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3 Movimentos TCC Rubens Lopes

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

INSTITUTO DE CULTURA E ARTE


CURSO DE LICENCIATURA EM DANÇA

Francisco Rubéns Lopes dos Santos

Três movimentos:
uma proposta de ensino/aprendizagem em dança negra contemporânea

FORTALEZA 2018
Francisco Rubéns Lopes dos Santos

Três movimentos:
uma proposta de ensino/aprendizagem em dança negra contemporânea

Trabalho apresentado ao curso de


Licenciatura em Dança do Instituto de
Cultura e Arte da Universidade Federal do
Ceará, como requisito parcial à obtenção
do título de Licenciado em Dança.

Orientadora: Profa. Dra. Emyle Pompeu de


Barros Daltro

FORTALEZA 2018
AGRADECIMENTOS

Aos meus ancestrais, aquelas e aqueles que vieram antes de mim, que ainda estão
em mim e que comigo trilham essa caminhada terrena também com/na/pela dança.

Às minhas mães (biológica/vó/tia/irmãs), as mulheres da minha vida que me


ensinaram a grandeza que há na vida quando a gente aprende a observá-la, a ter paciência
com as coisas, a ter alegria sempre, a ser (ou tentar) generoso com as
situações/coisas/pessoas. Elas que me ensinaram sobre a pessoa que eu quero ser e que
me torno na vida aos poucos.

À Companhia dos Pés Grandes, que me ensinou com os homens da minha vida
que felicidade também é possível e que independente de onde estejamos, seremos sempre
amores/amados e partícipes desse projeto que é tão nosso. Com vocês eu aprendi qual o
tipo de grupo se mantem vivo e junto por muito tempo.

À Companhia Anagrama, cada pessoa que já passou por ela e que esteve comigo
nesses anos de caminhada na história da dança cearense. Mas recentemente ao Carlinhos
Freitas (que também é Karlota), ao Junior Meireles, à Nayana de Castro, à Raquel Maria,
ao Souza Frota. Antes deles e também com eles, à Gabrielle Dantas, ao Igor Lira. Vocês
são tão importantes na minha vida e na minha dança que esse trabalho só foi possível
graças aos nossos esforços coletivos. Amo vocês especialmente.

Aos meus alunos do grupo de Danças Africanas Ancestrais, todos os que


passaram por esses dois anos e meio de vivências e conversas. Foi com vocês que eu
entendi como poderia ser esse trabalho e os outros que seguirão à partir desse. Vocês me
nutrem de energia, de frivião e de vontade em continuar no ofício de artista-docente.

Aos meus alunos da EDISCA, que nesses três anos de trabalho me


proporcionaram tantas alegrias e também estão aqui, nesse estudo, comigo. Vocês são
uma parte linda da minha vida/dança.

Aos meus alunos da vida, que também são parte importante nessa minha
caminhada. Vocês me enconrajam a não desistir tão cedo e a sempre é uma delícia poder
trocar com vocês.

Aos meus professores da vida, em especial à Willemara Barros e Gerson Moreno.


Com vocês eu sinto que é possível existir com/na/pela dança e que eu posso fazer isso
por muito mais tempo na minha vida.
Às Graduações em Dança da UFC e ao corpo docente que, mesmo com todas as
questões que tenho no/com os cursos, me proporcionaram um ambiente de qualidade para
me dedicar às minhas práticas e me apoiaram mesmo quando nem eu sabia pra onde
queria ir. Em especial a amiga, também professora, Emyle Daltro, que me orientou e não
desistiu desse projeto mesmo quando eu já estava de saco cheio e querendo jogar tudo
pro alto (silenciosamente).

Às pessoas negras que encontrei na minha vida, sem as quais este trabalho não
faria o menor sentido. Vocês foram e continuam sendo essenciais na minha vida/dança e
esse trabalho é pra vocês, ele é nosso, ele é conosco!

Aos meus amigos, que também são meus amores e que estão sempre comigo
escutando meus lamentos e meus gozos, e nuca desistem de mim. Que nossos caminhos
permaneçam sempre em cruza, que nossos corpos permaneçam vivos e que sejamos
resistência onde quer que estejamos.
SUMÁRIO

Resumo............................................................................................................................03
Introdução........................................................................................................................04
Primeiro movimento: Situando-se ..................................................................................08
Segundo movimento: Questionando-se...........................................................................19
2.1: Aprendizagem, memórias, passos de dança e sensações à baila...........................19
2.2: Interculturalidade crítica e decolonialidade em diálogos com danças negras.......24
Terceiro movimento: (Com)pondo-se.............................................................................32
Considerando algo mais...................................................................................................43
Referências......................................................................................................................45

FORTALEZA 2018
RESUMO

Este trabalho tem como objetivo apresentar uma proposição de


ensino/aprendizagem em dança negra contemporânea que aposta na movimentação do
torso, dentre outras coisas. Dessa forma ativa memórias que se tornam corpos,
intensidades e modos de expressão conectados às ancestralidades africanas e
afrodiaspóricas. Por se tratar de uma pesquisa baseada na minha experiência de
dança/vida negra, o diálogo com pessoas também negras e suas histórias se faz de grande
importância nesse estudo. Nesse processo articulamos temporalidades e conceitos de
memória, bem como de processos de individuação. Também afirmamos uma
interculturalidade crítica como resposta a colonialidade para fundamentarmos o processo
de ensino/aprendizagem em dança negra contemporânea. Dançando juntos a mesma
coisa, podemos performar humanos/as “outros/as”? Como trabalhar alteridade a partir do
dispositivo “passos de dança”?

Palavras-chave: ensino/aprendizagem em dança; memórias; ancestralidades;


interculturalidade crítica; dança negra contemporânea.
ABSTRACT

This work has as objective presents a proposition of teaching/apprenticeship in


contemporary black dance that bets on the movement of the torso, among other things. In
this way it activates memories that become bodies, intensities and modes of expression
connected to African and Afro-Diasporic ancestry. Because of being treated as an inquiry
based on my experience of black dance / life, the dialog with persons also black and their
histories is of great importance in this study. In this process we articulate temporalities
and memory concepts, as well as of individuation processes. Also we affirm a critical
interculturality as answer to coloniality in order to base the tool entitled by me of
“Pedagogic Turn” in the process of teaching/apprenticeship in contemporary black dance.
Dancing together the same thing, can we perform humans "other"? How to work
otherness from the device "dance steps"?

Key words: teaching/apprenticeship in dance; memories; ancestry; critical


interculturality; pedagogic turn; contemporary black dance.
INTRODUÇÃO

Muitas vezes me perguntei sobre qual o meu papel na dança cearense e em que
circunstâncias a dança que me era apresentada me servia como existência ou apenas como
um caminho pelo qual eu precisava passar para encontrar a minha forma de existir
na/com/em dança. Olhando para as minhas vivências como homem negro, periférico e
artista me deparo com um modo de viver a dança – de aprendê-la, de ensiná-la e de
abordá-la – diferente de muitos outros modos ensinados em Fortaleza e no Ceará. Assim,
este escrito tem como objetivo engendrar uma proposição de ensino/aprendizagem1 em
dança negra2 contemporânea, apostando na movimentação do torso e no processo em que
cada participante dessas aulas percebe-se dançante, dançando. Para isso, utilizo da minha
experiência com danças negras africanas ancestrais e danças negras afrodiaspóricas, das
quais cito aqui o dancehall, o jazz, a swingueira e o funk, que junto a experiências com
outras técnicas de dança, que estudei ao longo da minha jornada dançante, constituem a
carne deste estudo em dança.
Na proposição metodológica de ensino/aprendizagem em dança negra
contemporânea, utilizo o torso como ativador de memórias que se materializam em
corpos, intensidades e modos de expressão conectados às ancestralidades africanas que,
em danças, articulam temporalidades e afirmam uma interculturalidade crítica a processos
de apagamento, de invisibilização, de marginalização e de desarticulação com as histórias
e contextos tecidos com essas danças. Danças que, por estarem atreladas a culturas tão
estigmatizadas e tão marginalizadas quanto são as culturas negras, se fazem justo e
imprescindível que as abordemos nos âmbitos da educação e da arte, para que os mesmos
não reproduzam o racismo ainda tão contundente na sociedade. Além de se fazer

1
Escrevemos ensino/aprendizagem com essa barra inclinada entre os termos, para provocar que pensemos
ensino e aprendizagem de modo intrincado, sendo constituídos mutuamente na relação.

2
Uso o termo “negro” para enfatizar a relação não apenas com as construções sociais em torno da palavra
“afro”, mas como uma noção que transita em tempos e espaços históricos e sociais diferentes, bem como
em contextos de dança e que permanece sendo ressignificada, de modo a fortalecer a constituição de
identidades que passam a serem relacionadas à força da resistência, do orgulho de si, da história de luta e
da beleza de inúmeros de afrodescendentes que formam a população de diversos países (antigas colônias
europeias). Uso o termo também para me referir ao caráter ancestral das danças com as quais trabalho,
ancestralidades que também estão presentes em minhas práticas, nas danças que se situam no âmbito do
urbano e na hibridação constante.
necessário encontrar mecanismos que deem mais voz a essa grande parcela da população
que tem seus costumes e práticas inferiorizados, silenciados, e porque não dizer também
apagados da história brasileira, onde a cultura embraquecida é hegemônica e se faz
presente também em programas de formação em dança do Brasil, marcados por danças
eurocentradas.
Por se tratar de uma pesquisa baseada na experiência negra, fazemos questão de
realizar um diálogo também com autores negros e suas histórias de vida que foram, muitas
vezes, silenciadas e invisibilizadas. É certo afirmar que autores não negros são citados
aqui, mas com o intuito de diversificar uma fala que auxilie e que se interesse em dar voz
aos que foram e são colonizados ainda hoje, também em termos educacionais.
No texto, por vezes usamos a primeira pessoa do singular – quando abordamos
um trabalho muito particular meu – e, outras vezes, a primeira pessoa do plural – quando
abordamos um processo ou texto tecido junto com minha orientadora. Também
utilizamos o tempo presente e o passado, reafirmando algo que está em movimento, que
não está acabado e que continua em processo.

