Nas Voragens Do Pecado (Trilogia I)
Nas Voragens Do Pecado (Trilogia I)
Nas Voragens Do Pecado (Trilogia I)
Primeira Parte
Os huguenotes
1 Otília de Louvigny
4 Uma família de filantropos
3 O capitão da fé
4 Pacto obsessor
5 Seu primeiro amor...
6 Eva e a serpente
7 Perfídia
Segunda Parte
Um consórcio odioso
1 Estranhos projetos
2 Núpcias
3 Consequências de um baile
4 Anjo das trevas
5 Fim de um sonho
Terceira Parte
Mas a vida prossegue...
1 Um crime nas sombras
2 O destino de um cavaleiro
3 Parcelas do mundo invisível
4 Como nos contos de fadas...
5 Almas supliciadas
Quarta Parte
A família espiritual
1 A família espiritual
2 Glória ao amor!
3 O antigo pacto
Conclusão
A magna carta
Referências
Aos que sofrem
No dia 23 de abril de 1957, um acidente ocorrido em minha residência
fez-me fraturar o braço esquerdo. Imobilizada durante vários dias, a sós
com meus estudos e meditações, que de panoramas espirituais se
desvendaram às minhas possibilidades mediúnicas, assim favorecidas por
um estágio propício! Se, então, me foi dado o reconforto da presença dos
meus companheiros de jornada terrena, que fraternalmente me visitavam,
frequentes igualmente foram as visitas recebidas do mundo invisível,
consoladoras e inefáveis, testemunhando às minhas convicções a
intensidade faustosa, prodigiosa, dessa pátria que é nossa e a qual estamos
perenemente ligados por laços de sagrada origem!
No terceiro dia após o acidente, um acontecimento verdadeiramente
majestoso desenrolou-se diante de minhas percepções mediúnicas
poderosamente exteriorizadas do âmbito físico-carnal. Apresentara-se à
minha frente, encontrando-me eu ainda perfeitamente desperta, a querida
entidade espiritual Charles, meu guia e mestre da Espiritualidade, amigo
desvelado desde o berço, porque já o era também na vida espiritual.
Reflexos de um luzeiro branco azulado, que o envolvem, despejam-se então
sobre mim, emprestando ao meu recinto um suave palor como de santuário
espiritual... Suas mãos belíssimas, esguias, que um lindo anel com radiosa
esmeralda enfeita, estendem-se sobre minha fronte, causando-me
enternecido choque... E ele sussurra aos meus ouvidos a doce tonalidade de
uma vibração encantadora, ordenando-me:
— Vem!...
Submisso, meu espírito segue-o, enquanto o corpo, sobre uma cadeira
de balanço, o braço envolto em faixas, se abandona a reconfortadora
letargia... Pairamos no ar... Tudo em torno é luar azul, neblinas suavemente
lucilantes, perfumes de violetas — a essência que Charles prefere —,
encantamento e emoção... Não distava muito do local, onde jazia meu fardo,
a estância azul onde pairávamos. Eu tinha a impressão de que gravitávamos
pouco acima do telhado de minha casa, pois que o via, assim como o
panorama da cidade de Belo Horizonte, onde residia então, que se estendia
entre a penumbra do crepúsculo. Ouvia mesmo os debates de meus
pequenos sobrinhos que, na sala de jantar, preparavam os deveres escolares
para o dia seguinte...
E eram 19h30...
De súbito, um como tumultuar de cores e de sons melodiosos envolveu
o local onde eu me encontrava... Tons rosados, de variações inauditas,
misturaram-se às tonalidades azuis que me envolviam, tal se eminentes
químicos celestes preparassem algo muito grandioso, servindo-se dos
elementos dispersos pela natureza nas camadas invisíveis do Infinito...
Charles tomou-me da mão com vigor e disse:
— Narrar-te-ei a triste história de um coração que ainda hoje não
conseguiu perdoar e esquecer integralmente a dor de uma ofensa grave...
Ofereço-a àqueles que sofrem, aos que amam sem serem amados, aos que
tardam em compreender que o segredo da felicidade de cada um e da
humanidade em si mesma encontra-se na capacidade que possua cada
coração para as virtudes do amor a Deus e ao próximo...
Então as primeiras frases deste livro repercutiram em meu ser
espiritual como se forças ignotas as decalcassem a fogo em meu cérebro.
