Crise Economica - Tema Transversal....
Crise Economica - Tema Transversal....
Crise Economica - Tema Transversal....
Volvidos 10 anos desde a criação do IESE e 9 anos após a publicação do primeiro boletim
IDeIAS, a quantidade e qualidade dos boletins publicados permite organizálos num formato
que possibilite aos leitores fazer uma leitura estruturada. Assim, surgiu a presente colectânea,
que não só apresenta a quase totalidade dos boletins produzidos até à data, mas também os
sistematiza em temas específicos, oferecendo ao leitor não apenas um conjunto de boletins,
mas também o enquadramento dos mesmos nos diferentes assuntos de debate.
A produção desta colectânea surge num momento em que Moçambique enfrenta desafios
profundos a diferentes níveis. Vinte e cinco anos depois de um acordo de paz que aparentava
ser bem sucedido, assistiu-se a um novo conflito armado entre a Renamo e a Frelimo. Por
outro lado, 18 anos depois de beneficiar de uma das principais iniciativas de perdão de
dívida, o país está de novo numa situação de insustentabilidade financeira. Depois de, durante
anos, ter sido apontado como uma história de sucesso pós-conflito armado, um exemplo em
termos de desempenho económico e de estabilidade política, o país encontra-se hoje numa
situação de crise na sua relação com as instituições de Bretton Woods e os doadores, que há
longos anos vinham contribuindo para o orçamento do Estado. A imagem de país de sucesso,
que tinha já começado a ser posta em causa pelo reatamento do conflito armado entre as
forças governamentais e a Renamo, em 2013, deu lugar a uma imagem de falta de
transparência na governação, com efeitos negativos nas perspectivas de desenvolvimento e de
redução da pobreza.
A Natureza da Crise Económica em Moçambique
INTRODUÇÃO À PROBLEMÁTICA DA DÍVIDA PÚBLICA: CONTEXTUALIZAÇÃO
E QUESTÕES IMEDIATAS
A crise económica, que se começou a revelar brutalmente com a explosão (crise de dívida) e
implosão (retirada do investimento, desaceleração do crescimento económico e aumento do
desemprego) da bolha económica (crescimento económico com base especulativa),
combinada com a “descoberta” da dívida pública ilegal, contraída ou avalizada pelo governo
moçambicano, entre 2013 e 2014, despoletou um amplo debate público em contraste com o
silêncio que, até então, dominava o governo, o parlamento, as organizações internacionais e a
maior parte dos analistas nacionais. A crença que a negação dos factos e o “assassinato do
carácter” dos “críticos” era a “solução” para os problemas foi substituída por uma azáfama de
desculpas, justificações, acusações, incredulidade, vergonha, desânimo, medidas punitivas
por parte dos doadores, e tentativas de reafirmar a validade das opções económicas que
conduziram à situação actual. Com esta série de seis IDeIAS sobre a dívida pública, que este
inicia, vamos tentar esclarecer (tanto quanto os dados disponíveis o permitam) e situar a
problemática da dívida pública no contexto mais geral da crítica da economia política de
Moçambique. Este IDeIAS é, simultaneamente, uma introdução e uma conclusão a esta
análise, contextualizando o que será discutido em mais detalhe nos IDeIAS que se seguem e
discutindo questões imediatas que a crise actual levanta.