Por se tratar de uma pesquisa no campo do ensino/aprendizagem em dança,


optamos por não nos referir às diversas partes do texto como capítulos, e sim como
movimentos, por entender que essa pesquisa não termina aqui e que é movimento
constante. Assim, logo no primeiro movimento – intitulado “Situando-se” (assim mesmo,
no gerúndio, para indicar um fluxo contínuo, dançado...) – faço um breve memorial da
minha trajetória enquanto negro e chamo para junto da minha fala o conceito de negro e
negritude a partir da visão de Kabengele Munanga, antropólogo brasileiro-congolês.
Também está presente nesse movimento, as atribuições etnocêntricas em torno da noção
de raça, sobre as quais Achille Mbembe, filósofo camaronês, discursa em seus escritos,
para então chegarmos à definição de diáspora proposta pelo filósofo brasileiro Eduardo
Oliveira, e falarmos um pouco dos processos de hibridação cultural, citando o
antropólogo argentino Néstor Garcia Canclini.
No segundo movimento, chamado de “Questionando-se”, existem dois momentos.
No primeiro deles – que recebeu o título de “Aprendizagem, memórias, passos de dança
e sensações à baila” –, trazemos para perto o conceito de “memória húmus” proposto pela
professora doutora Emyle Daltro (2014), junto com as concepções acerca de memória e
de processos de individuação apresentadas pelo filósofo francês Gilbert Simondon, com
o qual a professora doutora Virgínia Kastrup (2007) dialoga em seus estudos sobre
cognição. Também nesse momento falo da memória associativa que precisamos ativar ao
abordar um ensino/aprendizagem com/em/na dança partindo do dispositivo “passos de
dança” e dando margem para uma abordagem a partir da sensação do movimento.
No segundo momento desse movimento – “Interculturalidade crítica e
decolonialidade em diálogos com danças negras” – trazemos à baila a noção de
“interculturalidade crítica”, proposta por Catherine Walsh, atrelada ao conceito de
colonialidade apresentado pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano, para tentar dar
respostas às perguntas que moveram esta pesquisa: Dançar pode nos fazer pensar,
problematizar quem somos e quem queremos ser? Dançando, podemos performar
humanos/as “outros/as”? Como trabalhar alteridade a partir do dispositivo “passos de
dança”? Tecemos esse momento também com citações da coreógrafa burkinabe Irène
Tassembédo, de Eduardo Oliveira e da professora Sandra Petit (com a qual tenho o prazer
de conviver e de conversar por vezes).
O terceiro e último movimento, intitulado “Compondo-se”, trata de como este
estudo pensa, em conjunto com todas essas pessoas e informações, a sistematização das
aulas conduzidas por mim ao longo desse tempo de três anos na profissão de artista-
docente negro conduzindo aulas de dança no estado do Ceará. Estou chamando-as de
aulas de dança negra contemporânea. Não proponho um modelo único de como dar aulas
de dança negra contemporânea, mas a minha versão dessa dança contemporânea que –
por se tratar dos caminhos pelos quais percorri e percorro – se faz negra. Falo dos
elementos presentes em sala de aula, da forma como vejo e como abordo essa dança
composta a partir de códigos e de como ela estimula a alteridade, a singularidade e a
coletividade simultaneamente.
A experiência dessa proposição continua também em meu corpo, no que pude
(re)ter dos encontros com os participantes das aulas que dei ao longo desses três anos,
nesses três movimentos que me rendem muitos outros mais. Os termos que apresento aqui
também dançam comigo, já que o lugar de pesquisador que assumo foi, e continua sendo,
livre. E as palavras desse estudo estão sendo lançadas para que possam continuar
estabelecendo relações, continuar produzindo sentidos e invenções na obra em dança,
para agenciar valores no campo da pesquisa em educação e em dança, o que nos tornou
possível afirmar que a forma dessa pesquisa adquire contornos de procedimentos
pedagógicos e também artísticos.
Esses três movimentos iniciados por mim, pelos outros de mim e pelos que
escrevem/dançam/vivem comigo são apenas o pontapé inicial para uma pedagogia
em/na/da/com dança que quer dar voz e vez para uma grande parcela da população cuja
qual teve e ainda tem seus costumes e práticas negligenciados. Uma dança negra
contemporânea que trabalha com passos de dança, que enfoca nas sensações de
movimento para abordar esses passos, que tem um diálogo direto com a música, que se
faz a partir da pélvis e do centro do corpo se estendendo para as periferias dele. Uma
dança negra contemporânea que também se faz numa prática pedagógica que dá lugar
para a experiência dos participantes, que se tornam referências de si mesmos e de outros
nas aulas. Uma dança negra contemporânea que se dá no encontro, no pertencimento, na
identidade, na singularidade junto com a coletividade, no corpo, com o corpo e pelo
corpo. Saravemos!
Primeiro movimento: SITUANDO-SE

Figura 1: Rubens Lopes em meados dos anos de 1990, em desfile do dia da pátria. Arquivo pessoal.

Sou filho mais novo de seis, sendo os cinco anteriores mulheres. Nasci
numa família de mulheres, onde as decisões são tomadas por mulheres, onde elas são
protagonistas de suas histórias. Minha genitora, Maria Lúcia Lopes dos Santos – apelidada
de Míssia – , é irmã da mulher a quem chamo de mãe, chamada Maria Célia de Sousa
Lopes – apelidada por mim de ‘Mamífera’, e por minha irmã mais próxima de ‘Mamilis’.
Ela dedicou toda a sua vida a cuidar de minha vó, Maria Beliza de Sousa Lopes, de três
das minhas irmãs – Maurília, Elisangela, Fernanda, e de mim, abdicando de sua vida de
trabalho assalariado e inclusive de relacionamentos afetivos.

Minha família é daquelas que se reúne em torno da mesa na sala de jantar para
comer (antes almoçávamos, hoje em dia tomamos o café da manhã) e conversar, as vezes
decidir coisas que interferem na rotina da família. Como a casa onde morei durante boa
parte da minha vida foi a casa de minha vó, comumente a casa estava repleta de pessoas
indo, vindo, ficando, quer fossem primas ou primos, tias, sobrinhas, agregados em geral.
Minha vó completou, em agosto de dois mil e dezesseis, cento e dois anos e continuou
sendo o centro da casa até o seu último suspiro, em quatro de maio de dois mil e dezessete.

Como disse acima, na minha família é mais comum nascer mulheres, fui um
menino de poucas ou quase nenhuma referência masculina ao longo da infância e
adolescência. Não tenho indicadores de minha família paterna e mesmo da figura de meu
pai só me lembro vagarosamente... Precisei aprender coisas simples da vida masculina
como tirar a barba e outras questões de higiene com os poucos amigos meninos que tive
durante essa fase de minha vida. Sempre tive facilidade para aprender coisas, sempre tirei
notas boas. Lembro que minhas notas até o último ano do ensino fundamental rodeavam
entre nove e dez. Lembro também de sempre estar ligado a algum movimento da cultura
popular relacionado ao corpo, seja ele reisado, pastoril, axé ou swingueira. A sede por
aprendizado me levou a entrar na Igreja Católica logo após a minha primeira comunhão3
e me fez participar do grupo de coroinhas da igreja.

Comecei a caminhada de ativismo dentro de uma pastoral social da Igreja Católica,


a Pastoral da Juventude – ligada ao movimento de Comunidades Eclesiais de Base/CEBs
e a Teologia da Libertação, aos treze anos. Mesmo frequentando as missas e estando no
grupo de coroinhas desde os nove anos de idade, foi a partir desse momento, com treze
anos de idade, que eu me vi parte da obra e testemunho da igreja. Na Pastoral da Juventude,
nós somos convidados a construir uma civilização do amor, galgada não somente nos
padrões de uma teologia da libertação4 cristã, como também em valores humanos e na
construção de um mundo onde os direitos de todas e todos sejam garantidos dentro desta

3
A Primeira Comunhão é o segundo sacramento de sete existentes na Igreja Católica, ela vem seguida do
sacramento do Batismo e se dá após o catecismo, onde a criança aprende as noções básicas de cristianismo
e suas orações segundo o catolicismo. O seu ápice é quando, após dois anos de estudo, a criança pode
receber a hóstia, que é o símbolo mais sagrado de todo o ritual católico.
4
A Teologia da Libertação é um movimento apartidário que engloba várias correntes de pensamento
interpretando os ensinamentos de Jesus Cristo como libertadores de injustas condições sociais, políticas e
econômicas. Surgida na década de 1960, no interior da Igreja Católica, recebeu influência de outras três
correntes de filosofia religiosa: o Evangelho Social, a Teologia da Esperança e a Teologia Antropo-política.
Em meio a essa associação de ideias, foi publicada uma obra em 1965 que seguia caminhos opostos do
venerado Santo Agostinho, argumentando que, no século XX, a dualidade mundo terreno/mundo espiritual
teria sido superada pela dualidade mundo proletário/mundo burguês. Apesar da internacionalização da
Teologia da Libertação, a América Latina reúne seus maiores representantes, como o padre
peruano Gustavo Gutiérrez, o brasileiro Leonardo Boff e o uruguaio Juan Luis Segundo.
civilização, a Civilização do Amor. Um projeto que nasce da equação “jovem
evangelizando jovem para um mundo de paridades”.

Logo depois me vi um cidadão dançante5. Depois de muito estudo e dedicação


aplicados às lógicas de ensino e de propagação de técnicas, consegui ser aceito, participar
e concluir a primeira turma do Curso de Habilitação Profissional em Técnico em Dança –
promovido através de parceria entre o Senac, o Instituto Dragão do Mar de Arte e Cultura
e a Secretaria de Cultura do Ceará. É comumente chamado de Curso Técnico em Dança.
O curso é fruto da reinvindicação de luta de toda a classe dançante durante uma década,
assim como a política de editais das artes implantada. Fiz-me parte do Fórum de Dança do
Ceará e da Associação de Profissionais e Técnicos em Dança – Prodança. Com isso, me
sinto representado a cada vez que decidimos e promovemos mudanças dentro de
documentos, leis, políticas públicas.

Foi a partir do Curso Técnico que comecei a estudar a técnica de Martha Graham6
e, atualmente, sou o único profissional no estado do Ceará que a desenvolve de forma
sistemática. Comecei estudando de forma autodidata, a partir de vídeos e leituras sobre a
técnica, depois conversava com pessoas que a praticaram por algum tempo em Fortaleza,
mas estavam paradas ou não queriam mais ensiná-la. Depois tive a oportunidade de fazer
um curso de aperfeiçoamento com a artista Penha de Souza, que estudou na Martha
Graham School e, na sequência, fui ao Congresso Nacional de Dança Moderna, que
acontece na cidade do Rio de Janeiro por dois anos consecutivos, 2013 e 2014, estudar
Graham Technique com os professores e ex-bailarinos da Martha Graham Company, que
acontecia na cidade do Rio de Janeiro. O congresso existe até hoje e traz para as cidades

5
Ser dançante ou apenas dançante é uma expressão criada pela comunidade da dança para denominar
pessoas que dançam sem obrigatoriamente ter ligação ao balé ou a alguma técnica de dança codificada,
com passos pré-estabelecidos. Parafraseia o termo “brincante” muito usado nas danças populares. Tornar
um cidadão dançante, a meu ver, tem relação direta entre dançar e se fazer político, ou dançar politicamente,
ou por meio da dança entender e atuar em processos coletivos e cidadãos.
6
É um vocabulário físico – de movimento – em dança, que antes do seu trabalho, não existia em qualquer
lugar. Em meados dos anos de 1920, Martha Graham criou um novo tipo de dança nos Estados Unidos. No
desenvolvimento de sua técnica, Graham experimentou incessantemente movimentos básicos, os mais
elementares movimentos da vida – contração e release. Usando esses princípios como o alicerce para a sua
técnica, Martha Graham construiu um vocabulário de movimento que "aumenta a atividade emocional do
corpo da bailarina". A dança de Graham e sua coreografia expõem as profundezas da emoção humana
através de movimentos que eram afiados, percussivos, angulares e diretos.
de São Paulo e Rio de Janeiro representantes das escolas de Martha Graham, José Limon
e Alvin Ailey para uma semana de vivências iniciantes, intermediárias e avançadas nas
técnicas criadas por esses três artistas.

Após finalizar o curso técnico em dança, me juntei a um grupo de amigos que


vinham do mesmo projeto social e estavam necessitando fazer e desenvolver seus próprios
trabalhos. Ousadamente nos denominamos de Companhia, onde eu me tornei o diretor,
coreógrafo, ensaiador e produtor da mesma. Tudo que tínhamos era a vontade de realizar
a NOSSA DANÇA, entender que dança era essa e nos profissionalizarmos como artistas
de dança. Nesta época eu já estava cursando Publicidade e Propaganda numa faculdade
particular auxiliado pelo Programa Universidade para Todos – PROUNI. Tinha entrado
pelas cotas7.

