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Ele Viu Os Ceus Abertos

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Ele Viu os Céus Abertos

Michell Baunard

Tradução de Albuquerque Medeiros (1908)


Editora Central Gospel

Digitalizado por SusanaCap


Revisado por Lucia Garcia
HTTP://SEMEADORESDAPALAVRA.QUEROUMFORUM.COM
Sumário
ORELHAS:
INTRODUÇÃO
C ONVIVENDO FISICAMENTE COM O F ILHO DO H OMEM
CAPÍTULO 1 - REENCONTRANDO AS PEGADAS DO EVANGELISTA
CAPÍTULO 2 - ELEITO DISCÍPULO DO MESTRE
CAPÍTULO 3 - EDUCADO NA ESCOLA DE JESUS
CAPÍTULO 4 - TESTEMUNHA FIEL DO SENHOR
CAPÍTULO 5 - A FACE HUMANA E DIVINA DE JESUS
CAPÍTULO 6 - A INSTITUIÇÃO DA SANTA CEIA
CAPÍTULO 7 - DURANTE A CEIA COM O SENHOR
CAPÍTULO 8 - AO PÉ DA CRUZ
CAPÍTULO 9 - TESTEMUNHANDO A RESSURREIÇÃO
C ONVIVENDO ESPIRITU ALMENTE COM O F ILHO DE D EUS
CAPÍTULO 10 - O PRIMEIRO TESTEMUNHO DE JOÃO PERANTE OS JUDEUS
CAPÍTULO 11 - JOÃO EM SAMARIA E A MORTE DE TIAGO
CAPÍTULO 12 - JOÃO PARTE PARA O CAMPO MISSIONÁRIO
CAPÍTULO 13 - COMBATENDO AS HERESIAS
CAPÍTULO 14 - O EVANGELHO DE JOÃO
CAPÍTULO 15 - A TEOLOGIA DO EVANGELHO DE JOÃO
CAPÍTULO 16 - SUA PRIMEIRA EPÍSTOLA
CAPÍTULO 17 - JOÃO NA ILHA DE PATMOS
CAPÍTULO 18 - O APOCALIPSE DE JOÃO
CAPÍTULO 19 - O RETORNO DE JOÃO A ÉFESO
CAPÍTULO 20 - A ESCOLA DE JOÃO
CANTO SOBRE AS ÁGUAS DA ILHA

ORELHAS:

Este é o livro mais belo e mais rico que alguém já escreveu sobre o
evangelista João — a testemunha mais importante e a mais bem infor-
mada da verdade do cristianismo. João foi aquele discípulo que destacou-
se entre os doze por sua corajosa ternura e fidelidade a Jesus Cristo, fa-
tores que o tornaram conhecido como "o discípulo que Jesus amava " (Jo
19.26).
Seguindo todos os dias Aquele que "tem as palavras de vida
eterna" (Jo 6.68) como seu amigo e confidente, João foi o discípulo que
mais próximo esteve da transfiguração do Senhor no Tabor, de seu
coração na Ceia, e de sua Cruz no Calvário. Foi o evangelista do Verbo, o
profeta de Patmos, o pastor de Éfeso, o missionário de Jônia, o filho do
Trovão.
Michell Baunard nos faz caminhar passo a passo ao lado de João
durante aqueles gloriosos dias em que ele viveu em companhia de Jesus,
e após Jesus retornar para o Céu, ainda acompanhamos João em sua
trajetória até a ilha de Patmos, e em seguida seguimos os seus últimos
passos sobre a face da terra.
Venham, venham, pois não é um artista, não é um atleta ou um
retórico que vou fazer vocês ouvirem.
É um homem cuja voz ressoa como a do trovão no céu. O universo
tornou-se cativo dessa voz inspirada pela graça. Além de encher o
mundo, ela é repleta de uma harmonia celestial indescritível. Esse filho do
trovão, que Jesus amou, que é uma das colunas da Igreja na terra, que
bebeu do cálice de Jesus, que viu abrir-se o céu e que descansou sobre o
seio de seu Mestre, vem hoje até vocês. Um grande correr de cortinas
celestiais, um portentoso rasgar de véus vai começar. O céu inteiro é a
cena e os crentes em Jesus Cristo reunidos em sua Igreja sobre a face da
terra serão os espectadores. Porém, não devemos esquecer que João é
um homem sem ciência e sem letras, um pescador de Betsaida, o filho de
Zebedeu. Que nos poderá dizer este homem da Galiléia que só conhece
a sua pesca? Não irá nos falar de redes e de peixes?
Não, ele nos falará unicamente de coisas celestiais ignoradas antes
dele. Esse homem que bebeu sua sabedoria nos tesouros do Espírito
Santo, vai fazer empalidecer todos os pensamentos sublimes de
Aristóteles e de Platão.
Este livro traz inúmeras informações inéditas sobre o Quarto
Evangelista. Seu autor, escrevendo de maneira clara e inspiradíssima,
mostra, entre outras coisas, que em lugar algum a Verdade se revela de
maneira superior à maneira como ela está no Evangelho, e em parte
alguma ela se mostra mais profunda e mais bela do que no Evangelho de
João.
INTRODUÇÃO

João foi a testemunha mais importante e a mais bem informada da


verdade do cristianismo. Ele foi aquele discípulo que destacou-se entre os
doze por sua corajosa ternura e fidelidade a Jesus Cristo, fatores que o
tornaram conhecido como "o discípulo que Jesus amava" (Jo 19.26).
Quando, ao longo das páginas deste livro, o virmos seguindo Aquele que
"tem as palavras da vida eterna" (Jo 6.68) como seu amigo e confidente,
o mais próximo de sua glória no Tabor, de seu coração na Ceia, e de sua
cruz no Calvário, compreenderemos o direito que o evangelista teve de
denominar-se por excelência a "testemunha da Verdade".
Ele foi também um dos discípulos de João Batista. Foi o apóstolo
querido de Jesus, o íntimo de sua paixão e de sua glória, o evangelista do
Verbo, o profeta de Patmos, o pastor de Éfeso, o missionário da Jônia.
João não era uma figura fraca. Não devemos esquecer que apesar de ele
ter-se intitulado de o discípulo predileto, Jesus o chamava de filho do
Trovão.
João pediu um lugar de honra à direita de seu Rei; mas convém não
esquecer que ele se comprometeu em beber o cálice de amargura, e que
cumpriu a palavra.
Para ele a perfeição não consistia em contemplar a santidade e a
glória do Senhor, mas sobretudo em trabalhar e sofrer. A gloriosa
montanha da Transfiguração, onde João foi uma das testemunhas do
Salvador, destacou-se tão-somente como um degrau da crucificação. Se
ele descansou no seio do seu Mestre, não adormeceu.
Levantai-vos e caminhemos (João 26.46) disse Jesus aos que
estavam com ele no Getsêmani. Era para caminhar rumo ao Calvário,
para marchar ao combate que o Senhor o chamou. E mais tarde nenhum
apóstolo sustentou nem comandou tão brilhante combate como o
apóstolo João. Ele refutou a gnose, detestou o nicolaísmo, anatematizou
Cerinto e seus erros, padeceu pela justiça, odiou a iniqüidade e
amaldiçoou Roma, inebriada de volúpia e de sangue sobre a cabeça das
nações.
Mostrou suspensa a taça dos flagelos divinos, repreendeu as
igrejas da Ásia por sua inconstância e fraqueza, e até em seus pastores
denunciou as máculas. Escrevendo à mocidade cristã que formara, João
antes de tudo a felicita por ser forte (1 João 2.13). Fala de lutas, de
triunfos e de vitórias. Atravessou o fogo, suportou o exílio, desejou a
morte, porque para demonstrar o quanto amava era pouco sofrer, se não
conseguisse morrer.
Será possível representar em um livro essa alma tão elevada, essa
existência tão grandiosa? A mesma ponderação sobre a impossibilidade
de se traçar um perfil completo de um personagem de estatura biográfica
tão rica e variada como o apóstolo João foi também feita pelo pastor
Agostinho de Hipona, quando no ano 396 ele retirou da vida do homem
que viu os céus abertos lições preciosas para o seu rebanho. Assim
pregava Agostinho:
Eu, que lhes falo agora, será que poderei esquecer quem sou
e o assunto de que trato? Trato de coisas divinas, e sou
apenas um homem. Trato das coisas do Espírito, e não passo
de um mortal Longe de mim, meus queridos irmãos, a vã
presunção de sondar esses mistérios. As lições que lhes
apresento tomo-as primeiramente para mim. Talvez seja
temerário querer perscrutar desta maneira os mistérios de
Deus. Porém, se não podemos penetrar até à Fonte, bebamos
juntos, pelo menos, das águas que correm pelo riacho. Se não
temos acesso direto aos mistérios de Deus, procuremos ouvir
quem teve acesso.
E por sua vez, também explorando as riquezas espirituais e
humanas da imensa figura apostólica do apóstolo João, o inspiradíssimo
pregador João Crisóstomo propunha, também no século IV, ao rebanho
dirigido por ele na cidade Neo-testamentária de Antioquia:
Venham, venham, pois não é um artista, não é um atleta ou
um retórico que vou fazer vocês ouvirem. É um homem cuja
voz ressoa como a do trovão no céu. O universo tornou-se
cativo dessa voz inspirada pela graça. Além de encher o
mundo, ela é repleta de uma harmonia celestial indescritível.
Esse filho do trovão, que Jesus amou, que é uma das colunas
da Igreja na terra, que bebeu do cálice de Jesus, que viu abrir-
se o céu e que descansou sobre o seio de seu Mestre, vem
hoje até vocês. Um grande correr de cortinas celestiais, um
portentoso rasgar de véus vai começar. O céu inteiro é a cena
e os crentes em Jesus Cristo reunidos em sua Igreja sobre a
face da terra serão os espectadores.
Porém, não devemos esquecer que João é um homem sem
ciência e sem letras, um pescador de Betsaida, o filho de
Zebedeu. Que nos poderá dizer este homem da Galiléia que
só conhece a sua pesca? Não irá nos falar de redes e de
peixes? Não, ele nos falará unicamente de coisas celestes
ignoradas antes dele. Esse homem que bebeu sua sabedoria
nos tesouros do Espírito Santo, vai fazer empalidecer todos os
pensamentos sublimes de Aristóteles e de Platão.
O que o leitor passará a ler é, além de um livro biográfico, um livro
de doutrina, útil a todos os que tiverem interesse em instruir-se na
verdade. Em lugar algum a Verdade se revela de maneira superior à
maneira como ela está no Evangelho, e em parte alguma ela se mostra
mais profunda e mais bela do que no Evangelho e na vida de João.

1ª parte

Convivendo fisicamente com o Filho do


Homem
CAPÍTULO 1 - REENCONTRANDO AS PEGADAS DO EVANGELISTA

Betsaida, a cidade onde João nasceu A alguns quilômetros de


distância de Nazaré, sobre um monte às margens do lago de Tiberíades,
até o início do século 20 era possível ver os restos de grandes ruínas
paralelas à costa. Vários blocos de pedra bruta indicavam que ali existira
uma grande cidade. Dois blocos se destacavam entre aquelas ruínas.
Um deles representava os restos de um edifício de pequenas
dimensões, situado perto da praia, apresentando colunas e pilastras mais
antigas que os muros. O outro era um monumento de grande extensão,
do qual só restavam duas muralhas prestes a cair, porém
ainda ornamentadas de belos fragmentos, de capitéis coríntios, mutilados
e estendidos confusamente na relva que os ocultava.
O local daquelas magníficas ruínas apresenta-se hoje desolado e
morto. Durante muito tempo o lago de Tiberíades banhou tristemente o
que restou daquelas construções amontoadas ou esparsas na margem.
Porém ali existiu Betsaida, cidade onde nasceram os apóstolos João e
seu irmão Tiago. O próprio nome Betsaida não foi conservado até os
nossos dias. Vários séculos depois da morte de João, os turcos que se
apossaram da Palestina deram ao lugar o nome de Tell-Houm.
Beit significa casa, e Saindoun significa pesca. Betsaida tinha,
portanto, seu nome derivado da principal atividade de seus habitantes —
a pesca. Suspensa sobre o golfo mais setentrional do mar da Galiléia,
Betsaida se destacava entre dois dos maiores símbolos do infinito: as
montanhas e as águas. As montanhas formam, dos despenhadeiros de
Gilboé às primeiras colinas do Líbano, um vasto panorama que se abre
aqui e ali para melhor mostrar o céu. O lago, que não tem mais de 20
quilômetros de circunferência, fica ao pé dessas colinas. Suas águas
célebres banhavam Tiberíades, Corazim, Cafarnaum — nomes históricos
e benditos, que comovem o nosso coração.
Nessa praia estavam espalhadas dez cidades, constituindo o que
os antigos chamavam de Decápolis. Como último elemento desse cenário
grandioso, e formando a moldura do quadro, podia-se ver, ao oriente, o
deserto que se estende pela Ituréia, Abilene e Traconites. Ao sul está o
Jordão, que sai do lago para descer pelo vale do Hinom. Ao ocidente
ficam a planície de Esdrelom e o monte Tabor, sobre o qual todas as
tardes o sol descansa e desaparece.
Uma magnificência de natureza mais elevada estava reservada
àquela região que Deus ia consagrar com sua presença, e que foi o berço
do seu grande evangelista. O historiador judeu Flávio Josefo conta que
Felipe, tetrarca da Galiléia, embelezou Betsaida de tal forma que ela
perdeu suas características judaicas. É por isso que enquanto Marcos a
denomina de aldeia (Mc 8.23), Lucas a chama de cidade (Lc 9.10).
O embelezamento realizado pelo tetrarca Felipe teve um caráter
profano. O tetrarca quis adaptá-la aos costumes das nações pagãs, e
para que Betsaida nada conservasse de sua origem, Felipe trocou o seu
nome para Júlias, em homenagem à Júlia, neta do imperador Augusto.
Assim transformada, e situada no caminho da Síria para o Egito, Betsaida
foi pouco a pouco sendo invadida pela influência romana. Muitos
milionários construíram nela suas mansões e vilas de veraneio. A cidade
passou a ser um ponto de encontro para negócios e lazer.
Porém, à sombra da população rica, flutuante e soberba que
chegava e saía de Betsaida, havia uma população simples, austera,
laboriosa, que protestava energicamente contra as novas idéias e os
novos costumes que circulavam na cidade. Essa população era compos-
ta, sobretudo, de pescadores do lago, e os seus dias transcorriam
distanciados dos homens soberbos e mais próximos de Deus.
Zebedeu, seu pai

Foi entre essas pessoas de trabalho árduo e de fé inflexível que


Jesus escolheu dois irmãos para incluí-los entre seus apóstolos. Zebedeu
era o chefe da família. Alguns antigos comentaristas levantaram a
hipótese de Zebedeu ter sido parente de José, o pai adotivo de Jesus.
Porém isso ficou só na hipótese, pois nenhum dos quatro evangelhos
fornece qualquer elemento que o confirme.
Zebedeu era pescador. Convém não esquecer que, para os judeus,
ser pescador era tido como uma honra quase religiosa. O costume
nacional e os ensinamentos dos rabinos faziam do trabalho manual um
dever cuja obrigação incluía até os mais elevados sábios e chefes
judaicos. Os rabinos exigiam que todos os letrados soubessem um ofício
manual. O rabino Gamaliel, em seu livro Hoad, ordenava isso. O ilustre
rabino Jochana foi alfaiate; o rabino Judas Levi foi pescador. No antigo
oriente, o trabalho manual era um costume e uma lei.
Zebedeu possuía uma barca no lago de Tiberíades da qual ele era o
patrão. Às vezes associava-se com outra família de pescadores, cujo
chefe se chamava Jonas, pai de Simão Pedro e de André. Consta que
desde essa época reinava grande união entre essas duas famílias que o
apostolado ia tornar dali por diante inseparáveis. Tiago e seu irmão João
eram companheiros de pesca de Pedro (Lc 5.10). Outras vezes Zebedeu
era ajudado na pesca por pessoas a quem ele pagava.
Por esta circunstância e outras análogas é que observadores
consideravam essa família de pescadores como gozando de um certo
bem-estar. Porém, na realidade a maior fonte de riqueza daquela família
era o trabalho. Deus não procura fortuna naqueles que Ele resolve
convidar para o seu apostolado. Ele também não excluiu os ricos nem os
grandes. Porém, geralmente as suas escolhas estão do outro lado. Se
houver em qualquer parte, mesmo que seja no oculto de um casebre, em
uma rua de uma aldeia perdida, atrás de uma montanha ou no fundo de
um bosque alguém que tenha desejo sincero de servi-lo, é lá que ele fará
a convocação para sua Seara; é lá que ele derramará sobre a cabeça
desse servo a unção que o capacitará para Sua obra.
Dois filhos de Zebedeu exerciam com ele o ofício de pescador,
passando a noite no lago, trabalhando pesado, enfrentando às vezes
perigosas tempestades, e descendo de dia com ele à praia a fim de
negociar o peixe e consertar as redes. O mais velho dos irmãos chamava-
se Tiago. Nos evangelhos ele é designado por Tiago "o maior" para ser
distinguido do outro Tiago, filho de Alfeu, denominado "o menor". O filho
mais moço de Zebedeu chamava-se João. É a sua história que vamos
contar aqui.
Na língua hebraica João significa beleza, graça divina, amor. Vários
outros personagens da história de Israel já haviam usado esse nome,
mas o filho de Zebedeu é quem estava destinado a torná-lo imortal. Além
da instrução religiosa que os judeus recebiam na sinagoga, onde o rabino
explicava ao povo a lei de Deus, não consta que João tivesse sido
iniciado no estudo das ciências humanas liberais. Falando dele em Atos
dos Apóstolos, Lucas chama tanto a ele como a Pedro de "homens sem
letras e indoutos" (Atos 4.13).
O idioma dos galileus era o aramaico, que passara a ser falado em
toda a Palestina desde o tempo do retorno do cativeiro. Porém, o grego
também se tornara tão comum na "Galiléia das nações" que João pôde
em poucos anos entendê-lo e até falá-lo. Não era por certo o grego das
altas escolas, cheio de arte e de tons delicados, tal qual o falavam em
Atenas e Alexandria. Era o grego comum, conforme o chamavam, o grego
koinê. Um grego "com ares de bárbaro", mais simples, mais popular,
mesclado de locuções locais, sobrecarregado de fórmulas hebraicas e do
esplendor helênico. Porém um dia os elementos brutos dessa língua, sob
a ação do fogo sagrado do Pentecostes, traçarão o perfil da figura divina
de Jesus Cristo, e se tornarão a língua do Evangelho de João.

Salomé, sua mãe

A mãe de João era aquela generosa Salomé que mais tarde


veremos acompanhando os passos de Jesus durante seu ministério
(Marcos 15.40; 16.1). Nada prova, porém, como pretendem alguns
autores, que Salomé, mãe de João, fosse parente ou mesmo irmã de
Maria, mãe de Jesus. Mas o Evangelho nos faz entender que suas almas
ao menos eram da mesma família. Houve um episódio em sua vida que
nos forneceu traços visíveis de seu caráter e do seu coração. Foi quando
ela se aproximou de Jesus para interceder pelos seus filhos, solicitando
para eles um lugar de honra junto ao Rei de Israel (Mateus 20.20-21).
Veremos Salomé mais tarde no monte Calvário. Porém, naquela
hora suprema ela não passou de uma mãe cristã. Ela reconheceu que o
verdadeiro trono do Rei das dores era uma cruz, e ao ver seu filho João
ao pé daquele trono sangrento, no primeiro lugar que tinha pedido para
ele, ela certamente se posicionou ao lado do filho e ficou ali até o fim,
conservando a fidelidade mais generosa, aquela que sobrevive à morte e
que, desfeita em lágrimas, fica junto ao túmulo.
Tendo tido, portanto, uma origem modesta, uma aldeia por pátria,
um pescador por pai, uma mulher generosa por mãe, e por única riqueza
uma barca, assim foi o evangelista João. Porém, será dessa simplicidade
que Deus fará brotar o grande evangelista e o visionário de Patmos.

O João que batizava

Por aquela mesma época outro homem chamado João, o precursor


de Jesus, filho de Zacarias e de Isabel, começou a pregar o batismo do
arrependimento às margens do rio Jordão. Ele não ostentava a pompa
arrogante dos que habitavam a casa dos reis. Sua vida era rigorosa, a
alimentação muito simples, a vestimenta grosseira, e ele próprio era ainda
mais austero que sua pregação.
Desde o seu nascimento João Batista tivera uma consagração
divina. Muito cedo a mão de Deus o arrastou ao deserto desolador e
grandioso, que se estende acima do mar Morto. Ali, diante da severa
cadeia de montanhas de Moabe, contemplando as grandezas terríveis
daquele país abatido, ele se preparou, sob o olhar de Deus, ao ministério
dos profetas. O próprio Filho de Deus declarou que, entre os nascidos de
mulher, nenhum era maior que João.
Por isto, desde que se fez ouvir "a voz que clamava no deserto",
grande número de israelitas se achegaram a João para escutar sua
pregação e confessar-lhe os pecados. Porém, além dessa multidão atenta
e faminta, João Batista tinha a seu lado seus discípulos, conforme o nome
dado pelo Evangelho aos seus ouvintes mais fiéis e mais assíduos. Estes
se haviam apegado ao profeta e até o ajudavam no seu ministério
sagrado, batizando a multidão. João Batista edificava-os na vida de
santidade, ensinando-lhes a orar, iniciando-os nos mais profundos
mistérios da fé, preparando-os assim para as próximas revelações do
Reino dos céus.
João, filho de Zebedeu, foi um desses discípulos. Não foi preciso ao
jovem galileu deixar seu pai nem sua barca. O ano em que João Batista
começou a pregar no Jordão era um ano sabático ou de "repouso
universal", e por isso João teve tempo suficiente para ir com André ouvir
as lições do mestre. Quando mais tarde ele se tornar apóstolo e
evangelista, nós o veremos começar a narrativa da vida de Jesus pelo
magnífico capítulo do "Testemunho de João." Essas cenas preliminares
das margens do Jordão, especialmente circunstanciadas e
minuciosamente expostas em seu livro, não poderiam ser relatadas com
mais autoridade e mais fidelidade senão por aquele que as havia
presenciado.
As primeiras lições que o filho de Zebedeu aprendeu na escola de
João Batista foi sobre Jesus Cristo, o Filho de Deus. Enquanto outros
historiadores comentaram os aspectos exteriores da pregação do
Precursor, o apóstolo penetrou mais além no ensinamento do
mestre, retendo e assimilando especialmente as respostas que João
Batista dava a seus discípulos sobre aquele que devia ser o Redentor de
Israel.
João Batista dizia que não era mais que o Precursor, alguém
semelhante aos batedores que no Oriente tinham o costume de caminhar
adiante dos soberanos a fim de afastarem qualquer obstáculo que por
acaso surgisse no caminho real. Declarava também ser tão-somente o
paraninfo que se coloca em segundo plano ao lado do esposo para
honrá-lo e servi-lo na festa nupcial. Narrando esses fatos, João torna bem
saliente o quanto o coração de João Batista estava desde então
preparado para a adoração daquele que havia de vir.
Vós mesmos me sois testemunhas de que disse: eu não sou o
Cristo, mas sou enviado adiante dele. Aquele que tem a
esposa é o esposo; mas o amigo do esposo, que lhe assiste e
o ouve, alegra-se muito com a voz do esposo. Assim, pois, já
essa minha alegria está cumprida. É necessário que ele
cresça e que eu diminua. Aquele que vem de cima é sobre
todos, aquele que vem da terra é da terra e fala da terra.
Aquele que vem do céu é sobre todos. E aquilo que ele viu e
ouviu, isto testifica; e ninguém aceita o seu testemunho.
Aquele que aceitou o seu testemunho, esse confirmou que
Deus é verdadeiro. Porque aquele que Deus enviou fala
as palavras de Deus, pois não lhe dá Deus o Espírito por
medida. O Pai ama o Filho e todas as coisas entregou nas
suas mãos. Aquele que crê no Filho tem a vida eterna, mas
aquele que não crê no Filho não verá a vida, mas a ira de
Deus sobre ele permanece. (João 3.28-36)
Eram estas as revelações que o futuro evangelista do Verbo recebia
a respeito do Messias de Israel, antes mesmo que visse a beleza de sua
face. Aqueles que, maravilhados pela divina luz que irradia de seu
Evangelho, têm procurado saber em que escola filosófica do Oriente, do
Egito ou da sábia Grécia aprendera ele essa alta doutrina, devem
simplesmente lembrar-se que ele era discípulo do Precursor. João, o
Evangelista, herdou-a de João, o Profeta. E João, o Profeta, aprendera-a
na escola daquela que, trazendo-o ainda no seu ventre, dissera à Maria:
E de onde me provém isso a mim, que venha visitar-me a mãe
do meu Senhor? (Lucas 1.43)
A escola de João não é, portanto, a escola de Atenas ou de
Alexandria, de Platão ou de Filon. É a escola de João Batista, de Isabel,
de Maria, a escola do anjo da Anunciação, a escola do próprio Céu.

CAPÍTULO 2 - ELEITO DISCÍPULO DO MESTRE

Já fazia um ano que João Batista estava pregando, anunciando a


magnificência mais que humana daquele "que estava entre os homens,
mas que os homens ainda não conheciam". Porém, João Batista o
reconhecera à margem do rio Jordão, e dava disso testemunho dizendo:
Eu vi o Espírito descer do céu como uma pomba e repousar
sobre ele... E eu vi e tenho testificado que este é o Filho de
Deus (João 1.32,34)

O dia em que João viu Jesus

O filho de Zebedeu ainda não o tinha visto, mas tudo o que ouvia
dizer desse Mestre extraordinário aumentava cada vez mais o desejo de
conhecê-lo, e despertava no seu coração os primeiros indícios daquele
amor que ia tornar-se inseparável do seu nome.
A escola de João Batista era para seu discípulo uma escola de
doutrina superior e celestial, e ao mesmo tempo o aprendizado de uma
vida santamente contrita. Seguindo o exemplo do mestre, dedicou-se ao
nazireado, exercício de santidade em que os judeus se consagravam
mais particularmente a Deus, fazendo voto de abster-se de bebida
fermentada, não tocando em cadáver e deixando crescer intacta a
cabeleira (Números 6.1-8).
Acredita-se que João também tenha recebido o batismo do
Precursor. Porém, aquele batismo tinha sido só uma preparação para o
batismo daquele que batizaria com o Espírito Santo e com fogo. E João
Batista bem compreendera isso. Ele preparara o caminho do Senhor, e
tornara retas as suas veredas: o Senhor podia vir.
Jesus Cristo, Filho de Deus, apareceu às margens do Jordão no
15º. ano do reinado de Tibério, o 30º. da era cristã, e, segundo cálculos
de sábios cronologistas, no começo da primavera.
Havia ali um lugar que os judeus chamavam de Betábara, e que o
Evangelho chama de Betânia ou "casa dos navios". Fora naquele lugar
que outrora os judeus, guiados por Josué, tinham atravessado o Jordão.
Era costume os barcos que navegavam pelo Jordão fazerem uma parada
naquele lugar. Como aquela praia era muito freqüentada por causa do
movimento dos barcos, João, filho de Zacarias, batizava ali.
Naquele dia João Batista tinha junto de si só dois de seus
discípulos. O evangelista João diz que um deles era André, irmão de
Simão Pedro. Mas não revela quem era o segundo. Porém, conhecendo-
se o seu costume de nomear a todos e não se incluir por uma questão de
modéstia, conclui-se que o segundo discípulo era o próprio evangelista
João.
João conservou na memória todos os pormenores sobre o
aparecimento de Jesus às margens do Jordão. Foi, diz ele, na décima
hora depois do nascer do sol. Isso correspondia mais ou menos às quatro
ou cinco horas da tarde. Essa era a hora em que os sacerdotes do
Templo de Jerusalém ofereciam o sacrifício da tarde, imolando um
cordeiro (Números 28.4). Vendo aparecer diante dele o divino Salvador
Jesus naquela hora solene do sacrifício da tarde, João Batista aproveitou
a ocasião para apontar para ele e dizer aos dois discípulos:
Eis aqui o Cordeiro de Deus (João 1.36).
Foi esse o nome pelo qual João, filho de Zebedeu, aprendeu pela
primeira vez a conhecer Jesus. Ele jamais o esquecerá. A designação
"Cordeiro de Deus" aparecerá mais tarde nos escritos do evangelista e
nos escritos do profeta de Patmos. E veremos nisso uma lembrança
daquele grande dia, e como que uma herança de João Batista, seu
primeiro mestre.
Não era possível dar ao Filho de Deus que se fizera homem um
nome que definisse sua pessoa e sua missão na terra com mais vivo
esplendor.
Jesus Cristo é o Cordeiro e o Santo de Deus. Nele não há mácula
alguma. Nele só há inocência. Esse Ser absolutamente puro, que desde o
pecado original não era neste mundo senão um sentimento e uma
lembrança, desceu do seio de Deus para andar entre nós.
Conhecendo o Cordeiro de Deus

O Cordeiro, que é a santidade, é também a doçura. Ei-lo! Ele veio


não com o espírito atemorizante com que já outrora abalara o topo do
Sinai. Não está mais prevalecendo a lei do temor, e sim a lei da graça. Ele
não está mais ali na condição de Leão de Judá, mas sim de o manso
Cordeiro de Deus. Veio inaugurar o reinado do Amor, e como o maior
amor é o dom da própria vida, eis que esse nome de Cordeiro, símbolo da
santidade, emblema da doçura, irá significar agora a vítima do sacrifício.
Há muitos séculos que o mundo culpado implorava à virtude um sangue
imaculado que o resgatasse e satisfizesse a Deus. Desta vez o sacrifício
será digno do Senhor, pois a vítima será o próprio Filho de Deus.
Também de agora em diante não haverá outro sacrifício sobre os
altares da terra senão este. Quando Deus estiver irritado, quando os
corações estiverem à míngua e clamarem pela vida, será esta mesma
vítima que há de abrandar a Deus.
E quando em Patmos o céu se abrir sobre a cabeça de João, o
evangelista, ele poderá entrever o Cordeiro, a vítima que foi oferecida
desde o começo, que ele viu pela primeira vez nas margens do rio
Jordão, que ele viu imolada no Calvário, e que o anjo lhe mostrará na
visão de Patmos, coroada e gloriosa. Os dois discípulos, ouvindo pela
primeira vez João Batista apresentar Jesus, compreenderam que se
tratava do Messias, e decidiram seguir esse novo Rei. E imediatamente
passaram a andar com ele ao longo do rio. Tendo consciência de serem
tão simples e tão rústicos, temiam aproximar-se dele e conservavam-se à
distância por timidez e respeito. Mas Jesus, voltando-se e vendo que eles
o seguiam, perguntou-lhes: Que buscais? (João 1.38)
A bondade, a beleza, a majestade da face adorável de Cristo que
lhes aparecia pela primeira vez, logo os conquistou. Jesus perguntou-lhes
o que eles procuravam. Mas haverá no mundo alguma coisa que se
possa ainda tentar achar depois que se viu o rosto de Jesus? Eles nada
mais queriam, e num ímpeto responderam: Rabi, onde moras? (v. 38).
Este nome de "mestre" era já uma promessa de que lhe
pertenceriam.
Vinde e vede (v.39), Jesus respondeu. Foram e viram onde habitava
aquele que criou todas as coisas, mas que viverá neste mundo tão isento
delas, que no decorrer do seu ministério declarará que não tem sequer
uma pedra onde apoiar a cabeça. E ficaram em companhia dele o
restante daquele dia. Porém, o que viram, o que acharam naquele que
encontraram? Certamente a beleza divina se manifestou a eles em todo o
seu esplendor.
Seria alguma beleza capaz de arrebatar o olhar? Não. Era a beleza
incorruptível da justiça, da santidade, da virtude; beleza que o olhar
interior pode sempre perceber, e que impressiona tanto quanto mais puro
for esse olhar. Ora, João era puro.
Segundo suposição muito bem respaldada dos grandes estudiosos,
João tinha naquela época uns 25 anos, idade em que o homem se dedica
a buscar um relacionamento profundo com Deus e a conhecê-lo melhor.
A noite chegara. Os discípulos e o Mestre tinham ficado juntos o dia
inteiro. De acordo com o método de contagem do tempo utilizado pelos
judeus, a expressão "o dia inteiro" também abrangia a noite. A conversa,
começada no fim do dia, continuou noite adentro. Passaram toda ela em
íntima palestra, e João e seu amigo puderam desvendar algo dos
ministérios do Reino dos céus.
Grandioso dia, grandiosa noite para aqueles que os passam com
Jesus Cristo em sua casa! "Senhor, onde habitas? Por favor, diga-me
onde é a tua morada para que eu possa também fixar nela a minha. Só
desejo unir-me a ti, ó Senhor". "Ó, venha e veja!" Quão doces são estas
palavras, e como é bom saber onde Jesus habita!
Da parte de nosso Senhor Jesus Cristo, aquelas horas conversando
com João e André representaram um ato de eleição.
Nós o amamos porque ele nos amou primeiro (1 João 4.19) João
dirá um dia. Foram os primeiros passos admiráveis na direção do Senhor,
que resultaram em atenções misteriosas e que só serão conhecidas por
homens resolvidos a procurar Deus e a entregar-se a ele.
Irineu, que foi da mesma escola e quase do mesmo tempo em que
João viveu, conta que nos últimos anos de sua vida, João ainda se
recordava de tudo:
— Todos os anciãos que cercavam João na Ásia afirmavam que
João contava freqüentemente como Jesus, na idade de trinta anos, se
revelara primeiramente a ele e a André, e lhes ensinara coisas
maravilhosas. Alguns ouviram isso não só através do próprio João, mas
também pelos outros discípulos, que deram disso pleno testemunho.
Entre esta eleição misteriosa de João e sua vocação ao apostolado
de Jesus Cristo ocorreram alguns acontecimentos notáveis. Entre os
evangelistas, só João os relatou, porque só ele os testemunhou. Fazem
parte da sua particular história com o seu divino Mestre.

"Achamos o Messias!”

Estes acontecimentos ocorreram na Galiléia. A notícia do encontro


dos dois discípulos de João Batista com o Salvador não tardou a
espalhar-se entre os pescadores do lago de Genesaré. André, o
companheiro de João naquelas inesquecíveis horas passadas em
companhia de Jesus, não pôde calar a sua felicidade, e assim que
retornou e encontrou Simão Pedro, seu irmão, disse-lhe: Achamos o
Messias (João 1.41) e em seguida levou seu irmão para conhecer o
Mestre. E Jesus impressionou profundamente Pedro ao dizer-lhe:
Tu és Simão, filho de Jonas; tu serás chamado Cefas — que
quer dizer Pedro. (João 1.42)
No dia seguinte é a vez de Felipe, também de Betsaida. O Senhor
se aproxima dele e o convence a segui-lo. Por sua vez Felipe encontra
Natanael, seu amigo, e informa-o que acabou de descobrir aquele que
Moisés e os profetas anunciaram. Natanael duvida:
Pode vir alguma coisa boa de Nazaré? (João 1.46).
Mas Jesus vira esse bom israelita quando ele ainda estava debaixo
da figueira. Lembra-lhe a hora, as circunstâncias e talvez alguns
segredos. Subjuga-o ainda mais pelo amor do que pela luz, e o discípulo
vencido adora o Mestre, o Filho de Deus, o Rei prometido a Israel (João
1.49).
Tal é a narrativa de João, tais são as reticências do princípio da vida
que ele passou junto de Jesus, na sua aldeia, no meio de seus irmãos e
companheiros, convertidos como ele. Mil particularidades pessoais,
alusões locais, a simplicidade da descrição e um tom de verdade
realmente inimitáveis dão a essa narrativa o mesmo interesse e encanto
de sinceridade que a presença da testemunha dá às memórias íntimas.
Enquanto os outros historiadores se contentam em relatar a
vocação definitiva desses pescadores do lago, o apóstolo João, como
testemunha ocular, nos conduz preliminarmente à conversão deles. É ele
o historiador dessas conversões por ter sido a primeira conquista. Foi
dele, foi de André, foi de Betânia e em seguida de Betsaida que partiu a
vibração das ondas de poder que em breve irão agitar todos os recantos
do mundo.

A água transformada em vinho

A primeira reunião desses discípulos e a primeira manifestação da


glória do Senhor Jesus são da mesma época, e é a mesma testemunha
que nos conta isso. Natanael, que acabara de reconhecer em Jesus o
Messias, morava na aldeia de Cana, a moderna Kafar-Kenna, distante
quase cinco quilômetros de Nazaré, e a pequena distância de Betsaida.
Celebrava-se um casamento em uma família daquele lugar. Talvez
os noivos fossem parentes de Natanael ou do próprio Jesus. O fato é que
Jesus, os primeiros discípulos e Maria foram convidados. Jesus e os que
o acompanhavam eram apenas seis pessoas, todas da mesma região, de
condição igualmente humilde, unidos por aquela intimidade que encerrava
as sementes da universalidade da futura Igreja cristã.
Um jantar familiar durante um casamento inaugura o novo Reino,
assim como uma ceia de despedida deverá coroá-lo. Jesus começou por
mudar a água em vinho, assim como um dia o veremos usar o vinho
como símbolo do seu sangue. Aquele milagre já prefigura a
transformação da água da antiga lei no vinho evangélico que vai inebriar
as almas em núpcias divinas. E essas almas começarão a maravilhar-se
por ele.
Jesus principiou assim os seus sinais em Cana da Galiléia e
manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram nele, João 2.11.
Ali terminava a vida oculta de Jesus. Quando pela primeira vez
João encontrou Jesus Cristo nas margens do Jordão, ele o tinha
admirado e amado como Mestre. Mas agora, nesta segunda
manifestação de sua glória, nas bodas de Caná, João crê nele, e já o
adora como Deus. Está subjugado, conquistado para sempre.

A escolha dos Doze

Tinha chegado a hora de Jesus organizar o grupo de seus


discípulos. Se Jesus tivesse consultado os mais simples princípios da
prudência humana, teria procurado para o acompanhar no seu ministério
terrestre pessoas que se equiparavam aos três reis que se haviam ajoe-
lhado diante dele, ou aos doutores a quem ele havia maravilhado no
Templo. Ou bastava falar a seu Pai para que uma legião de anjos
baixasse à terra. Se ele tivesse agido assim, não teria ido buscar seus
colaboradores em barcos de pesca.
Porém, se ele não tivesse escolhido como seus discípulos aqueles
simples pescadores, sua obra teria sido puramente humana, e não teria
se revestido de uma ternura infinita e de uma força divina. Eis porque o
Senhor só abriu o seu coração, com raríssimas exceções, aos ingênuos,
aos pobres e aos pequeninos. Ele lembrou-se sempre daqueles que o
tinham inicialmente amado. Por isso foi que ele, abandonando os palácios
e as escolas, desceu à praia do mar da Galiléia.
Jesus, andando ao longo da praia, viu dois irmãos, Simão,
chamado Pedro, e André, os quais lançavam as redes ao mar,
porque eram pescadores. E disse-lhes: Vinde após mim, e eu
vos farei pescadores de homens. (Mateus 4.18)
Em seguida foi a vez de convocar oficialmente João e seu irmão
Tiago:
E, adiantando-se dali, viu Jesus outros dois irmãos: Tiago,
filho de Zebedeu, e João, seu irmão, num barco com
Zebedeu, seu pai, consertando as redes; e chamou-os. Eles,
deixando imediatamente o barco e seu pai, seguiram-no.
(Mateus 4.21-22)
João abandonou suas redes. Aliás, para seguir a Jesus foi
necessário deixar tudo, romper com tudo, tudo sacrificar a Deus.
Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de
mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é
digno de mim. (Mateus 10.39)

Eleito discípulo do Mestre

De quantas almas essa renúncia de João ia tornar-se a história, e


que reinado de consagração a ele Jesus Cristo inauguraria neste mundo!
CAPÍTULO 3 - EDUCADO NA ESCOLA DE JESUS

Jesus, tendo escolhido João e Tiago, tornou-os definitivamente seus


companheiros. Porém, Salomé não quis separar-se de seus filhos. É por
isso que a vemos seguindo os passos de Jesus juntamente com outras
mulheres da Galiléia. Elas se ocupavam com a subsistência do Mestre e
recebiam suas lições.
O apostolado para o qual o filho de Salomé tinha sido convidado
deveria ser o instrumento de salvação do mundo. Mas era preciso que
antes esses rudes pescadores sofressem uma transformação completa. A
eles, sim, caberia o trabalho de propagar o evangelho por toda a terra.
Pois o objetivo de Jesus não era realizar diretamente, por si mesmo, a
obra sobrenatural da conversão da humanidade.
Durante toda a sua vida, o divino Pastor só teve no seu rebanho
algumas raras ovelhas do redil de Israel. Em três anos de pregação, de
grandes exemplos e de milagres, o Mestre só conseguiu reunir ao seu
redor doze apóstolos e setenta e dois discípulos. Isto prova muito bem
que ele não foi e não quis ser, durante sua estada neste mundo, um
grande ganhador de almas. Como ele mesmo declarou algumas vezes,
seu trabalho não era propriamente colher e sim semear. Ele semeou, e
em seguida deixou ao tempo o cuidado de fazer brotar as sementes. O
trabalho de colher e dar continuidade à semeadura caberia aos apóstolos.
Somente depois de sua Ascensão, precisamente no dia de Pentecostes, é
que começaria a pregação geral, universal.
Ele constituiu os apóstolos primeiramente com uma grande
autoridade e poder doutrinário, por ele assistido até a consumação dos
séculos.
Quem vos recebe a mim me recebe; e quem me recebe a
mim, recebe aquele que me enviou. (Mateus 10.40)
Assim que reuniu aquele pequeno exército e o armou com sua
autoridade, Jesus quis fazer com eles um pequeno treinamento,
mandando-os dois a dois às ovelhas de Israel. Aquela missão de algumas
semanas proporcionou-lhe ocasião de resumir suas instruções sobre o
ministério confiado àqueles singulares evangelizadores do mundo.
Deveria ser principalmente um ministério de pobreza e renúncia. Eles
foram aconselhados a não possuir nem ouro, nem prata, nem duas
túnicas, nem alforges, nem bordão. Deveriam dar de graça o que de
graça haviam recebido.
Tinha de ser fundamentalmente um ministério de amor. Eles
estavam sendo enviados para curar os doentes, libertar os cativos de
espíritos imundos, ressuscitar mortos e levar a paz de Deus a toda a casa
onde entrassem. Enfim, deveria ser um ministério de sacrifício, de
imolação, e Jesus insistia neste ponto igualmente doloroso e fecundo do
seu apostolado:
Acautelai-vos, porém, dos homens, porque eles vos
entregarão aos sinédrios e vos açoitarão nas suas sinagogas;
e sereis até conduzidos à presença dos governadores e dos
reis, por causa de mim, para lhes servir de testemunho, a eles
e aos gentios. (Mateus 10.17-18)

Na escola do Mestre dos mestres

Sob a liderança do incomparável Mestre dos mestres Jesus, havia


sempre uma escola pública para as multidões à beira dos lagos, na
vertente das colinas da Galiléia, no deserto imenso, ou nas galerias do
templo de Jerusalém. Jesus ensinava até as sombras da tarde se
transformarem em noite, e até a multidão, edificada, curada e abençoada,
voltar para as aldeias. Então o Mestre ficava só, rodeado de seus
apóstolos. Era quando eles lhe perguntavam:
— Mestre, o que significa para nós esta parábola?
Jesus então abria os lábios e lhes ensinava. Não havia mais
mistérios, não havia mais dúvidas. Era a verdade pura, a verdade plena
fluindo de sua fonte. Então os discípulos concluíam:
Eis que, agora, falas abertamente e não dizes parábola
alguma. Agora, conhecemos que sabes tudo e não precisas
de que alguém te interrogue. Por isso, cremos que saíste de
Deus. (João 16.29,30)
Tal era a escola íntima do Mestre da verdade.
Escola extraordinária, plenamente alicerçada no amor. Essa escola
não tinha só por alicerce o espetáculo de milhares de pessoas
milagrosamente saciadas com alguns pães e alguns peixinhos, ou a
grandiosa cura de enfermos ao longo das estradas que causava a
admiração nas multidões, ou a ressurreição de um adolescente, cujo
cortejo fúnebre Jesus faz parar. Mas destacava-se especialmente pela
atenção toda especial que Jesus dava ao pedido de um pai que lhe pedira
para ir até sua casa curar sua filha enferma; ou pelos sentimentos de um
pai que não tinha certeza se Jesus se interessaria em libertar seu filho
possesso; ou o caso de uma pobre mulher, que por causa da febre não
pôde se apresentar diante do médico celeste. Jesus fez então recuar o
povo. Porém, entre os apóstolos, nem todos são admitidos ao privilégio
de contemplar esses milagres.
No seio dessa intimidade, há um lugar especial para o apóstolo
João. Nos evangelhos há duas figuras que predominam e se destacam
das outras por sua originalidade: Pedro e João. Ambos eram amigos do
Mestre. Mas, conforme observou um autor antigo, nessa amizade existia
uma pequena diferença: "O imperador Alexandre dizia que entre dois de
seus amigos havia uma marcante diferença: um amava a Alexandre, o
outro amava ao Rei. Poderíamos dizer o mesmo dos dois discípulos:
Pedro era amigo do Messias, enquanto João era amigo de Jesus".
João não era somente o amigo íntimo de Jesus. Era "o discípulo a
quem Jesus amava", conforme ele próprio se designava no Evangelho. O
Senhor o honrou com suas confidencias. No momento de seus maiores
milagres, João foi admitido ao seu lado para ali ser o exemplo de amor.
Em suas mais elevadas lições ou em suas mais edificantes conversas, foi
João que esteve presente para aprender a doutrina da verdade e colher
as provas de sua divindade.
Assim João se formou na escola de Jesus. Se a educação de uma
criança realizada por um homem é coisa excelente, poucas coisas
existem mais dignas de louvor do que contemplar Deus em pessoa
dedicando-se a polir o seu apóstolo, talhando-o no mármore da verdade,
revestindo-o com o sopro do seu Espírito, aquecendo-o em seu próprio
seio, elevando-o gradualmente até aquela semelhança divina.
Foi na Galiléia que João e os discípulos receberam as primeiras
lições sobre o Evangelho; e foi para os seus amigos que Jesus reservou,
junto com os primeiros frutos de sua graça, as primeiras lições sobre o
amor divino.