Charles falou... E as cenas do drama intenso que aqui transcrevo se
moveram à minha visão sob sua palavra, entre tonalidades azuis e rosa,
variadas ao indescritível, mostrando-me, entre outros acontecimentos, o
terrível massacre de protestantes do dia de São Bartolomeu, durante o
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reinado de Carlos IX, na França, massacre cujos aspectos verdadeiramente
infernais jamais poderá conceber o cérebro que os não haja presenciado!
Como, porém, poderia Charles ter criado tais cenas com tantos e tão
estranhos detalhes, para a minha visão espiritual?...
É que, certamente, ele existiu na Terra e na França durante aquela
época... De outro modo, os Espíritos evoluídos possuem mil possibilidades
magníficas de reviverem o passado, tornando-o presente com todas as
nuanças da realidade de que se rodeou... O certo foi que, sob o ardor da sua
palavra, a tudo eu assisti e presenciei intensamente, com nitidez e
encantamento, como se estivesse presente aos fatos, por vezes possuída de
terrores, angústias e ansiedade, de outras embalada por deliciosas emoções
de enternecimento e reconforto... E hoje, quando já ele voltou novamente a
mim para guiar a minha mão e o meu lápis na transcrição do drama
entrevisto então, no estado espiritual — entrego-o, em seu nome, aos
corações que sentem dificuldades na concessão do perdão ao desafeto, aos
que sofrem e choram no aprendizado redentor, a caminho do amor a Deus
sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo...
Yvonne A. Pereira
Rio de Janeiro (RJ), 30 de outubro de 1959.
1 N.E.: Carlos IX da França, filho de Henrique II e de Catarina de Médici. Foi rei da França de 1560 a 1574.
Primeira Parte
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Os huguenotes
2N.E.: Confederados, ligados por juramento. Designação depreciativa dada pelos católicos franceses
aos protestantes, especialmente calvinistas.
3 KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo, cap. XI, it. 9.
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Otília de Louvigny
9 N.E.: Os nobres que descendessem de heróis das Cruzadas eram mais dignos de apreço e
consideração por parte da nobreza e mesmo da realeza.
10 N.E.: François I de Angoulême, ou Francisco I da França (1494–1547) foi rei da França e governou o
país até a sua morte em 1547.
11 N.E.: Henrique II de França (1519–1559) foi rei da França de 1547 até sua morte. Em seu reinado, vivia-
se na França o apogeu do Renascimento.
12 N.E.: Martinho Lutero, em alemão Martin Luther, (1483–1546) foi um sacerdote católico agostiniano e
professor de Teologia germânico que foi figura central da Reforma Protestante.
13 N.E.: Não matarás.
14 N.E.: Esse hábito, na ocasião já em franco declínio, datava da Idade Média, mas só se verificava
pelas províncias e entre os nobres mais democratas.
15 N.E.: Instrumento de corda, melodioso e delicado, muito antigo, hoje ainda usado nas pequenas
cidades e aldeias alemãs e austríacas.
16 N.E.: João Calvino (1509–1564) foi um teólogo cristão francês. Calvino teve uma influência muito
grande durante a Reforma Protestante.
17 N.E.: Lucas, 9:23 e 24; Mateus, 10:39; João, 12: 25.
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O capitão da fé
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18N.E.: Cada um dos que tomaram parte nas Cruzadas, ou seja, nas expedições militares, organizadas
nos países cristãos, na Idade Média, a fim de libertarem, do poder dos infiéis, o túmulo do Cristo.
19 N.E.: Mateus, 5:10.
20 N.E.: Mateus, 5:7.
21 N.E.: Mateus, 5:16.
22 N.E.: Mateus, 5:44.
23 N.E.: Mateus, 5:13.
24 N.E.: Mateus, 7:12.
25 N.E.: Mateus, 7:24.
26 N.E.: Mateus, 7:26.
27 N.E.: Mateus, 16:24.
28N.E.: Os oficiais e soldados implicados no Massacre de São Bartolomeu traziam como distintivo
uma grande cruz branca aplicada sobre o peito.
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Pacto obsessor
29N.E.: Alguns governadores de províncias não concederam licença para o massacre de huguenotes
nas terras sob sua jurisdição.
30 N.E.: Diana de Poitiers, célebre favorita de Henrique II.
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31N.E.: Espécie de blusa interior, tecida em fios de aço ou ferro, servindo de defesa contra os ataques
de espadas e punhais, sempre possíveis na época.
