Hip - Hop 2
Hip - Hop 2
Hip - Hop 2
criavam outros dialetos para se comunica- de seus povos, peregrinando pelas aldeias,
rem entre si, sem que os proprietários de levando notícias e memórias, quer faladas,
escravos pudessem compreendê-los e fla- quer cantadas, e as influências desta figura
grá-los em suas atividades, com vistas às ancestral podem ser percebidas em todas as
possibilidades de resistência. Trata-se do formas culturais e musicais de origem afri-
creole, falado ainda hoje por afrodescen- cana, que por seu turno têm potencial de
dentes e em diversos países. agregar audiências, simpatizantes e formar
Quanto à alfabetização, é importante fri- seguidores. (2004, p. 131)
sar que os norte-africanos já seriam letra-
dos e de tradição islâmica; portanto, liam A partir da condição de cativeiro, movi-
o Alcorão. Ainda, na África, arqueólogos mentos de resistência e lutas por liberta-
encontraram traços de uma civilização ção sempre pautaram o quotidiano desses
mais antiga, os adrinka, na qual já existia filhos da África, que concomitantemente,
uma escrita icônica chamada sankofa, tão conforme o mencionado, desde que, arran-
importante quanto a egípcia. Em confor- cados de suas terras, foram disseminando
midade com Larkin (1994), trata-se de ide- as suas culturas, foram também influen-
ogramas de uma escrita antiga que torna ciando, por assim dizer, as culturas locais
evidente ter surgido na África a prática da e sendo influenciados por elas com a inter-
escrita, apesar de tal fato nunca ter sido secção ocasionada pela travessia atlântica.
mencionado, a não ser nas últimas déca- Os movimentos abolicionistas foram se
das, ao mesmo tempo que a ciência passou avolumando e tiveram desdobramentos
a admitir que o homem original tenha sur- culturais, sociais, políticos, econômicos
gido na África, assim como as sociabilida- e revolucionários diferentes em cada um
des e interações humanas. dos países escravistas. É o caso do Haiti,
Conforme afirma Lindolfo, onde se presenciou uma revolução negra
vitoriosa contra o jugo europeu. Nos Esta-
alguns tornavam-se analfabetos apenas nas dos Unidos, ocorreu a Guerra de Secessão,
línguas dos países para os quais eram con- na qual o norte desenvolvido enfrentou o
duzidos e, como lhes era negada a alfabeti- sul, que era ainda rural, para lograr a extin-
zação, retomavam a tradição oral, existente ção do sistema de produção escravista. Em
mesmo nas culturas letradas, como a árabe. outros espaços, a libertação veio paulati-
Entretanto, aqui não se originou apenas namente, sendo conquistada com lutas,
em virtude da ausência de cultura letrada, recuos e avanços.
mas principalmente do hábito de reunir o O sonho da abolição da escravatura foi
grupo em torno do narrador, como modo pouco a pouco se tornando realidade nas
de divertir e apreciar a habilidade de con- Américas, ainda que o Brasil tenha insistido
tar histórias. O narrar, em muitas culturas,
permanece por meio da tradição dos griots,
responsáveis por narrar a história e a cultura
em mantê-la, até ser o último país a assumi- Ou seja, em vez de integrar o negro na
la, em 13 maio de 1888, com a assinatura da sociedade, continuou-se a discriminá-lo
Lei Áurea, mas também com protagonismo étnica, racial, social, econômica e cultu-
imprescindível dos quilombos e de Zumbi ralmente ao longo das décadas posteriores,
dos Palmares, que é cultuado, atualmente, até a contemporaneidade.
