA JUNIOR, Adolfo Neves de. A invisibilidade imposta e a estratégia da Invizibilização entre
negros e índios: Uma comparação. In: Brasil: Um país de negros? 2°. Ed. Rio de Janeiro: Ed. Pallas, 1999,
p. 165-174.
em Dança que está em sua sexta turma e para construção política das graduações em Dança
na Universidade Federal do Ceará (UFC), sendo que hoje integro a terceira turma do curso
de licenciatura em dança na instituição supracitada. É também com a Anagrama que eu
penso ser possível estar e existir nesse mundo. Com elas e eles tantos que já passaram e
que permaneceram em minha memória, em minha vida, em minha dança que eu ganho
força para retomar projetos esquecidos, criar novos projetos, amplificar estados de corpo.
É por causa delas e deles que eu estou aqui, que eu me nutro das mais singelas e potentes
sensações que se pode ter – e produzir – se movimentando em grupo.
Nessa minha caminhada em/com/de dança, fui convidado a passar dez meses no
Canadá dançando na Decidedly Jazz Danceworks9 , a diretora artística da companhia veio
ao Brasil pesquisar ritmos afro-brasileiros, passou por Fortaleza e deu aula na Companhia
dos Pés Grandes, a qual faço parte. Kimberley Cooper me viu dançando e me perguntou
se eu tinha vontade de ir para o Canadá dançar e eu disse que sim. Desde então criamos
um vínculo afetivo profissional cheio de alegrias e tristezas, pois meu visto foi negado
por duas vezes antes de conseguir, finalmente, ir para a DJD, como é conhecida
informalmente.
Chegando em terras canadenses e para além de ter que estudar jazz, tive que
estudar a língua estrangeira e a cidade, bem como seus hábitos. Esses são alguns aspectos
da viagem, do deslocamento de um afro-brasileiro ao Canadá, para estudar dança,
buscando aperfeiçoamento artístico e profissional. As condições dessa viagem são muito
diferentes dos deslocamentos forçados da grande população constituída por nossos
ancestrais africanos para as Américas, aos quais chamamos diáspora.
Segundo Eduardo David de Oliveira, “diáspora é signo de movimentos
complexos, de reveses e avanços, de afirmação e negação, de criação e mimese, de cultura
local e global, de estruturas e singularidades, de rompimento e separação” (2012, p. 29).
Diáspora é a dispersão de um povo em consequência do preconceito ou perseguição
política, religiosa ou étnica. Ela é comumente usada para definir o movimento de
dispersão, na maioria das vezes obrigatório, de um grande conjunto de pessoas que saíram
9
A Decidedly Jazz Danceworks foi fundada para reacender os valores tradicionais da dança jazz. Sua
estética tem raízes africanas, uma base no swing e a música Jazz em seu coração. A companhia explora e
mistura os aspectos que definem a formas tradicionais do jazz com influências europeias e ocidentais. O
que se chama Estilo DJD é uma mistura forte de Técnicas de Jazz (Jump Rhythm, Luigi Thecnique, Swing
Jazz) com as expressões africanas e de descendência afro. (Extraído com base no site da companhia)
de um específico local em que viviam, para vários locais diferentes, tendo sua quantidade
total de pessoas separadas em menores partes10. No caso da diáspora africana, que é a
abordada neste estudo, ela foi um acontecimento histórico e sociocultural que ocorreu
principalmente por meio da escravidão. Africanas e africanos foram capturados e levados
à força em navios para trabalharem em outros países, se separando em diferentes
localidades do mundo.
É fato que o negro sofreu a diáspora que o espalhou pelo mundo, onde em cada
lugar trabalhou, criou cultura e se miscigenou à população local e aos colonizadores. O
argumento de Mbembe (2014) com relação a isso é que as elites brancas passaram a usar
a mestiçagem como uma forma de minimizar a discriminação, o chamado mito da
democracia racial. Ele, o mito, desmobiliza qualquer crítica às desvantagens sociais
sofridas pelos negros e mestiços por todo o mundo e ainda apaga qualquer contribuição
histórica importante dessa população.