A Cia. Anagrama nasceu da necessidade de se viver da arte e de construir uma


linha de trabalho embasada na pesquisa de movimento para dar conteúdo as suas obras, da
necessidade de dançar o que se sente e pensar no que se está dançando. Essas necessidades
foram o ponto fundamental para a união dos integrantes dela, que se iniciou em 2007, sob
o signo da experimentação a partir de técnicas já existentes como a de dança clássica,
contato improvisação e jazz, as quais todos nós tínhamos contato constante à época. A
companhia já participou de eventos como a Bienal Internacional de Dança do Ceará, o
Fendafor – Festival Nacional de Dança de Fortaleza, Festival de Dança do Litoral Oeste,
Mostra Prodança e também já foi selecionada com o seu primeiro trabalho, “Que Liberta”,
no Edital de Artes da Secretaria da Cultura de Fortaleza – Secultfor. Atualmente a Cia.
Anagrama se encontra com obras, sendo a última intitulada “Eu sou nós e as Andorinhas”
e este trabalho tem muito das minhas questões em dança contemporânea e das minhas
questões negras.

Dentro de todas essas andanças eu me percebi negro, e me auto afirmei como tal.
Fiz parte do Curso de Liderança Juvenil (promovido pelo IJC), onde retomei o ativismo
juvenil e depois entrei no Projeto Camutuê – Comunicação Livre de Racismo. O Camutuê

7
“O Prouni reserva bolsas às pessoas com deficiência e aos autodeclarados indígenas, pardos ou pretos
[...] Vale lembrar que o candidato cotista também deve se enquadrar nos demais critérios de seleção do
Pronuni.” Disponível em: <http://prouniportal.mec.gov.br/informacoes-aos-candidatos/28-o-
prounireserva-cotas-para-afrodescendentes-indigenas-e-para-as-pessoas-com-deficiencia> Acesso em 02
fev. 2017.
visava à observação e questionamento de como a mídia pauta as questões do negro dentro
de seus campos de atuação e foi promovido para estudantes e profissionais de
Comunicação Social. Este projeto depois se tornou um curso de extensão em parceria com
a Universidade Estadual do Ceará.

Ingressei no movimento de Juventude Negra Kalunga, instância que defende o


debate e a paridade entre os jovens negros para com a população que se identifica como
branca no estado do Ceará. Nesse processo aliado à dança, surgiu o trabalho “3 para 1 ou,
se eu não gostar, já foi”. O trabalho é fruto de experimentos em dança contemporânea,
dança moderna, dança negra e conversas com pessoas que se identificam como negras,
mas que não querem estar envolvidas em grupos de ativismo negro.

É preciso pontuar que a atribuição e auto atribuição do termo “negro” revelam


lugares muito bem demarcados – psíquicos, sociais, culturais, políticos, etc. – e que ao
longo da história brasileira e cearense podemos descobrir múltiplos conflitos sociais em
que esse termo se revela. Negritude nesse estudo é compreendida como um conjunto de
atributos físicos, materiais e simbólicos que juntam várias pessoas em rede através de um
mesmo sentimento de pertença ao continente africano, as africanidades. Assim, ela se
torna um ideal político no qual se inaugura e se legitima a disputa pela autoafirmação de
forma positiva das identidades negras (MUNANGA, 1988).
Para Achille Mbembe (2014), o etnocentrismo europeu em relação aos negros foi
incansavelmente reproduzido, de modo que se criou uma tal naturalização da ideia de sua
inferioridade inscrita no inconsciente coletivo. Resta aos negros a eterna busca pela
própria identidade e razão de vida, assim, muitas comunidades raciais surgiram e surgem,
aprenderam e aprendem a reelaborar o termo negro, não mais como algo amedrontador,
selvagem ou depreciativo – esteriotipado pelos europeus -, mas como algo que constitui
uma identidade que passa a ser relacionada à força da resistência, do orgulho de si, da
história de luta e da beleza. E é necessário que se invoque a raça, nessa dimensão política,
para refundar as origens, afinal, muito foi retirado dos negros: o trabalho, a ancestralidade
e as obras intelectuais. Os laços são fundamentais para o pertencimento garantir força
suficiente para enfrentar a desumanização cotidiana, onde o corpo negro não existe por si
só, mas apenas na medida em que serve para trabalhar pelo senhor. Podemos assim
afirmar que a exploração do povo africano foi fundamental para a origem do capitalismo
como conhecemos hoje. Mbembe argumenta ainda que a raça e a classe social caminham
juntas, mas se um dia a luta de classes acabasse, o racismo poderia continuar existindo
porque a raça é mais estruturante do que o conceito de classe social (2014).
O Movimento Negro no Brasil, desde o seu surgimento, vivencia e põe em pauta
em sua agenda um processo constante de auto afirmação, de reflexão, de redefinição e/ou
recusa de muitos estigmas incorporados nos negros. Isso se baseia em acontecimentos
locais, nacionais e internacionais que evidenciam as questões sobre o ser negro e sobre
negritude, colocando essas questões no centro desse debate. Um exemplo forte disso é o
acesso mais rápido que temos à obras de autoras negras e autores negros brasileiros,
ameríndios e africanos, que nos traz outras camadas de conhecimento/questionamento às
nossas práticas negras, a um ideal de visibilizar aquelas e aqueles que foram silenciadas
e silenciados, a dar voz ao discurso de quem foi colonizado e invisibilizado8.

Ainda sobre minha atuação social, contribuí para a implantação do Estatuto da


Juventude e Fundo Municipal da Juventude dentro dos Orçamentos Participativos e
Conferências Municipal, Regional e Estadual da Juventude. Dentro da Igreja Católica fui
responsável junto a outros jovens pela Coordenação Executiva da Região Metropolitana
II que compreendia 42 paróquias de Fortaleza e a Paróquia de Caucaia/CE, onde
participamos ativamente dos Dias Nacionais da Juventude, Gritos dos Excluídos e
Semanas da Cidadania. Participei como arte educador, dentro do Programa Federal
Projovem Adolescente (no qual trabalhei durante três anos) da Secretaria Municipal de
Assistência Social, do 1º e 2º Festival Latino Americano das Juventudes em Fortaleza e
do Acampamento Latino Americano das Juventudes em Icapuí/CE.

Com a Companhia Anagrama contribuí para o fortalecimento das ações do Fórum


de Dança do Ceará que lutou bravamente durante anos para a existência do Curso Técnico

8
A origem do discurso da invisibilade do negro no Ceará liga-se à historiografia tradicional cearense e foi
um dos primeiros e principais enfrentamentos para a articulação do movimento negro cearense. O conceito
de invisibilização, utilizado na sociologia, pode ser compreendido aqui como uma estratégia de resistência
social, onde seguimentos discriminados da população – em nosso caso, a população negra – agem de forma
a não serem percebidos como parte da sociedade, e, por outro ângulo, como estratégia pela qual as elites da
sociedade e o estado negam a presença de pessoas e práticas negras nesse estado, desobrigando-se de
políticas e ações voltadas para essa parte da população. Sobre o conceito veja as reflexões in casu propostas
por OLIVEIRA JUNIOR, Adolfo Neves de. A invisibilidade imposta e a estratégia da Invizibilização entre
negros e índios: Uma comparação. In: Brasil: Um país de negros? 2°. Ed. Rio de Janeiro: Ed. Pallas, 1999,
p. 165-174.
em Dança que está em sua sexta turma e para construção política das graduações em Dança
na Universidade Federal do Ceará (UFC), sendo que hoje integro a terceira turma do curso
de licenciatura em dança na instituição supracitada. É também com a Anagrama que eu
penso ser possível estar e existir nesse mundo. Com elas e eles tantos que já passaram e
que permaneceram em minha memória, em minha vida, em minha dança que eu ganho
força para retomar projetos esquecidos, criar novos projetos, amplificar estados de corpo.
É por causa delas e deles que eu estou aqui, que eu me nutro das mais singelas e potentes
sensações que se pode ter – e produzir – se movimentando em grupo.

Nessa minha caminhada em/com/de dança, fui convidado a passar dez meses no
Canadá dançando na Decidedly Jazz Danceworks9 , a diretora artística da companhia veio
ao Brasil pesquisar ritmos afro-brasileiros, passou por Fortaleza e deu aula na Companhia
dos Pés Grandes, a qual faço parte. Kimberley Cooper me viu dançando e me perguntou
se eu tinha vontade de ir para o Canadá dançar e eu disse que sim. Desde então criamos
um vínculo afetivo profissional cheio de alegrias e tristezas, pois meu visto foi negado
por duas vezes antes de conseguir, finalmente, ir para a DJD, como é conhecida
informalmente.

Chegando em terras canadenses e para além de ter que estudar jazz, tive que
estudar a língua estrangeira e a cidade, bem como seus hábitos. Esses são alguns aspectos
da viagem, do deslocamento de um afro-brasileiro ao Canadá, para estudar dança,
buscando aperfeiçoamento artístico e profissional. As condições dessa viagem são muito
diferentes dos deslocamentos forçados da grande população constituída por nossos
ancestrais africanos para as Américas, aos quais chamamos diáspora.
Segundo Eduardo David de Oliveira, “diáspora é signo de movimentos
complexos, de reveses e avanços, de afirmação e negação, de criação e mimese, de cultura
local e global, de estruturas e singularidades, de rompimento e separação” (2012, p. 29).
Diáspora é a dispersão de um povo em consequência do preconceito ou perseguição
política, religiosa ou étnica. Ela é comumente usada para definir o movimento de
dispersão, na maioria das vezes obrigatório, de um grande conjunto de pessoas que saíram

9
A Decidedly Jazz Danceworks foi fundada para reacender os valores tradicionais da dança jazz. Sua
estética tem raízes africanas, uma base no swing e a música Jazz em seu coração. A companhia explora e
mistura os aspectos que definem a formas tradicionais do jazz com influências europeias e ocidentais. O
que se chama Estilo DJD é uma mistura forte de Técnicas de Jazz (Jump Rhythm, Luigi Thecnique, Swing
Jazz) com as expressões africanas e de descendência afro. (Extraído com base no site da companhia)
de um específico local em que viviam, para vários locais diferentes, tendo sua quantidade
total de pessoas separadas em menores partes10. No caso da diáspora africana, que é a
abordada neste estudo, ela foi um acontecimento histórico e sociocultural que ocorreu
principalmente por meio da escravidão. Africanas e africanos foram capturados e levados
à força em navios para trabalharem em outros países, se separando em diferentes
localidades do mundo.
É fato que o negro sofreu a diáspora que o espalhou pelo mundo, onde em cada
lugar trabalhou, criou cultura e se miscigenou à população local e aos colonizadores. O
argumento de Mbembe (2014) com relação a isso é que as elites brancas passaram a usar
a mestiçagem como uma forma de minimizar a discriminação, o chamado mito da
democracia racial. Ele, o mito, desmobiliza qualquer crítica às desvantagens sociais
sofridas pelos negros e mestiços por todo o mundo e ainda apaga qualquer contribuição
histórica importante dessa população.
Nesse sentido, é de suma importância reconhecer que os deslocamentos
promovem encontros e processos de hibridação cultural. Canclini entende por hibridação
“processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma
separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (2011, p. XIX). O
autor lembra-nos que essas estruturas e práticas que ele chama de “discretas” também
foram resultado de hibridações, por isso não podem ser consideradas como fontes puras
e sim “discretas”. Esse autor nos alerta sobre a tendência de desvincular essas práticas da
história de misturas em que se constituíram e de como isso pode absolutizar um modo de
entender a identidade e obstruir a possibilidade de modificar cultura e política. Ele propõe
que sejam criadas políticas de hibridação, as quais “serviriam para trabalhar
democraticamente com as divergências, para que a história não se reduza a guerras entre
culturas […]” (CANCLINI, 2011, p. XXVII).
As motivações e condições dos deslocamentos humanos são muito diferentes, mas
de um modo ou de outro, pensamos que eles se inscrevem, deixam marcas no corpo, as
quais podem se materializar, intensificar e tornarem-se modo de expressão e de vida por
meio da dança. “Nos jogos de corpo preservamos nossos sistemas de pensamento.”
(OLIVEIRA, 2012, p. 38). No meu caso em específico, precisei sair da cidade onde, até
então, tinha vivido toda a minha vida para (re)encontrar outras danças e me reconectar