Segundo dados do Governo de Moçambique, o stock da dívida pública total, tanto quanto já
foi descoberto e divulgado, é de cerca de 12 mil milhões de USD, ou, aproximadamente 80%
do Produto Interno Bruto (PIB) do País. Deste montante, cerca de 2 mil milhões de USD são
de dívida pública doméstica. Dos restantes 10 mil milhões de USD, dívida pública externa,
cerca de metade é dívida comercial, sendo a outra metade dívida oficial a governos ou
instituições multilaterais (dívida concessional, com taxas de juro mais baixas e prazos de
reembolso mais amplos). Entre 2006 e 2015, o stock de dívida quadruplicou, expandindo a
uma taxa média anual de 15%, duas vezes maior que a do crescimento do PIB. Na segunda
metade dessa década, a dívida pública cresceu mais depressa do que na primeira, devido a
vários factores fundamentais: (i) a voracidade das elites económicas nacionais por capital, de
que as dívidas ilegais (explicadas a seguir) e o investimento imobiliário são parte; (ii) a
aceleração do investimento na redução de custos e riscos para o grande capital do complexo
mineral-energético, em especial nas infraestruturas gigantes e especializadas, segurança e
serviços vários e avalização de empréstimos privados; (iii) o afunilamento da economia, cada
vez mais centrada na produção de produtos primários e semi-primários para exportação e
dependente de
A chamada “dívida ilegal”, que é parte dos valores do stock acima mencionados, inclui a
avalização, pelo Estado, da dívida contraída pelas empresas EMATUM (850 milhões de
USD), Proindicus (622 milhões de USD) e Mozambique Asset Management, MAM (535
milhões de USD), e pouco mais de 221 milhões de USD para ordem e segurança, totalizando
cerca de 2,2 mil milhões de USD. Este montante é equivalente a 15% do PIB, 19% do stock
de dívida pública total e cerca de 45% do stock de dívida pública externa comercial. Esta
dívida é ilegal por, nos quatro casos, não ter sido submetida à Assembleia da República para
avaliação, aprovação e monitoria, conforme manda o artigo 179 da Constituição da
República, e, nos últimos três casos, por os empréstimos e o seu serviço não estarem
registados no orçamento do Estado, como manda a lei.
Dada a sua ilegalidade, o Estado e os cidadãos não são responsáveis por esta dívida, pois ela
cai na categoria de “odious debt” (dívida assumida ilegalmente e não em benefício do País),
pelo que responsabilizados devem ser o governo que a assumiu e os seus legítimos
representantes na época (2005-2014). A sociedade e o Estado podem exigir que o Conselho
Constitucional analise e conclua sobre a constitucionalidade da dívida e, na sequência disso,
caso se comprove a sua inconstitucionalidade, recusar assumir a dívida, desencadear os
respectivos procedimentos legais e obrigar os responsáveis a devolver os fundos.
A magnitude real da dívida é dada pelo seu stock, pelo seu peso na economia, pelas suas
condições de reembolso e pelas consequências financeiras e macroeconómicas que a dívida
pode causar. Por exemplo, quando o actual governo decidiu renegociar a dívida da
EMATUM, avalizada pelo Estado, informou o parlamento que pretendia alcançar a redução
das taxas de juro e o alargamento do período de reembolso, para reduzir o peso do seu serviço
no orçamento do Estado. A redução do serviço da dívida foi conseguida por via do adiamento
do reembolso do capital para 2023, mas à custa do aumento das taxas de juro em três pontos
percentuais. Com o reescalonamento desta dívida, o governo terá de pagar 78 milhões de
USD por ano em juros, nos próximos sete anos, e o capital em dívida numa única prestação,
em 2023, no valor de 731 milhões de USD. Antes do reescalonamento, haviam sido pagos
132 milhões de USD. Logo, este empréstimo, de 850 milhões de USD custará, ao Estado,
cerca de 1,4 mil milhões de USD excluindo os prejuízos operacionais da empresa que, só em
2015, foram de 20 milhões de USD, e os custos de mobilização e remuneração de parcerias
para viabilizar o projecto. Os custos poderão ser ainda maiores se os investidores, que
aceitaram a reestruturação da dívida, exigirem e conseguirem uma renegociação dos termos
de reestruturação, alegando que o governo e aos bancos intermediários mentiram e que a
dívida ilegal reduz as expectativas, a credibilidade e os retornos dos seus títulos de dívida.