Nesse sentido, é de suma importância reconhecer que os deslocamentos
promovem encontros e processos de hibridação cultural. Canclini entende por hibridação
“processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma
separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (2011, p. XIX). O
autor lembra-nos que essas estruturas e práticas que ele chama de “discretas” também
foram resultado de hibridações, por isso não podem ser consideradas como fontes puras
e sim “discretas”. Esse autor nos alerta sobre a tendência de desvincular essas práticas da
história de misturas em que se constituíram e de como isso pode absolutizar um modo de
entender a identidade e obstruir a possibilidade de modificar cultura e política. Ele propõe
que sejam criadas políticas de hibridação, as quais “serviriam para trabalhar
democraticamente com as divergências, para que a história não se reduza a guerras entre
culturas […]” (CANCLINI, 2011, p. XXVII).
As motivações e condições dos deslocamentos humanos são muito diferentes, mas
de um modo ou de outro, pensamos que eles se inscrevem, deixam marcas no corpo, as
quais podem se materializar, intensificar e tornarem-se modo de expressão e de vida por
meio da dança. “Nos jogos de corpo preservamos nossos sistemas de pensamento.”
(OLIVEIRA, 2012, p. 38). No meu caso em específico, precisei sair da cidade onde, até
então, tinha vivido toda a minha vida para (re)encontrar outras danças e me reconectar
10
Disponível em: <https://www.significados.com.br/diaspora> Acesso em: 13/set/2018.
com a minha ancestralidade, materializando na dança as mesmas práticas em/com/de
dança que eu vivenciara na infância e adolescência e que eu negara por serem práticas
negras periféricas, no momento em que comecei a estudar dança em sala de aula. Foi
necessário me encontrar com as danças africanas ancestrais da costa oeste africana e com
as raízes africanas do jazz para que eu me desse conta da infinidade de aprendizados que
eu tive dançando axé, dançando swingueira, nas rodas de coco, no terreiro de maracatu e
nas brincadeiras de pastoril. Hoje agradeço aos meus ancestrais por me permitirem
relembrar dessa parte valiosa da minha vida, pois este trabalho é também sobre ela.
O que há de ser destacado é que esse deslocamento para o Canadá e os
estudos/práticas lá vivenciados me forneceram materiais que, junto ao meu ativismo no
movimento negro, fizeram avançar o processo de criação do trabalho Eu sou nós e as
Andorinhas, dando-lhe mais camadas, favorecendo determinadas escolhas e fortalecendo
procedimentos em articulação à experiência com o DJD.
Figura 2: Bailarinas, bailarinos, diretora e assistente coreográfica da DJD momentos antes a última apresentação do
espetáculo Year of the horse. Arquivo pessoal.2014.
11
Essa citação consta de anotações de aulas de improvisação em jazz que eu tive com Vicky Williams.
Figura 3: Minha família reunida na noite da minha volta, surpresa. Junho de 2016.
Duas coisas são importantes de ressaltar nesse processo de me situar. Um: ser
publicizadamente negro na periferia de Fortaleza subentende estar numa condição de
destaque muitas vezes pela coragem. Coragem de assumir seu cabelo crespo numa
sociedade que vigora a estética de cabelo liso; coragem de assumir sua cor preta numa
sociedade embranquecida; coragem de sair na rua e conviver com risadinhas e frases do
tipo “que cabelo é esse?”. Dois: Ser artista negro em Fortaleza requer, como em qualquer
profissão, que galguemos espaços para a nossa arte, mas como permanecer atuando com
arte negra numa cidade que só nos vizibiliza nas datas comemorativas do calendário
nacional? Uma vez que nossa vida está imbricada também na nossa arte, o ativismo é
também resistência, insistência, permanência das coisas negras, das vidas negras. E vidas
negras importam.
Segundo movimento: QUESTIONANDO-SE
De certo também que não costumo dar aulas de dança para crianças, pois essa
abordagem da qual falo nesse movimento e no próximo funciona principalmente com
pessoas jovens e adultas, podendo acontecer em menos camadas de conceituação e de falas
rebuscadas com adolescentes.