10
Disponível em: <https://www.significados.com.br/diaspora> Acesso em: 13/set/2018.
com a minha ancestralidade, materializando na dança as mesmas práticas em/com/de
dança que eu vivenciara na infância e adolescência e que eu negara por serem práticas
negras periféricas, no momento em que comecei a estudar dança em sala de aula. Foi
necessário me encontrar com as danças africanas ancestrais da costa oeste africana e com
as raízes africanas do jazz para que eu me desse conta da infinidade de aprendizados que
eu tive dançando axé, dançando swingueira, nas rodas de coco, no terreiro de maracatu e
nas brincadeiras de pastoril. Hoje agradeço aos meus ancestrais por me permitirem
relembrar dessa parte valiosa da minha vida, pois este trabalho é também sobre ela.
O que há de ser destacado é que esse deslocamento para o Canadá e os
estudos/práticas lá vivenciados me forneceram materiais que, junto ao meu ativismo no
movimento negro, fizeram avançar o processo de criação do trabalho Eu sou nós e as
Andorinhas, dando-lhe mais camadas, favorecendo determinadas escolhas e fortalecendo
procedimentos em articulação à experiência com o DJD.

Figura 2: Bailarinas, bailarinos, diretora e assistente coreográfica da DJD momentos antes a última apresentação do
espetáculo Year of the horse. Arquivo pessoal.2014.

Na Decidedly Jazz existem algumas particularidades que necessitam ser


consideradas: a primeira delas é o compromisso com as raízes do jazz, isso nos permite
articular a valorização das identidades negras nas práticas cotidianas, como também a
ancestralidade que ressignificamos na nossa existência com essas práticas de dança.
Uma das fundadoras da companhia, Vicky Williams, afirma com veemência que:
“Não adianta em nada dançar jazz se você não sabe de onde ele veio e não compreende
suas raízes e sua história no/com o mundo”11. Com esse pensamento, a DJD mantinha
aulas de dança clássica, jazz dance, improvisação em jazz e danças africanas da costa
oeste. Nas aulas de improvisação, com a própria Vicky, tínhamos acesso a livros e sons
oriundos do jazz (música). Todos os trabalhos artísticos da companhia são apresentados
com uma banda de jazz tocando ao vivo e isso faz com que os bailarinos, músicos,
instrumentos musicais e o jazz – música e dança – compartilhem e constituam a cena
juntos, o que nos instigava a estudar e conhecer os acordes, notações e particularidades
sonoras do jazz.
A segunda particularidade da DJD consiste de que todas as aulas da companhia
ocorrem com música ao vivo e isso desperta em nós, bailarinos, uma potência bastante
forte, principalmente nas aulas de danças africanas da costa oeste, pois “ao executarmos
danças de matriz africana, conectamo-nos com os ancestrais, desde os mais remotos
tempos de uma civilização milenar, que nos traz as vivências das rodas, debaixo de
árvores frondosas, nos terreiros, quintais e praças.” (PETIT, 2015, p. 72).
Durante a temporada 2014/2015, produzimos três trabalhos onde, num deles, eu
tive o prazer de coreografar uma cena e uma remontagem que sempre ocorre como
contrapartida da cia à comunidade. Tive muitas aulas, muitas horas de trabalho e de
estudo, muitas angústias com a língua que eu não dominava de início, com o modo de
vida e o ecossistema que me era alheio a tudo que vivo em Fortaleza, e com a forma de
trabalho que me exigia constantemente saúde, foco, disponibilidade, força e agilidade
dentre outras coisas que um brasileiro pode ser impelido a ter dançando numa companhia
que pesquisa as raízes históricas do jazz no Canadá. Esse tempo me disse muito mais
sobre a minha dança do que eu imaginava. Uma companhia de jazz em outro país
conseguiu abrir minha corporeidade de um jeito como eu não tinha encontrado no meu
país há muito tempo. Voltarei a falar sobre isso nos capítulos que se seguem.

11
Essa citação consta de anotações de aulas de improvisação em jazz que eu tive com Vicky Williams.
Figura 3: Minha família reunida na noite da minha volta, surpresa. Junho de 2016.

Continuo sendo o Rubéns, filho da Célia e da Lúcia, neto da Beliza, irmão da


Fernanda, da Elisângela, da Maurília, da Alexssandra, da Janaína, tio da Mauriane, da
Alisandra e do João Davi, padrinho do Guilherme. Hoje eu sou o Rubéns que constrói a
Família Lopes, o Fórum de Dança do Ceará, o Fórum de Negrxs contra o Racismo na
UFC, o Movimento Negro Kalunga, o Coletivo CREWolos, a Cia Anagrama de dança, a
Cia dos Pés Grandes.

Duas coisas são importantes de ressaltar nesse processo de me situar. Um: ser
publicizadamente negro na periferia de Fortaleza subentende estar numa condição de
destaque muitas vezes pela coragem. Coragem de assumir seu cabelo crespo numa
sociedade que vigora a estética de cabelo liso; coragem de assumir sua cor preta numa
sociedade embranquecida; coragem de sair na rua e conviver com risadinhas e frases do
tipo “que cabelo é esse?”. Dois: Ser artista negro em Fortaleza requer, como em qualquer
profissão, que galguemos espaços para a nossa arte, mas como permanecer atuando com
arte negra numa cidade que só nos vizibiliza nas datas comemorativas do calendário
nacional? Uma vez que nossa vida está imbricada também na nossa arte, o ativismo é
também resistência, insistência, permanência das coisas negras, das vidas negras. E vidas
negras importam.
Segundo movimento: QUESTIONANDO-SE

É estando no campo de atuação da formação do artista que me debruço nesse


movimento sobre algumas inquietações a respeito de como trabalhar o ensino de dança
num ambiente que não é a escola formal, nem a academia de dança, mas é um lugar para
formar artistas com aquisições têcnicas em dança. Por assim dizer, um lugar que se
pretende ensinar a pessoa para a profissão de artista da dança.

De certo também que não costumo dar aulas de dança para crianças, pois essa
abordagem da qual falo nesse movimento e no próximo funciona principalmente com
pessoas jovens e adultas, podendo acontecer em menos camadas de conceituação e de falas
rebuscadas com adolescentes.

2.1 Aprendizagem, memórias, passos de dança e sensações à baila

Quando voltei a Fortaleza, em 2015, retornando do Canadá, retomei a criação do


trabalho Eu sou nós e as andorinhas, ainda em formato solo, agora conectado às raízes
históricas do jazz e à ancestralidade africana que conferiram mais camadas ao trabalho de
dança, desdobrando-o.
Nesse processo de desdobramento do trabalho artístico, senti a necessidade de
convidar alguns amigos profissionais de dança e continuar a pesquisar e conhecer as
inscrições do corpo em movimento no espaço, em conexão com nossa ancestralidade
africana e percebendo onde, no corpo, elas vão se materializando. Desse modo,
intensificamos a pesquisa de movimento e o trabalho foi ganhando corpo cênico e uma
forma que todos os participantes – atualmente seis dançarinos, entre mulheres e homens
não brancos – são convidados a acessar memórias ainda sem forma individuada, por meio
dos seus movimentos, dando corpo ao que consideramos restos, vestígios de nossa
ancestralidade. Este processo foi se tornando cada vez mais refinado e dele surgiram
alguns exercícios/práticas que também são objetos deste trabalho de pesquisa e que serão
apresentados no movimento/capítulo seguinte.
Figura 4: Cia Anagrama em 'Oyá: uma variação de Andorinhas" no Teatro Carlos Câmara, maio de 2018. Foto: Nati
Vilela.

Ao inventar exercícios, precisei criar possibilidades de aprendizagem dos mesmos.


Para trabalhar com passos de dança, preciso inventar histórias para além de perceber e
dar referências aos participantes de minhas aulas. Essas invenções são em sua maioria
daquilo que eu vivi, que não me tornei ainda, são de um terreno que vai sendo cada vez
mais remexido ao ponto de me dar conta dos outros que existem em mim e que vão
compondo também os outros além de mim, os outros dos participantes. A este ponto da
pesquisa me dei conta de que antes de estudar dança de uma forma convencional eu já era
dançante, pois cresci em ambientes nos quais a dança me era próxima e me era
apresentada de forma natural, instintiva, intuitiva e também com conhecimento.
Dei-me conta de que cresci dançando axé, swingueira, funk, coco e pastoril e em
nenhum momento da minha vida, eu afirmava isso enquanto um lugar de conhecimento
em dança. Até dessa forma as expressões de racismo, eurocentrismo, capitalismo,
embranquecimento nos envolvem a ponto de negarmos tantas vivências em nossas
danças. A ponto de negarmos tanto movimento no/do nosso corpo.
Em todos esses gêneros de dança que citei acima, o passo de dança acontecia como
algo que é apresentado e realizado por todos os participantes, de forma uníssona.
Acontece que a figura do criador ou professor mostra o passo e as demais pessoas o
repetem, reproduzem até o momento em que esse passo se torna orgânico no corpo de
cada uma e cada um. O que chamo de orgânico no corpo se refere ao fato de cada corpo
conseguir reproduzir o passo de dança com naturalidade e sem dificuldades. Desse modo,
quando estamos reproduzindo o passo, estamos articulando um conhecimento externo ao
nosso corpo com a memória daquilo que nosso corpo já viveu, mas que pode ter se tornado
um terreno baldio, sem nada construído ainda.
Mas quais os entendimentos ligados aos termos memória e aprendizagem estão
orientando nossa escrita e práticas em dança aqui relatadas?
Gilbert Simondon12 propõe pensar a cognição:
[...] à luz da noção de individuação. A individuação é um
processo, e não um princípio. Não é um a priori regulador. Sua
vantagem é exatamente não prefigurar, de nenhum modo, o que
ela se propõe a explicar. A individuação é invenção de formas,
aqui entendidas como realidades individuadas [...] é necessário
partir da individuação [...] e não de um indivíduo
substancializado diante de um mundo estranho a ele (1989 apud
KASTRUP, 2007, p. 82).