A dívida pública doméstica, que é apenas um sexto da dívida pública total e um oitavo do
PIB, sextuplicou na última década, expandindo a uma média anual de 20%, três vezes mais
depressa que o PIB. No entanto, o serviço da dívida pública doméstica é 50% do serviço de
dívida total anual do Estado, quer porque as taxas de juro da dívida pública doméstica são
altas, quer porque metade da dívida pública externa ainda é concessional (baixo custo). A
dívida pública doméstica é essencialmente financiada pela venda de títulos de dívida no
mercado doméstico de capitais, o que contribui para formar um sistema financeiro doméstico
especulativo e pouco preocupado com a produção que não seja associada a megaprojectos,
por causa dos elevados retornos financeiros que a compra e venda de títulos de dívida
proporciona e do impacto deste negócio no encarecimento e na escassez de capital. Nos
últimos cinco anos, a compra e venda de títulos de dívida pública tornou-se no principal
negócio do sistema financeiro doméstico, tanto da banca (cerca de 30% das suas aplicações
financeiras, o que é idêntico à soma total dos empréstimos bancários à agricultura, à
indústria, ao turismo, às pescas e aos transportes e comunicações), como da bolsa de valores
(cerca de 80% das suas transacções financeiras). As tendências especulativas do sistema
financeiro doméstico, exacerbadas pela dívida pública, são determinantes para manter as
taxas de juro comerciais altas e inacessíveis às pequenas e médias empresas produtivas, para
reduzir a eficácia de políticas monetárias expansionistas, para aumentar os efeitos negativos
das políticas anti-inflacionárias, e para desestabilizar o metical.
A dívida pública foi largamente utilizada para apoiar o complexo mineralenergético, as suas
infraestruturas e sistemas de defesa e segurança, bem como para o financiamento e o
envolvimento das oligarquias nacionais emergentes no controlo e exploração das riquezas
energéticas e minerais do País, em conjunto com o grande capital multinacional. Esta foi,
apenas, uma opção de classe, e não uma necessidade imperiosa da nação, e nunca foi o único
caminho ou opção disponível e/ou possível, tendo sido escolhida por ser a que mais
rapidamente atraíria capital multinacional em larga escala para financiar a emergência de
oligarquias nacionais.
Questões imediatas
Ora, em 1992, ano em que terminou a guerra dos 16 anos, a taxa de cobertura das
importações pelas exportações, excluindo megaprojectos, era de cerca de 30%, sensivelmente
o mesmo valor que em 2014. Este problema foi identificado há década e meia e tem sido
discutido em inúmeras ocasiões. Não é novo nem atípico.
A bolha especulativa, de que começámos a falar há cinco anos, explodiu e implodiu porque a
margem para endividamento esgotou-se (conduzindo à explosão), a credibilidade da
economia caiu devido ao alto risco e a graves irregularidades na gestão da dívida e do
orçamento, e a capacidade de mobilizar recursos no sistema financeiro internacional e nas
economias emergentes reduziu drasticamente (conduzindo à implosão). As raízes da bolha
especulativa e da sua crise são estruturais e de longo prazo, pelo que os problemas estruturais
indicados pelo PM, tanto a taxa de cobertura das importações como a estrutura das
exportações, não são atípicos. Pelo contrário, são todos classicamente típicos e
representativos das dinâmicas da economia extractiva, afunilada e porosa, e têm sido
discutidos em Moçambique desde o início deste século. A solução da crise actual requer uma
análise rigorosa das tendências de longo prazo e uma boa compreensão de como essas
tendências geraram, mas também fizeram implodir e explodir, a bolha económica.