De acordo com Emyle Daltro, esse pensamento de Simondon “pode favorecer uma
trajetória de aprendizagem que considere todos os aprendizes como indivíduos não
prontos, por isso potentes, capazes de se individuar” (2014, p. 174). Com Simondon,
entendemos que os processos cognitivos – de adquirir conhecimento, de aprendizagem –
“precisam ser pensados não somente a partir dos resultados da individuação, mas de antes
dos resultados, ou seja, a partir do processo de colocação dos problemas a serem
resolvidos” (DALTRO, 2014, p. 174). A cognição, nos termos de Simondon, é um sistema
que porta uma diferença interna – é metaestável –, onde a individuação surge como
solução de um problema, mas essa resolução é sempre parcial e relativa, havendo, assim,
continuamente um resíduo, um resto (KASTRUP, 2007, p. 83). Então, a individuação
seria tanto gênese das formas individualizadas, como de um devir do indivíduo e “é a este
segundo plano de forças que respondem pelo devir das formas individuadas que
associamos as ‘memórias húmus’ que são, portanto, inventivas e que, quando ativadas,
tendem a provocar mudanças em processos de composição e aprendizagem”, escreve
Daltro (2014, p. 174). Para Virgínia Kastrup – que seguiu estudos realizados por Henri
12
SIMONDON, Gilbert. L’individuation psychique et colletive. Paris: Aubier, 1989.
Bergson e Gilles Deleuze –, é possível definir a invenção ― como movimento pelo qual
a cognição penetra no tempo, na memória cósmica (2007, p. 121).
Com Humberto Maturana e Francisco Varela, Kastrup destaca que a plasticidade
e a mudança estrutural contínua se potencializam no sistema nervoso humano, o qual
constitui uma imensa rede, comportando cerca de 10 bilhões de
neurônios (2007, p. 171). A autora nos mostra que esse fato “se revela como uma imensa
capacidade de aprendizagem. Mas o que se observa é que, à luz da noção de rede, a
aprendizagem surge inteiramente ressignificada, bem como a de memória, que lhe é
correlata” (KASTRUP, 2007, p. 171). Como escreve Daltro, “experimentar essa outra
memória seria experimentar esses restos, esse húmus que há em nós e em todas as coisas”
(2014, p. 175).
Figura 5: Registro de aula de danças africanas no Teatro Universitário. Foto de Ramó Alcântara. 2017.
13
Não me detenho muito nesse assunto pensando que ele é objeto para uma outra pesquisa em dança. O
corpo lânguido é uma proposta de movimentação a partir do torso na cena contemporânea. O modo de
mover da Cia. Anagrama. Nele ativamos nossos corpos nnuma fisicalidade que atravessa tempos, espaços
e memórias num fluxo de movimento que se pretende ser sinuoso, serpenteado.
Ao propor determinado exercício/prática, por meio de passos – codificados, pré-
estabelecidos – de dança, interesso-me por como corpos com experiências distintas
acessam as sensações instauradas com esses passos. Instiga-me ver como o corpo, em sua
sinestesia, consegue experimentar qualidades de movimento, garimpando as sensações a
partir de ficções e imagens que invento para cada passo – acionando também a memória
associativa – materializando-o para além da forma, de modo que esses corpos estejam
aptos a imprimir a sua marca singular no exercício/prática do passo de dança proposto ao
coletivo.
A memória associativa, outra noção que também está presente em minhas práticas
em dança e que está mais ligada à resolução de problemas, diz respeito à aquisição e
desenvolvimento de habilidades motoras através da repetição de gestos, proporcionando
o aprendizado do movimento. Ela é importante, não somente para executar uma mesma
atividade com maior facilidade posteriormente, como também, na aprendizagem de novos
gestos que envolvem movimentos similares. Em outras palavras, ela é importante na
aquisição de novos repertórios corporais e novas técnicas de dança.
É também a partir da repetição do passo que este vai sendo apropriado pelos
dançantes – quem apresenta o passo pode ser eu, um vídeo, a minha fala coordenando
ações dos dançantes etc. Partimos de uma prática que até hoje ainda se sustenta pela
repetição de passos, mas propomos um giro no olhar pedagógico para dar visibilidade ao
que fica, muitas vezes, oculto em aulas de dança, ou seja, essas sensações que são
acessadas/produzidas com os passos – lembrando que a “perfeita” execução desses passos
não se configura como meta a atingir, até porque não trabalhamos com passos/formas
ideais, ou idealizações fixas de movimento e de corpo, desse modo, pretendemos que cada
corpo, cada participante, com suas diversas possibilidades e limitações, sirva também
como referência para a prática de dança.