A manifestação do poder de Deus

Logo nas primeiras páginas dos evangelhos de Marcos e Lucas,


lemos que o Senhor foi com os discípulos para Cafarnaum. Naquela
cidade, Pedro, que era casado, tinha casa e família. Sua sogra estava
doente. Na companhia de Jesus estavam Tiago, João, Pedro e André. Foi
sob o olhar atento de todos eles que Jesus, aproximando-se do leito onde
jazia aquela mulher enferma e febril, estendeu-lhe a mão e ordenou-lhe
que se levantasse. No mesmo instante a doente ficou curada, e
levantando-se preparou-lhes uma refeição. O Senhor havia colocado o
seu poder a serviço da amizade, e era com esses laços que sua bondade
atava ao seu carro triunfal aquele pequeno grupo de pescadores.
Porém, isto foi apenas um prelúdio das maravilhas que estavam por
acontecer. Naquele primeiro ano de pregação de Jesus, quando ele e
seus discípulos estavam junto ao lago aproximou-se dele um homem.
Chamava-se Jairo, e era chefe da sinagoga de Cafarnaum. Jairo
lançou- se aos pés do médico celestial, pois sua filha de 12 anos estava
morrendo.
Jesus imediatamente atendeu àquele pedido de socorro. Porém, só
três discípulos privilegiados deviam assistir ao milagre que se preparava.
O Mestre chamou João, Pedro e Tiago, e com eles seguiu para a casa da
menina agonizante. No caminho souberam que a menina acabava de
expirar. Já em torno da casa ouvia-se a música fúnebre, que, segundo o
costume da época, devia rodear de encantos a alma que havia partido.
Algumas pessoas disseram ao Messias que ele deveria dar meia-volta,
pois sua presença não era mais necessária ali. Os pais da menina
estavam em desespero. Porém, as horas de desespero são as horas de
Deus.
Jesus, Pedro, Tiago e João entraram naquela casa, seguindo o pai
e a mãe da criança. Então, todo o poder do Céu e toda a ternura da terra
se inclinaram sobre aquela menina, e João ouviu o Senhor pronunciar
palavras de vida e de imortalidade, palavras que mais tarde ele deveria
ouvir diante do túmulo de Lázaro:
A menina não está morta, mas dorme. E riram-se dele... E,
tomando a mão da menina, disse-lhe: Talitá cumi, que,
traduzido, é: Menina, a ti te digo: levanta-te. E logo a menina
se levantou e andava, pois já tinha doze anos; e
assombraram-se com grande espanto. (Marcos 5.39-42)
O propósito de Jesus era dar grandes lições aos seus apóstolos. A
primeira dessas lições foi a de sua divindade. Ele permitiu que só aqueles
três discípulos escolhidos presenciassem aquele milagre porque seriam
justamente esses discípulos que mais tarde dariam os mais expressivos
testemunhos da divindade do Mestre da vida: João, nas páginas do seu
Evangelho; Pedro, com o testemunho de sua recuperação após ter
negado o Salvador, e Tiago por ter sido o primeiro dos apóstolos a ser
martirizado por amor a Cristo.
A segunda grande lição que Jesus deu a seus discípulos foi a de
que era necessário começar pelo fazer, antes de dedicar-se ao dizer.
João e os que estavam com ele aprenderam que o Evangelho devia ser
antes de tudo uma consolação, um socorro, a grande expressão da graça
de Deus, preparando desta forma o terreno para em seguida ser uma
pregação. O Deus de bondade, querendo formar apóstolos conforme o
seu coração, não os levou às academias, nem aos pórticos dos sábios,
nem às tribunas dos eloqüentes, mas conduziu-os à escola da ternura, do
amor respeitoso e da necessidade da manifestação do poder do Alto: ao
leito de uma criança que acabara de falecer.

O entusiasmo de João por Jesus

É fácil imaginar a intensidade do entusiasmo que se apoderou de


João por aquele Mestre, e esse sentimento transparece nas palavras que
os Evangelhos citam de João.
Naquela época, porém, esse entusiasmo não estava inteiramente
livre da mistura de sentimentos egoístas. Como todas as pessoas que
amam de verdade, João queria que só o Ser amado fosse grande, só ele
fosse honrado.
De maneira que toda e qualquer homenagem ou glória atribuída a
outro que não fosse o Mestre parecia-lhe um ultraje, uma usurpação.
Além disso, os apóstolos, felizes pela proteção com que o Senhor os
cercava, e confiantes em suas promessas, deixavam suas almas serem
invadidas por pensamentos de orgulho e de rivalidade, dos quais João
também não estava isento.
Mateus conta que um dia começou entre eles uma discussão sobre
qual deles seria o maior:
Naquela mesma hora chegaram os discípulos ao pé de Jesus,
dizendo: Quem é o maior no Reino dos céus? E Jesus,
chamando uma criança, a pôs no meio deles e disse: Em
verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos
fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no Reino
dos céus. Portanto, aquele que se tornar humilde como esta
criança, esse é o maior no Reino dos céus. (Mateus 18.1-4)
Em outra ocasião João viu alguns discípulos que, sem ser da
mesma família apostólica, estavam expulsando demônios das pessoas
em nome de Jesus. Na opinião de João isso era um roubo sacrílego ao
direito dos apóstolos e à honra de Deus. João o proibiu e contou o caso
para Jesus:
Mestre, vimos um que em teu nome expulsava os demônios, e
lho proibimos, porque não te segue conosco. E Jesus lhes
disse: Não o proibais, pois quem não é contra nós é por nós.
(Lucas 9.49,50)
João sabia amar, mas não conhecia ainda o dom muito mais difícil
de esquecer-se a si mesmo e desaparecer diante dos que querem fazer o
bem com sinceridade, mesmo quando nos fazem concorrência e agem de
modo diverso do nosso.
Certa vez Jesus resolveu ir à cidade de Jerusalém. O caminho mais
curto para a Cidade Santa atravessava a terra de Samaria. Ali se
encontram ainda vestígios da antiga estrada que ligava estas duas
províncias da Palestina. Os samaritanos, compostos em parte de pessoas
vindas de colônias estrangeiras, eram inimigos dos judeus.
O Senhor mandou dois de seus discípulos pedir-lhes licença para
passar. Um era João; o outro era seu irmão Tiago. Os dois entraram na
cidade, mas os samaritanos negaram-lhes a licença, impedindo-os de
passar por seu território. João e Tiago, enraivecidos, perguntaram a
Jesus:
Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os
consuma, como Elias também fez? Voltando-se, porém,
repreendeu-os e disse: Vós não sabeis de que espírito sois,
Porque o Filho do Homem não veio para destruir as almas,
mas para salvá-las. (Lucas 9.54-56)

"De que espírito sois?”

Qual era esse espírito que João desconhecia, e mais tarde devia
possuir melhor do que os outros e que se tornaria o espírito apostólico?
Havia o espírito antigo, o espírito judeu, absoluto, repressivo, que
castigava rigorosamente os culpados, executando por si mesmo a
vingança divina. O espírito cristão, ao contrário, era um espírito de
doçura. O amor perfeito não conhece vingança. Não há arrebatamentos
de cólera onde existe o amor em toda a sua plenitude. Não se deve
repelir a enfermidade humana, mas sim estender-lhe a mão. O desejo de
vingança não entra nas almas transformadas e magnânimas.
Jesus mostrou a João que era preciso amar, que era preciso
esquecer-se de si próprio. Os discípulos, antes de conhecerem Jesus,
haviam formado uma idéia muito grosseira do Reino de Deus, achando
que ele seria o grande império de um príncipe terrestre, cujas fronteiras
se estenderiam de um mar a outro. Era o que chamavam de
reconstituição do Reino de Israel. Inutilmente Jesus lhes repetia que seu
reinado não era deste mundo, que ele devia sofrer os males profetizados
ao Varão de dores, e que seus apóstolos e seguidores só deveriam
esperar a hora em que carregariam a cruz em sua companhia.
Porém, ninguém o ouvia. O espírito de João era nisto tão lento
como o dos outros. Parece até que sendo o maior amigo deste grande rei
e estando mais perto do seu coração, ele achava que deveria também
estar mais perto de seu trono, nesse império grandioso que todas as
esperanças da nação saudavam com entusiasmo e boas-vindas.
Esse era também o pensamento de Salomé, sua mãe. Animada
pelo zelo com o qual ela mesma havia sempre servido esse Mestre tão
bom, e seguindo os seus passos, ela aproveitou uma ocasião em que o
Senhor descia para Jerusalém, a antiga cidade dos reis, para aproximar-
se dele e reivindicar-lhe algo que estava dentro do seu coração. Ela
achava que estava se aproximando o dia em que o Senhor ia afinal tomar
posse do seu trono. O momento era urgente; ela não podia perder aquela
ocasião. Aproximando-se de Jesus em companhia de seus filhos João e
Tiago, aquela mulher o adorou e fez-lhe um pedido. Jesus a recebeu da
seguinte forma:
E ele disse-lhe: que queres? Ela respondeu: Dize que estes
meus dois filhos se assentem um à tua direita e outro à tua
esquerda, no teu Rei- no. Jesus, porém, respondendo, disse:
Não sabeis o que pedis; podeis vós beber o cálice que eu hei
de beber e ser batizados com o batismo com que eu sou
batizado? Dizem-lhe eles: Podemos. E diz-lhes ele: Na
verdade bebereis o meu cálice, mas o assentar-se à minha
direita ou à minha esquerda não me pertence dá-lo, mas é
para aqueles para quem meu Pai tem preparado. (Mateus
20.21-23)
Era costume no conselho supremo da nação judaica colocar abaixo
da cadeira principal ocupada pelo príncipe do Sinédrio, dois lugares de
honra, denominados o lugar do Pai e o lugar do Sábio.
Ouvindo Salomé solicitar a honra daquela preferência, Jesus tratou
imediatamente de desenganar aquela mãe iludida que se equivocara
sobre a natureza de seu futuro reinado. Ao ouvir dos filhos de Zebedeu a
palavra "podemos", Jesus imediatamente aceitou aquela confissão de
boa vontade, e seu olhar divino penetrou o futuro até o dia em que Tiago
e João seriam levados ao martírio por seu nome. Portanto, ele não
hesitou em prometer-lhe glória muito superior às grandezas terrestres por
eles cobiçadas.
Amar a Deus e servir aos homens era bom; esquecer-se de si
próprio era ainda melhor. Porém, a grande expressão de amor era
sacrificar-se livremente e sofrer. Pois o amor precisa ter sua prova
dolorosa, e o dom supremo que ao discípulo o Mestre apresenta é
um cálice de dor. Deste cálice Jesus foi o primeiro a beber; foi o primeiro
a encostar nele os seus lábios. Jesus não tardou em dar ao seu discípulo
uma amostra do que reservava àqueles que o amam a ponto de
morrerem por amor a Ele.

Vendo a glória de Deus

João foi um dos três discípulos a testemunhar a transfiguração do


Senhor. Jesus quis dar um testemunho particular e brilhante de sua
divindade àquele que ia ser o mais elevado no conhecimento de Deus, a
fim de que, havendo contemplado a glória eterna e divina, ele pudesse
fazer ressoar aquela grande expressão: "No princípio era o verbo!". Além
do mais, era necessário que ele tivesse por testemunhas de sua glória
aqueles que deviam mais tarde ser testemunhas de seus sofrimentos no
jardim das Oliveiras.
Tomou consigo a Pedro, Tiago e seu irmão João, os mesmos que
tinham assistido à ressurreição da filha de Jairo, e, deixando no vale os
outros discípulos, conduziu aqueles três discípulos até o cume de uma
montanha. Segundo a tradição dos tempos apostólicos, essa é a
montanha cônica que na planície de Esdrelom ergue o seu cume
revestido de sombra e de verdura, e que o sol, todas as tardes banha-a
de um suave brilho. Por isso os judeus a chamam de Monte Tabor, que
significa "leite de luz". O Senhor transfigurou-se diante daqueles três
discípulos. Aquela esplendorosa visão só deveria repetir-se no fim dos
dias de João na ilha de Patmos. A face de Jesus resplandeceu como o
sol, suas vestes brilharam como uma luz viva e branca como a neve —
imagem de sua futura ressurreição e da nossa.
Moisés e Elias, a lei e os profetas, a antiga aliança e o mundo do
passado apareceram diante dele, enquanto mais abaixo os apóstolos
representavam o sacerdócio e a Igreja do futuro. Moisés e Elias
conversaram com Jesus sobre os sofrimentos pelos quais ele ia passar
na cidade de Jerusalém. Falaram como se fosse um assunto de alegria e
de seu mais ardente desejo. Os apóstolos estavam arrebatados. Naquele
instante ouviu-se uma voz que dizia:
Este é o meu filho amado; a ele ouvi. (Lucas 9.35)
Todo aquele episódio superou as forças daqueles três homens
limitados e mortais. João e seus companheiros aterrorizados, ficaram por
algum tempo estendidos, prostrados no chão. Jesus os levantou, a visão
se desfez, e os discípulos receberam ordem de não revelar a ninguém o
que acabavam de ver até o dia em que o Filho do Homem tivesse
ressurgido dentre os mortos.
Mais tarde falaram sobre isto como uma das maiores experiências
da vida evangélica. Pedro escreveu em sua segunda epístola:
Porque não vos fizemos saber a virtude e a vinda de nosso Senhor
Jesus Cristo, seguindo fábulas artificialmente compostas, mas nós mes-
mos vimos a sua majestade, porquanto ele recebeu de Deus Pai honra e
glória, quando da magnífica glória lhe foi dirigida a seguinte voz: Este é o
meu Filho amado, em quem me tenho comprazido. E ouvimos esta voz
dirigida do céu, estando nós com ele no monte santo. (2 Pedro 1.16-18)
Quanto a João, é sem dúvida a esta manifestação e a esta voz que
ele se refere quando, logo no começo do seu Evangelho, depois de ter
proclamado a divindade do Verbo encarnado, acrescenta:
E o verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua
glória, como a glória do Unigênito do Pai, cheio de graça e
verdade. (João 1.14)
O raio celeste que brilhou no monte Tabor iluminou a mente de João
e abrasou o seu coração. E assim foi que gradativamente o Mestre
realizou a educação de seu apóstolo mais querido: a educação da fé e do
amor. Nas lições e cenas que acabamos de descrever, Jesus havia-lhe
demonstrado as provas de sua divindade com a realização de seus
milagres. Deu-lhe os exemplos do espírito de amor cristão e apostólico,
da bondade e da doçura, da dedicação para com os outros e da renúncia
de si próprio. Porém, essas verdades ficarão apagadas em sua mente até
que o Espírito Santo venha vivificá-las:
Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará
em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará
lembrar de tudo quanto vos tenho dito. (João 14.26)
Aqueles ensinamentos eram apenas sementes depositadas no seu
coração. Um dia o fogo do Pentecostes as acenderá com sua chama, e
veremos então que colheita João fará daquelas sementes.

CAPÍTULO 4 - TESTEMUNHA FIEL DO SENHOR

Sendo o discípulo amado do Mestre, João sempre falou como


testemunha íntima. Ele recorda este título a cada instante. E foi graças a
esse privilégio que ele pôde ver melhor, mais perto e mais a fundo os
mistérios e a beleza da alma do Mestre amado. Essa condição também é
comprovada ao lermos o Quarto Evangelho.
Mil particularidades de lugar, de tempo e de estilo revelam a
presença pessoal do narrador no local onde os fatos ocorreram. As
reflexões ardentes e profundas denunciam a presença do coração do
amigo particular do Mestre. O seu livro também faz com que nós vejamos,
ouçamos e toquemos o Verbo de Deus verdadeiramente vivo em sua
narrativa. Em toda a parte o discípulo aparece sob a capa do evangelista,
e nós o seguimos, por assim dizer, graças à irradiação de sua alma e o
rastro de seus passos.

Colocando em ordem a Casa do Pai

A primeira vez que se nota a presença de João na vida pública de


Jesus é em Jerusalém, para onde o Senhor descera a fim de participar da
Páscoa, seguido pelos discípulos. Chegando à cidade, Jesus subiu ao
Templo para dele tomar posse em nome de Deus, seu Pai.
Ao chegar diante do Templo, Jesus encontrou a entrada obstruída
por mercadores de toda espécie. Havia ali vendedores de bois, de
carneiros e de pombos, que proviam as vítimas e os outros itens
utilizados pelos judeus vindos para sacrificar. João também viu ali os
cambistas, pois o imposto de duas dracmas, previamente cobrado para
as despesas do culto, devia ser pago em moeda judaica. As moedas
pagãs, modeladas com a efígie de ídolos e imperadores pagãos, eram
proibidas no Templo santo.
Diante daquele quadro, o Filho de Deus, armando-se de um chicote,
expulsou os vendedores sacrílegos e virou as mesas dos cambistas com
uma autoridade que declarou ter recebido do próprio Pai:
E disse aos que vendiam pombos: Tirai daqui estes e não
façais da casa de meu Pai casa de vendas. (João 2.16)
João admirou o zelo e a indignação sagrada do novo Finéias:
E os discípulos lembraram-se do que está escrito: O zelo da
tua casa me devorará. (João 2.17)
Quando os judeus, indignados diante da audácia de Jesus,
perguntam-lhe com que direito ele agia e falava daquela maneira, Jesus
apelou imediatamente para a autoridade dos seus milagres. Ele se referiu
logo ao maior de todos eles:
Derribai este Templo, e em três dias o levantarei. (João 2.19)
Os judeus não compreenderam essas últimas palavras, e só viram
nelas motivo para incriminar Jesus. Porém, mais tarde João, diante das
evidências da ressurreição do Senhor, entendeu-as e nos deu a
explicação:
Mas ele falava do templo do seu corpo. Quando, pois,
ressuscitou dos mortos, os seus discípulos lembraram-se de
que lhes dissera isso; e creram na Escritura e na palavra que
Jesus tinha dito. (João 2.21-22)
A partir daquela data os milagres passaram a jorrar das mãos de
Jesus, e João observou que, diante daqueles sinais e prodígios, os
judeus se dividiram em dois grupos: uns criam nele, outros desconfiavam
de sua influência nascente, principalmente os chefes de Israel, que viam
em Jesus uma ameaça contra o poder deles.

O encontro com Nicodemos

Em todo o caso, entre aqueles líderes uma exceção foi assinalada e


descrita por João. Atraído pela autoridade e pelos sinais que Jesus
operava, aproximou-se dele um doutor da lei que o apóstolo seguirá em
cada uma das fases de sua lenta conversão e de sua perseverança.
Chamava-se Nicodemos. Ele era, no tempo de Jesus, um grande sábio
muito famoso. Conforme o uso do tempo, João deu-lhe o nome de
príncipe, título que os sábios da nação atribuíam a si mesmos. "Há três
coroas", diziam esses sábios orgulhosos: "a coroa da lei, a coroa do sumo
sacerdote e a coroa do soberano; mas a do rabino está acima da coroa
do rei". Estamos, pois, em pleno centro dos hábitos, dos costumes e da
história judaicos. Homem reto, porém tímido, Nicodemos veio ao encontro
de Jesus durante a noite para não comprometer sua dignidade de doutor
em uma entrevista pública com um galileu.
Este foi ter de noite com Jesus e disse-lhe: Rabi, bem
sabemos que és mestre vindo de Deus, porque ninguém pode
fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não for com ele.
(João 3.2)
A resposta de Jesus é, no Evangelho de João, o modelo de todos
os discursos que ele proferirá daí em diante em Jerusalém, na presença
das pessoas de cultura às quais eles são dirigidos. Todas as questões
levantadas nas escolas e sinagogas, a purificação pelo mistério da água,
o novo nascimento espiritual, os dons e as virtudes dos "homens de
espírito", conforme se denominavam esses sábios, todos esses assuntos
são resolvidos pelo Mestre dos mestres, que, sem demora, dali se eleva à
revelação dos maiores mistérios de que ele mesmo é o centro. O maior
de todos eles é o mistério da encarnação, o mistério do Deus que se fez
homem e desceu do céu para falar com os homens:
Na verdade, na verdade te digo que nós dizemos o que
sabemos e testificamos o que vimos, e não aceitais o nosso
testemunho. Se vos falei de coisas terrestres, e não crestes,
como crereis, se vos falar das celestiais? Ora, ninguém subiu
ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho do Homem, que
está no céu. (João 3.11-13)
O mistério do amor divino e da vida eterna foi manifestado por
Jesus na bela frase que tantas vezes encontraremos em João:
Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o sei
Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não
pereça, mas tenha a vida eterna. (João 3.16)
Esta linguagem, profunda e simples, não pertence ao homem: é a
do próprio Deus. As palavras trocadas durante essa célebre conversa
entre o doutor da lei e o Deus do Evangelho marcam a transição entre os
dois Testamentos. A partir dela a Igreja passa a suplantar a Sinagoga.
Uma nova religião, mais elevada, mais completa, mais espiritual, estava
sendo fundada, e o doutor judeu acabava de ouvir a primeira e a maior
palavra daquela religião do futuro, palavra que encherá o Evangelho de
João: O amor; o amor de Deus pelo homem e o amor do homem por
Deus.
Toda aquela conversa, por mais admirável que seja, não era senão
o curto resumo de uma grande pregação. Mas este resumo condensa em
um foco luminoso toda a doutrina de Cristo. Ao longo dos séculos, muitas
pessoas têm perguntado como João pôde ficar sabendo do conteúdo
dessa conversa, levando-se em conta que ela foi secreta, confidencial.
Que relacionamentos particulares fizeram com que João penetrasse
nesses segredos? É um assunto que retornaremos mais tarde, e assim
teremos uma nova prova da fidelidade do testemunho de João.

O encontro com a samaritana

Passadas as festas, os chefes dos judeus começaram a irritar-se ao


ver a fama e o crescimento de Jesus na opinião do povo. Jesus decidiu
então voltar para a Galiléia, e João e os outros discípulos o seguiram.
Escolheram a estrada de Samaria. Foi naquela estrada que o Filho de
Deus teve a sublime conversa com a samaritana, e deste episódio João,
o fiel companheiro de Jesus, anotou o local, o instante e os incidentes
com uma precisão que marca a impressão de seus passos sobre os
passos de Jesus.
Depois de uma jornada difícil, o Senhor chegou a uma cidade de
Samaria chamada Siquém ou Sicar - lugar de gratas recordações para os
judeus. Abraão, descendo da Mesopotâmia, ali levantara um altar. Jacó ali
comprara terras para seu filho José e cavara um poço que João
denomina como seus contemporâneos, "fonte de Jacó".
Eu te tenho dado a ti um pedaço de terra mais que a teus
irmãos, o qual tomei com a minha espada e com o meu arco
da mão dos amorreus. (Gênesis 48.22)
Foi à beira desse poço, até hoje conservado, e do qual se pode
medir a profundidade, que Jesus se sentou.
O Senhor estava fatigado da caminhada, diz João (João 4.6). De
Jerusalém até a cidade de Sicar são três dias de viagem por estradas
ásperas e sob os abrasadores raios do sol da Síria. Jesus estava com
fome e com sede. Após enviar seus discípulos, inclusive João, para
procurar alimento na cidade, Jesus ficou descansando naquele lugar,
quando chegou uma mulher trazendo um cântaro na cabeça, à maneira
oriental. Viera buscar água na fonte de Jacó. Era isso quase à hora sexta
(João 4.6), observa João, hora correspondente ao meio-dia, hora em que
o sol está na plenitude de sua força. Jesus, vendo aquela mulher que
vinha tirar água, pediu que lhe desse de beber.
João não ouviu pessoalmente o diálogo, mas certamente se inteirou
mais tarde dos detalhes. Teve a oportunidade de saber dos próprios
samaritanos, por ter ido logo depois do Pentecostes levar-lhes a notícia
sobre o batismo no Espírito Santo e os primeiros frutos do seu
apostolado. Além disso, a samaritana, após ter sido encontrada por
Jesus, passou a contar sobre esse encontro a todos, com o entusiasmo
de uma mulher que encontrara a graça e a verdade. Da indiferença
zombeteira para com aquele judeu desconhecido que, ousando ir contra
os preconceitos de sua nação, conversou com uma estrangeira, de
repente aquela mulher passou à admiração, sobretudo quando o ouviu
falar de uma água viva e espiritual, a única capaz de matar a sede que
atormenta as almas.
Uma dessas almas, manchadas, porém sequiosas de reabilitação,
era ela mesma. Ouvindo humildemente aquele homem inspirado revelar
os erros de sua vida, ela reconheceu em Jesus um profeta, e submeteu-
lhe a grande questão que separava os judeus dos samaritanos: Onde se
deveria adorar? Seria em Jerusalém? Seria numa das montanhas do Ebal
ou no monte Gerizim? Do lugar onde se achavam avistava-se, erguido
sobre o cume daquele monte, o templo separatista dos samaritanos, do
qual ainda existem ruínas.
O Verbo de Deus dignou-se instruí-la. Aquela pobre mulher aviltada,
desprezada, recebeu de Jesus a sublime revelação do caráter especial da
Boa Nova:
Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros
adoradores adorarão o pai em espírito e em verdade, porque
o Pai procura a tais que assim o adorem. (João 4.23)
Enfim, um instante depois o Messias revelou-se a ela: "Eu o sou, eu
que falo contigo" (João 4.26). Deixando ali o cântaro, correu a anunciá-lo
na cidade. A cidade era próxima. Do poço de Jacó avistavam-se os
telhados chatos de Sicar, que brilhavam através da folhagem pálida e
espigada das oliveiras. Em parte nenhuma se mostra melhor a fidelidade
da testemunha ocular como nesse lugar, nessa conversa e nessas
circunstâncias.
Quando os discípulos retornaram trazendo o alimento que tinham
ido comprar, João diz que todos eles se espantaram ao ver o Mestre
conversando com uma mulher samaritana. A surpresa deles não foi
menor ao vê-lo recusar o alimento que tinham trazido. Em palavras
rápidas trocadas confidencialmente entre si e ouvidas por João,
perguntavam-se: Trouxe-lhe, porventura, alguém de comer? Mas o
pensamento de Jesus naquele momento estava voltado unicamente para
a realização da vontade de seu Pai e a salvação das almas.
A grande obra que alimentaria e saciaria o coração de Jesus era a
da conversão do mundo. Ao redor dos discípulos e do Senhor as espigas
balançavam nos campos férteis. Mostrando então aos apóstolos aquelas
futuras e ricas colheitas, Jesus Cristo disse-lhes alegoricamente:
Não dizeis vós que ainda há quatro meses até que venha a
ceifa? Eis que eu vos digo: levantai os vossos olhos e vede as
terras, que já estão brancas para a ceifa. E o que ceifa recebe
galardão e ajunta fruto para a vida eterna, para que, assim o
que semeia como o que ceifa, ambos se regozijem. Porque
nisso é verdadeiro o ditado: Um é o que semeia, e outro, o
que ceifa. (João 4.35-37)
Sementes favoráveis acabavam de ser depositadas naquela terra
de Samaria, cujos habitantes, impressiona- dos com as palavras da
pecadora, vieram pedir a Jesus que permanecesse com eles. Jesus lhes
atendeu, ficou naquela cidade durante dois dias e muitos creram nele.
Muitas daquelas pessoas de Samaria serão futuramente batizadas pelo
diácono Felipe; João em seguida virá para confirmá-las. Será um dos
ceifeiros destinados a ajuntar a colheita espiritual naquele campo
semeado e regado com os suores do Mestre.
Depois de sair de Sicar, Jesus continuou viajando rumo à Galiléia,
dirigindo-se a Caná e Cafarnaum.

O paralítico em Betesda

A festa que atraiu pela segunda vez Jesus à Jerusalém era,


segundo uns, a solenidade pascal, e na opinião de outros, a festa de
Purim. A chegada do Senhor foi marcada por um de seus milagres. Havia
naquela cidade uma piscina famosa da qual ainda existe vestígios, e que
João nos descreve ligeiramente. Chamava-se em hebraico Betesda, isto
é, "casa de misericórdia". Estava situada perto de uma das portas da
cidade, denominada Porta das Ovelhas, pois era costume dos pastores
levarem os rebanhos para ali beberem. Tinha cinco alpendres, conforme
observação de João. Pelas escombros que ainda existem dela, pode-se
reconhecer os vestígios de uma galeria circular para onde se descia
através de uns degraus de mármore. Deitado em uma cama estava ali um
homem que há 38 anos era paralítico. Ele estava ali esperando que o
anjo viesse revolver a água a fim de que ela adquirisse a virtude curativa.
Mas não havia ninguém que ajudasse aquele homem a entrar na piscina
quando o anjo agitava as águas, observa o narrador com a exatidão
ordinária de seu testemunho.
Jesus passou por ali, viu aquele homem estendido, e sabendo que
havia muito tempo que ele estava doente, perguntou-lhe: "Queres ficar
são?" E em seguida, disse-lhe:
Levanta-te, toma a tua cama e anda. Logo, aquele homem
ficou são, e tomou a sua cama, e partiu. (João 5.9)
O amor fizera a sua obra, mas o ódio ia começar a sua. O dia em
que essa cura ocorrera era um sábado, lembra João. A obrigação em se
observar o repouso do sábado tinha se tornado naquela época uma
superstição terrível e cega. O castigo infligido indistintamente contra o
idolatra, contra o assassino e contra quem violasse o sábado era o exílio.
"Deus perdoa qualquer pecado a todo aquele que guarda o Sábado,
menos o pecado de não guardá-lo", diz um texto do Talmud.
As autoridades judaicas ficaram então enraivecidas contra aquele
que acabava de se colocar acima do sábado, restituindo a saúde a uma
mortal criatura de Deus. A hipocrisia dos fariseus culpava tanto o doente
quanto aquele que o curara milagrosamente. Diante de suas pérfidas
censuras, Jesus respondeu com uma só palavra:
Meu Pai trabalha até agora e eu trabalho também. (João 5.17)
Isto é, há um sábado que Deus não conhece, é o sábado do bem. O
quê? Chamar a Deus de seu Pai é fazer-se igual a Deus. Isto era uma
grande blasfêmia. Travou-se um longo debate sobre aquela afirmação tão
audaciosa, incrível, absolutamente provocadora. Jesus fez ainda naquele
momento uma longa exposição sobre sua divindade. Porém, como a fúria
dos fariseus tornou-se cada vez mais ameaçadora contra ele, foi neces-
sário ele e os discípulos deixarem Jerusalém por algum tempo e voltarem
à Galiléia.
Após retornar à Galiléia, a narrativa de João nos coloca de novo
diante do lago de Tiberíades, de Cafarnaum, dos barcos e pescadores, da
fé singela da multidão e do entusiasmo do povo em seguir Jesus Cristo
até no deserto. É nessa ocasião que João nos conta a multiplicação
milagrosa dos pães e peixes, a noite em que Jesus andou sobre o mar,
suas pregações sublimes na sinagoga, a emoção dos ouvintes, a futura
instituição da Santa Ceia.
Jesus na Festa dos Tabernáculos

No entanto, aproximava-se a festa dos Tabernáculos. Celebrava-se


em outubro e era a mais alegre das solenidades judaicas. Como
recordação do tempo em que os hebreus viveram no deserto, o povo
construía nas ruas e praças da cidade tendas de folhagem onde
permanecia durante sete dias. Faziam-se sacrifícios, e os judeus,
desfilando, com palmas verdes nas mãos, subiam ao Templo para render
graças a Deus.
Os irmãos de Jesus insistiram com ele para que fosse àquela festa,
a fim de tornar-se conhecido. Mas o Senhor deixou que primeiro partisse
todo o cortejo dos seus parentes, e mais tarde encaminhou-se em
segredo para a cidade, onde já era o assunto de todas as conversas.
João relata a cena de surpresa e admiração de que Jesus foi alvo
na cidade Santa, quando de repente, no momento em que todos achavam
que ele estivesse na Galiléia o Senhor apareceu no Templo.
Imediatamente as pessoas o rodeiam, ouvem-no e admiram-se da
eloqüência inexplicável de suas palavras.
Como sabe estas letras, não as tendo aprendido? (João 7.15)
A impressão de assombro que a pregação de Jesus causava sobre
o auditório daquela época é a mesma que sentimos quando lemos o
evangelista. Convém observar que as pregações que Jesus fazia na
Judéia não eram mais as simples e fáceis parábolas que tinham feito o
povo vibrar e se maravilhar nas colinas da Galiléia. Aqueles a quem o
Mestre se dirigia agora eram os doutores que repetiam sobre si mesmos
que "o rabino deve absorver-se inteiramente na ciência sagrada, a qual
possui a chave do céu, e o torna igual a Deus".
A esses escribas tinha sido exigido primeiramente galgar os três
degraus da iniciação antes de obterem o direito de sentar-se na cadeira
dos profetas. Esses eram os judeus helenos vindos das brilhantes
cidades de Atenas, Roma, Éfeso e Alexandria. A linguagem dirigida
àqueles espíritos polidos e curiosos dos assuntos de difícil compreensão
não podia ser a mesma utilizada para instruir os rústicos e ingênuos
habitantes das margens do lago de Genesaré. Portanto, se as pregações
de Jesus, colhidas por João, diferem pela forma das registradas pelos
outros evangelistas, é porque João nos transmitiu particularmente o
ensino de Jesus em Jerusalém, a principal cidade dos príncipes dos
sacerdotes e dos chefes de Israel.
Os escribas perguntavam entre si: "Onde ele aprendeu isto?" Era
um milagre de natureza intelectual, não menos extraordinário que os de
natureza física e para o qual pediam explicações.
Jesus dá sempre a explicação de que ele é Deus. Sua sabedoria
não é uma ciência humana, laboriosa; não depende de estudo, ela flui da
fonte divina; não vem do homem, mas d'Aquele que o enviou e por isso
que Jesus diz que "minha doutrina não é minha, mas daquele que me
enviou. Se alguém quiser fazer a vontade dele, pela mesma doutrina
conhecerá se ela é de Deus ou se falo de mim mesmo".
Aquela palavra autorizada, confirmada pelas obras, abalava os
espíritos, e João nos coloca bem no meio da hesitação desse auditório
tão dividido. O povo tomara de boa vontade o partido do profeta, mas
queria ver brilho e ilustração naquele a quem se entregava, e Jesus não
era mais do que um operário de Nazaré: Bem se sabe de onde ele vem!
Vinte vezes o povo levantará a mesma objeção contra Jesus. Sabeis de
onde venho? respondia o Mestre com calma majestosa. Sabeis de onde
sou? E a tais homens ele falava sobre o seio do Pai de onde descera e
para onde voltaria depois de algum tempo:
Vós me buscareis e não me achareis; e aonde eu estou vós
não podeis vir. (João 7.34)
E, no último dia, o grande dia da festa, Jesus pôs-se em pé e
clamou, dizendo:
Se alguém tem sede, que venha a mim e beba. (João 7.37)
Neste dia o sumo sacerdote costumava descer da montanha
trazendo uma urna de ouro que enchia na fonte de Siloé. Em seguida
voltava rodeado pelo povo, ao som de cânticos e trombetas, e, entrando
no Templo, derramava aquela água sobre o altar, para comemorar a fonte
milagrosa que Moisés fizera jorrar do rochedo. Jesus, aproveitando a
ocasião da cerimônia, ofereceu uma água melhor às almas sequiosas:
Quem crê em mim, como diz a Escritura, rios de água viva
correrão do seu ventre. (João 7.38)
O Filho de Deus revelava-se como a Fonte da Vida. Aqueles
grandes paralelos constituíam uma nova espécie de recurso ilustrativo do
que ele queria ensinar, algo semelhante às parábolas, tirados de outros
lugares e feitos para pessoas simples. Que sublime aplicação dava assim
o Senhor aos símbolos antigos, e que torrentes de vida e ensinamentos
desciam às almas!
Naquela festa costumavam também deixar acessos sobre as alturas
de Sião dois imensos candelabros que projetavam a luz sobre Jerusalém
inteira. Era a lembrança da nuvem luminosa que outrora guiara os filhos
de Israel nas noites do deserto. Realizando em si mesmo essa figura ex-
pressiva, Jesus Cristo continua sua pregação dizendo:
Eu sou a luz do mundo: quem me segue não andará em
trevas, mas terá a luz da vida. (João 8.12)
Sobre esta afirmação travou-se imediatamente uma disputa, de um
lado violenta, de outro lado calma e sublime. Jesus Cristo novamente
afirmou sua filiação divina, sua santidade que desafiava qualquer
acusação, sua geração eterna, anterior não só ao nascimento de Abraão,
mas a tudo: Sou o princípio, sou antes de tudo, eu, que vos falo. Essas
palavras de Jesus deverão sugerir mais tarde a João o prólogo de seu
Evangelho: "No princípio era o Verbo..." Diante de afirmação tão clara, tão
repetida de sua divindade só restava aos ouvintes de Jesus duas
respostas a dar: ou atirar-se aos seus pés como aos pés de um Deus, ou
apedrejá-lo como um blasfemador.
Então, pegaram em pedras para lhe atirarem; mas Jesus
ocultou-se, e saiu do templo, passando pelo meio deles, e
assim se retirou. (João 8.59)

A mulher adúltera

O que irritava aqueles homens violentos e orgulhosos não era a


grandeza sobre-humana, a bondade e a calma de Jesus, e sim a
sabedoria superior com a qual ele acabava de confundir toda aquela
astúcia e maldade. No dia seguinte Jesus chegou cedo ao templo. Com o
propósito de ensinar ao povo ele se dirigiu ao lugar contíguo à sala do
conselho, e que se chamava "lugar do tesouro" (João 8.20), pois naquele
lugar se achavam os cofres de bronze destinados às ofertas.
Ali os fariseus levaram aos pés de Jesus uma mulher surpreendida
em adultério, e hipocritamente pediram que ele pronunciasse a sentença
daquela mulher que a lei condenava à morte. A ocasião era propícia para
eles alardearem sua própria justiça e confundir aquele profeta e aquele
justo acusando-o de crueldade homicida se condenasse a pecadora a ser
apedrejada, ou de violação flagrante da lei se a absolvesse.
João acompanhou toda aquela cena atentamente. Viu o Mestre
inclinar-se silencioso e escrever com o dedo no chão. O que ele
escreveu? João não o diz. Ele viu quando Jesus, ao ser intimado a se
pronunciar, levantou por um instante a cabeça e como única resposta
disse esta frase:
Aquele que dentre vós está sem pecado seja o primeiro que
atire a pedra contra ela. (João 8.7)
Jesus continuou a escrever. Como as palavras traçadas pelo juiz
que penetra a consciência humana, aquelas palavras incomodaram sem
dúvida aqueles hipócritas. João notou que eles saíram um a um a
começar pelos mais velhos até os últimos; ficaram só Jesus e a mulher,
que estava no meio. (João 8.9)
Era a miséria diante da misericórdia. E a misericórdia perdoou a
miséria.
E, endireitando-se Jesus e não vendo ninguém mais do que a
mulher, disse-lhe: Mulher, onde estão teus acusadores?
Ninguém te condenou? E ela disse: Ninguém, Senhor. E
disse-lhe Jesus: Nem eu também te condeno; vai-te e não
peques mais. (João 8.10,11)
A humilhação fora exaltada; porém, para caminhar nas veredas da
justiça e da virtude. O Homem Deus Jesus revelou-se tanto pela sua
bondade como pelo seu poder, tanto por sua misericórdia como pelas
suas maravilhas. "Só Deus é bom", disse ele um dia. Sim, e o que nos
prova que tu és Deus, o Senhor Jesus, é que jamais alguém foi tão como
fizestes.
Alguns livros usados por aqueles hipócritas orientavam o rabino a
andar lentamente, um tanto encurvado, com a cabeça baixa, com vestes
escuras, coberto por um véu preto, e evitando falar com uma mulher.

A cura do cego de nascença

A cura de um cego de nascença desencadeou novas tempestades


contra Jesus. O quadro que João traçou do drama refletiu perfeitamente
tudo. Começou por uma discussão levantada entre os discípulos sobre a
origem da cegueira.
E os seus discípulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem
pecou, este ou os seus pais, para que nascesse cego? Jesus
respondeu: Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi assim
para que se manifestassem nele as obras de Deus. Convém
que eu faça as obras daquele que me enviou, enquanto é dia;
a noite vem, quando ninguém pode trabalhar. Enquanto estou
no mundo, sou a luz do mundo. (João 9.2-5)
E para provar a veracidade do que dissera Jesus curou o cego com
um pouco de saliva misturada com terra. Jesus untou com esta mistura os
olhos do cego e mandou que ele se lavasse no tanque de Siloé. Por estes
singelos pormenores reconhece-se a exatidão de João: isso não se
inventa.
Segundo uma antiga profecia, Siloé era o símbolo da graça divina:
Porquanto este povo desprezou as águas de Siloé que correm
brandamente e com Rezim e com o filho de Remalias se
alegrou. (Isaías 8.6)
Agora se achava aberta aos filhos de Israel e, depois do Calvário,
ao mundo, uma fonte de salvação e saúde muito mais elevada e
poderosa, cheia de graça e de verdade, e muitos têm vindo a ela para
recuperar a visão física e espiritual!
Logo após a realização daquele milagre, Jesus foi contestado outra
vez. Primeiramente, os vizinhos do cego que, vendo curado o homem que
sempre encontravam sentado à porta do Templo pedindo esmola,
custaram a crer no milagre. É ele, diziam uns; Não, é alguém que se
parece com ele, diziam outros. Mas ele respondia: Sou eu mesmo!
Em seguida os próprios membros do Sinédrio começaram a
investigar. O cego compareceu, e contou o fato com simplicidade. O
conselho, confuso, agitou-se em direções diversas: Este homem não
pode ser de Deus, uma vez que não guarda o sábado, disseram alguns.
Mas outros responderam: Como pode um pecador fazer tais
milagres? Era uma questão difícil. Perturbadas, as autoridades pediram a
opinião do homem que fora curado: Que achas de quem te abriu os
olhos? Ele respondeu sem hesitar: Que é um profeta.
Sem dúvida, mais de um doutor ali presente viu-se forçado a pensar
como ele. Estavam, portanto, divididos. Foi quando alguém levantou a
questão: quem nos garante que o mendigo era mesmo cego? Portanto,
era necessário certificar-se. Imediatamente foram intimados os pais da
testemunha e confrontados com ele:
— É este o vosso filho?
— É.
— Ele nasceu cego?
— Sim.
— Como então ele está vendo agora?
— Isto não o sabemos, responderam aquelas pessoas
simples e aterrorizadas, temendo ser consideradas inimigas
da lei.
Seus pais responderam e disseram-lhes: Sabemos que este é
o nosso filho e que nasceu cego, mas como agora vê não
sabemos; ou quem lhe tenha aberto os olhos não sabemos;
tem idade; perguntai-lho a ele mesmo, e ele falará por si
mesmo. (João 9.20-21)
Chamaram outra vez o mendigo. Era preciso a todo o custo destruir
as colunas da fé em Jesus que já se erguiam na opinião do povo
arrancando uma confusão negativa da testemunha importuna de seu
poder divino.
— Dai glória a Deus — , gritam aqueles hipócritas. E é com esse
nome sagrado que eles tentam levar o mendigo a mentir acrescentando
uma blasfêmia: Sabemos que este homem é um pecador! Mas nada
existe mais eficiente para desmascarar espíritos mal intencionados do
que um coração simples e sincero.
O mendigo lhes respondeu: Se é um pecador não sei; o que sei é
que eu estava cego e agora vejo! Só restava agora uma alternativa: ver
se, ao testemunhar, ele cairia em contradição. Recomeça então o
interrogatório: Que te fez ele? Como foi que te abriu os olhos? A esta
pergunta, o mendigo impaciente lança-lhes uma sentença de uma ironia
vingadora: Já vo-lo disse, por que quereis tornar a ouvi-lo ? Será que
quereis também vos tornar seus discípulos? Discípulos daquele Galileu!
Eles se irritaram e falaram que o mendigo, se quisesse, que se tornasse
discípulo de Jesus; eles não desceriam a isto, pois eram discípulos de
Moisés. Eles sequer sabiam de onde era aquele Jesus. O mendigo
responde com admiração:
Nisto, pois, está a maravilha: que vós não saibais de onde ele
é e me abrisse os olhos. (João 9.30)
O mendigo, já cansado de ouvir os fariseus e doutores chamarem
de pecador ao profeta que lhe curara, usou este argumento invencível:
Ora, nós sabemos que Deus não ouve os pecadores; mas, se
alguém é temente a Deus e faz a sua vontade, a esse ouve.
Desde o princípio do mundo, nunca se ouviu que alguém
abrisse os olhos a um cego de nascença. Se este não fosse
de Deus, nada poderia fazer. (João 9.31-33)
Os doutores, enfurecidos, responderam:
Tu és nascido todo em pecados e nos ensinas a nós? E
expulsaram-no (João 9.34).
Pronunciaram contra ele a exclusão da sinagoga. Mas Jesus
consolou-o a seu modo, como sabe consolar os que por ele sofrem,
dando à sua alma uma luz divina mais elevada do que a que tinha
restituído aos seus olhos. O mendigo só conhecia seu benfeitor como um
profeta, mas agora o Senhor revelou-se a ele como Deus.
Eu também creio, e também te adoro, ó Senhor Jesus! Eu também
era cego, não de nascença, mas de orgulho, e tu tiveste piedade de mim
e me abriste os olhos! Não permitas que jamais eles se fechem depois de
ter visto a tua luz, nem que as correntes da impiedade jamais fechem
minha boca, depois que tu consentiste que eu te confessasse, apesar de
toda a minha indignidade.
Dali por diante a vida de Jesus não se achou mais em segurança
entre os fariseus, os quais a cada dia exigiam mais e mais as provas e os
testemunhos de sua divindade. Ele teve, conforme nos conta João, de
atravessar de novo o Jordão, retirando-se por algum tempo para a
província da Peréia, que se estende pela margem oriental do rio até os
confins do deserto, ao sul do Mar Morto.
Ali ele passou algum tempo entre populações felizes de possuir por
sua vez o grande profeta de Israel, a quem apresentavam os doentes
para que ele curasse e as crianças para que ele abençoasse. A doença e
a morte de Lázaro o fizeram voltar à Judéia para um milagre dos mais
impactantes entre todos os que até então ele fizera.