32 N.E.: Famosa e terrível prisão de estado, em Paris, destruída pelo povo, a 14 de julho de 1789, no
início da chamada Revolução Francesa, e denominada Bastilha de Santo Antônio, por se achar
localizada nas proximidades da porta do mesmo nome, ou barreira, que dava ingresso à cidade.
33 Nota da médium: Depois de muita meditação e preces, convenho em conservar a descrição da
presente indumentária, tal como foi ditada do Espaço e como foi por minha vidência alcançada, em
quadros que me foram mostrados. Não obstante, é sabido que, mesmo no século XVI, o uniforme dos
alunos de Teologia católica não era bem esse, e sim sotaina comprida com uma gola virada, capa
ampla, esvoaçante, com colarinho, e um barrete quadrado sem borlas. Consultado o Espírito autor do
livro sobre o caso, insistiu para que transcrevesse conforme fora ditado o trecho, o que obedeci.
34 N.E.: Espécie de palhaço. Músico, que tocava por salário.
35N.E.: Sentença contida nas leis estatuídas por Moisés (Êxodo, 21:24), que a Doutrina Espírita
admiravelmente explica e esclarece com a exposição da lei da reencarnação.
36 N.E.: Instrumento de música, de cordas e de teclado, semelhante ao cravo, em uso do século XVI
ao século XVII, precursor do piano.
37 N.E.: Instrumento muito antigo, usado pelos menestréis, espécie de viola ou bandolim de cabo
curto e cordas.
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Eva e a serpente
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Perfídia
38 N.E.: Filhos de Henrique II e Catarina de Médici. Todos subiram ao trono e governaram a França.
Segunda Parte
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Um consórcio odioso
Ai daquele que diz: nunca perdoarei! Esse, se não for condenado pelos homens, sê-lo-
á por Deus. Com que direito reclamaria ele o perdão de suas próprias faltas, se não
perdoa as dos outros? Jesus nos ensina que a misericórdia não deve ter limites,
quando diz que cada um perdoe ao seu irmão, não sete vezes, mas setenta vezes sete
vezes.39
Estranhos projetos
Núpcias
Consequências de um baile
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40 N.E.: Jacques Clément (1567–1589) foi um monge dominicano que assassinou, no Château de Saint-Cloud, o
rei Henrique III de França, no contexto das Guerras de Religião.
41N.E.: Famoso patíbulo constituído de três andares, com várias forcas habilmente arquitetadas
como em grandes janelas, construído no século XIII e extinto em meados do século XVIII, em Paris.
42 N.E.: Durante a Renascença (séculos XV e XVI), um impulso vigoroso foi dado às Artes, às
Ciências, à Literatura etc. Avultaram então os gênios da Pintura, da Arquitetura, da Escultura, os
gravadores e eminentes poetas, e muitas conquistas do espírito humano se fizeram então. A Música,
no entanto, e mesmo o Teatro só muito mais tarde atingiram a sua etapa brilhante.
43 N.E.: Ricos fazendeiros do Brasil, durante o Segundo Império, mantinham em seus solares
companhias de teatro, não raro mandadas vir da Europa, propositadamente para determinadas
temporadas, geralmente para abrilhantar a estação do estio, quando às fazendas acorriam ilustres
convidados.
44 N.E.: Já no século V, antes da nossa era, surgiram os “teatros de pedra”, na Grécia. Na Roma
antiga igualmente se construíram vários, à imitação da Grécia. Na Europa, porém, só muito mais
tarde foram erigidos teatros confortáveis. As peças, mesmo para o público, eram representadas ao ar
livre, em pátios aproveitados e adaptados, em barracões etc. Nos palácios eram comuns os
espetáculos, conforme citamos.
45 N.E.: Personagem da obra Hamlet de William Shakespeare. É uma jovem da alta nobreza da Dinamarca,
filha de Polônio, irmã de Laertes, e noiva do príncipe Hamlet.
46 N.E.: Davi, rei de Israel, era músico e poeta, dedilhando a harpa com grande talento, segundo
informa o Velho Testamento.
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Fim de um sonho
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Se perdoardes aos homens as faltas que cometeram contra vós, também vosso Pai
celestial vos perdoará os pecados, mas, se não perdoardes aos homens quando vos
tenham ofendido, vosso Pai celestial também não vos perdoará os pecados.47
47 Marcos, 11:25 e 26
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O destino de um cavaleiro
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Almas supliciadas
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[...] De fato, essa luz é tanto mais terrível, horrorosa, quando ela o penetra
completamente e lhe devassa os pensamentos mais recônditos. Aí está uma das
circunstâncias mais rudes de tal castigo espiritual. [...]