De acordo com esses autores, se faz necessário que nos orientemos e pautemos
nossas ações pela decolonialidade14 e pela interculturaliade crítica que “são projetos,
processos e lutas que se entrecruzam conceitualmente e pedagogicamente, alentando
forças, iniciativas e perspectivas éticas que fazem questionar, transformar, sacudir,
rearticular e construir (WALSH, 2009, p. 25).
Atentos e articulados às questões instigadas pela decolonialidade, entendemos que
reivindicar o que Walsh chama de interculturalidade crítica torna-se cada vez mais
importante para nos situarmos nesse excesso de falta de tempo, que nos impele à
reprodução de padrões relativos a modos de ser, saber, poder, por meio de movimentos
que tendem a automatismos, com muito pouco espaço para a invenção, entendida aqui,
nos passos de Virgínia Kastrup (2007), como colocação de problemas.
14
Os estudos decoloniais constituem-se de propostas do Grupo
Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade (M/C/D), composto, majoritariamente, por intelectuais
latino-americanos situados em diversas universidades das Américas. O grupo foi constituído no final dos
anos de 1990. De acordo com Luciana Ballestrin, esse grupo “realizou um movimento epistemológico
fundamental para a renovação crítica e utópica das ciências sociais na América Latina no século XXI: a
radicalização do argumento pós-colonial no continente por meio da noção de ‘giro decolonial’. Assumindo
uma miríade ampla de influências teóricas [...] atualiza a tradição crítica de pensamento latino-americano,
oferece releituras históricas e problematiza velhas e novas questões para o continente. Defende a “opção
decolonial” – epistêmica, teórica e política – para compreender e atuar no mundo, marcado pela
permanência da colonialidade global nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva” (2013, p. 91).
Vivemos processos de hibridação na dança que nos constitui, dança como modo
de vida. É com nossas danças que estamos conhecendo e criando mundos, tecendo quem
somos, por isso falamos em movimentos, tempo e espaço, constituindo corpos que
dançam, corpos/danças negros.
Dançar pode nos fazer pensar, problematizar quem somos e quem queremos ser?
Dançando, podemos performar esse/a humano/a “outro/a”? Como trabalhar alteridade a
partir do dispositivo “passos de dança”?
Buscando respostas a tais questões, experimento, durante o processo de criação
dos exercícios/práticas, atentar-me às dobras de nossos tornozelos, dos joelhos, da pélvis
– essas três articulações, juntas, realizam nosso contato com o chão, na posição ereta –;
às dobras da coluna vertebral, às do pescoço e às dobras dos braços – que permitem a
articulação do torso como princípio gerador da alacridade, ou seja, da alegria que emana
do corpo-dança afroancestral, numa dimensão também sagrada15, não apenas divertida,
como se refere Sandra Petit (2015). Ao movimentarmos circularmente tais dobras,
experimentamos curvas e torções, de modo articulado com danças africanas e seus
movimentos possibilitados por essas articulações do corpo, onde nos curvamos, nos
quebramos, requebramos... “Ninguém dança sem se quebrar.”16
Junto a tais procedimentos, procuramos pensar relações entre corpo, espaço e
ancestralidade na experiência negra como proposta de ensino/aprendizagem em dança e
fomos instigados a pensar sobre processos de hibridação cultural que se constituíram com
as diásporas que forçaram a saída de África e também a outros deslocamentos e
movimentos a que africanos e afrodescendentes foram/são impelidos, bem como a pensar
em como podemos constituir processos interculturais que se realizassem de modo crítico.
Deslocamentos promovem encontros e processos de hibridação cultural. Nessa
direção, pensar esse hibridismo requer “uma teoria não ingênua da hibridação, [que] é
inseparável de uma consciência crítica de seus limites, do que não se deixa, ou não quer
ou não pode ser hibridizado” como se refere Néstor García Canclini (2011, p. XXVII).