A ressurreição de Lázaro

Neste episódio João abrirá para nós a bendita aldeia de Betânia,


situada a três quilômetros de Jerusalém. É a cidade cujas casas brancas
ainda hoje estão dispostas em forma de escada nos flancos do monte das
Oliveiras, encobertas pela folhagem e pelas alturas que as ocultam do
mundo. Foi ali, naquele recanto de paz, que o Senhor achou o único bem
da terra: corações que o compreendiam e o amavam.
Estava, então, enfermo um certo Lázaro, de Betânia, aldeia de
Maria e de sua irmã Marta. (João 11.1)
O discípulos não nos faz conhecer de outra forma a família em cujo
seio vai nos introduzir. Referindo-se a um episódio relatado pelos outros
evangelistas, João identifica uma das irmãs de Lázaro:
E Maria era aquela que tinha ungido o Senhor com ungüento
e lhe tinha enxugado os pés com os seus cabelos, cujo irmão,
Lázaro, estava enfermo. (João 11.2)
Assim como Mateus e Marcos nos haviam mostrado a alma ardente
e moderada de Maria, inteiramente entregue à contemplação, silenciosa
aos pés do Mestre, assim vamos encontrá-la agora nos traços fiéis
daquele que a viu imersa num único sentimento, e só sabendo chorar.
Após ter enviado um recado a Jesus ela ficou quieta em sua casa, e só
levantou-se quando o seu Deus se aproximou. Ela correu para ir lançar-
se aos seus pés adorados, mas vagarosos em vir consolá-la. Ora Jesus,
diz João, amava a Marta e a sua irmã e a Lázaro (João 11.15). Nada mais
era necessário dizer. Amados de Jesus também o seriam de João cuja
narrativa nos comunica sua compaixão para com aquela família.
O recado que Marta e Maria mandaram era curto; constava apenas
destas palavras:
Senhor, eis que está enfermo aquele que tu amas. (João 11.3)
Não lhe pediam que voltasse à Judéia devido às ameaças dos
judeus. Contentavam-se apenas em fazer um apelo àquele coração que
bem conheciam. Não se enganaram, pois Jesus Cristo disse logo a seus
discípulos:
Esta enfermidade não é para morte, mas para glória de Deus,
para que o Filho de Deus seja glorificado por ela. (João 3.4)
Como ocorrera com o cego de nascença, aqui também o milagre é
anunciado antecipadamente; é uma promessa. Deus, porém, é Senhor do
tempo, e só dois dias depois (João mesmo o observa) Jesus disse a seus
discípulos: Vamos outra vez para a Judéia. Mas ir à Judéia era entregar-
se à morte.
Disseram-lhe os discípulos:
Rabi, ainda agora os judeus procuravam apedrejar-te, e
tornas para lá? (João 11.8)
Mas era necessário, pois nesse intervalo de tempo Lázaro havia
morrido. Jesus deu a seus discípulos a notícia desse fato com estas
palavras de esperança imortal e divina:
Lázaro, o nosso amigo dorme, mas vou despertá-lo do sono.
(João 11.11)
Senhor, se dorme, estará salvo, responderam os discípulos. Não
entenderam que Jesus estava falando figuradamente da morte.
Lázaro está morto (...) mas vamos ter com ele. (João
11.14,15)
E foi então que Tomé pronunciou aquelas palavras que João repete
com admiração:
Vamos nós também, para morrermos com ele! (João 11.16)
Depois deste prólogo ocorrido na Peréia, a ação transporta-se para
a aldeia de Betânia. Ali os discípulos, bem como João, desaparecem.
João não é mais que o espectador atento e enternecido, o relator fiel
daquele drama que apresenta-se aos nossos olhos, ora lacrimosos, ora
fascinados pela luz.
Em primeiro lugar aparece Marta, ativa, impetuosa, correndo ao
encontro do Mestre, dirigindo-lhe uma palavra na qual a censura se
mescla com o amor:
Senhor, se tu estivesses aqui, meu irmão não teria morrido!
(João 11.21)
Mas em seguida ele pronuncia uma palavra de fé:
Mas também, agora, sei que tudo quanto pedirdes a Deus,
Deus to concederá. (João 11.22)
Jesus respondeu-lhe:
Teu irmão há de ressuscitar. (João 11.23)
Ela pensa que ele está falando de uma ressurreição futura, a do
último dia. Mas Jesus intercepta-lhe essa idéia com esta grandiosa
declaração:
Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em
mim, ainda que esteja morto, viverá. (João 11.25)
Marta retorna para casa e avisa a Maria que o Mestre havia
chegado e mandara chamá-la. Entra então em cena Maria, a
contemplativa. Fala menos, porém chora mais.
Jesus, pois, quando a viu chorar e também chorando os
judeus que com ela vinham, moveu-se muito em espírito e
perturbou-se. E disse: Onde o pusestes? Disseram-lhe:
Senhor, vem e vê. Jesus chorou. Disseram, pois, os judeus:
Vede como o amava. (João 11.33-36)
São frases que deveriam ser lidas de joelhos, e são elas que fazem
do evangelho de João não só o evangelho mais humano, como também o
mais divino de todos os evangelhos. A antigüidade austera escrevera que
"chorar não era digno de um filósofo", mas João nos mostra que chorar é
digno do Filho de Deus.
Jesus encaminhou-se para o sepulcro. Para ali nos conduz João!
Era uma caverna e tinha uma grande pedra redonda fechando sua
entrada.
Há quatro dias que o cadáver estava ali e já exalava mau cheiro.
Removeram a pedra. Em voz alta e poderosa, o Verbo de Deus, que é a
ressurreição e a vida, ordenou ao morto que se levantasse: Lázaro, vem
para fora! No mesmo instante levantou-se Lázaro ainda tendo as faixas
com que envolviam o corpo dos orientais; o rosto ainda estava coberto
com um lenço. Desatai-o e deixai-o ir! Todas as minúcias deste milagre,
as impressões dos que o testemunharam, cada passo das duas irmãs,
cada palavra de Jesus, sua oração, os olhos voltados para o céu, a
autoridade e o tom de voz, tudo o que uma testemunha pôde ver e ouvir
não se apagou da memória de João. É a memória do coração. De nada
nos esquecemos, absolutamente de nada, quando amamos.
Muitos, pois, dentre os judeus que tinham vindo a Maria e que
tinham visto o que Jesus fizera creram nele. (João 11.45)
Era esse o fruto que o Salvador do mundo queria: que cressem
nele.
João foi o espectador que tudo viu, o observador atento e
emocionado em quem esta cena produziu impressão inapagável; dela ele
não esqueceu um só pormenor. Tudo foi apanhado em flagrante, tomado
ao vivo: foi a fotografia que se revelou no espírito do apóstolo, que se
imprimiu naquele coração.
Nem com o talento, e nem mesmo com o coração João poderia
conceber semelhante fisionomia: ela ultrapassa completamente sua
capacidade. Este Jesus é homem, e como pôde ressuscitar Lázaro? Ele é
Deus, e eis que se abala e chora. Como reunir traços tão diversos, tão
opostos? Perguntem a João. Mas ele não sabe. Ele viu, ele descreveu, e
nada mais pode dizer. O humano e o divino confundiram-se
harmoniosamente e nos fizeram ver, num só ato, a beleza total de Jesus.
Ele é homem, homem pelas alegrias, pelas inquietações, pelas agitações
e ternuras de amor. Mas ao mesmo tempo é Deus, e o amor arma-lhe o
braço com todas as forças divinas. Tal coisa nunca tinha sido vista, e
jamais tornará a ser vista neste mundo de sombras, onde perto daqueles
a quem amamos e que sofrem, e que nos chamam em seu socorro,
deseja-se tanto e faz-se tão pouco!

CAPÍTULO 5 - A FACE HUMANA E DIVINA DE JESUS

A principal conclusão que devemos tirar sobre o porquê dos


milagres de Jesus está fundamentada na sua divindade. Jesus sempre
dizia:
Se não credes em mim, credes nas minhas obras... (João
10.38)
João sabia que Jesus era, antes de tudo, o Verbo, isto é, a Palavra
substancial que ele via propagar-se, alcançar, agir, "cheia de graça e de
verdade" sobre os espíritos rebeldes ou sobre a multidão entusiasmada.
Mas não bastava a Jesus proclamar-se o Filho de Deus. Era preciso que
todo o seu ser afirmasse isso também. Ora, no Evangelho de João, Jesus
Cristo é verdadeiramente Deus. Ele mostra-se como Deus em toda sua
pessoa, em suas ações, em sua vida. Sustentou ele esse título de
maneira simples, constante e naturalmente. E sua fisionomia foi
reproduzida do natural pelo seu discípulo predileto, e apareceu como uma
visão terrestre da divindade.
Procuremos escutar como fala Jesus Cristo. Sua eloqüência é
sublime porque vem das alturas. É a expansão do Verbo de Deus. Por
isto não se acha nas palavras de Jesus aquela excitação viva que levava
os profetas a ímpetos ardentes e a imagens audaciosas, quando o Es-
pírito divino, tomando-os em suas asas, transportava-os ao seio das
visões celestiais. O raio não o fulmina, porque ele é luz. Sem esforço ele
atinge as alturas, porque é ali o lugar do seu Espírito, e ele está no
próprio seio do mistério que revela.

A serena expressão da grandiosidade

Eis porque sua palavra é sempre tão simples como natural e


elevada. Os filhos de rei, nascidos no meio das grandezas, falam com
toda naturalidade sobre palácios, cetros e coroas. Jesus não discute, não
replica, não declama. Nem mesmo procura provar nada. O que tem a luz
a fazer senão mostrar-se? A palavra é por ele semeada como os grãos
nos campos, abundantemente, porque ele os tem em quantidade;
serenamente, porque ele é o Senhor; com simplicidade, porque ele pode
humilhar-se sem nada perder de sua grandeza; enfim, confiantemente,
porque ele sabe o dia e a hora da colheita.
Sendo ele mesmo profeta, via-se morrer e tombar no sepulcro como
o grão na terra, mas para emergir como a espiga. Dizia que seu sangue
seria seu batismo, e que sua paixão seria sua glória, e que tudo enfim
seria consumado na unidade e não haveria mais do que um só rebanho e
um só pastor. Tudo o que temos visto ao longo desses dois mil anos de
história da Igreja, todas as luzes e direções que a humanidade há de
receber do Evangelho até o fim dos tempos, Jesus o predisse.
Um terceiro poder da inteligência de Jesus é não conhecer a
dúvida, é permanecer certo e senhor de si mesmo. Esta certeza serena
jamais abandonou o Mestre. Ele mantinha-se sempre inabalável ao falar e
provar sua divindade. Enquanto os opositores a discutem, ele a sustenta;
enquanto eles a negam, ele a confirma. Ousam objetar-lhe que ele não
conhece as letras; ele responde que é a Sabedoria de Deus em pessoa.
Não querem ver nele senão o filho de José, o carpinteiro, cuja família
conhecem em Nazaré; ele assegura tranqüilamente que o próprio Deus é
seu Pai, e que veio de Deus.
Não se incomoda se seu discurso surpreende. Se sua linguagem
escandaliza, ele não a corrige; se sua palavra parece severa, ele não a
modifica. Se os incrédulos o abandonam por causa da sua doutrina, ele
se compadece dos dissidentes, mas deixa-os partir. A cada reação de
espanto por suas afirmações, o Verbo de vida responde com uma
afirmação ainda mais positiva.

"Nunca ninguém falou como este homem”

Se, como a definiram, a eloqüência é o som de uma grande alma, a


eloqüência de Jesus é o som de uma alma divina. Enquanto a palavra do
homem significa o que ele fez, a palavra de Deus faz o que ele diz. Ele é
a palavra criadora através da qual tudo foi feito, a palavra de vida graças
a qual tudo subsiste. Ela participa de todos os atributos divinos: do poder,
da bondade, da fecundidade, da simplicidade, da imortalidade. Passarão
os céus e a terra antes que passe ou pereça uma só sílaba pronunciada
pelos lábios de Jesus.
Jamais alguém viu Jesus recuar na defesa da verdade. Quando os
judeus zombaram dele e com seu desdém o fizeram voltar à sua
província da Galiléia, João o mostra pouco depois do alto dos pórticos do
Templo, em presença da multidão, anunciando que é o Cristo (João 7.28).
Ele poupa os humildes, perdoa os pecadores, porém desmascara os
hipócritas, confunde os soberbos, porque ele é a verdade e eles são a
mentira.
Atentam contra sua vida, mas por acaso alguém poderá matar a
verdade? Tramam sua morte: Jesus vai ao encontro dela. Ele é a luz do
mundo e brilhará sobre todos eles até que a noite venha. Mas essa noite
não o assusta, porque a verdade terá uma alvorada ainda mais bela.
Quando levantardes o Filho do Homem então conhecereis
quem eu sou (João 8.28).
Enfim, na cruz, quando não lhe restava mais do que um sopro de
vida, Jesus quis ainda, com um tranqüilo e derradeiro olhar, certificar-se
de que toda a verdade se havia cumprido. Está consumado, disse ele ao
expirar. Eis o que João viu e o que devia repetir. Tal força de caráter, tal
magnanimidade seriam unicamente humanas?

Seu amor incomparável

O seu amor era um amor imenso. Enquanto o nosso amor alcança


só um pequeno círculo, o amor de Jesus Cristo transborda e alcança o
mundo inteiro:
Eu não rogo somente por estes, mas também por aqueles
que, pela sua palavra, hão de crer em mim; para que todos
sejam um, como tu, o Pai, o és em mim, e eu, em ti; que
também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que
tu me enviaste. (João 17.20-21)
Era o amor total, absoluto, que se entregava por completo, sem
excluir pessoa alguma. Enquanto o nosso coração só quer um objeto
nobre para expressar o seu amor, o amor de Jesus dirigi-se aos
pequenos, aos pobres, aos decaídos, aos miseráveis. Ele deixa o reba-
nho para buscar a ovelha ferida e desgarrada, que ele carrega nos
ombros e traz para o redil. Passou pela terra afastado dos príncipes e dos
grandes. Chamou para perto de si os ignorantes e os pecadores. Amou
os humildes a ponto de ajoelhar-se e lavar-lhes os pés.
Havia em Samaria uma mulher que sofria sob o peso do pecado.
Jesus Cristo se fatigou a fim de ir alcançá-la no meio do seu povo. Havia
na Judéia uma pecadora que se tornara o escárnio de todos. Jesus, ten-
do-lhe perdoado, conduziu-a para junto de sua cruz, onde ela tanto
chorou que o próprio céu admirou-se de sua dor. Enfim, ele pediu que um
simples pescador como Pedro e vários outros pescadores, seus amigos,
apascentassem suas ovelhas, e ao pedir isto ele não quis saber o que
eles tinham ou sabiam, mas certificou-se de que sabiam amar e que
saberiam morrer.
Era o amor generoso e desinteressado. Quando ele pensou em si
mesmo? Multiplicou o pão para a multidão faminta, mas quanto a ele,
vivia do que lhe davam, e jejuava sempre nas cidades e desertos. Nas
bodas de Caná transformou a água em vinho, mas pediu um copo d'água
a uma estranha.
É a sua Vida que ele nos dá com abundância, e não encontramos
no Evangelho de João expressão que tenha mais a ver com Jesus do que
esta. Seu amor perde-se na própria eternidade, no seio da qual Jesus nos
quer perto de si.
Foi nessa perfeição e beleza soberana que João viu o Homem-
Deus levantando os olhos ao céu, invocando o nome de seu Pai,
colocando as mãos sagradas na cabeça do doente, derramando
abundantes lágrimas diante do túmulo de um amigo, fazendo jorrar a vida
de sua alma e de suas mãos, fazendo correr a graça, a saúde e a
regeneração nos corpos e nas almas das pessoas que o procuravam.
João havia lido tudo isso no olhar de Jesus, olhar do qual uma única
centelha bastaria para conquistar um apóstolo, para transformar um
homem, para arrebatar as almas para sempre. Este espetáculo por si só
era outra eloqüência, outra revelação da divindade. Sentia-se estar "na
companhia do Pai e do Filho". Estava-se com Jesus tão sublimemente
como se estará com Deus no céu.

A exatidão do retrato que João pintou

Tal foi o retrato que João traçou de seu Mestre. Nada citou que
Jesus não tivesse dito, nada escreveu que não tivesse visto. Devido a
uma irremediável enfermidade humana, toda grandeza perde seu
prestígio vista de muito perto. Porém, três anos passados na familiaridade
da alma de Jesus tinham feito crescer aos olhos de seu discípulo o brilho
de sua beleza sem igual.
Qual de vós me convencerá de pecado? perguntava o Justo. Há
dois mil anos que o Evangelho sustenta o mesmo desafio ao mundo. Será
que, ao longo dos séculos, acharam em Jesus uma única ambigüidade,
uma só fraqueza, uma única sombra de injustiça? Eclipsou-a alguma
beleza? Alguém já conseguiu igualá-la? Não!
Seria possível a caneta ou o pincel criar, imaginar esse retrato de
Jesus não tendo existido qualquer original que se aproximasse, que
pudesse ao mesmo dar uma idéia e fornecer o modelo? Não, porque não
é possível criar Deus, não se inventa uma figura divina, pois o inventor
seria então maior que o herói. Se João pôde exprimir o ideal divino é que
este ideal viveu debaixo de seus olhos, e que, como o próprio João
confessa, ele usufruiu durante três anos da visão, da palavra e do contato
com Deus. Para ele nos dar um retrato verdadeiramente divino só teve
que recordar-se e descrever.
Que grande ouvinte teve Jesus de suas palavras! Que maravilhoso
contemplador de suas obras! Que discípulo fiel à doutrina! Ó
contemplador espiritual! Ó homem divinamente inspirado, tu vistes a face
do próprio Deus!

CAPÍTULO 6 - A INSTITUIÇÃO DA SANTA CEIA

Para compreendermos esta nova revelação do amor de Jesus e


circundarmos o mistério no seu conjunto, iniciaremos a análise da
narrativa de João pelo milagre da multiplicação dos pães, que forneceu
ao Senhor os argumentos e a ocasião dessas divinas instruções.

A multiplicação dos pães e dos peixes

Foi durante a última temporada de Jesus na Galiléia. Excetuando


Nazaré, toda aquela província fizera ao Mestre e aos discípulos carinhosa
recepção. Desejando, porém, afastar por algum tempo seus discípulos
das doçuras desse lugar, e prepará-los para novas lutas, Jesus tinha
passado para o outro lado do lago, indo para um local solitário que
chamavam de deserto, e que ficava vizinho de Betsaida, cidade natal de
João.
Imediatamente após a sua chegada, juntou-se em torno dele uma
multidão ávida de suas palavras e sobretudo desejosa de ver ou usufruir
dos seus milagres. O deserto é limitado ao norte por uma montanha de
encostas suaves. Ali sentou-se Jesus Cristo para instruir o povo e curar
os enfermos. Ele fez com que também se sentassem perto dele os
discípulos. Informando esse detalhe, João indica qual era o seu lugar e dá
ao seu testemunho uma primeira garantia de autenticidade.
A Páscoa, festa dos judeus, estava próxima (Jo 6.4), acrescenta
ele. Ora, as horas desse dia celeste iam passando ao som das bem-
aventuradas palavras de Jesus, e ninguém pensava nas necessidades da
vida. Porém, quando a noite chegou, tornou-se tarde para atravessar de
novo o lago em busca de alimento e o Senhor, compadecido, preocupou-
se em providenciar comida para tão grande multidão.
Foi então que Jesus, com um milagre, inaugurou a perpétua
providência do amor cristão multiplicando pães e peixes para todos. Fiel à
sua memória, João começou a descrever esta cena por um prólogo no
qual o Mestre e os discípulos conversaram edificantemente. Os outros
evangelistas falaram apenas de um modo geral e vagamente; João,
testemunha ocular, designa-os pelo nome e individualidade. O Senhor
perguntou primeiro a Felipe: Onde compraremos pão para estes
comerem? Felipe assustou-se. Nem o Mestre nem os discípulos eram ri-
cos. Nem duzentos dinheiros de pão não bastarão para que cada um
tome um pouco (Jo 6.7), responde Felipe. Aquela observação destacava
o fato de ser impossível Jesus e os discípulos alimentarem aquela
multidão, e a grandiosidade do milagre que ia acontecer.
Em seguida André, irmão de Pedro, diz a Jesus que um menino
estava ali com cinco pães e dois peixinhos.
Mas, o que é isto para tantos ? (v.9) perguntou André. Jesus
mandou o povo sentar-se na relva, que era espessa naquele lugar,
conforme observa João, que de tudo se lembra. Cinco mil homens
sentam-se sobre a relva. O alimento começou a ser distribuído pela mão
daquele que de um grão de trigo faz sair uma colheita. Os discípulos
reúnem as sobras, com as quais enchem doze cestos.
João nada omite do que lhe causou admiração. Mas nem nessa
passagem, nem em nenhum outro lugar, essa admiração se revela por
qualquer palavra de entusiasmo ou espanto. É simplesmente o tom
sereno da narrativa que se desdobra na mão de uma testemunha sincera.
Sua narrativa não é senão o sublime relatório do que se lhe passou sob
os olhos.

Jesus, o pão da vida

Todavia, este milagre foi somente a ligeira manifestação de um


mistério mais elevado que forneceu os parâmetros de uma doutrina
sublime. Entusiasmada com o que acabava de presenciar, a multidão quis
tomar consigo o seu benfeitor e torná-lo rei. Jesus, porém, retirou-se para
a montanha, e aproveitando a noite desceu escondido pelo lado do mar.
Apesar do vento rijo que soprava, ele caminhou sobre o lago onde foi
encontrado pelo barco dos apóstolos, distante uns cinco ou seis
quilômetros da margem..., por volta da quarta vigília. Estas informações
precisas são de João, que desde a infância conhecia o lago (João 6.19).
Receberam-no a bordo, desembarcaram e seguiram com ele até
Cafarnaum.
O povo de toda a região havia seguido para lá, insistindo em
reconhecê-lo como rei de Israel. A multiplicação dos pães principalmente
confirmava essa crença, pois era uma tradição para os judeus que o
Messias, assim como Moisés, devia fazer descer o alimento do céu.
Fazendo então alusão àquela opinião comum, alguns disseram a
Jesus:
Que sinal, pois, fazes tu, para que o vejamos, e creiamos em
ti? Que operas tu? Nossos pais comeram o maná no deserto,
como está escrito: Deu-lhes a comer o pão do céu. (João
6.30-31)
Intimado a dar um pão sobrenatural pelo exemplo de Moisés, Jesus
Cristo começou por propor-se a si mesmo como alimento espiritual da
vida deificada que ele trazia ao mundo:
Eu sou o pão da vida; aquele vem a mim, não terá fome; e
quem crê em mim nunca terá sede. (João 6.35)
Porém, enquanto os judeus cobravam de Jesus que ele lhes desse
pão material, Jesus lhes falava do pão espiritual. Esse pão não tinha
analogia alguma com o alimento material do maná, que havia sido dado
por Deus a Moisés. Jesus, portanto, não satisfizera ainda ao pedido dos
judeus; não realizara a esperança da multidão.
E é por isso que, de repente, querendo acentuar mais ainda a sua
pregação, Jesus lhes dá a promessa de outro pão, o pão da vida, superior
ao primeiro. João usa nova e estranha linguagem sobre esse assunto
mais elevado:
Este é o pão que desce do céu, para que o que dele comer
não morra. (João 6.50)
O Mestre não propõe mais somente vir a ele, ou mesmo crer nele,
mas comê-lo.
Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer
desse pão, viverá para sempre; e o pão que eu der é a minha
carne, que eu darei pela vida do mundo. (João 6.51)
Este pão é sua carne! Jesus Cristo o explica: A carne que
deveremos comer é o símbolo da verdadeira carne que ele vai em breve
entregar para a redenção do mundo, a mesma à qual João se referiu
quando disse que o verbo se fez carne.
Depois, como se não fosse bastante formal esta ordem de comer a
sua carne, Jesus a completa pela de beber o seu sangue, o que é mais
alegoricamente inexplicável ainda:
Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida
eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. (João 6.54)
E como para que este milagre fosse necessário uma garantia, o
Senhor apelou para o dia em que os judeus veriam essa mesma carne
ressuscitada, livre das leis da matéria grosseira, subir triunfante ao céu
para ficar à direita do Pai.
Sabendo, pois, Jesus em si mesmo que os seus discípulos
murmuravam a respeito disso, disse-lhes: Isto vos
escandaliza? Que seria, pois, se vísseis subir o Filho do
homem para onde primeiro estava? (João 6.61-62)
Os discípulos, para quem esta doutrina era tão clara na fórmula e
tão misteriosa no sentido, não podendo negá-la nem compreendê-la,
resolveram desprezá-la e abandonar Jesus.
Desde então, muitos dos seus discípulos tornaram para trás e
já não andavam com ele. (João 6.66)
Porém o Mestre, que se compadeceu deles e os amava, preferiu
deixá-los afastar-se porque ele não pode transigir com a verdade, nem
dizer o que ele não era. Mas é Pedro quem, liderando o número dos
discípulos que ficaram, pronuncia uma das mais belas e profundas
declarações que alguém já fez sobre Jesus:
Então, disse Jesus aos doze: Quereis vós também retirar-
vos? Respondeu-lhe, pois, Simão Pedro: Senhor, para quem
iremos nós? Tu tens as palavras da vida eterna. E nós temos
crido e conhecido que tu és o Cristo, o Filho de Deus. (João
6.67-69)
Esse pão se chama o pão celeste, o pão descido dos céus, o pão
da vida. Pois a terra tornou-se incapaz de nos proporcionar alimento que
desse vida. Ela se corrompera desde o pecado original, como árvore de
seiva esgotada que não dá mais frutos. Nem luz, nem amor, nem força. É
a própria morte, segundo a expressão comum de João.
Ora, o novo maná veio trazer à alma uma vitalidade superior e
imortal. Aquele que come minha carne fica em mim, e eu nele. Eu vivo, e
vós também vivereis, repetia Jesus em outro lugar.
Não tínhamos sobre a terra senão um esboço da vida; Jesus nos
fez entrar na vida completa, perpetuada, eterna: Aquele que comer deste
pão viverá eternamente.
Enfim, o próprio corpo, vivificado pelo Espírito Santo, irá receber
dele semente de ressurreição, que finalmente fará brotar a vida do seu
próprio túmulo:
Vossos pais comeram o maná no deserto, e morreram...
Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida
eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. (João 6.49,54)
Ele estava ensinando, portanto, a regeneração total de todo o nosso
ser, e João poderá exclamar com entusiasmo e ação de graças: Quanto a
nós, sabemos que passamos da morte à vida. Era o amor levado aos
limites extremos, tal qual o homem podia imaginar, mas que só um Deus
podia realizar. Era o amor indo aos limites do tempo pela perpetuidade,
pois, enquanto neste mundo os laços mais sólidos se rompem, o divino
amigo compromete-se a ser nosso hóspede até o fim dos séculos.
Era o amor vencedor das fronteiras dos corpos, penetrando e
unindo as almas. Enquanto nossas alianças não atingem o ser humano
no que ele tem de íntimo; enquanto as formas de linguagem que
representam uma vida que se confunde com outra são apenas uma metá-
fora e uma bela poesia, a comunhão com Jesus é tão real, tão profunda,
que se parece com a das três Pessoas divinas formando um só Deus.
Será que o homem entregue a si mesmo seria capaz de alcançar
essa doutrina? Será que qualquer um dos discípulos, que não fosse o
discípulo predileto, teria podido colhê-la tão completa e tão viva dos lábios
de Deus? Não. Uma ciência tão elevada e tão íntima da Divindade não
podia ser colhida senão na própria fonte. Houve uma noite misteriosa
quando João repousou sobre o seio de seu Mestre. Se os grandes
pensamentos vêm do coração, então os pensamentos elevados e puros
só podem vir do coração de Deus.
Aproximemo-nos desse coração, acheguemo-nos a essa fonte.
Vejamos o que ocorreu naquela noite.

CAPÍTULO 7 - DURANTE A CEIA COM O SENHOR

Havia três anos que João não deixava seu Mestre. Ele tinha
gravado no espírito as suas palavras, havia fixado em sua alma os traços
fisionômicos de Jesus. Tinha também participado de seus sofrimentos.
Em parte alguma se lê sobre os ultrajes dos judeus, o ódio dos fariseus, a
inveja dos sacerdotes contra o Filho de Deus em uma história mais
contínua e mais comovedora como no Evangelho de João.
Porém, naqueles últimos tempos, o apóstolo verificara que a cólera,
a princípio em surdina, prorrompia dia a dia em ameaças mais sinistras.
Os inimigos chegavam já às primeiras violências contra Jesus. Um dia os
fariseus mandaram pessoas para prender o Mestre (João 7.32,44). Outra
vez quiseram apedrejá-lo. João sabia que, em uma reunião do Sinédrio,
haviam decretado que o Justo devia morrer (João 11.47). Mas Jesus
escapou daquelas mãos deícidas, dispostas a matar o próprio Deus (João
8.59). Conseqüentemente, conforme nos conta João, os discípulos foram
obrigados a seguir o Mestre para uma espécie de exílio, e passaram um
tempo escondidos em uma cidade, junto ao deserto, chamada Efraim
(João 11.54) para fugirem dos males extremos que ameaçavam cair
sobre a cabeça de Jesus.
Porém, a festa da Páscoa, que fez Jesus voltar à cidade, despertou
o entusiasmo popular com tal impulso de gratidão que os inimigos do
Salvador resolveram definitivamente acabar com ele, e João previu tristes
acontecimentos.
Muitas vezes Jesus havia dito:
Ainda o meu tempo não está cumprido. (João 7.8)
Porém, João ouvia-o dizer agora:
É chegada a hora em que o Filho do Homem há de ser
glorificado. Na verdade, na verdade vos digo que, se o grão
de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se
morrer, dá muito fruto. Quem ama a sua vida perdê-la-á, e
quem, neste mundo, aborrece a sua vida, guardá-la-á para a
vida eterna. (João 12.23-25)
Ora — observa o discípulo — Jesus dizia isso significando de que
morte havia de morrer. (João 12.33)
Jesus dizia ao povo que em breve a Luz lhes seria retirada (João
12.35); porém jamais aquela Luz mostrará brilho mais divino. Sua alma
parecia já cheia do céu, e João, que seguia ininterruptamente a Jesus
naquela fase suprema, podia prever revelações mais elevadas e maiores.
Era a última semana de vida do Filho do Homem. No quarto dia,
tendo ele ido ao átrio do Templo, propôs ao povo dupla parábola. Após
contar primeiro o crime dos maus vinhateiros que mataram o filho do dono
da vinha, Jesus falou em seguida de uma grande ceia que um rei
preparara para as bodas de seu filho, e para a qual convidara os
pequenos e os pobres, dizendo-lhes: "Vinde, pois está tudo pronto.”

A escolha do local para a celebração da Páscoa

No dia seguinte, dia 13 do mês de Nisã, era quinta-feira, o primeiro


dos dias em que os judeus comiam pão fermentado. Jesus havia se
retirado da cidade, provavelmente para Betânia, dirigindo-se à casa de
Lázaro, que ele quis visitar pela última vez. Jesus saía todas as tardes de
Jerusalém e se hospedava em Betânia, de onde voltava todas as manhãs
para realizar o seu trabalho.
Deixando Jerusalém todas as noites, ele escapava de seus inimigos
que, com medo do povo, não ousavam apoderar-se dele em pleno dia.
Os discípulos vieram lhe perguntar:
Onde queres que preparemos a comida da Páscoa? (Mt
26.17)
Aquela não deveria ser uma Páscoa como todas as outras. Jesus,
querendo torná-la uma solenidade mais particular, designou dois dos
discípulos para prepará-la. Um deles era João.
E mandou a Pedro e a João, dizendo: Ide, preparai-nos a
Páscoa, para que a comamos. (Lucas 22.8)
João começava assim a desempenhar no Cenáculo o belo papel
que não mais abandonaria: convinha que aquele que havia sido iniciado
intimamente nas profundezas do mistério, fosse o primeiro ministro a
participar de sua consumação.
Tendo chamado em particular os dois discípulos, Jesus deu-lhes
certas instruções mais específicas:
E ele lhes disse: Eis que, quando entrardes na cidade,
encontrareis um homem levando um cântaro de água; segui-o
até à casa em que ele entrar. E direis ao pai de família da
casa: O mestre te diz: Onde está o aposento em que hei de
comer a Páscoa com os meus discípulos? Então, ele vos
mostrará um grande Cenáculo mobiliado; aí fazei os
preparativos. (Lucas 22.10-12)
O interesse particular que Jesus Cristo demonstrava pela
solenidade, aqueles pormenores domésticos tornando-se de repente
dignos da preocupação de Deus, e o requinte de esplendor naquele que
se dignara nascer em uma estrebaria, que morara em um casebre e que
ia amanhã morrer numa cruz, eram para os apóstolos o prenuncio de
grandes acontecimentos que Jesus preparava, e João entendia que
estavam para atingir a qualquer momento as manifestações supremas do
amor.
João obedeceu ao Mestre. Muitos intérpretes afirmam que foi um
dos discípulos, João Marcos, que teve a honra de emprestar a casa para
a Ceia. Pedro e João ali prepararam, segundo as instruções formais de
Jesus, uma sala grande e bela, para a celebração da última Páscoa em
companhia de Cristo. A casa ficava a trezentos passos da porta de Sião, e
na encosta da montanha. Era um imóvel isolado, de dois andares, que
depois ficou sendo chamado de o "Cenáculo do Senhor". No andar térreo,
a primeira sala atapetada - segundo o costume do Oriente - servia de sala
de jantar. Mas foi na segunda sala, menos espaçosa e localizada no
andar superior, que o Senhor celebrou a última Páscoa e instituiu a Santa
Ceia. E foi ali que Ele apareceu aos discípulos no dia da ressurreição. Foi
ali também que o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos. Enfim, o
Cenáculo tornou-se o primeiro templo cristão na história da Igreja, e foi
daquele lugar que partiram os discípulos para evangelizar o mundo.
Estando tudo pronto e chegando a noite, Jesus entrou no Cenáculo
com os doze apóstolos para a ceia dos pães asmos.
O Êxodo estabelecera aos israelitas que cada um comesse a
Páscoa em família. Tomavam essa refeição de pé, tendo os rins cingidos
e o bordão na mão, como viajantes, em memória do dia em que o Senhor,
com poder e grande glória, os tirara do Egito. Mas Jesus pensava numa
viagem mais longa, e as palavras de despedida juntaram-se a palavras de
amor:
Desejei muito comer convosco esta Páscoa antes que
padeça, porque vos digo que não a comerei mais até que ela
se cumpra no Reino de Deus. (João 22.15-16)
A antiga Páscoa tinha sido a passagem da idolatria egípcia à
unidade de Deus proclamada no deserto: Eu sou o que sou... A nova
Páscoa, cuja realização João preparara, era a passagem da fé no Deus
vivo dos judeus à fé no Deus presente no meio dos homens até o fim dos
séculos: Eis que estou convosco!...
Comeu-se então o cordeiro, que os discípulos repartiram entre si,
no meio de conversas cheias de esperança e temor. A despedida do
Mestre e o anúncio de seus sofrimentos diante daquela carne imolada
esclareciam no espírito de João o sentido profético da primeira frase que
ele ouvira a respeito do Redentor: Eis aqui o Cordeiro de Deus!

O Filho de Deus ajoelha-se aos pés de simples pescadores

A Páscoa legal terminara. Jesus levantou-se da mesa - conta o


discípulo - para cumprir um mistério ainda maior do que a ação figurada
que ele acabara de concluir. Como dentro de poucos instantes Jesus irá
realizar outro sacrifício, e um novo altar substituirá o antigo sacrifício e a
antiga Páscoa, Jesus sentiu-se tomado de um respeito profundo e divino
por aqueles humildes, pobres e pequenos pescadores, chamados por ele
à honra do sacerdócio. Levantou-se então diante deles como se fossem
príncipes, e cingiu-se para os servir. Colocou água numa bacia e
ajoelhou-se diante deles como um servo, como um escravo. O Deus
Criador foi visto de joelhos lavando os pés daqueles homens e
enxugando-os em seguida com uma humildade que os encheu de
espanto.
Não era raro naquele tempo e naquele país lavar os pés dos
hóspedes antes da refeição. Mas o que significava aquele ritual, uma vez
que a ceia já havia terminado? Que outra ceia maior do que a do Cordeiro
Pascal ia então realizar-se? Os apóstolos se admiravam, diz João; Pedro
reclamou. Não compreendiam porque semelhante honra estava sendo
dada a homens. Porém, eles não sabiam que não era o homem que o
Senhor humilhado venerava neles, e sim ao próprio Deus de quem eles
iam tornar-se seguidores. Após aquele grandioso gesto, Jesus lhes
perguntou:
Entendeis o que vos tenho feito?... Ora, se eu, Senhor e
Mestre, vos lavei os pés, vós deveis também lavar os pés uns
aos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu
vos fiz, façais vós também. (João 13.12, 14-15)
Jesus, com o seu sublime exemplo, levou os discípulos a se
prostrarem diante da humanidade para se dedicarem a ela. Ensinou-os a
servir, a interceder, a expulsar demônios, a edificar, a lavar todos os pés
que a terra tivesse manchado, a levá-los à presença de Cristo para o
aceitarem como Salvador, a curar os pés daqueles que os espinhos
tivessem ferido, e a enxugá-los com a paciência, com o amor e com a
misericórdia.

A instituição da Santa Ceia

Após aquela grande lição, Jesus pôs-se de novo à mesa.


Recomeçou a ceia. É o que os intérpretes chamam de "a segunda ceia".
Nos evangelistas algo de mais solene brame e anuncia naquele momento
a hora sagrada e a aproximação do mistério.
Ali, no silêncio de uma hora de tranqüilidade e paz, Jesus partiu o
pão e fez a mais surpreendente declaração que João já ouvira até ali:
Tomai, comei, isto é o meu corpo. E, tomando o cálice e
dando graças, deu-lho, dizendo: Bebei dele todos. Porque isto
é o meu sangue, o sangue do Novo Testamento, que é
derramado por muitos, para remissão dos pecados. (Mateus
26.26-28)
João lembrou-se do que Jesus dissera aos habitantes de
Cafarnaum, quando se apresentou a eles como o pão vivo que desceu do
céu; se alguém comer desse pão, viverá para sempre... (João 6.51)
Convém notar que os discípulos, no Cenáculo, não sentiam mais
aquele horror que se havia apossado deles quando Jesus anunciara pela
primeira vez que ia dar-lhes sua carne para eles comerem e seu sangue
para eles beberem. Percebia-se aqui a grande sutileza e sabedoria de
Jesus em estabelecer como símbolos do seu corpo e do seu sangue o
pão e o vinho! Ao participarem deles, estaria então satisfeita a
necessidade mais profunda do coração humano!
Necessidade da verdade e do amor. Do amor tornado sensível, da
verdade tornada palpável, da vida em nós, da união à Vida que Jesus
veio realizar. Estava, portanto, instituída a Santa Ceia para ser
perpetuada em um memorial: Fazei isso em memória de mim.

O traidor

No entanto, enquanto ceava com seus discípulos e amigos, Jesus


sofria. Judas estava perto dele, e não longe de João, pois o traidor podia
pôr a mão no mesmo prato que o Mestre. O Senhor sabia quais eram os
seus planos; via sua desgraça, e era isso que o entristecia.
As palavras de amor pronunciadas por Jesus misturavam-se na
conversa com palavras de queixa que revelavam a mágoa profunda que
feria o coração do Senhor. Sobre João e os outros discípulos, Jesus dizia:
Ora, vós estais limpos, mas não todos. (João 10.10)
A mesa, Jesus falou outra vez sobre Judas e os demais:
Não falo de todos vós; eu bem sei os que tenho escolhido.
(João 10.18)
E foi a Judas que ele dirigiu estas palavras:
Mas para que se cumpra a Escritura: O que come o pão
comigo levantou contra mim o seu calcanhar. (João 13.18)
Houve uma agitação geral entre os discípulos após Jesus
pronunciar aquelas palavras. Por não revelar nome algum, Jesus fazia
cair a suspeita sobre todos eles! Colocado ao lado do Mestre, João
percebera a inquietação geral. Será que não teria sido mesmo para
confidenciar-se com ele que Jesus o tinha querido tão perto do seu
coração? João recolhia as confidências de Jesus, e gostava imensamente
de ser o porta-voz das profundas revelações do seu Mestre.
João percebeu que Jesus estava emocionalmente abalado.
Dirigindo-se a todos, o Senhor denunciou em alta voz o grande pecado
que um deles estava para cometer:
Na verdade, na verdade vos digo que um de vós me há de
trair. (João 13.21)
Quem era o traidor? Os discípulos olharam-se e interrogaram uns
aos outros. Mais agitado ainda que os demais, João avançou receoso até
o seio do Mestre como para desviar o golpe ou fechar a ferida que a
traição abrira no coração de Jesus.
Tendo João se colocado perto de Jesus na Ceia, não se separou
mais dele. Ninguém jamais se apegou tão fiel e familiarmente ao Filho de
Deus como o apóstolo João. Quando Jesus foi preso, João entrou com
ele no átrio e não o abandonou nem na Cruz, nem na morte, nem mesmo
depois de sua morte, até que fosse sepultado.
É ele mesmo quem conta:
Ora, um de seus discípulos, aquele a quem Jesus amava,
estava reclinado no seio de Jesus. Então, Simão Pedro fez
sinal a este, para que perguntasse quem era aquele de quem
ele falava. E, inclinando-se ele sobre o peito de Jesus, disse-
lhe: Senhor, quem é? Jesus respondeu: É aquele a quem eu
der o bocado molhado. E, molhando o bocado, o deu a Judas
Iscariotes, filho de Simão. E, após o bocado, entrou nele
Satanás. Disse, pois, Jesus: O que fazes, faze-o depressa.
(João 13.23-27)
Foram as palavra que o Mestre misericordioso dirigiu a Judas, como
para mostrar-lhe que conhecia seus projetos. Porém Judas saiu em
seguida. Já era noite.
Nenhum dos que estavam à mesa com Jesus percebeu a que
propósito falara ele a Judas. Mas João, que o conta, não podia ignorar:
Jesus confidenciara-se com ele sobre sua maior dor. Um anjo o havia
confortado no jardim das Oliveiras; agora um amigo o consolava inclinan-
do-se sobre o seu peito na mesa da Ceia. O amigo divino necessitou do
conforto do amigo mortal. Aquele que tornou-se do nosso tamanho e
assumiu a nossa humanidade não escapou à lei que, na hora do
sofrimento, faz curvar-se a criatura, por mais forte e por maior que seja,
diante de outras, muitas vezes mais fracas, que nada sabem, que nada
podem, mas que pelo menos nos amam e são capazes de compreender e
aliviar o nosso sofrimento. Amigos que se dispõem a tomar sobre si uma
parte do nosso sofrimento, de nos trazer o bálsamo da compaixão,
bálsamo tão soberano e benfazejo que fez com que um homem se
tornasse capaz de consolar o próprio Deus.
Jesus derrama o seu coração diante dos seus amigos

Assim que Judas saiu, o Senhor iniciou uma explanação sublime.