No entanto, no mesmo discurso, o PM aponta que 60% da dívida foi para construção de
infraestruturas de grande porte, associadas a megaprojectos, e um sexto da dívida são avales
do governo para dívida privada ilegalmente assumida pelo anterior executivo. Portanto, mais
de 75% da dívida foi para financiar a acumulação privada de capital e não para o consumo
dos cidadãos ou do Estado. Se há excesso de consumo, quem consome em excesso? Não é a
economia como um todo, nem os cidadãos comuns ou o Estado. São grupos sociais
específicos, as oligarquias nacionais e as corporações internacionais quem o faz, em resposta
aos padrões de produção e de distribuição da economia moçambicana. Portanto, a dívida não
resulta de consumo em excesso de todos os cidadãos e do Estado, mas da expropriação do
Estado, por via do endividamento, para financiar oligarquias nacionais e internacionais. O
volume de importações é determinado por esse padrão económico, do mesmo modo que a
volatilidade das receitas de exportação o é.
Inequalities, redistribution and the impact of unemployment: recent trends and effects of the
economic and financial crisis
Introdução
O conceito de exploração tem sido desenvolvido pela análise marxista das desigualdades de
classe e, no entender de E. O. Wrigth, significa “[…] um processo em que um grupo tem a
capacidade de se apropriar de parte da mais-valia social produzida por outro grupo” (1994:
25).
Por sua vez, a análise dos processos de fechamento é influenciada pelos contributos de M.
Weber (1989 [1922]) ou de F. Parkin (1971). Esses processos podem ser definidos como
estratégias para dominar determinados recursos, pelos quais os diversos grupos sociais
concorrem entre si, de modo a beneficiarem ao máximo os seus interesses e provocarem a
exclusão desses recursos a conjuntos mais ou menos vastos de pessoas e grupos sociais
menos favorecidos.
É nesta linha que se pode enquadrar o terceiro tipo de mecanismo, que remete para os
processos que levam a um maior ou menor nível de equidade social. John Rawls (2001
[1971]) é o autor de referência sobre as questões de equidade e justiça social. Na sua
obra Uma Teoria da Justiça, este autor desenvolve a sua análise sobre o designado princípio
da diferença, que diz respeito aos mecanismos de equidade distributiva dos “bens primários”
(rendimento, acesso à educação, saúde, liberdade, oportunidades etc.). Na sua conceção geral,
este princípio defende que os bens primários devem ser distribuídos de forma igualitária, a
não ser que a sua distribuição mais desigual implique vantagens para os mais desfavorecidos.
Nesta aceção, a distribuição justa destes bens garante aos membros menos favorecidos da
sociedade a melhoria das suas condições de existência, através de modelos institucionais de
proteção social e de redistribuição.
O nível de desigualdade económica de um país não é, por isso, uma variável social e
politicamente inócua. Um dos aspetos fundamentais para se problematizar o fenómeno das
desigualdades económicas prende-se com a análise da redistribuição do rendimento levada a
cabo pelo estado. Até que ponto o estado consegue, por via das transferências sociais, dos
impostos, e da prestação de serviços, mitigar a amplitude das desigualdades económicas
geradas no mercado de trabalho?
A pertinência analítica destas questões é reforçada tendo em conta o atual contexto de crise
económico-financeira que se vive em Portugal e em muitos países europeus. Daí que se torne
relevante perceber quais os fatores que podem contribuir para o aumento ou a persistência das
desigualdades, pressionando ainda mais a capacidade dos sistemas públicos de proteção e
redistribuição em responderem adequadamente às consequências sociais da crise. A este
respeito, considera-se que o profundo agravamento do desemprego, ocorrido nos últimos
anos, poderá estar a causar uma reconfiguração nos mecanismos de produção de
desigualdade, transformando-se numa variável estrutural que deverá ser devidamente
contemplada nas análises sociológicas.
Portugal: um país desigual e de baixos rendimentos
Estes dados vêm ao encontro das conclusões avançadas pelo Education at a Glance
2013 (OECD, 2013), relatório segundo o qual Portugal é um dos países da OCDE em que o
prémio da conclusão do ensino superior é comparativamente mais elevado. No ano de 2010, a
população residente em Portugal que concluiu o ensino superior auferia uma remuneração do
trabalho 69,7% superior à auferida por quem concluiu no máximo o ensino secundário ou
pós-secundário não superior. Em termos médios, esse valor é de 57,2% para o conjunto de
países da OCDE. Por outro lado, a penalização remuneratória de quem não foi além do 9.º
ano é também das mais expressivas: a remuneração do grupo com essa escolaridade
representa apenas 69,3% da auferida pelos trabalhadores com formação escolar intermédia
(média de 76,2% nos países da OCDE).