De acordo com Emyle Daltro, esse pensamento de Simondon “pode favorecer uma
trajetória de aprendizagem que considere todos os aprendizes como indivíduos não
prontos, por isso potentes, capazes de se individuar” (2014, p. 174). Com Simondon,
entendemos que os processos cognitivos – de adquirir conhecimento, de aprendizagem –
“precisam ser pensados não somente a partir dos resultados da individuação, mas de antes
dos resultados, ou seja, a partir do processo de colocação dos problemas a serem
resolvidos” (DALTRO, 2014, p. 174). A cognição, nos termos de Simondon, é um sistema
que porta uma diferença interna – é metaestável –, onde a individuação surge como
solução de um problema, mas essa resolução é sempre parcial e relativa, havendo, assim,
continuamente um resíduo, um resto (KASTRUP, 2007, p. 83). Então, a individuação
seria tanto gênese das formas individualizadas, como de um devir do indivíduo e “é a este
segundo plano de forças que respondem pelo devir das formas individuadas que
associamos as ‘memórias húmus’ que são, portanto, inventivas e que, quando ativadas,
tendem a provocar mudanças em processos de composição e aprendizagem”, escreve
Daltro (2014, p. 174). Para Virgínia Kastrup – que seguiu estudos realizados por Henri

12
SIMONDON, Gilbert. L’individuation psychique et colletive. Paris: Aubier, 1989.
Bergson e Gilles Deleuze –, é possível definir a invenção ― como movimento pelo qual
a cognição penetra no tempo, na memória cósmica (2007, p. 121).
Com Humberto Maturana e Francisco Varela, Kastrup destaca que a plasticidade
e a mudança estrutural contínua se potencializam no sistema nervoso humano, o qual
constitui uma imensa rede, comportando cerca de 10 bilhões de
neurônios (2007, p. 171). A autora nos mostra que esse fato “se revela como uma imensa
capacidade de aprendizagem. Mas o que se observa é que, à luz da noção de rede, a
aprendizagem surge inteiramente ressignificada, bem como a de memória, que lhe é
correlata” (KASTRUP, 2007, p. 171). Como escreve Daltro, “experimentar essa outra
memória seria experimentar esses restos, esse húmus que há em nós e em todas as coisas”
(2014, p. 175).

Figura 5: Registro de aula de danças africanas no Teatro Universitário. Foto de Ramó Alcântara. 2017.

Na criação de nosso processo de ensino/aprendizagem em dança, a memória é/foi


solicitada, porém é preciso dizer que não a abordamos como representação, mas como
memória que age no/com o devir das coisas, nutrindo mudanças; memória que nos faz
trilhar caminhos para fazer dançar o que há em nós de outro, materializando/socializando
redes de relações, dançando com as africanidades que nos constituem, sensibilizando-as
e visibilizando-as por meio do acesso ao que as memórias têm de resto, de
desestabilizador das formas individuadas.
Memórias que se diferem do entendimento tradicional que as
postulam em termos de representação, pautadas na resolução de
problemas pertinentes aos processos de individuação, mas se
aproximam dos resíduos, restos desses processos, os quais
possibilitam constantes devires mesmo às formas individuadas –
memórias húmus, que nos possibilitam transgredir fronteiras,
fazer alianças “outras” (DALTRO, 2014, p. 230).

Apostamos em uma ação de “acessar memórias – de modo a viver um tempo não


linear, um tempo composto, temporalidades que se conectam continuamente, sem
separação estanque entre passado, presente e futuro – que possibilite a revisão e a
invenção de histórias e também a desestabilização de formas individuadas”, diz Daltro
em apresentação oral que realizamos em conjunto no III Simpósio África: movimentos,
territórios e contextos, em São Luiz do Maranhão, em junho de 2016. Isso pode acontecer,
por exemplo, por meio da música utilizada, ou da história inventada a partir da sensação
do movimento sendo executado, ou mesmo do processo de aprendizagem que vai se
constituindo ao longo das aulas e que desemboca na roda de conversa ao final de cada um
desses encontros de dança.
Experimento essa prática como dispositivo nas aulas de dança que conduzo e que
levam em conta características da ancestralidade africana, a qual ganha corpo em
movimentos que favorecem processos de ressignificação de nós mesmos, de nossas
danças, de nossos modos de vida. Um exemplo bem constante disso é quando, nas aulas
de dança negra contemporânea, de dancehall e de jazz rootz, instigo o olhar para a
movimentação do torso. O torso é uma parte do nosso corpo que não estamos habituados
a mexer tão livremente, não somos educados/instigados a movimentar o centro do nosso
corpo e quando o fazemos somos mal vistos. Costumo utilizar a sensação do vômito e
pedir para que os participantes visualizem este vômito saindo do intestino e chegando até
a boca para acessar o movimento de serpentear – que uso constantemente na pesquisa do
“Corpo Lânguido”13 com a Cia Anagrama.

13
Não me detenho muito nesse assunto pensando que ele é objeto para uma outra pesquisa em dança. O
corpo lânguido é uma proposta de movimentação a partir do torso na cena contemporânea. O modo de
mover da Cia. Anagrama. Nele ativamos nossos corpos nnuma fisicalidade que atravessa tempos, espaços
e memórias num fluxo de movimento que se pretende ser sinuoso, serpenteado.
Ao propor determinado exercício/prática, por meio de passos – codificados, pré-
estabelecidos – de dança, interesso-me por como corpos com experiências distintas
acessam as sensações instauradas com esses passos. Instiga-me ver como o corpo, em sua
sinestesia, consegue experimentar qualidades de movimento, garimpando as sensações a
partir de ficções e imagens que invento para cada passo – acionando também a memória
associativa – materializando-o para além da forma, de modo que esses corpos estejam
aptos a imprimir a sua marca singular no exercício/prática do passo de dança proposto ao
coletivo.
A memória associativa, outra noção que também está presente em minhas práticas
em dança e que está mais ligada à resolução de problemas, diz respeito à aquisição e
desenvolvimento de habilidades motoras através da repetição de gestos, proporcionando
o aprendizado do movimento. Ela é importante, não somente para executar uma mesma
atividade com maior facilidade posteriormente, como também, na aprendizagem de novos
gestos que envolvem movimentos similares. Em outras palavras, ela é importante na
aquisição de novos repertórios corporais e novas técnicas de dança.
É também a partir da repetição do passo que este vai sendo apropriado pelos
dançantes – quem apresenta o passo pode ser eu, um vídeo, a minha fala coordenando
ações dos dançantes etc. Partimos de uma prática que até hoje ainda se sustenta pela
repetição de passos, mas propomos um giro no olhar pedagógico para dar visibilidade ao
que fica, muitas vezes, oculto em aulas de dança, ou seja, essas sensações que são
acessadas/produzidas com os passos – lembrando que a “perfeita” execução desses passos
não se configura como meta a atingir, até porque não trabalhamos com passos/formas
ideais, ou idealizações fixas de movimento e de corpo, desse modo, pretendemos que cada
corpo, cada participante, com suas diversas possibilidades e limitações, sirva também
como referência para a prática de dança.

2.2 Interculturalidade crítica e decolonialidade em diálogos com danças negras


Dar corpos ao que não se vê, ou ao que se vê apenas de um modo, para que se
possamos ver de modos “outros”. De acordo com Catherine Walsh, ver, falar e,
acrescentamos, dançar de modos “outros”:
[...] é tomar distância das formas de pensar, saber, ser e viver inscritas
na razão moderno-ocidental-colonial. Por isso, não se refere a “outros
modos”, nem tampouco a “modos alternativos”, mas aos que estão
assentados sobre as histórias e experiências da diferença colonial [...]
Essas histórias e experiências marcam uma particularidade do lugar
epistêmico – um lugar de vida – que recusa a universalidade abstrata
(2009, p. 25).

Em se tratando de interculturalidade crítica na América Latina, Walsh cita o


exemplo da nova Constituição equatoriana, aprovada em referendum público em 28 de
setembro de 2008, que considera “os saberes ancestrais como conhecimentos, ciências e
tecnologias, cujo ensino é válido e importante para o conjunto da população, desde a
escola até a universidade [...]” (2009, p. 25), resultado de lutas do movimento indígena
do Equador. Para essa autora, a interculturalidade crítica se opõe à colonialidade que
persiste em nosso dia-a-dia. Segundo Aníbal Quijano:
A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do
patrão colonial de poder capitalista. Se fundamenta na imposição de
uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra
angular desse patrão de poder e opera em cada um dos planos, âmbitos
e dimensões, materiais e subjetivas, da existência social cotidiana e da
escala social (2000, p. 342).

De acordo com esses autores, se faz necessário que nos orientemos e pautemos
nossas ações pela decolonialidade14 e pela interculturaliade crítica que “são projetos,
processos e lutas que se entrecruzam conceitualmente e pedagogicamente, alentando
forças, iniciativas e perspectivas éticas que fazem questionar, transformar, sacudir,
rearticular e construir (WALSH, 2009, p. 25).
Atentos e articulados às questões instigadas pela decolonialidade, entendemos que
reivindicar o que Walsh chama de interculturalidade crítica torna-se cada vez mais
importante para nos situarmos nesse excesso de falta de tempo, que nos impele à
reprodução de padrões relativos a modos de ser, saber, poder, por meio de movimentos
que tendem a automatismos, com muito pouco espaço para a invenção, entendida aqui,
nos passos de Virgínia Kastrup (2007), como colocação de problemas.

14
Os estudos decoloniais constituem-se de propostas do Grupo
Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade (M/C/D), composto, majoritariamente, por intelectuais
latino-americanos situados em diversas universidades das Américas. O grupo foi constituído no final dos
anos de 1990. De acordo com Luciana Ballestrin, esse grupo “realizou um movimento epistemológico
fundamental para a renovação crítica e utópica das ciências sociais na América Latina no século XXI: a
radicalização do argumento pós-colonial no continente por meio da noção de ‘giro decolonial’. Assumindo
uma miríade ampla de influências teóricas [...] atualiza a tradição crítica de pensamento latino-americano,
oferece releituras históricas e problematiza velhas e novas questões para o continente. Defende a “opção
decolonial” – epistêmica, teórica e política – para compreender e atuar no mundo, marcado pela
permanência da colonialidade global nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva” (2013, p. 91).
Vivemos processos de hibridação na dança que nos constitui, dança como modo
de vida. É com nossas danças que estamos conhecendo e criando mundos, tecendo quem
somos, por isso falamos em movimentos, tempo e espaço, constituindo corpos que
dançam, corpos/danças negros.
Dançar pode nos fazer pensar, problematizar quem somos e quem queremos ser?
Dançando, podemos performar esse/a humano/a “outro/a”? Como trabalhar alteridade a
partir do dispositivo “passos de dança”?
Buscando respostas a tais questões, experimento, durante o processo de criação
dos exercícios/práticas, atentar-me às dobras de nossos tornozelos, dos joelhos, da pélvis
– essas três articulações, juntas, realizam nosso contato com o chão, na posição ereta –;
às dobras da coluna vertebral, às do pescoço e às dobras dos braços – que permitem a
articulação do torso como princípio gerador da alacridade, ou seja, da alegria que emana
do corpo-dança afroancestral, numa dimensão também sagrada15, não apenas divertida,
como se refere Sandra Petit (2015). Ao movimentarmos circularmente tais dobras,
experimentamos curvas e torções, de modo articulado com danças africanas e seus
movimentos possibilitados por essas articulações do corpo, onde nos curvamos, nos
quebramos, requebramos... “Ninguém dança sem se quebrar.”16
Junto a tais procedimentos, procuramos pensar relações entre corpo, espaço e
ancestralidade na experiência negra como proposta de ensino/aprendizagem em dança e
fomos instigados a pensar sobre processos de hibridação cultural que se constituíram com
as diásporas que forçaram a saída de África e também a outros deslocamentos e
movimentos a que africanos e afrodescendentes foram/são impelidos, bem como a pensar
em como podemos constituir processos interculturais que se realizassem de modo crítico.
Deslocamentos promovem encontros e processos de hibridação cultural. Nessa
direção, pensar esse hibridismo requer “uma teoria não ingênua da hibridação, [que] é
inseparável de uma consciência crítica de seus limites, do que não se deixa, ou não quer
ou não pode ser hibridizado” como se refere Néstor García Canclini (2011, p. XXVII).
Nesse sentido, trazemos para nossa discussão a noção de interculturalidade crítica, em
contraposição ao multiculturalismo ou ao que Catherine Walsh chama de