Nada mais podia conter o impulso da alma que se queria dar totalmente,
mas que se contivera por estar na presença dolorosa de um filho de
Belial.
Judas não sabe o que perdeu. João consagrou quatro capítulos às
palavras maravilhosas que Jesus pronunciou após a Ceia. É a parte mais
admirável do seu Evangelho. Nem ordem nem arte humana alguma
presidem aquelas palavras que só o Filho de Deus poderia pronunciar.
Nelas sente-se transbordar por completo a alma que acaba de manifestar
a plenitude do seu amor pelos discípulos, e que em breve vai sacrificar-se
na morte.
João recolheu todas aquelas palavras, pois estava então reclinado
sobre a própria fonte da Divindade. O tom celestial que elas conservam
em seu livro comprova que o discípulo realmente havia colocado o seu
ouvido sobre o coração adorável de Jesus, do qual se fez eco. Quando
João escreveu o seu Evangelho ainda continuava cheio das sublimidades
que ouvira no coração do Filho do Homem.
Jesus Cristo começou por dar graças ao Pai pelo trabalho
maravilhoso que acabava de realizar. Assim como outrora Deus se havia
louvado da bondade de sua obra depois da Criação, Cristo louvou-se da
excelência ainda maior da obra da Redenção:
Agora, é glorificado o Filho do Homem, e Deus é glorificado
nele. Se Deus é glorificado nele, também Deus o glorificará
em si mesmo e logo o há de glorificar. (João 13.31-32)
Depois da ação de graças começou a despedida. Mas que
promessas divinas poderiam consolar os discípulos naquela despedida, e
que esperanças seriam capazes de levantar os olhos dos discípulos para
o céu?
Filhinhos, ainda por um pouco estou convosco. Vós me
buscareis, e, como tinha dito aos judeus: para onde eu vou
não podeis vós ir, eu vo-lo digo também agora. Um novo
mandamento vos dou: Que vos ameis uns aos outros; como
eu vos amei a vós, que também vós uns aos outros vos
ameis. (João 13.33-34)
Na verdade, na verdade vos digo que aquele que crê em mim
também fará as obras que eu faço e as fará maiores do que
estas, porque eu vou para meu Pai. E tudo quando pedirdes
em meu nome, eu o farei, para que o Pai seja glorificado no
Filho. (João 14.12-13)
E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que
fique convosco para sempre, o Espírito da verdade, que o
mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece;
mas vós o conheceis, porque habita convosco e estará em
vós. (João 14.16-18)
Jamais palavras tão elevadas tinham sido pronunciadas sobre a
face da terra. Felipe admirou-se ao ouvir aquelas sublimes palavras de
Jesus. Ele pensou que o céu ia abrir-se diante de si, e pediu para ver o
Pai, (João 4.8). Judas (não o Iscariotes) pensava que havia chegado a
hora em que o Cristo ia enfim manifestar-se a Israel (João 4.22). Tomé
perguntava que caminho o Messias ia tomar, e queria segui-lo (João
14.5). Todos viam bem naquelas palavras de Jesus o hino de sua glória
futura, mas não eram capazes de avaliar por que preço essa glória ia ser
adquirida, e como aquela ação de graças era o testamento onde Jesus,
às vésperas de ser crucificado, deixava como última palavra de sua
doutrina, de sua suprema vontade, e como herança de sua graça.
A Felipe Jesus respondeu:
Disse-lhe Jesus: Estou há tanto tempo convosco, e não me
tendes conhecido, Felipe? Quem me vê a mim vê o Pai: e
como dizes tu: Mostra-nos o Pai? (João 14.9)
E a Tomé, Jesus declarou:
Disse-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida.
Ninguém vem ao Pai senão por mim. (João 14.6)
Sua última vontade, perpetuamente repetida, foi o mandamento do
amor:
Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o
amará, e viremos para ele e faremos nele morada. O meu
mandamento é este: Que vos ameis uns aos outros, assim
como eu vos amei. Nisto todos conhecerão que sois meus
discípulos, se vos amardes uns aos outros. (João
14.15,23;15.12;13.35)
A suprema herança que Jesus deixa aos seus discípulos é o dom
do Espírito Santo, o Espírito da Verdade que procede do Pai e que irá
lhes ensinar todas as coisas futuras. Depois, como coroação soberana de
todos os dons, Jesus lhes deixa uma paz sobre-humana, uma paz
inabalável mesmo no centro da tempestade; uma paz universal que se
propagará entre indivíduos e as nações quando eles aceitarem a Cristo
como Salvador e aprenderem a amar-se uns outros. Uma paz divina,
superior à que o mundo dá, uma paz que ninguém nos poderá tirar e que
deverá enfim eternizar-se no céu. Quantas palavras inesquecíveis João
reuniu naquela noite memorável, e que raios de esplendor desceram
subitamente sobre João, sobre seus companheiros, e desce hoje sobre
nós!
A grandiosa explanação de Jesus terminou com uma bela oração.
Jesus levantou os olhos para o céu, e dirigindo-se a Deus, disse:
Pai, é chegada a hora; glorifica a teu Filho, para que também
o teu Filho te glorifique a ti... Eu glorifiquei-te na terra tendo
consumado a obra que me deste a fazer. E, agora,
glorifica- me tu, ó Pai, junto de ti mesmo, com aquela glória
que tinha contigo antes que o mundo existisse. Manifestei o
teu nome aos homens que do mundo me deste; eram teus e
tu mos deste, e guardaram a tua palavra... Pai, aqueles que
me deste quero que, onde eu estiver, também eles estejam
comigo, para que vejam a minha glória que me deste; porque
tu me hás amado antes da criação do mundo. (João 17.1,4-
6,24)
Tendo dito isto, Jesus preparou-se para morrer. Ele via o inimigo
invisível aproximar-se:
Já não falarei muito convosco, porque se aproxima o príncipe
deste mundo e nada tem em mim. Mas é para que o mundo
saiba que eu amo o Pai e que faço como o Pai me mandou.
Levantai-vos, vamo-nos daqui. (João 14.30,31)
Estava terminada a despedida. O grande discurso do Cenáculo foi
concluído com um brado de sublime coragem: Levantai-vos e vamo-nos
daqui!
A santa humanidade que estava prestes a quebrar-se como um
vaso de puro alabastro, deixava transparecer toda a chama interior da
alma de Jesus. A luz era tão intensa que os discípulos ficaram ofuscados.
E eles disseram:
Eis que, agora, falas abertamente e não dizes parábola
alguma. Agora, conhecemos que sabes tudo e não precisas
de que alguém te interrogue. Por isso, cremos que saíste de
Deus. (João 16.29,30)
Seria possível achar em outro lugar palavras nas quais a divindade
se manifeste em traços mais nítidos? É principalmente nessa magistral
exposição de Jesus que transbordam esses tesouros "de humanidade e
de benignidade" que, conforme diz o apóstolo Paulo, jorram do seio do
nosso Salvador.
Nada havia, no entanto, que denotasse a pompa de uma oração
preparada, como o diálogo que Sócrates moribundo teve com seus
discípulos. A elevação e a profundidade da doutrina se equilibram
mutuamente pela sua própria doçura, e são para a alma como o azul do
céu. O que aconteceu entre Jesus e os discípulos foi uma conversação
sublime, porém familiar e íntima, de um pai com seus filhos, de um amigo
com seus amigos, no silêncio de uma noite, durante uma ceia de
despedida.
Pedro ali fez as suas promessas vivas e suntuosas, Tomé insinuou
suas dúvidas, Felipe expôs seus desejos, Judas (não o traidor) suas
esperanças. Porém, nada é capaz de exprimir a impressão que aquelas
palavras deixaram no coração dos discípulos. Quando as lemos, elas
ainda hoje vibram dentro do nosso ser, como se tivessem acabado de sair
dos lábios do Senhor. Elas por si só seriam suficientes para povoar
qualquer solidão e preencher uma vida, pois foram suficientes para
transformar o mundo.
No final de todas as ceias, ao pé de todos os Calvários, na
presença de todas as ações de graças, tudo se apaga e não se pode
ouvir mais do que duas vozes imortais, a da alma que diz a Deus:
Senhor, mostra-me o caminho! e Deus que responde: Eu sou o caminho,
a verdade e a vida!

CAPÍTULO 8 - AO PÉ DA CRUZ

Depois do hino de ação de graças, Jesus Cristo, tendo dado o sinal


para deixarem o Cenáculo, encaminhou-se com os discípulos para o
monte das Oliveiras, onde costumava orar durante a noite.
Caminhavam juntos e lentamente. Era uma noite triste e
suavemente iluminada pelo luar da Páscoa. Ao atravessarem as vinhas
que naquele lugar cresciam como grandes arbustos, os discípulos se
lembraram que Jesus havia tomado da natureza que os cercavam
imagens capazes de melhor fazê-los compreender a sua doutrina:
Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o lavrador. Toda vara
em mim que não dá fruto, a tira; e limpa toda aquela que dá
fruto, para que dê mais fruto. Vós já estais limpos pela palavra
que vos tenho falado. (João 15.1-3)
E assim chegaram ao pé da montanha, num lugar pedregoso no
qual a história e a profecia estão de acordo em indicar como o local de
seus temores. Estavam no leito do ribeiro de Cedrom, cavado no vale
chamado primitivamente Tofet ou Ben-Hinon, e denominado depois de
Vale de Josafá. A palavra Cedrom significa em hebraico "trevas". E nada
é mais sombrio que aquele barranco, quase sempre seco, em cima do
qual serpenteia um atalho estreito que parece suspenso sobre o abismo.
Era dali que o livro de Levítico orientava que o bode expiatório devia
ser lançado. Caindo do alto dos rochedos de Zug, devia expiar as culpas
do povo. Davi também atravessou o Cedrom quando fugia de Absalão.
Mais adiante, o caminho alarga-se e avança até o lugar chamado
Getsêmani. Ali, do jardim onde o Senhor ia começar a sofrer, viam-se de
um lado as colinas da Cidade Santa, e do outro a montanha de onde
Jesus devia subir ao Céu.
João mesmo não relatou a paixão de seu Mestre no jardim das
Oliveiras. Porém, foi quem mostrou Jesus dizendo, muito tempo antes de
cair de cansaço e dor no Getsêmani:
Agora, a minha alma está perturbada; e que direi eu? Pai,
salva-me desta hora; mas para isso vim a esta hora. (João
12.27)
Não é, na verdade, o prelúdio ou o eco dos gemidos do Getsêmani?
E necessário distinguir as duas paixões de Jesus Cristo: a do corpo
e a do coração.
Ser amarrado, escarnecido, chicoteado e coroado de espinhos; ser
crucificado e traspassado por uma lança, é suplício do corpo. Porém, por
mais horrível que se suponha, não é essa a tortura que mais atinge as
almas superiores. Esses sofrimentos são enfrentados corajosamente,
algumas vezes até com alegria, e Jesus mesmo declarou que não se
devia temer aqueles que matam só o corpo.
Porém, ser vendido por seu amigo, ter escolhido homens para seus
companheiros leais e íntimos, seus herdeiros, seus irmãos, e ver-se de
repente traído por um deles e abandonado pelos outros; sofrer sucessiva-
mente o beijo da hipocrisia, o dardo da ingratidão, o abandono da
covardia; suportar a deslealdade deste, a ingratidão daquele, a
desonestidade de um tribunal e a estupidez insolente da plebe; enfim, ser
bom, ser santo, ser Salvador, ser pastor, ser pai, ser Deus, e tornar-se a
vítima daqueles a quem ele tinha vindo resgatar; ter deixado o Céu para
salvar a terra, e depois morrer desamparado pelo céu e pela terra: aquele
sim era o grande suplício do coração de Jesus.
Foi esse, portanto, o maior sofrimento de Jesus Cristo. Toda a sua
paixão verdadeira e profundamente sentida ocorreu no momento em que
ele suou gotas de sangue no Getsêmani, sentindo certamente o coração
traspassado pela traição e o abandono dos amigos. E essa dor foi muito
maior do que aquela em que o seu coração, traspassado por uma lança,
jorrou sangue e água.
João registrou três feridas sobre o coração de Jesus, três profundos
golpes sofridos por Aquele que nos amou: o primeiro ocorreu no jardim do
Getsêmani com a fuga dos discípulos, o segundo em casa de Caifás com
a negação de Pedro, e o terceiro na cruz. João permaneceu ao seu lado
durante aqueles momentos extremos para fazer de sua companhia um
apoio, já que não podia fazer de seu próprio corpo um amparo.

No Getsêmani sozinho com Deus

Jesus chegou ao Getsêmani em companhia dos discípulos. Eram


onze, mas ele só convocou para seguir com ele mais adiante a três deles:
Pedro, Tiago e João, os mesmos que o tinham acompanhado à montanha
onde outrora ele fora transfigurado. Aos demais ele ordenou que o
esperassem sob as oliveiras, e retirou-se para a suprema agonia, pedindo
aos três discípulos que o seguiram unicamente que orassem para aliviar-
lhe a tristeza mortal.
E principalmente em horas como essa que a amizade é o mais
indispensável dos bens. O próprio Deus procurou sua doçura
compassiva; ele veio para junto dos apóstolos e tornou a voltar. Mas os
apóstolos dormiam, e João, o predileto, dormia também como os outros.
Vencidos pela tristeza, eles adormeceram, como filhos extenuados
junto do leito do pai, que acabam por cair numa sonolência na qual a
alma continua velando diante da dor. Jesus Cristo não os acusou, antes
compadeceu-se deles. Disse:
Na verdade, o espírito está pronto, mas a carne é fraca.
(Mateus 26.41)
Cremos com sinceridade, amamos com fidelidade, fazemos de
nossa dedicação, de nossa entrega um dever e uma honra. Porém, nossa
pobre natureza tem seus retrocessos. Muitas vezes é nossa paciência
que se cansa, é a saúde que fraqueja, é o ideal que se encobre, é o ardor
que se apaga, são os olhos que se sobrecarregam de tristezas e
aborrecimentos. E de repente somos surpreendidos dormindo, depois das
mais veementes garantias de que velaríamos, combateríamos, sofrería-
mos por amor a Cristo. Ó, quem nos livrará deste corpo de morte?
Vigiai e orai, repetiu-lhes Jesus. Primeiro, é necessário vigiar, ter os
olhos abertos, acautelar-se das ciladas, porque é a hora das trevas, e
elas jamais deixarão de cercar e atacar os discípulos do Deus de quem o
mundo não cessa de tramar a morte. E é necessário também orar. A
oração move a mão de Deus, sensibiliza o seu coração. Se o Filho do
homem tem que beber o cálice e derramar o seu suor de sangue, que ao
menos ele não sofra sem ser consolado. Que os amigos, vigiando e
orando, estejam com ele na sua agonia e confortem o seu coração!
Há ainda outro dever: o da ação.
Levantai-vos, partamos; eis que é chegado o que me trai.
(Mateus 26.46)
Não se trata mais de vigiar, nem mesmo de orar; trata-se agora de
caminhar com determinação e coragem.
João levantou-se. Seu divino Mestre estava sendo preso pela
guarda enviada pelo Sinédrio. Os homens vinham armados e traziam
lanternas e archotes. João descreve que caíram por terra ao ouvirem uma
palavra do Homem-Deus. João também descreveu a reação de Pedro
contra Malco, e registrou as palavras de misericórdia com as quais o
Senhor pediu que nada fizessem a seus discípulos (João 18.8). Haviam
seguido Jesus até ao pé da colina, e três deles ao jardim. Quantos o
acompanharão à casa dos que o mandaram prender?

Seguindo o prisioneiro Jesus

E Simão Pedro e outro discípulo seguiam a Jesus. E este


discípulo era conhecido do sumo sacerdote e entrou com
Jesus na sala do sumo sacerdote. (João 18.15)
E outra vez João, fazendo uso de sua conhecida atitude de
modéstia, deu a si mesmo o tratamento de "o outro discípulo". Ele próprio
se denuncia em termos velados, mas transparentes, que revelam a
modéstia da testemunha. Uma das provas de que "o outro discípulo" era
João foi o fato de, mais tarde, as autoridades do Sinédrio que os
prenderam terem-se lembrado que aqueles dois homens tinham sido
vistos seguindo a Jesus (Atos 4.13).
João foi o primeiro a chegar. Não quis deixar o Mestre um instante
sequer. Por conhecer pessoas daquele meio, pôde entrar na casa de
Caifás, penetrou no átrio e não disfarçou nem quem era e nem a quem
amava. Era um discípulo de Jesus, todos sabiam. A mulher que tomava
conta da porta parece fazer alusão ao homem que havia entrado primeiro
quando perguntou a Pedro:
Não és tu também dos discípulos deste homem? (João 18.17)
João fez com que se abrisse o portão para ele. Falou com os
funcionários de Caifás, e introduziu Pedro. Ele certamente gostaria que
outros discípulos estivessem ali como um protesto, como um apoio, como
uma mediação entre o Justo perseguido e seus perseguidores. Jesus
sabe que os dois discípulos estão ali, e por isso diz ao sumo sacerdote:
Para que me perguntas a mim? Pergunta aos que ouviram o
que é que lhes ensinei; eis que eles sabem o que eu lhes
tenho dito. (João 18.21)
Mais tarde, quando o coração de Jesus sofrer o golpe da negação
de Pedro, é necessário que o Filho de Deus tenha ao seu lado um
discípulo fiel sobre o qual ele possa pelo menos pousar o olhar. Esta
honra coube ao apóstolo João.
Uma das coisas que João faz sobressair na Paixão do Mestre é o
caráter espontâneo de seu sacrifício. Jesus o declara desde o começo:
Por isso, o Pai me ama, porque dou a minha vida para tornar
a tomá-la. Ninguém me tira de mim, mas eu de mim mesmo a
dou; tenho poder para a dar e poder para tornar a tomá-la.
(João 10.17,18)
Tendo feito esta declaração de sua soberania, e salientando que é
por livre escolha que vai morrer, Jesus não caiu em contradição em
momento algum. Quis ordenar em pessoa o sacrifício, tudo prevendo,
tudo predizendo, na plena posse de uma alma dona de si e de seu
destino. Depois, chegada a hora, é ele mesmo quem avisa ao traidor e
lhe diz que O que fazes, faze-o depressa. (João 13.27). Ele é Senhor de
seus inimigos. Foi por isso que ele os prostrou por terra assim que lhes
disse quem era, e só se entregou quando deixou bem claro que seu
sacrifício seria voluntário por amor a nós. Ele também demonstrou que
era Senhor de seu próprio juiz. Quando Pilatos ousou dizer, ao grande, ao
soberano, ao infinitamente poderoso Senhor Jesus:
Não me falas a mim? Não sabes tu que tenho poder para te
crucificar e tenho poder para te soltar? (João 1.10)
Jesus lhe respondeu:
Nenhum poder terias contra mim, se de cima te não fosse
dado; mas aquele que me entregou a ti maior pecado tem.
(João 19.11)
Enfim, ele é Senhor da própria morte. Quando a morte, achando-o
esgotado pela perda de sangue, se dispuser a dar-lhe o golpe final, ele
subitamente a fará parar até que, recordando tranqüilamente as
Escrituras a fim de certificar-se de que tudo estava cumprido, far-lhe-á
sinal de ferir, dando um brado poderoso: Está consumado. (João 19.30).
Naquele brado estava a força, a liberdade e a vida.
Assim, aos olhos de João, o seu Mestre não sucumbiu: ele se
ofereceu, se doou; não foi ele o supliciado, mas sim nos livrou do suplício
eterno; não foi a vítima, e sim o Sacerdote. E este sacerdote era Deus:
Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. (João
1.29)
Todavia, depois que se mostrou no átrio de Caifás ao lado de Jesus,
o apóstolo João não apareceu mais na Paixão de seu Mestre até a
crucificação. Para onde ele foi? O Evangelho não o diz. Respeitemos o
silêncio sagrado do Evangelho.

Diante de Jesus Cristo na cruz

E junto à cruz de Jesus estava a sua mãe, e a irmã de sua


mãe, Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena. Ora, Jesus,
vendo ali sua mãe e que o discípulo a quem ele amava estava
presente, disse à sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho. Depois,
disse ao discípulo: Eis aí a tua mãe. E desde aquela hora o
discípulo a recebeu em sua casa. Depois, sabendo Jesus que
já todas as coisas estavam terminadas, para que a Escritura
se cumprisse, disse: Tenho sede. (João 19.25-28)
Era a consumação da fidelidade da parte de João. A paixão do
Homem-Deus, a paixão de seu coração entrara na crise suprema.
Abandonado pelos seus apóstolos, agora ele se queixava de ter sido
desamparado também pelo Pai:
Eli, Eli, lemá sabactâni?: Deus meu, Deus meu, por que me
desampareste? (Mateus 27.46)
João não o abandonou. O firmamento se cobriu de trevas, a terra
tremeu como para sacudir de sua face a sacrossanta Vítima do mundo,
os túmulos se abriram como que tomados de pavor sagrado. Sozinho
entre todos, o amigo de Jesus de obstinava a crer e a amar: "O amor é
forte como a morte".
Da parte de Jesus foi a consumação em sua plenitude: ele dera
tudo que o lhe restava. O que poderia ele ainda dar, despojado como
estava, nada mais tendo de que pudesse se dispor para entregar em
resgate da humanidade? Para qualquer lado que ele voltasse os olhos,
Jesus nada mais via que lhe pertencesse. Mas de repente ele viu Maria e
viu João, que com o olhar lhe diziam: "Nós lhe pertencemos". Era tudo o
que lhe restava. Mas ele deu um ao outro: João, eu te entrego Maria,
minha mãe; Maria, eu te entrego João, meu amigo.
Tudo o que havia de respeitoso e terno no seu amor para com sua
mãe vai viver agora no coração de João. Ele tornou Maria mãe de João, e
tornou João filho de Maria. Agora João, seu discípulo mais achegado,
tornara-se seu irmão! Por isso é fundamental nos achegarmos ao pé da
cruz e ficarmos com Jesus Cristo em meio aos nossos sofrimentos. Ele se
revelará como nosso irmão.
Mas a herança que Jesus estava deixando não se limitava só ao
discípulo João. Estendia-se ao mundo inteiro. João representava todos
aqueles a quem Jesus estendia a mão e de quem se tornava o irmão
mais velho de uma família cujo Pai estava no céu.
No entanto, o discípulo continuou ao pé da cruz para testemunhar
algo ainda maior:
Contudo, um dos soldados lhe furou o lado com uma lança, e
logo saiu sangue e água. E aquele que o viu testificou, e o seu
testemunho é verdadeiro, e sabe que é verdade o que diz,
para que também vós o creiais. (João 19.34,35)
CAPÍTULO 9 - TESTEMUNHANDO A RESSURREIÇÃO

As memórias de João nos transportam para o que aconteceu três


dias após a crucificação. João se retirara para uma casa em Jerusalém,
talvez sua própria casa, na qual hospedara a mãe de Jesus, e que
Nicéforo e outros historiadores dizem que estava situada na colina de
Sião. Pedro também se encontrava lá, abatido pelos remorsos.
Foi aí que chegou a João a primeira notícia de um fato maravilhoso.
No domingo pela manhã, entrou precipitadamente pela casa a dentro uma
mulher. Era Maria Madalena que com a voz chorosa, dizia:
Levaram o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde o
puseram. (João 20.2)
O que aconteceu? O que veio esta mulher contar? O que é que ela
tinha visto?
Pela manhã algumas mulheres da Galiléia — entre as quais o
Evangelho cita Maria, mãe de Tiago, o menor, e de José; Salomé, mãe de
João, e Joana, mulher de Cusa, procurador de Herodes — tinham ido
muito cedo ao sepulcro de Jesus. O sepulcro estava localizado no centro
de um jardim sobre a encosta da montanha do Calvário, escavado no
rochedo, conforme se vêem ainda hoje os túmulos dos patriarcas e dos
reis de Judá.
Aquela gruta sepulcral e aquele jardim eram de um judeu distinto,
chamado José de Arimatéia, que, auxiliado por Nicodemos, ali depositara
o corpo do Mestre, depois de tê-lo preparado com essências aromáticas e
envolvido em faixas, como era costume no Oriente. Mas esse
embalsamamento rápido, preparado às pressas na véspera de um
Sábado, fora insuficiente. Com o propósito de concluir o trabalho de
suprema piedade, as mulheres para lá se dirigiram antes mesmo do
amanhecer, levando consigo vasos cheios de aromas. Inquietas, per-
guntavam entre si quem removeria a pedra que fechava o sepulcro.

"Roubaram o meu Senhor!”

Madalena, a mais ativa de todas, apressou o passo e chegou antes


das outras. Estava ainda escuro quando ela chegou ao jardim, perto do
túmulo cavado na rocha. Seu primeiro impulso foi correr até a entrada do
santo lugar onde repousava o corpo do Mestre amado.
Porém, a pedra já havia sido removida! Madalena se perturbou,
pensou inicialmente em roubo, em uma profanação. Mas não ousou
penetrar naquele lugar escuro. E, sem esperar pelas outras, saiu
correndo desvairada, fora de si, rumo à casa onde estavam Pedro e João
para dizer-lhes: Levaram o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde o
puseram.
Receios do amor que crê tudo perdido, no momento mesmo em que
está prestes a achar tudo de novo! A forte emoção que agita o coração de
Madalena também é sentida por João. Não se fala ainda em ressurreição;
nem se pensa nisso. Ao ouvirem as primeiras palavras de Madalena, os
dois discípulos se abalam e imediatamente resolvem ir até o sepulcro
para averiguar. E João quem conta:
Então, Pedro saiu com o outro discípulo e foram ao sepulcro.
E os dois corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais
apressadamente do que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro.
E, abaixando-se viu no chão os lençóis; todavia, não entrou.
Chegou, pois, Simão Pedro, que o seguia, e entrou no
sepulcro, e viu no chão os lençóis e que o lenço que tinha
estado sobre a sua cabeça não estava com os lençóis, mas
enrolado, num lugar à parte. Então, entrou também o outro
discípulo, que chegara primeiro ao sepulcro, e viu, e creu.
Porque ainda não sabiam a Escritura, que diz que era
necessário que ressuscitasse dos mortos. (João 20.3-9)
João procedeu como um narrador muito exato. É, como se vê, ao
mesmo tempo a testemunha mais próxima, o mais fielmente instruído, o
que primeiro acreditou na ressurreição: Então, entrou também o outro
discípulo que chegara primeiro ao sepulcro, e viu, e creu. (João 20.8). E o
que o levou a crer na ressurreição de Cristo? Em primeiro lugar as
Escrituras; em segundo, as promessas do Salvador; em terceiro, todas as
evidências que ele viu dentro do túmulo; e em quarto, o testemunho do
seu coração. O coração é sempre o primeiro fator nas verdades de Deus.
Pedro ainda estava a caminho, mas João já vira e crera. Para crer, o
caminho mais curto é o amor.
João voltou para casa com Pedro. As horas do dia haviam
transcorrido rapidamente, e Pedro e João ficaram hesitantes entre o
temor e a esperança, quando viram de novo Madalena vir até eles. Não
era mais a mesma mulher. Sua face estava radiante, suas palavras eram
de fogo. João as guardou, e com que encanto as repetiu fielmente para
nós! Retornando após os discípulos, Madalena havia ficado chorando
perto do sepulcro. Ela não tinha podido desprender-se daquele lugar tão
cheio de tristes e de doces recordações. Porém, de repente ela viu, no
lugar onde o corpo de Jesus estivera, dois vultos vestidos de branco:
eram dois anjos. Eles lhe perguntaram:
Mulher, porque choras? (João 20.13)
Madalena respondeu:
Porque levaram o meu Senhor, e não sei onde o puseram.

O reencontro com o Senhor ressurreto

Em seguida ela se voltou e viu que havia mais alguém ali. Era o
Senhor. Todavia, no meio das lágrimas, ela não o reconheceu, e pensou
que ele fosse o jardineiro. Ela também perguntou a ele pelo seu Mestre.
Jesus só lhe disse uma palavra: "Maria!". Mas esse era o seu nome de
honra, o seu nome de reabilitada, e aquela voz ela conhecia muito bem:
era a voz do Mestre! Rabboni! exclamou Maria Madalena, e se lançou aos
seus pés para adorá-lo.
Mas o Senhor lhe disse:
Não me detenhas, porque ainda não subi para o meu Pai,
mas vai para meus irmãos e dize-lhes que eu subo para meu
pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus. (João 20.17)
Era para poupar o coração de Madalena que Jesus lhe impunha
aquele sacrifício. Como poderias ainda ficar sobre a terra, se eu te
deixasse beijar meus pés?
Era a hora do Cristo invisível suceder o Cristo visível. Até ali tinha
sido possível derramar lágrimas e perfumes aos pés dele. Agora não seria
mais possível. Jesus fez Madalena levantar os olhos para o céu, para
onde ele em breve vai subir, e mandou-a contar a seus irmãos tudo o que
acabava de ver.
João e Madalena creram pelo que viram e ouviram; creram pelo
olhar. O de João foi mais espontâneo, o de Madalena mais ansioso. Um
só necessitou de um olhar e logo creu; o outro necessitou de palavras e
aparições. Ambos se apressaram e correram. Todo amor tem asas. Mas
João só precisa de um instante para contemplar as evidências e crer;
Madalena deve demorar-se algum tempo mais no túmulo. João advinha;
Madalena procura. Mas quando se ama a Jesus, não se procura durante
muito tempo: ambos o encontram no seio de seu triunfo. Como dádiva e
coroamento por o terem seguido até o lugar de seu suplício.
Eis o despertar que Deus reserva àqueles que lhe são fiéis. Há
sempre duas cabeças sobre as quais Jesus Cristo não cessa de estender
no mundo as duas mãos que foram cravadas em sua cruz ensangüentada
e gloriosa: a do arrependimento e a da fidelidade. Ele as estendeu sobre
Madalena e João. A uma ele perdoou muito; ao outro ele confiou os seus
segredos. Enquanto o arrependimento permaneceu mais abaixo, a seus
pés, beijando-os com humildade, a lealdade e a inocência repousaram
sobre o seu coração.
A princípio, o relato das mulheres foi considerado "delírios
femininos". E os primeiros relatos dos homens não conseguiram inspirar
mais fé que o das mulheres. A aparição de Jesus a Pedro tinha sido algo
pessoal. Os discípulos de Emaús tinham reconhecido o Senhor pelo partir
do pão. Eram fatos isolados. Os que ouviam essas narrações admiravam-
se, ficavam emocionados, mas não se rendiam.
João narrou os fatos da ressurreição opondo a sua fé e a de
Madalena à pertinaz incredulidade de Tomé. Agora não se tratavam mais
de aparições isoladas. Jesus aparecera aos apóstolos reunidos num
mesmo lugar.
Tais eram as mais vivas recordações de João. E mais tarde, na
abertura de sua primeira carta, ele revela em que fatores de credibilidade
sua autoridade para falar sobre a ressurreição de Jesus se baseava:
O que era desde o princípio, o que vimos com os nossos
olhos, o que temos contemplado, e as nossas mãos tocaram a
Palavra da vida (porque a vida foi manifestada, e nós a vimos,
e testificamos dela, e vos anunciamos a vida eterna, que
estava com o Pai e nos foi manifestada), o que vimos e
ouvimos, isso vos anunciamos, para que também tenhais
comunhão conosco; e a nossa comunhão é com o Pai e com
o seu Filho Jesus Cristo. (1 João 1.1-3)
Por ele ter visto, ouvido e tocado, nós podemos ainda hoje ver, ouvir
e tocar em tudo aquilo que ele nos contou: a marca imortal do seu livro
permanece sempre jovem em nosso coração.
O ressurreto prepara sua despedida

Não temais; ide dizer a meus irmãos que vão a Galiléia e lá


me verão. (Mateus 28.10)
Foi o que Jesus disse à Madalena. E foi ali, na Galiléia, que João
viu coroar-se a vida ressuscitada do vencedor da morte. O Cenáculo tinha
ficado para traz. Os apóstolos haviam retornado para o lago, cheios de
temor e de esperança, tornando-se outra vez pescadores de peixes
depois de terem sido consagrados pescadores de homens.
Um dia estavam pescando. João e Tiago ali se encontravam com
Pedro, Tomé, Natanael e dois outros discípulos. A noite de trabalho tinha
sido má, e os pescadores estavam voltando sem ter apanhado nada
quando, no momento de encostarem à praia, viram alguém que os
esperava e que os cumprimentou de uma maneira que eles já conheciam:
Filhos, tendes alguma coisa de comer? Responderam-lhe:
Não. (João 21.5)
Jesus lhes orientou a lançar a rede à direita do barco, eles
obedeceram e viram de repente na rede uma pesca milagrosa.
João deleitava-se com essa narrativa. Ao escrevê-la, ele revia o
lago, com alegria, talvez agora muito longe de onde ele estava. Via
também sua casa, o barco e os utensílios de pesca. Citou também os
nomes dos amigos mais fiéis. Nessa narração reconhece-se de imediato
a mão, a linguagem e o olhar do filho de pescador. João tem o olhar
agudo que calcula as distâncias no ar e até o fundo da água. Sabe de que
lado foi atirada a rede; sabe que a rede é de arrastão como as dos
pescadores do oceano nos dias de pesca abundante. Na sua opinião, o
milagre consistiu principalmente no fato de que a rede devia romper-se
forçosamente, e no entanto resistiu até o fim.
Mas quem fizera aquele milagre? Quem era o desconhecido tão
poderoso e tão bom, que os orientara sem mesmo precisar entrar no
mar? É o Senhor! exclama um discípulo que o reconheceu com um
simples olhar. E esse discípulo foi João. Ele mesmo se identificou no seu
evangelho:
Aquele discípulo a quem Jesus amava. (João 21.7)
Aqueles que se amam se reconhecem sem esforço, pela simples
simpatia e semelhança.
Uma refeição em comum, à beira do lago, consagrou aquela solene
visita de Jesus. Havia sido em meio a uma refeição, nas bodas de Caná,
que o Senhor pela primeira vez tinha manifestado sua glória. Em uma
outra refeição, a Santa Ceia, ele revelara a grandiosidade do seu amor.
Agora qual era o símbolo daquela última refeição do Ressuscitado com a
qual João encerra o seu Evangelho, senão o grande banquete que nos
está preparado no Céu, e para o qual nos convida o Esposo das núpcias
eternas?
João foi a testemunha mais importante, o historiador mais completo
da ressurreição. Enquanto nos outros evangelistas o divino Ressuscitado
atravessa rapidamente o horizonte como um magnífico meteoro, no
Evangelho de João ele é um sol radiante do meio-dia. Ele vê, fala, ama, é
uma existência inteira que começa na terra para findar-se no céu.
E que existência! Compassiva e boa como deve ser a de um
homem; poderosa, transfigurada e digna de um Deus! E que ternura! Que
familiaridade! Que surpresas encantadoras! Que palavras de Pai nessas
despedidas sem fim que precederam a partida! Seu prazer era mesmo
estar entre os seus discípulos.
Percebe-se que Jesus, por os amar tanto, tem dificuldades de os
deixar. Reúne-se a eles por toda parte: no Cenáculo, à beira do lago, no
meio do trabalho, na hora da refeição, no caminho da cidade. Por que
estais tristes? pergunta a uns. Não vos assusteis, não tenhais medo de
nada, diz a outros. Paz seja convosco! diz ele a todos. Eles não são mais
seus servos, e o próprio nome de amigos não o exprime bem. São seus
filhos de agora em diante. Filhos, não tendes nada para comer?
Como outrora José, quando achou os irmãos, ele não quer nem
mesmo lembrar-se que o abandonaram. Entre todos os fiéis, há uma que
foi grande pecadora: é a essa mulher que Jesus aparecerá primeiro.
Entre os doze apóstolos, há um que o negou: Jesus aparece a Pedro
antes dos outros. Não se fala mais na apostasia. E quando Pedro,
lembrando-se da sua ingratidão, fica confuso diante de uma tão grande
misericórdia, Jesus pede-lhe que, como prova de que o apóstolo lhe ama,
apascente suas ovelhas. Pedro o negara três vezes, e por três vezes o
Senhor pede-lhe a confissão do seu amor (João 21.15-17).
Assim, no Evangelho de João é a alma de Jesus que palpita. Se ele
sentiu tremer e transbordar a vida do Filho do Homem, viu também
completar-se em Jesus a obra definitiva do poder de Deus. É a paz
firmada entre o céu e a terra, a sua aliança escrita nessas chagas glorio-
sas que Jesus mediador deixará entre a humanidade na terra e seu Pai
que está nos céus.
Quando Jesus finalmente, diante dos seus discípulos, ocultou-se
entre as nuvens e retornou para junto do Pai, deixou-lhes a maior de
todas as responsabilidades - evangelizar o mundo - e a maior de todas as
heranças - seus ensinamentos, a fé e o amor. Ele já não estaria
fisicamente presente entre eles, e sim espiritualmente. Iria começar a
segunda e última etapa da vida do apóstolo João.

2ª parte

Convivendo espiritualmente com o Filho de


Deus

CAPÍTULO 10 - O PRIMEIRO TESTEMUNHO DE JOÃO PERANTE OS


JUDEUS

Os três anos passados na intimidade de Jesus Cristo haviam


transformado João na grande testemunha do Evangelho, e as relações
familiares com o Filho de Deus foram suficientes para lhe proporcionar
toda a vastidão de conhecimentos que ele revelou depois, e garantiu-lhe
a sinceridade de suas palavras. Mas quem nos explicará essa nova
energia que vai fazer do discípulo predileto um apóstolo e um mártir? O
que será responsável por essa transformação súbita que do homem
silencioso e anônimo de ontem tornou hoje o mais sublime dos
evangelistas? É que aquele espírito ainda precisava de um último raio de
luz. Era-lhe necessária uma chama que aquecesse poderosamente
aquele coração para fundir e tornar de bronze aquela alma cheia de
fidelidade e ternura.
O Espírito Santo fez o milagre, o milagre necessário, milagre que
Jesus Cristo profetizara no Evangelho de João. Foi unicamente em João
que a teologia referente ao Espírito Santo recebeu as revelações e o
desenvolvimento que formam um conjunto doutrinário completo.
João nos conta que, na última conversa de Jesus com seus
discípulos, às vésperas de sua morte, os apóstolos ouvindo-o falar em
partida, ficaram tristes; mas o Senhor lhes disse:
E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que
fique convosco para sempre, o Espírito da verdade, que o
mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece;
mas vós o conheceis, porque habita convosco e estará em
vós. Não vos deixarei órfãos; voltarei para vós. (João 14.16-
18)
Jesus disse então qual era a origem, a natureza e o ministério deste
outro Consolador. Ele é o Espírito que procede do Pai, e que seria
enviado pelo Pai e pelo Filho. Este Espírito chama-se Espírito da
Verdade, enviado por Deus a fim de despertar o espírito dos apóstolos à
doutrina do Evangelho, assim como o sol desperta no seio da terra as
sementes adormecidas:
Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará
em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará
lembrar de tudo quanto vos tenho dito. (João 14.26)
Os apóstolos tinham recebido ordem de ficar no Cenáculo até que
do alto fossem revestidos de poder.
O Pentecostes justificou as promessas divinas. As línguas de fogo
que os apóstolos viram descer sobre suas cabeças enquanto oravam no
Cenáculo representavam a chama e a luz interior com as quais o Espírito
da Verdade vinha abrasá-los. O vento que abalou o lugar onde oravam
era a imagem daquele sopro cheio de força que iria derrubar os ídolos do
paganismo e propagar a verdade do Evangelho sobre a face da terra. A
coragem que encherá mais tarde o coração dos apóstolos diante dos
carrascos foi proporcionada pela presença e a graça do Espírito
Consolador que o Mestre lhes prometera.
Não é preciso procurar em outro lugar o segredo da transformação
que fez do filho de Zebedeu o evangelista do Verbo, e do terno discípulo
um testemunho destemido da verdade. Pode-se mesmo dizer que naque-
le sentido, ele não é mais o mesmo homem que viu Jesus pela primeira
vez às margens do Jordão. Na verdade, é outro homem - é o homem do
Pentecostes.
Nós veremos esta transformação manifestar-se em sua vida e em
suas obras. A alma de João, cheia dos dons de Deus, parecia um navio
ainda ancorado no por- to apenas à espera do vento para iniciar a
navegação. O Espírito Santo soprou no Cenáculo e o apóstolo partiu.
Pedro e João, companheiros de ministério

Uma das recomendações de Jesus foi que os discípulos se


associassem dois a dois para pregar o Evangelho. Eis porque, daquele
momento em diante, João não andará mais só. A princípio ele tornou-se
companheiro inseparável de Simão Pedro. Não era só o prelúdio e o
exemplo da associação que devia ser uma das forças de conquista do
futuro. Os comentaristas quiseram ver nessa união dos dois apóstolos o
símbolo da união da doutrina e do amor. Para eles Pedro e João
constituem a verdade aliada ao amor, um levando a luz, o outro o calor;
um dono dos espíritos, o outro soberano das almas; mas ambos
invencíveis porque andavam juntos, de ânimos e corações entrelaçados.
Na opinião de muitos estudiosos, esses dois apóstolos
representavam, antes do Pentecostes, um a vida ativa, o outro a vida
contemplativa. Pedro era a energia da ação e do combate. João era a
quietude da contemplação, repousando em silêncio perto daquele que ele
amava, e antevendo as calmas alegrias da eternidade.
Os apóstolos não se dirigiram logo às nações. O Pastor lhes dissera
que deviam primeiramente ir às ovelhas de sua casa, de Israel. Os judeus
deviam ter as primícias do Evangelho, e Pedro e João começaram pelas
almas de Jerusalém.
Naquela época Jerusalém era quase uma cidade romana. Sob
Herodes, conforme informa Plínio, ela se tornara a mais magnífica cidade
do Oriente. Porém, com isso perdera muito da sua religiosa originalidade.
O príncipe cortesão construíra bem perto um circo e um teatro onde se
celebravam as festas qüinqüenais em honra de Augusto. Reconstruíra e
transformara o Templo, porém profanando-o: Em cima da porta principal
da Casa Santa via-se brilhar a águia de ouro de Roma e de Júpiter, como
um duplo insulto à religião e à liberdade.
Enquanto os fariseus exageravam nas exigências do culto até a
superstição e se apegavam aos rituais sem, no entanto, conseguirem
preservar a fé e a obediência a Deus, havia bajuladores chamados
herodianos que não conheciam outro Messias senão o rei Herodes,
outras leis senão os seu favores, outras festas senão os espetáculos para
os quais ele os convidava. E os costumes iam se corrompendo na orgia e
no sangue.
A crise da fé não era menos mortal. Os intelectuais de então,
chamados saduceus, ensinavam que se devia usufruir de todos os
prazeres neste mundo, pois que nada se sabia do outro. E pouco caso
faziam da imortalidade. Desta forma Jerusalém começava a ser uma cida-
de profana. Seu importante papel apagava-se, seu sacerdócio inspirava
medo; ela própria começava a abrir mão de sua missão, deixando cair a
barreira que outrora a separava do paganismo.
Contudo, o povo guardava ainda ao culto nacional fidelidade
escrupulosamente zelosa. Mesmo os primeiros discípulos de Jesus Cristo
não tinham rompido com a Sinagoga. Freqüentavam o templo, como o
fizera o Mestre, e foi nessa Casa abençoada que João deu o primeiro
testemunho de Jesus.
Havia poucos dias que fora celebrado o Pentecostes legal. Os
estrangeiros ainda estavam em grande número em Jerusalém, quando,
juntos, Pedro e João subiram ao Templo. Dirigiram-se primeiro, pelo
pórtico exterior, até a Porta Formosa, como chamavam a porta de Sur ou
Seir. O historiador Josefo dá-lhe o nome de Coríntia, porque era feita de
bronze corinto. Entre as dez portas que davam entrada ao Templo esta
era considerada a mais notável pelos ricos ornamentos que a decoravam.
Diz o Evangelho que era a nona hora, correspondente à nossa
terceira hora da tarde, e os apóstolos dirigiam-se ao templo para orar
(Atos 3.1). Sob aquele rico pórtico achava-se um mendigo, aleijado de
nascença, que traziam para ali todos os dias, e que fazia um doloroso
contraste com o brilho do magnífico edifício. Mas ouçamos o livro de Atos.
Ele, vendo a Pedro e João, que iam entrando no Templo,
pediu que lhe dessem uma esmola. E Pedro, com João,
fitando os olhos nele, disse: Olha para nós. E olhou para eles,
esperando receber alguma coisa. E disse Pedro: Não tenho
prata e nem ouro, mas o que tenho, isto te dou. Em nome de
Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e anda. E, tomando-o
pela mão direita, o levantou, e logo os seus pés e tornozelos
se firmaram. E, saltando ele, pôs-se em pé, e andou, e entrou
com eles no templo, andando, e saltando, e louvando a Deus.
(Atos 3.3-8)
Aquele dom de milagres era um dos poderes do novo apostolado. O
Mestre antes de deixar seus apóstolos e nas últimas horas passadas
entre eles, dera-lhes aquele poder, como a confirmação divina da sua
Palavra e o selo de sua autoridade:
E disse-lhes: Ide por todo o mundo, e pregai o evangelho a
toda a criatura. Quem crer e for batizado será salvo; mas
quem não crer será condenado. E estes sinais seguirão aos
que crerem: em meu nome, expulsarão demônios; falaram
novas línguas, pegarão nas serpentes; e, se beberem alguma
coisa mortífera, não lhes fará dano algum; e imporão as mãos
sobre os enfermos e os curarão. (Marcos 16.15-18)
A conversão daquele coxo foi mais devida à bondade maravilhosa
de Pedro e João do que ao fruto de uma eloqüência brilhante. Foi,
essencialmente, fruto da manifestação do poder de Deus. Os apóstolos
nada tinham, eles mesmos o declararam. Porém, para dar não é
necessário ter; para dar é preciso amar, e para amar é preciso crer.
Pedro acreditava e João amava: Olha para nós, disseram eles ao
coxo. Olha para esses que na sua pobreza representam o Deus que criou
o universo e que pode te curar. E sob o poder do seu nome que tudo se
ergue e anda no céu e na terra. E não está tão longe o dia em que o
mundo inteiro, também entrevado, mendigo também, sob a mesma
palavra e pelo poder do mesmo Nome se levantará, andará, e irá dobrar
os seus joelhos na presença desse Deus.
A lei judaica proibia que os coxos e os cegos entrassem no Templo.
Porém, ao se ver curado, o ex-coxo imediatamente entrou no Templo
seguindo os apóstolos. Não havia para aqueles dois servos de Deus
cortejo mais belo. Era a imagem perfeita do que seria a partir dali a
missão apostólica.
E todo o povo o viu andar e louvar a Deus; e conheciam-no,
pois era ele o que se assentava a pedir esmola a Porta
Formosa do Templo; e ficaram cheios de pasmo e assombro
pelo que lhe acontecera. E, apegando-se ele a Pedro e João,
todo o povo correu atônito para junto deles no alpendre
chamado de Salomão. (Atos 3.9-11)
Aquele era um dos novos e magníficos pórticos construídos por
Herodes, o Grande, no mais sofisticado estilo grego, com colunas de
mármore, videiras de ouro trepando pelas cornijas, véus de púrpuras e
pinturas cuja descrição fiel foi realizada pelo historiador Josefo.
Chamavam-no "pórtico de Salomão" porque se erguia sobre o grande
terraço construído por aquele príncipe, a 160 metros acima do vale. Unia-
o uma ponte à grande praça que se estendia desde o barranco de
Tirofenon até o declive da montanha de Sião, cujos limites e ruínas os
arqueólogos reconhecem perfeitamente.
Era ali que se reuniam os judeus prosélitos e os judeus da Porta
que não podiam penetrar no interior do Templo. Foi também ali que
Pedro, tomando a palavra, pronunciou seu famosa pregação de Atos
4.12-26.
Aquela pregação tão simples, tão corajosa, era a afirmação da
divindade e da ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, com toda a
eloqüência dos fatos:
O Deus de Abraão, e de Isaque, e de Jacó, o Deus de nossos
pais, glorificou a seu Filho Jesus, a quem vós entregastes e
perante a face de Pilatos negastes, tendo ele determinado
que fosse solto. Mas vós negastes o Santo e o Justo e
pedistes que se vos desse um homem homicida. E mataste o
Príncipe da vida, ao qual Deus ressuscitou dos mortos, do que
nós somos testemunhas. Arrependei-vos, pois, e convertei-
vos, para que sejam apagados os vossos pecados, e venham,
assim, os tempos do refrigério pela presença do Senhor. (Atos
3.13-15,19)
Este é o resumo das palavras de Pedro e João. Foram ouvidos;
cinco mil homens presentes creram em seu testemunho e foram
batizados. Aquela fé, aquele batismo da multidão, aquela conversão em
massa, provocada pelo acontecimento de um fato público - a crucificação
de Cristo e sua ressurreição - apenas quarenta dias antes daquela
pregação, é uma das provas mais fortes da verdade da Ressurreição.
Porém havia ali pessoas que não estavam satisfeitas com aquelas
conversões. Muitas dessas pessoas discordantes saíram do Templo,
curiosas para ouvir aqueles profetas singulares. Eram os sacerdotes.
Com eles veio também "o magistrado do templo", como chamavam o
oficial superior que comandava dia e noite os soldados encarregados da
guarda de Sião, e para quem qualquer ajuntamento era considerado
perigoso. Parece que aquele homem ocupava um lugar bastante elevado,
pois Flávio Josefo o nomeia logo abaixo do sumo sacerdote.
Mas os que comandavam com mais fúria a repressão eram os
saduceus. Como se sabe, professavam uma espécie de epicurismo
misturado com judaísmo, e ninguém ignora que foi entre os partidários da
vida livre que o cristianismo encontrou, em todos os tempos, os mais
violentos adversários. A opinião deles prevaleceu. Os apóstolos foram
presos sem qualquer julgamento. Mas, como chegara a noite, deixou-se
para reunir o conselho no dia seguinte, e Pedro e João passaram aquela
noite na prisão:
E lançaram mão deles e os encerraram na prisão até o dia
seguinte, pois era já tarde. (Atos 4.3)
Os dois apóstolos na prisão