Apesar de a escolaridade ter uma relação positiva com o nível de rendimento e salarial, o
aumento das desigualdades económicas em Portugal nas últimas décadas deveu-se em grande
medida a um aprofundamento bastante expressivo da concentração do rendimento nos grupos
que formam o “topo do topo” da distribuição do rendimento. Muito embora a maioria dos
elementos que formam essa elite económica tenha habilitações escolares de nível superior, o
fenómeno do aumento da concentração dos rendimentos nesses grupos da população é mais
complexo e relativamente independente dessa variável. Quando se analisam apenas os
rendimentos salariais, verifica-se que os indivíduos que ocupam o percentil do topo da
distribuição tendem a inserir-se em tipos específicos de ocupação, em particular no grupo dos
diretores de empresas (Cantante, 2014). Constata-se também que grupos profissionais como
os pilotos de aviões ou os controladores de tráfego aéreo apresentam elevadas taxas de
participação nesse percentil (Cantante, 2013).
Na secção anterior demonstrou-se que o mercado de trabalho tem sido um motor de aumento
das desigualdades económicas em Portugal. Contudo, a análise das desigualdades de
rendimento familiar tem normalmente como referente económico empírico os recursos
monetários dos agregados domésticos após serem realizadas as transferências sociais para as
famílias e deduzida a quantia paga em impostos. Ou seja, o rendimento disponível. O impacto
das transferências sociais na diminuição das desigualdades será tanto maior quanto mais
eficaz e eficiente for o processo de redistribuição monetária entre os que detêm rendimentos
de mercado mais elevados e os que os detêm mais baixos. Por seu lado, o impacto dos
impostos na mitigação das desigualdades de rendimento depende não só da dimensão da
carga tributária, mas também da sua progressividade.
Tal como os autores citados, Nuno Alves (2012) conclui que o impacto das transferências
monetárias em Portugal na diminuição das desigualdades é comparativamente baixo (no
universo da UE-27). Contudo, defende que o país é um dos estados-membros da União
Europeia em que as “prestações sociais em dinheiro são mais progressivas” (ibid.: 50), isto é,
direcionadas para as populações dos quintis inferiores da distribuição do rendimento. Neste
sentido, o baixo impacto das transferências monetárias deve-se ao facto de o volume de
despesas neste tipo de prestações ser relativamente diminuto: representava, em 2009, cerca de
5,8% do rendimento base dos agregados domésticos, contra 8,7% nos países da UE-27
(id., ibid.: 51). Segundo este autor, embora estas prestações (excetuando as pensões) sejam
eficientes, no sentido em que são orientadas principalmente para os grupos mais pobres da
população, elas acabam por ter um impacto abaixo do observado nos países da União devido
à sua dimensão ser comparativamente diminuta. O contraste entre esta conclusão e a
veiculada por Joumard, Pisu e Bloch (2012) dever-se-á aos pressupostos metodológicos que
enformam a construção dos conceitos de rendimento, ou seja, aos tipos de rendimento que
são tidos em consideração na análise dos processos de redistribuição. Enquanto Nuno Alves
conceptualiza as pensões de reforma como rendimento não redistributivo, isto é, como um
recurso económico anterior à ação redistributiva do estado integrado no “rendimento base”, o
estudo dos outros autores inclui esse tipo de rendimento no processo redistributivo. A
discrepância de resultados que aparentemente decorre desta opção metodológica parece
indicar que as pensões de reforma tendem a ser pouco eficientes na redistribuição do
rendimento.