15
Arriscamo-nos a pensar no termo sagrado no sentido de “profundamente respeitável” (FERREIRA, 2009,
p. 1790).
16
Fala da coreógrafa Irène Tassembèdo, de Burkina Faso, no filme A dançarina de ébano (La danseuse
d’ebene), de Seydou Boro, 2002.
“interculturalidade funcional”. De uma maneira ampla, Walsh propõe a interculturalidade
crítica como ferramenta pedagógica que:
[...] questiona continuamente a racialização, subalternização,
inferiorização e seus padrões de poder, visibiliza maneiras diferentes de
ser, viver e saber e busca o desenvolvimento e criação de compreensões
e condições que não só articulam e fazem dialogar as diferenças num
marco de legitimidade, dignidade, igualdade, equidade e respeito, mas
que – ao mesmo tempo – alentam a criação de modos “outros” – de
pensar, ser, estar, aprender, ensinar, sonhar e viver que cruzam
fronteiras. (2009, p. 25)

A interculturalidade crítica a que nos referimos parte do problema do poder, seu


padrão de racialização e da diferença colonial que foi construída em função destes fatores
no modelo socioeconômico e político em que vivemos. Ela é uma construção de e a partir
das pessoas que sofreram submissão e subalternização ao longo da história (WALSH,
2009, p. 21e 22). Ela se concebe do lado oculto da modernidade, que é a colonialidade. É
um movimento que amplia e alia setores que buscam alternativas à globalização
neoliberal e à racionalidade ocidental, e que luta tanto pela transformação social como
para a criação de condições de poder, saber e ser muito diferentes, tornando assim não
um projeto étnico e nem um projeto da diferença, mas um projeto “outro” de sociedade.
A pesquisa em dança que vem sendo desenvolvida por mim, ao longo de três anos,
é marcada cada vez mais pela “interculturalidade crítica”. Enfatizo a presença atuante
dessa interculturalidade, bem como da “memória húmus” e da ancestralidade
especificamente em minha proposição metodológica em dança negra contemporânea, que
é o foco principal deste trabalho. As aulas que compõem essa proposição foram por mim
conduzidas ao longo de três anos, dando voz a todas as pessoas envolvidas para troca de
saberes, buscando não separar as danças da história e das realidades com as quais elas
foram constituídas e não perdendo de vista o contexto com o qual essas danças estão
sendo ensinadas/aprendidas hoje; tendo bases filosóficas africanas, com protagonismo
sobretudo da oralidade praticada nas relações de ensino/aprendizagem de conhecimentos
seculares; dialogando com a noção de ancestralidade proposta por Eduardo Oliveira e de
interculturalidade crítica forjada por Catherine Walsh. Tudo isso de modo articulado aos
gêneros de dança abaixo citados:
 Danças Africanas que, aqui apresentadas, são originadas da costa oeste da África,
sobretudo do país de Guiné também chamado Guiné Conakry, ou Guiné Francesa.
São danças ancestrais da época do antigo império de Mali, que atualmente em
termos geográficos compreenderia os países de Mali, Senegal, Gâmbia, Guiné,
Guiné Bissau e Burkina Faso. Essas danças ainda são praticadas na atualidade em
celebrações, datas comemorativas ou mesmo de forma cênica;
 Dancehall: é uma dança social urbana afro-jamaicana (originada do raggamufin)
com influência do Reggae e do Hip Hop. Esta dança se constitui com bastante
sensualidade. O seu estilo musical é caracterizado por uma espécie de Reggae
Eletrônico misturados com os beats do Hip Hop. Apesar de ter uma base, o Ragga,
como também é chamado, se constitui também na essência do feestyle, ganhando
irreverência, criatividade e, sobretudo, atitude;
 Afro jazz ou estilo Decidedly Jazz Danceworks (DJD): tem raízes africanas, uma
base no swing e a música Jazz em seu coração. O que se chama Estilo DJD é uma
mistura forte de Técnicas de Jazz (Jump Rhythm, Luigi Thecnique, Swing Jazz)
com as Expressões Africanas e de descendência afro. O Jazz nasceu na América
do Norte com influências africanas e europeias e sua história é de fusões, a partir
da mistura inicial, no século XVIII, da música e da dança de escravos africanos
trazidos junto com os marinheiros para as Américas. Também tem influências
espanholas, resultando na música e dança latino-americanas.

A proposição metodológica em dança negra contemporânea que está sendo tecida,


nutre-se dos gêneros de dança acima mencionados, mas também transversaliza conceitos
da Técnica de Martha Graham (EUA), da Gaga Technique (Batcheva Dance
Company/Israel) e da Release Technique (EUA). Objetiva adquirir conhecimento com o
corpo fornecendo estruturas para o fortalecimento, flexibilidade, resistência, agilidade e
criação de vocabulário de movimento, sem deixar de lado os sentidos e a imaginação. As
aulas exploram o movimento multidimensional a partir de exercícios que estimulam a
conexão corpo/espaço e trabalham os desdobramentos dessa consciência.
Nessa proposição de ensino/aprendizagem, conhecimentos e práticas articulam-se
para inventar corporeidades muitas vezes desconectadas das referências, das vidas e das
mortes que constituíram o processo de colonização que ainda produz efeitos muito
presentes até os dias de hoje.
Apostamos na movimentação do torso como ativadora de memórias que se tornam
corpo, intensidade e modo de expressão e de vida, de forma a presentificar o corpo/dança
negro temporalizado e territorializado no aqui e agora, (re)conectado a nossa
ancestralidade africana. Ancestralidade que, da maneira como aqui é apresentada, pode
materializar-se como respostas à colonialidade, fortalecer a interculturalidade crítica e a
criação de danças e mundos “outros”.

Figura 6: Andorinhas/Revisitando. Apresentação na Bienal Internacional de Dança do Ceará. Foto de Jeff André.
2018.

Eduardo Oliveira aborda a ancestralidade como uma categoria analítica que


contribui “para a produção de sentidos e para a experiência ética […] uma categoria de
relação, pois não há ancestralidade sem alteridade” (2012, p. 30 e 40). Esse autor
reivindica a tradição dinâmica dos povos africanos e entende a ancestralidade também
como:
[…] um regime singular que os africanos souberam produzir tanto na
Diáspora quanto na África. Regime abrangente capaz de englobar todas
as experiências de africanos e afrodescendentes e, ao mesmo tempo,
singularizar cada experiência com seu sentido específico, forjado no
calor do acontecimento. Aqui Ancestralidade é, então, mais que um
conceito ou categoria do pensamento. Ela se traduz numa experiência
de forma cultural que, por ser experiência, é já uma ética, uma vez que
confere sentido às atitudes que se desdobram de seu útero cósmico até
tornarem-se criaturas nascidas no ventre-terra deste continente
metafórico que produziu sua experiência histórica, e desse continente
histórico que produziu suas metonímias em territórios de além-mar,
sem duplicar, mas mantendo uma relação trans-histórica e trans-
simbólica com os territórios para onde a sorte espalhou seus filhos […]
a ancentralidade é um território sobre o qual se dão as trocas de
experiências: sígnicas, materiais, linguísticas etc. (2012, p. 39)

Para Oliveira a Ancestralidade também é uma categoria de inclusão por ser


receptadora e alojar a diversidade e, sendo fruto do agora, ela “ressignifica o tempo do
ontem. Experiência do passado ela atualiza o presente e desdenha do futuro, pois não há
futuro no mundo da experiência” (2012, p. 40).
Foi ministrando oficinas de danças africanas da costa oeste que, tanto eu como os
participantes delas, fomos sensibilizados em relação à potência ancestral que constitui
tais danças. A proposta dessas oficinas era, e continua sendo, a de possibilitar o encontro
com passos de danças africanas, bem como a experimentação de seus ritmos pelo corpo
em movimento, acessando ancestralidades através desse encontro. Entendemos que essas
oficinas compõem mais uma camada do processo de criação de Eu sou nós e as
andorinhas e foi também com essa prática que investimos na ampliação do repertório de
movimento do torso e na intensificação de seu uso na dança, (re)conectando as partes do
corpo a partir da movimentação da pélvis, articulada com o restante desse conjunto
chamado torso.
É com todos esses questionamentos, procedimentos, conceitos e conhecimentos
que continuamos a investir no processo de ensino/aprendizagem em dança negra
contemporânea como potencializador de cinestesia, de processos de subjetivação,
invenção, presentificação, sensibilização e consciência de si.
Dar corpos a nossa ancestralidade requer encontrar em nós uma alteridade
percebida pelo estranhamento, problematização e experimentação daquilo que nos foi
dito como inferior, primitivo, a ser negado e abortado da nossa carne. É dançando que
nos conectamos a esse outro, que também é o que somos. Assim, dançando juntos, nossos
corpos produzem sensações ao se jogarem no tempo/espaço de uma melodia entoada por
diversas vozes e vários ritmos, o que, para nós, é um modo muito africano de criar,
aprender, insurgir e re-existir.
Terceiro movimento: (COM)PONDO-SE

Quando penso em ensino/aprendizagem em dança procuro me lembrar de como


as danças que eu sei e que me constituem hoje como um artista de dança me foram
apresentadas. Busco ativar uma memória dos restos, um material que é orgânico, quente,
que pode gerar novos modos de dançar e viver. A memória que falo aqui é o limbo das
coisas que eu não me tornei, que não tomaram forma, mas que podem tomar. Uma
memória constituída do que foi calado, do que não teve condições de se tornar. Ficções
de uma mente que inventa a partir do que foi invisibilizado.
Em 2014, quando fui ao Canadá trabalhar na Decidedly Jazz Danceworks, fui
apresentado às danças africanas da costa oeste da África – região que um dia, a milhares
de anos atrás, já foi colada com o nordeste brasileiro – sobretudo, do país de Guiné. São
manifestações que fazem parte de toda a vida africana, muitas delas datadas da era do
antigo império Mali e que resistem até hoje nas vidas das pessoas como saberes
tradicionais não estagnados. Lembro que antes de qualquer passo apresentado, o professor
– guineense – nos explicava de onde se originou aquela dança, em que contexto aquela
manifestação (prática) acontecia, se costumava ser realizada em agradecimento por algo,
se era um ritual de passagem, se era uma preparação... Dito isso nós, alunos, éramos
apresentados aos toques do tambor. Apreciávamos as peculiaridades e características
rítmicas existentes em cada uma daquelas práticas, é o que o professor chamava de
“break” e o que os músicos no Brasil chamam de “virada”. Uma vez sabendo da história
daquela dança, nós éramos levados a conhecer aquela música que, por ser som e por vir
de tambores, já chegava em nossa pele com um peso ancestral ecoando em nossos ossos
e vísceras. Aí sim era a vez dos passos de dança. Carregados de mais dramaticidade e
sinestesia, os passos que começavam a serem executados, ainda de forma mecânica por
nós, dada à falta de intimidade com aquelas corporeidades, iam ganhando camadas de
veracidade e de intimidade, toda vez que os repetíamos seja numa diagonal, seja no centro
da sala.
Não posso deixar de dizer que aprendi danças africanas dentro de uma sala
convencional de dança com espelho, chão de madeira e linóleo. Mas a forma como
aprendi, contextualizada, com riqueza de detalhes, meio ocidentalizada dada às contagens
que seguiam os passos, era ainda assim viva e contundente no corpo, produzindo sentido
em quem fazia e em quem olhava. Essa prática me gerava histórias na cabeça de forma
em que eu me tornava uma criança aprendendo sobre o meu passado, que me transportava
para a África originária, e depois para a minha África brasileira, nordestina, periférica e
ancestral. Essas novas histórias, junto com a outras tantas que aprendi com a Decidedly
Jazz Danceworks me fizeram voltar cada vez mais a minha afro-brasilidade e me lembrar
que do mesmo modo que eu aprendera as danças africanas da costa oeste, eu também
tinha aprendido a brincar pastoril, a brincar côco e o boi. Com algumas semelhanças foi
que eu aprendi a dançar axé e funk na infância, o que depois veio a se desdobrar em
swingueira e no que hoje eu proponho enquanto um modo e não o modo de abordagem
de ensino/aprendizagem em dança.
Assim, me lembro novamente do que escreve Walsh:
A interculturalidade crítica (...) é uma construção de e a partir das
pessoas que sofreram uma experiência histórica de submissão e
subalternização. Uma proposta e um projeto político que também
poderia expandir-se e abarcar uma aliança com pessoas que também
buscam construir alternativas à globalização neoliberal e à
racionalidade ocidental, e que lutam tanto pela transformação social
como pela criação de condições de poder, saber e ser muito diferentes.
(2007, p. 8)