Onde era essa prisão? A natureza do delito e a autoridade de


Caifás, que era da seita dos saduceus, parece supor que a casa onde os
dois apóstolos foram encerrados, segundo a expressão do texto, outra
não fosse senão a própria casa do sumo sacerdote. Não seria aquela
mesma casa onde tinham colocado o Senhor na noite de sua prisão? A
alma cristã sente certa doçura em ver Pedro e João sendo aprisionados
no mesmo lugar onde Jesus sofrera recentemente, ali achando seus
traços, sua coragem, seu ardor; honrando-se com seus grilhões,
animando-se com o que acontecera naquele primeiro dia; Pedro
glorificando pelas travas que lhe tinham sido profetizadas, João
saboreando o cálice que lhe fora prometido, e ambos passando a noite
realizando aquele culto em ação de graças ao Senhor que os honrava em
permitir que eles fossem presos por confessarem o seu Nome!
No dia seguinte foi a vez de darem outro testemunho. A doutrina
dos apóstolos não podia escapar à lei comum, e ambos foram levados ao
Sinédrio.
O Sinédrio, conselho supremo da nação judaica, compunha-se de
setenta membros, presididos pelo sumo sacerdote. Esse tribunal
realizava as sessões todos os dias, e era de sua competência julgar as
mais graves causas civis e religiosas, como a falsa profecia, a idolatria e
a blasfêmia. Josefo conta que os próprios reis curvavam a cabeça às
suas sentenças. Porém, no presente caso, tratava-se de dois pobres
pescadores. Todavia, mesmo naquela ocasião foi usado todo o aparato
judicial para tal solenidade. Anás, o antigo príncipe dos sacerdotes pre-
sidia, e Caifás, João, e Alexandre estavam do seu lado, Atos 4.6. Em
redor deles agrupavam-se os anciões, os escribas e os príncipes do povo.
Os apóstolos compareceram. Foram interrogados:
E, pondo-os no meio, perguntaram: Com que poder ou em nome de
quem fizeste isto? (Atos 4.7) — perguntaram a ambos. E Pedro
respondeu. Não era mais o Pedro fraco que Caifás vira outrora renegar
seu Mestre à voz de uma criada. Ele rogava aos príncipes do povo e aos
anciões que escutassem sua palavra. Não falava com veemência aos
chefes da nação. Respeitava-lhes a autoridade, porém sem diminuir em
nada os direitos da verdade. Aqueles que mataram seu Mestre
anunciavam a divindade do Senhor Jesus Cristo de Nazaré: eles o tinham
crucificado, porém Deus o ressuscitara; eles o tinham repudiado, no
entanto ele era a pedra angular sobre a qual todo edifício devia ser
edificado. Blasfemaram o seu nome, porém não havia debaixo dos céus
outro nome em que houvesse salvação:
E em nenhum outro há salvação, porque também debaixo do
céu nenhum outro nome há, dado entre os homens, pelo qual
devamos ser salvos. (Atos 4.12)
Os juízes ficaram confusos. Olhavam esses homens sem cultura,
sem letras, que sabiam apenas a língua do país, e não compreendiam de
onde vinha aquela eloqüência que se manifestava neles. Era a eloqüência
do Espírito Santo, eloqüência poderosa, segura, que começava naquele
dia a exercer o império, e cujo cetro devia ser sustentado pelas mãos das
almas simples que cressem em Jesus. Os magistrados perguntavam
entre si quem eram aqueles oradores. Lembravam-se de tê-los visto no
átrio, tímidos ou apóstatas, encolhidos enquanto eles julgavam seu
Mestre, e não sabiam de onde lhes tinha vindo subitamente tal coragem.
O mendigo que havia sido curado também estava lá em pé junto
deles. Os juizes sentiam aquela aflição indescritível que se sente quando
se está às voltas com uma força invisível e misteriosa. Sem poder para
contestar e sem esperanças de vencer, reuniram-se em particular e
encerraram a reunião após terem resolvido proibir aos discípulos que
pronunciassem aquele Nome.
Os apóstolos responderam:
Julgai vós se é justo, diante de Deus, ouvir-vos antes a vós do
que a Deus; porque não podemos deixar de falar do que
temos visto e ouvido. (Atos 4.19-20)
O Sinédrio percebeu que era preciso ceder. O testemunho era
formal e o milagre inegável. O povo instintivamente se pronunciava em
favor daqueles que acabavam de curar um homem do povo. O conselho
teve medo de recomeçar contra os discípulos a série de intrigas ou
violências que tinham tido tão mau resultado contra Jesus. Contentaram-
se com ameaças e absolveram os apóstolos, que confirmaram, mais
firmes e intrépidos do que nunca, sua fé em Jesus Cristo.
O livro de Atos conta o acolhimento que o dois apóstolos tiveram na
assembléia dos irmãos quando retornaram. Ao acabarem de contar o que
havia ocorrido, o Cenáculo inteiro levantou-se para agradecer a Deus por
tão grande livramento e vitória.
E, ouvindo eles isto, unânimes levantaram a voz a Deus e
disseram: Senhor, tu és o que fizeste o céu, e a terra, e o mar,
e tudo o que neles há; que disseste pela boca de Davi, teu
servo: Por que bramaram as gentes, e os povos pensaram
coisas vãs? Levantaram-se os reis da terra, e os príncipes se
ajuntaram à uma contra o Senhor e contra o seu Ungido.
Porque, verdadeiramente, contra o teu Santo Filho Jesus, que
tu ungistes, se ajuntaram, não só Herodes, mas Pôncio
Pilatos, com os gentios e os povos de Israel, para fazerem
tudo o que a tua mão e o teu conselho tinham anteriormente
determinado que se havia de fazer. Agora, pois, ó Senhor,
olha para as suas ameaças e concede aos teus servos que
falem com toda a ousadia a tua palavra, enquanto estendes a
mão para curar, e para que se façam sinais e prodígios pelo
nome do teu santo Filho Jesus. (Atos 4.24-30)
Após esta oração, foram imediatamente atendidos. O Cenáculo
tremeu, o Espírito Santo os encheu de poder, e daquele dia em diante
nada mais pôde detê-los.
A pregação dos apóstolos deu frutos imediatos, convertendo alguns
de seus juizes. Dois doutores da lei, Nicodemos e o famoso Gamaliel, seu
mestre, segundo a tradição, declararam-se cristãos. O pregador
Crisóstomo acrescenta que receberam o batismo das mãos de Pedro e
de João. Começava a aurora da verdade a iluminar os cumes dos montes
da incredulidade.

CAPÍTULO 11 - JOÃO EM SAMARIA E A MORTE DE TIAGO

O amor e a fé começaram o seu reinado naquela bela comunidade


da Igreja do Cenáculo, que ia tornar-se o modelo ideal das igrejas, e cuja
lembrança devia iluminar as últimas instruções de João em Eféso.
E perseveraram na doutrina dos apóstolos, e na comunhão, e
no partir do pão, e nas orações. Em cada alma havia temor, e
muitas maravilhas e sinais se faziam pelos apóstolos. Todos
os que criam estavam juntos e tinham tudo em comum.
Vendiam suas propriedades e fazendas e repartiam com
todos, segundo cada um tinha necessidade. E, perseverando
unânimes todos os dias no Templo e partindo o pão em casa,
comiam juntos com alegria e singeleza de coração, louvando
a Deus e caindo na graça de todo o povo. E todos os dias
acrescentava o Senhor à igreja aqueles que se haviam de
salvar. (Atos 2.42-47)
Pedro e João em Samaria

Com efeito, o Evangelho não era mais o pequenino grão de


mostarda da parábola. Uma grande árvore se erguia agora sobre a terra.
A verdade não se deslocara ainda rumo aos povos assentados à sombra
da morte; porém uma cidade, uma província até então inimiga entreabria
os olhos à claridade celeste! Era a cidade de Samaria, outrora hostil e
sobre a qual João pedira a Jesus que fizesse cair fogo do céu. Con-
vertidos por Felipe, um dos sete novos diáconos, e batizados por ele, os
samaritanos esperavam que a mão dos apóstolos, únicos investidos do
poder de Deus, lhes conferisse o batismo no Espírito Santo. Pedro foi
designado para essa missão. João não podia separar-se dele, e partiram
juntos. Convinha que aquele que outrora sugerira que o fogo vingador
caísse sobre os samaritanos, sabendo enfim agora de que Espírito era,
fizesse cair sobre suas cabeças a chama do Espírito Santo.
Impuseram, pois, as mãos sobre os novos convertidos. Assim, a
pregação da Palavra juntava-se ao exercício de um ministério mais
elevado: a ministração da graça e do batismo, em toda a plenitude do
poder apostólico.

Simão, o mágico

Foi ali que João se achou pela primeira vez na presença de uma
dessas heresias filosóficas e místicas ao mesmo tempo que, com o nome
de gnosticismo, devia ser o campo de futuros combates. Nessa província
de Samaria achava-se um mágico conhecido pelo nome de Simão,
praticante de artes mágicas e que pretendia comprar o dom do batismo
com o Espírito Santo.
Simão era da aldeia de Giton ou Gita, na Samaria. Apresentara-se
aos samaritanos como aquele que ditara a lei no Sinai. Aos pagãos ele se
dizia o Zeus soberano, dando o nome de Minerva ou Sabedoria
encarnada a uma prostituta que ele encontrara em Tiro e que ele
chamava de Helena. De acordo com o sistema que ele pregava, ela
representava o princípio passivo e material, que ele, Simão o mágico, o
Salvador, viera reabilitar no mundo.
Quando apareceu a Boa Nova do cristianismo, Simão não a
repudiou; fez-se batizar, e tomando da doutrina do Evangelho o que podia
adaptar-se a seus sonhos e suas mentiras, apresentou-se em pessoa
como o Redentor. Não era ele, com efeito, o libertador das almas de-
gradadas no corpo? Não era ele o bom pastor que viera procurar e salvar
dos abismos do mundo onde ela se perdera, aquela Helena desgraçada,
aquela ovelha ferida e perdida no deserto das paixões grosseiras?
Simão ia, portanto, semeando suas falsas doutrinas e sua fama em
Samaria e em outras províncias. A Síria, a Fenícia, talvez mesmo Roma,
viram Simão maravilhar as multidões, menos pela sedução de suas mági-
cas do que pelo ostentação de sua vida. Fazia-se passar, segundo
Jerônimo, pelo Verbo divino. "Eu sou o Verbo, dizia ele, a Palavra de
Deus, o Belo, o Paracleto, o Todo-Poderoso, o Todo de Deus".
Simão testemunhou os milagres operados sobre os neófitos de
Samaria pela imposição das mãos dos dois apóstolos; e aqueles dons do
Espírito Santo, que o enchiam de admiração, despertaram-lhe também a
inveja. Achando que tudo aquilo não passava do efeito do prestígio
empregado por concorrentes mais hábeis, o mágico propôs a Pedro e a
João comprar-lhes o segredo. Mas aqueles que haviam dito ao mendigo
que estava na porta do Templo que não possuíam nem ouro nem prata,
repeliram as ofertas interesseiras do impostor dizendo-lhe: O teu dinheiro
seja contigo para perdição. O Senhor assim o tinha ordenado: De graça
recebeste, de graça daí. (Mateus 10.8). Aquela tentativa de negociar com
coisas santas recebeu o anátema dos apóstolos e o nome, dali em diante,
de Simonia, e iria perpetuar a lembrança de seu primeiro autor, Simão, o
mágico, assim como o anátema lançado contra ele.
Naquela época João também participou do ministério da eleição dos
pastores. Naquele tempo os apóstolos designaram a um deles, Tiago,
denominado o Menor, irmão de Jesus, para exercer as funções de pastor
de Jerusalém. Tiago, por sua grande santidade, conquistou o respeito
tanto dos judeus como dos cristãos.
O Talmude conta que o judeu Eligazer foi curado da picada de uma
cobra pela oração de Tiago em nome de Jesus.
Outra tradição diz que Tiago era tão parecido com Jesus nos modos
e nos traços, que até se pensava que ele era gêmeo com o Senhor.
Vendo-o, tinha-se a ilusão de ver o próprio Jesus Cristo.

A morte de Tiago, irmão de João

Tiago, irmão de João, foi o primeiro apóstolo mártir. No evangelho,


as existências desses dois filhos de Zebedeu parecem fundir-se numa só,
sem que um só traço denote a personalidade distinta de Tiago. Criados
na mesma casa e trabalhando na mesma barca, e convidados no mesmo
dia a tornarem-se pescadores de homens, tendo estado juntos à divina
confidência da transfiguração, da agonia no Getsêmani e das últimas
manifestações de Jesus, parecia que deveriam ser inseparáveis na morte
como o tinham sido na vida. Não fora a ambos e na mesma circunstância
que o Senhor dissera que beberiam de seu cálice? Mas o cálice de um
não seria exatamente igual ao cálice do outro. Para João, a dor amarga
foi a de ver sofrer seu irmão e ele ficar. Para Tiago, foi a de separar-se de
João e partir.
Isso ocorreu onze anos depois da morte de Jesus, no 44º. ano de
sua Encarnação, no 2º. ano do reinado de Cláudio, sendo cônsules
Quintius Crispinus e Marcus Statilius Taurus.
Quem ordenou a execução do apóstolo foi o famoso Herodes
Agripa, do qual Flávio Josefo contou a vida tão agitada. Favorito de
Antônia, mãe de Germânico, partidário e íntimo da casa de Druso,
embalado pelas intrigas assim como pelas orgias do palácio de Tibério,
Agripa tinha os princípios morais corrompidos e a depravação dos
costumes própria dos perseguidores. Seu avô, Herodes o Grande, fora o
assassino das crianças de Belém, e atentara contra a vida de Jesus. Sua
mulher era aquela adúltera, Herodíades, que pedira a cabeça de João
Batista, e sabe-se hoje de todas as devassidões que sua irmã praticou, a
também adúltera Berenice, que depois passou a viver com o próprio
irmão.
Audacioso e hábil, dominador e bajulador, Agripa possuía a
flexibilidade de caráter dos romanos da decadência, cujo único objetivo
era a riqueza, e fazia qualquer coisa pela obtenção do prazer. Depois de
protegido por Caio, foi parar numa prisão infamante, e subitamente foi
arrancado da desgraça e do exílio para sentar-se no trono de sua pátria.
As perversidades que ele havia aprendido ao viver entre os
romanos não lhe impediram de mostrar um certo gosto pela religião dos
judeus, o que fazia com que ele fosse bem recebido pelo povo e pelos
sacerdotes. Além disso, era um espírito político, não se comprometendo
com crimes inúteis, sempre pronto para tudo e nunca hesitando diante de
uma crueldade que lhe pudesse servir de degrau para o aumento de
poder ou para a conquista de riquezas.
Foi o que sucedeu na circunstância da morte de Tiago. Agripa
voltava de Roma. O imperador Cláudio, a quem muito auxiliara a subir ao
trono, não contente de confirmá-lo na posse da Galiléia assim como na
antiga tetrarquia de Felipe, acabava de dar-lhe a Judéia, Samaria e todas
as terras do Líbano. Um tratado de aliança, cheio de elogios, tinha sido
gravado numa placa de bronze fixada no Foro. Forte pelo apoio do
príncipe, Agripa queria sê-lo também através da afeição de seus súditos.
E como, no seu regresso, achasse o país profundamente dividido pela
invasão progressiva da religião cristã, pensou que um dos meios mais
seguros de adquirir popularidade seria proceder com rigor contra "aquela
minoria odiosa".
Era no tempo dos pães asmos que precede a Páscoa. Agripa, que
residia em Cesaréia, foi à cidade santa para essa solenidade. A multidão
era grande em Jerusalém; e os da Dispersão, vindos animados à festa, só
falavam naqueles judeus que se viam por toda a parte "pregando um
novo Deus". As numerosas conversões amedrontavam os sacerdotes e
os rabinos, ameaçados em sua autoridade e ensino. Indiferente sem
dúvida à questão de doutrina, Agripa ficou temeroso ao saber que
aqueles homens pregavam em nome de um novo rei dos judeus. Era
necessária uma vítima à cólera pública; Tiago foi o escolhido.
O apóstolo foi denunciado pelo judeu Ozias, que o entregou aos
soldados de Agripa. Viu-se então, conta Clemente de Alexandria citado
pelo historiador Eusébio de Cesaréia, o que devia se repetir tantas vezes
na história dos cristãos martirizados: o próprio acusador, horrorizado de
seu crime e impressionado com a plácida firmeza do mártir, declarou-se
cristão com o risco de perder a própria vida. Ambos foram condenados à
morte.
Ora, enquanto caminhavam juntos para o suplício, diz-se que Ozias,
lançando-se aos pés de Tiago, pediu-lhe com insistência que lhe
perdoasse. Tiago parou por um momento. Já o perdoara no coração, mas
lembrando-se que Ozias não era ainda batizado em águas, hesitou em
dar-lhe o ósculo dos irmãos. Porém Jesus imediatamente falou ao
coração de Tiago que aquele homem já estava batizado na graça, e que
em breve o seria no sangue. Tiago então o abraçou e o beijou, repetindo
como por despedida as palavras do Senhor: "A paz seja contigo!". Em
seguida foram ambos decapitados.
Jesus havia sido crucificado há 11 anos, naquele mesmo dia de
Páscoa. O Senhor morrera perdoando também a seus carrascos e
pensando naquela mesma cidade que apedrejava os justos e matava os
profetas. Doze anos antes, Jesus havia perguntado a Tiago se ele podia
ser batizado no batismo em que Jesus era batizado, e ele respondera
com bravura: "Posso!". Aquela palavra acabava de se cumprir.
João, que recebera idêntica promessa e tomara o mesmo
compromisso, não ia tão cedo entrar na posse da divina herança. Mas o
martírio do irmão foi o primeiro sacrifício que Deus exigiu dele. Moisés
havia escrito no livro de Levítico:
Depois, tomará para expiar a casa duas aves (...) e degolará
uma ave num vaso de barro sobre as águas vivas (...) Então,
tomará a ave viva e a molhará na ave degolada (...) Então
soltará a ave viva para fora da cidade. (Levítico 49.49-51,53)
Ora, foi conforme esse ritual que as coisas se passaram. Tiago
tinha sido a vítima escolhida. Coberto com o sangue do irmão, João não
tardará a abrir as asas e voar. O martírio de Tiago foi o sinal da primeira
dispersão dos apóstolos. Vendo que o rei Agripa preparava o mesmo tipo
de morte para Pedro, e que este só escapara uma vez graças a um anjo
libertador, os discípulos lembraram-se da palavra do Senhor: "Se uma
cidade vos repelir, refugiai-vos noutra". Sacudindo, portanto, a poeira dos
pés, resolveram afastar-se de Jerusalém.
Uma tradição antiga afirma que Jesus teria recomendado aos
apóstolos que ficassem na Judéia durante doze anos, antes de se
dispersarem para terras longínquas. Era a explicação da instrução
evangélica:
Mas ide, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel.
(Mateus 10.6)
Conforme Jesus havia predito, as tendas de Israel iam-se dilatar, e
Pedro já tivera revelação de que, dali por diante, não mais haveria para o
Evangelho distinção de raça. Pouco a pouco a opinião de Roma passara
a mudar com relação ao Cristianismo. Segundo Tertuliano, Tibério
propusera ao Senado admitir Cristo no número dos deuses. Mas esse era
o tipo de ajuda que os discípulos dispensavam.

A conversão de Paulo

A mais importante conquista da fé, porém, foi a do jovem Paulo de


Tarso. Nunca o apostolado fizera mais esplendida convocação que a
daquele fariseu, discípulo de Gamaliel, de origem judaica, nascido na
Grécia, romano pelo direito de cidadania, pertencente por todos estes
títulos aos grandes povos, e, sem dúvida por esse motivo, escolhido por
Deus para a honra de se tornar mestre na doutrina cristã. Não tivera
como Pedro a visão simbólica da admissibilidade igual de todas as
nações no reino de Deus. Porém, como ele mesmo o declarava, recebera
diretamente do próprio Jesus Cristo a missão de pregar aos pagãos.
Tinha, todavia, vindo à Jerusalém a fim de conversar com os primeiros
missionários do evangelho de Jesus. Paulo conta:
E conhecendo Tiago, Cefas e João, que eram considerados como
as colunas, a graça que se me havia dado, deram-nos as destras, em
comunhão comigo e com Barnabé, para que nós fôssemos aos gentios e
eles, à circuncisão; recomendando-nos somente que nos lembrássemos
dos pobres, o que também procurei fazer com diligência. (Gálatas 2.9-10)
E a primeira vez que encontramos Paulo ao lado de João. Será
também a última. O evangelho não faz referência alguma a algum contato
posterior entre estes dois apóstolos, chamados, no entanto, a ceifar
sucessivamente no mesmo campo da Ásia. Separados pela distância,
permaneceram sempre irmãos pela fé e doutrina. Debaixo de uma
diferença incontestável de linguagem, o ensino é, no entanto, o mesmo. A
aliança contraída naquela entrevista entre Pedro, Paulo e João jamais se
rompeu, e em seus livros, como outrora na vida, os três apóstolos estarão
sempre de mãos dadas.
João foi também um dos juízes, no primeiro Concilio de Jerusalém,
durante o qual ficou estabelecido que os gentios convertidos ao
cristianismo ficariam isentos da circuncisão e das cerimônias prescritas
pela lei de Moisés. Esta questão estabelecida no berço da Igreja era, no
fundo, a questão de sua universalidade e de sua livre difusão no mundo.
Mais do que qualquer outro apóstolo, João não pretendia ver a Igreja
presa à Sinagoga, pois melhor do que ninguém ele sabia e proclamava
que era chegada a hora em que se adoraria a Deus não somente em
Jerusalém ou no monte Gerizim, mas em todos os recantos da terra, em
espírito e em verdade. (João 4.21-23)
João sabia também que o Bom Pastor tinha outras ovelhas além
das do antigo rebanho de Israel, e queria fazer de todas elas um só
rebanho com um único Pastor, Jesus Cristo. O evangelho de Jesus Cristo
pregava uma mensagem universal. Ora, esta universalidade essencial da
Igreja resultava, como conseqüência, na abolição dos ritos que a
prenderiam ao templo de Jerusalém.
O único ponto sobre o qual ainda se manifestavam algumas
hesitações no seio do apostolado primitivo era a maneira e o momento
que melhor conviria para suprimir aqueles ritos. O concilio concordou em
que alguns fossem conservados, ao menos temporariamente, a fim de
aproximar os espíritos divergentes e fundir o helenismo e o judaísmo.
Mas no dia em que a Igreja tivesse reunido os dissidentes, aquelas
resoluções simplesmente seriam suprimidas, como os andaimes que
caem logo que o edifício é construído.
João, o apóstolo conciliador

O papel que a tradição, no decorrer daquele tempo, designou a


João era justamente um papel de conciliação. João, o pregador do "novo
mandamento"; João, que fez cair a barreira de preconceitos e
ressentimentos que separava Samaria de Jerusalém, e que vai abrir para
toda a Ásia grega as fontes que jorram para a vida eterna, mostrou-se
também, durante sua longa existência, um cristão observador da lei de
seus pais no que ela possuía de compatível com o cristianismo. Ele
celebrava a Páscoa cristã no mesmo dia marcado para a Páscoa da
antiga lei. No evangelho João citou com prazer a afirmação de Jesus:
A salvação vem dos judeus. (João 4.22)
João conservou-se israelita tanto pelo coração como pela raça, e
quando quiser pintar o coração glorioso de tudo, Jerusalém é que lhe
aparecerá brilhante, e as doze tribos serão o emblema vivo do
universalismo da Igreja triunfante.
Pouco tempo depois do concilio, os apóstolos se dispersaram. Não
os veremos mais reunidos. Não se pode precisar a época daquela última
e definitiva separação; e é muito provável que aquela partida tenha
ocorrido sem solenidade alguma, cada apóstolo indo para onde o cha-
mava o Espírito Santo e a necessidade dos povos.
Pedro e João, que sempre tinham vivido muito unidos, tiveram que
suportar dolorosamente o sacrifício necessário da separação.
Foi na Ásia que levantou-se os dois imperadores que a história
coloca acima de todos os outros: Ciro e Alexandre, o Grande.
Dispersando os judeus e dando à Sinagoga plena liberdade, Ciro
espalhou em seus vastos Estados as páginas dos livros santos,
propagando assim a doutrina primordial da unidade de Deus. Por sua vez,
meditando a unidade de uma única pátria, de uma só civilização, de uma
única filosofia, Alexandre estabeleceu do Indos ao Nilo, a unidade de
linguagem: o grego seria a língua de João e de Paulo. Nos desígnios de
Deus esses grandes homens tão-somente lavraram a terra a fim de que a
verdade fosse espalhada em profusão pelos "semeadores da Palavra",
como os atenienses chamavam os apóstolos.
Desta forma foi que o mundo oriental, o mundo helênico, enfim o
mundo romano tinham ouvido o grito do Precursor: Preparem os
caminhos! Estando, pois, livres os caminhos, os conquistadores partiram.
Daqui por diante, e particularmente nos capítulos que se seguem, o
Evangelho não rastreará mais os passos de João. Sua trajetória será
muitas vezes um tanto sombria. Será em tradições posteriores, por vezes
alteradas e desfiguradas pela imaginação dos escritores, que temos de
procurar os traços meio apagados de seus passos.

CAPÍTULO 12 - JOÃO PARTE PARA O CAMPO MISSIONÁRIO

João não se dirigiu imediatamente para a Ásia. Um dever sagrado o


prendia ainda à Judéia. Era sua responsabilidade para com a mãe de
Jesus, que se tornara também sua, pelo legado divino da Cruz. Tudo nos
leva a crer que Maria haja ficado em Jerusalém e lá tenha morrido. Ali, na
cidade santa, ela ficou com João até o seu derradeiro dia. Ali ela desceu
ao túmulo.
Quando todos os irmãos partiram, e a Judéia, perturbada pelas
discórdias, corrompida pelo paganismo dos costumes, rebaixada em sua
fé pelos idumeus, e em sua liberdade pelos procuradores Félix, Festus,
Albinus, João resolveu deixar também Jerusalém e procurar outro campo
para semear a santa semente.
Vamos encontrá-lo pouco tempo depois na Ásia proconsular. Não
viera só. Acompanhavam-no os anciãos da Igreja de Jerusalém que não
tinham fugido para além do Jordão. O pastor Papias de Hierápolis
menciona um enorme cortejo de discípulos que se reuniram a João. Eram
íntimos dos grandes apóstolos e, tendo-os visto e ouvido, podiam repetir
o que haviam ensinado André, Pedro, Felipe, Tomé, Tiago, Mateus e os
outros apóstolos e discípulos do Senhor.

João chega a Éfeso

Não se pode fixar com exatidão a data da chegada de João a


Éfeso. Calcula-se que tenha sido posterior ao ano 54 d.C. porque naquela
época o livro de Atos, falando da pregação de Pedro naquela cidade, não
faz menção alguma de João. Porém, outros historiadores acham que
João só tenha chegado a Éfeso após a destruição de Jerusalém.
A formosa Éfeso, rica pelo comércio, pelas tradições e pelas artes,
era a rainha e a capital da Ásia. Era a Atenas do Oriente. Sucessivamente
arruinada por terremotos e incêndios, reconstruída à custa de toda a
Grécia, favorecida por Alexandre, liberta por Augusto, orgulhosa da
plêiade de poetas, sábios, oradores, pintores e jurisconsultos de que era
o berço, como Hipponax, Artemidoro, Parhasio e Apeles, bem que
mereceu ser chamada por Plínio de "o farol da Ásia".
Cinqüenta cidades semeadas por aquela praia afortunada brilhavam
em torno dela, conta o historiador Filóstratos. Entre elas se destacavam
Lídia de Sardes, Tiatira, Tales e Magnésia, inteiramente gregas pelos cos-
tumes e pela linguagem. Mais acima, na Mísia, Cízico reunia em sua
encantadora praia todos os romanos abastados, sequiosos de sol, de
elegâncias e prazeres. Ali erguiam-se também Alexandria de Trôade, para
onde César pensara transferir a sede de seu império; Pérgamo, outrora
célebre não só pelo tesouro das letras como pela opulência proverbial de
seus reis.
Um pouco abaixo, na Cária, ficava Alabanda, pátria dos palhaços e
das cantoras, rebaixada a tal ponto pela luxúria que foi a primeira cidade
que consagrou um templo a uma divindade opressiva de Roma.
Halicarnasso erguera-se da ruína que lhe infligira a cólera de Alexandre.
Ela estendia, então, sob um céu admirável, seus monumentos de
mármore, cujos destroços ainda causam admiração aos viajantes.
Enfim, mais perto de Éfeso, e como satélites, viam-se reluzir num
raio de cinqüenta a sessenta milhas apenas, Priene, Mileto, Heraclea,
Esmirna, Fócea, Colofon, Clazomena e a ilha de Samos — toda aquela
praia heróica que os gregos chamavam de seu país helênico, e que a
história e a epopéia tornaram imortais com Heródoto e Homero.
Éfeso era grandiosa. Da colina de Pirone cujo solo fértil fora
exaltado por Pausânias, ela descia em degraus até a beira do mar Egeu,
seguindo as margens frescas do rio Castro, cujo leito se alargava perto de
Éfeso e levantava ilhas de grande verdura. No recinto da cidade, o
pequeno lago de Pégaso, o riacho Frísias e a fonte de Calípio mantinham
durante o verão daquele clima ardente uma temperatura relativamente
agradável. Filostrato fala também da arena do Xisto, onde costumava
haver corridas, e onde o povo ia ver as lutas de morte dos gladiadores.
Enfim, por cima da cidade, as colinas Cilbianas, inundadas de luz;
embaixo, os dois promontórios do golfo de Colofão; o porto coberto das
velas dos navios, e o mar cheio de ilhas, davam a este quadro a única
moldura condigna: o infinito das montanhas, do mar e do céu.
Porém, não foi por certo nenhuma dessas belezas que atraiu João a
Éfeso. O apóstolo chegou ali para enfrentar o desafio de evangelizá-la e
lutar em seu território contra as hostes infernais, que haviam instalado ali
um quartel-general. Como Roma, Atenas, Antioquia e Alexandria, Éfeso
era, além de grande centro de negócios, o maior centro de falsas
doutrinas da Ásia, doutrinas sempre incandescentes porque
recentemente vindas do próprio inferno. Ela era uma espécie de fossa
aberta a todo o tipo de superstição e perversão. Era o grande centro do
politeísmo asiático.
O paganismo, muito desacreditado em sua mitologia, possuía em
Éfeso dois elementos que, entre povos semelhantes, deviam assegura-
lhe uma longa vida: a beleza do culto e a permissividade durante as
celebrações. A religião de Éfeso possuía essas duas seduções. Diana era
uma das mais antigas divindades de Éfeso, a rainha dos ídolos. Ela era a
devassa Astarote das antigas religiões dos cananeus que, como se sabe,
faziam da natureza um deus e da luxúria um culto. Em cada local essa
deusa tinha um nome diferente. Nas praças, Artêmides, na margem dos
pântanos, Diana, no porto, Alfeônia, nas montanhas, Coriféia. Em todos
esses lugares ela recebia homenagens variadas, muitas das vezes
imorais e sanguinárias.
Mas em parte alguma ela era tão soberana como no Templo erguido
em sua homenagem em Éfeso, para onde a multidão afluía atraída pela
lascívia e os elementos artísticos do culto.
Pausânias declara que o templo de Diana em Éfeso excedia em
esplendor a todos os templos dos outros povos. No centro do edifício -
que já havia sido queimado por Eróstrato e depois reconstruído no mais
belo estilo jônico -, perto dos altares talhados por Praxíteles, por cima de
estátuas de deusas que faziam aquele santuário parecer um Olimpo, "a
grande Diana dos efésios" era representada por um bloco de madeira
negra grosseiramente talhado, e envolta em tiras como as múmias do
Egito. Dizia-se que a estátua tinha descido do céu. O seu altar era dia e
noite rodeado de sacerdotes, enquanto os jovens auxiliares mantinham
acesa a fogueira onde lançavam incessantemente animais vivos.
Era ali que, segundo refere Dionísio de Halicarnasso, a
confederação jônica inteira vinha prestar adoração. "Em certos dias, diz
ele, homens, mulheres e crianças ali se encontravam por causa dos
negócios e da religião. Realizavam corridas de cavalos, disputas de exer-
cícios ginásticos e de música, dando prêmios aos vencedores. As cidades
também ofereciam aos deuses presentes caros. Quando os espetáculos e
os negócios terminavam, acabadas as festas e os divertimentos, se uma
cidade tinha alguma contenda com outra, achavam-se ali magistrados
que julgavam a questão.”
O culto a Diana dos efésios

Quais eram as práticas que acompanhavam o culto de Diana-


Astarote? Os historiadores pagãos traçaram um quadro que pode dar
uma idéia dos horrores que se praticavam ali. "Durante os dias de
festividade à deusa, via-se toda a cidade mergulhada na imoralidade e na
ociosidade. Viam os sacerdotes e os milhares de cultuadores como
agentes de depravação e obscenidades. Só se via nas ruas gente lasciva,
dissoluta e afeminada, e à noite só se ouviam gritos, gargalhadas e
gemidos de luxúria".
O culto à Diana havia corrompido de tal maneira os efésios que foi
isto o que eles disseram ao sábio Hermodoro: "Não queremos que haja
homens de bem em nosso meio. Se existirem, que passem a viver em
outros lugares e com outros povos".
Tal era a cidade para onde o apóstolo João viera pregar o
evangelho, a pureza e a santidade. Aquele lugar era uma das mais largas
portas do inferno e estava entregue aos demônios; por isso João viera
estabelecer-se ali para arrebatar aquelas almas das garras de Satanás.
Sua coragem devia brilhar tanto mais quanto maior era o número dos
inimigos de Deus e filhos das trevas naquela cidade.
Hoje nada restou da grande metrópole da Ásia no meio dos
pântanos onde ela havia sido destruída. Éfeso é uma cidade morta,
extinta. Há alguns anos ainda se via perto da praia um grande monte de
escombros, muralhas caídas e blocos estendidos. Era o lugar onde se
erguia o templo da "grande Diana".
Quando o apóstolo entrou no grande porto de Éfeso, protegido
contra as marés por uma muralha de arrecifes, não podia ignorar que
aquela cidade não era completamente estranha aos membros de sua
raça e de sua religião. Os judeus ali estavam estabelecidos em grande
número. Tinham seu culto, suas coletas, suas sinagogas e, excetuando
Alexandria, poucas cidades tinham tantos judeus quanto Éfeso.
No entanto, eles não viviam felizes ali. Josefo conta-nos que os
judeus eram perseguidos pelas autoridades romanas, zombados em seu
culto, insultados em suas crenças, despojados de seus bens, obrigados a
trabalhos pesados, sobrecarregados de impostos opressivos. Há meio
século o primeiro Herodes passara por ali em companhia de um dos
ministro de Augusto, chamado Agripa, e aquela multidão havia lançado
diante deles um clamor de desespero tão grande que o ministro não teve
outra alternativa senão fazer-lhes justiça. Agripa restituiu-lhes parte dos
bens a pedido de Herodes, a quem abraçou publicamente em sinal de
amizade para com toda a nação. Mas quando aqueles dois homens
partiram, suas promessas caíram no vazio, e os judeus voltaram a sentir
dolorosamente o peso da maldição dos homens e de Deus.
Porém, havia algo ali que consolava o apóstolo. O evangelho havia
sido pregado em Éfeso, e ao pisar naquela cidade pagã, João pôde
encontrar discípulos de Jesus.

Os primeiros alicerces da fé em Éfeso

O primeiro a pregar-lhes a salvação de Jesus Cristo foi talvez o


próprio Pedro, durante a viagem que fez às cidades orientais, depois do
primeiro concilio de Jerusalém, descrito em Atos 15.
Um outro discípulo do Senhor também ali estivera, com menos
doutrina e menos autoridade, porém com eloqüência e encanto de dicção
suficientes para agradar aquele povo no meio do qual havia muitos
artistas e oradores. Chamava-se Apolo. Era um alexandrino,
varão eloqüente e poderoso nas Escrituras. Porém, aquele eloqüente
arauto do Evangelho só conhecia o batismo de João Batista.
Dois cristãos de Éfeso, vindos de Roma a Corinto e de Corinto a
Éfeso, chamados Áqüila e Priscila, simples trabalhadores, o chamaram de
lado e lhe esclareceram sobre pontos fundamentais das Escrituras.
Recomendaram-no em seguida aos fiéis da Acaia para onde Apoio estava
indo evangelizar. Áqüila e Priscila eram dois operários, e se tornaram
mestres de um sábio que, com sua arte de bem falar, acabara de
maravilhar a Grécia; e este aceitara tornar-se um humilde discípulo
daquele casal num conhecimento que a escola não lhe havia dado — eis
uma novidade à qual Deus começava a acostumar o mundo.
Enfim, o próprio Paulo viera a Éfeso pouco tempo depois de Apoio,
e sua pregação não fora vã. Durante quase três anos viram-no ensinar,
prender a multidão com a sua palavra poderosa nos assuntos espirituais,
libertar os possessos, curar os enfermos. Ele levou tão longe as
conquistas da fé cristã que o culto pagão foi abalado em seus alicerces.
Depois de uma revolta realizada em nome da "grande Diana de Éfeso", o
apóstolo foi perseguido e teve de embarcar e fugir pelo mar, levando,
porém, consigo alguns discípulos escolhidos.
Mas antes de partir, reunira ainda uma vez em Mileto os sacerdotes
da Igreja de Éfeso para recomendar-lhes o rebanho, no meio do qual
constituíra bispos e pastores.

Timóteo, pastor de Éfeso

A frente destes ficou Timóteo, seu discípulo predileto que ele próprio
chamava de "o bom soldado de Cristo." Era um grego de Licaônia,
homem ainda na flor da idade, de saúde delicada e vida austera, mas de
alma intrépida, e que, para salvar seu povo, não recuaria nem mesmo
diante do martírio. Espírito formado nas Santas Escrituras por sua mãe
piedosa Eunice e sua avó Lóide, havia se convertido a Jesus Cristo após
ouvir a pregação de Paulo na cidade de Listra. Foi depois consagrado
pela imposição de mãos.
Em seguida os irmãos viram-no trabalhando para o Senhor por toda
a parte, na Ásia, na Macedônia, em Atenas, em Tessalônica, em Corinto,
em Jerusalém e em Roma, pregando o Evangelho e partilhando das
heróicas lutas do seu pai na fé, Paulo. Quando este viu as grandes
esperanças de conversão em Éfeso, a ninguém achou mais digno de
assumir a liderança daquela igreja que o jovem missionário formado em
sua escola, Timóteo.
Paulo havia começado a obra, e João organizou-a. Foi o
evangelista quem fundou e dirigiu as igrejas da Ásia. Assim, enquanto
Timóteo se fixou em Éfeso, João estendeu as conquistas do Evangelho
até os confins da Ásia Superior.
Uma das tarefas de João foi designar a cada um de seus enviados
o posto onde deviam estabelecer-se e liderar em nome de Jesus Cristo.
Pois a ordem expressa que o Senhor dera aos discípulos enviados a
pregar fora a de estabelecerem e fundarem igrejas. Um pastor para cada
igreja. Mas sobre cada uma os apóstolos mantinham a autoridade.
Fixar um pastor em cada congregação foi obra do Quarto
Evangelista. Porém, já tínhamos visto Tiago, o Menor, ser escolhido para
liderar a Igreja de Jerusalém. O próprio Paulo, que após sido chamado
pelo Senhor, percorreu quase o mundo inteiro, fez com que seu discípulo
Tito ficasse em Creta e Timóteo em Éfeso.
No ponto mais elevado do litoral, ao Norte, levantava-se Alexandria
de Trôade, entre as ruínas onde outrora se erguera a cidade de Tróia.
João para ali mandou Carpo, aquele que hospedara Paulo (2 timóteo
4.13). Um trecho da segunda Epístola a Timóteo no-lo mostra ali
estabelecido antes da morte do apóstolo, função que ele recebera quando
Paulo por ali passou.
Mais abaixo estava Pérgamo, menos rica do que sob o governo dos
Atálidas, porém com razão ainda orgulhosa de sua biblioteca, de suas
sábias escolas, e dominando do alto da montanha cônica o curso e o fértil
vale do rio Calco. Foi naquele lugar que, pelas constituições apostólicas,
João instalou mais tarde Gaio, um homem de bem, a quem foi dirigida
sua terceira Epístola.
Esmirna não ficava longe. Destruída pelos Lídios, reconstruída por
Antígono e Lisímaco, era cidade nova, construída como anfiteatro sobre a
encosta da montanha, prolongando até o mar suas belas ruas bem
alinhadas, suas praças, seus templos de mármore cheios de gloriosas
lembranças. Como podia uma cidade onde também eram venerados o
santuário e os mistérios da deusa Diana, e que levantara um templo a
Tibério, ao lado de outro em memória do poeta Homero, trocar os
costumes e a poesia por crenças severas e uma moral santa pregada por
missionários considerados bárbaros? João para lá mandou um de seus
melhores discípulos, chamado Ariston. Porém, as crônicas apostólicas
não lhe mencionaram o nome.
Ao oriente de Éfeso, mais para o centro, e quase na mesma linha
de Sardes, encontrava-se primeiramente Filadélfia, também despovoada
pelos abalos daquele solo inquieto; Laodicéia, uma das maiores cidades
da Frígia, e Colossos, que devia alguns anos depois também sucumbir
pela violência dos terremotos.