Em relação aos impactos redistributivos dos impostos e das contribuições para a Segurança
Social, Rodrigues, Figueiras e Junqueira (2012: 172) constatam que a política fiscal em
Portugal permite diminuir em 11% o valor do coeficiente de Gini. Segundo Nuno Alves
(2012), o efeito redistributivo dos impostos é mais elevado em Portugal do que na média da
UE-27, concluindo que enquanto neste país os dois decis do topo da distribuição pagam
61,2% do total dos impostos sobre os rendimentos singulares, o valor médio desse indicador
nos países da UE-27 é de 51,9%: “A elevada fração do total de impostos sobre o rendimento
paga pelos decis de rendimento mais elevados em Portugal — um dos máximos na União
Europeia — resulta essencialmente da elevada desigualdade na distribuição do rendimento
bruto em Portugal, dado que as taxas médias de imposto nos decis de rendimento mais
elevado não diferem substancialmente da média europeia” (Alves, 2012: 56).
A análise das transferências monetárias para as famílias e nos impostos diretos retrata apenas
uma parte dos efeitos redistributivos da ação do estado. É, no fundo, um olhar sobre a
redistribuição monetária dos recursos económicos da população de um dado país. Mas o
estado diminui também as desigualdades económicas através da prestação de serviços
públicos à população. Como esses serviços públicos têm um valor monetário, no sentido em
que o seu usufruto implica despesa económica, a sua prestação pelo estado significa um
acréscimo virtual de rendimento para as famílias. De acordo com um estudo da OCDE
(OECD, 2011), as prestações nas áreas da saúde, educação, habitação social e nos cuidados a
crianças e idosos significaram, no ano de 2007, um aumento médio do rendimento disponível
das famílias em Portugal de 28,6%, valor semelhante ao estimado para os países da
organização. As prestações nas áreas da saúde e da educação são as que têm um maior peso.
Em Portugal estima-se que esse efeito foi de 16% e 11%, respetivamente — acima dos
valores médios para os países da OCDE (13,9% e 11,8%). O aumento do rendimento
monetário decorrente deste tipo de prestações não assume o mesmo peso relativo ao longo da
estrutura de distribuição dos rendimentos monetários. As famílias que ocupam a base dessa
distribuição são as que mais beneficiam das prestações em espécie (não monetárias) dos
serviços públicos. Estima-se que em Portugal as prestações na área da saúde tenham
implicado um aumento do rendimento monetário do quintil da base (20% mais pobres) na
ordem dos 50%, de 28% no caso dos rendimentos dos agregados domésticos do 2.º quintil, de
20% do rendimento dos agregados que ocupam o 3.º quintil, de 14% dos que se situam no 4.º
quintil e de 7% do quintil do topo. No caso das prestações na área da educação, esse aumento
foi de 35%, 20%, 15%, 9% e 5%, respetivamente. A grandeza deste efeito é mais
pronunciada em Portugal do que nos países da OCDE, nomeadamente nos dois quintis da
base da distribuição dos rendimentos.
De acordo com as estimativas deste estudo, a inclusão do valor monetário dos serviços
públicos na análise da distribuição do rendimento tem um impacto importante na diminuição
da amplitude das desigualdades económicas. Em Portugal, o valor do coeficiente de Gini
decresce 21% (semelhante à média da OCDE) e a desigualdade entre o rendimento dos 20%
mais ricos em relação ao dos 20% mais pobres (rácio S80/S20) diminui 36% (sete pontos
percentuais acima dessa média). Apesar de este tipo de dados não ter em linha de conta as
diferenças existentes entre os países no que diz respeito ao nível de qualidade, eficácia e
eficiência na provisão dos serviços públicos, eles são sem dúvida indicadores relevantes para
a análise do papel dos estados na redistribuição dos recursos económicos e na melhoria das
condições de vida das populações. De facto, as despesas dos países da OCDE em prestações
de serviços públicos em áreas como a saúde e a educação representavam, em 2007, cerca de
13% do seu PIB — mais do que os 11% canalizados para as transferências em dinheiro para
as famílias.