Essa autora acredita na interculturalidade crítica como um projeto de existência,


de vida e, neste momento da minha vida e da minha dança, estou utilizando desse conceito
também para a realização de um projeto estético, étnico e racial, uma vez que trago a
minha história negra em conjunção com tantas outras histórias também negras que se
encontram e se reconhecem na/com/pela dança, e resolvem estabelecer conexões com a
vida e a morte das lembranças e dos corpos, dos restos de memória, dos silenciamentos e
de tantas opressões por nós vividas. Desse modo, a dança que produzo é política, engajada
e afrorreferenciada.
Muitas vezes apenas o fato de ser um homem negro conduzindo a aula, já desperta
nos participantes um sentimento de que é possível homens negros serem professores de
dança, profissionais de dança ou mesmo lideranças em coletivos.
Um aluno uma vez me falou:
Rubéns, em toda a minha vida eu nunca tinha me perguntado
como era o meu cabelo. Quando te vi a primeira vez na aula,
homem/negro/com um cabelo black power maravilhoso e ainda
pintado, aquilo me fez perceber o quanto eu negligenciei o meu
cabelo e o quanto eu não sabia nada sobre ele. Foi então que eu
decidi deixá-lo crescer. Obrigado por isso.17

A ironia disso tudo é que o mesmo aconteceu comigo. Negligenciei meu cabelo
por dezenove anos da minha vida e só após o encontro, na graduação, com pessoas do
continente africano e seus cabelos maravilhosos e o seu orgulho negro, que eu me dei a
chance de me questionar, abrindo a possibilidade de ter um cabelo grande. Mas não sem
uma grande discussão em casa junto a minha grande família de mulheres.

Figura 7: Aula de danças africanas na praça do bairro Santa Cecília (Fortaleza/CE). 2015. Foto: San Cruz

Uma das camadas de minhas/nossas aulas – ou encontros – de dança negra


contemporânea é o trabalho que realizamos com o dispositivo passos de dança18 de forma
compositiva, ou seja, as proposições de movimento que compõem cada aula são
constituídas por passos de dança previamente criados a partir da minha corporeidade.
Estes, por sua vez, vão sendo reajustados à habilidade motora de cada integrante da turma,

17
É comum sempre ao final das minhas aulas, fazermos uma roda de conversa onde cada participante conta
suas impressões e sensações ao longo da aula. Falarei mais sobre isso no terceiro movimento.

18
Antes de mostrar os passos, eu busco dar o máximo de informação histórica, social e cultural sobre o
passo de dança em questão (caso tenha), valem histórias que me foram contadas, imagens ou vídeos que
possam estar relacionados, ou mesmo convocar a forma como aprendi aquele passo. Como todas as aulas
que dou são afrorreferenciadas, fica inevitável não falar do lugar do colonizado, do lugar marginal.
às suas singularidades, ao tempo disposto em cada aula, à capacidade sensorial e à
adequação corporal do passo a cada participante. Esse dispositivo com que trabalhamos
não é nada novo no universo da dança, mas a abordagem que utilizamos é que têm um
caráter distinto, por estar sendo tecida com diálogos entre diferentes filosofias e práticas
de dança, guiados pela noção de interculturalidade crítica e praticando a afrorreferência
em dança.

Figura 8: Aula de Lindy Hop para o Itinerário Formativo em Dança (Sobral/CE). 2018. Foto: Ernany Braga

As aulas têm como objetivo estimular a capacidade de assimilação e de


entendimento dos movimentos no corpo, de forma sensorial. Nessa direção, importa
menos a forma a que se chega e mais a sensação corporal produzida na execução do passo
e, cada participante da aula tem a possibilidade de ir tecendo/criando sua singularidade
nesse processo de repetição, mas também de expressão e de transformação. Importa sentir
o movimento e não reproduzir o passo, assim, curtir o movimento é parte essencial do
que chamamos de giro pedagógico. No encontro com o passo de dança, cada participante
é convidado a inventar a sua versão daquele passo, para assim estabelecer uma conexão
mais justa entre as referências envolvidas naquela prática dançante com as referências
que cada corpo traz na sua história de vida.

Costumo dizer em aula que o giro pedagógico acontece quando os/as participantes
não precisam se desgastar para alcançar o ideal/modelo/padrão de conhecimento – de
corpo no nosso caso – transmitido (pois quase sempre não foi o professor quem
estabeleceu) pelo docente ou pela escola formal (sentido ascendente verticalizado), mas
perceber e estabelecer um diálogo constante entre a informação do educador com as
possibilidades/impossibilidades do educando (sentido horizontal, oscilando entre os
lados). Horizontalizando o ensino/aprendizagem em dança, estamos potencializando a
percepção de cada participante e estimulando a capacidade de diálogo, por meio da
sensação de movimento, do corpo de cada um, com os corpos que lhes são apresentados
– eu e os corpos que aparecem nos vídeos que utilizo em aulas teóricas, bem como os
corpos participantes das aulas.

Aos poucos, o ato de não reproduzir a forma simplesmente pela forma,


padronizada do passo de dança, vai se instaurando na sala a cada repetição desse passo.
À medida em que cada participante vai repetindo e transformando o passo de dança, o
entendimento no corpo acerca da mecânica de movimento desse passo vai acontecendo.
De modo que, com o passar do tempo, o corpo vai imprimindo o seu modo de execução
desse passo, a sua versão dele – que diz respeito a sua singularidade no encontro com a
alteridade, sem deixar de perceber a coletividade – com todas as histórias que lhe foram
contadas, mais as suas percepções de corpo, mais os seus silenciamentos que agora foram
expostos – sensação catártica, de catarse -, ou seja, a “ficha vai caindo” aos poucos e
assim, cada participante vai se tornando sua própria referência em dança e,
simultaneamente, se tornando referência para a turma.

Rubéns meu bem!!! (...) Ao certo, posso te garantir que a minha


semana parece deslanchar... Entendo que o corpo em movimento gera
energia e a energia que vem das suas aulas, estremecem meu ser:
expando, explodo. A troca com os coleguinhas, os passos, o tambor
falando... Eu precisava vivenciar isso. Obrigaaaaado por me deixar
fazer parte desse movimento político, social, espiritual. Evoé!!!19

19
Relato de um aluno da turma de Danças Africanas, que acontece às segundas-feiras, no IFCE, Fortaleza,
CE, 2018.
Por meio da ênfase nas sensações, os participantes das aulas de dança negra
contemporânea, com vivências em diferentes práticas cotidianas, com diversas heranças
culturais e tradições artísticas, podem acessar essas diferenças, mas também buscar
pontos em que se conectam, ou seja, vai-se possibilitando que os modos de dançar dos/das
participantes encontrem também similaridades entre si. Mesmo que os movimentos
estejam aparentemente desiguais, estarão se conectando pelas sensações produzidas, pelo
uso da respiração, pelas mesmas qualidades de esforço e por ancestralidades que podem
se revelar comuns. Trabalho os passos de dança, como foco na sensação produzida
pelo/com o movimento e não na busca de uma forma ideal de corpo pré-idealizada por
uma ou outra cultura/tradição. Esse procedimento se torna intercultural crítico na medida
em que possibilita que todos os participantes se beneficiem com o que está sendo
proposto, não sendo tecidos critérios de exclusão, ou de incompatibilidade, ou de
inferioridade e superioridade de certos corpos e movimentos em relação a outros. Sem
contat no fato de que, está sendo proposto por alguém que viveu/vive situações de
subjugação e que resiste, re-existe e inventa possibilidades “outras” de diálogo
intercultural, de modo atento ao que se quer ou não hibridizar, tendo o desejo de
compartilhar esse seu fazer com outros em situação semelhante.

Já nas aulas de danças africanas da costa oeste que conduzo, os participantes estão
dispostos em círculo e geralmente não temos música ao vivo e utilizamos as gravações
que eu tive acesso nas aulas de danças africanas vivenciadas por mim no Canadá. Aqui
entra o segundo indicador de interculturalidade crítica e marcador de uma cosmovisão
africana: todas as decisões são tomadas em grupo, quer seja o grupo que está presente
naquele momento numa situação mais urgente, quer seja o grupo inteiro de pessoas que
costumam frequentar de forma regular as aulas, quando trata de algo que demande mais
tempo. O fato de não trabalharmos com uma turma fechada, sem confirmação de presença
e sem a perspectiva evolucionista linear das aulas, nos permite ter num mesmo
espaço/tempo de convívio pessoas que: 1. já vêm frequentando há seis meses as aulas; 2.
pessoas que chegam pela primeira vez; 3. pessoas que flutuam entre as aulas sem
obrigatoriedade de presença em todas, mas que por vezes estão lá; 4. pessoas com vasta
experiência nos vários gêneros de dança; 5. pessoas que chegam dizendo não saber
dançar; 6. pessoas que nunca dançaram na vida; 7. pessoas que integram o movimento
negro.
Quando todas essas pessoas se juntam com o objetivo de aprender determinados
passos de dança, é comum comparar o movimento de cada uma com o do professor, ou
com algo que defina o certo e o errado naquele fazer. Mas quando todas essas pessoas se
juntam com o objetivo de aprender determinados passos de dança percebendo que sua
perna não tem grandes extensões de movimento, ou sua coluna é retificada ou mesmo que
só é preciso escutar a música, aquilo que provavelmente separaria cada participante em
“caixinhas diferentes” e abriria um grande campo para o ensino verticalizado, dá espaço
para o entendimento da singularidade por meio da sensação de movimento no corpo que
unifica a turma, e que faz perceber que esta mesma sensação produzida aqui em Fortaleza,
em 2017, pode já ter sido sentida do outro lado do planeta, em momentos em que um
movimento parecido com aquele foi proposto.

Falo de como determinada dança surgiu, seu contexto geográfico, histórico,


social, econômico, religioso, sempre que possível temos apreciação de vídeos realizados
na região onde essa dança nasceu. É necessário estabelecer além de uma conexão
demográfica, um diálogo cultural entre os entendimentos de corpo, de dança, de modos
de existência, bem como tudo o que for possível para dar voz a esses atores de dança de
outros países, relacionando-os aos atores de dança da turma. No contexto das danças
africanas, costumo dizer que “eu sou um corpo brasileiro dançando uma dança africana”
(nota de aula), esta afirmação também se dá para os gêneros de jazz20, Graham Technique
e dancehall, pois são danças originadas nos Estados Unidos e Jamaica, respectivamente.
Também em aulas teóricas costumo levar o atlas do corpo humano para lições básicas de
anatomia, pois entendo ser necessário que cada participante das aulas saiba como é, ou
deveria ser, o funcionamento do seu corpo, como proceder para executar determinado
passo, que músculos precisa ativar para convocar determinadas qualidades de
movimento...