As responsabilidades de vários ministros de Deus

Segundo Paulo, o pastor de Colossos foi seu querido Epafras, que


se mostrou um fiel ministro de Jesus Cristo. Quanto à Laodicéia, parece
que Arquipo se encarregou de governar sua igreja. E a ele que os
registros apostólicos designam antes de Epafras e de Ninfas, e em sua
casa se reunia a igreja nascente. Enfim, mais perto de Éfeso, Tralas e
Colofão, apesar de menos importantes, receberam o mesmo cuidado do
apóstolo. Foi por intermédio do Quarto Evangelista que Sóstenes veio a
Colofão, tendo sido um dos primeiros companheiros de Paulo. Após ele,
Tíquico descerá à cidade dos antigos oráculos, e lhe fará revelações mais
fidedignas do que as do célebre Apolo, o Claro.
O primeiro pastor de Tralas foi ainda mais conhecido. Na opinião de
Basílio, foi o apóstolo Felipe, antes de sua viagem às Índias. Segundo
Eusébio, Felipe morreu em Hierápolis, perto de Laodicéia, onde mais
tarde duas de suas filhas dedicaram-se até à morte ao serviço de Jesus
Cristo.
Quão belo, ativo e exemplar era aquele grupo de jovens ministros
do Evangelho, que mais pareciam uma geração de obreiros de Deus
vindos diretamente do Céu! Que súbito desabrochar de coragem, de
doutrina, de obras milagrosas e de pregação inspirada e eloqüentíssima!
Que grandes homens aqueles cristãos, pobres mas realizadores de
imensas obras, simples mas inabaláveis na fé! Que felicidade seria poder
seguir e historiar todos os seus passos naquela Ásia cobiçada por todos
os exércitos antigos, mas que nunca vira conquistadores de semelhante
espécie!
Os próprios apóstolos trabalhavam para se manter. Paulo deu-lhes
o exemplo e a isso exortou os irmãos. E o filho de Zebedeu, chegando a
Éfeso, não procederia de outra maneira. Enobrecendo assim o trabalho
manual, estes homens preparavam uma das maiores reformas operadas
pelo evangelho. Ergueram-no do desprezo onde o haviam colocado as
sociedades antigas que o consideravam castigo do vencido e do escravo,
e o honraram dando-lhe o valor de um sacrifício que ofereciam eles
mesmos todos os dias Àquele que disse no Evangelho de João:
Meu pai trabalha até agora, e eu trabalho também. (João
5.17)

As atividades de João em Éfeso

Se, em vez de realizarem essas coisas grandiosas e de morrerem


por elas, esses sacerdotes tivessem tido tempo de contá-las, quantas
maravilhosas e extraordinárias revelações não nos dariam suas histórias!
Eles não eram vistos sentados à sombra dos pórticos públicos, ou nos
camarotes dos circos, nos teatros ou anfiteatros, arrastando a clâmide
dos nobres ou o manto dos filósofos nos degraus de mármore dos
palácios ou dos templos. Porém, via-se sempre um homem vestido com
simples túnica, descer até o porto, conversar familiarmente com os
marinheiros sobre a pobre profissão deles, que também era a sua, falar-
lhes primeiro do vento e da tempestade, para em seguida falar-lhes
daquele a quem os ventos e os mares obedecem, e exercer, da antiga
profissão de pescador de peixes, o ofício de pescador de homens.
Esse homem era João. Se acompanharmos os seus passos, nós o
veremos entrar numa loja escura, onde um casal se ocupa em orar a
Jesus Cristo enquanto fabrica tendas. É a casa de Áqüila e Priscila. Nós o
encontraremos sentado e discutindo, após horas de labor, com um
operário que trabalhava em bronze, desencaminhado pelo orgulho e o
espírito de rebelião: esse operário era Alexandre, que resistira ao
apóstolo Paulo (1 Timóteo 1.20; 2 Timóteo 4.14). Algumas vezes o
escutaremos pregar sobre o Verbo Eterno, e dar testemunho do que vira
e tocara, na casa de um novo convertido que o hospedava: era a de
Tirano, professor de Éfeso que já havia recebido Paulo. (Atos 19.9)
Mais de uma vez ele era visto na casa de um discípulo para onde
afluíam os pobres e os estrangeiros socorridos pelo amor fraternal: era a
casa de Gaio, que João "estimava na verdade de Jesus". Sem dúvida
seria também visto instruindo, dirigindo e abençoando os filhos de uma
grande família cristã, repetindo-lhes sem cessar o novo mandamento:
Amai-vos uns aos outros. Era essa, com efeito, a exortação aos filhos e
aos discípulos da fé. Porém, o mais comum seria vê-lo pregar na
masmorra dos escravos sobre o amor de Jesus, que se havia feito
escravo por nós. Assim foi o primeiro apostolado desse homem.
Quem crê em mim, como diz a Escritura, rios de água viva
correrão do seu ventre. (João 7.38)
As revelações sobre a vida divina, outrora manifestadas em Jesus,
começavam a transbordar em borbotões do seio de João. Era, com efeito,
a vida, a vida sobrenatural, fonte de todas as outras, que João pregava
em Éfeso, quando dizia:
Quem crê no Filho de Deus em si mesmo tem o testemunho;
quem em Deus não crê mentiroso o fez, porquanto não creu
no testemunho que Deus de seu Filho deu. E o testemunho é
este: que Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está em seu
Filho. Quem tem o Filho tem a vida; quem não tem o Filho de
Deus não tem a vida. Estas coisas vos escrevi, para que
saibais que tendes a vida eterna e para que creiais no nome
do Filho de Deus. (1 João 5.10-13)

O testemunho dos cristãos de Éfeso

Aqueles, portanto, que queriam viver essa vida superior, aceitavam


o Filho de Deus. Havia primeiramente as almas oprimidas. E quando a
miséria dos tempos, a tirania dos imperadores, a licensiosidade brutal e
desenfreada dos soldados, as execuções dos pretores, as devastações
do inimigo, a anarquia das províncias conspiravam para pôr tudo a perder,
inúmeras almas inclinavam os ouvidos à voz suave, à voz de João, que
pregava a salvação em Cristo Jesus, a igualdade entre os irmãos, a
justiça eterna.
Havia muita gente infeliz, que sofria por viver em um mundo
decaído. Eram pessoas sequiosas de infinito, famintas de Deus, e que
compreendiam muito bem o apóstolo João quando ele falava da única
água que pode matar a sede do coração humano pela vida eterna.
E havia também as almas simples, nas quais ainda não se apagara
completamente a honestidade, e que reconheciam o verdadeiro Deus no
milagre contínuo da vida dos cristãos e no amor que eles expressavam. O
mundo viu aqueles santos e acreditou na santidade.
Aqueles irmãos tinham os seus grupos escolhidos, a frente dos
quais devemos colocar as viúvas, sobre as quais Paulo falou
demoradamente em sua carta à Igreja de Éfeso. Quando se considera o
que era a mulher naquele tempo, com que facilidade lhe davam o
divórcio, e com que leviandade ela contraía novas núpcias, contando os
maridos pelas estações de verão, segundo um ditado da época, podemos
calcular que grande e difícil serviço ia a Igreja prestar à sociedade,
honrando a viuvez quase tanto como a própria virgindade.
Além disso, era uma das características da mensagem cristã dirigir-
se aos aflitos, e não havia corações mais despedaçados do que esses.
Aquelas mulheres que tinham ficado sós, vazias de todo, como dizia seu
novo e triste nome, sem amor nem amparo, o Evangelho as acolhia nas
portas do desespero, e abria-lhes as almas para uma aliança divina que
não conheceria nem a separação nem a morte.
As antigas crônicas da Igreja registram muitas santas viúvas entre
os primeiros discípulos do apóstolo João. Isoladas ou reunidas, as viúvas
da igreja oravam, trabalhavam, cantavam salmos, cuidavam das casas de
oração e dos templos, felizes apesar da pobreza, agradecidas pelas
ofertas que os irmãos lhes davam, elevando os corações a Deus em ação
de graças.
Tudo isso era motivo de admiração para os gregos. Mas em parte
alguma a admiração pelo testemunho da Igreja era tão grande como na
cidade de Éfeso e no tempo de João.
Éfeso, porém, era uma cidade extremamente devassa. No entanto,
não era todos os dias que se ria em Éfeso. Viam-se naquela época
terríveis calamidades caírem de todos os lados sobre aquela cidade de
dores e de prazeres. Éfeso era muitas vezes sacudida no meio das festas
por terremotos que lhe arruinavam casas, teatros, templos. O historiador
Estrabão cita-nos cidades marítimas da Jônia destruídas por terremotos.
Entre aquelas cidades arrasadas Éfeso era a primeira a ser citada,
e o amor de João achou ali lúgubre e vasto campo de exercício. Alguns
antigos historiadores afirmam que ele ressuscitou dezenas de mortos que
haviam sido soterrados durante os terremotos. Eusebio, Sozomeno, e
antes desses, Apolônio, o teólogo, narram alguns milagres de mortos
ressuscitados pela oração do apóstolo. Porém, essas são histórias extra-
bíblicas, e devem ser consideradas com cautela.
João pregou primeiro o Evangelho que devia escrever mais tarde,
dirigido aos povos e aos reis.

A zombaria contra os cristãos

Era quase impossível homens devassos, materialistas e cegos não


escarnecerem dos cristãos. Eles ouviam os cristãos falar de seu Pai dos
céus, e esse filho de um Pai celeste não passava de um escravo aviltado,
de um mendigo destinado a todo o desprezo e a todos os suplícios!
Ouviam os cristãos clamar pela vinda de seu Reino, e estavam sob o
reinado de Nero e Domiciano. Ouviam-nos desejar que a vontade de
Deus fosse feita sobre a terra, assim como ela era feita pelos anjos no
céu, e isto estava sendo pedido numa época em que só se obedecia "às
vontades do sangue e da carne", como o denunciava o apóstolo João.
Mas, por entre semelhantes escárnios a Igreja seguia o seu
caminho. Enquanto em Chipre, Rodes, Cós, Mileto e Pérgamo a alta
sociedade ia aos templos, aos circos, às alegres vilas, às festas elegantes
e aos lugares onde se entregavam a orgias e bacanais, durante os quais
ouviam a leitura das descrições lascivas de Ovídio, deleitavam-se com o
cinismo de Petrônio, com os poemas torpes de Catulo, uma geração pura,
oculta no meio do povo, reunia-se para orar e glorificar o nome de Jesus
Cristo. João não lhes passava o cálice que embriagava os participantes
das orgias de Éfeso, mas fazia-os beber do cálice que recebera da mão
de Jesus na ceia de despedida, e esses irmãos levantavam-se da nova
mesa fortes contra a luxúria, maduros para o testemunho, preparados
para o martírio.
CAPÍTULO 13 - COMBATENDO AS HERESIAS

O Reino do mal fez suas represálias. Travou-se então grande luta


contra a verdade, e Éfeso não tardou em ver cumprir-se a predição que
Paulo fizera aos anciãos em sua última despedida:
Porque eu sei isto: que depois da minha partida, entrarão no
meio de vós lobos cruéis, que não perdoarão o rebanho. E
que, dentre vós mesmos, se levantarão homens que falarão
coisas perversas, para atraírem os discípulos após si. (Atos
20.29-30)
Escrevendo a seu filho Timóteo, Paulo dizia-lhe:
Ó timóteo, guarda o depósito que te foi confiado, tendo horror
aos clamores vãos e profanos e às oposições da falsamente
chamada ciência; a qual professando-a alguns, se desviaram
da fé. A graça seja contigo. Amém! (1 Timóteo 6.20-21)
Porém, como ele o temia, já "os lobos famintos tinham entrado no
redil", e Paulo sabia que era um dever prevenir seu discípulo para que
não se perdesse envolvido com fábulas, mitos e genealogias
intermináveis:
Como to roguei, quando parti para Macedônia, que ficasses
em Éfeso, para advertires a alguns que não ensinem outra
doutrina, nem se dêem a fábulas ou a genealogias
intermináveis, que mais produzem questões do que edificação
de Deus, que consiste na fé; assim o faço agora. (1 Timóteo
1.3-4)
Não pode haver dúvida: essa ciência falaz era a Gnose, segundo o
próprio nome que lhe dá o texto grego. As genealogias e teogonias eram
as dos Eons, emanações dos espíritos do seio do Infinito. Mas Paulo ti-
nha apenas entrevisto o gnosticismo; estava reservado a João combatê-
lo.

O combate contra o gnosticismo

Foi certamente este um dos maiores perigos que o cristianismo


correu. O gnosticismo não era uma heresia parcial, negando este ou
aquele ponto das doutrinas reveladas. Era uma dessas negações
radicais, coletivas, abrangendo todo o corpo doutrinário do cristianismo
nascente. Intencionava levá-lo ao nível de uma filosofia, e, por fim, depois
de o ter sufocado, aniquilá-lo e substituí-lo. Era a coligação de todas as
falsas doutrinas e de todas as crenças contra o Evangelho de nosso
Senhor Jesus Cristo.
O gnosticismo era uma mistura confusa de heresias, procedente da
fusão do judaísmo alexandrino e das superstições orientais. Do lado da
Grécia e do Egito helênico, o platonismo, o estoicismo, o pitagorismo so-
pravam sobre o Evangelho a fim de apagá-lo. Do lado da Pérsia e da
Índia, a reencarnação, o parsismo e a teoria das emanações introduziam
no seio da religião cristã as genealogias infinitas dos Eons,
semidivindades ou espíritos subalternos, produtos de uma cosmogonia
panteísta.
Desta mistura resultava a mais terrível confusão de doutrinas. O
propósito de seus criadores era destruir o Evangelho e substituí-lo pela
Ciência, que é o significado do nome Gnose. Ela devia ser, antes de tudo,
o conhecimento superior das coisas. O cristianismo, na transformação
pela qual o faziam passar os homens de espírito, não visaria mais a
salvação, mas seria só uma obra de especulação, uma teoria mística.
Pondo totalmente de lado o aspecto moral, faziam a perfeição do homem
consistir não na conversão, na transformação de vida e na pureza do
corpo, mas simplesmente na prática da ciência: a inteligência seria tudo
no homem, o resto não teria valor.
O dualismo ensinava que, de um princípio duplo, o bom e o mau,
procediam o bem e o mal, que vivem sempre em luta no universo. O
espírito era o bem, e provinha da luz. A matéria era o mal, e provinha das
trevas. Como então podia o Verbo, que é essencialmente luz e santidade,
unir-se hipostaticamente à matéria, mergulhada toda ela no mal?
Semelhante sistema excluía toda a possibilidade da Encarnação e, como
conseqüência, da Redenção. De modo que, se Jesus Cristo fora visto
sobre a terra em carne humana, carne padecente, era apenas aparência,
na opinião dos gnósticos. Esta doutrina passou a ter o nome de
docetismo.
Daí também resultavam enormidades de erros de ordem moral, cujo
usufruto as múltiplas seitas disputavam entre si.
Alguns adeptos dessas seitas, ouvindo declarar que a matéria era
essencialmente má, chegavam à cômoda conclusão de que se o corpo
nenhum direito tinha, também nenhuma obrigação tinha, portanto. Não
existindo solidariedade alguma entre ele e a alma luminosa, esta não
podia ser responsável pelos atos dele, por mais monstruosos que fossem.
A seita dos nicolaítas, ou dos baalamitas, abraçou essas abomináveis
conclusões. Disto resultaram infâmias que se abrigaram sob o manto da
ciência dos gnósticos. Porém, essa montanha de orgulho tinha sua base
na lama.
Viu-se então de todos os lados aparecerem "doutores" que, com o
nome de cristãos e em nome do cristianismo, ensinavam essas idéias,
tentando falsificar o Evangelho. Pouco acostumados a se ver diante de
uma doutrina absoluta e totalmente deferente das outras, os gnósticos
imaginavam de bom grado ter feito um grande favor a Jesus Cristo
abrindo-lhe suas portas nos templos da filosofia. Pensavam honrar o
Messias galileu atirando-lhe sobre os ombros o manto dos filósofos da
Grécia civilizada. Não era exatamente este monstruoso disfarce que o
Senhor profetizara, quando denunciou os sedutores revestidos da lã das
ovelhas, mas que no fundo não eram senão lobos famintos?
Assim, durante dois séculos, a gnose esteve constantemente em
luta contra a fé evangélica, a qual tentou sufocar desde o seu nascimento.
Mas não conseguiu.
A gnose tinha tudo para isto. Nascera na Ásia, no ponto mais
sonoro do mundo civilizado, entre o judaísmo de um lado e o parsismo do
outro. O helenismo penetrava naquela região com todas as suas
seduções. O criativo gênio do Oriente o embalava com suas fábulas,
rodeando-o de símbolos e alegorias. Uma metafísica abstrata e vaporosa
atraía os seus filósofos. Se aquelas doutrinas eram um ecletismo
cômodo, mais cômoda era a sua moral. Mesmo as almas sequiosas das
coisas espirituais ali achavam, ao lado de um sensualismo velado, ritos e
superstições suficientes para que o aspecto religioso ausente mantivesse
ainda ali a aparência sedutora.
Assim, desde o começo, o gênio do mal punha na frente a tríplice
força de toda seita que quer apanhar o homem por inteiro: o orgulho era
atraído pelo racionalismo, a carne pelo sensualismo, a mente pelo misti-
cismo. Tal era o tríplice aspecto sob o qual a heresia apareceu em Éfeso,
opondo aos sagrados ensinamentos de João as invenções de Cerinto, as
abominações dos nicolaítas e as operações mágicas de Apolonio de
Tiana.

Cerinto, o grande heresiarca

Cerinto, o fundador do gnosticismo, era de origem judaica, mas


nascera na cidade de Antioquia. Esta era também a pátria de Saturnino e
de Bardesano, outros hereges daquele tempo. Cerinto teve uma vida
cheia de aventuras. De Antioquia aquele espírito irrequieto mudou-se para
Alexandria. Aquela cidade iria se tornar a segunda pátria do gnosticismo.
Edificada às margens do Nilo para completar a aliança da Grécia e do
Oriente, a cidade de Alexandria tomara de cada uma daquelas civi-
lizações os requintes e os excessos, procurando misturar sofismas
elegantes à superstições voluptuosas. Ali se encontravam mágicos da
Caldéia, hierofantes de Osíris, filósofos de Atenas e rabinos da Palestina.
Nos cofres de cedro da biblioteca de Ptolomeu estavam reunidos os
escritos de Aristóteles, de Platão e a Bíblia dos Setenta, a Septuaginta.
Um teto comum abrigava as idéias nascidas sob os céus mais diversos.
Os próprios judeus, tão numerosos e tão ricos naquela cidade de
comércio, não estavam longe de fazer concessões de doutrina, seguindo
o exemplo de Filo e Aristóbulo, adaptando Moisés ao pensamento de
Platão, e interpretando Gênesis segundo o espírito de Timeu. Cerinto fre-
qüentou aquelas escolas, e seu sistema herético ali recebeu forte marca
de misticismo.
O sofista voltou depois à Antioquia, sua pátria, mais ou menos no
tempo da pregação de Paulo e Barnabé. Sua chegada marcou o início de
distúrbios, conforme nos contam Atos dos Apóstolos. Zelador da lei,
Cerinto e seus seguidores se amotinaram contra os pregadores da nova
religião. Podemos dizer que toda a oposição que o cristianismo encontrou
a princípio nos judaizantes deveu-se às intrigas de Cerinto.
Foi então que apelou-se para o concilio de Jerusalém. Condenado
unanimemente, Cerinto resolveu fundar uma religião para si. Sua intenção
era ser ao mesmo tempo judeu, cristão e gnóstico. Tirando do evangelho
aquilo que ele achava ser verdade, procurou adaptar isso às suas
fantasias, e passou a pregar uma mistura extravagante de filosofia
oriental, de mosaísmo descaracterizado e de cristianismo disfarçado.
Ao ver-se formalmente excluído da Igreja, sacudiu o jugo da fé e
mudou-se para a Ásia, precisamente par a cidade de Éfeso, onde
encontrou o apóstolo João.
Entre ele e João travou-se o grande combate que desde aquele
tempo jamais cessou de dividir os homens.
Cerinto foi o primeiro a negar a divindade de Jesus. Na opinião dele
Cristo não era Deus. Ele dizia acreditar na existência de um Deus infinito,
soberano, mas este residia em sua grandeza, solitário, incomunicável, e
cujo único nome era o abismo e o silêncio. Desse abismo e desse silêncio
Deus não tinha saído nem para criar o mundo nem para salvar o homem.
Incumbira das obras subalternas da Criação e da Revelação um certo
poder formador dos seres e legislador dos hebreus. Deus mesmo se
achara muito elevado e superior para dignar-se a fazer-se homem.
Mandara, por isso, apenas o seu Filho para resgatar o mundo: esse Filho
era Cristo, simples homem.
Cerinto dizia também que Cristo, filho único do Princípio Criador,
não era a própria pessoa de Jesus; habitava simplesmente o espírito de
Jesus; de modo que a encarnação fora apenas aparente. Em certo
momento, o sopro divino havia descido sobre o homem Jesus, porém
sem identificar-se com ele. No dia de seu batismo, Jesus o recebera sob
a forma de uma pomba. Na crucificação o perdera, como ele próprio se
queixava na cruz: Por que me abandonaste? Naquele momento o divino
Eon, o Cristo, desfizera a aliança com Jesus, e voltara a seu princípio
impassível e imortal.
A seita dos gnósticos fez progressos alarmantes. A gangrena
devoradora, como a chamava Paulo (2 Timóteo 2.17), não tardou a
alastrar-se por toda a Ásia Menor. A Galácia foi particularmente atingida.
Aquele era o motivo da maior tristeza do apóstolo das nações, por- que a
Galácia era o seu campo de predileção, e na epístola aos Gálatas Paulo
queixou-se amargamente dos ataques de doutrinas espúrias àquela igreja
florescente.
Por mais que aquela seita fosse odiosa ao apóstolo Paulo, era-o
ainda mais diretamente contrária ao espírito de João. João era o apóstolo
do amor, e o amor não estava com aqueles orgulhosos. Eles não se
davam ao trabalho de praticar a caridade. Não cuidavam da viúva, nem
do órfão, nem do aflito, enfim, de ninguém que sofresse — fosse ele
prisioneiro ou estivesse em sua casa — de ninguém que tinha fome e
sede.
Nada possuía maior capacidade de amargurar o coração de João.
Revoltado com a atitude dos seguidores de Cerinto, João proibiu aos
cristãos qualquer comunicação com aqueles pervertores. Foi referindo-se
a eles que João escreveu:
Todo aquele que prevarica e não persevera na doutrina de
Cristo não tem a Deus; quem persevera na doutrina de Cristo,
esse tem tanto o Pai como o Filho. Se alguém vem ter
convosco e não traz esta doutrina, não o recebais em casa,
nem tampouco o saudeis. Porque quem saúda tem parte nas
suas más obras. (2 João 9-11)
Mas não bastava fugir da impiedade; era necessário combatê-la. As
epístolas de João estão cheias de alusões evidentes àquela heresia que
separava em Jesus o Deus do homem:
Porque já muitos enganadores entraram no mundo, os quais
não confessam que Jesus Cristo veio em carne. Este tal é o
enganador e o anticristo. (2 João 7)
Mas a verdadeira resposta de João foi o seu Evangelho. Porém, em
suas páginas Cerinto nem sequer foi citado. João não discutiu: ele
afirmou solene e soberanamente a verdade. Com seu estilo sublime, João
expôs que no princípio era o Verbo, e o Verbo era Deus, e que o Verbo
criou o mundo, e que o Verbo se fez carne, e esse Verbo é Jesus. E foi o
Verbo-Deus que desde o princípio ele viu, contemplou, amou, tocou com
as próprias mãos, e do qual estava dando testemunho. Assim, todas as
distorções e fantasias de Cerinto se evaporavam diante da luz, desde a
primeira até a última página do Quarto Evangelho.

João combate os nicolaítas

Naquela mesma época surgiu outra heresia, idêntica ao gnosticismo


no conteúdo, mas diferente na forma e nas práticas. Era a dissolução e a
libertinagem dos sentidos depois do desvirtuamento do espírito. Era o
nicolaísmo.
Segundo o historiador Eusébio de Cesaréia, Cerinto, já cansado de
se manter nas alturas severas da especulação, havia descido às
conseqüências práticas de uma moral muito sensual. Pregava um futuro
reinado terrestre de Cristo, no qual seus seguidores se embriagariam de
delícias semelhantes àquelas que os muçulmanos esperam achar no
paraíso de seu profeta Maomé. A seita que formulou este sensualismo
grosseiro foi a dos nicolaítas, que se identificou como os cerintianos.
Foi o próprio apóstolo João que nos revelou, no Apocalipse, o nome
e as obras dessa seita infame, que dizia ter achado numa palavra do
Evangelho a justificação de todas as suas horríveis práticas. Quem era
esse Nicolau que lhe dava o nome? Seria o diácono de mesmo nome,
eleito com Estevão depois do Pentecostes? (Atos 6.5). Os grandes
estudiosos têm chegado à conclusão que sim, e deve-se ver naquele
diácono o primeiro exemplo dessas quedas, que de alturas quase
celestes precipitam ao abismo da perversão homens consagrados.
Mas também é provável que se tratasse de outra pessoa. Porém,
seja qual tenha sido o líder dos nicolaítas, o que João nos diz de suas
dissoluções confirma bem o que a história nos revelou. O nicolaísmo era
um sensualismo ligeiramente velado por símbolos gnósticos. Uma das
afirmações da gnose era que os iniciados na ciência transcendente,
escapando completamente à dominação dos poderes humanos, não
cometeriam pecado algum caso se entregassem a práticas carnais. O que
sabemos de certas práticas da seita nicolaíta coincide perfeitamente com
esses princípios permissivos. À sombra do templo de Diana, às margens
indolentes dos rios Castro e Meandro, cujos encantos deslumbrantes os
poetas cantaram, em frente à ilha de Cós, pátria de Vênus, aquela seita
defendia ensinamentos e costumes que não poderíamos sequer
mencionar.
Entre as cidades situadas na costa da Ásia, Éfeso e Pérgamo foram
as que mais sofreram o contágio dos nicolaítas. O próprio apóstolo
confirma isto no Apocalipse. Ele confessa também, em nome de Jesus, o
ódio que tinha àquela perversão de costumes, muito mais sedutora do
que a das idéias. Eram, como ele o dizia, as profundezas de Satanás.
Mas eu vos digo a vós e aos restantes que estão em Tiatira, a
todos quantos não têm esta doutrina e não conheceram, como
dizem, as profundezas de Satanás, que outra carga vos não
porei. (Apocalipse 2.24)
Que lutas não teve ele que travar contra aquela seita? Que milagres
de santidade e de vida consagrada puderam fazer retroceder aquele
lodaçal de devassidão que ameaçava sufocar a semente do Evangelho?
A história não registrou isso exatamente; porém sabemos que a
comunidade dos fiéis em Éfeso mostrou-se enérgica di- ante daquela
sedução. Tal foi o testemunho que daqueles crentes deu o próprio Senhor
Jesus no Apocalipse:
Eu sei as tuas obras, e o teu trabalho, e a tua paciência, e que
não podes sofrer os maus; e puseste à prova os que dizem
ser apóstolo e o não são e tu os achaste mentirosos. Tens,
porém, isto: que aborreces as obras dos nicolaítas, as quais
eu também aborreço. (Apocalipse 2.2,6)

O ataque da magia oriental

Os ataques de Satanás tomavam diversas formas. Naquela mesma


época João viu surgir também um terceiro inimigo de Jesus: a magia
oriental, que invocava contra o Evangelho todas as suas forças ocultas.
Aquele novo ataque parecia o mais perigoso, porque opondo milagres
aos milagres, usava o próprio nome de Deus, de quem dizia receber o
poder, e achava no povo um cúmplice devido à sede inextinguível do
sobrenatural que devora as almas.
Éfeso foi o mais importante campo de batalha contra aquela terrível
artimanha do diabo. Era ali que se viam homens sujos, de olhos
esbugalhados, cabelos soltos e em desordem, sacudindo a cabeça como
se estivessem em convulsões, proferindo palavras obscuras e entre-
cortadas que eram tidas como oráculos, e ostentando possuir poderes
sobrenaturais, de preferência às portas dos templos, de onde lhes veio
em Roma o nome de fanáticos.
Para os membros da classe instruída de Éfeso, as práticas
mágicas, os encantamentos, as evocações, todas as ciências ocultas
tornaram-se uma paixão. Convém lembrar que foi em Éfeso que Paulo fez
devorar pelas chamas livros de magia no valor de cinqüenta mil peças de
prata. (Atos 19.19)
Porém, a magia não morrera. Os mágicos chegavam da Ásia e da
Pérsia trazendo o sabeísmo, o culto dos gênios, os encantamentos da
erva omont, cuja bebida provocava o "delírio divino". Vindos do Egito,
todos os anos desembarcavam no porto de Éfeso bandos de adivinhos,
de astrólogos e de magos. Os caldeus vinham vender aos efésios o
segredo do futuro pela combinação misteriosa dos algarismos e a
conjunção dos astros. Era ali que, segundo o relatório de Clemente de
Alexandria, letras cabalísticas, chamadas letras epizesias, eram pro-
curadas pela sua maravilhosa virtude curativa ou divinatória.
Viam-se essas letras escritas por toda parte, no pedestal da estátua
de Diana, em roda de sua cintura e sobre o seu diadema. As pessoas
traziam-nas gravadas como um talismã em anéis sagrados, dos quais
consideravam como dever nunca se separarem. Nem os decretos de
Augusto nem a repressão violenta às artes mágicas puderam moderar
esse delírio perigoso para a razão pública, e todas as pessoas
supersticiosas nele se precipitavam com inquieto frenesi, quando de
repente desembarcou em Éfeso o mais famoso entre todos os magos
daquele tempo.

O satânico Apolônio de Tiana

Apolônio de Tiana era o seu nome. Ele tinha vindo opor os seus
falaciosos prestígios aos milagres dos apóstolos, e suas pomposas
virtudes à santidade cristã. Aquele era o único terreno onde o
antagonismo do céu e da terra não se haviam ainda encontrado e travado
combate.
Mas quem era aquele homem? Qual o papel que ele representava
ou que lhe atribuíam? Que crédito merece a sua história?
Havia quase um século que a figura imponente de Jesus Cristo
irradiava seu brilho na história, lançando um fulgor que fazia empalidecer
todas as outras glórias. Por mais que se quisesse fechar os olhos à sua
luz, aquela incomparável beleza da natureza humana e da natureza
divina unidas numa só pessoa, o puro exemplo de um sábio que era ao
mesmo tempo o Justo, o legislador do mundo, e seu Salvador pelo poder
do seu sangue; aquele Deus, enfim, que era ao mesmo tempo o mais
doce e o mais humilde dos filhos dos homens, impunha admiração sem
todavia desencorajar a inveja. Era uma superioridade que não se podia
desconhecer. Para diminuí-la e esmagá-la a filosofia procurou um
concorrente que pudesse se opor vitoriosamente a Jesus.
Um sábio da Capadócia, chamado Apolônio, foi o escolhido. Seu
primeiro biógrafo, Moeragenes, citado por Orígenes, tinha-o como
poderoso encantador; Dion Cássio citava uma predição dele; o imperador
Caracala falava em erguer-lhe um santuário; a imperatriz Júlia, esposa de
Severo, pedira que lhe escrevessem sua história; Flávio Filóstrato pôs
mãos à obra e apresentou-lhe um romance.
A história de Apolônio de Tiana, escrita por Filóstrato, é uma
falsificação, um plágio da vida de Jesus Cristo. Nela não é feita nenhuma
referência ao Filho de Deus, porém nisso nota-se mais uma das
habilidades de Filóstrato. Inúmeras passagens traem a intenção do autor.
O nascimento de Cristo tinha sido anunciado à Maria por um anjo; o deus
egípcio Proteu apareceu igualmente à mãe do encantador para lhe
revelar a glória futura de seu filho. Muitos sinais tinham ocorrido em torno
do presépio de Jesus; notaram-se sinais semelhantes no berço do
"grande Apolônio".
O menino de Nazaré ia todos os anos ao templo, e em uma dessas
vezes causou admiração aos doutores; o jovem Apolônio, assíduo nos
templos, ali demonstrava possuir uma ciência ainda mais admirável.
Jesus lia nos corações, o mágico conhecia o segredo dos pensamentos;
ele descobriu um crime secreto de um ciciliano, assim como Jesus
penetrou o segredo da vida da samaritana.
Jesus é Deus e homem: Eunápio reclamou esse título para o herói
sobre-humano de Filóstrato. Jesus realizou milagres, Apolônio os realizou
ainda mais admiráveis, pois a ficção não sabe falsificar sem que exagere,
e por ali mesmo a invenção se trai. Jesus ressuscitou milagrosamente a
filha de Jairo e o filho da viúva; Filóstrato fala de um jovem de Roma cujo
cortejo fúnebre Apolônio encontrou, ressuscitou o rapaz e o restituiu à sua
mãe. Os possessos foram libertos, os demônios eram forçados a se
denunciar pela própria voz. A história de Empusa, noiva de Menippus, um
discípulo de Apolônio, libertado por ele, é a imitação de uma narrativa do
Evangelho de Lucas. Enfim, à semelhança do Homem-Deus, é também
por um de seus discípulos, o cobiçoso Eufrates, que o filósofo foi vendido:
como Jesus, Apolônio enfrentou resolutamente os juizes, certo da sorte
que lhe estava reservada.
Como Jesus, Apolônio foi abandonado; como Jesus ele sofreu os
ultrajes dos tiranos. Enfim, para que nada faltasse àquele disfarce, o
filósofo, que todos achavam que estivesse morto, apareceu entre os seus;
mostrou-se aos amigos, insistindo para que o tocassem a fim de terem a
certeza de que não era um fantasma fugido do reino das sombras.
Porém, ao lado dessas semelhanças completamente artificiais,
havia entre o Evangelho e o livro de Filóstrato a distância infinita que
separa os romances escritos por homens que não conhecem a Deus, da
história sem igual do Filho de Deus. Os pobres inventores não tinham sa-
bido fazer de seu sábio ideal nem ao menos um homem vulgarmente
honesto. Ou muito alto ou muito baixo, esse tipo não atinge ou não
ultrapassa as medidas. É que a medida de Deus não está nas mãos do
homem para que ele possa assim talhar uma figura conforme a sua fanta-
sia. Não há nada melhor para pôr em relevo a excelência do Evangelho
do que aquela pobre imitação, que serve de fortalecimento das evidências
da divindade de Jesus.
O ensino deste suposto rival de Jesus Cristo mostrava da mesma
maneira uma falsificação grosseira do Evangelho. Sua doutrina era a do
pitagorismo. Tinha tendências a voltar ao culto primitivo da natureza
universal, cujas forças múltiplas recebiam adoração sob muitos nomes e
muitas formas. Sua moral pregava a abstinência, a vida discreta, o
desprendimento, a luta contra a concupiscência. Eram as normas de vida
dos cristãos, menos a base, o meio e o vértice que é a humildade, a
verdade e o amor.
Por isso ruiu tudo por terra. A tentativa de melhorar o mundo
começada por Apolônio, continuada mais tarde por Plotino e Porfírio,
perdeu-se pela afetação, pela esterilidade e pelo ridículo, e dela só ficou a
lembrança de um frágil sonho de orgulho por parte daqueles que querem
reformar o mundo sem Deus, com a pretensão de fazê-lo melhor do que
Ele o fez.
Agora, quais são as grandes linhas dessa história? Que verdade se
destaca desse amontoado de fábulas com que Filóstrato sobrecarregou a
vida de seu herói?
Depois de ter passado os primeiros anos de sua vida na pequena
cidade de Tiana, na Capadócia, onde nascera, Apolônio partiu para as
escolas de Tarso. Ali foi seduzido pelo caráter místico da escola de
Pitágoras, e, separando-se da companhia de estudantes turbulentos,
começou a levar vida solitária, pessoal e estranha que devia dar-lhe todo
o prestígio e as honras futuras.
Observando durante alguns anos o silêncio dos pitagóricos, repartiu
a pequena fortuna entre a irmã e os pobres, e em seguida, vestido
unicamente de uma túnica de linho, pôs-se a percorrer, sucessivamente,
a Pérsia, a Babilônia, as Índias, o monte Atos, Antioquia, Chipre, a Grécia,
entretendo-se com os brâmanes e os mágicos, os filósofos e os
sacerdotes, sondando todos os mistérios da ciência e da natureza,
arrancando-lhe segredos que fez depois passar por fenômenos divinos, e
desta maneira maravilhando e fascinando as multidões, eternamente
ávidas de novidades, de milagres e revelações.
Uma grande reputação de sábio e de realizador de milagres
precedera-o, portanto, quando chegou a Éfeso. Ali ele teve acolhida digna
de sua fama. Não houve nobre operário nem homem de condição mais
baixa e vil que não lhe viesse ao encontro, deixando o trabalho para lhe
ver a face. Seguia-o tão grande multidão, que era quase impossível
chegar perto dele; uns, maravilhados com seus conhecimentos, outros
com a majestade de seu porte; uns, impressionados pela sua maneira
austera de vestir, outros, por sua alimentação, e a maior parte pelo
conjunto de todas estas coisas, com as quais se entretinham entre si de
diversos modos.
Apolônio de Tiana, o perigoso impostor, o homem que tentou
usurpar o nome, a história, as maravilhas e a glória de Jesus, entrou em
Éfeso quando lá ainda se encontrava o apóstolo João.
Porém sua estada naquela cidade foi muito curta, e o entusiasmo
do povo arrefeceu prontamente. Devemos atribuir esta desconsideração à
influência secreta da comunidade cristã? João teria contribuído para isso,
esclarecendo o povo enganado e desmascarando o impostor? Filóstrato
diz apenas que seu herói encontrou grande oposição em Éfeso. Depois,
suas virtudes não foram convincentemente provadas diante do povo,
conforme quisera fazer crer o seu "biógrafo". Alguns, como Eufrates,
notaram que a pobreza austera de Apolônio era fingida. O que havia ali
era um esperto negociante sob a capa de um filósofo.
Seu orgulho e pedantismo levou o povo a rejeitá-lo e a se afastar
dele. Não recebo ordens de ninguém, dizia Apolônio; sou eu que mando
em mim mesmo. Quando, perto de Babilônia, alguém lhe perguntou o que
trazia consigo, o soberbo filósofo respondeu: Trago comigo a justiça, a
constância, a sabedoria, a temperança, a modéstia, a paciência, a
magnanimidade, a continência e a coragem...
Tal era o homem que mais tarde o sofista Hérocles não temeu
comparar com Aquele que foi "manso e humilde de coração"! O povo que
a princípio correra para ouvir suas lições, acabou vendo nele apenas um
charlatão da sabedoria. Apolônio abandonou então a cidade de Éfeso.

CAPÍTULO 14 - O EVANGELHO DE JOÃO

A vasta coligação do mal e do erro, que acabamos de descrever,


pedia um testemunho brilhante da verdade cristã e da santidade de Deus.
Foi então que João escreveu seu Evangelho. O que primitivamente se
chamava Evangelho não era um livro, era uma mensagem verbal. Jesus
Cristo havia tão-somente ensinado. Seus apóstolos fizeram como ele:
nada escreveram, simplesmente pregaram. A palavra, inspirada
diretamente por Deus, provada pelos milagres, derivada de lembranças
de fonte fresca e pura, devia ser suficiente para a fundação do Reino de
Deus. Era aquele o sopro do qual dizia a Escritura que renovaria a face
da terra. Era um sopro de fogo; mas apenas um sopro.
Aquela palavra, no entanto, não tardou muito a ser escrita. Uns
expuseram primeiro a doutrina de acordo com a necessidade dos tempos:
foi o objetivo das epístolas. Outros redigiram a própria vida de Jesus: é o
que conhecemos e veneramos particularmente com o nome de
Evangelho.

Os evangelhos sinóticos

Se procurarmos a razão e o caráter próprio das três primeiras


narrativas, chamadas sinóticas, notaremos primeiro que foram escritas
visando as três grandes famílias de povos dentre os quais saíram os
seguidores de Jesus Cristo.
O Evangelho de Mateus foi escrito para os judeus, na Judéia, por
um judeu e conforme os costumes da nação judaica. Foi redigido na
língua desse povo. Há um livro conhecido sob o nome de evangelho dos
Hebreus que os estudiosos afirmam ser o evangelho de Mateus na sua
primeira forma.
O Evangelho de Marcos foi escrito em Roma, para os romanos e
sob a supervisão de Pedro.
O Evangelho de Lucas é inteiramente grego em seu propósito,
origem e destino. Nascido em Antioquia, cidade de língua e costumes
gregos, companheiro de Paulo e historiador de suas viagens pela Ásia,
Lucas, o doutor, foi o evangelista escolhido por Deus para escrever à
população grega, da qual Paulo, seu mestre, era o apóstolo.
Desta forma o Filho de Deus iluminou, como que por três raios de
sua divina face, as três grandes famílias da civilização do seu tempo.
Depois da redação dos três evangelhos sinóticos, o ponto de vista
da exposição assim como da moral cristã mudou. Não era mais
necessário citar as profecias para convencer os judeus que a sinagoga
estava morta. Jerusalém caíra em poder de Tito, e via-se a vontade de
Deus em caracteres ardentes sobre as cinzas fumegantes do Templo
destruído. O que convinha principalmente fazer sobressair na pessoa de
Jesus não era mais o Messias de um Israel agora vencido e disperso; era
o Deus que o universo devia adorar; não um deus qualquer de segunda
ou terceira categoria, intermediário entre o mundo e seu autor, mas o pró-
prio Autor do mundo. Ora, para isto bastava fazer vir à luz a parte mais
profunda do ensinamento de Cristo, contanto que ainda vivesse algum de
seus discípulos que a tivesse recolhido fielmente, e que a pudesse
transmitir.
João, filho de Zebedeu, outrora discípulo do Salvador, tornado o
apóstolo da Jônia, e que passara a viver em Éfeso, para onde iam todas
as heresias, era o mais apto dos apóstolos para combater a mentira,
assim como o mais instruído na verdade, pois repousara sobre o próprio
coração do Verbo de Deus.
A história de seu Mestre estava-lhe bem presente no espírito.
Penetrara-lhe em sua alma tão profundamente que não era mais possível
sair. Quanto maior e mais grata é uma lembrança, mais se enraíza e vive
no coração que a recebeu. Grande era, portanto, a vitalidade da
lembrança de Jesus Cristo na memória de João! O próprio Jesus Cristo
havia dito aos apóstolos que o Espírito Santo lhes faria lembrar tudo o
que Ele dissera e tudo o que Ele fizera, tal qual o fogo faz aparecer uma
escrita invisível:
Mas aquele Consolados o Espírito Santo, que o Pai enviará
em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará
lembrar de tudo quanto vos tenho dito. (João 14.26)
João, que relata essa promessa profética, devia vê-la realizada
completamente em si mesmo.
Portanto, João foi solicitado a escrever. Seu livro devia ser oriundo
da necessidade urgente da Igreja Cristã e do pedido dos irmãos. O
biblicista e erudito do século IV, Jerônimo, escreveu: "O apóstolo João,
aquele a quem Jesus Cristo amou mais do que aos outros, escreveu o
seu Evangelho a pedido dos bispos da Ásia, contra Cerinto e outros
heréticos, e especialmente contra o erro dos ebonitas que começava a
espalhar-se, e que ensinavam que Jesus não existira antes de Maria".
A lembrança de Jesus Cristo era ainda uma lembrança
contemporânea. Aqueles que eram discípulos com João, e os bispos da
Ásia sob sua liderança, insistindo para que João escrevesse, ouviram
dele esta resposta: "Jejuem comigo durante três dias, e em seguida
relatare- mos uns aos outros o que nos for revelado." Durante a noite foi
revelado a André, um dos apóstolos, que "João devia escrever tudo
sozinho, em seu nome, mas com a aprovação de todos os demais
irmãos.”
Os discípulos, ou pelo menos alguns, como André, o apóstolo da
Acaia, eram vivos ainda quando João terminou de escrever seu
Evangelho. Por outro lado, Jerusalém já não existia. A prova disto está no
fato de que o evangelista só fala dela no passado, referindo-se à exis-
tência de vários lugares em Jerusalém que não eram então mais que um
monte de cinzas.
É, portanto, depois da ruína daquela infeliz cidade, e antes da morte
de André e dos discípulos, isto é, mais ou menos entre os anos 70 e 80
d.C. que devemos datar a redação do Quarto Evangelho. Essa é,
portanto, a data atribuída a esse livro pelas inscrições dos manuscritos
mais antigos. Naquela data as doutrinas gnosticas, citadas por Paulo, já
estavam bastante espalhadas, fazendo-se, portanto, necessária uma
refutação, como a que João lhes opôs no seu Evangelho. Não podemos,
pois, aceitar a opinião gratuita que defende ter o apóstolo escrito o seu
evangelho quando já estava com 90 anos, nos limites extremos de sua
longa existência.
Quanto ao lugar onde o Quarto Evangelho foi redigido podemos
verificar por algumas evidências que, conquanto os fatos contados se
passem na Palestina, no entanto ele não foi escrito naquele país. É em
terra estranha e para estrangeiros que é necessário explicar os nomes
mais elementares da língua como o de Messias e Rabi. É só a
estrangeiros que se deve informar a antiga inimizade entre samaritanos e
judeus, e sobre o costume do embalsamamento e das abluções. Se João
explica estas e muitas outras coisas semelhantes, é porque estava
escrevendo seu livro longe da Judéia; ele o escreveu em Éfeso.
Portanto, tudo indica que ele o tenha escrito naquela cidade. Isto foi
expressamente declarado por Irineu, discípulo de João, e Irineu sabia o
que estava dizendo porque viveu no mesmo lugar e na mesma época do
apóstolo: "João, o discípulo do Senhor, João, que repousou sobre o peito
de Jesus, escreveu seu Evangelho na cidade de Éfeso, na Ásia." Os mais
antigos manuscritos da versão siríaca e da versão copta designam essa
cidade.
Durante muito tempo foi ali conservado o manuscrito original do
apóstolo; e Pedro, o mártir, bispo de Alexandria, ainda invocava sua
autoridade decisiva no começo do IV século: "O manuscrito, o autógrafo
de João, o evangelista, foi até hoje, pela graça de Deus, conservado na
Igreja de Éfeso, e ainda é ali examinado com respeito pelos fiéis.”
O fragmento de Muratori diz que o apóstolo começou a escrever o
Quarto Evangelho por solicitação dos bispos seus irmãos, que pediram
um resumo dos testemunhos dos últimos sobreviventes entre os discí-
pulos de Jesus. Clemente de Alexandria e Jerônimo contam a mesma
coisa. Ora, não é a este caráter de coletividade que se devem atribuir
certas formas de linguagem do evangelista, que se exprime no plural
como que para nos indicar que nos fala por todos? E vimos a sua glória.
(João 1.14). E na primeira epístola:
O que era desde o princípio, o que vimos com os nossos
olhos, o que temos contemplado, e as nossas mãos tocaram
da Palavra de vida (porque a vida foi manifestada, e nós a
vimos, e testificamos dela, e vos anunciamos a vida eterna,
que estava com o Pai e nos foi manifestada), o que vimos e
ouvimos, isso vos anunciamos, para que também tenhais
comunhão conosco; e a nossa comunhão é com o Pai e com
seu Filho Jesus Cristo. (1 João 1.1-3)
O mesmo fragmento de Muratori diz que o principal incentivador
desta redação do Evangelho de João foi o apóstolo André. Ora, André foi
o primeiro dos discípulos de Jesus que João fez aparecer a seu lado na
escola do divino Mestre, como se, fazendo um apelo às recordações em
comum, quisesse colocar o quadro autêntico desses princípios sob uma
dupla garantia.

