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Mitologia Judaico-Cristã

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Javé e Jesus

Depois de criar o mundo, o deus do segundo relato se arrepende e


decreta a sua destruição pelo dilúvio universal

Sacha Calmon - Advogado tributarista, coordenador do curso de


especialização em direito tributário das Faculdades Milton Campos,
professor titular da UFRJ, autor de A história da mitologia judaico-cristã

Bianor, monge taoísta, é admirador de Jesus. Diz ele que há no Gênesis –


primeiro livro da Bíblia – dois relatos da criação. No primeiro relato (G. 1:2-27)
se diz: “Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou;
macho e fêmea os criou”. Esse primeiro relato remete-se aos mitos
mesopotâmicos que precederam o judaico, mais tardio. El, o Altíssimo, cria o
mundo para o casal dominá-lo sem condição, proibição ou interdição, daí a
ordem “sede fecundos e multiplicai-vos” (G. 1:28).

O segundo relato, javeísta, semipoliteísta, é diferente. O conflito cósmico entre


Tiamat, a deusa má que abre o dilúvio destruidor da humanidade, e Marduc, o
deus bom que o encerra, salvando-a, perde em dramaticidade. No segundo
relato, Deus não cria ninguém à sua imagem, mas um homem de barro, em
quem sopra o hálito da vida (G. 2:7). Eva inexistia. Será gestada de Adão, de
uma de suas costelas. É-lhe inferior, deve-lhe a vida, destina-se a servi-lo. Em
vez da ordem incondicional de reprodução no primeiro relato, no segundo, a
Adão é dada uma proibição: não comer o fruto da árvore do conhecimento do
bem e do mal. O sumo da fruta abriria a consciência da maioridade. A proibição
é gratuita, porque o homem era a imagem de Deus. Transgressão implica
castigo. Tiamat, no segundo relato, espera o surgimento de Eva para incitá-la à
desobediência, fazendo desandar a obra da criação. A apropriação de um mito
politeísta, em que o deus do bem peleja com a deusa do mal para proteger a
humanidade, por um mito monoteísta, obrigou o redator do Gênesis a fundir
duas personalidades míticas (Marduc e Tiamat) num único protagonista
cósmico. Ele será tanto criador quanto destruidor da humanidade, mudando de
personalidade. Depois de criar o mundo, o deus do segundo relato se
arrepende e decreta a sua destruição pelo dilúvio universal, as mesmas águas
assassinas de Tiamat, a deusa serpentina do mito babilônico. Ele, no entanto,
deve preservar a humanidade. Salva Noé. Caso contrário, não teria humanos a
lhe fazer oferendas. Ele exerce todos os papéis divinos: cria, destrói e salva.
No fim do genocídio, se arrepende do que fez, ao sentir o suave cheiro
apatrópaico das oferendas do temeroso Noé (G. 8:21). Mas Deus se
arrepende?

O segundo relato, tem outras discrepâncias em relação ao primeiro. Neste, o


palco é o mundo inteiro. Deus cria a humanidade e pronto. No segundo relato,
o mundo é substituído por um jardim, por onde anda o Senhor, como qualquer
um, criado lá pelas bandas do Oriente (G. 2:4.5.7.8.9). Esse deus judaico é a
imagem e semelhança do homem (antropomorfismo). Do Éden saía um rio que
se dividia em quatro: Pisom, Giom, Eufrates e Tigre, “que corre pelo oriente da
Assíria” (G. 2:14). Então, a terrível Assíria caldaica, que destruiu o Reino do
Norte, Israel, à volta de 720 a.C., já existia desde a formação do Éden? O
nome do império dos assírios surge em 950 a.C. Antes foram os sumérios, os
acádios (caldeus), os hititas e os egípcios, desde 4 mil anos a.C. A descrição
da Assíria no segundo relato sugere que a sua redação é posterior ao
surgimento dela. Estranhamente, a proibição de comer o fruto é endereçada
somente a Adão e não a Eva (G. 2:16.17). A proibição traz o verbo no singular,
até porque o deus do segundo relato apurava-se em achar para Adão uma
“auxiliadora” (G. 2:18). Na sequência, ela é responsabilizada, junto com Tiamat,
a cobra falante, pela ruptura da criação.

No primeiro relato, Deus criou o mundo para o homem (G. 1:28.29.30.31). A


apropriação pelo redator do segundo relato de um mito politeísta o obriga a
recorrer a um bicho (Tiamat em forma animal) e a culpabilizar a mulher pelos
pecados do mundo. O mal é tirado do Deus, daí a frase de Pascal: “O homem
precisa ser culpado para Deus ser inocente”. No segundo relato, Deus temeu a
vontade dos homens, suscitando providências. Ele diz: “Eis que o homem se
tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal e, assim, para que não
estenda a mão e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente”,
coloca querubins no jardim do Éden e o refulgir de uma espada para proteger o
caminho da árvore da vida eterna (G. 3:22.23.24). Quem são esses “nós” a que
se refere o Deus do segundo relato? Por que teme a nossa imortalidade? Ele é
completamente diferente do Senhor Jesus Cristo, que revogou expressamente
a interdição de Javé com a ressurreição em corpo e alma, além de nos dar
“vida eterna” na casa do Pai, onde há muitas moradas. Antes, revogara a
lapidação das mulheres (atire a primeira pedra), o repúdio das esposas (nem
sempre foi assim), o Shabat (o sábado foi feito para o homem e não o
contrário), as proibições alimentares (não é o que o homem come, mas o que
fala) e os sacrifícios no templo (onde dois estiveram reunidos em meu nome).
O próprio templo, tão caro aos filhos de Judá, era-lhe indiferente (este lugar,
em três dias não ficará pedra sobre pedra). Jesus não é filho de Javé. Nunca
chamou o Pai por esse nome, nunca!

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