como um grande herói da causa afro-brasi- No Brasil, recém-saído da condição de
leira pela libertação da escravatura. força de trabalho do sistema de produção
A escravidão trouxe como saldo para as escravista, o negro não teve a oportunidade
Américas a paisagem social, econômica e de, em pé de igualdade com o branco imi-
cultural transformada sobremaneira pela grante, integrar-se no sistema de produção
presença, trabalho e crescente participa- assalariado que se instalava. O contingente
ção e resistência cultural do negro, e muito explorado no sistema escravista foi, a priori,
embora os preconceitos, historicamente, excluído e julgado incompetente para as
insistam em perdurar, em contrapartida vagas de trabalho assalariado, enquanto as
há resistência quotidiana. vagas disponíveis eram ocupadas por imi-
grantes. Como torna evidente o professor
Clóvis Moura (1988), o negro foi integrado
2. Interações dos irmãos de forma marginal, isto é, empurrado para
nas metrópoles os piores setores da economia, em que a
extração de mais-valia se explicitava de
Com base no conceito de que nada é mais forma mais exacerbada. Este pensador nos
concreto do que a História, e referindo- coloca, ainda, diante da relação intrínseca
nos aos Estados Unidos e ao Brasil como que existe entre racismo e capitalismo. No
exemplos para este item, por meio de emblemático Santos (2001), no Brasil, o
uma análise de história comparativa, tem- negro vive um “Eterno 14 de maio”.
se como evidente que tanto a Guerra de Essa situação de subalternidade acabou
Secessão3 nos Estados Unidos quanto as por constituir, nesses países, uma questão
leis que restringiram a escravidão local – que recebeu até então diversas formas de
Sexagenários, Ventre Livre e Lei Áurea de tratamento. No Brasil, mesmo depois dos
1888 – no Brasil, a proibição do tráfico de emancipacionistas, imigrantistas e aboli-
negros africanos imposta pela Inglaterra cionistas, insistia-se numa superioridade
a Portugal e a abolição da escravatura em da raça branca sobre a negra, como enfa-
colônias inglesas no Caribe, em 1838, não tiza Oliveira Viana em seus escritos (por
lograram garantir a integração do negro volta de 1920 e 1930). Contrapondo-se a
em nível satisfatório à vida social desses essa teoria, porém não com tanta veemên-
países. cia, os estudos de Gilberto Freyre (1961)
apontavam que a solução para as desigual-
dades entre brancos e negros seria o amal-
gamento cultural e racial da sociedade para
a eliminação do racismo, o que serviu de para corresponder aos novos padrões e ideais
base para a posterior ideologia da democra- de homem, criados pelo advento do trabalho
cia racial,4 por um lado, e para a relativi- livre, do regime republicano e do capita-
zação do racialismo científico,5 por outro.6 lismo. Em certas situações histórico-sociais,
Somente na década de 1950 é que come- como parece suceder com a cidade de São
çou a surgir a concepção baseada na teoria Paulo na época considerada, essa responsa-
de classes sociais desenvolvida por Flores- bilidade tornou-se ainda mais penosa e difí-
tan Fernandes e Octavio Ianni. Esses cien- cil, dadas as possibilidades que poderiam ser
tistas trazem à luz o fato de que a questão realmente aproveitadas em sentido constru-
do negro no contexto dessa sociedade pro- tivo pelo negro. (Fernandes, 1978, p. 20)
vém da exploração e dominação entre gru-
pos sociais, ou seja, a constatação de uma Gozando desse status extremamente
desigualdade fundada no preconceito racial. diferenciado que lhe fora reservado e estra-
E, conforme visto, apesar de a abolição da tegicamente organizado, acompanhado em
escravatura alterar o modo de produção para seu quotidiano pelo senso comum gerado,
mão de obra assalariada, ocorreu que, com de modo mais específico, pelas teorias que
receio de que o Brasil pudesse se tornar um justificam a escravidão, o negro no Brasil
país negro, as autoridades optaram por abrir seguiu uma trajetória de exploração muito
as fronteiras para imigrações europeias. superior à imposta pelo sistema de produ-
Florestan Fernandes argumenta que, ção capitalista. Não tinha a possibilidade
na passagem do sistema escravista para a de vender essa força de trabalho barata
industrialização, os negros, abandonados à nem qualquer perspectiva de vida e mobi-
própria sorte, foram considerados inaptos e lidade social.