A família espiritual
Glória ao amor!
63 N.E.: KARDEC, Allan. O livro do médiuns, cap VIII, it. 128. Ainda Allan Kardec, no volume A
gênese, capítulo XIV, “Os fluidos”, entre outras interessantes explanações sobre o assunto, vemos as
seguintes:
“Ação dos Espíritos sobre os fluidos. Criações fluídicas. Fotografia do pensamento. – Os fluidos
espirituais, que constituem um dos estados do fluido cósmico universal, são, a bem dizer, a atmosfera
dos seres espirituais; o elemento donde eles tiram os materiais sobre que operam; o meio onde
ocorrem os fenômenos especiais, perceptíveis à visão e à audição do Espírito, mas que escapam aos
sentidos carnais, impressionáveis somente à matéria tangível; o meio onde se forma a luz peculiar ao
mundo espiritual, diferente, pela causa e pelos efeitos da luz ordinária; finalmente, o veículo do
pensamento, como o ar o é do som.
Os Espíritos atuam sobre os fluidos espirituais, não manipulando-os como os homens manipulam os
gases, mas empregando o pensamento e a vontade. Para os Espíritos, o pensamento e a vontade são o
que é a mão para o homem. Pelo pensamento, eles imprimem àqueles fluidos tal ou qual direção, os
aglomeram, combinam ou dispersam, organizam com eles conjuntos que apresentam uma aparência,
uma forma, uma coloração determinadas; mudam-lhes as propriedades, como um químico muda a
dos gases ou de outros corpos, combinando-os segundo certas leis. É a grande oficina ou laboratório
da vida espiritual.” (it. 13 e 14.)
No item 3, leremos: “No estado de eterização, o fluido cósmico não é uniforme; sem deixar de ser
etéreo, sofre modificações tão variadas em gênero e mais numerosas talvez do que no estado de
matéria tangível. Essas modificações constituem fluidos distintos que, embora procedentes do mesmo
princípio, são dotados de propriedades especiais e dão lugar aos fenômenos peculiares ao mundo
invisível.
Dentro da relatividade de tudo, esses fluidos têm para os Espíritos, que também são fluídicos, uma
aparência tão material, quanto a dos objetos tangíveis para os encarnados, e são, para eles, o que são
para nós as substâncias do mundo terrestre. Eles os elaboram e combinam para produzirem
determinados efeitos, como fazem os homens com os seus materiais, ainda que por processos
diferentes.”
64 N.E.: Nem todos os massacrados durante os dias terríveis de São Bartolomeu seriam Espíritos
abnegados e heroicos que voluntariamente se deram ao martírio por amor ao Evangelho. Muitos
outros — e foram a maioria — sofreram a expiação e o resgate de perseguições que, por sua vez,
infligiram ao próximo, em épocas diferentes. A tragédia de São Bartolomeu constituiu calamidade
social que se prolongou no Além-túmulo e cujas consequências ainda hoje perduram, porque
repercutem na sociedade terrena atual, sob dolorosos resgates e reabilitação daqueles que nela
tiveram participação, e dos que, vítimas que não souberam perdoar, dos algozes de ontem se
vingaram através das reencarnações, criando climas dramáticos para suicídios, obsessões, desastres
etc., amarguras profundas e insolúveis pelas forças humanas, para cada um em particular e para as
sociedades da Terra e do Invisível. Alguns desses delinquentes, integrados hoje nas claridades da
Terceira Revelação, como reencarnados, reconstroem o que naquela época destruíram.