Inspirado pelos altos Céus

Os discípulos e os bispos contemporâneos de João, tendo à frente


André, não deviam somente lhe inspirar o Evangelho: deviam também
aprová-lo, diz a passagem citada. Temos ainda sob nossos olhos o texto
dessa aprovação. Acha-se formulado nos últimos versículos do Evan-
gelho de João. Conforme o reconhecem os melhores intérpretes, o
apóstolo deixou a pena, cedendo-a aos discípulos; estes leram o
Evangelho que ele acabara de redigir. Tendo-o examinado e confirmado
sua autenticidade, todos juntos o aprovaram nestes termos:
Este é o discípulo que testifica dessas coisas e as escreveu; e
sabemos que o seu testemunho é verdadeiro. Há, porém,
ainda muitas outras coisas que Jesus fez; e, se cada uma das
quais fosse escrita, cuido que nem ainda o mundo todo po-
deria conter os livros que se escrevessem. Amém. (João
21.24-25)
Uma tradição conta que quando João começou a escrever o seu
Evangelho proclamando a geração eterna de Jesus Cristo por estas
sublimes palavras No princípio era o Verbo, viu-se num céu límpido o
fulgor de um relâmpago, e ecoou ao longe o estrondo de um trovão.
Aquele acontecimento era o símbolo da força e do brilho daquela palavra
descida dos altos céus. Conta-se que João orou e jejuou muito, pedindo a
Deus a inspiração celeste. Um livro dessa magnitude não se escreve tão-
somente com elementos humanos. São necessárias as palavras e a
inspiração de Deus. E foi entre gemidos indescritíveis que o Espírito
Santo fez ressoar as mais sublimes palavras que a terra jamais escutara.

Diferenças entre João e os sinóticos

Tendo lido narrações biográficas escritas antes da sua, o apóstolo


notou certas omissões. Apesar de inspirados, e colhendo informações em
fontes seguras, os três primeiros evangelistas não tinham sido, como ele,
testemunhas de todos os fatos que contavam. Mateus tinha sido o sétimo
chamado à honra do apostolado; Marcos não era dos doze, e Lucas só se
convertera muitos anos após Jesus ter cumprido o seu ministério. Por-
tanto, as narrativas dos três evangelistas necessitavam ser completadas
em três pontos principais:
1) Primeiramente, quanto ao início da vida pública de Jesus e aos
episódios ligados às primeiras conversas do Mestre com os discípulos e
os contatos de João Batista com o divino Messias, coisas estas que o
evangelista conhecia muito bem.
2) Em segundo lugar, quanto às diferentes estadas de Jesus em
Jerusalém, e aquele período que ele passou na Judéia, quando realizou
os seus maiores milagres e proferiu suas mais sublimes pregações. Tudo
isto tivera como cenário o pórtico do Templo, a casa de Betânia, o
Cenáculo.
3) E em terceiro lugar, quanto á vida ressuscitada, havia muitas
lacunas nos retratos da ressurreição de Jesus.
A João, pois, competia narrar esses fatos; foi uma das finalidades
principais do livro. Mas não foi o único objetivo do seu autor. Se
admitíssemos isto estaríamos rebaixando o seu Evangelho ao papel de
simples complemento e ele não apresentaria a riqueza e a unidade
inimitável que o distingue. Mas o apóstolo não desprezou essa função
que seu evangelho poderia exercer, como claramente revela a leitura. O
que os outros disseram, João cita; o que desenvolveram, ele abrevia; o
que se leu em outro lugar, ele supõe conhecido; o que falta, ele supre.
Assim, sua narrativa coloca-se ao lado e ao mesmo tempo acima da dos
seus predecessores. Ele não os seguiu, mas também não entrou em
oposição com nenhum deles. Se em várias ocasiões deixou de lhes
seguir os passos, encontrou-os freqüentemente, para que se veja que
todos quatro seguiram o mesmo caminho — aquele por onde Jesus
passou e fez resplandecer a luz de sua face divina.
A ordem dos fatos e a cronologia não estavam indicadas nos
Evangelhos anteriores. Muito mais preocupados em expor a doutrina de
Jesus do que em escrever uma história com desenvolvimento regular e
sucessivo, e dominados pelo hábito do ensino oral, os sinóticos tinham se
preocupado mais com a instrução dos leitores do que com a marcha
exata do tempo.
João preencheu essa lacuna. Lucas declara que já havia pensado
em pôr em ordem os fatos da história de Jesus. Mas foi João quem o fez.
Quatro Páscoas, algumas outras festas do ano religioso judaico
claramente indicadas cada uma em seu lugar marcam o caminho do
historiador, fixando a data dos acontecimentos principais da vida do
Mestre divino. Todos os sincronismos que se fizeram do Evangelho
partiram destes pontos esclarecidos por João.
Desta forma a vida de Jesus retornou ao seu lugar positivo no
tempo; o ideal por essência moveu-se no seio da realidade bem
determinada. O Evangelho considerado o mais espiritual tornou-se
igualmente aquele que melhor marcou o caráter exato e histórico da vida
de Jesus. João delimitou o leito do rio por onde a narração iria agora
correr por margens definidas.
O próprio apóstolo revelou a terceira e principal finalidade de seu
trabalho:
Jesus, pois, operou também, em presença de seus discípulos,
muitos outros sinais, que não estão escrito neste livro. Estes,
porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo,
o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu
nome. (João 20.30-31)
Portanto, a finalidade de João ao escrever seu evangelho não foi
unicamente a de completá-lo e pô-lo em ordem, mas sim a de provar a
divindade de Jesus.

Provando a divindade de Jesus

Não era essa, sem dúvida, uma crença e uma doutrina pessoal de
João. Antes dele já os três evangelistas a tinham formulado. A divindade
de Jesus Cristo manifestava-se igualmente em todas as epístolas de
Paulo. Quem escreveu esta definição:
dos quais são os pais, e dos quais é Cristo, segundo a carne,
o qual é sobre todos, Deus bendito eternamente. Amém.
(Romanos 9:5)
não foi João, mas Paulo. E João, endereçando seu Evangelho às
nações, teve todo o cuidado de prevenir aos prezados amigos que ele
não era nenhum inovador, e que seu ensinamento era o mesmo que eles
tinham ouvido desde o princípio.
O que os outros evangelistas apenas anunciaram, João
desenvolveu. Tinham verificado a divindade de Cristo, João a
demonstrou. Tinham-na feito sobressair na narrativa da vida de Jesus,
João deu-lhe todo o brilho na pregação do Senhor.
Entre os milagres de Jesus, ele preferiu narrar aqueles que melhor
provam sua divindade. Entre as palavras de Jesus, insistiu sobre aquelas
que confirmaram mais claramente a sua divindade. O caráter histórico do
livro nada perdeu com isso; porém o caráter dogmático e apologético
destacou-se mais nitidamente. Deste modo João atingiu o fim primordial
de sua obra, que era opor uma refutação indireta, porém formal às
incredulidades do tempo e do futuro quanto à natureza divina de Jesus.
João se encontrava, pelo seu apostolado, em presença das escolas
gnósticas. Isto é bem visível no seu Evangelho. Obrigado a dirigir-se às
filosofias, não desprezou, no entanto, as altas especulações que os
sábios da Ásia pretendiam achar na ciência. Daí o porquê de João, o
evangelista, ter sido chamado na antigüidade de "João, o teólogo". Daí a
profundidade dogmática do livro. Não é mais o evangelho do
cumprimento da antiga profecia; não é mais apenas a narrativa dos
acontecimentos de uma vida sublime: é o Evangelho do Verbo de Deus,
mas o Verbo Vivo, palpável, numa história fiel.
Vemos também que as palavras de Jesus, repetidas por João,
foram quase todas pronunciadas na Judéia e em Jerusalém. Não se fala
a doutores e aos principais de um povo como se fala a pescadores de um
lago. Na Galiléia, diante de uma multidão composta de pessoas simples,
numa barca, numa praia, sobre a relva de uma colina, para os pequenos
e os pobres, as parábolas familiares, como simples conversas,
harmonizavam-se muito mais com a bondade condescendente de Jesus
do que com a sua profundidade teológica.
Porém na Judéia, sob os pórticos do Templo de Jerusalém, aos
conhecedores da lei, aos prosélitos vindos de todas as sinagogas, aos
estrangeiros chegados de todas as cidades cultas, era necessário, sobre
um mesmo fundo de doutrina, Jesus usar outras palavras, outros métodos
de comunicação. Na Galiléia Jesus de Nazaré era o profeta prometido a
Israel, e seus ensinamentos simples e sua bondade bastavam para
comprovar a sua missão divina. Porém na Judéia, ele tinha que se
apresentar como um doutor, um Mestre, e seus discursos deveriam
provar sua divindade. Ora, as palavras pronunciadas por Jesus e citadas
por João eram de tal profundidade e magnitude que os próprios inimigos
confessavam que jamais homem nenhum falou como este. (João 7.46)
O Evangelho de João é como a flor dos Evangelhos. Só podia
penetrar a tal profundidade aquele cuja cabeça repousou sobre o peito de
Jesus. Só o amigo tão íntimo do Senhor, o discípulo tratado pelo Mestre
como um outro eu, seria capaz de ter os pensamentos e sentimentos que
ele apresenta no Quarto Evangelho. João bebeu em segredo naquela
fonte divina, seu evangelho é o resultado da união entre o seu coração e
o coração de Jesus.
Se é verdade que pelo estilo se conhece o homem, que homem
poderia melhor descrever Jesus Cristo como o Verbo Todo-poderoso e o
manso Cordeiro de Deus, a não ser o gênio ardente e ao mesmo tempo
meditativo do filho do trovão, do discípulo predileto? Eis porque a gran-
deza e a bondade de Jesus, sua sublimidade e ternura, todos os aspectos
e traços do Salvador se refletem no Quarto Evangelho como na mais
cristalina água. Das narrativas evangélicas a de João é a mais admirável,
a mais comovente e a mais simples. Vemos se reproduzirem ao vivo
todos os fatos que ele descreve; ele faz realmente reviver Jesus Cristo
diante dos nossos olhos. Milagre tanto de simplicidade como de
sublimidade, um vôo para a luz eterna, porém sempre amparado pelo
sopro do amor que nasceu em um coração humano.
João era um homem puro. Todos reconhecem que esse fato é uma
força intelectual indispensável nas coisas divinas. E principalmente neste
assunto que a penetração do olhar do espírito depende de sua pureza:
"Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus." A
pureza moral permite voar livre e continuamente para a luz. O olhar da
alma, como o do corpo, tem maior ou menor alcance de acordo com a
pureza da pessoa. "Há, diz muito bem Orígenes, diferentes formas sob as
quais o Verbo se revela a seus discípulos, conformando-se ao grau de luz
de cada um, conforme os graus de seus progressos na santidade. Se ele
se manifestou na montanha da Transfiguração sob uma forma mais
sublime do que aquela com a qual apareceu aos que, tendo permanecido
embaixo, não podiam atingir o alto, a razão é porque os que ficaram
embaixo não tinham os olhos capazes de contemplar a glória e a
divindade do Verbo transfigurado. João e só mais outros dois discípulos
foram levados por sua santidade a essas luminosas alturas".
O estilo do Evangelho de João é espontâneo e sublime. A
expressão jorra naturalmente, sem afetação, vertendo-se no discurso
como o ouro em fusão, sob o fogo do Espírito Santo. Daí esses vôos
rápidos que são como o bater de asas da águia dos evangelistas. A
plenitude do Espírito, ao descer do céu, achando na palavra humana vaso
muito estreito para poder contê-la, ocupou-a com violência e transbordou.
As formas ordinárias da linguagem foram destruídas; o pensamento
entrou em luta com a expressão; e além do primeiro sentido aparecem
sentidos novos e profundos que prolongaram indefinidamente a riqueza
de significado das palavras. Isto ocorreu com a capacidade de João se
expressar por escrito.
Além do mais, ninguém duvida que o contato de João com as
escolas de Éfeso e sua convivência habitual com os gregos tenham
polido aquele pescador. Nele nada há de impróprio, de inconveniente, de
rasteiro. Dir-se-ia que João não só recebeu o dom de tudo ver, mas
de exprimi-lo muito bem. Todavia, os hebraismos, as formas siríacas, as
locuções caldaicas, traem no idioma grego que João usou o hábito de
outra língua e de outro país. Reconhece-se o galileu no cidadão de Éfeso,
e as duas pátrias de João podem ser identificadas muito bem só por seu
estilo.
O conhecimento perfeito que ele tinha do judaísmo mostra a que
cultura ele pertencia por direito de nascença; mas a maneira um tanto
livre com a qual ele falou sobre os seus compatriotas prova que ele
rompera com a Sinagoga. O estilo sentencioso, entrecortado e ritmado da
frase procede claramente do elemento hebraico, ao passo que a fluidez
suprema da sua linguagem faz logo reconhecer a influência das novas
pessoas entre as quais ele terminou os seus dias. Quanto às repetições
que lhe são habituais, alguns estudiosos viram nisso um sinal da grande
velhice do escritor sagrado.
É desta forma que o Evangelho completo revela o autor e o autor
explica o Evangelho. O evangelho de João é o mais belo trabalho que a
terra possui e que jamais possuirá, mesmo entre aqueles nascidos da
inspiração de Deus.
Quanto mais uma palavra se assemelha a um pensamento, um
pensamento a uma alma, uma alma a Deus, mais belo torna-se tudo isso.
Ora, que beleza sem igual não devia brilhar num livro onde a palavra é a
imagem do pensamento e da alma do Filho de Deus?
O Evangelho de João termina pela confissão de sua impossibilidade
de tudo dizer e de atingir essa profundidade inesgotável de grandeza,
virtudes e graças que é Jesus Cristo:
Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez; e, se cada
uma das quais fosse escrita, cuido que nem ainda o mundo todo poderia
conter os livros que se escrevessem. Amém. (João 21.25)
João confessava-se perturbado pelo sentimento do inefável que é a
revelação de nossos limites, sentimento doloroso muitas vezes, mesmo
em presença das grandes coisas humanas — desespero inevitável do
homem diante da imensidão de Deus.
CAPÍTULO 15 - A TEOLOGIA DO EVANGELHO DE JOÃO

O Evangelho de João não é unicamente uma narrativa e uma


história; é a exposição de uma teologia inspirada. Primeiro narra-se a
geração eterna do Verbo, sua atuação no mundo e entre os espíritos, sua
encarnação realizada e perpetuada; depois, a explicação e a razão
destas maravilhas, o amor de Deus, um amor eterno, infinito, dando por si
só a chave de todos os mistérios: tal é o assunto e o fundo dessa
teologia, a mais admirável entre todas as teologias que o ser humano já
elaborou no mundo.
Assim como a Bíblia começa pelo Gênesis, que é a criação do
mundo, o Evangelho de João começa pelo Verbo, que é a início da
revelação profunda sobre o Filho de Deus. Moisés expôs os princípios da
sabedoria divina; João proclamou sua consumação.
Jesus Cristo nunca se servira desse nome de Verbo para designar-
se a si mesmo; João também nunca o põe em seus lábios divinos no
decorrer do Evangelho. É ele, João, e somente ele que, para adaptar-se à
linguagem de alguns de seus contemporâneos, usa esta palavra no intuito
de fazê-los compreender, e melhor do que o faziam eles, de que forma
Deus se exprimira ao mundo.
Tanto os filósofos em seus diálogos como os gnósticos em suas
escolas, assim como os rabinos judeus no seio de suas sinagogas,
falavam do Verbo como expressão de Deus manifestada aos homens.
Mas enquanto uns tinham uma idéia errônea, outros possuíam apenas
uma noção incompleta. Portanto, se quisermos saber com quem o
evangelista aprendeu o que ele escreveu sobre o Verbo, onde leu sobre
este grande nome, ele próprio no-lo revela quando diz no livro de Apoca-
lipse:
E vi o céu aberto, e eis um cavalo branco. O que estava
assentado sobre ele chama-se Fiel e Verdadeiro e julga e
peleja com justiça. E os seus olhos eram como chama de
fogo; e sobre a sua cabeça havia muitos diademas; e tinha um
nome escrito que ninguém sabia, senão ele mesmo. E estava
vestido de uma veste salpicada de sangue, e o nome pelo
qual se chama é a Palavra de Deus. (Apocalipse 19.11-13)
O começo do evangelho de João arrebatava de entusiasmo o
espírito de Agostinho. Ele comparava o Quarto Evangelho a uma grande
montanha, alta e serena, de onde a divindade se deixava contemplar. E
que montanha tão grandiosa, e quão alta foi a elevação deste gênio!
"Vejam vocês: João ultrapassou todas as alturas terrestres, todos os
espaços etéreos, em seguida os próprios coros celestes e as legiões de
anjos. Por que lhe falais do que o céu e a terra contêm? São tão-somente
criaturas. Que fazem aqui os próprios seres espirituais? São unicamente
obra de Deus, não são o próprio Deus. Mas quereis atingir a Divindade?
Subi às alturas onde habita o evangelista João, entrai em seu Evangelho
e ele nos revelará as sublimidades de Deus".
Diante do seu rebanho em Antioquia, assim pregava Crisóstomo:
"Vocês desejam penetrar o segredo dos palácios, conhecer os atos do
imperador, porém venham aprender as maravilhas do Deus de vocês. É o
nosso melhor amigo que nos ensinará. Ele traz consigo a Palavra de
Deus. Se um anjo nos viesse comunicar a linguagem dos céus, com que
ardor correríamos para ouvi-lo! Ora, aquele que nos fala nas páginas do
evangelho de João veio do próprio Céu. É Jesus. Nele reside o Espírito
diante do qual o futuro é como o presente, e que conhece todas as obras
de Deus tão bem como conhece seu próprio Espírito. Jesus revelou os
seus segredos a João. Não elogiem mais os pensamentos de Platão e
Pitágoras. Eles procuram, João viu. Desde o princípio de sua narrativa ele
apodera-se de todo o nosso ser, eleva-o acima da terra, do mar e do céu,
leva-o para uma região mais elevada do que os anjos, além de toda
criatura... Que perspectiva então se abriu diante de nossos olhos! O
horizonte recuou sem fim, os limites se apagaram! Foi o infinito que
apareceu a João, o amigo de Deus. E foi quando ele disse: No princípio
era o Verbo.
O prólogo do evangelho de João, que mostra o itinerário do Verbo
partindo do seio eterno do Pai, descendo de esfera em esfera até as
humilhações da encarnação, é de uma magnificência sobre-humana.
Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que
foi feito se fez. (João 1.3)

O Verbo antes da Encarnação

Sua marca está por toda a parte: o Criador assinou a sua obra, nela
imprimindo a sua imagem e grandeza. Qual é este testemunho e esta
amostra que o Verbo nos deu de si senão a beleza indescritível do mundo
que expôs aos nossos olhos? O céu, a terra e o mar são as mais belas
palavras de um livro no qual está escrita a Palavra de Deus. "O céu é um
decálogo onde Deus se revelou, disse Clemente de Alexandria, e o
mundo, repetindo a bondade, a sabedoria e a beleza de seu autor, vai
cantando por toda a parte as maravilhas do Verbo, no tom harmonioso
que o sábio Pitágoras pensava ouvir nos céus.”
João afirmou também que o Verbo não é somente o arquiteto do
mundo físico e da ordem material; ele é Esplendor de Deus, e penetra o
mundo dos espíritos para lhes ser a luz, a inspiração e a vida:
E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a
compreenderam. Ali estava a luz verdadeira, que alumia a
todo o homem que vem ao mundo, estava no mundo, e o
mundo foi feito por ele e o mundo não o conheceu. (João
1.5,9-10)
No terreno natural, o Verbo é a luz da razão. É aquela palavra
profunda que se faz ouvir sem cessar no mais íntimo da consciência. Esta
palavra falou, esta luz brilhou antes mesmo de Jesus Cristo vir habitar
entre nós; esclareceu os sábios antes de iluminar os santos; e este sol
das almas teve uma longa aurora, antes do belo dia em que brilhou sobre
as nossas cabeças.
Os homens ouviram. O Verbo de Deus retumbou nas alturas do
Orebe e do Sinai, ecoou nas mensagens dos profetas, cantou nas harpas
santas, e as nações guardaram-lhe os ecos. Assim, desde antes da
encarnação de Cristo o Verbo estava no mundo.
Porém o Verbo estava no mundo, mas o mundo não o conheceu.
Eis, em resumo, toda a história do homem em seus relacionamentos com
Deus durante quatro mil anos. Deus nos deu primeiro sua imagem na
obra de suas mãos. E depois nos deu sua Palavra. Porém nem o belo,
nem o verdadeiro, nem a voz da razão nem a da lei tinham sido
compreendidos. Foi então que Deus resolveu nos dar a sua presença, a
sua revelação pessoal, o seu Filho Jesus Cristo.
Foi quando ocorreu a terceira grande ação do Verbo, sua
Encarnação. Sabe-se que a razão humana a declarava impossível. Na
época do nascimento de Jesus Cristo todas as escolas eruditas dos
judeus e dos pagãos estavam de acordo em afirmar a impossibilidade de
qualquer união de Deus, o ser incomunicável, com sua criatura, o homem.
Por outro lado, o coração pulsava, clamava, implorava um Deus
semelhante a nós, e que vivesse entre nós. Todo o antigo politeísmo, toda
a idolatria eram apenas aspirações cegas por essa aproximação. O
homem tinha sede de Deus.
Quem nos daria ao mesmo tempo um Deus inacessível e um Deus
acessível; um Deus acima de todos os mundos e um Deus unido ao
mundo; um Deus que não se ousava nomear e um Deus que se podia
amar; um Deus diferente do homem e um Deus semelhante ao homem?
Quem nos daria? Jesus Cristo!
João nos descreveu o vôo sublime do Verbo de Deus até Belém.
Toda a magnificência termina neste mistério em que Deus desce até o
homem para elevá-lo até ele:
E o verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua
glória, como a glória do Unigênito do Pai, cheio de graça e de
verdade. (João 1.14)
Eis a Encarnação, eis o que Orígenes chamava de "o casamento do
Verbo com a humanidade". Assim, o Verbo ou a palavra invisível de Deus
se exprimiu para nós em caracteres tangíveis, e o Ser incorpóreo
revestiu-se de um corpo pelo qual, tornando-se sensível, pôde unir-se a
nós.
A humanidade de Jesus está tão bem demonstrada quanto a sua
divindade no Evangelho de João; e o homem não foi colocado ali sob
uma luz menos brilhante do que a de Deus.

A dupla natureza de Jesus

Aquele que o cansaço obriga a sentar-se á beira do poço de Jacó e


pede água, é o homem; mas aquele que, penetrando a consciência da
mulher samaritana, revela-lhe os segredos de sua vida e a sede do seu
coração, é o Verbo de Deus. Aquele que se comove de compaixão e
misericórdia diante da mulher adúltera, é o homem; mas aquele que a
vinga do desprezo e a absolve do crime é o Senhor, é Deus. Aquele que
se perturba e chora diante do sepulcro de Lázaro, é o meigo amigo Jesus,
é o homem; mas aquele que invoca o nome de seu Pai, e ordena à morte
que ela deixe a sua presa, é Deus. Aquele a quem a traição entristece
mortalmente no Cenáculo, é o homem; mas aquele que se entrega decla-
rando que seu suplício salvará a humanidade, é o Senhor Todo-poderoso,
é Deus. Aquele que se queixa na cruz de ter sido abandonado pelo céu
assim como pela terra é o mortal, é o homem; mas aquele que com o
olhar tranqüilo, abrangendo o passado e o futuro, declara que tudo está
consumado, é verdadeiramente o Filho de Deus. Aquele que morre,
pagando assim o terrível preço da nossa redenção, é o homem; mas
aquele que prediz a sua ressurreição e ressuscita no dia marcado, é
Deus. Aquele que, vencedor da morte, come com seus discípulos e faz-se
tocar por Eles, dizendo que é de carne e osso, é o homem; mas aquele
diante de quem Tomé cai de joelhos, e que diante de seus discípulos
sobe aos céus, é Deus.
Eis aqui o vosso rei, disse Pilatos mostrando-o ao povo. Senhor
meu e Deus meu, disse Tome vencido e ajoelhado diante dele. Estas
duas frases do fim da narrativa de João correspondem à frase do
princípio: E o verbo se fez carne!
João acrescenta que não somente o Verbo se fez carne como nós,
mas que ele está conosco, e que habita no meio de nós. Mas João ainda
diz mais. Não é conosco, mas em nós que o Verbo habita. Até então o
mundo só tinha de Deus e da Verdade uma centelha fugitiva, mas Jesus
nos trouxe a revelação plena do Pai e toda a Verdade. Os homens
tiveram então a oportunidade de se saciarem na plenitude da graça. O
Verbo feito carne habitou literalmente entre nós, segundo a expressão do
apóstolo João.

O mistério da Encarnação

Que razões João apresentou para o mistério da Encarnação? Que


motivos incompreensíveis fizeram com que o próprio Deus se lançasse
nessas humilhações da eternidade ao tempo, do céu à terra, do seu
Trono ao presépio, de sua Glória à cruz? Como pôde o Espírito fazer
assim aliança com a matéria, e o Ser bem-aventurado descer para o meio
de nossas enfermidades? Isso tudo era um escândalo para os judeus e
uma loucura aos olhos dos gregos, que declaravam uma incompatibilida-
de irremediável entre estes dois extremos.
A resposta está em uma palavra: O amor. Um amor imenso, infinito,
de Deus para com sua criatura, eis o que João apresenta como a única,
porém grandiosa explicação dessa atitude de Deus para conosco, Jo
3.16.
Deus é amor, eis a verdade primordial expressada pelo apóstolo
João. O amor de Deus é um amor Todo-Poderoso, podendo tudo o que
quer, querendo tudo o que pode. Dentro desses dois princípios
estabelecidos, todos os milagres de bondade são apenas a conseqüência
e a simples expressão desse amor.
Era de se esperar que Deus, amando infinitamente, desse provas
proporcionais à profundidade de seu amor e à infinidade de seu poder. E
o que é próprio da onipotência de um Deus vai muito além da capacidade
de nossa fraca inteligência.
O que é o amor senão o dom de si? Deus ama infinitamente, pois
ele é o infinito; eis a explicação que João apresenta como o último limite
do amor. E esse amor levou Jesus à obediência até a morte de cruz; ao
derramamento de seu sangue até a última gota. Deus não quer que se
possa dizer que alguém ama ainda mais do que ele.
Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a sua
vida pelos seus amigos. (João 15.13)
O Evangelho é a manifestação do amor de Deus. O coração de
Jesus Cristo, o coração sobre o qual o evangelista repousou, disse-lhe
tudo. Foi ali, foi daquela altura que a águia mergulhou o olhar até o fundo
dos mistérios sagrados.
Esta bela argumentação tinha além de tudo o poder de atingir as
heresias até às raízes. Pois o que negava Cerinto, e por que o negava
ele? E o que é que todas as heresias, todas as facções recusavam a
compreender? Não era o poder de Deus nem a sua sabedoria. Era o seu
amor, o mistério de sua bondade. O homem, amado por Deus, teima em
não querer acreditar naquele amor. Cerinto, por exemplo, não queria
admitir que o Deus infinito fosse o Deus criador.
Seu egoísmo não podia aceitar que o infinitamente grande pudesse
amar bastante o infinitamente pequeno, amar os seres humanos a ponto
de criá-los com suas mãos, lançando sobre Eles um reflexo de sua
própria beleza e divindade. Repugnava-lhe admitir que o Cristo, o Filho de
Deus, fosse ao mesmo tempo Jesus, o filho de Maria. Naquele coração
pequeno não podia entrar a idéia que Deus pudesse amar a ponto de se
tornar semelhante à criatura amada.
Enfim, aquele homem achava que a divindade havia se retirado de
Jesus na hora da crucificação; a paixão era um escândalo para aquele
judeu, uma loucura para a mente filosófica de Cerinto. Ele não
compreendia que o amor de Jesus pudesse chegar a tal extremo de dar a
sua vida por nós. Assim, o orgulho daquele sofista naufragou diante do
mistério do amor de Deus.
Eis porque João, olhando de cima todas aquelas subtilezas
daqueles homens sem coração, e indo diretamente ao centro da verdade,
definiu Deus como sendo amor, e disse que o princípio de toda a fé é crer
nele:
Jesus é o Coração eterno inclinando-se para nosso coração e
comprazendo-se em nos alcançar e nos envolver com o seu imenso
amor. Assim concebido, o Evangelho é invencível porque se apóia sobre
o coração, e esse é imortal.

CAPÍTULO 16 - SUA PRIMEIRA EPÍSTOLA

Após escrever o seu Evangelho, João percebeu que era necessário


torná-lo conhecido nas Igrejas cristãs; mais tarde João escreveu no
Apocalipse:
E vi outro anjo pelo meio do céu, e tinha o evangelho eterno,
para o proclamar aos que habitam sobre a terra, e a toda
nação, e tribo, e língua, e povo, dizendo com grande voz:
Temei a Deus e dai-lhe glória, porque é vinda a hora do seu
juízo. E adorai aquele que fez o céu, e a terra, e o mar, e as
fontes das águas. (Apocalipse 14.6-7)
Esta divulgação universal devia ser em breve a do Evangelho de
João.
O apóstolo começou por endereçá-la aos fiéis da Ásia. Seu
Evangelho dizia: No princípio era o Verbo... Sua 1ª. epístola faz alusão a
isso, começando por estas palavras idênticas: O que foi desde o princípio,
o Verbo da vida, vo-lo anunciamos.
Dirigida coletivamente a toda a cristandade, a Primeira Epístola não
traz inscrição alguma nem saudação particular a esta ou aquela igreja.
Aquele que a escreve nem se identifica. A data nem por isso deixa de
estar implicitamente indicada em algumas linhas do segundo capítulo. Por
aí se vê que naquela época, os primeiros evangelhos estavam nas mãos
de todos: a fé estava sendo anunciada no universo inteiro, como o afirma
o apóstolo Paulo. João escreveu seu Evangelho só para confirmá-la:
Eu vos escrevi, pais, porque já conhecestes aquele que é
desde o princípio. Eu vos escrevi, jovens, porque sois fortes, e
a palavra de Deus está em vós, e já vencestes o maligno. (1
João 2.14)
E vós tendes a unção do Santo, dizia João um pouco mais
adiante, e sabeis tudo. (1 João 1.2-20)
Assim como no Evangelho, João apresenta-se em sua Primeira
Epístola como a testemunha dos fatos, cuja história ele conta, e em
termos enérgicos o declara:
O que era desde o princípio, o que vimos com os nossos
olhos, o que temos contemplado, e as nossas mãos tocaram
da palavra da vida (porque a vida foi manifestada, e nós a
vimos, e testificamos dela, e vos anunciamos a vida eterna,
que estava com o Pai e nos foi manifestada), o que vimos e
ouvimos, isso vos anunciamos, para que também tenhais
comunhão conosco; e a nossa comunhão é com o pai e com o
seu Filho Jesus Cristo. (1 João 1.1-3)
Ele empregou a mesma linguagem, o mesmo estilo, os mesmos
pensamentos, as mesmas expressões tanto no evangelho quanto na
carta. O pórtico e o templo são da mesma arquitetura, porque são da
mesma mão e tiveram a mesma fonte de inspiração.
Só nos resta saber em que circunstâncias e contra que negações o
livro foi escrito. João o revela, indicando o caráter apologético e
demonstrativo de sua Primeira Epístola.
Havia os que negavam o Filho e sua divindade. Entre eles havia os
que não consideravam as duas naturezas no Homem-Deus. Uns viam
nele só a sua divindade, porém sem a humanidade, conforme faziam os
docetos; outros consideravam só a humanidade sem a divindade,
conforme faziam os gnósticos. Além do mais, quem eram os falsos
profetas e os espíritos nos quais não se devia crer, senão os charlatães
como Apolônio ou Simão o Mágico? João os denuncia claramente; só
faltou declarar-lhes os nomes.
Em sua Primeira Epístola, João deixa bem claro que para
compreender e seguir a verdade, é necessário ser puro e bom. O que
impedia os fariseus de alcançarem a fé, era o fato de suas obras serem
más; o pecado projetava sombra na inteligência deles. O que os impedia
de ouvir o Mestre dos mestres era o fato de eles procurarem a glória dos
homens de preferência à glória de Deus, e o orgulho lhes ter nublado o
espírito. Para que o Evangelho penetre no mais íntimo do coração do ho-
mem, é necessário que encontre um solo desembaraçado de espinhos.
Por isso João escreveu:
Eu vos escrevi, jovens, porque sois fortes, e a palavra de
Deus está em vós, e já vencestes o maligno. (1 João 2.14)
Tudo deve ser pureza com os discípulos do Cordeiro.
Para crer é necessário amar. Aquele que não ama não está na luz,
não conhece a Deus, declara terminantemente o Discípulo João em sua
Primeira Epístola. Ora, o que é o Evangelho senão o espelho ardente de
um amor que só pode ser compreendido pelo amor? "Apresentai-me a um
coração amoroso e ele sentirá o que digo", escrevia Agostinho.
E esta uma das condições da fé. Amar a Deus primeiramente e
aspirar por ele como pela beleza, pelo amor e pela grandeza supremas.
Em seguida amar os homens, ver neles os filhos desse Deus que reside
no céu, para neles amar a Deus. Este é o caminho mais direito e o mais
curto para se chegar à verdade. Entra-se na fé com a alma toda inteira; e
foi com razão que alguém disse que "quem ama já creu em mais da
metade".
Meus filhinhos, escrevia João, estas coisas vos escrevo para que
não pequeis. Não era unicamente uma questão de doutrina que ele
estava tratando em sua epístola; o que ele estava ensinando é que um
dos frutos do Evangelho é a santidade. Não é bastante compreender e
crer na verdade, é necessário principalmente "praticá-la", sob pena de
cair na mentira e na hipocrisia:
E nisto sabemos que o conhecemos: se guardarmos o seu
mandamento. Aquele que diz: Eu conheço-o e não guarda os
seus mandamentos é mentiroso, e nele não está a verdade.
Mas qualquer que guarda a sua palavra, o amor de Deus está
nele verdadeiramente aperfeiçoado; nisto conhecemos que
estamos nele. (João 2.3-6)
Toda a Primeira Epístola de João mantém-se nessas regiões puras
de santidade divina e humana; divina na fonte, humana nos atos. E estes
filhos de Deus, estes cristãos nascidos de novo, estes filhos do
Evangelho têm por obrigação e princípio o de ser semelhantes a seu Pai,
sendo santos como ele é santo.
Porém essa santidade não é impecabilidade. A Primeira Epístola
explica que o Evangelho da justiça é também o da misericórdia. Foi para
destruir as obras do diabo que o Filho de Deus se manifestou. Jesus veio
a esta terra como o redentor dos homens, como a vítima da propiciação
imolada pelos nossos pecados; não somente pelos nossos, mas pelos do
mundo inteiro. O sangue de Jesus Cristo nos purifica de todo pecado. Se
um de nós pecar, temos junto do Pai um advogado, Jesus Cristo.
Se confessarmos os nossos pecados, ele [Deus] é fiel e justo
para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça.
(1 João 1.9)
CAPÍTULO 17 - JOÃO NA ILHA DE PATMOS

Quando João tornou-se velho não escapou da grande tristeza de


que são acometidos aqueles a quem Deus concede vida longa, que vêem
desaparecer ao seu redor todos os seus amados, e que ficam a sós no
mundo para deles dar o testemunho e perpetuar a lembrança. Paulo,
mártir em Roma, havia terminado ali a sua carreira começada há trinta
anos no caminho de Damasco. Pedro abraçara aquele grande
companheiro no caminho do suplício, e no mesmo dia teve a honra de,
por sua vez, subir à cruz de seu Mestre, no alto de uma colina de onde
abençoara a cidade e o universo. Foi igualmente nos braços de uma cruz
que André adormeceu o sono da morte de uma maneira digna do irmão
do príncipe dos apóstolos. Depois de Tiago o Maior, depois de Tiago o
Justo, Simão, o Zelote, ofereceu em Jerusalém o sacrifício de seu
sangue.
Tomé terminou sua carreira nas Índias, depois de ter levado mais
longe do que todos os outros a fé em Jesus que mais do que os outros
lhe custara alcançar. Mais perto de João, na Frígia, Felipe teve um
martírio glorioso. Assim, pouco a pouco haviam partido todos os irmãos, e
o Senhor reconstituíra quase inteiramente no céu aquela família do
Cenáculo.
Só restava um. Vendo a existência de João prolongar-se desse
modo, os discípulos passaram a creditar que ele não morreria, e
espalhou-se essa notícia entre eles, como o próprio João o declarou. Mas
a vida para ele se tornara cheia de amarguras. Parecia que tinha vivido
tanto tempo só para ver um imenso desastre mais inconsolável do que
todos os outros: Jerusalém já não existia.
Depois de desolações que encheram de pasmo a história,
Vespasiano e Tito tinham armado suas tendas na própria colina onde o
discípulo vira um dia o Mestre chorar sobre a cidade culpada, que matava
os profetas. A cidade estava em ruínas, o Templo era um montão de
cinzas, e aqueles que puderam fugiram naqueles dias de muitas mortes e
incêndio, dispersando-se pelo mundo. João foi informado de que, dos
lugares onde vivera com Jesus e os outros apóstolos, nada mais existia.
Foi um golpe profundo para o seu coração. Mesmo que
consideremos como nossa pátria o céu, no entanto o amor ao lugar onde
vivemos na terra é um sentimento que fica enraizado em nosso coração
até nosso último dia de vida. João lembrou-se das lágrimas que o Mestre
havia derramado diante de Jerusalém, ao profetizar sua destruição,
conforme registrou Lucas (19.41-44).
Houve um momento em que João pensou que havia chegado a sua
hora. Domiciano reinava. Este imperador, chamado por Tertuliano de "a
outra metade de Nero", era um homem medroso e feroz. Sua crueldade
astuciosa, conforme a classifica o historiador Suetônio, alarmou-se com
os avanços "daquela seita invasora", a religião cristã, que ameaçava
predominar em todas as províncias do império romano. Com efeito, no
seu reinado a fé transbordou até Roma.
Não era mais sobre os degraus do trono que o cristianismo se
assentava; ele agora ameaça subir até para cima do trono. A linhagem
Flávia, que dera um basta às guerras civis, e proporcionara doze anos de
paz ao mundo antes de ter o desgosto de lhe dar Domiciano, continha
cristãos em seu seio. Tito Flávio Clemente, primo irmão do Imperador, era
cristão; e quando casou-se com sua prima Flávia Domitilla, encontrou-a já
cristã ou converteu-a. Uma sobrinha de Domiciano, chamada também
Flávia Domitilla, era cristã.
Esses cristãos de família nobre estiveram algum tempo nas boas
graças do imperador. Apesar da humildade cristã de Tito Flávio Clemente
ser vista pelos pagãos como moleza, Domiciano resolveu torná-lo
cônsul ordinário e cônsul com o imperador, o que era honra dobrada.
Enfim Domiciano também adotou os dois filhos menores de Clemente,
nomeou-os seus herdeiros e deu-lhes o nome de Vespasiano e
Domiciano.
Quando Domiciano morresse, aqueles dois filhos de Clemente, que
também eram discípulos do Evangelho, subiriam ao trono, de que eram
herdeiros, e, 60 anos apenas depois da morte ignominiosa daquele
Chrestos — Cristo, conforme o chamara Suetônio, ainda estando vivo seu
último apóstolo e amigo, seu culto chegaria sem maiores atropelos,
regularmente, a dominar a capital do império do mundo e talvez João
fosse chamado a vir somente pregar e celebrar cultos a Jesus Cristo na
presença dos Césares! O inferno deve ter tremido diante de tal perigo.
Domiciano o descobriu e imediatamente fez o sangue correr. Sangue de
cristão. Sangue de mártires!
O cônsul Flávio Clemente, seu parente, teve a cabeça cortada.
Flávia Domitilla, sobrinha do imperador, foi exilada para longe. Os dois
príncipes desapareceram para não morrer. No dizer de Suetônio, todos os
que eram ou pareciam ser cristãos, passaram a sofrer uma perseguição
encarniçada.
Esta força crescente de Cristo tornara-se para Domiciano um
motivo de terror. Segundo uma narrativa do historiador Hegesippo,
Domiciano tinha feito comparecer à sua presença dois pobres cristãos da
Judéia, netos do apóstolo Judas, e últimos descendentes da família de
Jesus. Interrogados pelo imperador se eram descendentes de Davi,
responderam que sim. - E que bens vocês possuem? - Temos, os dois
juntos, um terreno de 100 metros, de onde retiramos o suficiente para
viver e pagar o imposto. Após dizerem isto, aqueles descendentes de
Davi mostraram as mãos calejadas pelo trabalho. Domiciano interrogou-
os sobre o reinado de Cristo, o divino parente deles. Responderam que
seu reinado não era deste mundo, e que Jesus só o inauguraria no dia
em que voltasse sobre a terra para julgar os vivos e os mortos. Domiciano
riu, fez pouco caso deles e os despediu concluindo que não passavam de
dois pobres coitados.
Porém, logo Domiciano descobriu que a "seita dos cristãos" tinha
outros líderes. Descobriu também que o último e o mais querido discípulo
de Jesus ainda existia em Éfeso. Imediatamente Domiciano deu ordem
para que João comparecesse à sua presença em Roma.