Esta realidade pode ser melhor demonstrada através da análise da evolução das taxas de
emprego e da consequente destruição de postos de trabalho que tem acontecido,
principalmente, nos países do Sul. A título de exemplo, verificava-se, em 2005, uma taxa de
emprego para a população com idade entre os 15 e os 64 anos na Alemanha na ordem dos
65,5%, aumentando para 70,1% em 2008 e para 72,8% em 2012. Em sentido contrário,
Portugal, que tinha em 2005 uma taxa de emprego superior à alemã (67,3%), vê aumentar
ligeiramente a taxa até 2008 (68,0%), ano em que esta atinge o pico, vindo, posteriormente, a
decair significativamente até 2012 (61,4%). Ou seja, se tanto em 2005 como em 2008,
Portugal apresentava uma das taxas de emprego mais altas de União Europeia, entre este
último ano e 2012 assiste-se a uma redução de quase sete pontos percentuais, passando a
situar-se abaixo da média europeia (64,2%).
Desde, pelo menos, os anos de 1990 que Portugal vinha mantendo o padrão de ser um dos
estados-membros da UE com taxas de emprego mais elevadas, situação que o distinguia de
países como a Grécia e a Espanha. A título ilustrativo, em 1992 esta taxa era superior a 66%
em Portugal, enquanto na Grécia e em Espanha os valores situavam-se em cerca de 54% e
49%, respetivamente.
Até 2005 esta situação altera-se significativamente para a Espanha e a Grécia, que atingem
taxas de emprego de 63,6% e 59,6%, respetivamente, embora mantendo-se abaixo da média
da UE (tanto a 27 como a 15 países). Tal como em Portugal, os valores ainda sobem até
2008, ano a partir do qual se dá um verdadeiro recuo nesta taxa para ambos os países: em
2012 essa taxa era de 55,8% em Espanha e 50,8% na Grécia. Ou seja, decresceu cerca de oito
pontos percentuais no primeiro país e nove pontos no segundo.
O efeito da Grande Recessão, que alastrou desde os finais de 2007 por vários países do
mundo ocidental, acabou por se transmutar na Europa para a designada crise das dívidas
soberanas que se abateu principalmente sobre os países do Sul da Europa e a Irlanda, mas que
não se cingiu somente à periferia europeia, afetando, embora em menor escala, alguns países
do centro da Europa, como a França e a Bélgica, entre outros. No caso dos países
intervencionados por programas de ajustamento, a partir de 2010, ao efeito da crise veio-se a
somar um conjunto de medidas de austeridade, cujo impacto social e económico tem sido
considerável.
Não é objetivo deste artigo fazer uma análise detalhada sobre as consequências da crise e das
políticas de austeridade nos níveis de coesão social verificados entre os diferentes países
europeus. De qualquer modo, dada a evolução descrita no que diz respeito às taxas de
emprego e de desemprego, pensamos que seria interessante efetuar uma análise exploratória
sobre a relação que se poderá estar a produzir entre o aumento do desemprego e o
incremento, ou a persistência, das desigualdades de rendimento nos países europeus.
Tradicionalmente os indicadores relacionados com o desemprego são vistos como
conjunturais, sendo um efeito, mais ou menos direto, dos ciclos de crescimento, estagnação
ou recessão económica. No entanto, com a atual crise e os efeitos devastadores que provocou,
o desemprego está a transformar-se numa variável estrutural que, para além de representar
por si só um grave problema social, pode estar a induzir novas relações com outras dimensões
sociais e económicas, designadamente com a pobreza e a desigualdade.
Contudo, como se disse anteriormente, trata-se de uma hipótese exploratória, mas que pode
ser devidamente ilustrada a partir de um exercício analítico no qual se pretende, antes de
tudo, revelar que estaremos provavelmente a assistir à transformação do desempego numa
variável capaz de influenciar, de forma mais estrutural, a evolução de outras variáveis, com é
o caso da desigualdade de rendimento.