descartados, sem reparações, enquanto os Nas metrópoles em que a presença
postos de trabalho assalariado utilizavam, negra é marcante, a maioria deles per-
cada vez mais a mão de obra de imigran- manece no limite das condições de vida
tes europeus. precária. Embora o processo estaduni-
dense de mobilidade social para negros
Como não se manifestou nenhuma impul- tenha se apresentado menos lento do que
são coletiva que induzisse os brancos a dis- outros, basta ver como ainda hoje se vive
cernir a necessidade, a legitimidade e a no Bronx, em Nova Iorque; nos bairros de
urgência de reparações sociais para proteger lata de Kingston, na Jamaica; ou nas peri-
o negro (como pessoa e como grupo) nessa ferias paulistanas. O negro continua a viver
fase de transição, viver na cidade pressupu- em habitações precárias; em todas as situa-
nha, para ele, condenar-se a uma existência ções, foi empurrado para as periferias do
ambígua e marginal. Em suma, a sociedade processo produtivo e levado a ir ocupando
brasileira largou o negro ao seu próprio des-
tino, deitando sobre seus ombros a responsa-
bilidade de reeducar-se e de transformar-se
as regiões mais afastadas das metrópoles. Foi somente a partir da alteração da Lei de
As gerações posteriores desse contingente Diretrizes e Bases, 10.639, em 2003, que se
sobrevivem a duras penas, entregues a um tornou obrigatório o ensino de história e
quotidiano de miséria, discriminação e cultura africana e afro-brasileira em todas
exploração até a contemporaneidade. as escolas de ensino fundamental e médio,
Com efeito, a inserção do negro nas com vistas ao reconhecimento das contri-
sociedades ocidentais se deu sempre de buições das etnias para a formação cultural
forma a lhe garantir um caráter de subal- da sociedade brasileira e da chamada raça
ternidade socioeconômica, confirmando a brasilis. A partir de então, os educandos têm
discriminação racial como um dos aspectos a oportunidade de acesso à História que não
fundamentais do sistema capitalista de pro- foi contada e que nos conduziu ao presente
dução. Mas, em contrapartida, o decorrer momento da questão racial, cabendo à obra
dos anos e a resistência cultural às situações História geral da África, mencionada ante-
estabelecidas foram dando conta de trans- riormente, editada por Joseph Ki-Zerbo,
formações nas relações sociais dos negros uma substanciosa parcela das informações
nos diversos espaços do mundo para os necessárias para o intento.
quais foram levados. Isso porque nunca
deixaram de resistir por meio de sua cul-
tura, que, posteriormente, veio a se tornar 3. Emancipações por minuto,
traço marcante nas grandes metrópoles do os manos e as tribos urbanas
mundo, chegando em alguns países, como
no Brasil, a se configurar em traço de iden- Nesta panorâmica que nos conduz ao
tidade nacional. breve, criativo e singular século XX, para
Isto traz à luz o fato de que, embora complementar os aspectos históricos abor-
a dominação se pretendesse monolítica, dados sobre a trajetória dos irmãos e das
o negro, por sua resistência em meio às culturas negras pelo mundo, tornam-se
transformações sociais e econômicas, aca- imprescindíveis considerações sobre afro-
bou paulatinamente, também mediante descendência, juventude, sociabilidades,
sua cultura, por lograr superação. Desse interações e, principalmente, música, dis-
modo, garantiu cada vez mais sua inser- seminação e identidades culturais urbanas
ção, ainda que desigual, por intermédio de contemporâneas, que é onde se encontram
movimentos de resgate de identidade, afir- os manos na cultura, audazes protagonis-
mação e conquista de cidadania. tas, herdeiros diretos de toda a saga descrita
No Brasil, é bastante recente o gradativo nos tópicos anteriores.