20
O jazz que trato neste texto é o jazz roots, de base africana, dançado pelos ex escravos norte-americanos.
O jazz que surgiu como necessidade de dar voz ao corpo para algo que ganhava notoriedade na música do
início do século XX.
Figura 9: Aula teórica de anatomia na Escola de Desenvolvimento e Integração para Crianças e adolescentes –
EDISCA, 2017. Arquivo pessoal.

Quando falamos de corpos de outras culturas, convidamos cada participante a


experimentar aquela forma corporal disposta no espaço. Além de procurar entender o
trabalho das/nas articulações, enfatizamos a pesquisa em torno de onde parte cada
movimento, suas motivações de existência, ligações com imagens ou situações que
entusiasmem os participantes à repetição pela sensação.
Numa aula de jazz, por exemplo, quando falo da swing área e do lindy hop,
costumo convocar a sensação de estar com os pés descalços, dançando em chão de terra
batida, num dia de sol, às duas horas da tarde. Essa imagem além de remeter à
ancestralidade, também tece um diálogo com a interculturalidade crítica em termos de
metodologia de ensino/aprendizagem e gera nos participantes o sentimento de
identificação com algo que faz parte de suas memórias culturais possíveis de serem
acessadas, talvez essas memórias que são restos, as quais falamos anteriormente.
Um outro elemento constante em minhas/nossas aulas de dança negra
contemporânea é a conexão com a música. Costumo me inspirar em músicas para criar
exercícios em dança contemporânea e em outras aulas que ministro, bem como nas
minhas composições com a Cia. Anagrama. A conexão que me refiro aqui diz respeito à
mesma conexão existente nas danças ancestrais africanas, um diálogo entre o corpo que
dança e o corpo que toca. Não uma servidão do corpo dançante em relação à uma música
em regime de escravidão, mas uma conversa entre as notas tocadas na música com as
acentuações corporais que podem aparecer em termos de movimento dançado.
Não é nada novo afirmar que, numa perspectiva afrorreferenciada, a música, o
gesto e a dança são formas de comunicação tanto quanto a voz falada e textualizada,
porém:
Onde a música é pensada como emblemática e constitutiva da
diferença racial em lugar de apenas associada a esta, como a música é
utilizada para especificar questões gerais pertinentes ao problema da
autenticidade racial e à consequente auto identidade do grupo étnico?
Pensar sobre música – uma forma não figurativa, não conceitual –
evoca aspectos de subjetividade corporificada que não são redutíveis
ao cognitivo e ao ético. Essas questões também são úteis na tentativa
de situar com precisão os componentes estéticos distintos na
comunicação negra (GILROY, 2001, p. 163).

Refletindo acerca dessa fala de Paul Gilroy que eu opto por cada vez mais
enegrecer as minhas/nossas aulas, quer seja pela história da dança ensinada, quer seja pela
mudança da música no exercício proposto, quer seja pelas metáforas e imagens que utilizo
em sala de aula, quer seja pelo fato de eu, pessoa negra, estar numa posição de condução
que na maioria das vezes são atribuídas a pessoas brancas.
E ainda que a principal característica formal das tradições musicais é a antifonia
(chamado e resposta), onde passou a ser vista como uma ponte para outros modos de
expressão cultural, fornecendo, juntamente com a improvisação, montagem e
dramaturgia, as chaves hermenêuticas para o sortimento completo de práticas artísticas
negras. Ou seja, as relações dialógicas intensas e muitas vezes amargas que incorporam
o movimento das artes negras “oferecem um pequeno lembrete de que há um momento
democrático, comunitário, sacralizado no uso das antífonas que simboliza e antecipa (mas
não garante) relações sociais novas, de não dominação” (GILROY, 2001, p. 166).
Uma vez que a música ancestral africana é composta de polirritmias21, e que a
música afro-diaspórica carrega consigo também essa qualidade, a dança surge como uma
materialidade desse movimento polirrítmico ancestral. Interessa-me enquanto criador,

21
Polirritmia é a superposição de vários ritmos/ritmicas juntas. O termo polirritmia tem sido utilizado em
diferentes contextos musicais e também tratado como objeto de estudo por diferentes autores da
etnomusicologia, educação musical e performance.Vários autores discutem em suas pesquisas dentro da
etnomusicologia conceitos de- senvolvidos por pesquisadores e estudiosos da música tradicional africana
como Kolinsky, Kubik, Aron, Nketia, entre outros, que são importantes bases referenciais para diversos es-
tudos, envolvendo a polirritmia e conceitos correlacionados.
seja na cena ou seja na sala de aula, esse diálogo entre o corpo que dança e o corpo que
toca (mesmo quando não há uma música sendo tocada ao vivo). Meus exercícios em
dança negra contemporânea, em dancehall e em jazz partem deste estímulo sonoro
causado pela música. A partir dela eu crio uma conexão corporal, que se transforma em
exercícios/passos de dança, que por sua vez vão sendo executados repetidas vezes até que
o meu corpo deixe de ser a referência maior e dê possibilidade para que cada participante
seja a sua própria referência de corpo também.

Figura 10: Oficina de dança contemporânea ministrada no Porto Iracema das Artes em 2016. Foto Joyce Vidal.

Faz sentido para mim que, ao final de cada aula de dança negra contemporânea, a
turma se sente e comece a conversar sobre o que foi produzido do/no/com/para o corpo
nessa ocasião. Minha primeira pergunta quando nos sentamos em círculo para conversar
é: “como está o nosso corpo agora? Como nós estamos?”
Com essas perguntas, num primeiro momento, me interessa saber do fisiológico
mesmo. De que alterações físicas e energéticas o corpo acessou ao longo da aula, e de
como que cada participante da turma pode falar disso, do corpo, no corpo, com o corpo,
a despeito de falar sobre o corpo, como acontece na maioria das vezes. Começa com um
“o meu corpo está todo tremendo”, ou “eu estou muito cansado, porém tenho a sensação
que poderia continuar dançando por mais tempo”. A fisicalidade explorada nas aulas que
conduzo geralmente tendem a extrapolar limites corporais, apontando limites mais
alargados que os participantes não conheciam, na maioria das vezes. Ela se mostra desde
o primeiro exercício de aquecimento e vai exigindo gradativamente mais segurança,
agilidade, atenção e empenho sem deixar de ter um caráter descontraído, apesar do rigor
com que eu trato a dança, o corpo, a aula de dança.
Cada participante é convocado a refletir a todo momento tendo o seu corpo como
referência maior. Isso gera o rigor que necessito em sala, mas também gera a sensação de
que estou dando o meu melhor e fazendo o que o meu corpo pode fazer hoje – com o
auxílio da minha voz repetindo ao longo da aula que importa mais o movimento ser
“curtido” do que ser desesperado. Uma vez em que alguém não consegue urdir essa auto-
referência, eu e o restante da turma intervimos no processo como ajuda e fortalecimento
dessa rede de tecitura de referências em/com/na/para a dança.
CONSIDERANDO ALGO MAIS

Dar enfoque à singularidade, à alteridade e à coletividade em sala de aula é um


exercício constante não apenas para quem participa da aula, mas também para quem a
conduz. Afinal, crescemos numa sociedade que está cada vez mais incrustada na
individualidade ou nas relações virtuais, esquecendo o contato físico e a troca de energia
a partir do encontro com essa alteridade que se faz na dança em coletivo, como também
em outras esferas da vida humana.
Muitas vezes, ainda penso que a tentativa de raciocinar logicamente depois da
prática dançada nas aulas, ainda é um subterfúgio da minha experiência ocidentalizada
que foi adestrada desde sempre e a sempre manter o texto. Mas me utilizo das conversas
e do texto para tentar falar sobre corpo, com o corpo, uma vez que nos momentos
anteriores estava falando pelo corpo. Esse movimento ajuda também a nos percebermos
singulares e plurais simultaneamente, a nos entendermos dentro da totalidade que é tão
difícil para nós que fomos educados a sempre ser ou isso, ou aquilo.
A experiência dessa proposição continua também em meu corpo, no que pude
(re)ter dos encontros com os participantes das aulas que dei ao longo desses três anos. Os
termos que apresento aqui também dançam comigo, porque a minha posição como
pesquisador foi, e continua sendo, livre. E as palavras desse estudo estão sendo lançadas
para que possam continuar estabelecendo relações, tanto quanto na obra em dança, para
agenciar valores no campo da pesquisa em educação e em dança, o que nos tornou
possível afirmar que a forma dessa pesquisa adquire contornos de procedimentos
pedagógicos e também artísticos.
Situando-me eu consigo entender o meu lugar na vida, no mundo, na dança. No
gerúndio mesmo, porque viver é estar em movimento constante e estando em movimento
constante, constantemente necessito me situar na vida, no mundo, na dança. Situando-me
nesse movimento constante eu vou mechendo em nos terrenos que eu não me tornei, mas
que pudia me tornar. Eu vou adensando a minha própria experiência enquanto homem
cis, negro, periférico, artista e vou afirmando o meu lugar, a minha dança, a minha
(re)xistência.
Questionando-me eu me ponho no encontro com a alteridade, com o outro. E, no
encontro com o outro, eu vou descobrindo os outros de mim e os outros comigo. Vou
descobrindo que eu não estou só e que outras pessoas pensam parecido, sentem as mesmas
sensações, talvez tenham inquietações parecidas. E aqui o passo de dança me levou a
entender alguns estados dessa alteridade. Através de uma abordagem sinestésica que foca
na sensação do movimento – e não na simples execução dele pelas formas -, também das
repetições desse passo eu vou percebendo como o meu corpo se comporta com essa
informação que me foi dada e que agora se encontra com as minhas impossibilidades
corporais, com as minhas experiências de vida/morte e, assim, eu vou me tornando
também uma referência para esse aprendizado em dança. Questionando-me como
professor na perspectiva tradicional que a educação tem – e exerce ainda nos tempos
atuais – eu posso tirar a referência da minha pessoa e transferi-la para outros elementos
que podem ser o próprio passo de dança, vídeos ou informações externas a mim, ou ainda
a execução dos participantes das aulas de dança negra contemporânea. É o que chamo
aqui de Giro Pedagógico numa tentativa de horizontalizar o processo de
ensino/aprendizagem em dança.
Compondo-me eu vou juntando esses restos que encontrei tendo de me ver nos
outros de mim e nos outros comigos com essa educação horizontalidada que foca nas
sensações, que tem uma conexão muito forte com a música e que inicia o movimento a
partir do quadril. É nessa aula de dança negra contemporânea que eu dou materialidade
as afirmações e aos questionamentos que tenho diariamente sendo negro, artista,
professor, pesquisador em dança, dançarino. É com essa aula e com todas as outras que
compõem o meu fazer artistico e docente que eu habito, (re)sisto e luto por um lugar onde
as práticas e os costumes negros sejam considerados tão importantes quanto os europeus,
cristãos, embranquecidos que a nossa história colonizada e colonizadora nos disse que
era ideal durante toda a nossa vida.
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Filmes:
A dançarina de ébano (La danseuse d’ebene), de Seydou Boro, 2002.
Balé Pé no Chão: A dança afro de Mercedes Baptista, de Lilian Solá Santiago e Marianna
Monteiro, 2005.

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