Nesse sentido, trazemos para nossa discussão a noção de interculturalidade crítica, em
contraposição ao multiculturalismo ou ao que Catherine Walsh chama de
15
Arriscamo-nos a pensar no termo sagrado no sentido de “profundamente respeitável” (FERREIRA, 2009,
p. 1790).
16
Fala da coreógrafa Irène Tassembèdo, de Burkina Faso, no filme A dançarina de ébano (La danseuse
d’ebene), de Seydou Boro, 2002.
“interculturalidade funcional”. De uma maneira ampla, Walsh propõe a interculturalidade
crítica como ferramenta pedagógica que:
[...] questiona continuamente a racialização, subalternização,
inferiorização e seus padrões de poder, visibiliza maneiras diferentes de
ser, viver e saber e busca o desenvolvimento e criação de compreensões
e condições que não só articulam e fazem dialogar as diferenças num
marco de legitimidade, dignidade, igualdade, equidade e respeito, mas
que – ao mesmo tempo – alentam a criação de modos “outros” – de
pensar, ser, estar, aprender, ensinar, sonhar e viver que cruzam
fronteiras. (2009, p. 25)
Figura 6: Andorinhas/Revisitando. Apresentação na Bienal Internacional de Dança do Ceará. Foto de Jeff André.
2018.
A ironia disso tudo é que o mesmo aconteceu comigo. Negligenciei meu cabelo
por dezenove anos da minha vida e só após o encontro, na graduação, com pessoas do
continente africano e seus cabelos maravilhosos e o seu orgulho negro, que eu me dei a
chance de me questionar, abrindo a possibilidade de ter um cabelo grande. Mas não sem
uma grande discussão em casa junto a minha grande família de mulheres.
Figura 7: Aula de danças africanas na praça do bairro Santa Cecília (Fortaleza/CE). 2015. Foto: San Cruz
17
É comum sempre ao final das minhas aulas, fazermos uma roda de conversa onde cada participante conta
suas impressões e sensações ao longo da aula. Falarei mais sobre isso no terceiro movimento.
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Antes de mostrar os passos, eu busco dar o máximo de informação histórica, social e cultural sobre o
passo de dança em questão (caso tenha), valem histórias que me foram contadas, imagens ou vídeos que
possam estar relacionados, ou mesmo convocar a forma como aprendi aquele passo. Como todas as aulas
que dou são afrorreferenciadas, fica inevitável não falar do lugar do colonizado, do lugar marginal.
às suas singularidades, ao tempo disposto em cada aula, à capacidade sensorial e à
adequação corporal do passo a cada participante. Esse dispositivo com que trabalhamos
não é nada novo no universo da dança, mas a abordagem que utilizamos é que têm um
caráter distinto, por estar sendo tecida com diálogos entre diferentes filosofias e práticas
de dança, guiados pela noção de interculturalidade crítica e praticando a afrorreferência
em dança.
Figura 8: Aula de Lindy Hop para o Itinerário Formativo em Dança (Sobral/CE). 2018. Foto: Ernany Braga
Costumo dizer em aula que o giro pedagógico acontece quando os/as participantes
não precisam se desgastar para alcançar o ideal/modelo/padrão de conhecimento – de
corpo no nosso caso – transmitido (pois quase sempre não foi o professor quem
estabeleceu) pelo docente ou pela escola formal (sentido ascendente verticalizado), mas
perceber e estabelecer um diálogo constante entre a informação do educador com as
possibilidades/impossibilidades do educando (sentido horizontal, oscilando entre os
lados). Horizontalizando o ensino/aprendizagem em dança, estamos potencializando a
percepção de cada participante e estimulando a capacidade de diálogo, por meio da
sensação de movimento, do corpo de cada um, com os corpos que lhes são apresentados
– eu e os corpos que aparecem nos vídeos que utilizo em aulas teóricas, bem como os
corpos participantes das aulas.
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Relato de um aluno da turma de Danças Africanas, que acontece às segundas-feiras, no IFCE, Fortaleza,
CE, 2018.