João é chamado à presença do imperador

Após ser interrogado por Domiciano e não negar a Cristo, dizem


que João foi condenado primeiro a beber veneno em uma taça.
Em seguida ele foi condenado a ser mergulhado em uma caldeira
fervendo. Esse gênero de suplício não era desconhecido, e a história dos
mártires nos mostra vários cristãos sendo mergulhados em caldeiras. No
centro de todas as termas, mesmo nos grandes banheiros particulares,
havia uma grande bacia de formato circular chamada caldarium, rodeada
de grades, dentro da qual estava colocado um reservatório de água
incessantemente aquecida por chamas subterrâneas que lhe abrasavam
os lados. "A temperatura dentro daquele reservatório era tão grande, diz
Sêneca em uma de suas cartas, que poder-se-ia condenar a ser
queimado vivo algum grande criminoso." Naquele dia, o grande criminoso
era João!
A chegada de João em Roma no ano 92, nos confins do século
apostólico de que ele era a última e augusta testemunha, é certamente
um dos fatos mais importantes da história da Igreja. Era o fim daquela
grandeza suprema da Igreja em sua primeira fase, a fase apostólica, já
consolidada vinte e oito anos antes pelo sangue glorioso de Pedro e
Paulo, que haviam sido executados naquela cidade. João, que havia
partilhado com eles o apostolado, achava que ia agora partilhar o túmulo.
Naquela época principalmente, Roma estava cheia de judeus.
Introduzida na cidade há quase dois séculos, a colônia judaica tinha-se
espalhado em todas as regiões urbanas onde se dividia em várias tribos,
diferindo entre si pelas opiniões e costumes.
Mas a opressão sob o jugo de Domiciano havia tornado todos os
judeus iguais. Para qualquer lado que João olhasse, via imediatamente a
imagem da escravidão de sua pátria. No centro da cidade feria-lhe a vista
o arco do triunfo de Tito, erguido em memória da destruição
de Jerusalém, debaixo do qual ainda hoje os judeus patriotas recusam-se
passar. Bem perto, via-se o vasto anfiteatro dos Flávios, onde seus
antigos irmãos judeus trabalhavam acorrentados, e onde seus irmãos
cristãos deviam em breve descer para testemunhar sua fidelidade a Cristo
e morrer.
No entanto, aqueles mesmos homens que em breve seriam levados
ao martírio eram o seu consolo diante da ruína irremediável da pátria,
mostrando-lhe a jovem e grande pátria cristã que estava se erguendo
mais próspera do que nunca. E seria o próprio João que lhes acenderia a
esperança quanto à sobrevivência do Evangelho de Jesus Cristo através
dele, João, a última e maior testemunha do Salvador. E por aí é fácil
imaginar com que ardor o abraçaram aqueles herdeiros do Evangelho e
futuros cidadãos do céu! À frente daquele rebanho estava o pastor
Clemente. Ele havia seguido Paulo; Pedro deixara-o encarregado de seu
rebanho; e ninguém mais apto do que aquele antigo filósofo para
combater as seitas da filosofia que ele mesmo em pessoa praticara.
Clemente havia sido solidamente instruído no Evangelho, no tempo
em que fora discípulo dos apóstolos.
Em torno dele estavam as melhores e maiores almas daquele lugar
e daquele tempo. Com ele estava Hermas, que naquele mesmo ano
acabara de redigir o seu livro O Pastor, do qual uma cópia havia sido
enviada a Clemente, e onde estava escrito: "Eis que está próxima uma
grande tribulação. Felizes daqueles que perseverarem e que não
negarem sua fé! O Senhor jurou por seu Filho: Aquele que negar seu
Filho será impedido para sempre de usufruir da vida eterna!”
Portanto, o exército dos santos estava em armas, mutilado mais
invencível, quando seu líder mais antigo apareceu, o último veterano do
grupo apostólico, que vinha encorajá-lo a novos combates. Eram os
combates da fé, da verdade e da liberdade em Cristo contra a iniqüidade.
"Aqueles cristãos, conforme observou um historiador antigo, velhos,
meninos, mulheres e moças, que iam ser levados para os leões, eram as
únicas criaturas que resistiam a uma tirania diante da qual tudo se curva-
va. Não conspiravam; deixavam-se ferir pelos donos do mundo, pela mão
dos carrascos e dos soldados".
Obedeciam às leis tanto quanto lhes permitia a consciência, mas no
dia em que lhes ordenavam negar a Cristo e queimar um grão de incenso
diante da imagem do imperador, então, sem ódio, sem violência, fosse o
imperador bom ou mau, recusavam-se, e o amor e a fidelidade a Jesus
Cristo continuavam preservados.
Foi sem dúvida à divindade do imperador que ordenaram a João
que ele sacrificasse. Naquele tempo, Domiciano acabava de deificar a si
mesmo; tinha mandado colocar sua estátua nos santuários mais
veneráveis;e ordenado que seus ministros o declarassem Deus; e mi-
lhares de animais passaram a ser imolados naqueles altares. Todo e
qualquer escrito público, assim como qualquer discurso devia ter como
cabeçalho as palavras: "Assim o ordena o nosso Senhor e Deus
Domiciano". Diante daquele paralelo sacrílego entre o diabólico
Domiciano e o divino Jesus, fácil é imaginar qual foi a resposta de João.
O apóstolo negou-se a ajoelhar-se diante da estátua e a queimar-lhe
incenso; foi condenado, e preparou-se, com o coração radiante, para uma
morte que há muito ele esperava: morrer por não negar a fé no seu
amado e grandioso Jesus.
O lugar tradicional da execução foi a Porta Latina, ou mais
exatamente o espaço então livre mas que seria posteriormente ocupado
pela porta que Marco Aurélio mandara construir, na extremidade oriental
de Roma, na via Appia, e um pouco abaixo do monumento dos Cipiões.
Perto dali Domiciano tinha sua vila imperial, onde mandara construir sua
morada predileta, pedindo àquele belíssimo lugar o repouso da alma que
não é concedido aos maus.
Historiadores dizem que o imperador em pessoa assistiu ao
suplício. A morte de um homem era um espetáculo de que raramente
Domiciano se privava, conta Suetônio. Além do mais ele, que achava
prazer nas habilidosas prestidigitações de Apolônio de Tiana, talvez
esperasse ver aquele sacerdote vindo do Oriente realizar algum milagre
que divertisse por alguns momentos sua vida de tirano cheia de tédio.
Conta-se que o juiz começou por cortar os cabelos compridos que
João usava à moda de Nazaré. A lei romana ordenava também que os
condenados à morte fossem primeiramente chicoteados pelos carrascos.
Só depois dessa flagelação é que eram executados. João havia sido
condenado a ser mergulhado em um barril com azeite fervendo, ou
simplesmente em água fervendo, conforme explica Gregório de Nisa.
Não teria sido a este banho que o divino Mestre se referira quando
perguntara a João se ele poderia participar do batismo de suas dores?
(Mateus 20.22)
Porém, para espanto dos ímpios e júbilo dos cristãos, João não
morreu. Segundo a descrição de Clemente, "a caldeira ardente e
fumegante tornou-se subitamente em suave orvalho." Todas as ordens do
pretor, toda a cólera dos carrascos foi incapaz de fazer acender de novo a
fornalha; e, como uma águia, João saiu do seio das chamas remoçado e
renovado.
Isto ocorreu no ano 92, no décimo primeiro ano do reinado de
Domiciano.
Se para ganhar o céu só bastasse um dia, uma hora decisiva e um
único esforço, nem que fosse um esforço supremo, sobre-humano, todos
os santos responderiam que seria comprar a felicidade por um preço
muito barato. Porém, assim como está determinado para alguns sofrer
com paciência e na obscuridade; carregar sem murmúrio o peso dos
muitos dias e anos comuns e iguais; beber o cálice, não de uma só vez,
mas lentamente, gota a gota, com todo o seu amargor; e, quando se
sentir consumido pelo ardor do combate, permanecer fiel no posto, isto
também é ser provado.
João foi condenado a viver. Mas não ficou em Roma. Domiciano
não suportaria saber que bem perto dele estava alguém que o superava
espiritual e moralmente. Além do mais, todo réu poupado de morte era
enviado para as fronteiras do império. João não voltou para Éfeso.
Levaram-no exilado para a ilha de Patmos. Vamos segui-lo até lá.

João é exilado em Patmos

Seria difícil encontrar no arquipélago um rochedo mais triste e


sombrio do que a ilha na qual João foi exilado. Quando se navegava do
antigo porto de Éfeso pelo mar Egeu, a 100 Km desse porto avistava-se,
como que saindo do seio das águas uma grande cadeia de rochedos
vulcânicos, partida ao meio e ligada por um istmo estreito. Era a ilha de
Patmos. Antes que o período que João passou exilado nela a tornasse
imortal, ela era totalmente ignorada pelos geógrafos, cartógrafos e
historiadores.
No entanto, havia ali uma civilização antiga, cujos vestígios podem
ser vistos ainda hoje. Atualmente Patmos pertence à Grécia. Tem vinte e
oito quilômetros quadrados e uma população de 2.720 habitantes (censo
de 1990). No centro, no lugar mais estreito da ilha, numa profunda
enseada protegida pelas montanhas, podem ser vistos ainda pedaços de
colunas do mais puro mármore branco, fincados na praia, servindo para
amarrar as canoas dos pescadores e as escunas dos mercadores vindos
de Anatólia. Era ali o porto chamado Phora ou Pthora, onde João
desembarcou. Perto do porto, nas primeiras encostas da montanha,
foram encontrados despojos antigos: fragmentos de louça de barro, telhas
velhas espalhadas nas pastagens, grandes blocos disformes de mármore,
esculturas quase apagadas, adaptadas às muralhas de um recinto onde
os pastores guardavam os rebanhos durante a noite.
Era isto que tinha restado das antigas construções de Patmos, onde
antigamente uma população de doze a treze mil homens fazia o comércio
com o Oriente, com a Grécia e as ilhas. No ponto mais alto da ilha, que os
gregos chamam até hoje de "a montanha do castelo", vê-se ainda belas
ruínas ciclópicas, e os primeiros alicerces de um antigo edifício que foi
talvez um templo, torres abatidas e inúmeros fragmentos enterrados hoje
sob espessas moitas. Ali tinha havido uma fortaleza, no centro da qual um
rochedo talhado em forma de base semicircular devia ter tido outrora no
seu cume um farol ou uma estátua. Junte-se ainda a estes monumentos
destruídos um templo de Diana, e naquele templo, uma estátua con-
sagrada a Hecate pela filha do médico Glauco, sacerdotisa de Artemis, e
faremos uma idéia do que encontrou em Patmos o exilado de Domiciano,
o apóstolo João.
Naquele tempo, as montanhas estavam cobertas de florestas, e
hoje ainda se pode ver o leito dos rios que, descendo, refrescavam os
vales. Hoje, uma torrente chamada Naro-Mili deixa correr, apenas no
verão, um ligeiro fio d'água sobre um leito pedregoso. Algumas finas
oliveiras, umas trinta amoreiras, outras tantas figueiras, raros limoeiros,
pinheiros, alfarrobeiras, alguns carvalhos, e uns vinte ciprestes,
substituem as antigas florestas.
Um antigo cristão que visitou a ilha 100 anos após a morte de João,
assim a descreveu: "Patmos estava diante de mim banhada pelos
primeiros raios da manhã. De vez em quando um tronco de oliveira
quebrava a monotonia de uma paisagem semeada de numerosos ro-
chedos... O mar estava calmo como um túmulo; e dir-se-ia que Patmos ali
repousava como um navio adormecido no meio do mar... João é o
pensamento que enche a ilha toda! Esta ilha pertence-lhe, é o seu
santuário. Até as pedras falam dele; ele está vivo em todos os corações.”
Para ali foi conduzido o apóstolo a fim de sofrer a pena do degredo.
Alguns antigos autores afirmam que João foi ali forçado a trabalhar nas
minas.
Porém, isso não o impediu de trabalhar pela salvação dos
habitantes da ilha. As narrativas tradicionais que falam do apostolado de
João na ilha do degredo mostram o apóstolo pregando, batizando,
estabelecendo por toda a parte em torno de si o império do amor e da
verdade. Todos os passos do homem de Deus deixaram marcas nas
montanhas da ilha.
Pelas antigas narrativas conservadas sobre Patmos, vemos que as
conversões multiplicaram-se, o rochedo viu florescer as mais belas
virtudes, e ainda hoje Patmos considera seu maior título de glória ter tido
a honra de conhecer o Evangelho dos próprios lábios de João. Deus,
porém, reservara ao apóstolo que acabava de sacrificar-lhe tudo, uma
consolação de ordem mais elevada. Desde o dia de sua eleição, João
ouvira o Mestre anunciar a Natanael o que ele registrou no primeiro
capítulo de seu Evangelho:
E disse-lhe: na verdade, na verdade vos digo que, daqui em
diante, vereis o céu aberto e os anjos de Deus subirem e
descerem sobre o Filho do Homem. (João 1.51)
Essa promessa ia ser cumprida na vida de João ali em Patmos. Os
mistérios do Apocalipse vão-se desenrolar diante de nossos olhos.

CAPÍTULO 18 - O APOCALIPSE DE JOÃO

Foi em Patmos que João teve a célebre visão do Apocalipse:


Ali estava a luz verdadeira, que alumia a todo o homem que
vem ao mundo, estava no mundo, e o mundo foi feito por ele e
o mundo não o conheceu. (João 1.9-10)
Era a voz solene das revelações divinas. Chegamos agora,
portanto, ao ponto mais maravilhoso de nossa história. Foi ali que João
viu o mistério do Reino dos céus.
A Revelação de Jesus Cristo. Tudo corresponde a esse belo título.
Apesar de esse livro divino ser tão profundo, lendo-o, têm-se uma
impressão tão suave e ao mesmo tempo tão grandiosa da majestade de
Deus, aparecem ali idéias tão elevadas do mistério de Jesus Cristo,
alcança-se um reconhecimento tão grande do que está reservado ao
povo que Jesus resgatou com seu sangue, há imagens tão grandiosas de
suas vitórias e de seu reinado eterno, que são capazes de arrebatar o céu
e a terra.
Todas as belezas da Escritura estão espalhadas naquele livro. Tudo
que se encontra de mais tocante, de mais vivo, de mais majestoso na lei
e nos profetas, recebem nas páginas desse livro um novo brilho, e
desfilam diante de nossos olhos para nos encher com as graças e
consolações de todos os séculos... Se todos os homens inspirados por
Deus tivessem reunido e trazido tudo o que têm de mais rico, de maior,
não poderiam ter composto um quadro mais belo em que podemos
imaginar a glória de Jesus Cristo como esse de Apocalipse; e podemos
dizer que, para escrever este livro admirável, João recebeu a inspiração
de todos os profetas.
Em suas páginas, temos a ventura de ouvir e ver agir Jesus Cristo
ressuscitado. O Apocalipse é o Evangelho de Jesus Cristo ressuscitado, e
mostra Jesus exercendo a onipotência que seu Pai lhe deu no céu e
sobre a terra.
A alegria de ver e ouvir a seu Mestre glorioso foi para S. João o
gozo antecipado do que ele ia alcançar no céu. Havia mais de quarenta
anos que vivia unicamente por ele e para ele, mas vivia longe dele. O
Senhor havia dito: "Eu quero que ele fique até que eu venha". (João
21.22). João havia ficado, João esperava sempre, mas o amigo não
chegava. Que suplício! Aquele que mais amava o Mestre estava
esperando mais do que os outros o dia em que teria a ventura de ver o
Senhor face a face, tal qual ele é em sua Glória.
Mas Jesus o consolou. Paulo já tivera a ventura de ver o Mestre
reinando gloriosamente no terceiro céu. Agora aquele céu abria-se para
João. E ali ele reconheceu Jesus! Era o Cristo! Que glória! Que alegria
poder contemplá-lo. Não era mais o supliciado, era o Príncipe, o Rei da
Glória. A descrição que João faz do Senhor Jesus é inigualável:
E virei-me para ver quem falava comigo. E, virando-me, vi
sete castiçais de ouro; e, no meio dos sete castiçais, um
semelhante ao Filho do Homem vestido até aos pés de uma
veste comprida e cingido pelo peito com um cinto de ouro. E a
sua cabeça e cabelos eram brancos como lã branca, como a
neve, e os olhos, como chama de fogo; e os seus pés,
semelhantes a latão reluzentes, como se tivesse sido refinado
numa fornalha; e a sua voz, como a voz de muitas águas. E
ele tinha na sua destra sete estrelas; e da sua boca saía uma
aguda espada de dois fios; e o seu rosto era como o sol,
quando na sua força resplandece. E eu, quando o vi, caí aos
seus pés como morto; e ele pôs sobre mim a sua destra,
dizendo-me: Não temas; eu sou o Primeiro e o Ultimo e o que
vive; fui morto, mas eis aqui estou vivo para todo o sempre.
Amém! E tenho as chaves da morte e do inferno. (Apocalipse
1.12-18)
A face de Jesus cintilava como o brilho do sol do meio dia; beleza
sempre antiga e sempre nova, alfa e ômega, princípio e fim. Só a
eternidade será capaz de nos dar uma idéia da alegria que foi para João
poder ver outra vez o rosto do Senhor amado, o único digno de ser
amado. Aquele que João vira morrer numa cruz mostrava-se agora
triunfante em seu Reino dos céus:
O Apocalipse é ainda, em muitos lugares, um livro fechado com
sete selos; contém tantos mistérios quantas palavras, e por muito tempo
ainda estes mistérios serão motivo de discussão entre os doutores e os
teólogos. João teve a visão do Apocalipse no momento em que a estrela
de Roma parecia lançar o seu maior brilho. Nenhum olhar mortal podia
avistar Alarico e seus bárbaros, que futuramente atacariam Roma; João
os vê.
O profeta deixou longe, atrás de si, os dois maiores historiadores
romanos, dos quais um deles já morrera e o outro se elevava à uma
reputação sem igual! Tito Lívio contara o passado de sua pátria
celebrando-lhe as glórias; Tácito pintava o século presente desvendando-
lhe os vícios. Maior do que ambos, João, o exilado de Patmos, era o
historiador do futuro; e de seu rochedo solitário, lançando contra a Roma
de Domiciano sentenças incontestáveis, ele anunciava o fim da "cidade
eterna".
Aquela moderna Babilônia, aquela cidade que erguia suas sete
colunas ilustres, como sete cabeças soberbas, aquela mãe cheia de
impurezas e de luxúria, revestida de púrpura como convém às rainhas,
trazendo escrito na fronte um nome misterioso, rica pelo ouro do mundo,
coberta de pedrarias, segurando a taça da orgia, embriagada com o
sangue dos mártires e dos santos, enfim, a grande cidade que possuía o
império dos reis da terra, não havia dúvida que era mesmo Roma; é a
história lamentável de sua queda que o exilado de Patmos havia
profetizado quando, três séculos antes, bradara com força:
E outro anjo seguiu, dizendo: Caiu! Caiu Babilônia, aquela
grande cidade que a todas as nações deu a beber do vinho da
ira da sua prostituição! (Apocalipse 14.8)
Os visigodos encarregam-se de cumprir à risca a profecia de João.
Durante a destruição de Roma, houve cristãos que, horrorizados com os
pecados e temendo as desgraças daquela Roma infiel, saíram de suas
casas e embarcaram em navios de onde puderam ver as chamas que
devoravam as casas da cidade maldita. Uns fugiram para a África, e ali
acharam Agostinho, que meditava sobre o livro A Cidade de Deus. Este
livro não era senão a história do cumprimento de Apocalipse, e o de-
senvolvimento eloqüente da política divina.
Outros refugiaram-se junto de Jerônimo que, escondido e orando
em sua gruta de Belém, comentava as lúgubres Visões de Ezequiel.
Ouvindo-os contar os desastres da pátria, Jerônimo recordou-se das
palavras do apóstolo inspirado, e, deixando de lado seu profeta, exclamou
como o anjo do Apocalipse: "Está consumado! Babilônia caiu; tomaram
Roma, saquearam-na, está destruída pelo fogo e tornou-se a sepultura de
seus próprios filhos. A luz paga do universo apagou-se, a cabeça do
império foi cortada; foi o mundo inteiro que acabou com uma cidade.”
Em Apocalipse João também profetizou a ruína do império de
Satanás, e o verdadeiro estabelecimento do reinado de Jesus Cristo e de
sua Igreja.
Jesus havia dito:
Agora, é o juízo deste mundo; agora, será expulso o príncipe
deste mundo. E eu, quando for levantado da terra, todos
atrairei a mim. (João 12.31-32)
O cumprimento daquela palavra do Senhor Jesus, tão
cuidadosamente anotada por João, é o assunto inteiro do Apocalipse.
Vêem-se ali os combates do demônio e de seus anjos contra a Igreja
recente. Mas seus esforços serão inúteis, seus ardis descobertos; o
dragão será acorrentado, o príncipe deste mundo será vencido; o de-
mônio e a Besta, assim como o falso profeta, serão lançados num lago de
fogo e de enxofre, para serem atormentados pelos séculos dos séculos.
(Apocalipse 20.10)
Mas o triunfo supremo da Igreja não é deste mundo. Numa última
parte do livro são desvendadas as glórias da eternidade depois das
glórias do tempo. Pela terceira vez abriu-se o céu para João. Não se
tratava mais da Igreja da Ásia nem do império romano: o último ato do
drama da história humana se desenrolará no seio de Deus:
E vi um novo céu e uma nova terra. Porque já o primeiro céu e
a primeira terra passaram, e o mar já não existe. E eu, João,
vi a Cidade Santa, a nova Jerusalém, que de Deus descia do
céu, adereçada como uma esposa ataviada para o seu
marido. E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: Eis aqui o
tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará,
e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles e
será o seu Deus. E Deus limpará de seus olhos toda lágrima e
não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor,
porque já as primeiras coisas são passadas. E o que estava
sentado sobre o trono disse: Eis que faço novas todas as coi-
sas. E disse-me: Escreve, porque estas palavras são
verdadeiras e fiéis, e disse-me mais:
Está cumprido; Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim.
A quem quer que tiver sede, de graça lhe darei da fonte da
água da vida. Quem vencer herdará todas as coisas, e eu
serei seu Deus, e ele será meu filho. (Apocalipse 21.1-7)
A nova Jerusalém levanta-se do deserto, brilhante de claridade; o
Rio da Vida ali corre, puro como o cristal; enquanto aqui embaixo
andamos ao encontro da morte, a árvore da vida dá sombra às nações
que ela alimenta com sua vida que renasce sem cessar. Não há mais
noites nem mais trevas: o próprio sol não tem função nenhuma naquele
lugar de imortal esplendor, que o próprio Deus enche de luz e do qual é
ele o centro. E o esplendor da beleza radiante, da pureza sem mácula;
nada manchado poderia entrar naquele lugar, onde não há espaço para o
mal. O tempo já não existe, e o reino dos salvos não terá fim.
A visão de João fez desaparecer tudo o que antes se dissera sobre
a vida eterna. Havia quatro mil anos que sonhávamos com o céu. Todos
os olhares para lá se erguiam; mas não o podendo ver, os homens
formaram juízos incompletos, muitas vezes errôneos:
Mas, como está escrito: As coisas que o olho não viu, e o
ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem são
as que Deus preparou para os que o amam. (1 Coríntios 2.9)
Porém o Apocalipse revelou esta plenitude perfeita onde o homem e
Deus se encontrarão numa convivência indissolúvel e eterna.
O verdadeiro céu, o céu descrito por João, abrir-se-á aos maiores e
aos mais numerosos vencedores; ali as coroas serão o prêmio da
santidade. Até agora as paixões, as rivalidades e, portanto, os
sofrimentos da terra seguiam as almas pagãs em seu triste céu; porém,
aos corações, que se dessedentam nas fontes perenes do Cordeiro e de
Deus, nada os entristece. Lá não penetra nem a morte nem a separação,
e o amor de Deus por seus filhos que reinarão com ele durará tanto
quanto Deus durar.
Assim será a beleza, a unidade, a imensidade, a eternidade da
morada viva que a Escritura chama de a Jerusalém celestial. Ela brilha
com a luz do Cordeiro, conforme comenta João. Jesus é este Cordeiro
imolado desde o princípio do mundo. Outrora o cordeiro era a vítima
figurada que os judeus comiam no banquete da Páscoa. Depois ele
passou a ser aquele Cordeiro que João encontrou nas margens do
Jordão. No céu ele será o Cordeiro glorificado, triunfando no altar eterno
onde o cantam todas as línguas.
Depois desta visão João não se demorou muito na ilha de Patmos.
Notícias vindas de Roma o informaram de que Domiciano acabava de
expiar seus crimes a 15 de Setembro do ano de 96. Soube-se ao mesmo
tempo da exaltação de Nerva como novo imperador, do qual um dos
primeiros atos foi chamar os banidos, os condenados por causa de
impiedade.
João deixou Patmos. Disse adeus aos habitantes da ilha que muito
o amavam, e voltou para Éfeso. Estivera ausente daquela cidade, exilado,
durante dois anos.

CAPÍTULO 19 - O RETORNO DE JOÃO A ÉFESO

A morte de Timóteo

Foi no ano de 97 que o apóstolo pôde tornar a ver a Igreja de Éfeso,


onde todos esperavam a felicidade e o benefício de sua volta. Aquela
comunidade cristã acabava de sofrer um grande desgosto. Naquele
mesmo ano morrera gloriosamente o pastor Timóteo, o discípulo de Paulo
e companheiro de João. O apóstolo, que deixara "aquele bom soldado de
Cristo" no mais terrível combate contra a heresia e a idolatria, não
ignorava o perigo que ele corria. De sua ilha solitária, João vira e
denunciara, no Apocalipse, as abominações e o que era o pior dos
contágios para o rebanho: o da volúpia. Porém, elogiando as grandes
obras, o trabalho e a paciência do anjo de Éfeso, João falou dos males
que ele havia de suportar pelo nome de Jesus Cristo, e previa que contra
ele fariam represálias mortais.
Não se enganava. Logo depois dos terremotos que a sacudiram até
os alicerces, viu-se a louca cidade de Éfeso entreter-se, sobre os túmulos
recém-fechados e as ruínas ainda fumegantes, com as pompas orgíacas
de sua deusa e de seus deuses. A mais célebre daquelas festas era uma
passeata anual, chamada Catagógia, espécie de bacanal que lembrava
os mais monstruosos excessos de Biblos e de Corinto. Ali se via uma
multidão, ébria de vinho e de lascívia, armada de pedaços de paus,
levando as imagens de seus deuses, lambuzada ou mascarada,
percorrendo os principais quarteirões da cidade, cantando versos
obscenos, atacando imprudentemente os homens e as mulheres, sem
poupar violências, muitas vezes mortais que o culto da divindade
justificava.
Continuavam a misturar a esses gritos delirantes injúrias grosseiras
contra Jesus Cristo e os cristãos. Timóteo não podia admitir semelhantes
ultrajes, e, indignado, não lhe sendo possível mais conter-se, dizem as
Atas de seu martírio que ele atirou-se corajosamente á frente daquele
ímpio cortejo, protestando, em nome de Jesus Cristo, contra aquelas
blasfêmias. Isto era o mesmo que entregar-se à morte. Sua atitude
enfureceu o cortejo de devassos. Derrubaram-no a pedradas, e depois o
pisotearam. Não era preciso tanto para acabar com um homem de
constituição fraca e que desde a muito levava uma vida muito difícil.
Timóteo obteve a coroa da vida eterna. Ainda respirava quando
seus discípulos o levaram à montanha próxima, onde ele expirou no meio
das orações deles. Isto ocorreu no começo do ano de 97, segundo ano do
reinado de Nerva.
Porém bastou a chegada de João para consolar todas aquelas
tristezas. Toda a Ásia cristã comoveu-se com sua volta. Uma vez livre, ele
não tardou em recomeçar a carreira de apóstolo naquela região, feliz por
todos reconhecerem nele o confessor e o quase mártir da fé que vinha
pregar. A antigüidade conservou a lembrança da obra missionária de João
no seio da cristandade. Ele pregava, orientava, orava pelos enfermos, es-
crevia epístolas, visitava as igrejas, uma após outra, combatendo os
erros, corrigindo os costumes, fortalecendo os fracos, falando em toda
parte sobre o Senhor com quem ele convivera e com quem esperava se
encontrar na Glória a qualquer momento.
Foi nesta última época da vida de João que ele escreveu as suas
duas últimas epístolas canônicas.
A primeira delas é dirigida "à eleita". Alguns acham que este seria o
título coletivo de uma igreja. Outros acham que João teria dirigido esta
carta a uma cristã caridosa, conforme tudo dá a entender. Essa senhora
tinha filhos (v.1) e sobrinhos (v.13)
Numa epístola dirigida a uma família, todas as famílias podem
achar a regra de seus deveres.
A carta faz lembrar pela linguagem e pela doutrina a primeira
epístola de João. O apóstolo dá a si mesmo o nome de velho, de ancião
ou sacerdote, conforme o significado desses nomes em grego. Além
disso, as freqüentes repetições dentro desta cartinha revelam que foi
escrita por alguém naquela idade suprema da vida, que tudo reduz à
unidade de uma idéia soberana que se deve sempre repetir. Para João o
amor é a última palavra de tudo.
Já vimos aparecer nesta história o nome de Gaio. Três personagens
têm este nome nos documentos da história da igreja. Um era da
Macedônia; o outro era da cidade de Derbe. Mas este de quem vamos
tratar é Gaio, o coríntio, citado duas vezes por Paulo em suas epístolãs.
(Romanos 16.23; 1 Coríntios 1.14)
Gaio distinguia-se por sua caridade que o tornava abençoado nas
novas igrejas da Ásia Menor. Sua hospitalidade regozijava o coração de
todos os irmãos. Naquela terra ser hospitaleiro não era novidade.
Herodoto e Homero a haviam louvado. Mas o cristianismo,
restabelecendo-a, a elevara à uma dignidade sobre-humana, fazendo ver
no hóspede a própria imagem de Deus. Paulo já havia escrito em
Romanos 12.13:
Comunicai com os santos nas suas necessidades, segui a
hospitalidade.
E o autor da carta aos Hebreus reforçara: Não vos esqueçais da
hospitalidade, porque, por ela, alguns, não o sabendo, hospedaram
anjos. Tiago o Menor, dirigindo a Ásia a sua epístola universal, onde
transpira a alma ardente do amigo de João, disse:
Meus irmãos, não tenhais a fé de nosso Senhor Jesus Cristo,
Senhor da glória, em acepção de pessoas. Porque, se no
vosso ajuntamento entrar algum homem com anel de ouro no
dedo, com vestes preciosas, e entrar também algum pobre
com sórdida vestimenta, e atentardes para o que traz a veste
preciosa e lhe disserdes: assenta-te tu aqui, num lugar de
honra, e disserdes ao pobre: Tu, fica aí em pé ou assentado
abaixo do meu estrado, porventura não fizeste distinção
dentro de vós mesmos e não vos fizestes juizes de maus
pensamentos? Ouvi, meus amados irmãos. Porventura, não
escolheu Deus aos pobres deste mundo para serem ricos na
fé e herdeiros do Reino que prometeu aos que amam? (Tiago
2.1-5)
O amor e a hospitalidade de Gaio eram exercidos especialmente
com os missionários que iam espalhar bem longe a verdade cristã. A
maior parte — diz Eusébio — dos discípulos apostólicos, tendo distribuído
seus bens aos pobres, iam aos países longínquos pregar o Evangelho de
Jesus. Ali fundavam igrejas, instalavam pastores, e o povo, escutando
suas palavras, abraçava o culto do verdadeiro Deus.
Tendo recebido gratuitamente, esses pobres de Jesus Cristo
queriam dar gratuitamente. Por isso a hospitalidade proporcionava aos
pregadores, de distância em distância, tetos hospitaleiros onde achavam
abrigo, assistência e alimento. Em nada eles queriam ser pesados aos
pagãos, de quem a igreja só queria ganhar as almas.
João soube que assim era a casa de Gaio, o coríntio. A terceira de
suas epístolas foi escrita com o fim de felicitá-lo.
Mas o inimigo esforçava-se por semear o joio naquelas igrejas
recém-fundadas. O final da Terceira Epístola de João denunciava com
tristeza um foco de discórdia na Igreja onde Gaio praticava suas virtudes.
Um tal Diótrefes ali lançara a desordem por ambição. Aquele "filho de
Júpiter", conforme significava o seu nome, rebelde à autoridade do
venerável apóstolo, não o poupava em suas pregações. Recusava-se ao
dever da hospitalidade, agindo mesmo contra os que recebiam os irmãos
e ousando até expulsá-los da igreja. Aquele era o primeiro e triste
exemplo do farisaísmo egoísta e duro, preocupado com a prepotência,
subordinando tudo a si, e parecendo ignorar que consagrar-se a Deus
equivalia a dedicar-se aos homens.
Beda e os intérpretes mais autorizados dizem que foi em Corinto
que existiu a residência de Gaio e o foco da dissidência denunciada por
João. Naquela época Clemente Romano também escreveu sobre o caso
ocorrido em Corinto, para cuja igreja João havia enviado sua carta:
"Soprou a revolta e dali saíram as invejas, as discórdias, o tumulto, as
lutas, o avassalamento. Os pequenos se levantaram contra os grandes;
os de baixa esfera levantaram-se contra os homens de dignidade; os
ignorantes contra os sábios; os moços contra os velhos. A dignidade
pastoral foi disputada. Os apóstolos o haviam predito; mas saibamos
respeitar os líderes que eles próprios escolheram. Por que dilacerarmos
os membros do Senhor?”
O apóstolo concluiu sua Terceira Epístola com um elogio a
Demétrio, outro cristão fiel e hospitaleiro.
Depois, como tinha feito com a eleita, ele promete vir:
Espero, porém, ver-te brevemente, e falaremos de boca a
boca. (3 João 14)

CAPÍTULO 20 - A ESCOLA DE JOÃO

Sua morte

João, o amigo mais próximo de Jesus, tornara-se a luz da Ásia.


"Convinha — escreveu um grande estudioso do passado — que a Igreja
tivesse em algum lugar um facho resplandecente que permanecesse
aceso e esclarecesse as dúvidas dos fiéis, até a Igreja tomar sua forma
definitiva e adquirir sua total consistência. João foi essa luz. Ele brilhou
como a lua naquelas noites de profundas trevas, funcionando como o
satélite do Sol da Justiça".
Graças à sua permanência prolongada e luminosa no centro da
Igreja do primeiro século, João pôde reunir um grupo de discípulos que
ouviram sua pregação, viram seu inflexível e agudo exemplo e tomaram
posse da unção que ele colocara sobre cada um. Foram esses homens
que transmitiram a mensagem do Evangelho às longínquas cidades do
Oriente e do Ocidente.
Eles formaram o que se chamou de a escola de João. Essa escola
era numerosa. Os nomes de muitos dos que a freqüentaram são hoje
desconhecidos. Só a eternidade os revelará. Porém, outros se tornaram
conhecidos pelo brilho de suas virtudes, de sua pregação e de suas
obras. O ministério desses discípulos lançou sobre o mundo uma intensa
luz, como reflexo da luz que João recebera daquele que um dia dissera:
Eu sou a luz do mundo. (João 8.12)
A história desses discípulos lançou uma última luz como reflexo de
tudo o que eles haviam aprendido com o velho apóstolo.
Inácio e Policarpo ocupam um lugar de destaque nesta escola.
Inácio tornou-se o mais conhecido de todos. Alguns historiadores
supõem que ele tenha sido o menino que o Senhor colocara no meio dos
apóstolos, dizendo-lhes : "Portanto, aquele que se tornar humilde como
este menino, esse é o maior no reino dos céus", Mateus 18.4. Vamos
encontrá-lo agora bispo de Antioquia, seguindo os passos de João, e
recebendo a doutrina e direção diretamente do apóstolo.
Antioquia era na Ásia a rival de Éfeso. A beleza de seus edifícios,
sua numerosa população, seu extenso comércio, o gosto e o culto das
artes faziam-na a terceira cidade do império. Era também a cidade de
costumes dissolutos e prazeres infames, velados pelas sombras dos
bosques de Dafne, que celebravam as festas de Astarté e os mistérios de
Adônis.

Os últimos amigos de João

Deus, que é especialista em realizar milagres, escolhera aquela


cidade perversa para torná-la uma metrópole da fé. Os fiéis se haviam
multiplicado mais do que em qualquer outra cidade da Ásia, e pela
primeira vez tinham tomado o nome de cristãos. Inácio, uma vez bispo,
dera ao culto cristão um brilho que atraíra os próprios gregos, porém
compatível com a simplicidade dos próprios princípios cristãos. Conta-se
que Inácio, transportado certa vez por uma visão ao seio das melodias
dos anjos, ensinou depois à Igreja de Antioquia essa música celeste.
Começaram então a ressoar os hinos puros nos lugares desonrados
pelas canções delirantes das sacerdotisas sírias.
Se não nos é possível hoje saber os assuntos que foram tratados
nas freqüentes conversas de Inácio com João, ao menos as lições do
apóstolo deixaram nas cartas autênticas do mártir sinais evidentes. São
impressões inflamadas de zelo, amor e fé.
Não é somente a doutrina de João que transborda nas cartas de
Inácio às Igrejas da Ásia, mas também seu amor a Deus. Estas Igrejas
são as mesmas onde João espalhou a unção de Jesus Cristo: Éfeso,
Esmirna, Magnésia, Trales, Filadélfia, a própria Roma. Inácio, tal qual o
apóstolo João, foi levado a Roma para ali sofrer o martírio. Foi
acorrentado; dez soldados, que ele chamava de dez leopardos,
torturavam-no dia e noite. Assim ele foi arrastado até o pretório de
Trajano. Mas a esperança da morte consolava-o de tudo. "Agora é que
comecei a ser um verdadeiro discípulo, dizia ele; meu espírito agora vai
ao encontro daquele que morreu na cruz.”
Inácio queria ser moído pelos dentes das feras, como o trigo, a fim
de se tornar o pão de Jesus Cristo. Ele comparava a sua morte à um pôr
do sol que precede o raiar maravilhoso de um dia divino. Este lindo dia
raiou para Inácio. Suas últimas palavras foram: "O ferro e a cruz, os
ossos quebrados, a violência dos animais ferozes, os membros partidos e
todo corpo espedaçado, sofra eu todos estes males, contanto que
alcance a Morada do meu Senhor".
Inácio encontrou-se no glorioso caminho que o levava ao martírio
com um outro discípulo de João, Policarpo de Esmirna. A ele João havia
dito: "Permanece firme em Deus como sobre um rochedo. Vela como um
atleta de Deus. O prêmio do combate é a incorruptibilidade e a
imortalidade. Fica firme na verdade como a bigorna que se bate. A prova
de um grande atleta é ser batido e vencer". Por sua vez, Policarpo dizia
aos filipenses: "Recebestes de Inácio este modelo de fidelidade,
carregado de correntes sagradas, que são os diamantes dos verdadeiros
eleitos de Deus.”
Esmirna e Éfeso eram vizinhos. Policarpo foi discípulo assíduo de
João, e, segundo Irineu, guardou a lembrança de seus ensinamentos
durante toda a sua vida.
Inácio, passando por Ermirna, viu Policarpo e abraçou santamente
aquele irmão que não devia tardar a segui-lo no martírio. "Assim
possamos nos reunir um dia em Deus!" Polycarpo foi fiel ao encontro.
Sabe-se que Marco Aurélio, não podendo obrigá-lo a blasfemar contra o
Deus a quem ele servira há oitenta e seis anos, condenou-o às chamas.
Papias, bispo de Hierápolis também é incluído entre os discípulos de
João. Papias não foi só discípulo do apóstolo, como também escreveu o
que João lhe ditou; serviu de secretário na composição do Quarto
Evangelho.
Papias era eloqüente. Tinha aquela beleza de estilo e de palavra
que é um dom do gênio grego, e que fazia Jerônimo desesperar de fazer
uma tradução latina digna dos escritos de Papias.
Essencialmente curioso dos fatos da tradição, chegado aos fins do
século apostólico, e como um dos últimos ecos da testemunha
contemporânea de Jesus Cristo, Papias, não satisfeito com o que
soubera através de João, seu primeiro mestre, informou-se também junto
daqueles que tinham ouvido a palavra dos apóstolos, apanhando assim
"as migalhas da mesa dos Evangelhos". Cinco livros, que ele chamou
Exposição das Palavras do Senhor Jesus Cristo, foram os frutos dessas
pesquisas. Deles quase nada nos restou. Cristo não quis deixar viver
outra exposição de sua palavra a não ser a dos quatro evangelistas.
Irineu leva a mesma herança à terra da Gália. Nascido cerca de
vinte anos depois da morte do apóstolo João, ele se tornará o vínculo
entre os tempos apostólicos e o período de propagação do Evangelho.
Repetirá tudo o que aprendeu com Policarpo, discípulo de João. Eis a
carta que ele escreveu a um discípulo de Policarpo, Florino:
"Eu te vi na minha mocidade na Ásia Menor, junto de Policarpo.
Como então procuravas a sua aprovação! Lembro-me daqueles tempos
antigos melhor do que da hora atual; porque as experiências que
adquirimos na infância crescem com nossa alma, identificadas com ela.
Poderia dizer o lugar onde se assentava o bem-aventurado Policarpo
quando nos ensinava, seus hábitos, seus gestos, suas pregações ao
povo. Contava-nos como vivera com João e com os outros discípulos,
que tinham visto o Senhor. Lembrava-se de suas palavras, de tudo que
guardara com relação a Cristo, seus milagres, sua doutrina. Policarpo
contava tudo isto conforme as Escrituras, tendo-o ouvido daqueles que
haviam visto o Senhor com seus próprios olhos, o Verbo da vida. E, pela
misericórdia de Deus, eu tudo ouvia com atenção, não o anotando no
papel, mas gravando em meu coração; e por esta mesma misericórdia
lembro-me e o medito constantemente.”

O impacto do cristianismo

Naquela época, graças à influência do Evangelho, o amor do


homem para com o homem penetrara os espíritos. Um filósofo como
Sêneca falava em amar o gênero humano. Plínio, o jovem, um advogado,
começava a colocar o dever acima da pátria. Epíteto pregava a primitiva e
grande unidade de todos os homens em uma só família, tendo Deus
como pai. O gênero austero de Juvenal se enternecia para nos dizer
(grande novidade!) que, se temos uma alma, era para nos amarmos muito
uns aos outros. Crisóstomo nos dizia que "todos os homens formavam
juntos uma mesma cidade, uma comunidade de irmãos debaixo da
autoridade de Deus." Ora, cada um desses filósofos, escritores, oradores
— e isto está provado — tinham visto os cristãos de perto. Um sopro do
Evangelho tinha passado sobre aqueles espíritos, mesmo os mais
severos.
Uma revolução análoga passava a ser vista nos costumes. A
vingança, que tinha sido a delícia das almas magnânimas, foi tratada por
Juvenal como volúpia dos corações fracos e dos espíritos estreitos. No
terreno social, o escravo estava se tornando um homem livre; o cativeiro
abrandara-se e eis que, pela primeira vez, discutia-se sobre a liberdade.
Pensava-se nos operários, honrava-se o trabalho, incentivava-se a
honestidade conjugai, e os príncipes ocupavam-se em fundar orfanatos
para as crianças. Era o triunfo de Cristo.
O Evangelho chegava publicamente ao mundo. Do Cenáculo à rua,
da loja à escola, do cubículo do escravo ao quarto do seu senhor, da casa
ao foro, do foro ao senado. A Palavra de Deus subia até o Palácio
imperial, onde chegava muitas vezes mutilada e inexata; mas chegava.
Agora João podia morrer. Último guardião do testamento de Jesus,
ele via agora despontar a exaltação da mensagem de amor e salvação
que o Mestre amado pregara ao mundo.
Um de seus discípulos conta que João, não podendo, por causa da
idade avançada, ir à assembléia dos santos, fazia-se carregar, e ali não
cessava de repetir estas palavras:
"Meus filhinhos, amai-vos uns aos outros." Desejariam que ele
dissesse alguma coisa mais, porém ele voltava sempre ao seu discurso:
"Amai-vos uns aos outros. É o mandamento do Senhor; se o cumprirdes,
nada mais é preciso.”
A morte de João foi suave e sem dor. Finalmente o Senhor viera
buscá-lo para que ele ficasse eternamente junto do Mestre e de todos os
demais que haviam partido antes dele. Era o ano 104 da Era Cristã, o 7º.
do reinado de Trajano. João estava com 100 anos de idade. Foi sepultado
em Éfeso.

Uma última visita a Patmos

Diante da costa da Jônia, outrora tão célebre por suas riquezas e


hoje pelas ruínas de tantas cidades importantes — Mileto, Prieno, Éfeso
— vê-se um grupo de ilhotas, de rochedos quase sem nome, na maior
parte desertos, espalhados no mar Egeu, entre Cós e Samos. Dentre
estas pequenas ilhas uma se tornou célebre: é Patmos.
A única maneira de ir-se a Patmos hoje é sempre a mesma desde
os tempos do apóstolo João. Aluga-se em Micom, antigo porto onde
ficava Éfeso, uma pequena embarcação mais ou menos coberta, tripulada
por quatro ou cinco homens, e corajosamente o viajante se entrega aos
perigos de uma travessia que pode durar até seis horas.
A ilha de Patmos é apenas um ponto perdido no mar imenso. Nela
se destacam grandes rochas negras amontoadas, inteiramente estéreis.
Na praia e nos vales internos, apesar de desprovidos de arvoredo, vê-se
algum verdor. Mas aquele verdor não é produzido pelas pastagens ou
pelas muitas árvores que outrora existiam ali, e sim pelas inúteis
samambaias que nascem espontaneamente. O que se vê mais?
Apertadas umas contra outras, mil e duzentas casinhas mostram seus
terraços de uma brancura deslumbrante, onde mulheres e crianças
conversam e brincam. Mais para o interior da ilha vêem-se pequenas
cabanas de pastores construídas com galhos de pinheiro, estábulos
cobertos com palhas de coqueiro dentro dos quais pastam carneiros
magros, cinqüenta barcas ancoradas no porto silencioso — eis toda a ilha
de Patmos em sua austera pobreza.
Mas levantemos os olhos. Foi aqui que um homem chamado João
teve as mais extraordinárias visões que um ser humano já teve. Fitemos
além dessa terra árida e desses sinistros rochedos. Que esplendor! Que
luz! Quantas ilhas, quantos continentes alcançados pelo Evangelho que
ele escreveu, por suas cartas, pelo livro de Apocalipse! Quantas
multidões de almas alcançarão a eternidade com Deus graças ao que
semeou o exilado de Patmos! Quantas vozes estarão louvando ao Senhor
“juntas como a areia da praia" naquele mar sem limites da eternidade, por
terem sido alcançadas por alguma dessas sementes!
Uma névoa diáfana, mas que não tira dos objetos a sua nitidez, une
todos os contornos daquela paisagem e mistura uniformemente aquele
céu, aquele mar, aquelas ilhas. O céu é azul, o mar é azul, as ilhas são
azuis. Porém às vezes as ilhas tornam-se vaporosas, Patmos mostra-se
sombria, o mar torna-se escuro, e no horizonte o céu claro torna-se
pálido, quase cinzento. Ali João, o apóstolo do amor, o exilado por ter
permanecido fiel a Jesus Cristo, teve suas visões apocalípticas. Ali ele ou-
viu a voz de Deus. Ali ele viu os céus abertos.

* * *
CANTO SOBRE AS ÁGUAS DA ILHA

José Santiago Naud

Eu, poeta, profeta, biógrafo de Jesus Cristo, João,


Quero dizer aos homens
Como o mar se espraia na ilha
E é linda a moldura do céu sobre os rochedos.
Eu, solitário, homem hebreu, peregrino, Boanerges,
Quero contar às mulheres
Como o trovão é doce
E é delícia o caminho que o raio traça nos céus.
Eu, habitante de Patmos, homem ancião, vidente, Apóstolo,
Quero suplicar às crianças,
Como as crianças são,
E pedir-lhes a conservação de sua humildade sem véus.
Eu que sou todos, dentro do Amor que sofro,
E sou sábio, sob a luz do Paracleto,
E sou santo, pelo sangue de Cristo,
Quero dizer que não vos desespereis,
Homens de rede sem peixe,
E que compreendais o vento, navegantes sem rumo,
E que vos perdôo, doentes, ao me arrancardes da ilha,
Para que gema convosco.
Eu, João Boanerges, Apóstolo,
Biógrafo de Jesus Cristo.

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