reconhecimento do papel civilizatório que o Libertando-se gradativamente das amar-
africano realizou na construção desta nação. ras, ao redor do mundo, a começar pelas
Américas, o negro vem cultivando semen-
tes das culturas musicais de matrizes afri-
canas, propiciando fusões com gêneros
Não tenha medo da energia Rosa Parks, Martin Luther King e o próprio
atômica Malcolm X. Vale lembrar que a música
Porque nenhum deles pode parar “Negro é lindo” (1971), de Jorge Ben, foi
o tempo inspirada no mais importante movimento
Até quando vão matar nossos dessa época, o Black Power, assim como
profetas “Tributo a Martin Luther King” (1967), de
Enquanto nós permanecemos de Wilson Simonal, o mesmo ocorrendo com
lado, olhando? músicas de Billie Holiday e outros.
Alguns dizem que isso faz parte
Nós temos que cumprir o Livro Negro é lindo
Você não vai me ajudar a cantar
Estas canções de liberdade? Negro é lindo
Pois, tudo que eu sempre tenho: Negro é amor
Canções de redenção Negro é amigo
Canções de redenção Negro também é
Canções de redenção Filho de Deus
Negro também é
Afinal, o movimento pan-africanista – Filho de Deus
nascido na Jamaica, entre as décadas de Eu só quero que
1920 e 1930, com a participação do jamai- Deus me ajude
cano Marcus Garvey, e que migrou para A ver meu filho
os Estados Unidos – tinha, curiosamente, Nascer e crescer
o pai de Malcolm X como um dos ativis- E ser um campeão
tas, motivo pelo qual foi assassinado pela Sem prejudicar
Ku Klux Klan. É justamente no pan-africa- Ninguém porque
nismo que se encontram as bases da men- Negro é lindo
cionada perspectiva afrocêntrica gestada Negro é amor
em meados da década de 50 nos EUA – Negro é amigo
abordagens para as quais o gênero musical Negro também é
reggae acabou por se tornar a trilha sonora. Filho de Deus
Outro momento decisivo, entre mui- Negro também é
tos, para os afrodescendentes pelo mundo, Filho Deus
foram as lutas que os negros estaduniden- Preto velho tem
ses empreenderam, em meados da década Tanta canjira
de 1950 e, principalmente, na de 1960, Que todo o povo
pelos direitos civis, nas quais se destacam De Angola
Que todo o povo
De Angola
Mandou preto velho chamar
Rico, Haiti, Venezuela e Colômbia. Tais David Byrne (que pertencia ao grupo inglês
gêneros foram trazidos pelos escravos da Talking Heads), tornou-se axé-music. Aliás,
África Austral, Angola. O calipso de Tri- axé em nagô é “poder de realização”.
nidad e Tobago era tocado em galões que, Atualmente, a axé-music se espalha
anteriormente, continham óleo combus- pelos Estados Unidos e pela Europa na voz
tível. E há ainda o mambo, a rumba, o de Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Clau-
maxixe, a salsa, o bolero, o blues, o samba, dia Leitte, Carlinhos Brown, Olodum, Ilê
assim como as várias fusões. Aiyê, Timbalada, entre outros artistas e
O blues, oriundo dos lamentos nas grupos que exportam alegria de Carnaval
colheitas de algodão, em fusão com a e contam com muita receptividade. Este
música tradicional jamaicana originou o gênero tem o seu clímax no Carnaval da
reggae. Já o jazz, também derivado do blues, Bahia, que agrega multidões de muitos
originou o rock and roll, que se difundiu estados do Brasil e de diversos países.
pelo planeta. E o jazz se junta ao samba, Há também o funk carioca que, no iní-
que por sua vez proveio dos toques de can- cio, descrevia a realidade das comunidades
domblé dos terreiros de culto, das lavouras do Rio de Janeiro e chegou a ser proibido.