Por meio da ênfase nas sensações, os participantes das aulas de dança negra
contemporânea, com vivências em diferentes práticas cotidianas, com diversas heranças
culturais e tradições artísticas, podem acessar essas diferenças, mas também buscar
pontos em que se conectam, ou seja, vai-se possibilitando que os modos de dançar dos/das
participantes encontrem também similaridades entre si. Mesmo que os movimentos
estejam aparentemente desiguais, estarão se conectando pelas sensações produzidas, pelo
uso da respiração, pelas mesmas qualidades de esforço e por ancestralidades que podem
se revelar comuns. Trabalho os passos de dança, como foco na sensação produzida
pelo/com o movimento e não na busca de uma forma ideal de corpo pré-idealizada por
uma ou outra cultura/tradição. Esse procedimento se torna intercultural crítico na medida
em que possibilita que todos os participantes se beneficiem com o que está sendo
proposto, não sendo tecidos critérios de exclusão, ou de incompatibilidade, ou de
inferioridade e superioridade de certos corpos e movimentos em relação a outros. Sem
contat no fato de que, está sendo proposto por alguém que viveu/vive situações de
subjugação e que resiste, re-existe e inventa possibilidades “outras” de diálogo
intercultural, de modo atento ao que se quer ou não hibridizar, tendo o desejo de
compartilhar esse seu fazer com outros em situação semelhante.
Já nas aulas de danças africanas da costa oeste que conduzo, os participantes estão
dispostos em círculo e geralmente não temos música ao vivo e utilizamos as gravações
que eu tive acesso nas aulas de danças africanas vivenciadas por mim no Canadá. Aqui
entra o segundo indicador de interculturalidade crítica e marcador de uma cosmovisão
africana: todas as decisões são tomadas em grupo, quer seja o grupo que está presente
naquele momento numa situação mais urgente, quer seja o grupo inteiro de pessoas que
costumam frequentar de forma regular as aulas, quando trata de algo que demande mais
tempo. O fato de não trabalharmos com uma turma fechada, sem confirmação de presença
e sem a perspectiva evolucionista linear das aulas, nos permite ter num mesmo
espaço/tempo de convívio pessoas que: 1. já vêm frequentando há seis meses as aulas; 2.
pessoas que chegam pela primeira vez; 3. pessoas que flutuam entre as aulas sem
obrigatoriedade de presença em todas, mas que por vezes estão lá; 4. pessoas com vasta
experiência nos vários gêneros de dança; 5. pessoas que chegam dizendo não saber
dançar; 6. pessoas que nunca dançaram na vida; 7. pessoas que integram o movimento
negro.
Quando todas essas pessoas se juntam com o objetivo de aprender determinados
passos de dança, é comum comparar o movimento de cada uma com o do professor, ou
com algo que defina o certo e o errado naquele fazer. Mas quando todas essas pessoas se
juntam com o objetivo de aprender determinados passos de dança percebendo que sua
perna não tem grandes extensões de movimento, ou sua coluna é retificada ou mesmo que
só é preciso escutar a música, aquilo que provavelmente separaria cada participante em
“caixinhas diferentes” e abriria um grande campo para o ensino verticalizado, dá espaço
para o entendimento da singularidade por meio da sensação de movimento no corpo que
unifica a turma, e que faz perceber que esta mesma sensação produzida aqui em Fortaleza,
em 2017, pode já ter sido sentida do outro lado do planeta, em momentos em que um
movimento parecido com aquele foi proposto.
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O jazz que trato neste texto é o jazz roots, de base africana, dançado pelos ex escravos norte-americanos.
O jazz que surgiu como necessidade de dar voz ao corpo para algo que ganhava notoriedade na música do
início do século XX.
Figura 9: Aula teórica de anatomia na Escola de Desenvolvimento e Integração para Crianças e adolescentes –
EDISCA, 2017. Arquivo pessoal.
Refletindo acerca dessa fala de Paul Gilroy que eu opto por cada vez mais
enegrecer as minhas/nossas aulas, quer seja pela história da dança ensinada, quer seja pela
mudança da música no exercício proposto, quer seja pelas metáforas e imagens que utilizo
em sala de aula, quer seja pelo fato de eu, pessoa negra, estar numa posição de condução
que na maioria das vezes são atribuídas a pessoas brancas.