Tendo como referência a análise desenvolvida por Wilkinson e Pickett (2010) no seu famoso
livro, O Espírito da Igualdade, iremos realizar uma regressão simples entre duas variáveis (a
taxa de desemprego e o rácio de rendimento S80/S20) para dois anos distintos: 2005 e 2012
(o primeiro é anterior à atual crise económico-financeira e o segundo já representa um ano
em plena crise).
Como se pode observar na figura 3, em 2005 a correlação entre o nível de desemprego dos
países e as desigualdades de rendimento (medidas pelo rácio S80/S20) é praticamente
inexistente. Ou seja, de uma maneira geral, podemos dizer que o desemprego e a
desigualdade eram fenómenos relativamente autónomos, não se depreendendo qualquer
relação entre eles. De facto, tradicionalmente na análise das desigualdades sociais, mesmo
naquelas que enfatizam o seu caráter multidimensional (Therborn, 2006; Bihr e Pfefferkorn,
2008), o desemprego não emerge como variável a ter em conta, ao contrário de outras que
remetem claramente para essa relação, como é o caso do género, do nível de escolaridade, da
etnia, da classe social, etc. Os níveis comparativamente baixos de desemprego e/ou a elevada
eficácia dos sistemas de proteção social terão funcionado como fatores preventores da
associação entre o desemprego e as desigualdades económicas.
A reconfiguração da posição dos países face à reta da regressão, leva-nos concluir, embora
sublinhando as devidas cautelas, que não só o desemprego tende a ser uma dimensão cada
vez mais relacionada com as desigualdades, como esta relação é muito diferenciada entre os
países europeus. Isto é, interpretando a figura, parecem vislumbrar-se duas “Europas”
distintas: a Europa do Norte e do Centro, onde o desemprego tende a ser mais baixo assim
como o nível das desigualdades de rendimento, e a Europa do Sul, que se estende a alguns
países do Leste, onde, pelo contrário, se observa um incremento da associação entre a
desigualdade económica e o agravamento do desemprego. Na verdade, para além dos
indicadores económico-financeiros, é também por aqui que emerge uma Europa a, pelo
menos, duas velocidades.
Notas conclusivas
A sociedade portuguesa é uma das mais desiguais da União Europeia ao nível da distribuição
do rendimento disponível. As políticas de redistribuição monetária têm representado um
esforço relevante e relativamente efetivo para a diminuição dos níveis de desigualdade
económica. Políticas públicas como o rendimento social de inserção ou o complemento
solidário para idosos permitiram elevar os recursos económicos dos indivíduos e famílias
mais pobres — e, por essa via, contribuíram para diminuir as disparidades económicas.
Contudo, o cariz estrutural e persistente das desigualdades económicas na sociedade
portuguesa, fenómeno imbricado com a desigualdade de recursos escolares e qualificacionais,
tem funcionado como um fator de pressão sobre a ação redistributiva do estado, de tendencial
polarização das condições de vida e de entrave às possibilidades de mobilidade social de boa
parte da população portuguesa.
A este padrão de desigualdade persistente na sociedade portuguesa vêm somar-se outros
mecanismos, ainda difíceis de discernir de forma pormenorizada, que derivam da profunda
crise económico-financeira que atualmente se abate sobre Portugal e parte da Europa. Como
foi ilustrado, por intermédio de uma análise de regressões simples, o desemprego pode estar a
transformar-se numa variável estrutural que afeta outras dimensões económicas e sociais,
como é o caso das desigualdades de rendimento. Na verdade, algo de muito particular está a
acontecer na Europa, que se repercute na reconfiguração dos processos habituais de produção
de desigualdades e que pressiona decisivamente os sistemas vigentes de proteção social e de
redistribuição. Os dados disponíveis ainda não nos podem dizer muito mais, mas trata-se de
uma problemática fundamental para o futuro do nosso país (e também da Europa), que carece
a prazo de análises mais robustas e aprofundadas.