de cana e café do Brasil, originando a bossa No entanto, sobreviveu sob o sugestivo
nova, que se tornou mundialmente conhe- codinome de funk proibidão, comerciali-
cida, transformando sobremaneira a histó- zado clandestinamente nas barracas de CDs
ria da música, entre outras fusões, criações da zona sul do Rio, e hoje, com seu tom
e recriações da música popular brasileira. satírico, altamente sexualizado e voltado
Com efeito, os gêneros musicais produzi- ao luxo, se tornou um importante gênero
dos no Brasil têm logrado respeito nas metró- da música brasileira, movimentando mui-
poles do mundo. O samba, nascido com tos dividendos.
conteúdo realista e de reflexão social, foi A música caipira, que outrora fora discri-
proibido na década de 1920, criminalizado minada nas grandes metrópoles brasileiras,
pelo código penal de então. Hoje, se tornou originou a música sertaneja universitária,
distintivo de identidade nacional e tem sua detentora de um imenso mercado, notada-
apoteose em forma de enredo no Carnaval mente cada vez mais juvenil.
de São Paulo e no do Rio de Janeiro, consi- Embora com menor expressão, há tam-
derado o maior espetáculo da Terra. bém o forró, que se transformou em forró
O samba-reggae ijexá era a marginal universitário. E a música rap,7 enquanto
fusão do samba com o reggae jamaicano uma das formas de expressão do movi-
que teve expressão nos blocos afros Ilê Aiyê mento hip hop,8 tornou-se um capítulo à
e Olodum, e por meio de Margareth Mene- parte, por singularidades que engendra.
zes, artista posteriormente descoberta por Todos esses gêneros musicais, de origem
afro-brasileira, após um período de mar-
ginalização e/ou proibição, acabaram
sendo abordados pela chamada indústria
cultural, que, em sua inexorável ânsia por tratar-se, mesmo, de movimento social, de
dividendos, imprimiu a sua capacidade movimento cultural de juventude ou de
de domesticação de conteúdos, visando ambos? Ou poderiam, ainda, alargando
à maior aceitação pelo público e, conse- o conceito de Michel Maffesoli (1988),
quentemente, um significativo alcance do serem denominados de Tribos Urbanas
“produto”. Blacks? Ou apenas, como neste texto estou
Assim foi com o samba, que se tornou denominando, manos na cultura?
pagode; o samba-reggae ijexá, que se trans-
formou em axé-music; a música caipira,
que se modificou para sertanejo univer- 4. Manos blacks, multicores, cultura das
sitário; o forró, agora forro universitário; periferias das metrópoles e certas
o funk carioca, com as versões charme e incógnitas
ostentação, entre outros. Conforme já men-
cionado, o samba era outrora proibido e Em conformidade com Michel Maffesoli,
hoje é traço de identidade nacional. Com na obra Les Temps de Tribus (1988), as tri-
o rap, por sua vez, que já foi discriminado, bos urbanas se constituem em microgru-
a situação é um tanto diferente e tem origi- pos de sociabilidades que se originam em
nado um fenômeno ao qual primamos por meio à massificação e ao individualismo
nos referir: este gênero musical, que tem que marcam as sociedades pós-modernas.
sido produzido e vivenciado pelos manos Na sua perspectiva, à medida que o sistema
na cultura das periferias das metrópoles de produção capitalista produz a massifica-
pelo mundo, no Brasil e na França, tem ção, e esta origina ambientes de solidão em
resistido às investidas da indústria cultural meio a multidões, a juventude tem cami-
e garantido grande parte de seu conteúdo nhado na direção contrária, ao se orga-
contestatório.9 Na atualidade, os jovens nizar nos mencionados microgrupos de
afrodescendentes das metrópoles do globo sociabilidades, pautados por ligações esté-
têm se agrupado em torno de uma cultura ticas, éticas e pessoais, compartilhamento
vivenciada nas periferias dessas metrópoles, de ideologias e sentimentos quanto a um
formando um movimento social que vem assunto, com regras e rituais a serem segui-
capitaneando uma releitura das histórias, dos local e globalmente pelos diversos agru-
culturas e do quotidiano dos afrodescen- pamentos juvenis.