65 N.E.: Vide A gênese, de Allan Kardec, Cap. XIV – “Os fluidos”.
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O antigo pacto
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Entrementes, Ruth, a formosa renana, a quem o Espírito atribulado do
Capitão da Fé procurava com ansiedade na reunião espiritual em que
tomava parte, vivia ainda sua existência terrena, razão pela qual não se
poderia encontrar ali entre os seus — ainda que possuísse méritos para
tanto. Continuava ao lado do esposo, amargando, porém, presa a um leito de
dores, os derradeiros dias da sua desventurada existência. Nos primeiros
tempos após o matrimônio, lograra dias menos tormentosos, graças à
paciência e docilidade do marido, verdadeiramente fraternais. Mas, com o
decorrer do tempo, agravando-se seu singular estado de apreensões e
remorsos pelo drama que criara para o homem que, embora culpado, tanto a
havia amado, não mais conseguira um só dia de paz, convertendo-se em
legítimo inferno a vida que arrastava. Frederico repartia-se em dedicações
edificantes, pois que amava a esposa. Adepto fervoroso da Reforma, tentara
atraí-la para o culto devotado do Evangelho, certo de que daí lhe adviriam
inestimáveis benefícios para a recuperação moral. No entanto, Ruth, que
confessava haver traído o Evangelho ao se vingar de de Narbonne, negava-
se a atendê-lo, declarando não se julgar digna sequer de tocar aquele com os
olhos. Em vão Frederico requisitara para junto dela os melhores médicos do
país e tentara distraí-la com festividades e viagens. Depressa, a jovem
renana fatigou-se, declarando preferir conservar-se alheia ao mundo,
vivendo antes com as próprias recordações. Frederico era jovem e poderoso.
Conquanto se conservasse dignamente no seu posto de príncipe e de esposo,
pouco a pouco se resignou à indiferença de uma esposa que, embora
confessando amá-lo, não encobria que também muito queria à recordação
de outro homem... e, assim, sentindo o coração despedaçar-se, procurou
libertar-se das torturas das apreensões entre as alegrias e burburinhos da
sociedade...
Ruth então se contemplou frequentemente só entre as sombras do
imenso Castelo de seu generoso esposo. Um estado acentuado de
neurastenia dominou seus nervos, e durante horas e dias inteiros entregava-
se a tristezas pungentes, presa a uma janela, fitando o horizonte que
indicava a França ou sucumbindo a continuado pranto, indo e vindo pelas
salas e corredores da grande residência, descendo e subindo escadarias, até
tombar fatigada, exangue, agora pronunciando o nome de Luís de Narbonne
ternamente, a rogar-lhe perdão pela traição inominável; depois, bradando
por sua mãe e seu inesquecível Carlos, suplicando socorro contra o espectro
de Otília de Louvigny, que a torturava, afirmando-lhe que ela própria, Ruth,
não cumprira o juramento outrora prestado, pois Luís, que fora preso,
encontrava-se agora em liberdade, transitando pelas ruas de Paris e até pelos
campos de La-Chapelle.
O fato era, porém, que, realmente, o Espírito odioso Otília, detido em
sua pecaminosa inferioridade de obsessor de Luís, voltava-se agora contra a
própria Ruth, com maior ascendência do que nunca, porquanto, deparando
com o Espírito já liberto do infeliz conde de Narbonne, e não possuindo
clareza de raciocínio para compreender que o desgraçado sucumbira na
prisão, libertando-se desta, graças à morte do próprio corpo carnal,
supunha-o evadido, pois sua amiga de infância, por ele certamente se
apaixonando, ludibriara-a, favorecendo-lhe a fuga e, assim, deixando de
cumprir o juramento prestado sobre as páginas da Bíblia, de desgraçá-lo
para vingar a morte de Carlos Filipe. Operava-se então o gravoso
enredamento psíquico, assaz comum em Além-túmulo entre cúmplices de
um mesmo crime: enraivecida contra a infeliz jovem e plenamente com esta
identificada pelos sentimentos bastardos dos quais resultara o pacto
demoníaco — elo de trevas que as atava ao âmbito de vibrações análogas
—, voltava-se para Ruth, exercendo possessão mental definitiva, como
antes exercera a sugestão. Era a obsessão formal, irremediável, tão comum
em todos os tempos entre aqueles que se desviam do cumprimento das leis
do dever! E isto seria para a desventurada Ruth Carolina o resultado justo
do sacrílego desrespeito às normas evangélicas que, como adepta da
Reforma, não poderia desconhecer!
Frequentemente Frederico ou dama Blandina, compreendendo-a
excitada, presa de angustiosas depressões, estado tão comum às criaturas
que se deixam obsidiar pelos Espíritos inferiores, convidavam-na à prece,
instando para que acedesse em compartilhar do culto diário, como de uso
entre os reformados. Porém, a resposta fria, desoladora como o próprio
drama que entenebrecera a sua vida, anulava os bons propósitos daqueles
amigos que seriam como guias compassivos que lhe apontassem o único
recurso possível para remediar tantos infortúnios:
— Não posso, não posso! Vivo submersa em trevas! Não sou digna das
luzes do Evangelho... Sobre ele tripudiei, desobedecendo aos seus
mandamentos... Sou renegada... irremediavelmente perdida...