E ainda que a principal característica formal das tradições musicais é a antifonia
(chamado e resposta), onde passou a ser vista como uma ponte para outros modos de
expressão cultural, fornecendo, juntamente com a improvisação, montagem e
dramaturgia, as chaves hermenêuticas para o sortimento completo de práticas artísticas
negras. Ou seja, as relações dialógicas intensas e muitas vezes amargas que incorporam
o movimento das artes negras “oferecem um pequeno lembrete de que há um momento
democrático, comunitário, sacralizado no uso das antífonas que simboliza e antecipa (mas
não garante) relações sociais novas, de não dominação” (GILROY, 2001, p. 166).
Uma vez que a música ancestral africana é composta de polirritmias21, e que a
música afro-diaspórica carrega consigo também essa qualidade, a dança surge como uma
materialidade desse movimento polirrítmico ancestral. Interessa-me enquanto criador,
21
Polirritmia é a superposição de vários ritmos/ritmicas juntas. O termo polirritmia tem sido utilizado em
diferentes contextos musicais e também tratado como objeto de estudo por diferentes autores da
etnomusicologia, educação musical e performance.Vários autores discutem em suas pesquisas dentro da
etnomusicologia conceitos de- senvolvidos por pesquisadores e estudiosos da música tradicional africana
como Kolinsky, Kubik, Aron, Nketia, entre outros, que são importantes bases referenciais para diversos es-
tudos, envolvendo a polirritmia e conceitos correlacionados.
seja na cena ou seja na sala de aula, esse diálogo entre o corpo que dança e o corpo que
toca (mesmo quando não há uma música sendo tocada ao vivo). Meus exercícios em
dança negra contemporânea, em dancehall e em jazz partem deste estímulo sonoro
causado pela música. A partir dela eu crio uma conexão corporal, que se transforma em
exercícios/passos de dança, que por sua vez vão sendo executados repetidas vezes até que
o meu corpo deixe de ser a referência maior e dê possibilidade para que cada participante
seja a sua própria referência de corpo também.
Figura 10: Oficina de dança contemporânea ministrada no Porto Iracema das Artes em 2016. Foto Joyce Vidal.
Faz sentido para mim que, ao final de cada aula de dança negra contemporânea, a
turma se sente e comece a conversar sobre o que foi produzido do/no/com/para o corpo
nessa ocasião. Minha primeira pergunta quando nos sentamos em círculo para conversar
é: “como está o nosso corpo agora? Como nós estamos?”
Com essas perguntas, num primeiro momento, me interessa saber do fisiológico
mesmo. De que alterações físicas e energéticas o corpo acessou ao longo da aula, e de
como que cada participante da turma pode falar disso, do corpo, no corpo, com o corpo,
a despeito de falar sobre o corpo, como acontece na maioria das vezes. Começa com um
“o meu corpo está todo tremendo”, ou “eu estou muito cansado, porém tenho a sensação
que poderia continuar dançando por mais tempo”. A fisicalidade explorada nas aulas que
conduzo geralmente tendem a extrapolar limites corporais, apontando limites mais
alargados que os participantes não conheciam, na maioria das vezes. Ela se mostra desde
o primeiro exercício de aquecimento e vai exigindo gradativamente mais segurança,
agilidade, atenção e empenho sem deixar de ter um caráter descontraído, apesar do rigor
com que eu trato a dança, o corpo, a aula de dança.
Cada participante é convocado a refletir a todo momento tendo o seu corpo como
referência maior. Isso gera o rigor que necessito em sala, mas também gera a sensação de
que estou dando o meu melhor e fazendo o que o meu corpo pode fazer hoje – com o
auxílio da minha voz repetindo ao longo da aula que importa mais o movimento ser
“curtido” do que ser desesperado. Uma vez em que alguém não consegue urdir essa auto-
referência, eu e o restante da turma intervimos no processo como ajuda e fortalecimento
dessa rede de tecitura de referências em/com/na/para a dança.
CONSIDERANDO ALGO MAIS