dentes no planeta, influindo sobremaneira Esse primoroso trabalho de Maffesoli
nos rumos dessas culturas. instiga a observar, com severa acuidade,
A cultura hip hop, que carrega em seu a juventude na paisagem urbana mun-
bojo enorme parcela dos aspectos cultu- dial, notando não somente suas diferen-
rais, políticos e sociais a que o presente ças e semelhanças, mas também seus
texto vem se referindo até aqui, tem agre-
gado mais e mais jovens de diferentes
etnias. Aproveitamos para indagar: poderia
Louis Farrakhan13 não tiveram tanta circu- de informações sobre o histórico das lutas
lação quanto os hits desses gêneros musi- pelos direitos que os negros empreendem
cais contestadores. O artista, parece-nos, pelo mundo, de estratégias de sobrevivên-
ocupa posição destacada em relação às cia e enfrentamento ao controle social que
questões sociais porque veicula mensa- lhes é imposto, resultando em produções
gens que passam simultaneamente pela culturais que, por isso, se configuram em
razão e pela emoção, de tal modo que as veículos de identidades pan-africanistas
produções artísticas que propagam mensa- e afrocentradas que lhes permitem tanto
gens políticas costumam ser, muitas vezes, ampliar o debate no tecido social como
mais rapidamente compreendidas e incor- ainda alcançar respeito, atenção e divul-
poradas pelos grupos aos quais se dirigem gação de suas prerrogativas nas metrópoles.
do que os discursos intelectuais a respeito Ainda que surgidos por volta dos anos
dos mesmos temas. de 1970, os manos na cultura, como objeto
A equação que origina estes artífices é de reflexão, exigem esta perspectiva histó-
a seguinte: a cultura desde sempre fun- rica de alguns séculos que foi abordada.
cionou como ferramenta de resistência Conforme já referido, se por um lado os
às adversidades às quais os negros foram problemas sociais dos negros nas socie-
acometidos desde o sequestro em África e dades de hoje tiveram origem no regime
a diáspora. Também a juventude, histori- escravocrata – que, mesmo após sua extin-
camente, se apresenta como mola propul- ção, desencadeou um modo de discrimi-
sora de transformações sociais, observáveis nação racial e manteve o negro oprimido
nos movimentos culturais de juventude – em favor da maior solidez do status quo
rock, beat, hippie, Maio de 68, Primavera das sociedades patriarcais e de classes – os
de Praga, punk e hip hop –, que invariavel- manos na cultura carregam em si o ethos
mente trazem para a ordem do dia discus- da figura ancestral do griot.