— Ruth, minha pobre amiga — insistia Frederico angustiado, mas
convicto —, o Senhor veio a este mundo por amor aos pecadores...
Arrepende-te do teu crime... Ora em segredo a nosso Pai e Criador, rogando
a sua complacência... Pratica obras meritórias de amor ao bem... e verás que
bálsamos celestes aplacarão as agitações da tua consciência...
Todavia, a resposta tornava, na sua isocronia irritante, intransigente e
gelada como a própria desolação que a aniquilara:
— Não posso, não posso! Não há perdão para mim nas leis do Eterno!
Nessa infernal disposição, sem haver logrado um único dia de
verdadeira felicidade e tornando infelizes quantos a rodeavam, Ruth
vencera doze longos anos! Tentara obter notícias de Luís de Narbonne, na
esperança de que seriam exatas as exprobrações do fantasma de Otília, que
a acusava e perseguia por julgá-la infiel, favorecendo a fuga daquele. Para
tanto, convencera o marido a enviar um agente secreto a Paris, a fim de
investigar o paradeiro do infeliz Capitão da Fé. Durante o tempo de espera,
sentiu-se reanimar, na expectativa de que seria provável que este, possuindo
tantas relações entre a nobreza, lograsse escapar à armadilha que ela e
Catarina haviam preparado, o que a eximiria dos remorsos que a
vergastavam. Mas, escoados que foram três meses de angustiosa
expectativa, retornara o serviçal, asseverando que, a despeito dos esforços
empreendidos, somente conseguira obter a versão de que o conde
desaparecera inexplicavelmente da noite para o dia, sem que jamais se
soubesse do seu paradeiro... constando, porém, que a Rainha-mãe o teria
mantido prisioneiro, em alguma masmorra secreta...
Então recaiu ela nas fráguas consumidoras do seu inferno, enquanto,
por sua vez, Otília, revoltada, a torturava, pedindo-lhe contas do inimigo a
quem quisera desgraçar, ao qual acabara de perder de vista...
Agora, gravemente enferma, sucumbida sob a devastação de áspera
doença de peito, era esperado a todo momento o seu desenlace. Bondosos
amigos por ela velavam, fiéis à consideração pelo respeitável titular que lhe
dera o nome, enquanto este, esposo dedicado até o fim, e apoiado em
generosa conduta evangélica, lia e relia à cabeceira da agonizante
consoladoras passagens bíblicas, como desejando criar, para a infeliz
descendente dos nobres de La-Chapelle, a possibilidade de apaziguamento
consciencial para a hora solene do seu trespasse.
Havia já algumas horas que a formosa Ruth Carolina entrara em
agonia. De pé, diante do leito, bendizendo a Deus por haver permitido
cessassem os cruciantes sofrimentos daquela linda jovem, que se muito
errara também muito padecera e expiara, Frederico de G. enxugava
discretas lágrimas, acompanhado de parentes e amigos. Em dado momento,
a agonizante abriu desmesuradamente os olhos, como se a vida desejasse
retornar ao já enfraquecido organismo. O deslumbramento de consoladora
surpresa como que transfigurou suas faces já atingidas pela maceração da
morte... e um doce sorriso aflorou naqueles lábios que desde muitos anos
haviam esquecido o contato das alegrias do mundo. Ela soergueu a pobre
cabeça, num gesto imprevisto, e estendeu os braços para o vácuo,
exclamando debilmente, causando assombro entre os presentes:
— Minha mãe! Meu pai! Luís de Narbonne! Ó, Luís! Até que enfim,
viestes todos ao meu encontro!...
Caiu desfalecida sobre as almofadas... e naquela mesma noite
Frederico de G. lhe cerrou os olhos, piedosamente...
Conclusão
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A magna carta
O homem sofre sempre a consequência de suas faltas; não há uma só infração à Lei
de Deus que fique sem a correspondente punição.
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FIM
Coordenação Editorial:
Geraldo Campetti Sobrinho
Produção Editorial:
Rosiane Dias Rodrigues
Revisão:
Elizabete de Jesus Moreira
Neryanne Paiva
Diagramação:
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Foto de Capa:
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Normalização Técnica:
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Diego Henrique Oliveira Santos