sões até então desprezadas. É desta feita Como griots do terceiro milênio, repre-
que cultura negra, jovem, afro-originária sentam a metáfora do sobrepujamento da
e contestação nos conduzem a este ponto. condição de subcidadão que lhes é imposta
Atualmente, conforme insistente- e vêm logrando, paulatinamente, um maior
mente referido, jovens de todas as partes exercício de influência no mainstream, em
do mundo têm seu quotidiano perpassado que os anteriormente mencionados Zumbi,
pelo crivo da cultura de matrizes africanas. Malcolm X e outros líderes são resgata-
Uns menos, outros mais. Já no caso dos dos como heróis da causa. Mas isto não se
manos na cultura, os hip hoppers, indepen- aprende nas escolas formais, e sim nas pos-
dentemente da etnia, configuram-se num ses, onde esses jovens têm se informado e
caso à parte. se formado para prosseguir no seu intento
A ancoragem que, parece-nos, muitos
têm a uma “África mítica” serve-lhes de
plataforma para as trocas de experiências,
7 Gênero musical que se configura em ritmo e poe- que, em determinados momentos, desavisadamente
sia sobre uma base musical, cujas letras são decla- aflora, surpreendendo o próprio indivíduo que o pra-
madas dentro de compassos musicais e geralmente tica, que de imediato tenta corrigir. Para citar um
têm conteúdos contestatórios ou denunciadores das exemplo recente, entre inúmeros: o supermercado
condições sociais. Pão de Açúcar, de São Paulo, colocou como propa-
8 A cultura hip hop compõe-se basicamente de três vér- ganda de sua panificação a escultura, em tamanho
tices: o rap (música), o break (dança) e o grafite (dese- natural, de um menino negro carregando um enorme
nhos feitos pelos muros e paredes das metrópoles), cesto de pão e com grilhões nos tornozelos. Assim
mas também se apresenta em outros campos – Spike que foram notificados, imediatamente o retiraram. E
Lee, cineasta afro-americano, afirma que ele não seria “inocente” com aspas no sentido atribuído por Pais
quem é se não fosse a cultura hip hop, ou seja, consi- (1999), quando o autor explica a utilização de aspas
dera sua obra cinematográfica como sendo hip hop. como um recurso metodológico para se referir “não
Há também a prática de DJ como vértice. ao que se lê, mas ao que permite a leitura” (pp. 14-15).
9 Nos Estados Unidos, quando do surgimento do rap 11 Atualmente a Technics, empresa de produtos eletrô-
com o grupo Public Enemy, entre outros, afirma-se nicos, tem desenvolvido equipamentos específicos
que foi formulado um dossiê pela CIA ou pelo FBI para DJs.
intitulado O rap e a segurança nacional. Imagina-se 12 Diante de uma escola que não é cidadã, alguns des-
que, dessa feita, a indústria cultural teria se encar- ses jovens acabam por se organizar em espaços físicos
regado da amenização dos conteúdos deste gênero que denominam de posses, onde trocam não somente
musical nos EUA. formações como também informações sobre músicas,
10 O racismo “inocente” trata do racismo inconsciente, ícones, entre outros.
que subsiste como semente não germinada, diante 13 São líderes que representam a luta dos negros pelos
da norma do preconceito de ser preconceituoso, e direitos humanos no mundo.
Hip hoppers: los hermanos en la cultura Hip hoppers: “bros” (brothers) in culture
Lazos tribales destruidos por el secuestro, la Tribal bonds were destroyed by kidnapping,
incursión oceánica obligatoria y el trabajo esclavo compulsory oceanic raid, and forced, slave labor.
bajo coerción. Nuevas hermandades de resistencia New brotherhoods of resistance and fight are formed
y lucha se forman cotidianamente, a partir, every day especially from common cultural traces
principalmente, de los rasgos culturales comunes and ideals of freedom, equality, fraternity, and
y de los ideales de libertad, igualdad, fraternidad happiness; it also happens for the children of Africa.
y felicidad, también para los hijos de África. These ideals have spread and reinvented themselves
Ideas que se difunden y se reinventan de manera virally across the planet, in reinterpretations and
viral por el planeta, en nuevas interpretaciones e interactions with other cultures and ethnicities,
interacciones con otras culturas y etnias, desde los since the first transatlantic dialogues. Little by little,
primeros diálogos transatlánticos hasta la actualidad. world social and cultural scenery has been changed,
Transformando, paulatinamente, el paisaje becoming less unequal and freer, friendlier, happier,
sociocultural mundial, tornándolo menos desigual, more conscious, more colourful, and more musical,
más libre, consistente, fraterno, colorido, musical y despite the obstacles they face.
alegre, a pesar de los obstáculos que se les presentan. Keywords: diaspora; resistance; identities; suburban
Palabras clave: diáspora; resistencia; identidades; ghetto youth (youth in the outlying ghettos of a
juventud de las periferias de las metrópolis; metropolis); cultural productions; sociabilities;
producciones culturales; sociabilidades; genocidio. genocide.
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